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Anais do II Simpósio Gênero e Políticas Públicas,ISSN 2177-8248 Universidade Estadual de Londrina ,18 e 19 de agosto de 2011. GT4 Gênero e Políticas Públicas Coordenadora Martha Ramírez Gálvez (Re)modelando o corpo midiático: relações de representação e teoria queer na contemporaneidade Muriel Emídio Pessoa do Amaral 1 Adenil Alfeu Domingos 2 Introdução O corpo, ao mesmo tempo em que se tornar um reflexo de um contexto cultural, pode ser considerado também como um precursor das mudanças sociais e conceitos culturais, imprimindo e apresentando novas representações. O corpo (...) é um agente da cultura. (..) ele é uma poderosa forma simbólica, uma superfície na qual as normas centrais , as hierarquias e até os comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e assim reforçados através da linguagem corporal concreta. (...)uma imagem mental da morfologia corporal tem fornecido um esquema para o diagnóstico e/ou visão da vida social e política (BORDO, 1997,p.19). Essa condição faz do corpo uma entidade em constante reconfiguração pela própria condição cultural permanecer instável quanto à identidade. Na contemporaneidade, (que nesse trabalho será denominada de pós-modernidade) o corpo não deve ser interpretado apenas pelo viés biológico. O corpo se apresenta dialogando, mesmo que de forma nada apaziguada, com as ciências sociais, história, antropologia e demais áreas humanas. A identidade das manifestações do corpo, assim como a própria forma de representação desse corpo, se encontra em conceitos que não são estagnados. A pós-modernidade faz da cultura e formas de identidades e representação status conceituais flutuantes, devido à interferência tecnológica e outras intervenções culturais dentro da cultura já existente, ou seja, as identidades se apresentam em crise, no sentido de não haver um conceito único para que possa criar uma identidade única para representação. “A identidade se torna uma „celebração móvel‟: formada e transfor mada continuamente em relação às formas pelas quais somos 1 Mestrando em comunicação do programa de Mestrado em Comunicação pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista-Bauru (UNESP-FAAC-BAURU). E- mail: [email protected] 2 Orientador dessa pesquisa. Livre-docente, pós-doutorado e professor do programa de Mestrado em Comunicação pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista- Bauru (UNESP-FAAC-BAURU). E-mail: [email protected]

(Re)modelando o corpo midiático: relações de representação e

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GT4 – Gênero e Políticas Públicas – Coordenadora Martha Ramírez Gálvez

(Re)modelando o corpo midiático: relações de representação e teoria queer na contemporaneidade

Muriel Emídio Pessoa do Amaral

1

Adenil Alfeu Domingos2

Introdução

O corpo, ao mesmo tempo em que se tornar um reflexo de um

contexto cultural, pode ser considerado também como um precursor das mudanças

sociais e conceitos culturais, imprimindo e apresentando novas representações.

O corpo (...) é um agente da cultura. (..) ele é uma poderosa forma simbólica,

uma superfície na qual as normas centrais , as hierarquias e até os

comprometimentos metafísicos de uma cultura são inscritos e assim

reforçados através da linguagem corporal concreta. (...)uma imagem mental

da morfologia corporal tem fornecido um esquema para o diagnóstico e/ou

visão da vida social e política (BORDO, 1997,p.19).

Essa condição faz do corpo uma entidade em constante reconfiguração

pela própria condição cultural permanecer instável quanto à identidade. Na

contemporaneidade, (que nesse trabalho será denominada de pós-modernidade) o corpo

não deve ser interpretado apenas pelo viés biológico. O corpo se apresenta dialogando,

mesmo que de forma nada apaziguada, com as ciências sociais, história, antropologia e

demais áreas humanas. A identidade das manifestações do corpo, assim como a própria

forma de representação desse corpo, se encontra em conceitos que não são estagnados.

