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“Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA” por Renan Finamore Gomes da Silva Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciências na área de Saúde Pública. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto Rio de Janeiro, abril de 2015.

Renan Finamore Gomes da Silva - Oswaldo Cruz Foundationneepes.ensp.fiocruz.br/sites/default/files/tese_renan.pdfRenan Finamore Gomes da Silva Tese apresentada com vistas à obtenção

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  • “Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para ajustiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA”

    por

    Renan Finamore Gomes da Silva

    Tese apresentada com vistas à obtenção do título de Doutor em Ciênciasna área de Saúde Pública.

    Orientador: Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto

    Rio de Janeiro, abril de 2015.

  • Esta tese, intitulada

    “Riscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para a

    justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA”

    apresentada por

    Renan Finamore Gomes da Silva

    foi avaliada pela Banca Examinadora composta pelos seguintes membros:

    Prof.ª Dr.ª Raquel Maria Rigotto

    Prof. Dr. Gabriel Eduardo Schütz

    Prof. Dr. Carlos Machado de Freitas

    Prof. Dr. Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos

    Prof. Dr. Marcelo Firpo de Souza Porto – Orientador

    Tese defendida e aprovada em 29 de abril de 2015.

  • Catalogação na fonteInstituto de Comunicação e Informação Científica e TecnológicaBiblioteca de Saúde Pública

    S586r Silva, Renan Finamore Gomes daRiscos, saúde e alternativas de produção de conhecimentos para

    a justiça ambiental: o caso da mineração de urânio em Caetité, BA. / Renan Finamore Gomes da Silva. -- 2015.

    208 f. : il. ; tab. ; mapas

    Orientador: Marcelo Firpo de Souza PortoTese (Doutorado) – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio

    Arouca, Rio de Janeiro, 2015.

    1. Conhecimento. 2. Riscos Ambientais. 3. Justiça Social. 4. Impacto Ambiental. 5. Mineração. 6. Urânio - efeitos de radiação. 7. Administração Ambiental. 8. Poluição Ambiental. 9. Vigilância em Saúde do Trabalhador. I. Título.

    CDD – 22.ed. – 363.7

  • AGRADECIMENTOS

    À minha família, meus pais e minha irmã, sempre presentes em minha trajetória.

    Sem a compreensão, o apoio e o incentivo deles, dificilmente eu concluiria mais esta

    importante etapa.

    À CAPES e à FAPERJ, pelo apoio financeiro durante a primeira e a segunda

    metades, respectivamente, do desenvolvimento deste estudo.

    Ao meu orientador, Professor Marcelo Firpo, pela inspiração acadêmica e

    profissional, pela orientação, pelo incentivo e pela confiança em mim depositada na

    condução desta tese.

    Aos professores Carlos Machado de Freitas, Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos,

    Gabriel Eduardo Schütz e Raquel Maria Rigotto, por terem gentilmente aceitado

    compor a banca avaliadora do presente trabalho, pelas importantes críticas

    realizadas e pelas valiosas contribuições dadas.

    A todos de Caetité que contribuíram para a elaboração desta pesquisa. Agradeço

    imensamente a hospitalidade com que sempre fui recebido na cidade, bem como a

    disposição de todos em colaborar, seja compartilhando informações importantes,

    seja fornecendo o suporte necessário para a realização das oficinas e das visitas às

    comunidades rurais do entorno da mina de urânio, para a coleta de dados. Um

    agradecimento mais que especial a todos os integrantes da CPMA, dentre os quais

    destaco: Padre Osvaldino Barbosa, professora Adélia Nunes, Suzane Ladeia, Ione

    Rochael, Elenilde Cardoso, Dema, Florisvaldo Cardoso, Gilmar Ferreira Santos

    (CPT-BA), João Batista (CPT-BA), Lucas Mendonça (SINDMINE) e Zoraide

    Vilasboas (AMPJ). A participação e a ajuda de vocês foi fundamental para realização

    desta tese.

    Aos integrantes do EJOLT, com os quais pude dialogar e aprender bastante sobre os

    temas da justiça ambiental, ecologia política e economia ecológica. Agradeço,

    principalmente, ao coordenador geral do projeto, professor Joan Martínez Alier, e

    aos demais membros que participaram e colaboraram com a oficina “Justiça

  • Ambiental, Exploração de Urânio e Monitoramento Comunitário de Radioatividade”,

    realizada em junho de 2012, em Caetité.

    Ao CRIIRAD, em especial ao engenheiro Bruno Chareyron, pelo suporte técnico

    tanto nas oficinas de capacitação sobre mineração de urânio e seus riscos, como

    nos trabalhos de monitoramento de radiação e coleta de amostras no entorno da

    mina de urânio. A oportunidade de trabalhar em parceria com o CRIIRAD foi

    determinante para uma compreensão mais adequada dos riscos e impactos

    radiológicos das atividades de mineração e beneficiamento de urânio em geral, e

    sobretudo no contexto de Caetité.

    Ao pesquisador e amigo Diogo Rocha, parceiro de trabalho no projeto EJOLT e com

    quem também pude discutir muitos dos dilemas desta pesquisa de doutorado.

    Ao pesquisador Raphael Guimarães, pela contribuição em boa parte das questões

    epidemiológicas tratadas no presente trabalho.

    Aos professores da ENSP, os quais contribuíram bastante para minha formação

    acadêmica.

    Aos sempre prestativos e atenciosos funcionários da SECA.

    Aos colegas de turma com quem convivi ao cursar as diversas disciplinas no

    decorrer do doutorado.

    Por fim, meus agradecimentos mais do que especiais à minha mulher Gisele

    Fonseca e ao meu filho Pedro Finamore, que souberam como ninguém suportar e

    tolerar, pacientemente, minhas angústias e meus dilemas na confecção desta tese.

    Agradeço o incentivo constante, as sugestões, o carinho e, principalmente, o amor.

  • RESUMO

    No município de Caetité, sertão baiano, situa-se a única mina de urânio em atividade

    no Brasil, operada desde 2000 pelas Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Esta

    empresa tem sua atuação bastante questionada por comunidades locais e

    movimentos sociais da região, os quais alegam que a mesma omite informações

    sobre os riscos e impactos ambientais e à saúde relacionados ao empreendimento.

    Suspeitas de contaminação ambiental são reforçadas pelos acidentes ocorridos,

    sobretudo pelos episódios de vazamento de material radioativo para o ambiente.

    Portanto, verifica-se, em Caetité, um cenário de desinformação e incertezas quanto

    aos riscos e impactos potencialmente atribuídos as atividades de mineração e

    beneficiamento de urânio na região, que atingem, basicamente, trabalhadores da

    mina e comunidades rurais vizinhas. As abordagens técnico-científicas clássicas de

    investigação e produção de conhecimentos mostram-se limitadas para lidar com

    situações que envolvem riscos complexos, sobretudo em contextos de conflito e

    injustiças ambientais, como ocorre com a operação da mina de urânio em Caetité.

    Assim, diante do quadro apresentado, esta tese busca realizar uma reflexão crítica

    sobre a importância de estratégias alternativas de produção de conhecimentos, as

    quais valorizem e incorporem o saber situado dos sujeitos atingidos, a fim de

    possibilitar uma melhor compreensão, mais contextualizada, de riscos tecnológicos

    complexos e suas implicações para o ambiente e a saúde. Para tanto, são tomadas

    como referência experiências participativas e integradas de produção de

    conhecimentos acerca dos riscos e impactos verificados junto às atividades de

    mineração e beneficiamento de urânio em Caetité.

    Palavras-chave: Produção de Conhecimentos; Justiça Ambiental; Saúde, Riscos;

    Mineração de Urânio.

  • ABSTRACT

    In the municipality of Caetité, semi-arid region of Bahia, it is located the only active

    uranium mine in Brazil, which is operated by the Brazilian Nuclear Industries (INB)

    since 2000. This company has its operations very questioned by local communities

    and social movements. They claim that INB omits information about environmental

    and health risks and impacts related to the mine's operation. Suspicions of

    environmental contamination are reinforced by accidents, mainly by past episodes of

    radioactive material leakages into the environment. So, in Caetité, it turns out a

    scenario of misinformation and uncertainty regarding the risks and impacts potentially

    due to the uranium mining and milling activities, which affect basically mineworkers

    and nearby rural communities. Classical technical and scientific approaches of

    research and knowledge production appear limited to deal with situations that involve

    complex risks, especially in contexts of conflict and environmental injustices, just like

    the case of Caetité's uranium mine operation. Thus, considering this setting, this

    dissertation aims to make a critical reflection on the importance of alternative

    knowledge production strategies, which value and incorporate the situated

    knowledge of affected people in order to enable a better and contextualized

    understanding of complex technological risks and its environmental and health

    implications. Therefore, it is taken as reference participatory and integrated

    knowledge production experiences about the risks and impacts related to uranium

    mining and milling in Caetité.

