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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Setor de Pós-Graduação Renato Corrales Nogueira A noção de obrigatoriedade na relação entre homens e Orixás no Candomblé MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS SÃO PAULO 2009

Renato Corrales Nogueira A noção de obrigatoriedade na ... Corrales... · matriz africana, especificamente no candomblé Ketu. Após a análise do pensamento de Mauss em relação

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Setor de Pós-Graduação

Renato Corrales Nogueira

A noção de obrigatoriedade na relação entre homens e Orixás no Candomblé

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

SÃO PAULO 2009

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Setor de Pós-Graduação

Renato Corrales Nogueira

A noção de obrigatoriedade na relação entre homens e Orixás no Candomblé

MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais sob a orientação do Profª Doutora Josildeth Gomes Consorte.

SÃO PAULO 2009

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BANCA EXAMINADORA _____________________________ _____________________________ _____________________________

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Dedicatória Para Fabíola...

pelo amor incondicional que tornou possível esta jornada.

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AGRADECIMENTOS

À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e ao Programa

de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais, que através de seus

professores nos possibilitaram um ensino de qualidade, mostrando

novas perspectivas para as Ciências Sociais.

À minha orientadora Profª Drª Josildeth Gomes Consorte que

conduziu-me no caminho da pesquisa e me demonstrou que é

perfeitamente possível unir rigor científico com afetuosidade. A amiga

de longa data Maria Carolina de Godoy, que em momentos difíceis

durante a realização desse trabalho, me transmitiu a experiência e o

apoio que foram fundamentais para a sua concretização. Ao Professor

Dr. Dagoberto José Fonseca que me encaminhou para a realização

deste projeto. Aos membros da banca de qualificação que com suas

presenças, contribuíram de modo singular para o aprimoramento desse

trabalho.

Enfim, a todas as forças espirituais e pessoas que colaboraram,

direta ou indiretamente para a realização e conclusão deste trabalho

minha profunda gratidão, reconhecimento e respeito.

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“Os orixás alegram-se e sofrem, vencem e

perdem, conquistam e são conquistados,

amam e odeiam. Os humanos são apenas

cópias esmaecidas dos orixás dos quais

descendem” (REGINALDO PRANDI)

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RESUMO

Este estudo tem como objetivo analisar a questão da obrigatoriedade nas relações

entre os homens e os deuses, mais especificamente nas relações intercambiais

entre os homens e os Orixás nas estruturas religiosas de matriz africana,

especificamente no candomblé. Utilizaremos como referencial teórico

principalmente a obra de Marcel Mauss “Ensaio Sobre a Dádiva” sobre a relação

entre o dar, receber e retribuir, ou seja, sobre a questão da obrigatoriedade nestas

relações de troca presentes nas sociedades primitivas estudadas pelo autor, de

onde partiremos para a análise de sua importância para a existência das relações e

alianças nas estruturas religiosas do Candomblé. Em seguida faremos uma análise

das narrativas, presentes na mitologia dos Orixás, procurando nelas identificar e

comprovar esse caráter de obrigatoriedade acima mencionado. Ainda discutiremos

que esta noção de obrigatoriedade pode ser uma conseqüência da ancestralidade

presente no Candomblé. A noção de obrigatoriedade ainda será analisada no

cotidiano das relações com os orixás na prática do candomblé.

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ABSTRACT This report aims to analyze the question of the obligation in the relations between

men and gods specially in the interchange relation between men and Deities on

religious structures of African matrix, specially on Candomblé. In this analysis

will be used as a theorical reference the Marcel Mauss´work “Essays on the

donation” to make the relation with the giving, receiving and the reciprocating, it

means, the question of the obligation in these relations of exchange present in

primitive societies studied by the author as well as the importance they have to the

existence of relations and alliance in religious structures of Candomblé. Next, it

will be done an analyze of the narratives present in the Deities mythology trying

to identify and prove this notion of obligation said before, and finally it will be

discussed that this obligation can be consequence of the ancestry notion presents

on Candomblé. This obligation will anallize in the vision of the people in practice

of the relacionship with Orixás on the structure of the Candomblé.

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10 1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS .................................................................. 14 1.1 A noção de obrigatoriedade segundo Marcel Mauss ..................................... 15 1.2 Maurice Godelier e a "quarta obrigação" ....................................................... 29 2 A NOÇÃO DE OBRIGATORIEDADE NA MITOLOGIA AFRICANA.. 33 2.1 Importância do mito: aspectos gerais ............................................................. 33 2.2 O mito nas religiões africanas ........................................................................ 41 2.3 Análise da obrigatoriedade nos mitos africanos ............................................. 46 2.4 Considerações finais sobre mitologia e as narrativas selecionadas................ 68 3 ANCESTRALIDADE E OBRIGATORIEDADE ........................................ 70 3.1 Noção de familia no Candomblé .................................................................... 70 3.2 Ancestralidade e hereditariedade.................................................................... 72 3.2.1 Os orixás e os Eguns.................................................................................... 76 3.3 A Obrigatoriedade vinculada ao Axé............................................................ 80 4 A OBRIGATORIEDADE NA VISÃO DOS PARTICIPANTES E CLIENTES DO CANDOMBLE........................................................................ 84 4.1 O local do estudo............................................................................................ 86 4.2 Entrevistas....................................................................................................... 86 4.2.1 Entrevista com o Zelador............................................................................ 87 4.2.2 Entrevistas com outros participantes........................................................... 91 4.2.3 Entrevistas com os clientes......................................................................... 93 4.3 Considerações finais sobre o estudo de campo.............................................. 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................ 98 GLOSSÁRIO..................................................................................................... 101 REFERÊNCIAS............................................................................................... 110 ANEXOS........................................................................................................... 113

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INTRODUÇÃO

No início do processo de seleção para o mestrado do Programa de Estudos

Pós-graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, nosso projeto de estudo, visava trabalhar com a questão de gênero dentro

da estrutura religiosa do Candomblé, mais especificamente com a possibilidade da

ascensão feminina na liderança religiosa, até os mais elevados escalões. Esse

trabalho seria desenvolvido tendo como referencial a nação de Ketu.

Por sugestão da Profª Drª Josildeth Gomes Consorte, o foco inicial foi

desviado para um estudo direcionado em relação à nação de Angola, em virtude

da escassez de estudos relacionados ás estruturas religiosas dos Candomblés de

Angola.

Após o início das atividades, que envolviam algumas leituras específicas

em relação ao tema, levantamento bibliográfico entre outras, foi constatada a falta

de material para o desenvolvimento da referida pesquisa, o que traria dificuldades

para a sua realização, então retornamos à nação Ketu em busca de um outro tema.