A pós-modernidade faz da cultura e formas de identidades e

representação status conceituais flutuantes, devido à interferência tecnológica e outras

intervenções culturais dentro da cultura já existente, ou seja, as identidades se

apresentam em crise, no sentido de não haver um conceito único para que possa criar

uma identidade única para representação. “A identidade se torna uma „celebração

móvel‟: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos

1 Mestrando em comunicação do programa de Mestrado em Comunicação pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista-Bauru (UNESP-FAAC-BAURU). E-mail: [email protected] 2 Orientador dessa pesquisa. Livre-docente, pós-doutorado e professor do programa de Mestrado em

Comunicação pela Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista-Bauru (UNESP-FAAC-BAURU). E-mail: [email protected]

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representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL apud

HALL, 2006).

Por não permear exclusivamente uma área, mas se relacionar com

outras vertentes sociais e do conhecimento, o signo corpo se torna uma símbolo,

conceito utilizado por Charles S. Peirce3 ao teorizar a relação entre o signo e o objeto,

em que a condição simbólica pode ser arbitrária, variando de acordo com as

interferências e relações sociais e culturais. “Pensar o corpo é deparar-se com uma obra em

aberto, para sempre inconclusa, como são as bases culturais que o constituem, nomeiam e

transformam, através dos tempos e da história” (VELLOSO, ROUCHOU, OLIVEIRA, p.15,

2009).

A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos

por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como

sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que

damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive

sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e

aquilo no qual podemos nos tornar. A representação, compreendida como

um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os

sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis questões:

Quem sou eu? O que poderia ser? Quem quero ser? Os discursos e os

sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais podem

falar. Por exemplo, a narrativa das telenovelas e a semiótica da publicidade (WOODWARD, 2009, p.17).

A semiótica contribui de forma significativa para que os conceitos dos

signos e as suas representações sejam esclarecidos. A semiótica é interpretada como a

ciência dos estudos da significação dos signos. Para Peirce, signo é todo objeto que

pode ser representado para alguma pessoa (COELHO NETTO, 2010). Seguindo as

esteiras do pensamento de Pierce, o objeto é sígnico ao gerar imagens como

representação de si mesmo para alguém, ou seja, todo objeto é um representante de algo

nele representado. Dentro das noções de percepção e cognição do receptor da

mensagem é que o objeto “corpo” como um estímulo exterior irá ser apresentado e

representado no objeto/signo, ou seja, como um simulacro do representado, pois, como

3 Para Peirce, a semiótica ou lógica de todo pensamento é “um processo de interpretação do signo com base numa relação triádica entre signo, objeto e interpretante.” (cf. COELHO NETTO, p.53, 2010). Peirce acredita que “mente” deve ser interpretada como “semiose” ou processo de formação das significações e “pensamento” deve ser substituído por “signo”, “símbolo” ou “interpretante”. O signo é aquilo que representa alguma coisa para alguém. E na mente do receptor esse signo ganha outra designação, agora chamado de interpretante (não confundir com o intérprete) e a

coisa representada é conhecida pela designação de objeto.

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já vimos antes, a representação do corpo sempre será uma defasagem entre o

representante e o que ficou ora representado. Esse semioticista entendeu que a mente

humana pode operar de modo simples apenas relacionando as semelhanças entre

representante e representado, o que ele denominou de ícone; em uma operação posterior

e um pouco mais complicada, a mente relaciona um signo a outro signo, em termos não

mais de similaridade, mas sim, de contiguidade, e aparece, assim, o signo indicial; esse

segundo instante, porém, não só envolve o primeiro, como pode gerar um terceiro, o

signo/objeto cultural, dando, assim, origem ao símbolo, cujo significado é determinado

pelo seu uso em sociedade, passando a ser um produto de aprendizagem convencional.

Assim podemos entender a afirmação que essas relações não são consideradas absolutas

no sentido de apenas apresentarem uma única representação, já que, “(...) certos signos

participam de uma natureza dupla, e até mesmo tripla” (PIGNATARI, 1968, 28).