    Keywords: Knowledge Production; Environmental Justice; Health; Risks; Uranium

    Mining.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1.1: Representação esquemática dos níveis de engajamentocomunitário em pesquisas participativas Pág. 63Figura 1.2: Rigor, relevância e alcance, no âmbito dos processo de CBPR Pág. 65Figura 2.1: Reservas brasileiras prospectadas Pág. 72Figura 2.2: Produção e demanda mundial de urânio Pág. 78Figura 3.1: Mina de urânio e as instalações da URA-Caetité Pág. 90Figura 3.2: Fluxograma das etapas do beneficiamento de urânio na URA-Caetité Pág. 92Figura 3.3: Boletim Informativo da INB para Caetité, veiculado em junho de2009 Pág. 107Figura 3.4: Modelo hierárquico das causas fundamentais do sistema defalhas Pág. 112Figura 3.5: Evidência de material radioativo acumulado em piso Pág. 115Figura 3.6: Evidência de material radioativo acumulado em piso Pág. 115Figura 3.7: Sistema de exaustão com baixa eficiência de arraste do materialradiativo Pág. 116Figura 3.8: Abertura no portão evidenciando a possibilidade de vazamentode material particulado radioativo para áreas externas Pág. 116Figura 3.9: Monitoramento de radiação na comunidade Gameleira, em localonde ocorreram atividades de prospecção Pág. 119Figura 3.10: Furo relativo à prospecção realizada na comunidade Gameleira Pág. 119Figura 3.11: Tambores de yellow cake armazenados próximo à cabine dovigia Pág. 120

    Figura 3.12: Armazenamento provisório de materiais contaminados na INB Pág. 121

    Figura 3.13: Armazenamento provisório de materiais contaminados na INB Pág. 121

    Figura 4.1: Oficina EJOLT no Centro Paroquial de Caetité Pág. 130Figura 4.2: Debate público na Casa Anísio Teixeira Pág. 133Figura 4.3: Localização da amostra TS4, abaixo do aterro de material estéril Pág. 137Figura 4.4: Ponto de coleta TS4, com a pilha de estéril ao fundo Pág. 137Figura 4.5: Localização de todos os pontos de amostragem e pontos demonitoramento Pág. 138Figura 4.6: Capacitação em monitoramento comunitário de radioatividade Pág. 141Figura 4.7: Mapa das comunidades pesquisadas Pág. 160Figura 4.8: Mapa das comunidades pesquisadas situadas em Caetité Pág. 161Figura 4.9: Mapa das comunidades pesquisadas situadas em Lagoa Real Pág. 161Figura 4.10: Palestra ministrada pelo CRIIRAD, em 07 de abril de 2014, noCentro Paroquial de Caetité Pág. 165

  • Figura 4.11: Monitoramento de radiação e coleta de amostra de solo Pág. 168Figura 4.12: Monitor de radiação gama RADEX utilizado no do dia 09 deabril de 2014 Pág. 169Figura 4.13: Monitoramento de radiação gama na área de prospecção emJuazeiro, com auxílio do cintilador, em 10 de abril de 2015 Pág. 170

  • LISTA DE QUADROS E TABELAS

    Lista de Quadros

    Quadro 2.1: Ciclo de vida de uma projeto de mineração de urânio Pág. 79

    Lista de Tabelas

    Tabela 2.1: Concentrações típicas de urânio na crosta terrestre Pág. 69Tabela 2.2: Reservas brasileiras de urânio (t U3O8) Pág.72Tabela 2.3: Produção mundial de urânio, conforme método deextração (2013) Pág.75Tabela 3.1: Produção de urânio em Caetité Pág. 89Tabela 3.2: Principais acidentes verificados na mina de Urânio em

    Caetité Pág. 94Tabela 4.1: Casos confirmados por localidade Pág. 150Tabela 4.2: Casos suspeitos por localidade Pág. 151

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AAB – Articulação Antinuclear Brasileira

    ACRO – Association pour le Contrôle de La Radioactivité de l'Ouest

    AIA – Avaliação de impacto ambiental

    AIPA – Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes

    AMATER – Movimento Ambientalista Terra

    AMPJ – Associação Movimento Paulo Jackson – Ética, Justiça e Cidadania

    CBPAR – Community-Based Participatory Action Research

    CBPR – Community-Based ParticipatoryRresearch

    CESTEH – Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana

    CICP – Complexo Mínero-Industrial do Planalto de Poços de Caldas

    CNEN – Comissão Nacional de Energia Nuclear

    COMEST – World Commission on the Ethics of Scientific Knowledge and

    Technology

    CONAMA – Conselho Nacional do Meio Ambiente

    COPPE – Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de

    Engenharia

    CPMA – Comissão Paroquial de Meio Ambiente de Caetité

    CPN – Ciência pós-normal

    CPT-BA – Comissão Pastoral da Terra

    CRIIRAD – Commission de Recherche et d’Information Indépendantes sur la

    RADioactivité

    CTM – Centro Tecnológico da Marinha

    DAM – Drenagem ácida de mina

    DATASUS – Banco de Dados do Sistema Único de Saúde

    EJOLT – Environmental Justice Organizations, Liabilities and Trade

  • EMBASA – Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A.

    ENSP – Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca

    EPE – Empresa de Pesquisa Energética

    FASE – Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional

    FCN – Fábrica de Combustível Nuclear

    Fiocruz – Fundação Oswaldo Cruz

    GSIEN – Groupement des scientifiques pour l’information sur l’énergie nucléaire

    IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

    IESC – Instituto de Estudos em Saúde Coletiva

    INB – Indústrias Nucleares do Brasil

    INCA – Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva

    INEMA – Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos

    INGÁ – Instituto de Gestão das Águas e do Clima

    MCTI – Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação

    MI – Medico International

    MM – Movimento de Mulheres

    MME – Ministério das Minas e Energia

    MPF-BA – Ministério Público Federal da Bahia

    MTE – Ministério do Trabalho e Emprego

    NEA – Nuclear Energy Agency

    Nuclebrás – Empresas Nucleares Brasileiras S.A.

    OIT – Organização Internacional do Trabalho

    PNE – Plano Nacional de Energia

    PROSUB – Programa de Desenvolvimento de Submarinos da Marinha do Brasil

    RBJA – Rede Brasileira de Justiça Ambiental

    SIM – Sistema de Informação sobre Mortalidade

    SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação

  • SINDMINE – Sindicato dos Mineradores de Brumado e Micro Região

    SLA – Science Led Activism

    STA – Sistemas sociotécnico-ambiental

    STR – Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Caetité e Pindaí

    SUS – Sistema Único de Saúde

    TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

    TRAMAS – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde

    URA-Caetité – Unidade de Concentrado de Urânio de Caetité

    UFC – Universidade Federal do Ceará

    UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro

    UNEB – Universidade Estadual da Bahia

    WNA – World Nuclear Association

    WNN – World Nuclear News

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO........................................................................................................................1

    Apresentação.....................................................................................................................1

    Justificativa.........................................................................................................................5

    Objetivo Geral.....................................................................................................................6

    Objetivos Específicos.........................................................................................................6

    Hipótese.............................................................................................................................7

    Metodologia........................................................................................................................7

    Estrutura da tese...............................................................................................................11

    1 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, RISCOS, SAÚDE E JUSTIÇA AMBIENTAL...........13

    1.1 Ciência pós-normal, riscos complexos, incertezas e comunidade ampliada de pares 13

    1.1.1 CPN e epistemologia política: possibilidades e desafios.....................................14

    1.1.2 Críticas à CPN....................................................................................................18

    1.1.3 Para além das críticas da CPN...........................................................................19

    1.1.4 Gestão de problemas complexos e CPN.............................................................21

    1.1.5 Sobre as incertezas............................................................................................22

    1.2 Produção de conhecimentos e saúde coletiva: a experiência do campo da saúde do

    trabalhador.......................................................................................................................34

    1.2.1 Considerações sobre o campo da saúde do trabalhador e os métodos de

    pesquisa-intervenção...................................................................................................34

    1.2.2 Vigilância em saúde do trabalhador....................................................................39

    1.2.3 Análise Interdisciplinar e Participativa de Acidentes............................................40

    1.3 Riscos e produção de conhecimento e justiça ambiental: a importância do saber

    situado..............................................................................................................................44

    1.3.1 Justiça ambiental e saúde do trabalhador: uma aproximação necessária...........48

    1.3.2 Propostas alternativas de produção de conhecimento, justiça ambiental e saúde

    .....................................................................................................................................51

    2 MINERAÇÃO DE URÂNIO: PANORAMA GERAL, RISCOS, SAÚDE E AMBIENTE..........67

    2.1 Mineração de urânio: contexto mundial......................................................................67

    2.2 Mineração de urânio no Brasil....................................................................................70

    2.3 Principais métodos de extração e beneficiamento de Urânio.....................................75

    2.4 Gestão ambiental: a experiência internacional...........................................................76

    2.5 Riscos ambientais e à saúde......................................................................................83

  • 3 RISCOS, CONTROVÉRSIAS E A GESTÃO DA URA-CAETITÉ........................................89

    3.1 O contexto..................................................................................................................89

    3.2 Conflito ambiental em Caetité.....................................................................................93

    3.3 Riscos, controvérsias, saúde e ambiente..................................................................101

    3.3.1 Considerações sobre o estudo epidemiológico relativo à eventual ocorrência de

    danos genéticos e neoplasias malignas na área de influência da URA-Caetité.........105

    3.3.2 Crítica sociotécnica ao modo operatório da URA-Caetité..................................109

    4 PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO PARA A JUSTIÇA AMBIENTAL E OS RISCOS DA

    URA-CAETITÉ....................................................................................................................123

    4.1 Oficina EJOLT em Caetité: “Justiça Ambiental, Exploração de Urânio e Monitoramento

    Comunitário de Radioatividade”......................................................................................123

    4.1.1 Antecedentes....................................................................................................123

    4.1.2 Os preparativos.................................................................................................124

