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Este artigo trata do sincretismo na arte afro-brasileira, ontem e hoje. Sete artistas tornam visível o processo de miscigenação cultural pelo qual o Brasil passou. Primeiro, dois dos artistas afrobrasileiros mais importantes do século XVIII: Aleijadinho e Mestre Valentim. Em seguida, cinco representantes da arte contemporânea. Da velha geração: Rubem Valentim e Mestre Didi. E da nova geração, menos presa à classificações e rótulos, mas ainda carregada da religiosidade advinda da relação Brasil-África, os três premiados artistas: Caetano Dias, Eustáquio Neves e Ayrson Heráclito. Perceberemos, por meio dos artistas, como o complexo processo sincrético se reflete na arte. Almejase aqui lograr um pequeno grande reconhecimento de uma temática que todavia não se esgotou, mas ao contrário, ainda carece de visibilidade e aceitação. Palavras-chave: Sincretismo, Religiosidade, Arte afro-brasileira, Barroco, Arte contemporânea

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  • Arte y f: sincretismo afro-brasileiro

    REVISTA DE ESTUDIOS INTERDISCIPLINARIOS DE ARTE Y CULTURA / VOL. 1-2014 / PP. 41-55

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    ISSN: 2410-1923

    Renata Homem 1

    * Universidad de Brasilia, Brasil. [email protected]

    Arte y fe: sincretismo afrobrasileoArt and faith: afro-brazilian syncretism

    *

    ResumoEste artigo trata do sincre-tismo na arte afro-brasileira, ontem e hoje. Sete artistas tornam visvel o processo de miscigenao cultural pelo qual o Brasil passou. Primei-ro, dois dos artistas afro-brasileiros mais importantes do sculo XVIII: Aleijadin-ho e Mestre Valentim. Em seguida, cinco representan-tes da arte contempornea. Da velha gerao: Rubem Valentim e Mestre Didi. E da nova gerao, menos presa classificaes e rtulos, mas ainda carregada da religio-sidade advinda da relao Brasil-frica, os trs premia-dos artistas: Caetano Dias, Eustquio Neves e Ayrson Herclito. Perceberemos, por meio dos artistas, como o complexo processo sincrtico se reflete na arte. Almeja-se aqui lograr um pequeno grande reconhecimento de uma temtica que todavia no se esgotou, mas ao contrrio, ainda carece de visibilidade e aceitao.

    Palavras-chave: Sincretismo, Religiosidade, Arte afro-bra-sileira, Barroco, Arte contem-pornea

    Palabras claves: Sincretismo, Religiosidad, Arte afrobrasi-leo, Barroco, Arte contem-porneo

    Keywords: Syncretism, Reli-giousness, Afro-brazilian art, Baroque, Contemporary art

    ResumenEste artculo trata del sincre-tismo en el arte afrobrasile-o, ayer y hoy. Siete artistas hacen visible el mestizaje cultural que ocurri en Brasil. Primero, dos de los ms importantes artistas afrobrasi-leos del siglo XVIII: Alei-jadinho y Mestre Valentim. Luego, cinco representantes del arte contemporneo. De la antigua generacin: Rubem Valentim y Mestre Didi. Y de la nueva generacin, menos atada a clasificaciones y rtu-los, pero que cargan consigo la religiosidad de la relacin Brasil-frica, los tres premia-dos artistas: Caetano Dias, Eustquio Neves y Ayrson Herclito. Se reconoce, a travs de estos artistas, como el complejo proceso sincr-tico se refleja en el arte. Con esto, se desea aqu, lograr un pequeo gran reconocimiento a una temtica que no se ha agotado todava, sino al con-trario, an carece de visibili-dad y aceptacin.

    AbstractThis article its about syn-cretism in afro-brazilian art, yesterday and today. Seven artists make visible the cultural process of misce-genation ocurred in Brazil. First, two of the most impor-tant afro-brazilians artists of eighteenth century: Aleija-dinho and Mestre Valentim. Then, five exponents of contemporary art. The older generation: Rubem Valentim and Master Didi. And the new generation, less tied to ratings and labels, but still loaded with religious sense arising from the Brazil-Africa relationship, the three award-winning artists: Caetano Dias, Eustaquio Neves and Ayrson Herclito. We can realize, through artists, how the complex syncretic process is reflected at art. Therefore, we aim achieve a little, but great recognition for an issue not finished yet, however, on the other hand, still needs visibility and acceptance.

    Revista Kaypunku / Volumen 1 / Diciembre 2014, pp. 41-55Documento disponible en lnea desde: www.kaypunku.com

    Recibido: 30/05/2014Aceptado: 22/06/2014Disponible en lnea: 28/12/2014

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    Em pouco mais de quinhentos anos de histria, praticamente quatrocentos foram de escravido no Brasil. Por isso, parte da histria arte afro-brasileira traz consigo o banzo,1 a opresso e o anseio pela liberdade. Mas no apenas de sofrimento que se faz essa histria. A tradio africana teve que ser recriada e adaptada a uma nova realidade, gerando uma rica e complexa potica, chamada arte afro-brasileira. A f, a espiritualidade, a criatividade, a forma, a cor, o cheiro e o sabor vindos do Atlntico somaram-se tradio europeia, implantada no pas dos ndios.