Dessa forma, o signo, bem como a sua representação, pode ser

alterado de acordo com a referência ideológica a que estão submetidos em um discurso.

O “corpo” vai significar de acordo com o contexto de linguagem em que ele se encontra

e do valor cultural que se lhe for dado em cada novo contexto. Pignatari (1968) entende

por contexto o processo de signo cuja coerência ou unidade é suscitada diretamente pelo

referente. Com esse apanhado geral, pode-se ter uma noção da teoria da concepção dos

signos teorizada por Pierce, quando se considera o corpo como objeto dinâmico no

mundo e signo, como objeto imediato, ao mesmo tempo. Assim, também nota-se a

vulnerabilidade que há quanto à concretização da representação dos signos frente aos

seus objetos representados. Ainda mais quando se refere ao processo de comunicação.

O corpo como mídia

O conceito de mídia advém de um tempo anterior à concretização dos meios de

comunicação e das formas de comunicação por algum artefato das novas tecnologias4.

Dessa forma, o processo comunicativo não começa e nem se esgota com o surgimento

4 A palavra “mídia” tem uma história muito simples que representa meio (BAITELLO JR, 2005). É uma expressão muito antiga, proveniente do latim, “médium”, que deu origem à palavra “médium” e pelo advento linguístico passou a ser traduzida como “meio do campo”, o “intermediário” (idem, ibidem).

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dos veículos de comunicação de massa (rádio, televisão, jornais, revistas, internet, entre

outros). Para Baitello Junior (2005), o corpo é considerado a primeira forma de mídia da

qual o homem pode usufruir e fazer uso desse aparato para que sirva como um canal de

comunicação, por isso, o corpo é considerado como uma “mídia primária”.

Quando duas pessoas se encontram existe uma troca de informações e,

portanto um intenso processo de comunicação por meio de inúmeros

vínculos, inúmeros canais, inúmeras relações, conexões e linguagem. (...)

Existe assim um processo de comunicação extremamente complexo através

dos sentidos de distância com a audição e a visão, e dos sentidos de proximidade como o olfato, paladar e tato. (BAITELLO JR, 2005. p.31-32).

Possivelmente, a linguagem verbal em seu nascedouro tivera o

acompanhamento intenso da linguagem corporal. O corpo como mídia primária é visto hoje

como emissor de mensagens pela intensa dose, quase inconsciente, em que os sinais físicos e/ou

biológicos manifestados pelo corpo com o objetivo de transmitir algum tipo de sinal, entraram

nas relações sociais e ganharam valores culturais, passando a simbolizar relações convencionais

e simbólicas, como os modos diferentes de cumprimento em diferentes culturas.

Baitello expande as reflexões sobre o corpo ao considerar outras instâncias

do corpo como mídia secundária ou terciária. A evolução para outras instâncias do corpo como

mídia se concretiza quando o primeiro estágio não supre a necessidade de comunicação do

corpo. Devido à limitação da relação tempo/espaço, o corpo se expande outros artefatos para

que haja a comunicação, garantindo assim a perpetuação da cultura e a circulação de

informações. Assim, surgem os primeiros indícios da escrita, com desenhos e sinais deixados

pelos homens em pedras, ossos e árvores.

Usando um objeto para transmitir seus sinais, sua informação, o homem

consegue criar a presença na ausência, conseguindo perpetuar-se no tempo,

criando um tempo virtualmente infinito. Podemos dizer que o homem consegue

vencer a morte, deixando os sinais produzidos pelo seu corpo (BAITELLO

JUNIOR, 2005, p.34).

Na tentativa de extrapolar ainda mais os obstáculos com relação ao

tempo/espaço, que o corpo sente a necessidade da perpetuação da informação e da

cultura, vencendo a morte. Nesse contexto que surge a eletricidade. Com o advento da

eletricidade, o conceito de tempo, espaço e a necessidade de informação e comunicação

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ganham outras conotações. Mesmo com a intervenção da eletricidade5, a comunicação

ainda se estabelece com a presença de um corpo, embora ressignificado frente como era

estabelecido anteriormente.