    4.1.3 A oficina EJOLT em Caetité...............................................................................128

    4.2 Epidemiologia Popular: a busca ativa de casos de câncer em Caetité.....................141

    4.2.1 Antecedentes do projeto....................................................................................141

    4.2.2. O projeto de pesquisa......................................................................................143

    4.2.3 Desenvolvimento da pesquisa: a busca ativa de casos....................................145

    4.2.4 Resultados preliminares da pesquisa................................................................150

    4.3 A missão CRIIRAD a Caetité, em 2014.....................................................................163

    4.3.1 Antecendentes..................................................................................................163

    4.3.2 Atividades de formação e treinamento..............................................................164

    4.3.3 Monitoramento de radiação e coleta de amostras.............................................168

    4.3.4 Resultados preliminares....................................................................................170

    5 CONCLUSÕES................................................................................................................173

    REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................181

    ANEXO 1.............................................................................................................................195

    ANEXO 2.............................................................................................................................199

    ANEXO 3.............................................................................................................................208

  • INTRODUÇÃO

    APRESENTAÇÃOMinha aproximação com o tema dos riscos tecnológicos complexos, e sua

    interface com o ambiente e a saúde pública, tem a ver com minha trajetória

    acadêmica. Desde meados de minha graduação, em engenharia civil (UFRJ), nutro

    interesse de pesquisa pela questão ambiental, em especial no que diz respeito aos

    processos de gestão de problemas relacionados à poluição ambiental. E, por

    ocasião do meu trabalho de conclusão do curso de graduação, abordei o problema

    de contaminação do solo por resíduos industriais no município de Queimados

    (FINAMORE, 2005), minha cidade natal, no Rio de Janeiro. Foi aí a primeira vez que

    tive contato com a noção de injustiça ambiental, ou, melhor, com o argumento

    segundo o qual a poluição ambiental (e seus efeitos) se distribui de maneira desigual

    e desproporcional entre os diversos grupos e sujeitos que compõem a sociedade.

    No mestrado, em planejamento ambiental (COPPE/UFRJ), discuti a gestão de

    áreas contaminadas, a partir da utilização de uma metodologia de estruturação de

    problemas e apoio à tomada de decisões em situações de conflito. Neste sentido, foi

    realizada uma simulação da aplicação da Abordagem da Escolha Estratégica ao

    conflito em torno da área contaminada na localidade conhecida como Cidade dos

    Meninos, em Duque de Caxias, Rio de Janeiro (FINAMORE, 2007). Entretanto, este

    trabalho, de perfil mais técnico, não privilegiou o olhar do problema ambiental em

    questão sob a perspectiva crítica da justiça ambiental, o que me levou a buscar tal

    abordagem no curso de doutorado.

    Assim, em meados de 2008, com a ideia geral de articular o enfoque da

    justiça ambiental para discutir riscos tecnológicos complexos, entrei em contato com

    o professor Marcelo Firpo, que já trabalhava há muitos anos com esta linha de

    pesquisa na ENSP/Fiocruz e junto a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA)1, a

    fim de verificar a possibilidade de cursar o doutorado em saúde pública sob sua

    orientação. A resposta inicial foi positiva, mas ainda havia a necessidade de definir

    um objeto de pesquisa mais claro, e elaborar um projeto para, então, realizar a1 A RBJA consiste em um espaço de discussões, denúncias, mobilizações e articulação política,seguindo os princípios de Justiça Ambiental. Entre seus membros encontram-se: movimentos sociais,entidades ambientalistas, ONGs, associações de moradores, sindicatos, pesquisadores universitáriose núcleos de instituições de pesquisa/ensino.

    1

  • inscrição no processo seletivo para o curso de doutorado na ENSP. Todavia, por

    questões pessoais, tive que dar uma pausa nesse processo, pois, entre fevereiro de

    2009 e abril de 2010, residi fora do Brasil. Durante esse período, em pesquisas na

    internet, encontrei o relatório “Ciclo do Perigo”, elaborado pela organização

    GREENPEACE (2008). Ao lê-lo, tomei conhecimento e logo me interessei bastante

    pelo caso de conflito ambiental relativo às atividades de mineração e beneficiamento

    de urânio no município baiano de Caetité. Assim, busquei mais informações sobre o

    mesmo, e decidi estudá-lo com maior profundidade ao longo o doutorado. Quando

    retornei ao Brasil, apresentei esta proposta ao professor Marcelo Firpo, que a

    recebeu muito bem. Daí, me inscrevi no processo seletivo para o doutorado em

    saúde pública, para o qual fui aprovado, dando início ao curso em março de 2011.

    A presente tese, portanto, traz a seguinte indagação como objeto de

    pesquisa: Como processos alternativos de produção de conhecimentos em saúde e

    ambiente podem contribuir para uma compreensão contextualizada de situações de

    riscos tecnológicos complexos, como as que se relacionam às atividades de

    mineração e beneficiamento de urânio, a exemplo do que se verifica no município de

    Caetité, Bahia?

    A ideia de estudar propostas alternativas de produção de conhecimentos em

    saúde e ambiente surgiu do meu interesse inicial de tentar entender como sujeitos

    potencialmente expostos a situações de riscos complexos percebem, compreendem

    e lidam com os mesmos. E, ao mesmo tempo, como a articulação do saber de tais

    sujeitos com pesquisadores solidários aos seus problemas pode gerar formas

    alternativas de uma ciência mais engajada. Para tanto, optei por buscar inspiração

    em propostas de investigação alternativas, que visem superar a tradicional

    separação entre sujeito pesquisador e objeto da pesquisa2. Tais propostas

    configuram o que pode ser denominado como processos de construção

    compartilhada de conhecimento em problemas de saúde e ambiente, e apontam

    para a valorização do diálogo e da parceria entre sujeitos portadores de distintas,

    porém complementares, formas de saber: os pesquisadores (saber especializado,2 Neste sentido, vale destacar a própria trajetória de pesquisa do Centro de Estudos da Saúde doTrabalhador e Ecologia Humana, da ENSP (CESTEH/ENSP), de trabalho cooperativo comtrabalhadores, comunidades e movimentos sociais, em especial a partir de 2001, em colaboraçãocom a RBJA. Vide como exemplo o projeto “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúdeno Brasil”, uma parceria entre a Fiocruz e a ONG FASE, cujos detalhes podem ser encontrados noseguinte sítio eletrônico: http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/.

    2

    http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/

  • técnico-científico) e os sujeitos que experienciam os riscos em seus cotidianos

    (saber situado, local, investido na experiência) (CORBURN, 2005, 2007;

    FUNTOWICZ e RAVETZ, 1993, 1994, 1997; PORTO, 2012; PORTO e FINAMORE,

    2012).

    E no que se refere a riscos complexos, naturalmente surgem aqueles

    relacionados a exposição humana a materiais radioativos, como o urânio, que,

    dentre outras aplicações, serve principalmente como matéria prima para a produção

    do combustível das usinas nucleares. Daí, como já explicitei, ao tomar conhecimento

    do conflito em Caetité, de onde se extrai o urânio que abastece as usinas nucleares

    brasileiras, resolvi selecioná-lo como estudo de caso para minha pesquisa de

    doutorado. Há muitas controvérsias em torno deste processo de exploração de

    urânio, sobretudo em relação à possibilidade de agravamento dos cenários de

    exposição ambiental a níveis não naturais de radiação ionizante, via contaminação

    do ar, do solo e da água subterrânea. A empresa responsável pela exploração de

    urânio em Caetité, Indústrias Nucleares do Brasil (INB), nega que suas atividades

    ofereçam riscos à saúde e ao ambiente, fato que é bastante contestado por

    movimento sociais locais e outras organizações não governamentais como o

    GREENPEACE (GREENPEACE, 2008) e a Plataforma Dhesca Brasil3 (LISBOA et

    al., 2011).

    Outro fator importante a ser considerado refere-se à minha participação no

    projeto Environmental Justice Organisations, Liabilities and Trade (EJOLT)4, que

    possibilitou o contato com a organização francesa Commission de Recherche et

    d'Information Indépendantes sur la Radioactivité (CRIIRAD)5, a qual desenvolve

    trabalhos de contra-expertise6 com vistas a garantir o acesso de cidadãos a

    informações independentes sobre os perigos da radioatividade, como a exposição3 Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais.4 O projeto EJOLT reuniu um consórcio de atores internacionais (cientistas, organizações ativistas,grupos de reflexão, decisores políticos), dentre os quais a Fiocruz (que coordena o grupo de trabalhosobre avaliação de riscos e saúde ambiental), através de uma série de campos (direito ambiental,saúde ambiental, ecologia política, economia ecológica) para promover aprendizagem mútua ecolaboração entre as partes interessadas a fim de explorar as raízes do aumento dos conflitosambientais em diferentes escalas, e como transformá-los em forças para a sustentabilidadeambiental. Mais informações podem ser obtidas em: www.ejolt.org.5 Um panorama geral das atividades desenvolvidas pelo CRIIRAD pode ser obtido no seguinteendereço eletrônico: http://www.criirad.org/.6 Como “contra-expertise”, assumo a definição elaborada por Topçu (2008) que apresenta estaexpressão como “um conjunto de mecanismos e atividades com o intuito de verificar, contrabalancear,e complementar um dado sistema de expertise”.

    3

    http://www.criirad.org/http://www.ejolt.org/

  • humana a radiações ionizantes. O CRIIRAD surgiu como resposta ao acidente de

    Chernobyl e seus efeitos, e tem atuação tanto na França como em outros países,

    inclusive no recente desastre nuclear em Fukushima, no Japão. Além do mais, seu

    laboratório de análises possui certificação de qualidade do Ministério da Saúde

    francês.