    Os africanos trazidos ao Brasil souberam transferir sua singularidade, atravessando toda a sociedade brasileira por meio de elaboradas associaes. Tanto o territrio quanto a formao da cultura brasileira ficaram profundamente marcados por instituies e estruturas sociais capazes de reelaborar com dignidade a herana africana. Sobre os trilhos da colnia, a religiosidade ps-dispora teve que percorrer seu prprio caminho: Tal como na frica Ocidental, a religio impregnou todas as atividades, regulando e influenciando o viver cotidiano, conservando um sentido profundo de comunidade, preservando e recriando o mais especfico de suas razes culturais (Santos, 1996, p. 266).

    Contudo, a religio afrodescendente fora proibida e o cristianismo europeu determinado como ideal. Desse impasse nasceria o sincretismo religioso afro-brasileiro: Um exemplo disso foi a identificao de deuses africanos com santos e virgens catlicas feitas pelos escravos, forados a se tornarem cristos no Brasil, Cuba e outros pases. Mosquera lembra que no tempo atual, globalizado e ps-colonial, os processos sincrticos indicam uma negociao entre poder e diferena cultural e completa: No h sincretismo real enquanto a unio de antagonismos no-contraditrios, mas enquanto estratgia de participao, re-significao e pluralizao anti-hegemnicas (Mosquera, 1996, p. 470).

    Para explicar a questo do sincretismo no Brasil, Pierre Verger costumava citar seu amigo Balbino, o pai de santo do Ax Op Aganju, que comparava a relao entre o catolicismo e o candombl da seguinte maneira: como gua e azeite dentro de um clice, esto juntos, dentro de um mesmo recipiente, mas mesmo assim no se misturam. A mesma coisa acontece com as duas religies: elas convivem lado ao lado mas no se misturam (Lhning, s.f.). A partir disso, o termo mistura no quer dizer, em ltima instncia, fuso completa, mas sim, coexistncia, contato.

    Alguns autores consideram que o sincretismo sempre esteve marcado pela resistncia e afirmao daquele que fora subordinado. Para Silva, o surgimento do candombl teria sido gerado pela necessidade da assero de uma identidade social e religiosa, a qual precisou ser reelaborada sob condies um tanto quanto desfavorveis, derivadas da escravido e posteriormente do desamparo social. Por isso, a organizao social e religiosa dos terreiros tenderiam a ressaltar uma reinveno da frica no Brasil. Assim como o candombl, a umbanda, concebida mais recentemente, teria nascido da tentativa de encontrar um modelo de religio que pudesse integrar de modo legtimo as contribuies dos diferentes grupos sociais. Por isso, a umbanda apresentava-se como uma religio genuinamente brasileira, que mais para a frente, seria facilmente adaptvel a vida cotidiana das grandes cidades (Silva, 2006, p. 149).

    Se por um lado os africanos tiveram que se readaptar nova forma de vida, os brancos europeus tambm foram fortemente influenciados pela cultura do povo escravizado. Segundo Verger, no incio da colnia, da mesma forma que os escravos se europeizavam, os senhores tambm se africanizavam, a partir do contato com seus escravos. Um exemplo disso eram as babs e amas de leite negras, muito

    1 Processo psicolgico causado pela desculturao, que levava os negros africanos escravizados, transportados para terras distantes, a um estado inicial de forte excitao, seguido de mpetos de destruio e depois de uma nostalgia profunda, que induzia apatia, inanio e, por vezes, loucura ou morte. (Banzo, 2012 )

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    comuns, que acabavam passando mais tempo com as crianas do que os prprios pais (Verger, 2006, p. 101). Desta forma, desde pequenos os filhos dos brancos absorviam a cultura e a tradio dos negros.

    Vimos que o sincretismo afro-brasileiro no refere-se apenas a uma suposta mistura entre religies, mas tambm a incorporao de elementos negros pela cultura branca, e vice-e-versa. De qualquer modo, como infere Valente (as cited in Ferreti, 1995):

    Seja qual for o ngulo que se analise a questo do sincretismo religioso, importante ressaltar que o negro no permaneceu passivo ante este processo, apesar da imposio, da obrigatoriedade e do papel desempenhado pela religio catlica como sustentculo do projeto colonial. Tudo leva a crer que a partir da realidade vivida naquela poca considerando as dificuldades, o negro recriou e reinterpretou

    a cultura dominante, adequando-a sua maneira de ser. (p. 74)

    Sobre a tradio negra, Verger (2006) considera que no campo da religiosidade que mais se manifesta a fidelidade dos valores africanos (p. 101). Para Santos: A arte africana est fundamentalmente associada religio. No estranho, pois, que nas comunidades afro-brasileiras se repita esta modalidade. A manifestao do sagrado expressa-se por uma simbologia formal de manifestao esttica (Santos, 1996, p. 269). A partir dessa perspectiva, por uma questo de lgica, inferimos que: se o sincretismo faz parte da cultura e da cultura nasce a arte, a arte afro-brasileira, por sua vez, naturalmente sincrtica. E se a tradio africana em sua essncia religiosa, ento a arte afro-brasileira tem grandes chances de ser religiosa.