A mídia primária mais o aparato do emissor que se utiliza de imagem e de

escrita ou que transforma o próprio corpo em imagem ou escrita, e as

transporta imediatamente via eletricidade para um outro aparato que as capta

e as apresenta a um outro corpo que está lá do outro lado da rua, da cidade,

do mundo. É isto a chamada mídia terciária, que hoje nos facilita a

aproximação com outro e o acesso à informação disponibilizada pelo outro

(idem, ibidem).

Teoria Queer

No final dos anos de 1980, nos Estados Unidos, surgiram os primeiros

estudos sobre a Teoria Queer. Essa teoria nasceu dentro das ciências filosóficas e da

crítica literária, avançando por outras esferas do conhecimento, chegando até às ciências

sociais, permeando outras áreas das ciências humanas.

[...]os estudos queer surgiram do encontro entre uma corrente da Filosofia e dos Estudos Culturais norte-americanos com o pós-estruturalismo francês,

que problematizou concepções clássicas

de sujeito, identidade, agência e identificação. (MISKOLCI, 2009. p. 152)

O termo queer significa em português estranho, esquisito, anormal.

Mesmo que fosse dotado de caráter pejorativo, a palavra foi utilizada para a teorização

sobre os estudos que se referem à diversidade sexual: gays, lésbicas, transexuais e

travestis. Assim, o pensamento da teoria queer não se referia à identidades

marmorizadas, dentro de referências de poder, mas sim como uma estrutura flutuante de

identificação e representação.

5 A eletricidade não é se restringe apenas à corrente elétrica propriamente dita, mas às interferências tecnológicas a que a humanidade é submetida. Essa interação entre o corpo e a tecnologia é que faz o do dependente do sentido de

devir e do próprio desenvolvimento, fazendo da tecnologia uma extensão dos membros e da significação do corpo como uma estrutura viva.

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A escolha do termo queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento

que denotava anormalidade, perversão e desvio, servia para destacar o

compromisso em desenvolver uma analítica da normalização que, naquele

momento, era focada na sexualidade. Foi em uma conferência na Califórnia,

em fevereiro de 1990, que Teresa de Lauretis empregou a denominação

Queer Theory. (idem, ibidem).

A teoria queer, segundo Miskolci, não teve a intenção de neutralizar a

importância das identidades de indivíduos LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais,

Transexuais, Travestis e Transgêneros), mas de apontar falhas quanto à identidades dos

sujeitos e ainda reconfigurar a hegemonia heterossexita e outras formas de poder e

convenções sociais. Com essa proposta, os estudos das diversidades sexuais e

identidades saem dos conjuntos binários (homem x mulher, heterossexual x

homossexual, homossexual x bissexual, e outras configurações) para ganhar conceitos

mais flexíveis para denominação; foi a desconstrução das identidades.

Desconstruir é explicitar o jogo entre presença e ausência, e a

suplementaridade é o efeito da interpretação porque oposições binárias como

a de hetero/homossexualidade, são reatualizadas e reforçadas em todo ato de

significação, de forma que estamos sempre dentro de uma lógica binária que,

toda vez que tentamos quebrar, terminamos por reinscrever em suas próprias

bases. (GUATARI apud MISKOLCI, idem, p.154).

A Teoria Queer foi desenvolvida sob o pensamento6 de vários

teóricos, para essa pesquisa serão abordadas duas referências que contribuíram para o

desenvolvimento da teoria que foram as reflexões de Michel Foucault, ao teorizar sobre

as relações de poder, e de Guilles Deleuze que apresenta condições para a

desterritorização.

Com a desconstrução de conceitos socialmente marmorizados,

Foucault (1988) reconduz as questões da sexualidade estabelecendo que a sexualidade é

uma forma de exercício de poder devido à hierarquização da mesma conforme a

disposição do desejo conforme os sistemas de unidade e regulação social. Dessa forma,

a reunião ou o pertencimento às condições e signos socialmente aceitos faziam do

indivíduo o merecimento de poder e prazer, desqualificando quaisquer outras formas

que não fossem comungadas da sociedade normativa.