Ao iniciarmos o cumprimento dos créditos exigidos pelo referido

programa, no segundo semestre de 2005, participamos da disciplina ministrada

pela Profª Drª Josildeth: Sobre o Dom e o Sacrifício, onde pudemos ter contato

com a obra do antropólogo e sociólogo francês Marcel Mauss (1987-1950).

Com o desenrolar da disciplina, através da leitura mais aprofundada do

Ensaio Sobre a Dádiva, começamos a perceber a dimensão das questões

relacionadas aos temas dar, receber e retribuir presente nas relações de trocas

entre as sociedades estudadas pelo autor, e a importância que elas têm para a

compreensão das relações e alianças nas estruturas religiosas do Candomblé.

Com o aprofundamento das discussões, percebemos uma possível relação

entre a teoria de Mauss e as estruturas presentes nas religiões de origem africana,

como o Candomblé. Dada a necessidade da delimitação do objeto de estudo,

direcionamos o foco analítico para a questão da obrigatoriedade presente nos atos

de dar, receber e retribuir, no âmbito do Candomblé de nação Ketu, observando

essa obrigatoriedade na relação de trocas entre os homens e os Orixás.

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Como passo inicial, realizamos um levantamento bibliográfico nas

principais bibliotecas das Universidades do Estado de São Paulo, entre elas as da

Unesp – Araraquara, UFSCar em São Carlos, Unicamp, USP e PUC-SP, além de

recorrer aos bancos de dados da Capes e demais referenciais de consultas,

disponibilizados através da internet. Não encontrando nenhum estudo relacionado

ao Candomblé que utilizasse Marcel Mauss como base teórica. Realmente é difícil

saber o que justificaria o pouco uso da teoria de Mauss nos estudos relacionados

às religiões africanas. Claude Lévi-Strauss, na Introdução à obra de Marcel Mauss

já enunciava:

[...] poucos pensamentos permaneceram tão esotéricos e poucos, ao mesmo tempo, exerceram uma influência tão profunda quanto o de Marcel Mauss. Esse pensamento às vezes opaco por sua densidade mesma, mas inteiramente atravessado de cintilações, esses caminhos tortuosos que pareciam se perder no momento em que o mais inesperado dos itinerários conduzia ao núcleo dos problemas, somente aqueles que conheceram e escutaram o homem podem apreciar plenamente sua fecundidade e fazer o balanço da dívida em relação à ele.” (Levi-Strauss, p. 11, 2003)

Talvez pela complexidade e pela diversidade desses caminhos, ou mesmo

pela falta de seqüência e de organização didática em sua obra, a sua utilização seja

reduzida, o que sem dúvida, gera uma “dívida” em relação às suas contribuições e

à qualidade de seus ensinamentos.

Esse fato nos estimulou a prosseguir com o nosso projeto, pela

originalidade do tema e possibilidades que o estudo poderia abrir para trabalhos

posteriores, porém conscientes da dificuldade para o desenvolvimento da pesquisa

em função da escassez de material de apoio.

Essa jornada só foi possível pela orientação cuidadosa e conhecimento da

Profª Josildeth acerca de Marcel Mauss. Através de diversas leituras, foi possível

a partir do Ensaio Sobre a Dádiva, perceber a importância que esse caráter de

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obrigatoriedade assume para a manutenção das estruturas sociais, presentes no

candomblé.

Em relação ao objeto de estudo, essa relação de troca entre os homens e os

Orixás consistiria basicamente em, de um lado os homens ofertando sacrifícios e

outros rituais de homenagens aos Deuses africanos, e de outro lado na retribuição

destes Deuses, em forma de prosperidade, saúde e tudo mais o que lhes for

solicitado. Essas relações de trocas resultam no cumprimento das chamadas

“obrigações”1, sem o que ocorreria a quebra da harmonia com as divindades,

acarretando graves conseqüências.

O foco de nossa análise não se deteve nessa relação de trocas, mas sim na

obrigatoriedade dessas relações. Importantes estudos já foram desenvolvidos em

relação a essas trocas em trabalhos como O Candomblé da Bahia de Roger

Bastide, Orixás e Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns de Pierre Fatumbi

Verger, Candomblés da Bahia de Edison Carneiro, Os Nagô e a Morte, de Juana

Elbein dos Santos entre outros. Diante do exposto, levantamos duas hipóteses, não

excludentes em relação ao fato: Seria essa estrutura de relação de trocas,

obrigatória para a manutenção do sistema religioso, conseqüência de uma aliança

firmada entre os homens e os Orixás? Ou existiria uma estrutura hereditária,

baseada em relações de ancestralidade, e neste caso as relações de trocas

existiriam para “quitar” uma dívida contraída com nossos ancestrais?

Assim sendo, o objetivo do presente estudo é analisar a relação de

obrigatoriedade nas relações entre os homens e os deuses, mais especificamente

nas relações intercambiais entre os homens e os Orixás nas estruturas religiosas de

matriz africana, especificamente no candomblé Ketu.

Após a análise do pensamento de Mauss em relação aos dons, mais

especificamente em relação às questões envolvidas entre o dar, receber e retribuir,

1 Nome dado aos sacrifícios, oferendas e festas realizadas em homenagem aos Orixás.

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percebemos que a questão da obrigatoriedade, mesmo que implicitamente, está

presente nestas relações.

Neste sentido, levaremos em conta a perspectiva de Mauss em relação à

essa obrigatoriedade, observando também a questão da “quarta obrigação”

levantada pelo autor, porém trabalhada de maneira mais detalhada pelo

antropólogo francês Maurice Godelier (1934 - ), segundo o qual quarta

obrigação consiste em "[...] fazer dons aos deuses, assim como aos homens que

representam os deuses”. (GODELIER, 2001, p.49)

De início, é bom ressaltarmos o fato de que na relação homem-orixá não se

faz presente um equilíbrio na questão da obrigatoriedade, ou seja, existem pesos

diferentes, estando os orixás em posição privilegiada nessa relação.