    No âmbito do projeto EJOLT, no mês de junho de 2012, foi possível realizar

    uma oficina em Caetité sobre justiça ambiental e monitoramento comunitário de

    radioatividade. O CRIIRAD teve papel fundamental na execução deste processo,

    que, além de um mini-treinamento sobre monitoramento de radiação ionizante a

    moradores e trabalhadores da mina de urânio, incluiu a coleta de amostras de solo e

    de água superficial para análise na França. Como um dos desdobramentos da

    oficina, houve, em abril de 2014, uma missão CRIIRAD com o intuito de dar

    seguimento aos processos de coleta e análise de amostras, bem como da condução

    de oficinas de treinamento específicas para os trabalhadores da mina e os

    moradores da região circunvizinha à mesma. Estas atividades contaram com a

    colaboração ativa de pesquisadores da Fiocruz.

    Há, também, em curso, outro projeto de pesquisa participativa: um estudo de

    epidemiologia popular, que visa à sistematização das informações relacionadas a

    casos de câncer, com ou sem óbito, coletadas por organizações locais da sociedade

    civil de Caetité. Trata-se de uma demanda das organizações comunitárias de Caetité

    e da RBJA, decorrente do questionamento ao argumento da empresa e de estudos

    contratados, conduzidos por pesquisadores da própria Fiocruz, que apontam a não

    correlação entre as atividades da mina de urânio e novos casos de câncer na região.

    Segundo relatos das organizações locais, desde a instalação da mina tem havido

    um aumento no surgimento de novos casos de câncer nas regiões próximas à mina,

    inclusive em jovens. O projeto de epidemiologia popular tem a coordenação de

    pesquisadores da ENSP/Fiocruz e conta também com a colaboração de

    pesquisadores do IESC/UFRJ. Tal projeto, devidamente aprovado pelos comitês de

    ética em pesquisa em saúde envolvidos, constitui uma demanda dos movimentos

    comunitários e sociais envolvidos no conflito em Caetité, assim como também faz

    parte de uma estratégia de avanço metodológico do grupo de pesquisa ao qual

    estou vinculado na Fiocruz.

    4

  • Ambos os projetos constituem iniciativas de produção compartilhada de

    conhecimento em saúde e ambiente, as quais têm o intuito de compreender os

    riscos à saúde e ao ambiente decorrentes das atividade de mineração e

    beneficiamento de urânio no contexto de Caetité. Estas experiências, entre outras,

    serão analisadas e problematizadas ao longo desta pesquisa de doutorado.

    JUSTIFICATIVAEsta proposta de investigação se justifica na medida em que se verifica uma

    grande carência de estudos acadêmicos sobre a temática dos riscos associados às

    atividades de mineração e beneficiamento de urânio no Brasil, sobretudo no âmbito

    de uma interface entre saúde coletiva e justiça ambiental. Além do mais, discutir a

    relação radioatividade e riscos à saúde, numa perspectiva contextualizada e que se

    paute no ponto de vista dos sujeitos atingidos, se mostra muito relevante por

    explicitar e problematizar as controvérsias que envolvem o elevado nível de

    complexidade e as incertezas existentes.

    Em termos metodológicos, o trabalho se destaca por trazer para discussão no

    campo da saúde coletiva, em especial da área de saúde e trabalho, o papel da

    contra-expertise e da produção compartilhada de conhecimentos em saúde e

    ambiente diante de problemas com elevado nível de complexidade, riscos,

    incertezas e valores em disputa. Com efeito, será possível refletir sobre a

    importância de se estabelecer espaços de diálogo entre saberes especializados e

    saberes situados como estratégia coprodução de conhecimentos para compreender

    e lidar com tais modalidades de problema.

    Ademais, resta mencionar que o conflito em torno da exploração de urânio em

    Caetité tem gerado bastante repercussão não só localmente, como mostram alguns

    relatórios de importantes ONGs lançados nos últimos anos, os quais denunciam:

    problemas relacionados a: suspeitas de contaminação das águas subterrâneas

    locais por radionuclídeos (GREENPEACE, 2008); e violações aos direitos humanos

    no ciclo de produção do combustível nuclear (LISBOA et al., 2011). O caso,

    inclusive, está relacionado e brevemente detalhado no Mapa da Injustiça Ambiental

    5

  • e Saúde no Brasil7 e foi recentemente incluído em dois relatórios do EJOLT: o de

    número 7, sobre conflitos ambientais no mundo, associados à mineração

    (ÖZKAYNAK et al., 2012); e o de número 19, sobre riscos, saúde e mobilizações por

    justiça ambiental (PORTO et al., 2015, no prelo). Sendo assim, e em consonância

    com os princípios da justiça ambiental, o presente estudo busca, ao propor

    processos coletivos e contextualizados de compreensão do dos riscos, colaborar

    para transformar a situação-problema investigada, no sentido de promover saúde e

    auxiliar nos processos de superação das desigualdades ambientais.

    OBJETIVO GERALRealizar uma reflexão crítica sobre a importância de propostas alternativas de

    produção compartilhada de conhecimentos como estratégias que possibilitem uma

    melhor compreensão, mais contextualizada, de riscos tecnológicos complexos e

    suas implicações para o ambiente e a saúde, em situações de conflito e injustiças

    ambientais. Para tanto, serão tomados como referência experiências participativas e

    integradas de produção de conhecimentos acerca dos riscos e impactos verificados

    junto às atividades de mineração e beneficiamento de urânio em Caetité, no

    sudoeste da Bahia.

    OBJETIVOS ESPECÍFICOSComo objetivos específicos para a presente proposta de pesquisa, são

    colocados os seguintes:

    1. Discutir o papel das propostas alternativas, participativas e

    integradoras, de produção de conhecimento em contextos de conflito e

    injustiça ambiental, para melhor compreender situações de riscos

    complexos, como as relacionadas às atividades de mineração e

    beneficiamento de urânio em Caetité;

    2. Caracterizar os processos produtivos relativos às atividades de

    mineração e beneficiamento de urânio na mina de Caetité, destacando

    7 O Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil constitui uma iniciativa conjunta entre a Fiocruz e aONG Fase, e tem como objetivo maior dar suporte à luta de inúmeras populações e grupos atingidosem seus territórios por projetos e políticas baseadas numa visão de desenvolvimento consideradainsustentável e nociva à saúde de tais populações. O Mapa encontra-se disponível em:http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br.

    6

    http://www.conflitoambiental.icict.fiocruz.br/

  • suas implicações em termos de riscos e impactos para a saúde

    humana e o ambiente;

    3. Compreender os riscos ambientais da exploração de urânio em

    Caetité, considerando o saber situado dos moradores na região do

    entorno da mina de urânio;

    4. Compreender os riscos ocupacionais da mina de urânio em Caetité,

    tendo como referência as experiências dos trabalhadores;

    5. Refletir sobre as potencialidades, limites e desafios de iniciativas de

    investigação como a epidemiologia popular e a contra-expertise, no

    contexto da mineração de urânio em Caetité.

    HIPÓTESEA presente tese de doutorado assume como hipótese central que as

    abordagens técnico-científicas clássicas de investigação e produção de

    conhecimento mostram-se limitadas para identificar e compreender, de forma

    contextualizada, riscos complexos e suas implicações para a saúde dos sujeitos

    expostos, sobretudo em situações que envolvem conflitos e injustiças ambientais,

    como ocorre com a operação da mina de urânio em Caetité. Desta forma, portanto, a

    fim de superar tais dificuldades, torna-se necessário adotar propostas alternativas de

    produção de conhecimentos, capazes de incorporar e dialogar com outros saberes,

    não científicos apenas, mas também investidos na experiência cotidiana de quem

    está exposto às situações de risco.

    7

  • METODOLOGIAConsiderando as limitações apresentadas pelos métodos científicos

    tradicionais de investigação para abordar problemas de saúde e ambiente que

    envolvem elevado grau de complexidade, riscos, incertezas e valores em disputa, a

    presente proposta de pesquisa assume uma perspectiva qualitativa e participativa,

    orientando-se principalmente pelos referenciais metodológicos da denominada

    ciência pós-normal (CPN). Dentro destes, merece destaque o dispositivo da

    comunidade ampliada de pares como inspiração para buscar uma compreensão

    contextualizada dos riscos à saúde e ao ambiente decorrentes das atividades de

    mineração e beneficiamento de urânio em Caetité.

    Segundo Funtowicz e Ravetz (1997), o dispositivo da comunidade ampliada

    de pares é adequado à necessidade de uma nova abordagem científica para lidar

    com problemas complexos, de forma integradora, interdisciplinar e plural, que

    permite a incorporação de outros saberes que não técnico-científicos, estimulando

    um diálogo estendido a todos os afetados por ocasião da compreensão e formulação

    de soluções. Portanto, é nesta linha que se insere a noção de contra-expertise

    proposta e analisada na presente pesquisa para abordar os riscos da exploração de

    urânio em Caetité. Ou seja, a partir do estabelecimento de uma relação dialógica

    entre saberes (especializado e situado), num processo de construção compartilhada

    de conhecimento, coanálise ou mesmo coprodução de conhecimentos sobre os

    riscos da mineração e beneficiamento de urânio, no contexto de Caetité.

    Neste sentido, visando alcançar os objetivos propostos em termos práticos

    para esta investigação, busca-se inspiração no método da pesquisa-ação, pois o

    mesmo se enquadra perfeitamente no que sugere o dispositivo da comunidade

    ampliada de pares e está em consonância com as propostas de epidemiologia

    popular (BROWN, 1987, 1992), pesquisa participativa de base comunitária (LEUNG

    et al., 2004), a denominada Street Science (CORBURN, 2005, 2007) etc. Conforme

    Thiollent (2009), o método da pesquisa-ação surge como uma das alternativas ao

    padrão convencional de pesquisa na qual é valorizada a busca de compreensão e

    de interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas. Desta

    forma, é possível situar a pesquisa-ação como uma modalidade de pesquisa social

    qualitativa e participativa, a qual propõe uma interação dialógica entre os sujeitos

    8

  • envolvidos na pesquisa (pesquisadores e participantes) a fim de gerar subsídios

    para a transformação social da situação sob investigação.