6 SEDGWICK (1985), BUTLER (2003, 2004), HALPERIN (1990), WARNER (2003).

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Entretanto, como as identidades sociais, até mesmo as sexuais,

ganharam outros signos e formas de representação, devido à interferência cultural

existente na contemporaneidade. Essa condição de recolocação da identidade, é que

Deleuze (1995) define como “desterritorização”. Esse conceito foi embasado em

pensamentos filosóficos e psicanalíticos, junto com outro filósofo, Felix Guattari. O

principio desse conceito, os filósofos se apropriam da aplicabilidade das funções do

rizoma (parte mais profunda da raiz de uma planta), para evidenciar as questões

culturais não se encontram mais de formas imutáveis ou profundamente enraizadas. As

relações culturais foram reconfiguradas de acordo com as mudanças sociais, por

interferência também da tecnologia e da fluidez cultural, reapresentando uma nova

forma de posicionamento da cultura no tempo e no espaço, ou seja, desalojando a

representação cultural de um espaço e/ou representação única, oferecendo condições e

signos para o surgimento de novas propostas culturais, como o surgimento das culturas

híbridas e interferências da globalização.

Corpo Midiático

A condição de reconfiguração do signo para o surgimento de outros

signos que vão culminar na organização desses em símbolos devido à interferência

cultural é o que faz da representação sígnica algo não completo e absoluto de

significação. Essa carga de mutação de representação é constante na interpretação

simbólica.

“Pela semiose, o novo objeto, embora traga em si marcas do seu objeto

gerador, jamais será idêntico a ele e a diversificação natural que o tornou

inevitável. O novo signo, ao se distanciar paulatinamente do seu signo-objeto

gerador, cria diversidades que praticamente apagam o contacto com o objeto

que lhe deu origem. As semelhanças de superfície geram, então, as espécies

de sistemas de representação, como, por exemplo, verbal e não-verbal,

enquanto no nível profundo atua sob todos esses sistemas na tríade: objeto

gerador relacionado a um signo-objeto gerado de modo mediato. Gerar signos novos como representantes, portanto, é uma lei básica da natureza e

não se limita a um ato humano da linguagem. (...) o novo sempre será um

representante de seus antecessores”. (DOMINGOS, 2007, p.152)

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Essa relação é percebida também na representação do corpo midiático.

De acordo com Santaella (2004), o corpo é um sintoma da cultura. Para teorizar sobre

sintoma, Santaella se apóia em conceitos que vão ao encontro do pensamento

psicanalítico de que sintoma é um distúrbio que causa sofrimento e remete a um estado

doentio do qual constitui a expressão (Nasio apud Santaella, 2004). Ou seja, o sintoma

oferece ao corpo condições para que seja remodelado conforme a necessidade de cura

do mal-estar, em benefício à condição saudável. O corpo midiático, dessa forma,

também deixa de ser apenas um instrumento de contemplação do lado narcísico, fonte e

forma de espetáculo devido à necessidade de se reconfigurar perante às interferências

culturais existentes e às regras normativas vigentes.

O recorte utilizado para explicar esse panorama serão os corpos dos

modelos Lea T. e Andrej Pejic, participando de editoriais e campanhas de moda no

Brasil e no exterior. O que eles têm em comum? A utilização do corpo com um símbolo

ressignificado no espaço da moda. Lea T. é brasileira, transexual, filha do ex-jogador da

seleção brasileiraToninho Cerezo e nasceu com o nome de Leandro. Ela conheceu a

fama depois de ter sido convidada para participar da campanha da grife francesa

Givenchy para a coleção de inverno 2010-2011.