Propomo-nos assim a investigar se essas relações de trocas na aparência

voluntárias estão vinculadas a uma obrigatoriedade mais profunda, uma dívida

que se transforma em um dever. Aparentemente, as relações entre os homens e os

Orixás no candomblé apresentam um caráter de dívida que se sobrepõe ao

voluntariado dentro dessas relações. Para comprovar ou infirmar essas hipóteses,

utilizaremos quatro linhas de investigação:

A primeira visa buscar um referencial teórico que discuta a troca entre

sociedades não ocidentais e a questão da obrigatoriedade nestas relações de troca;

a segunda buscará através da seleção e análise das narrativas, presentes na

mitologia dos Orixás, identificar e comprovar esse caráter de obrigatoriedade

acima mencionado; a terceira está baseada na questão da ancestralidade, em que

através de alguns estudos selecionados, buscaremos localizar elementos que

possam demonstrar essa obrigatoriedade, e finalmente através do estudo de

campo, buscaremos perceber qual visão as pessoas ligadas diretamente ao

Candomblé possuem em relação à questão da obrigatoriedade.

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1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

Misturam-se as almas nas coisas; misturam-se as coisas nas almas. Misturam-se as vidas e eis como as pessoas e as coisas misturadas saem, cada uma, das suas esferas e se misturam: o que é precisamente o contrato e a troca. (MARCEL MAUSS)

O antropólogo e filósofo francês Claude Lévi-Strauss afirma na introdução

à obra de Marcel Mauss (2003), que sem dúvida o Ensaio sobre a dádiva2, é a

obra prima do autor, devido à sua completa originalidade, bem como às novas

perspectivas surgidas a partir de seus pensamentos.

Devido à complexidade dos fenômenos sociais abordados pelo autor, não é

uma tarefa das mais fáceis escolher um ângulo específico para desenvolver a

análise, mas um elemento merece destaque especial: a questão da obrigatoriedade

na retribuição daquilo que se recebeu.

Este capítulo terá por objetivo levantar elementos presentes no Ensaio

sobre a dádiva que demonstrem a postura do autor no que se refere à

obrigatoriedade nas relações que envolvem as prestações totais: dar, receber e

retribuir bem como a importância da mesma na manutenção da ordem social

estabelecida.

“Na civilização escandinava e em muitas outras, as trocas e os contratos se fazem sob a forma de presentes, em teoria,

2 O Ensaio foi publicado em 1925, no primeiro tomo da segunda série da Année Sociologique, nele Marcel Mauss apresenta-nos um estudo do fenômeno da dádiva entre os indígenas das Ilhas Trobriand e os índios da América do Norte.

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voluntários, na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos” (MAUSS, 2003, p.187)

1.1 A noção de obrigatoriedade segundo Marcel Mauss

Na frase inicial do ensaio, já fica explícita a questão aqui proposta em

relação à obrigatoriedade das retribuições dentro das relações sociais. Podemos

perceber a grande importância dedicada ao tema, que é recorrentemente levantado

pelo autor buscando analisar o fenômeno da dádiva como um fato social total,

envolvendo as esferas econômicas, política, social e religiosa e estendendo-se à

questão da moral do prestígio e do poder.

De acordo com sua análise, no seguinte trecho, podemos observar a

dimensão desses fatos sociais totais:

Em primeiro lugar, não são indivíduos, são coletividades que se obrigam mutuamente, trocam e contratam; as famílias presentes ao contrato são pessoas morais: clãs, tribos, famílias, que se enfrentam e se opõem, seja em grupos frente a frente num terreno, seja por intermédio de seus chefes, seja ainda dessas duas maneiras ao mesmo tempo. Ademais o que eles trocam não são exclusivamente bens e riquezas, bens móveis e imóveis, coisas úteis economicamente. São antes de tudo amabilidades, banquetes, ritos, serviços militares, mulheres, crianças, danças, festas, feiras, dos quais o mercado é apenas um dos momentos, e nos quais a circulação de riquezas é senão um dos termos de um contrato bem mais geral e bem mais permanente. Enfim, essas prestações e contraprestações se estabelecem de uma forma sobretudo voluntária, por meio de regalos, presentes, embora elas sejam no fundo rigorosamente obrigatórias, sob pena de guerra privada ou pública. Propusemos chamar isso tudo o sistema de prestações totais. (MAUSS, 2003, p.190-191)

Observamos claramente o objetivo do autor em ressaltar a questão da

dádiva como um elemento que envolve a totalidade dos elementos sociais, indo

muito além da simples esfera econômica. Podemos remeter este ponto também à

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relação de troca entre homens e orixás, pois assim como na análise de Mauss

também no Candomblé as trocas ultrapassam o âmbito econômico, também as

trocas não se fazem por coisas úteis economicamente, mas sim por elementos

subjetivas.

Dentro dessa totalidade, o elemento obrigatoriedade aparece como fator

preponderante e central na análise. A ausência dessas relações pode implicar na

quebra de toda a harmonia presente nas relações sociais, “embora elas sejam no

fundo rigorosamente obrigatórias sob pena de guerra privada ou pública”.

(MAUSS, 2003, p.191)

Para demonstrar esse elemento da obrigatoriedade, Mauss irá percorrer

vários caminhos, tomando como exemplos sociedades diversificada como por

exemplo: a Índia, a China, a Oceania, os celtas e os índios do noroeste americano,

buscando, através da comparação uma linearidade entre os elementos, que venha

justificar e legitimar a sua posição em relação ao tema.

O autor em sua pesquisa introduz o conceito de fato social total que

envolve vários aspectos dentro da mesma sociedade englobando: política, moral,

religião, etc. Assim, Mauss procura entender a troca como fato social total, que

deve ser supra-individual mesmo que às vezes trabalhe os aspectos psicológicos o

faz apenas para tornar o sociológico mais abrangente.

Mauss, analisa as sociedades primitivas, onde o fato social total se da de

forma mais explícita já que tudo aparenta estar funcionalmente integrado. Busca

as formas elementares da troca e pensa em seu significado na medida em que elas

constituem ocerne da sociedade.

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Essa troca resulta no sistema de prestações totais, desdobramentos dos

fatos sociais totais, onde há a idéia de que há uma troca marcando certa

regularidade, exige-se a retribuição. Exemplos: tonga e oloa . – bens que são

espécies de talismãs; e o hau - idéia da crença espiritual na qualidade de objetos.

A troca envolve além do aspecto humano, aspectos religiosos, embora

não seja em todo caso. Mas quando há, pode-se fazer trocas estabelecidas com o

plano sagrado: deuses – sacrifício.

Neste sentido, o dar envolve a obrigação de receber, implicando num

círculo amplo de obrigações.

Uma prática de troca observada em tribos do noroeste americano é um

tipo de troca onde existe uma destruição sacrificial, denomina-se potlatch. Dentro

do evolucionismo isto é considerado irracional. Mauss, porém o vê como uma

forma arcaica de troca. É uma destruição sacrificial a partir da lógica da

reciprocidade. É dotado de uma lógica interna, porém agressiva não havendo

doação direta de objetos. Envolve conflitos pela própria natureza do ritual, e ainda

pela obrigatoriedade de se retribuir ainda que não se tenha condições para isso.