    O campo de observação da presente proposta de pesquisa delimita-se em

    torno das áreas e sujeitos afetados pelos riscos relacionados à operação da mina de

    urânio em Caetité. Basicamente, os locais incluídos para a investigação serão as

    áreas influenciadas pelas atividades da referida mina: as comunidades rurais

    situadas em sua circunvizinhança, inscritas tanto aos municípios de Caetité como de

    Lagoa Real. Já entre os sujeitos da pesquisa estarão, fundamentalmente, moradores

    de tais comunidades, trabalhadores da mina e integrantes dos seguintes

    movimentos sociais de Caetité críticos à atuação da INB: Associação Movimento

    Paulo Jackson – Ética, Justiça e Cidadania (AMPJ), Comissão Paroquial de Meio

    Ambiente de Caetité (CPMA) e Comissão Pastoral da Terra (CPT-BA).

    Diante do exposto, fica evidente a necessidade de realização de trabalho de

    campo para a coleta de dados empíricos, que se dará por meio da interação e do

    diálogo com os sujeitos expostos às situações concretas de risco: os moradores da

    área circunvizinha à mina e os seus trabalhadores. E para a realização desta etapa

    será utilizada a técnica de pesquisa observação participante. Ao lançar mão desta

    técnica, almeja-se captar os aspectos mais subjetivos e informais da relação

    estabelecida com os sujeitos da pesquisa. Esta técnica permite, entre outras coisas,

    compreender as discrepâncias entre o que é dito e o que é feito pelos sujeitos da

    pesquisa, e auxilia no entendimento do contexto social no qual estão envolvidos.

    Para tanto, tais observações serão registradas num diário de campo, para posterior

    análise.

    Com efeito, por meio das falas destes sujeitos, juntamente com as notas

    registradas no diário de campo, espera-se apreender elementos que permitam

    caracterizar o modo operatório real da Unidade de Concentrado de Urânio de

    Caetité (URA-Caetité), bem como o processo de gestão ambiental posto em prática.

    Além do mais, é fundamental destacar a ocorrência de três atividades de

    produção de conhecimentos desenvolvidas entre 2012 e 2014. As mesmas são

    objeto de análise da pesquisa aqui proposta e constituirão parte do trabalho de

    campo:

    a) A primeira diz respeito à oficina internacional “Justiça Ambiental,

    9

  • Exploração de Urânio e Monitoramento Comunitário de Radioatividade”,

    realizada em junho de 2012 em Caetité, no âmbito do projeto EJOLT, e

    composta de atividades como: palestras, debates públicos, toxic tour pelas

    imediações da mina de urânio, monitoramento ambiental e coleta de

    amostras de solo, sedimentos e água em áreas suspeitas de

    contaminação.

    b) A segunda, refere-se ao projeto intitulado “Pesquisa participativa de base

    comunitária sobre problemas de saúde na área próxima à mina de urânio

    em Caetité, Bahia”. Esta é uma pesquisa participativa que visa à

    sistematização das informações relacionadas a casos de câncer, com ou

    sem óbito, coletadas por organizações locais da sociedade civil de Caetité,

    que tem a coordenação de pesquisadores da ENSP/Fiocruz e conta

    também com a colaboração de pesquisadores do IESC/UFRJ. Tal projeto

    foi devidamente aprovado pelos comitês de ética em pesquisa em saúde

    envolvidos.

    c) A terceira, realizada no primeiro semestre de 2014, refere-se a uma

    missão da organização francesa CRIIRAD em Caetité, com o intuito de

    conduzir monitoramento e avaliação da potencial contaminação ambiental

    devido às atividades da mina de urânio. Na ocasião, o CRIIRAD também

    colaborou na realização de oficinas de treinamento sobre monitoramento

    independente de radiação ionizante, junto aos trabalhadores da mina e

    aos moradores das comunidades do seu entorno. Este trabalho contou

    também com a participação ativa de pesquisadores da Fiocruz e

    organizações locais de Caetité.

    Para além do trabalho de campo, também serão realizados levantamento e

    análise documental a respeito das atividades da URA-Caetité, tendo como referência

    principal as seguintes fontes:

    • o acervo disponibilizado pela INB em seu sítio eletrônico8: relatórios deatividades da empresa, relatórios de monitoramento ambiental e

    ocupacional e outros documentos que sejam relevantes;

    8 Disponível em: www.inb.gov.br.

    10

    http://www.inb.gov.br/

  • • o sistema informatizado de licenciamento ambiental federal do InstitutoBrasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis

    (IBAMA)9: todos os documentos relacionados ao processo de

    licenciamento da mina de urânio, desde o início, incluindo relatórios de

    vistorias técnicas realizadas por técnicos do IBAMA;

    • o acervo da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN): normas desegurança e proteção radiológica que sejam aplicáveis às atividades

    desenvolvidas na URA-Caetité;

    • o acervo organizado pelos movimentos sociais (CPMA, CPT-BA e AMPJ):relatórios, vídeos e documentos produzidos por tais entidades;

    • pesquisas acadêmicas (teses, dissertações e artigos científicos) quetenham como objeto de análise o processo de mineração de urânio em

    Caetité sobretudo na interface com questões de saúde e ambiente.

    ESTRUTURA DA TESEA presente tese está organizada em mais quatro capítulos e a conclusão. No

    primeiro capítulo, são abordadas as principais contribuições teóricas e conceituais

    sobre a relação entre produção de conhecimentos, riscos tecnológicos complexos,

    saúde e justiça ambiental. Para tanto, discute-se a proposta da CPN, suas críticas e

    potencialidades como alternativa para lidar com problemas ambientais e de saúde

    classificados como complexos. Daí, parte-se para as reflexões sobre alternativas de

    produção de conhecimento que valorizem o saber situado, dialogando com as

    experiências do campo da saúde do trabalhador, em especial a vigilância em saúde

    do trabalhador e a análise interdisciplinar e participativa de acidentes, e com as

    experiências do campo da justiça ambiental e a saúde, como a epidemiologia

    popular e a community-based participatory research (CBPR).

    No capítulo 2, é apresentado um panorama a respeito da atividade de

    mineração de urânio, com enfoque para os riscos ambientais e à saúde. Neste

    sentido, são discutidos os contextos mundial e brasileiro, bem como os principais

    aspectos técnicos e de gestão ambiental envolvidos nesta atividade produtiva. Ao

    final do capítulo, realiza-se uma breve reflexão sobre a relação entre mineração de

    9 Disponível em: http://www.ibama.gov.br/licenciamento/.

    11

    http://www.ibama.gov.br/licenciamento/

  • urânio, metabolismo social e justiça ambiental.

    O capítulo 3 direciona-se à situação de mineração e beneficiamento de urânio

    que ocorre em Caetité, município do sudoeste da Bahia. A partir de uma

    contextualização do empreendimento, destaca-se o histórico de irregularidades e

    acidentes que marcam sua operação desde seu início. Com efeito, realiza-se uma

    crítica sociotécnica ao modo operatório do empreendimento, com ênfase nos riscos

    e controvérsias, em termos de saúde e ambiente, relacionadas.

    No capítulo 4, são relatadas e analisadas as experiências de produção de

    conhecimentos ocorridas em parceria com organizações locais de Caetité, para

    melhor compreender as situações de riscos geradas pela operação da mina de

    urânio local. Basicamente, apresentam-se as limitações, os desafios, os resultados

    preliminares e as potencialidades das atividades desenvolvidas no contexto de

    Caetité.

    Por fim, são discutidas as conclusões.

    12

  • CAPÍTULO 1:PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, RISCOS, SAÚDE E JUSTIÇA

    AMBIENTAL

    1.1 CIÊNCIA PÓS-NORMAL, RISCOS COMPLEXOS, INCERTEZAS ECOMUNIDADE AMPLIADA DE PARES

    A CPN tem origem nos trabalhos desenvolvidos por Funtowicz e Ravetz

    (1990, 1993, 1994, 1997), nos quais dedicam-se a discussões de cunho

    epistemológico e político sobre os problemas socioambientais modernos. Tais

    problemas, na visão destes autores, apresentam desafios que tornam evidentes os

    limites da ciência normal hegemônica, no sentido dado por Kuhn (2011), em definir

    os problemas, propor soluções e orientar adequadamente os processos de tomada

    de decisão de políticas públicas. Turnpenny et al. (2011), por sua vez, apontam que

    a CPN pode ser compreendida como: (a) uma resposta às reflexões trazidas por

    Kuhn (2011), que apresentou o conceito de ciência normal; (b) o desenvolvimento de

    um método para ampliação da ciência tradicional; (c) uma força para mudanças

    sociais, políticas e epistemológicas frente a problemas complexos com elevado nível

    de incertezas e valores em jogo.

    Conforme Porto (2012), a ciência clássica ou normal é um fenômeno

    moderno, resultante de avanços nos últimos séculos relacionados à descoberta de

    leis que regem muitos fenômenos da natureza. Fundamentalmente, baseia-se no

    desenvolvimento de disciplinas como a física e a química, e seus modelos analíticos

    e preditivos que preferem métodos quantitativos. Evidentemente, é preciso

    reconhecer as diversas e impressionantes aplicações tecnológicas e industriais

    proporcionadas pela ciência normal à sociedade moderna, através da constituição

    das várias áreas de especialização científica. Assim, é possível compreender o

    porquê da legitimação da ciência normal como critério de “verdade”. Porém, como

    chamam a atenção Funtowicz e Ravetz (1994), esta pretensa superioridade do

    conhecimento científico baseia-se em critérios de “objetividade” e “neutralidade”, os

    quais apontam para a separação dos fatos e valores, de forma a rejeitá-los no

    âmbito de uma prática científica correta.