    Mas o que teria acontecido no Brasil, desde o incio do processo de sincretismo at os dias de hoje? Como a arte miscigenada se configurava no perodo colonial? Quais foram os desdobramentos da arte afro-brasileira na sociedade ps-moderna? So estas perguntas que este artigo pretende responder. Para isso, aps analisarmos conceitualmente o sincretismo, precisamos entender um pouco da relao entre arte e religio de uma maneira geral, para ento compreendermos como o processo de hibridizao atua na arte contempornea.

    A arte e a religio sempre se influenciaram, desde os tempos remotos. Elkins (2004) conta que h oito mil anos atrs a Europa, sia e frica j estavam cheias de esculturas de deuses e animais totmicos. Povos neolticos deixavam oferendas, construam altares e utilizavam pedras e ossos para fazerem imagens de deuses. A arte j era religiosa, pois era ritualstica, e assim permaneceu durante as primeiras civilizaes, na Sumria, na Turquia, no Egito e na Prsia (pp. 1-4).

    A arte continuou a servir a religio durante a Idade Mdia, em Bizncio, e, de certa forma, durante o Renascimento. Porm, no decorrer do sculo XIX, a paisagem religiosa crist mudou drasticamente em toda a Europa. A democratizao, a individualizao, a ascenso das cincias empricas e o crescimento econmico descreditou o cristianismo como base para a moralidade e a tica. No entanto, o desencantamento da religio pela sociedade ocidentalizada deu lugar a novas formas de religiosidade. A tradio crist foi secularizada, as formas tradicionais de pensamento foram destrudas e as doutrinas foram reexaminadas. A combinao dos novos movimentos filosficos resultou em uma interpretao mais pluralista e idiossincrtica, voltada para uma experincia religiosa centrada nas necessidades espirituais do individuo (Bax, 2008, p. 3).

    Para Flusser (2002), as religies tradicionais no so mais capazes de nos satisfazerem, e temos uma fome religiosa insatisfeita. Como indivduos e como sociedade estamos buscando novas formas de substituir as religies tradicionais para suprir nossa religiosidade latente. Neste sentido, nossas atividades criadoras (inclusive cientificas e artsticas) seriam realizadas especialmente com o intuito de abrir caminho para uma nova religiosidade (pp. 13-21).

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    Em uma sociedade moderna, especialmente nos pases marcados pela miscigenao ps-colonizao, natural que surjam novas formas de religiosidade, sincrticas, hbridas. Como afirma Morais (1998): [...] tudo na Amrica Latina tende hibridizao e mestiagem cultural. Entre ns, nada existe em estado puro, seja no plano da arte erudita seja no plano da arte popular (p. 6). A partir do dicionrio, a palavra hibridismo refere-se biologia, porm, j h algum tempo, o termo vem sendo utilizado pelas cincias humanas para descrever processos sociais e culturais de miscigenao, mescla e unio.

    Kern nos recorda que para Burke (as cited in Kern, 2004), como consequncia da globalizao planetria, os processos de hibridizao cultural so inevitveis. Segundo Burke, o conceito de hibridizao pode ser entendido como sentido de mistura, mas trata-se de um processo e no de um estado, que existiu em todas as fases da histria, sob diferentes denominaes (pp. 55-56). Sobre isso, Santaella (2003) tambm acrescenta dizendo que na cultura, tudo mistura, processo comum nas sociedades globalizadas, ps-industriais, ps-modernas, lembrando ainda, que sobre isso que Canclini discute no premiado livro Culturas Hibridas (p. 30).

    Aps esses esclarecimentos, partimos ento para a exemplificao dos artistas afro-brasileiros. Segundo Emanuel Arajo (1988), no Brasil, qualquer pessoa com certo grau de instruo reconhece esses nomes: Aleijadinho e Mestre Valentim. Verdadeiros expoentes do Barroco brasileiro, ambos, muito competentes, influenciaram artistas no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, por meio de suas oficinas e atelis (p. 54). Tanto um quanto o outro introduziu no Brasil colnia o estilo europeu em voga poca na Europa, o rococ, adaptando-o a uma nova realidade cultural. A obra dos dois artistas deriva de uma linguagem religiosa crist carregada de africanidade, refletindo o sincretismo cultural e religioso do pas colonizado. Enquanto a religio e o estilo europeus marcavam a encomenda e a finalidade da obra de arte, a presena da cultura negra estava tanto no sangue quanto no processo criativo das obras de ambos os artistas. Pois, como indaga Arajo (1988):