O potlatch acontecia em festas que ocorriam durante o inverno, ocasião em

que as tribos desenvolviam atividades que envolviam o todo social nas suas mais

variadas esferas, além da comercial, evidentemente, configurando uma disputa de

poder, demonstração de riqueza, força entre outros elementos. Esse tipo de

prestação pode ser considerada um tipo agonístico, pois se chegava ao extremo da

destruição de alimentos, de bens e de riquezas variadas como expressão de poder.

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Outro exemplo de troca ocorre entre os nativos das ilhas Trobriand, se

constitui no Kula3. Mas antes de falarmos sobre este sistema de trocas, faz-se

necessário entendermos de modo resumido a lógica social destas aldeias. Para

tanto, faremos uma descrição resumida da mesma:

Nas ilhas Trobriand, a aldeia é, sociologicamente, uma unidade importante.

O nativo de Trobriand é guiado não pelo desejo de satisfazer suas necessidades

vitais, mas sim por um complexo sistema de deveres e obrigações de força

tradicionais, crenças mágicas, ambições, sociais e vaidade.

Os chefes exercem autoridade sobre a sua própria aldeia. Sua posição combina

em si duas instituições, primeiro a da liberdade ou da autoridade da aldeia,

segundo a chefia dos clãs totêmicos, ou seja, a divisão da comunidade em classes

com uma hierarquia definida. O líder da aldeia é um pouco mais que um mestre de

cerimônias, o orador ou porta voz de sua comunidade.

Existem na ilha quatro clãs totêmicos divididos em subclãs (famílias ou

castas) cada uma reivindica descendência comum de uma ancestral feminina e

ocupa uma posição hierarquia determinada e específica.

Todas as atividades econômicas são pautadas na magia, o que significa que as

crenças relativas a feitiçaria são bastante complexas. Sendo assim, a feitiçaria é

um dos meios utilizados para manter a ordem estabelecida tendo em vista que

atribuem todas as enfermidades ou mortes à magia negra, à feitiçaria.

As instituições políticas nativas são essenciais ao kula. Todos os aspectos da

vida nativa estão interrelacionados e fundamentados por uma organização social. 3 “O kula é uma espécie de grande potlatch; veiculando um grande comércio intertribal, estende-se sobre todas as ilhas Trobriand, sobre uma parte das linhas de Entrecasteaux e das ilhas Amphlett.” (MAUSS, 2003, p.88)

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As ilhas Trobriand formam uma unidade cultural e lingüística, obedecem às

mesmas leis, estão sob a influência das mesmas crenças e convenções.

Em relação às características essenciais do kula, sabemos que é um sistema

de troca e tem um caráter intertribal amplo. Consiste numa série de expedições

marítimas periódicas que vinculam diversas comunidades localizadas num

extenso círculo de ilhas que formam um circuito fechado. As trocas ocorrem

anualmente e consistem em trazer de um distrito para outro, grande quantidade de

objetos de comércio subsidiários bem como colares e braceletes, os primeiros são

utilizados e consumidos e os segundos movem-se constantemente no circuito.

Mais especificamente, ocorre da seguinte forma:

Ao longo da rota dois tipos de artigos viajam constantemente em direções

opostas: no sentido horário longos colares feitos de conchas vermelhas

denominados soulava; no sentido oposto-se braceletes feitos de conchas brancas,

chamados nwali: essa troca cerimonial é o aspecto fundamental e central do kula.

Cada movimento é fixado e regulado por uma série de regras e convenções

tradicionais, alguns acompanhados de elaboradas cerimônias públicas e rituais

mágicos.

Como a troca se realiza entre distritos diferentes e separados pelo mar, é

preciso preparativos para a expedição, tais como organização social do

empreendimento. Por meio do Kula resulta um comércio secundário, pois os

navegadores retornam do kula carregados com produtos que são distribuídos ao

parceiro em forma de presente. Ou seja, esta troca vincula grande número de

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tribos e abarca enorme conjunto de atividades interrelacionadas e

interdependentes de modo a formar um todo orgânico.

O kula, a sua forma essencial, não é mais do que um momento, o mais solene, de um vasto sistema de prestações e de contraperestações que, em verdade, parece englobar a totalidade da vida econômica e civil das Trobriand. (MAUSS, ..., p.94)

O kula não é um simples comércio primitivo, mas está enraizado em

mitos, sustentado pelas leis da tradição e cercado por rituais mágicos com

transações públicas em locais fixos. É um relacionamento intertribal feito em

grande escala. O mecanismo econômico impõe confiança mútua e honra

comercial. A troca, assim como no potlatch, não é realizada para suprir

necessidades materiais, seu objetivo é o de permuta de artigos que não tem

utilidade prática.

Além do kula tornar-se alicerce de uma grande instituição intertribal

associada a outras atividades, os mitos, a magia e a tradição do kula criaram nos

nativos enorme paixão por essa simples troca de braceletes pelos colares,

representando para eles um dos interesses mais vitais de sua existência.

Esses braceletes e colares são muitas vezes considerados feios e

incômodos para serem freqüentemente usados, mas são valiosos pelo seu valor

histórico e encerram uma espécie de história ou romance nas tradições dos

nativos. Os objetos do kula são de posse temporária.

Porém, nem todos os nativos poder participar do kula a troca é feita entre

parceiros, possui apenas um número limitado de pessoas com quem pode negociar

variando com a posição social.

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Ao trocar objetos do kula trocam também outros presentes, comportam-se

como amigos, unem-se numa relação permanente de troca de presentes e muitas

vezes de prestação de serviços.

Pode-se realizar o kula com amigos próximos e alguns aliados em distritos

distantes. Com estas trocas, não só objetos materiais viajam ao longo das rotas do

kula, mas também costumes e influências culturais gerais. Resulta num vasto

encadeamento de relações intertribais numa grande instituição que incorpora

muitas pessoas unidas por uma paixão comum pelas transações do kula. Deve-se

obedecer as leis específicas quanto ao sentido geográfico de suas transações.

Os objetos ficam determinado tempo com os mesmos nativos, por volta de um

ou dois anos. Devem então ser trocados, pois senão esses indivíduos serão vistos

como mesquinhos, quebrando o princípio da retribuição. O êxito no kula é

atribuído a poderes individuais especiais, obtidos através da magia.