    Entretanto, apesar de não devidamente reconhecido, é importante perceber

    13

  • que valores e relações de poder, explícitos ou não, sempre estão presentes, mesmo

    nos critérios definidores de um problema. Essa limitação tem se agravado,

    sobretudo ao longo do século XX, por conta da crescente transformação da

    pesquisa científica em algo “industrializado”, orientado fortemente por interesses de

    grandes corporações econômicas, as quais financiam, definem e controlam linhas de

    pesquisa (GALLOPÍN, 2004).

    No âmbito dos problemas socioambientais, existem inúmeras situações com

    alto nível de complexidade, urgência, muitas incertezas presentes, além de valores e

    interesses em disputa. Estes fatores devem ser levados em conta para garantir a

    qualidade do conhecimento científico a ser gerado a fim de lidar adequadamente

    com tais problemas. Da mesma maneira, é importante abranger o interesse público,

    os conhecimentos científicos e, sobretudo, os conhecimentos investidos na

    experiência, ou seja, o conhecimento vivencial ou situado de sujeitos não

    especialistas, como as populações e pessoas que vivenciam cotidianamente

    situações de risco (ambientais ou à saúde). Como bem colocam Gamarra e Porto

    (2015, no prelo), esta perspectiva justifica a importância da participação não apenas

    em relação à defesa da democracia frente aos interesses em jogo, mas também à

    dimensão epistemológica, de forma a juntar epistemologia e política. Portanto, as

    referências teóricas, os caminhos metodológicos e os dados a respeito de

    determinado problema não são considerados absolutos ou únicos, principalmente

    diante de problemas complexos. Isto porque as análises realizadas a partir de

    distintas abordagens científicas podem desconsiderar valores, incertezas e saberes

    importantes para uma compreensão ampla e adequada sobre as questões em jogo,

    e, assim, direcionar de forma restrita ou mesmo manipuladora as decisões a serem

    tomadas.

    1.1.1 CPN e epistemologia política: possibilidades e desafiosO conceito de complexidade, ou, melhor, de problemas ou sistemas

    complexos, é de extrema relevância no âmbito da CPN. A esse respeito, as reflexões

    desenvolvidas por Funtowicz e Ravetz (1994) são bastante elucidativas. Em primeiro

    lugar, faz-se necessário diferenciar sistemas simples de complexos. Os primeiros

    são aqueles que até podem apresentar diversos níveis de complicação, porém são

    14

  • fundamentalmente estudados e analisados por disciplinas oriundas do campo das

    ciências naturais, em especial a física e a química. Já os sistemas complexos, por

    sua vez, são aqueles estudados e analisados por disciplinas vinculadas aos campos

    da ecologia e das ciências sociais e humanas. Mais ainda, como salienta Porto

    (2012), diferentemente dos sistemas simples, os sistemas complexos não são

    passíveis de compreensão por uma única perspectiva apenas, sem que haja perdas

    de aspectos essenciais constituintes dos mesmos em relação aos problemas

    analisados.

    Funtowicz e Ravetz (1994) também estabelecem uma distinção entre dois

    tipos de complexidade: a ordinária e a emergente. No caso da complexidade

    ordinária, predomina um padrão de complementaridade nas relações entre os

    elementos e subsistemas presentes, tanto por meio de competição como de

    cooperação. Por outro lado, a complexidade emergente apresenta um padrão de

    comportamento oscilante entre hegemonia e fragmentação, ou, melhor, uma disputa

    entre possíveis hegemonias. Diversidade e hegemonia, entretanto, estão presentes

    tanto em sistemas complexos ordinários como nos emergentes. Todavia, como

    enfatizam Funtowicz e Ravetz (1994), o padrão desejado é a diversidade, que ocorre

    de maneira não intencional no caso da complexidade ordinária; mas depende de

    consciência, intencionalidade e um comprometimento especial entre as partes

    constituintes para seu alcance e manutenção, no caso da complexidade emergente.

    Desta forma, é possível afirmar que a complexidade ordinária refere-se,

    basicamente, ao padrão de organização típico dos sistemas biológicos; ao passo

    que a complexidade emergente é característica dos sistemas sociais, técnicos ou

    mistos, os quais também incluem os seres humanos.

    A CPN consiste, fundamentalmente, em uma proposta metodológica voltada

    para a gestão de problemas complexos. Sua abordagem destaca aspectos

    geralmente negligenciados pela ciência clássica ou normal, como: incertezas, a

    influência dos valores nos processos decisórios e a pluralidade de perspectivas

    legítimas existentes. No âmbito da CPN, estes elementos são considerados

    essenciais, com o intuito de possibilitar a estruturação de problemas complexos e

    dar suporte a processos decisórios que permitam ampla participação social. Com

    efeito, a abordagem que a CPN propõe para lidar com problemas complexos é muito

    15

  • diferente da tradicionalmente adotada pela ciência normal. Pois esta busca reduzir a

    complexidade através do estudo de um determinado fragmento. E aí é que reside o

    sentido da denominação “pós-normal”, que se opõe à noção de ciência normal,

    fragmentadora, no sentido atribuído por Kuhn (TURNPENNY et al., 2011). Contudo,

    conforme ressaltado por Gamarra e Porto (2015, no prelo), existe uma certa

    confusão em torno do termo “pós-normal”, que erroneamente é, por vezes,

    associado a visões pós-modernas e relativistas, quando na verdade seu foco é

    justamente a busca da qualidade do conhecimento gerado e de posturas éticas e

    democráticas na interface ciência-política, ao lidar com problemas complexos.

    É importante destacar que as contribuições e avanços da dita ciência normal

    não devem ser descartados para a CPN. Na verdade, são considerados peças-

    chave para o desenvolvimento de muitos dispositivos metodológicos desta nova

    proposta. Todavia, no que concerne à gestão de incertezas científicas, existe uma

    diferença significativa entre a CPN e ao que Funtowicz e Ravetz (1994 e 2008)

    denominam por ciência aplicada e consultoria profissional, cujas estratégias podem

    se apresentar apropriadas frente a níveis menores de complexidade, os quais

    compreendem as incertezas, os valores e os interesses em jogo.

    Para a ciência aplicada, o enfrentamento das incertezas se dá pelo controle

    das variáveis relevantes do problema (como num laboratório), e também pelo uso de

    probabilidades e estatísticas para a concepção de estudos e análise de seus

    resultados, considerando-se que as incertezas e os interesses em jogo são baixos.

    Já a consultoria profissional pressupõe um número maior de incertezas e interesses

    em jogo, de maneira que para reduzir tais incertezas são realizadas avaliações

    profissionais. Este é o caso, por exemplo, de inúmeros problemas solucionados por

    indivíduos e equipes de médicos, engenheiros ou profissionais de outros campos,

    nos quais a experiência exerce um papel central para lidar com situações reais, as

    quais tendem a ser bem diferentes dos laboratórios.

    Entretanto, quando as incertezas e os interesses em jogo são elevados, a

    proposta da CPN aponta que a abordagem adotada não deve ser a de tentar reduzir

    as incertezas – algumas são irredutíveis, até –, mas sim a de buscar elevar a

    qualidade das decisões a serem tomadas diante de situações mais complexas

    (MARSHALL; PICOU, 2008). Em tais circunstâncias, admite-se que nenhuma

    16

  • solução adequada poderá ser proposta unicamente a partir da dimensão do

    conhecimento especializado, pois, ao lidar com problemas complexos, faz-se

    necessário levar em conta não só a dimensão epistemológica, mas também a ética e

    a política, uma vez que valores e interesses somente podem ser expressos ou

    defendidos pelos próprios sujeitos ou grupos envolvidos no problema.

    Portanto, um elemento-chave proposto pela CPN é a denominada

    comunidade ampliada de pares, cuja principal finalidade consiste na discussão,

    estruturação e proposição de alternativas para enfrentar problemas complexos. A

    ciência normal, especializada, tende sempre a buscar “neutralidade” e “objetividade”,

    de maneira a adotar padrões de qualidade sempre validados por comunidades

    especializadas de pares. Estas mantêm-se delimitadas em torno de paradigmas

    hegemônicos, os quais tendem a explicitar fatos duros e ocultar tanto os valores

    quanto as incertezas em jogo. Estas limitações mostram-se ainda mais relevantes

    em situações complexas, com elevado grau de incertezas e decisões envolvendo

    valores importantes. Assim, segundo a CPN, a estruturação dos problemas, as

    análises possíveis e as soluções propostas vão demandar abordagens criativas e

    abrangentes, capazes de envolver uma ampla gama de sujeitos, desde especialistas

    a não especialistas, incluindo aí os afetados pelos problemas. Isto porque considera-

    se que todos os sujeitos são portadores de conhecimentos e saberes distintos, os

    quais podem proporcionar visões relevantes para a compreensão adequada dos

    problemas e contribuir para a apresentação de soluções de maior qualidade.