    De onde poderia vir, seno da frica, aquela fora expressionista contida na obra de Alejadinho? A sua escultura reducionista, geomtrica, talhada com energia angulosa, maneira dos escultores nigerianos, pode ser resultante da influncia dos trs escravos que trabalhavam com ele, mas mesmo assim ao inconsciente do prprio Aleijadinho. E as mulatices dos anjos e Santos do Mestre Valentim, o brutalismo ou gigantismo aparente de suas talhas, de onde surgiram essas caractersticas? (p. 10)

    Antnio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, era natural de Minas Gerais, da cidade de Vila Rica, nasce em 1730 e falece em 1814. Era filho de me africana e pai portugus, o arquiteto e mestre de obras com quem aprendeu muito do que sabia. Toda sua produo artstica de natureza religiosa, pois poca colonial as Irmandades e Ordens Terceiras eram as grandes comissrias das obras de arte. Aleijadinho tinha seu estilo prprio e apresentava grande originalidade no universo da arte rococ. Sua biografia consiste em uma carreira de grande importncia para o Brasil, sua produo apresentava alta qualidade e seu trabalho gerou discpulos e seguidores. Os Doze Profetas, esculturas feitas em pedra sabo, suas obras de maior projeo, podem ser vistas no municpio de Congonhas do Campo, no ptio do Santurio do Bom Jesus de Matosinhos (Figuras 1 e 2) (Arajo 1988, pp. 54-75, 2006, p. 244).

    Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim (1750-1813) foi, entre outras coisas, escultor e arquiteto. De naturalidade mineira, nascido em Serro, foi um dos principais construtores de obras pblicas no Rio de Janeiro do final do sculo XVIII. Unindo a esttica rococ e a simbologia crist, Mestre Valentim executou e talhou imagens sacras para inmeras igrejas. Tambm filho de um branco com uma negra, Mestre Valentim, ao contrrio de Aleijadinho que nunca sara do pas, viveu parte

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    da infncia em Portugal. Ao que tudo indica, os dois artistas, apesar de contemporneos, nunca se conheceram. O trabalho de Mestre Valentim em sua maioria, religioso, derivados de encomendas de confrarias catlicas, porm, tambm fazem parte de seu legado artstico importantes obras de natureza civil e urbana, confiadas pelo Vice-Rei Dom Lus de Vasconcellos (Arajo, 2006, p. 247).

    A mulatices dos anjos a que se referia Emanuel Arajo pode ser vista em muitos de seus trabalhos para as igrejas (Figuras 3 e 4), representando, de modo brilhante e sutil, no apenas a afirmao dos negros grupo social arbitrariamente excludo nas representaes artsticas como uma unio entre raas, idealizada e espiritualizada.

    Carvalho explica que o trabalho de Mestre Valentim de suma importncia para o Brasil, tanto do ponto de vista artstico, quanto social. Por meio de sua arte, Mestre Valentim chegou a unir, literalmente, fiis de diferentes grupos tnicos. Trata-se da obra da Venervel Ordem Terceira de Nossa Senhora da Conceio e Boa Morte, realizada em 1790. Por meio dela, o artista uniu duas irmandades que por anos estavam em litgio: a Irmandade de Nossa Senhora da Conceio dos Homens Pardos e a Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte. Ele foi o responsvel pela recuperao interior da igreja, criando modelos e elementos artsticos comuns s duas ordens, que eram capazes de representar ambas, simbolizando assim, um elo entre as mesmas (Carvalho, 1999)

    Arajo (1988) diz que notrio o interesse dos modernistas, principalmente Mrio de Andrade, pelo trabalho dos artistas mulatos do Brasil colnia. Ele explica que apesar de o movimento romntico e nacionalista ser mais coerente com os princpios modernistas, de elevao de uma cultura independente, calcada nas questes prprias terra, a valorizao da arte do sculo XIX, era menos comum que a da arte do sculo XVIII (p. 54).

    Sob a influncia viva da arte barroca de Aleijadinho e Mestre Valentim, aps todo o processo de modernizao histrico-cultural, eis que surgem novos modelos de sincretismo na arte afro-brasileira, como veremos na obra de outro Valentim, no menos importante: Rubem Valentim. Baiano de Salvador, Rubem Valentim nasceu em 1922 e faleceu em 1991. Iniciou sua carreira como autodidata, foi pintor, escultor, gravador, jornalista e professor. Expoente do concretismo brasileiro, um dos principais nomes da arte afro-brasileira contempornea. Entre 1946-1947, participou do

    Figura 2. Aleijadinho. (1800-1805). Profeta Daniel (Detalhe) [Escultura em pedra sabo]. Santurio do Bom Jesus de Matozinhos, Minas Gerais, Brasil. Fotografia: Fbio Cabral Durso.

    Figura 1. Aleijadinho. (1800-1805). Doze profetas. [Conjunto de esculturas em pedra sabo]. Santurio do Bom Jesus de Matozinhos, Minas Gerais, Brasil. Fotografia: Jean Yves Donnard.