Tendo recebido um presente kula deve dar-se em troca um presente de igual

valor, segundo Mauss, o código social das leis que regulam o dar e receber

suplanta sua tendência aquisitiva natural.

Para os nativos do kula, possuir é dar, pois, se a riqueza é o principal indício

de poder, generosidade constitui-se um sinal de riqueza. O princípio da bondade

faz com o indivíduo contribua com sua justa parte nas transações do kula e quanto

mais importante ele for mais deseja sobressair-se por sua generosidade. O que

passa a ser uma norma social que regula sua conduta. O indivíduo generoso atrai

pra si maiores transações do que aqueles considerados mesquinhos.

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Há dois princípios que pautam o kula: primeiro – o kula não é escambo e

sim uma troca cerimonial em que um presente retribuído após algum tempo por

meio de um contra-presente; segundo – cabe ao doador estabelecer a equivalência

do contra-presente que não pode ser imposto nem deixar de ser aceito.

O elemento presente na obrigatoriedade da retribuição dentro dessas

prestações é o fato de que, na troca entre as tribos, a retribuição do que foi

recebido durante no Kula, devia ser sempre maior e mais imponente do que aquilo

que foi recebido, como sinal de supremacia. Uma retribuição não realizada à

altura do que foi recebido seria o mesmo que assinar uma declaração de

inferioridade de uma tribo em relação à outra, da mesma forma que representaria a

quebra do poder, da autoridade, da força espiritual e da moral do governante em

relação ao seu povo.

A seguir dois elementos essenciais do potlatch propriamente dito são nitidamente atestados: o da honra, do prestígio, do mana que a riqueza confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob a pena de perder esse mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade.(MAUSS, 2003, p.195)

Estendendo a sua análise, Mauss destaca a questão da obrigatoriedade

também no que se refere ao dar e receber. Percebemos que a obrigatoriedade da

retribuição, dentro de um sistema de prestações totais, é composta por dois outros

elementos igualmente importantes: a obrigação de dar e a obrigação de receber.

Esses elementos envolvem, necessariamente, a questão dos contratos e das

relações estabelecidas entre indivíduos ou entre grupos, havendo assim a

necessidade da interação entre eles para que seja possível a existência harmônica e

pacífica dos indivíduos ou grupos sociais envolvidos.

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Um dos argumentos utilizados por Mauss para explicar a obrigatoriedade

do dar, receber e retribuir, é fornecido através do hau, uma força ou energia que

seria a “alma” das coisas e objetos que é intercambiada nas relações de troca.

Podemos observar esse fato na seguinte passagem:

O hau não é o vento que sopra. De modo nenhum. Suponha que você possua um artigo determinado (taonga) e que me dê esse artigo; você me dá sem preço fixado. Não fazemos negociação a esse respeito. Ora dou esse artigo a uma terceira pessoa, que depois de transcorrido um certo tempo, decide retribuir alguma coisa em pagamento(utu), ele me dá de presente alguma coisa(taonga). Ora esse taonga que ele me dá é o espírito (hau) do taonga que recebi de você e que dei a ela. Os taonga que recebi pelos taonga (vindos de você), é preciso que eu os devolva. Não seria justo(tika) de minha parte guardar esses taongas para mim fossem eles desejáveis (rawe) ou desagradáveis (kino).(MAUSS, 2003, p.198).

Observamos, na citação acima, a idéia de um espírito que anima todos os

objetos que são envolvidos nas relações de trocas, razão pela qual essa troca não

consiste em valores, lucros ou quaisquer outros elementos presentes nas trocas

capitalistas, mas sim num elemento mágico, espiritual, energético que obriga a

movimentação das coisas através de dádivas constantes entre os indivíduos,

possibilitando assim a manutenção das relações.

Mais adiante há uma explicação que mostra claramente o elemento

obrigatoriedade dentro dessas relações: "Devo dá-los de volta, pois são um hau, o

hau do taonga que você me deu. Se eu conservasse esse segundo taonga, poderia

advir-me um mal, seriamente, até mesmo a morte”. (MAUSS, 2003, p.198).

Assim, também sobre o Kula ele descreveu:

[...] O próprio contrato ressente-se dessa natureza dos vaygu´ª Não só as pulseiras e os colares, mas mesmo todos os bens, ornamentos, armas, tudo o que pertence ao companheiro é de tal

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modo animado, pelo menos de sentimentos, se não de alma pessoal, que eles próprios tomam parte no contrato. Uma belíssima fórmula, a do “encantamento da concha”, serve, depôs de serem evocadas, para encantar, para arrastar para o companheiro candidato as coisas que ele deve pedir e receber. (MAUSS,2003, p.191)

Neste sentido, também, “[...] o kula – tal como o potlach do

Noroeste americano – consiste em dar, da parte de uns, e em receber, da parte de

outros, sendo uns donatários de um dia os doadores da vez seguinte. (MAUSS,

p.89).

A relação estabelecida pelo autor entre o "hau" e a idéia de troca explicita

que o não cumprimento da obrigação de “retribuir” um objeto faria com que o seu

hau pudesse até mesmo gerar a morte do indivíduo, estabelecendo um

compromisso, por parte daqueles que receberam os “presentes”, em retribuí-los

sem negligenciar essa obrigação, até mesmo como elemento necessário para a

preservação da sua própria vida.

É importante destacar o fato de que os elementos presentes nessas

relações, dar e receber, também não são voluntários ou facultativos, mesmo

possuindo o aspecto de voluntários. Da mesma maneira que seria um grave erro

não compartilhar, melhor dizendo, recusar-se a dar, também seria uma falha

imperdoável a recusa do recebimento. Tal procedimento poderia acarretar um

conflito e uma quebra da harmonia no sistema e nas relações entre os

indivíduos/grupos: “Recusar a Dar, negligenciar convidar, assim como recusar

receber, equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão”.(MAUSS,

2003, p.201-202).