    As comunidades ampliadas de pares devem, então, ser compostas por

    diferentes sujeitos, pertencentes aos diversos grupos de interesse que possuam

    relação com o problema que se esteja lidando. A importância de tais sujeitos ou

    grupos está na possibilidade de contribuir para uma compreensão mais ampla e

    contextualizada do problema, trazendo seus conhecimentos, valores, vivências e

    necessidades, e, assim, melhor orientar o encaminhamento de soluções possíveis e

    adequadas. Desta forma, verifica-se que uma comunidade ampliada de pares

    equivale a um fórum de produção de conhecimentos e, também, de construção de

    compromissos, e sua efetividade exige um determinado grau de liberdade e

    disposição ao diálogo. Como afirma Gamara e Porto (2015, no prelo), os membros

    participam com suas diferentes habilidades de comunicação e tradução, a fim de

    17

  • avaliar as evidências (científicas ou não) existentes, aportar novos conhecimentos

    (sobretudo, os investidos na experiência), reestruturar o problema em si e, com

    efeito, subsidiar processos decisórios mais adequados, a partir de critérios e valores

    explicitados e assumidos. É importante ressaltar que não há um modelo único ou um

    guia metodológico passo a passo sobre como constituir uma comunidade ampliada

    de pares. A premissa básica para tanto é criar condições básicas para uma maior

    qualidade ética e epistemológica, considerando a diversidade de experiências,

    saberes e valores legítimos e relevantes para propor prioridades e alternativas de

    solução frente ao problema em questão (GAMARRA e PORTO, 2015, no prelo).

    1.1.2 Críticas à CPNA CPN, todavia, não é imune a críticas. Na literatura, há estudos que

    destacam suas fragilidades e limites, como o de Goeminne (2011), que questiona se

    em algum momento a prática científica tradicional chegou a ser “normal”, pois

    considera, conforme apontado por vários trabalhos da sociologia do conhecimento,

    que estudos científicos sempre implicam escolhas de métodos e que tais escolhas

    são, obviamente, influenciadas por contextos políticos e sociais.

    Gamarra e Porto (2015, no prelo) ressaltam que uma importante crítica à CPN

    refere-se à sua carência de compreensão sociológica a respeito das relações de

    poder e da governança dos problemas políticos e, também, dos aspectos conflitivos

    ou contraditórios presentes na democracia participativa e deliberativa. Segundo esta

    perspectiva crítica, para a CPN o raciocínio metodológico deveria prevalecer sobre a

    deliberação política, as disputas políticas e as interações em contextos mais ou

    menos democráticos. E, assim, a mudança do tipo de avaliação da evidência

    científica seria capaz de alterar os resultados de uma determinada política

    (WESSELINK e HOPPE, 2011). Outros autores, como Collins e Evans (2002),

    também ressaltam este importante limite presente no referencial da CPN, com a

    dificuldade em compreender que os processos políticos, econômicos, culturais e

    técnicos possuem fronteiras tênues, sendo bastante difícil intervir no último sem a

    influência dos demais.

    No caso dos conflitos ambientais, que decorrem do atual capitalismo

    globalizado, Porto (2011) aponta certa ingenuidade por parte da CPN, dada a

    18

  • ausência de reflexões sobre como lidar com as situações de conflito presentes em

    sociedades estruturalmente desiguais e plurais, com valores e interesses

    divergentes, e com fortes assimetrias no acesso a recursos, incluindo informações,

    mecanismos de participação e influência sobre processos decisórios. Esta suposta

    “ingenuidade”, comenta Porto (2011), estaria relacionada em grande medida à

    ênfase metodológica da CPN, em detrimento de reflexões mais aprofundadas sobre

    questões sociológicas e de economia política inerentes aos conflitos que emergem

    em instâncias de ampla participação, a exemplo da própria comunidade ampliada de

    pares.

    Collins e Evans (2002) também ressaltam que um grande problema da

    abordagem da CPN seria assumir o conhecimento científico (dos especialistas) e o

    conhecimento situado (investido na experiência) como facilmente conciliáveis, e que

    a compreensão do problema em novas bases seria capaz de gerar uma nova

    racionalidade, em termos de práticas sociais, como nos processos decisórios. Desta

    forma, há que se considerar também um importante desafio à viabilidade da

    comunidade ampliada de pares, que se refere à disposição de cada participante em

    concordar com a possibilidade de rever suas posições, tanto em termos políticos

    como cognitivos, e aceitar a legitimidade de argumentações contrárias ou diferentes

    de suas posições iniciais através do diálogo.

    1.1.3 Para além das críticas da CPNTodavia, apesar das críticas, a proposta da CPN tem sua importância

    justamente pelo foco na qualidade do conhecimento que dá base aos processos de

    tomada de decisões em sociedades democráticas. Neste sentido, vale ressaltar o

    que Funtowicz e Ravetz (1993) chamam de epistemologia política, uma estratégia

    que visa trazer para o centro do debate sobre qualidade do conhecimento questões

    como os riscos, as incertezas e ignorâncias presentes nas diversas análises,

    soluções e decisões em torno de importantes problemas modernos. Isto porque, em

    geral, estas questões tendem a ser sistematicamente ocultadas pela formulação

    teórica e prática dos especialistas da ciência normal, ou mesmo pelas

    argumentações dos que defendem interesses específicos em detrimento de outros.

    Uma importante articulação entre epistemologia política e conflitos ambientais

    19

  • é proposta por Porto (2011), que apresenta duas perspectivas: a epistemológica e a

    sociopolítica. A perspectiva epistemológica baseia-se na noção de complexidade, ou

    seja, no entendimento de que há limites nas várias áreas de conhecimento em torno

    dos problemas e conflitos que, por serem complexos, possuem inúmeras e

    irredutíveis dimensões. Nesta perspectiva, também assume-se a necessidade de

    explicitação das incertezas e valores em jogo, sempre presentes em processos

    decisórios e políticas públicas. Já a segunda perspectiva, a sociopolítica, toma como

    base os referenciais da economia política e da ecologia política, e tem a ver com a

    explicitação dos conflitos ambientais em contextos de vulnerabilidade nos quais há

    disputas por recursos, valores, modelos de desenvolvimento e cosmovisões. Estas

    duas perspectivas, portanto, permitem reconhecer a complexidade do problema bem

    como aceitar a pluralidade de perspectivas e metodologias legítimas associadas.

    Ao unir epistemologia e política, torna-se mais fácil entender como as formas

    de ocultamento de valores e incertezas podem estar relacionadas aos interesses em

    disputa. No entanto, conforme Porto et al. (2014b), esta junção demandaria a

    formação de fóruns de debate, onde grande destaque seria dado à tradução e ao

    papel dos tradutores. A importância destes sujeitos está na capacidade de conseguir

    estabelecer pontes não só entre paradigmas científicos, mas entre culturas, valores,

    linguagens, saberes e experiências, com o intuito de melhor compreender e

    ressignificar os problemas a partir das necessidades, insatisfações, anseios e busca

    de alternativa por parte dos sujeitos vulnerabilizados. Os tradutores dominam, em

    algum nível, diferentes paradigmas e linguagens, e são representados geralmente

    por: líderes comunitários ou de movimentos sociais; investigadores engajados que

    dialogam com comunidades e movimentos sociais na busca de compromissos

    construídos por meio de práticas ativistas e métodos de pesquisa-ação; ou mesmo

    representantes frutos da junção dos dois grupos anteriores, cientistas oriundos de

    classes sociais economicamente desfavorecidas, grupos étnicos, ou ainda

    comunidades específicas (como portadores de certas doenças) que elegem como

    objetos de pesquisa problemas que atingem suas comunidades de origem.

    Mesmo com as limitações apontadas em relação à CPN, acredita-se que esta

    proposta possa contribuir significativamente para melhorar os processos decisórios

    que lidam com problemas complexos, uma vez que busca articular epistemologia e

    20

  • política, por meio do desenvolvimento de abordagens epistêmicas que possibilitam

    soluções mais consistentes (KASTENHOFER, 2011).

    1.1.4 Gestão de problemas complexos e CPNBuscando orientar uma gestão mais adequada de problemas complexos, De

    Marchi e Funtowicz (2004), apresentam alguns princípios constituintes da CPN que

    podem contribuir para este fim. São eles:

    • Compartilhar o conhecimento: relaciona-se à necessidade de reconhecer evalorizar os diferentes formas de conhecimento que distintos sujeitos

    podem trazer ao debate. Cidadãos, ativistas, trabalhadores ou moradores

    do entorno de empreendimentos poluidores não podem ser reduzidos a

    meros “leigos”. Os conhecimentos que tais sujeitos detêm, com base em

    suas vivências e experiências cotidianas, são de bastante relevância para

    a adequada compreensão e o enfrentamento de problemas e situações de

    riscos reais a que estão expostos. Este tipo de conhecimento, situado e

    contextualizado, também refere-se aos costumes e práticas sociais, e,

    portanto, são capazes de proporcionar valiosas observações muitas vezes

    não obtidas somente com o aporte do conhecimento científico tradicional.

    Assim, ressalta-se a necessidade de estabelecer pontes para permitir um

    diálogo amplo entre saberes e experiências para além daquelas de origem

    puramente técnico-científica.

    • Congruência: refere-se à coerência tanto interna como recíproca entreideias e ações, bem como sua correspondência com a realidade da

    experiência anterior e de iniciativas futuras. Neste sentido, vale destacar

    que, por vezes, as medidas de prevenção sugeridas para diferentes

    situações de risco podem ser mutuamente contraditórias, ou mesmo a

    aplicação de planos de reparação de danos já ocorridos pode não ser

    viável em determinados contextos sociais, sob pena de gerar resultados

    incongruentes, não efetivos e possivelmente perigosos.