Lea T. reconfigurou de alguma forma a profissão de modelo e também

das formas de lidar com a representação do corpo. Até, então, o espaço conquistado por

ela não oferecida condições para que uma transexual ocupasse devido à contingência

única da presença de mulheres nesse posto.

7

7 Imagem coletada do site <www.virgula.uol.com.br>, no dia 15 de junho de 2011

Desde então, Lea T. segue a carreira de

modelo na Europa e Estados Unidos. Em

2010 e 2011, ela retornou ao Brasil na

condição de modelo para desfilar para

grife Alexandre

Herchcovitch. Nas

imagens ao lado, a foto que a colocou no

status de uma modelo internacional, na

revista Vogue French (Ed. junho de

2010) e a campanha da Givenchy.

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Já o modelo Andrej Pejic é de origem sérvia e tem apenas 19 anos.

Biologicamente homem, Andrej faz muitas campanhas para roupas femininas, sendo

considerado pelo site Models8, como “uma das melhores modelos da atualidade”. Rosto

e corpo andrógenos, o modelo destrói as fronteiras que divide a identificação e

representação do corpo feminino e masculino no universo da moda. Alto, pele alva,

cabelos loiros e traços efeminados fazem dele uma representação atípica masculina para

ser apresentada em um desfile.

De alguma forma, ele reinventou as formas de representação entre o

corpo masculino e feminino, elaborando fronteiras e signos mais flexíveis para a

significação do gênero no universo da moda. Pejic pode ser considerado um símbolo

dessa nova forma de lidar com a sexualidade, um ser híbrido que é reflexo da inter-

relação dos signos e cógidos pré-existentes para a reconfiguração de um novo signo

para representação.

No Brasil, ele participou dos dois maiores eventos de moda: São Paulo

Fashion Week e o Fashion Rio. Nos desfiles em São Paulo, Andrej desfilou apenas para

grifes que costuram roupas femininas e no Rio de Janeiro ele desfilou em dois

momentos para a mesma marca, a primeira

com trajes femininos e pela segunda vez

vestindo roupas masculinas.

9

8 www.models.com

9 Imagem coletado do site www.models.com , no dia 15 de junho de 2011.

Em ambos os casos pode se

perceber a necessidade da moda se

reinventar pela representação do corpo.

As barreiras de definição entre o

masculino e feminino estão sendo

transpassadas pela dinâmica pela qual o

corpo passa. A relação entre os signos

de identificação se ressignificam de

acordo com o processo cultural em que

está submetida. E o corpo desses

modelos evidencia a mutação do corpo

midiático dentro do universo da moda.

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Considerações Finais

Partindo do pressuposto que o corpo é algo inacabado devido à

interferência cultural a que é submetido, a representação do corpo midiático também

passa por ressignificações. No mundo da moda, a identidade binária homem x mulher se

torna flexível.

Apoiando-se na Teoria Queer e Semiótica desenvolvida por Charles S.

Peirce, o corpo midiático pode ganhar outras formas de representação e significação. De

acordo com Peirce, o signo não é uma entidade imutável que não tenha uma

representação absoluta. Pelo contrário, a sua identidade pode ser alterada de acordo com

o contexto sócio-cultural e as formas de percepção desse signo. Algo semelhante à linha

regente da Teoria Queer, em que as identidades binárias são enfraquecidas frente às

relações de poder.

A capacidade plástica de representação do corpo faz do mesmo uma

estrutura em constante ressignificação, como é o caso da representação do corpo no

mundo da moda em que Lea T. e Andrej Pejic se tornaram protagonistas. De alguma

forma eles ultrapassaram as barreiras de definições da identidade, reformulando o corpo

midiático para além do espetáculo; interpretando o corpo como forma de poder e

mobilidade dos conceitos do sistema cultural.

À vista da semiótica, a teria queer pode ser interpretada como a

reconfiguração do objeto frente ao signo para a produção de sentido, originando assim

mais um conceito simbólico, embasado em símbolos já existentes, entretanto,

reconfigurados pela capacidade de percepção e significação.

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