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Mauss, em relação à questão da obrigatoriedade, também identifica um dos

elementos essenciais para a existência do potlatch. Tentando demonstrar a sua

grande importância, esse elemento da obrigação de dar, receber e retribuir

configura a essência do funcionamento das relações sociais presentes e envolvidas

nessas cerimônias que abarcam todas as dimensões da esfera social, considerada

(o) (a essência ou o potlatch?) como um fato social total. Essa afirmação pode ser

claramente observada no seguinte trecho:

A obrigação de dar é a essência do potlatch. Um chefe deve oferecer vários potlatch, por ele mesmo, por seu filho, seu genro ou sua filha, por seus mortos. Ele só conserva a sua autoridade sobre a sua tribo e a sua aldeia, até mesmo sobre a sua família, só mantém a sua posição entre chefes – nacional e internacionalmente – se prova que é visitado com freqüência e favorecido pelos espíritos e pela fortuna, que é possuído por ela e a que possui; e ele não pode provar essa fortuna a não ser gastando-a, distribuindo-a, humilhando com ela os outros, colocando-os à sombra de seu nome. (MAUSS, 2003, p.243-244)

Ainda nesse sentido, demonstrando a obrigatoriedade, Mauss continua:

Em todas essas sociedades as pessoas se apressam em dar. Não há um instante um pouco além do comum, mesmo fora das solenidades e reuniões de inverno, em que não haja obrigação de convidar os amigos, partilhar com eles os ganhos de caça e de colheita que vem dos Deuses e dos totens; em que não haja obrigação de redistribuir tudo o que vem de um potlatch de que se foi o beneficiário; em que não haja obrigação de reconhecer mediante dádivas, qualquer serviço, os dos chefes, dos vassalos, dos parentes, sob pena, ao menos para os nobres, de violar a etiqueta e perder a sua posição social. (MAUSS, 2003, p.245)

Notamos, claramente, a grande importância que o elemento da partilha, ou

seja, do dar, possui dentro da estrutura do potlatch, a ponto de a capacidade de

liderança, a honra, o respeito e, até mesmo, a governabilidade dos chefes e nobres,

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estarem vinculados a esse elemento, não sendo permitido, sob hipótese alguma,

negligenciar essa obrigatoriedade.

Outro aspecto que pode ser levantado nessa passagem é o fato de que não

basta apenas colocar em prática esses elementos esporadicamente, já que é

necessária a sua utilização freqüente, através de todas as solenidades possíveis, até

mesmo as de menor importância, para que seja possível a demonstração do poder

e da “generosidade” dos líderes em relação àqueles envolvidos em seu grupo

social, conferindo-lhe respeitabilidade e admiração, quer seja dos seus

subordinados, quer seja das tribos e dos clãs vizinhos.

Essa importância vai além das simples fronteiras, sendo responsável

também pela aquisição e manutenção do respeito dentro da região em que esses

grupos ou sociedades estão inseridos. No que diz respeito ao kula, Mauss enfatiza

Finalmente, ao lado ou, se quiser por cima, por baixo, em toda a volta e, em nossa opinião, no fundo, desse sistema do kula interno, o sistema das dádivas trocadas invade toda a vida econômica e tribal moral dos Trobriandeses. Ela está disso “impregnada”, como muito bem diz Malinowski. Ela é um constante “dar e tomar”. Ela é como que atravessada, por uma corrente contínua e em todos os sentidos, por dádivas dadas, recebidas, retribuídas, obrigatoriamente e por interesse, por grandeza e por serviços, em desafios e em apostas. (MAUSS, p.96)

Podemos, ainda, salientar que essas manifestações ou fatos sociais totais,

assim como o potlatch, exigem muito cuidado em sua preparação ou em sua

organização, uma vez que não devem ocorrer erros na sua elaboração como, por

exemplo, deixar de convidar algum chefe importante, ou mesmo não oferecer uma

festa que apresente muita fartura e qualidade. Reside aí o elemento que atribuirá

ao anfitrião a respeitabilidade, a honra e o poder.

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A obrigação de convidar é inteiramente evidente quando se exerce de clã para clã ou de tribo para tribo. Ela só tem sentido mesmo se oferecida a outros que não as pessoas da família, do clã ou da fratria. Deve-se convidar quem pode e consente ou vem assistir à festa, ao potlatch. O esquecimento tem conseqüências funestas. (MAUSS, 2003, p.246)

Não menos importante para a harmonia do contexto social é a obrigação de

receber aquilo que está sendo doado, aceitar os convites que são realizados. Essa

questão é ainda um pouco mais complexa, pois todas as vezes que recebemos

aquilo que nos é oferecido, automaticamente estamos contraindo uma dívida que

deverá ser paga na mesma moeda, e não tão somente nas mesmas proporções, mas

sim um pagamento acrescido de “juros”, ou seja, uma retribuição sempre maior,

demonstrando-se o caráter de disputa e de rivalidade entre as partes envolvidas.

Podemos observar claramente a importância e a obrigatoriedade do

elemento receber, através do pensamento de Mauss em relação ao tema:

A obrigação de receber não é menos constringente. Não se tem o direito de recusar uma dádiva, de recusar o potlatch. Agir assim é manifestar que se teme ter de retribuir, é temer ter que “ficar calado” enquanto não se retribuiu. De fato é já “ficar calado”. É “perder peso” de seu nome; é confessar-se vencido de antemão, ou, ao contrário, em certos casos, proclamar-se vencedor e invencível”.(MAUSS, 2003, p.247-248)

Destacamos, nessa passagem, o grande risco que envolve essas relações.

Apesar de apresentarem um caráter de aparência amistosa, escondem um

verdadeiro turbilhão de elementos que podem levar à total desordem social e

conseqüentemente ao conflito. A recusa em receber aquilo que é oferecido durante

um potlatch, ou mesmo recusar um convite, representa um sinal de arrogância e

de superioridade, o que, sem dúvida, acabará se tornando um forte elemento

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desagregador que, literalmente, poderá gerar conseqüências “funestas”,

prejudiciais a todos os grupos sociais envolvidos na questão.

Toda vez que se recebe algo, está sendo contraída uma dívida, que deverá

ser, obrigatoriamente, paga. Caso esse pagamento não seja consolidado,

automaticamente o devedor estará diminuído perante o grupo social, sendo então

o ato de receber aquilo que foi oferecido um elemento que não pode ser recusado

e constitui-se uma grande responsabilidade que não pode ser negligenciada.

Recebe-se uma dádiva como um “peso nas costas”. Faz-se mais do que se beneficiar de uma coisa de uma festa, aceitou-se um desafio; e pôde-se aceitá-lo porque se tem certeza de retribuir, de provar que não se é desigual”.(MAUSS, 2003, p.248)

Seria redundante buscar mais elementos relacionados ao tema da

obrigatoriedade no pensamento de Mauss. Podemos notar de maneira muito clara

a importância que ele identifica nesse fator, sobretudo, como um elemento que

seja capaz de manter a ordem social estabelecida.

Diante do exposto até aqui, só nos resta efetuar a transposição desse

posicionamento da obrigatoriedade nas relações de troca para a esfera presente nas

relações de trocas entre os homens e os Orixás dentro do Candomblé.