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    Movimento de Renovao das Artes Plsticas na Bahia com Mario Cravo Jnior e outros. Viveu no Rio de Janeiro e em Roma, ganhou prmios e participou de exposies internacionais. Em 1974, instalou a escultura em concreto armado Marco Sincrtico da Cultura Afro Brasileira, na Praa da S, em So Paulo (Figura 5) (Arajo, 2006, p. 267).

    interessante notar como a arte afro-brasileira atua no subconsciente da sociedade. Contida na obra, permanece silenciosa toda uma histria, carregada de simbologia e religiosidade. A escultura Marco Sincrtico da Cultura Afro Brasileira representa uma nao que fora subjugada, renegada, e ainda assim, ela embeleza, participa e protege a vida cotidiana da cidade. Ao fundo da escultura pode ser vista a Catedral da S. Quem conhece So Paulo, sabe que a Praa da S abriga dezenas de moradores de rua, rfos, indigentes, viciados e maltrapilhos, cuja cor da pele denuncia o passado de escravido. Ironicamente, l est ela, armada, concreta. Como uma guardi, a simblica escultura de Rubem Valentim representa, literalmente, um marco sincrtico da cultura afro brasileira..

    Em 1972, Rubem Valentim faz um mural em mrmore para o ento edifcio-sede da Novacap, em Braslia, considerado sua primeira obra pblica (Figura 6). Frederico Morais, ao falar da linguagem concretista, fluida, leve e sinuosa que tomava a Capital, descreve conceitualmente um estilo que pode ser igualmente atribudo obra pblica de Rubem Valentim. Ao mesmo tempo em que a obra retoma o passado, ela aponta para um futuro utpico:

    Esta arquitetura niemeyeriana, convidando ao sonho, a contrafase, dentro do nosso Barroco, da exuberncia, do excesso e do fausto das igrejas setecentistas. Entre ns, portanto, a arte simultaneamente transe, ou seja, um sentimento atvico, um recuo at as origens mitomgicas do continente, e transitrio, um impulso para frente, para o futuro, virtualidade pura. (Morais, 1998, p. 6)

    Segundo Herkenhoff (1996), a arte de Rubem Valentim no representava a nostalgia ou a melancolia do passado africano, mas sim a necessidade de reafirmao da herana africana no Brasil, com reivindicao de direito religioso e seu reconhecimento na cultura brasileira. A obra de Valentim, no seu vis mitolgico e religioso, tem como ponto de partida aquilo que Freud entende como fundo vivo de nosso idioma, de nossas crenas e nossa filosofia (p. 419). Herkenhoff explica

    Figura 3. Mestre Valentim (s. XVIIIb). Medalho com anjo. [Madeira policromada]. Coleo Alberto Moreira, Rio de Janeiro. Brasil.

    Figura 4. Mestre Valentim (s. XVIIIa). Do retbulo do altar da Capela do Noviciado (Detalhe). Igreja da Ordem Terceira do Carmo, Rio de Janeiro, Brasil.

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    que a teogonia2 do artista se apresenta na forma escrita, simblica, e no na representao figurativa dos orixs. Neste sentido, os orixs de Valentim eram diferentes dos orixs dos artistas cubanos Wifredo Lam e Crdenas, que, envoltos numa atmosfera de magia, tiveram sua condio religiosa tratada como surrealismo pelo etnocentrismo europeu.

    Genuinamente afro-brasileira, a vida de Rubem Valentim timo exemplo de sincretismo no Brasil. Aps infncia marcada por tradies catlicas, ele se tornaria, mais tarde, ob3 da Casa Me Senhora. O passado da religio crist e o presente da religio afro-brasileira, marcariam significativamente toda sua obra. Na condio de baiano, ele mesmo conclua:

    [] de todos meus encantos infantis nenhum se comparava ao de fazer prespios. Mundo potico, popular, de cor e riqueza imaginativas, que ficou em mim e influenciou profundamente minha arte. Me perdia na contemplao das igrejas: o ouro dos altares, as imagens, o silncio, o cheiro de incenso e de velas queimando. Cantocho. Procisses. O Natal e a Paixo. Minha famlia, catlica, de quando em vez ia ver um caboclo num candombl. O baiano, para sua felicidade, catlico e animista. (Valentim, 1997)

    Mais um grande artista brasileiro, cuja obra recria de modo singular a espiritualidade e cultura africanas: Deoscredes Maximiliano dos Santos, o Mestre Didi, nasceu em 1917 e faleceu j no sculo XXI, em 2013. Nascido em Salvador, Bahia, foi escultor e escritor. Publicou livros sobre a cultura afro-brasileira, realizou pesquisas comparativas entre Brasil e frica e coordenou importantes trabalhos de tradio e cultura afro no Brasil. Criava objetos rituais desde a infncia, utilizando em suas obras nervuras de palmeiras, bzios, miangas e tiras de couro (Arajo, 2006, p. 268).