    • Recursos: relacionam-se aos econômicos, mas não apenas, incluindotambém o conjunto de todos os conhecimentos, habilidades e

    possibilidades de conexão entre as diferentes partes implicadas no

    21

  • processo decisório, bem como o acesso a redes mais amplas. Para tanto,

    é importante que o diálogo político favoreça o surgimento de tais recursos,

    de forma a permitir sua utilização e seu aperfeiçoamento em processos de

    aprendizagem, ampliando os recursos sociais existentes. Também é

    considerada estratégica a formação de redes compostas por organizações

    comunitárias, sociais e profissionais envolvidas no problema, incluindo-se

    também a participação de instituições e autoridades regionais e locais.

    • Confiança: constitui condição fundamental para a efetividade de qualquercooperação ou processo dialógico entre diferentes atores. Em geral, a

    confiança do público leigo nos especialistas e autoridades públicas vêm se

    deteriorando, sobretudo a partir da percepção pública da existência de

    omissão de informações e/ou manipulação de incertezas científicas, na

    tentativa de confundir a sociedade, bem como subordinar instituições e

    cientistas a determinados interesses econômicos.

    Desta forma, vale ressaltar, na mesma linha que Funtowicz e Strand (2007), o

    esforço da proposta da CPN em reforçar a posição processual e democrática de

    gestão de conhecimentos, uma vez que seu objetivo principal é garantir a qualidade

    das decisões em situações com alto nível de incerteza e complexidade, a partir da

    lógica da defesa do interesse público.

    E quanto ao tema das incertezas, salienta-se que as mesmas, quando

    consideradas, tendem a ser tratadas de maneira puramente quantitativa e sem a

    devida contextualização quanto aos valores e interesses implícitos que estão

    presentes. Na visão da CPN, o caminho para superar tal situação é a constituição de

    uma “comunidade ampliada de pares” (FUNTOWICZ e RAVETZ, 1993, 1994, 1997),

    dispositivo capaz de discutir as incertezas e consequências das escolhas possíveis

    em um processo de tomada de decisões, assim como buscar garantir que o

    interesse público prevaleça, a partir da explicitação dos diversos interesses coletivos

    em disputa frente a certo problema complexo.

    1.1.5 Sobre as incertezasUm problema característico da ciência normal consiste em sua dificuldade de

    explicitar e lidar com as incertezas em jogo. Quanto ao tratamento dos riscos

    22

  • ambientais e tecnológicos, a concepção predominante é que os mesmos são

    sempre passíveis de identificação, mensuração e controle pela ciência, bem como

    pelos métodos desenvolvidos de análise e gestão de problemas ambientais e de

    saúde. Todavia, tal posição não leva em conta as discussões sobre riscos,

    complexidade e incertezas apresentadas por autores como Funtowicz e Ravetz

    (1990, 1993, 1994, 1997).

    Na visão de Wardekker et al. (2008), avaliações científicas de riscos

    ambientais complexos, bem como as respostas políticas aos mesmos, sempre

    envolvem incertezas de muitos tipos. As quais podem surgir nos diversos momentos

    constituintes do processo de elaboração de políticas públicas: a identificação inicial

    de um possível problema; a formulação da política; e, eventualmente, o

    monitoramento e os ajustes de políticas existentes. Os autores destacam também

    que muitas incertezas não conseguem ser reduzidas com a realização de mais

    pesquisas, e, no entanto, decisões importantes precisam ser tomadas antes que

    evidências científicas conclusivas estejam disponíveis. Daí a importância de

    desenvolver e adotar estratégias adequadas de comunicação de incertezas, não só

    pela capacidade de influenciar políticas públicas (ambientais e de saúde, sobretudo),

    mas porque também têm relação com o que pode ser qualificado como boa prática

    científica, pautada na responsabilidade e transparência junto ao público em geral.

    Contudo, no âmbito da interface entre ciência e sociedade, não é uma tarefa

    simples lidar com incertezas elevadas, bem como com os limites das possibilidades

    de quantificação das mesmas. Em geral, as informações relacionadas a incertezas

    são de difícil compreensão, além de constituírem fonte de muitas controvérsias

    científicas, as quais, quando tornadas públicas podem nutrir o sentimento de

    desconfiança em relação à ciência e aos cientistas. Portanto, na mesma linha que

    Wardekker et al. (2008), considerando o quadro de incertezas inerente a muitos

    problemas ambientais e de saúde envolvendo riscos complexos questiona-se: teria a

    ciência condições de exercer o papel de fornecer conhecimento confiável, válido e

    objetivo? Mais ainda: existem abordagens no âmbito da ciência capazes de remover

    ou reduzir incertezas elevadas, e fornecer fatos objetivos?

    As respostas para as questões colocadas acima não são triviais. Van der

    Sluijs (2005) traz uma interessante contribuição ao refletir sobre as diferentes

    23

  • maneiras pelas quais a comunidade científica lida com as incertezas que não são

    facilmente domadas. Para tanto, o referido autor utiliza como metáfora o termo

    “monstro” a fim de caracterizar as incertezas, de modo que as estratégias da

    comunidade científica para tratamento de tal monstro, com diferentes níveis de

    tolerância em relação ao anormal, seriam:

    • Recusa (exorcismo do monstro): eliminação das incertezas por meio demais pesquisas científicas independentes;

    • Quantificação (adaptação do monstro): diante da inevitabilidade dasincertezas, busca-se quantificá-las e separá-las de fatos e valores, da

    forma mais efetiva possível;

    • Deliberação (acolhimento do monstro): a ciência é desafiada a contribuirpara um debate público menos tecnocrático e mais democrático;

    • Ciência como um jogador (player) (assimilação do monstro): ressalta-se ocaráter político que conforma a prática científica, e desafia-se a mesma a

    assumir um papel influente na arena pública.

    Van der Sluijs (2006) traz algumas considerações sobre o tema das incertezas

    que merecem destaque: (i) a primeira refere-se ao fato das incertezas científicas

    serem, em parte, socialmente construídas e sua avaliação sempre envolver

    julgamentos subjetivos; (ii) a segunda aponta que mais pesquisas não

    necessariamente reduzem as incertezas, mas revelam complexidades não previstas

    e incertezas irredutíveis; (iii) a terceira salienta que incerteza é mais do que um erro

    estatístico ou inexatidões em números, ou seja, é cada vez mais compreendida

    como um conceito multidimensional envolvendo dimensões quantitativas e

    qualitativas, que, muitas vezes, dominam as primeiras; (iv) a quarta, por fim, lembra

    que, em geral, metodologias e práticas que lidam com incertezas focam apenas em

    seus aspectos quantificáveis, de modo que métodos que abordem suas dimensões

    qualitativas e questões de estruturação de problemas bem como valores imbricados

    são ausentes ou encontram-se em seus estágios iniciais.

    Wynne (1992) também apresenta contribuições importantes a respeito das

    discussões sobre incerteza. O autor critica a ideia segundo a qual o inadequado

    controle dos riscos ambientais decorre apenas do conhecimento científico

    inadequado. Além desta crítica, também apresenta o conceito de indeterminância

    24

  • como uma categoria de incerteza. Esta categoria relaciona-se a um fim em aberto

    (open-endedness), em termos científicos e sociais, nos processos de danos

    ambientais de origem antrópica. A noção de inderteminância, portanto, introduz a

    ideia de que o comportamento social contingente deve ser incluído e na estrutura

    analítica e prescritiva. Desta forma, intui-se que muitos dos comprometimentos

    intelectuais que constituem nosso conhecimento não são inteiramente determinados

    por observações empíricas. Ou seja, o conhecimento científico é condicionado não

    só pelas relações naturais, mas também pelas que moldam o mundo social, e pela

    habilidade de construir e negociar confiança e credibilidade para a ciência. Van der

    Sluijs (2006), então, ressalta que, em situações de controvérsia social com disputas

    elevadas, todo argumento científico torna-se indeterminado e incerto e não

    fundacional.

    No âmbito da regulação ambiental, o ônus científico da prova em situações de

    risco nas quais as incertezas são elevadas, constitui uma questão bastante

    conflituosa e controversa, de maneira que Wynne (1992) destaca dois aspectos que

    dão margem para a manipulação política das incertezas: (i) onde o ônus da prova

    deve ser situado no espectro entre a completa proteção ambiental e a espera por um

    dano óbvio? e (ii) que ônus de prova pode ser cientificamente sustentado?

    Assim, a manipulação política das incertezas coloca a exigência de “provas” e

    “evidências” objetivas que demonstrem, de forma inequívoca, a associação entre

    atividades produtivas, riscos ambientais e problemas de saúde. No entanto,

    seguindo Porto et al. (2015), a obtenção destas provas é, em geral, uma tarefa muito

    difícil no caso de problemas complexos, de origem multicausal e com escalas

    espaciais e temporais raramente contempladas nos estudos, por vezes caros e de

    longa duração. Além do mais, mesmo que estes estudos científicos sejam

    realizados, suas limitações e incertezas muito dificilmente são explicitadas com

    clareza. Entretanto, não se deve assumir a ideia equivocada de que esta suposta

    falta de “evidências” corresponderia a uma comprovação científica da não

    associação entre o risco ambiental e os problemas de saúde analisados. Ou seja, a

    falta de uma evidência totalmente comprovada não deveria significar que o problema

    não existe. Nesses casos, aplicar o princípio da precaução deveria ser assumido

    como de grande importância para a defesa da vida e do meio ambiente.

    25

  • Assim, tomando como base as discussões sobre regulação ambiental e a

    consolidação do paradigma preventivista10, que se colocava nos anos 1980, Wynne

    (1992) já chamava a atenção que para lidar com as incertezas, não poucas e

    crescentes, associadas aos efeitos ambientais dos lançamentos de poluentes, o

    passo inicial é o reconhecimento de sua existência, para, em seguida, buscar

    compreender seu caráter social complexo, mesmo dentro do domínio do

    conhecimento cientí