As religiões africanas no Brasil, como é o exemplo do Candomblé,

possuem como uma de suas características essenciais as oferendas, chamadas de

“obrigações” que consistem nos presentes dos homens aos deuses.

A relação entre os homens e os deuses também é abordada por Mauss

(2003) no Ensaio Sobre a Dádiva.

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No seguinte trecho, notamos seu posicionamento em relação às relações de

troca entre os homens e os deuses, em que observaremos nitidamente o seu caráter

de obrigatoriedade:

Um dos primeiros grupos de seres com os quais os homens tiveram de estabelecer contrato, e que por definição estavam aí para contratar com eles, eram os espíritos dos mortos e os Deuses. Com efeito, são os verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo. Com eles é que era mais necessário intercambiar e mais perigoso não intercambiar.”(MAUSS, 2003, p.206)

Há o compromisso que representa o intercâmbio com os Deuses, e com os

espíritos dos mortos, e o grande risco que representaria deixar de lado essa relação

com os espíritos dos mortos. Além de ressaltar o fato de se tratarem dos

“verdadeiros proprietários das coisas e dos bens do mundo”, a frase final deixa

clara a idéia do autor em relação à obrigatoriedade da relação de troca entre os

homens e os deuses, e os perigos implícitos em não realiza-las.

Não há dúvida de que o autor acentua a obrigatoriedade das trocas e das

relações entre os homens e os deuses.

1.2 Maurice Godelier: A quarta obrigação

No que se refere a essa relação entre os homens e os Deuses, no Ensaio

sobre a Dádiva, Marcel Mauss apenas nos fornece algumas indicações. Esse tema

será amplamente desenvolvido por Maurice Godelier no Enigma Sobre o Dom4,

ao

4 Nesta obra o autor demonstra o papel e importância do "Dom" no funcionamento das sociedades e na constituição do laço social. A etnografia que M. Godelier fez dos Baruya da Nova Guiné assume uma perspectiva mais francamente comparativa em relação a outros grupos, melanésios ou

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fazer uma releitura sobre a obra de Mauss.

Para analisar essa questão, Godelier passa a denominar a relação entre os

homens e os Deuses de “quarta obrigação”, complementando a tríade dar, receber

e retribuir.

Segundo ele a quarta obrigação consistiria em "[...] fazer dons aos deuses,

assim como aos homens que representam os deuses”. (GODELIER, 2001, p.49)

Analisando a obra de Mauss, Godelier ressalta a importância dessa prática

para que haja uma aproximação entre dos humanos com os deuses, fazendo com

que esses se tornem generosos para com os humanos, propiciando fartura para a

colheita e para a caça como exemplo.

Em sua análise, o autor assim se reporta à postura de Mauss em relação ao

tema:

Portanto, Mauss inclui aqui, na categoria dos dons, as oferendas feitas aos espíritos e aos deuses, os sacrifícios destinados a solicitar a benevolência ou a agradecer-lhes. Oferendas e sacrifícios são dons feitos aos mortos, aos espíritos e aos deuses.(GODELIER, 2001, p.50)

Um dos dons dedicados aos deuses seria o sacrifício, tema esse abordado

profundamente por Mauss em 1899 em o Ensaio sobre a Natureza e a Função do

Sacrifício, escrito em parceria com Henri Hubert.

Para Godelier, Mauss deixa clara a idéia de que o sacrifício teria a

capacidade de coagir os deuses, fazendo com que esses, retribuam de maneira

superior o que lhes foi ofertado. Além dessas considerações, Godelier ainda

observa que essa prática dos deuses poderia ser considerada como a elevação a um

não, especialmente os kwakiult e trobriandeses, pois explicita uma aproximação com a antropologia de Marcel Mauss.

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grau “supremo” as dádivas, ou seja, uma retribuição(dos deuses) infinitamente

maior em relação ao que lhes foi ofertado.

Nesse sentido, surge uma crítica de Godelier em relação ao pensamento

de Mauss:

É estranho que Mauss, que leva a sério o fato de que em todas as sociedades os deuses e os espíritos dos mortos são os verdadeiros proprietários das coisas, restrinja os dons aos deuses ao sacrifício, isto é, à coação que os homens pretendem exercer sobre os deuses. Ele deveria levar em conta o fato de que os deuses têm liberdade para dar ou não e que os homens abordam os deuses estando já em dívida com eles, pois foi deles que receberam todas as condições da existência. Falta a esta análise a consideração de que os deuses e os espíritos são muito superiores aos homens e que os doadores que são os homens, são já de antemão inferiores aos tomadores, que são os deuses. (GODELIER, 2001, p.51)

Com base nessa análise de Godelier, é possível identificar que a questão da

obrigatoriedade na relação entre os homens e os deuses, não acontece em duas

vias, com as mesmas regrasm, uma vez que aos deuses sim, é facultativo a

retribuição mediante as oferendas e sacrifícios realizados pelos homens.

Em sentido contrário, aos homens não é facultativa essa retribuição,

partindo do pressuposto de que estes já estão em débito perante os deuses, e ainda

levando em consideração a diferença da natureza entre humanos e deuses.

As considerações teóricas desenvolvidas nessa etapa visam demonstrar a

questão da obrigatoriedade presente no dar, receber e retribuir. Podemos perceber

a complexidade dessa obrigatoriedade e a importância que elas representam para a

manutenção de toda a ordem social.

Especificamente para ao objeto de nosso estudo, a chamada quarta

obrigação, essa relação de obrigatoriedade perante aos deuses também fica

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fundamentada teoricamente, partindo das idéias de Mauss e passando pela análise

complementar de Godelier.

Partindo desses referenciais, poderemos continuar a demonstrar, na

seqüência desse estudo, como se configura essa obrigatoriedade na relação entre

os homens e os Orixás nas religiões de matriz africana, especificamente nos

candomblés de raiz Keto.

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2 A NOÇÃO DE OBRIGATORIEDADE NA MITOLOGIA AFRICANA

O mito lhes ensina “histórias” primordiais que o constituíram existencialmente, tudo o que se relaciona com a sua existência e com seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. (MIRCEA ELIADE)

Pretendemos neste capítulo demonstrar como a noção de obrigatoriedade,

segundo Marcel Mauss, pode amparar a análise dos mitos nas religiões de matriz

africana.

A análise visa mostrar como as relações entre homens e orixás, até mesmo

entre os orixás, estabelecem-se de acordo com essa noção e não espontaneamente.