    Pode-se dizer que arte de Mestre Didi explicita a tradio que o antecede. Ao longo da histria, artistas ligados religiosidade produziram signos e smbolos capazes de atingir no apenas a aparncia externa, mas tambm a essncia da obra. A figurao no pretende oferecer uma interpretao das formas naturais visveis, mas ao contrrio, ela sugere atributos essenciais, invisveis. preciso transcender a forma para atingir sua essncia (Moura, 2006, p. 67). Como explica Sylla (as cited in Moura, 2006):

    2 Conjunto de deidades cujo culto fundamenta la organizao de um povo pago. (Teogona, 2012 )3 Ttulo honorfico do candombl concedido aos amigos e protetores do terreiro. (Lima, 1966)

    Figura 5. Valentim, R (1978-1979). Marco Sincrtico da Cultura Afro-brasileira. [Concreto armado]. Praa da S, So Paulo, Brasil. Fotografia: Andr Deak

    Figura 6. Valentim, R. (1972). Mural em mrmore branco. SBN, Braslia, Brasil. Fotografia: Zuleika de Souza.

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    O objeto de arte que o artista africano produz em si um signo, um smbolo; o que ele procura atingir no uma aparncia externa, mas uma essncia. Aps a observao e anlise dos modelos sensveis, ele extrai do modelo os traos dominantes e os atributos essenciais. A simplificao dos motivos naturais percebidos o leva elaborao dessas formas geomtricas: em vez de tender ao retrato, ele generaliza os aspectos. Longe de reproduzir com exatido uma figura ou de fornecer uma interpretao intelectual das formas naturais, ele se esfora em sugerir e representar com a ajuda de sinais, smbolos, linhas e crculos. O que resta da forma natural representada, quando a obra est terminada, aquilo que permite a sugesto dos atributos essenciais da forma e no essa forma visvel. De certa maneira transcende-se essa forma para que a essncia do animal ou da realidade simbolizada seja alcanada. (p. 67)

    Para Santos (1996), Mestre Didi era um sacerdote-artista, completamente envolvido no universo nag de origem yorubana. Sua arte expressa a experincia do sagrado e a adorao aos orixs por meio de smbolos e elementos rituais. Santos ainda declara que comum encontrar na histria comparada das religies o emprego de certos smbolos, como a lua, os peixes, a serpente, o relmpago, o arco-ris e a cabaa, por exemplo. (Figuras 7 e 8). Para a autora, esses emblemas se repetem e se reinterpretam desde os tempos pr-histricos, e encerram em si mesmos um microcosmo que, compreendido, pode ajudar-nos a inferir todo o sistema religioso-esttico de uma determinada comunidade (p. 269).

    Segundo Santos, a obra de Mestre Didi representa a vertente mitolgica da cultura afro, e traz, para o aqui e o agora, mitos e cultos afro-brasileiros. No se trata apenas de uma referncia ao passado histrico, mas tambm de formas de expresso que so dramatizadas e revividas no tempo presente. Santos (1996) completa: A obra de Mestre Didi confere existncia a um plural universo simblico neo-africano que se cria e recria na multiplicao de formas e sentidos (p. 269).

    Da nova gerao de artistas, apresentaremos apenas trs deles. Porm, atuantes e presentes no cenrio artstico contemporneo nacional e internacional, esses trs artistas exemplificam de modo brilhante como o sincretismo religioso se desenvolveu na arte afro-brasileira, levantando questes que unem religiosidade temas cotidianos atuais.

    Nascido em 1959, em Feira de Santana, Bahia, Alberto Caetano Dias Rodrigues, o Caetano Dias, artista multimdia e trabalha com vdeo, pintura e instalao, entre outras linguagens (Arajo, 2006, p. 286). Seu trabalho emerge por volta de 1990 e tem sido relacionado temas como: resistncia,

    Figura 8. Mestre Didi (2003). Opa Nil Baba Igi. [Escultura-Objeto], tcnica mista.

    Figura 7. Mestre Didi (2001). Ibiri Ati Ejo NiLe - Panteo da Terra. [Escultura-Objeto], tcnica mista.

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    sexualidade, deslocamento do estatuto de religiosidade e misticismo. Caetano Dias recria o precrio e faz referncia ao Barroco inserido no contexto urbano de Salvador. Ele trabalha com uma esttica homoertica e a associa significados de religiosidade, elevando o porn ao sacro. Quando Caetano Dias apresenta o Cristo de Rapadura (2004), (Figuras 9 e 10), ele evoca o sublime de Bataille, suscitando ao mesmo tempo, erotismo e morte. Noes de sacrifcio so relacionadas um erotismo proibido pelo cristianismo. Sua obra convida o pblico a transitar entre o sagrado e o profano, o ntimo e o coletivo, em um jogo de ressignificaes. Em Cristo de Rapadura, cada visitante poderia comer um pedao do corpo sagrado (Bousso, 2009).

    comum em suas obras a utilizao de elementos simblicos como a rapadura, que remete ao Ciclo de Acar do qual Salvador era parte. Deste modo, Caetano Dias gera em sua obra a capacidade de estabelecer vnculos semnticos com aqueles que a apreciam ou dela participam. Parente diz que de fato na relao com o pblico que a obra se constri e se configura como espao de convvio. Sobre a obra Cristo de Rapadura, ele diz que:

    Em algumas tradies esotricas de leitura das sagradas escrituras, h muitos sbios que defendem a ideia de que a Bblia teria sido criada para cada um de seus leitores. Isso nos faz pensar na obra de Caetano. Comer o corpo de Cristo pode ser parte de um processo coletivo de participao de uma obra de arte, como pode ser um gesto renovado de comunho. (Parente, 2007)

    Para Bousso, as obras iconoclastas de Caetano Dias beiram a abjeo, porm, no seria essa a inteno. Os significados das obras transitam entre a construo e a desconstruo, criando um antagonismo proposital que visa subverter ordens e regras pr-estabelecidas. Suas obras costumam

    Figura 9. Dias, C. (2007). Cristo de Rapadura. Exhibited at the Bienal de Valncia, Valncia, Espanha. Fotografia: Kboco e Melim.

    Figura 10. Dias, C. (2004). Da obra Cristo de Rapadura (Detalhe).

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    apresentar a imagem religiosa em um patamar mais humano, aproximando sagrado e profano. Nessa interseco, transparece a tentativa de reduzir a culpa, situada entre o desejo e a proibio. O artista subtrai para neutralizar uma pulso de morte. Na era crist, a aluso negao do corpo revela um desejo de reafirm-lo (Bousso, 2009).

    Outro artista da segunda gerao afro-brasileira Jos Eustquio Neves de Paula, nascido em 1955, em Minas Gerais, na cidade de Juatuba. Eustquio Neves, como conhecido, abandonou a carreira de qumico industrial para dedicar-se a fotografia e aprendeu sozinho essa linguagem, destacando-se nessa rea com criatividade e ousadia. A qumica continuaria a lhe servir entre experimentos, manipulaes e emulses (Arajo, 2006, p. 298).

    Parte da magia presente no trabalho de Eustquio Neves provm de sua capacidade de sobrepor smbolos e camadas em imagens complexas, conferindo profundidade sua fotografia. A estratgia tica utilizada provoca uma introspeco para dentro da imagem. Segundo Chiodetto (2009), esta uma forma eficaz de trair a letargia dos olhos do homem contemporneo, fustigados pelo excesso de imagens e, ao mesmo tempo, excitar a ris e a percepo para novas possibilidades de abordagem.

    O trabalho de Eustquio Neves pode ser vinculado ao conceito contemporneo de fotografia expandida (experimental, hbrida, manipulada). Neste sentido, a srie Arturos (Figuras 11 e 12), desenvolvida entre 1993 e 1996, exemplifica uma esttica peculiar, onde diferentes processos criativos so utilizados para representar uma comunidade, e com ela, seus significados histricos e culturais. A partir do trabalho realizado na comunidade religiosa de Arturos, em Contagem, Minas Gerais, Eustquio Neves chama a ateno para uma identidade tnico-racial, retomando memrias do passado colonial e fazendo, deste modo, uma homenagem cultura africana do Brasil. SantAnna (2007) explica que a histria de Arturos se relaciona ao perodo da escravido e ao sentimento de pertena, que se mantm na comunidade. Ela conta que: Esse sentimento garantiu ao negro, quando oprimido e humilhado no passado, resistir culturalmente explorao estrangeira, mantendo viva sua representao simblica, seu ritual religioso, e sua ligao com a frica (p. 2).

    Figura 12. Neves, E. (1993-94b). Srie Arturos. [Fotografia]. Minas Gerais, Brasil.Figura 11. Neves, E. (1993-94a). Srie Arturos. [Fotografia]. Minas Gerais, Brasil.

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    Outra caracterstica que pode ser observada no trabalho de Eustquio Neves a referncia que faz a signos e smbolos presentes na arte barroca. SantAnna diz que a aluso a esse estilo pode ser confirmada a partir da explicao dada por ele sobre sua tentativa de comprometimento com a realidade, sem contudo, tentar control-la. Alm disso, como diz SantAnna (2007): Suas imagens so assimtricas, irregulares, com molduras em detalhes curvilneos e capazes de causar um estranhamento ao espectador ( p. 8).

    Por fim, o ltimo artista escolhido aqui para representar a segunda gerao afro-brasileira da arte Ayrson Herclito. Nascido em Macabas, Bahia, no ano de 1968, Ayrson Herclito artista multimdia de formao universitria. Suas instalaes e performances tratam conceitualmente e visualmente do candombl e do sincretismo afro-brasileiro. Muitas vezes incorpora em seu trabalho elementos culinrios com significados religiosos e regionais da Bahia, fazendo aluso a relao transnacional frica-Brasil por meio de smbolos como leo de palma, acar e carne seca, dentre outros.

    Cleveland (2013) sugere que apesar de altamente envolvido na religio afro-brasileira, Ayrson Herclito bastante cuidadoso sobre o rtulo de arte afro-brasileira no que diz respeito sua prpria identidade artstica. Suas obras apresentam-se sob um novo ponto de vista, onde a cultura africana se manifesta, porm, sem aludir significantes regionais estigmatizados, comumente atribudos arte e cultura negra da Bahia (pp. 110-127).

    Danillo Barata (2012), artista e parceiro em muitos trabalhos, diz que a potica utilizada pelos dois baseia-se em cones religiosos, na cultura de massas e no mito de baianidade. Sobre o sincretismo presente no seu trabalho, que pode ser estendido obra de Herclito, Barata diz que o corpo histrico, fruto das transformaes culturais e estticas fomenta a relao entre homem e divindade. A religio une natureza e corpo abrindo passagem ao sagrado, por isso ele acredita nas dinmicas contemporneas que abarcam o sincretismo (p. 208).

    Na performance Bori (2009) Ayrson Herclito cria um ritual inspirado no ato religioso de ofertar comidas aos orixs (Figuras 13 e 14). Bori deriva da fuso entre b, que significa oferenda, em Iorub, e ori, que quer dizer cabea. Bori significa, portanto, oferenda cabea. Na performance, Ayrson Herclito oferece comidas s cabeas de doze performers, que representam os doze principais orixs do candombl. Para ele: Dar comida para a cabea nutrir a nossa alma.

    Figura 13. Herclito, A. (2009). Bori. [Performance]. Belo Horizonte, Brasil. Fotografa: Marcelo Tera Nada.

    Figura 14. Herclito, A. (2011). Bori MIP2. [Performance]. Bruxelas, Blgica.

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    Alimentar a cabea com comidas para os deuses evocar proteo (Herclito, 2006). O artista ainda explica que todos os elementos que so oferecidos, traduzem desejos de sade, paz, prosperidade, amor, riqueza e longevidade, entre outros, e que cada pessoa teria seu prprio ori, principio individual que nos confere singularidade. Sobre a escolha dos elementos que utiliza em suas obras e performances, Ayrson Herclito explica que:

    Sempre foi do meu interesse trabalhar com materiais intermedirios, ou seja, a matria em estado bruto matria para reflexo. Intermedirios, porque esto em constante estado de transformao pelo seu carter fsico ou simblico. Materiais que promovessem uma associao direta com determinada temtica e, ao mesmo tempo, provocassem uma ampliao de diversas outras interpretaes. Constatei que alguns materiais poderiam ser interpretados de forma hegemnica por diversos grupos sociais locais, como por exemplo, os materiais utilizados nos rituais e na culinria afro-baiana. Seguindo o caminho traado por Beuys quero atingir a methexis a expresso concreta de uma ideia ou espiritualidade. O Azeite de dend um deles. Simultaneamente, promovo uma decodificao e uma nova forma de absoro de seu significado usual. (Herclito, 2006).

    O presente artigo no pretende esgotar ou superficializar o tema ou seus representantes artsticos, mas ao contrrio, aproveitar o espao e a visibilidade internacional para apresentar e exemplificar, mesmo que breve, importantes referncias estticas na histria cultural do Brasil. O tema sincretismo religioso na arte afro-brasileira, pretende provocar uma discusso no findada no Brasil, sobre sua prpria brasilidade. preciso aproveitar lacunas, divulgar e apresentar os expoentes da arte e da cultura negra brasileiras, que fora tantas vezes ignorada e descreditada.

    O prprio Brasil ainda no conhece [ou reconhece] a beleza e a complexidade de sua cultura, explicitada na mistura cultural e no sincretismo religioso. Como diria Abdias Nascimento (1950): Uma arte brasileira, para ser autntica precisa incorporar o cnon negro que permeou nossa formao desde os primeiros dias. A partir disto, fica aqui o desejo de contribuir para o reconhecimento de uma raa que, adaptando-se realidade do sincretismo, construiu e enriqueceu a cultura brasileira. Que a poesia seja capaz de unir mundos, raas, crenas, mente e esprito. Que a arte possa sensibilizar e transformar. Que os povos sejam complacentes entre si. Oxal. Amm.

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    Carvalho,

    Cleveland,

    Dias, C.

    Dias, C.

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    Herclito, A. Herclito, A.

    Herclito, A.

    Herkenhoff,

    Chiodetto, E.

    Kern, D.

    Lima,

    Lhning, A.

    Mestre Didi

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    Santos,

    Silva,

    Teogona

    Valentim, R.

    Mestre Didi

    Mestre

    Mestre

    Morais, F.

    Moura,

    Nascimento,

    Neves, E.

    Neves, E.

    Parente, A.

    SantAnna,

    Santaella, L.

    Mosquera, G.

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    Valentim, R.

    Verger, P.

    Renata Homem

    Doutoranda e bolsista (Capes) do Curso de Teoria e Histria da Arte da Universidade de Braslia (2014), mestre em Arte e Tecnologia (2011) e Licenciada em Artes Visuais pela mesma Universidade (2006). Possui formao complementar em cinema e cenografia. Desde de a graduao participa de congressos e eventos artsticos e culturais. J participou de performances e exposies coletivas. Possui artigos acadmicos sobre diversos temas, dentre eles Nanoarte, Arte e Espiritualidade.