A primeira parte desse estudo apresenta o conceito tradicional de mito de maneira

sucinta uma vez que não é o objetivo principal deste trabalho aprofundar-se nessa

reflexão; em seguida, recuperamos estudos sobre mitos nas religiões de matriz

africana e sua interpretação no que se refere, principalmente, aos orixás;

finalmente, apresentamos narrativas dos orixás agrupadas de acordo com as

relações de "dar-receber-retribuir", segundo Mauss, e suas conseqüências

(divididas em retribuição ou punição) para os seres humanos, cuja análise será

norteada pela noção de obrigatoriedade.

2.1 Importância do mito: aspectos gerais

Os estudos sobre o mito interessam a diversas áreas do conhecimento

humanístico: antropologia, religião, história, artes (pintura, literatura, cinema,

etc), filosofia, sociologia, psicanálise e psicologia já que recuperam saberes

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milenares a respeito das relações primeiras entre deuses e homens no mundo

arcaico e as raízes que permanecem dessas relações no mundo moderno. Por isso,

o estudo sobre mitos, dada a sua amplitude, requer o recorte necessário à posição

adotada pelo estudioso. Neste trabalho, voltado à antropologia, o mito aparecerá

imbricado ao ritual e à religião.

Especificamente em relação à antropologia, um dos maiores referenciais

nos estudos mitológicos é Claude Lévi-Strauss. Sendo considerado um dos

grandes expoentes do pensamento antropológico, Lévi-Strauss, entre outras

grandes contribuições para a referida ciência, passa a partir dos anos de 1960 a se

debruçar sobre o estudo da mitologia.

O nosso contato mais aprofundado com a obra de Lévi-Strauss ocorreu por

ocasião da disciplina Teoria Antropológica, realizada no primeiro semestre de

2006, tendo sido o referido curso ministrado pelo Prof° Dr. Edgard de Assis

Carvalho.

Aproveitando-nos de anotações efetuadas durante as aulas, apontaremos

algumas idéias que nos chamaram a atenção, podendo servir de referencial para a

elaboração dessa etapa do presente estudo.

Durante a realização da referida disciplina, o Prof° Edgar teceu algumas

considerações fundamentais para que pudéssemos compreender a importância

delegada por Lévi-Strauss aos estudos mitológicos.

Para ele, a mitologia não seria uma análise presente apenas nas sociedades

primitivas ou arcaicas, estando presente em todas as sociedades e culturas. Ainda

em relação à questão da mitologia, observa que o mito é de fundamental

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importância para a análise social, uma vez que a mitologia tem a capacidade de

resolver questões e contradições que a realidade, por si só, não conseguiria

explicar.

Outro fator de grande relevância residiria no fato de que a mitologia

transcende a fronteira rígida determinada entre a natureza e a cultura, uma vez que

apresenta um caráter de particularidade em cada cultura, porém, ao mesmo tempo,

é universal. A mitologia não encontra barreiras em sua existência sendo, ao

mesmo tempo, transhistórica, transcultural e transtemporal.

Em relação às Mitológicas5, principal obra de Lévi-Strauss nessa área,

escritas entre as décadas de 1950 e 1960, são apresentadas algumas dificuldades

para se trabalhar essa questão. Uma dessas dificuldades concentra-se no fato de

que todo mito é uma tradução e baseia-se em outro mito importado de outro lugar.

Nesse sentido, sempre que um narrador conta um mito, ocorre uma distorção e

uma deformação, uma vez que sempre existe uma interpretação pessoal, podendo

ser incluídos alguns elementos novos na narrativa, assim como suprimidos outros.

A perspectiva de Lévi-Strauss foge ao padrão científico cartesiano,

buscando mostrar como os mitos percebem os homens e não como os homens

percebem o mito.

Nos estudos antropológicos e sociológicos, os estudiosos utilizam o mito,

de maneira a ser compreendido dentro da realidade e do contexto da sociedade em

que ele se origina. Essas narrativas permitem o acesso ao imaginário,

possibilitando assim a abertura de outras perspectivas analíticas.

5 Obra dividida em quatro volumes: O cru e o cozido; Do mel às cinzas; A origem dos modos à mesa e O homem nu, publicadas respectivamente em 1964, 1967, 1968 e 1973.

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Nessa breve introdução, procuramos demonstrar aspectos que nos foram

apresentados durante a realização da referida disciplina. Passaremos a analisar a

perspectiva de Lévi-Strauss (2004) quanto ao mito, mais especificamente, a partir

da obra O cru e o cozido, em que ele recupera mitos de sociedade indígenas,

procurando observar fatos particulares concretos a fim de alcançar leis abstratas.

Ao esboçar seu método de pesquisa, o antropólogo assinala a importância de se

evitar idéias pré-concebidas a respeito do sentido do mito:

[...] evitamos qualquer referência às classificações preconcebidas dos mitos em cosmológicos, sazonais, divinos, heróicos, tecnológicos etc. Aqui, mais uma vez, cabe ao mito, submetido à prova da análise, revelar sua própria natureza e se enquadrar dentro de um tipo; meta inatingível para o mitógrafo enquanto ele se basear em características externas e arbitrariamente isoladas. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.23)

O antropólogo aproxima o relato mítico à execução de uma música no que

se refere ao tempo psicológico e ressalta que tanto na música quanto na narrativa

mítica há expectativa provocada no ouvinte:

São principalmente os aspectos neuro-psíquicos que a mitologia põe em jogo, pela duração da narração, a recorrência dos temas, as outras formas de retorno e paralelismo que, para serem corretamente localizadas, exigem que o espírito do ouvinte varra, por assim dizer, o campo do relato em todos os sentidos à medida que este se desdobra diante dele. Tudo isso se aplica igualmente à música. Mas, além do tempo psicológico, a música se dirige ao tempo fisiológico e até visceral, que a mitologia certamente não ignora, já que uma história contada pode ser "palpitante", sem que seu papel seja tão essencial quanto na música: todo contraponto age silenciosamente sobre os ritmos cardíaco e respiratório. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.35)

Outro aspecto importante do mito ressaltado pelo antropólogo é quanto ao

seu papel na tradição. Ele se origina de relatos inseridos na tradição coletiva e não

de autoria individual; perde traços de consumo e/ou propriedade e mantém a

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característica sobrenatural, pois provoca a sensação de não vir de lugar ou tempo

algum. Assim, ele atravessa a percepção consciente individual para a inconsciente

coletiva.

[...] No caso do mito, intuímos o porquê dessa situação paradoxal [aproximações conscientes de verdades inconscientes]: deve-se à relação irracional que prevalece entre as circunstâncias da criação, que são coletivas, e o regime individual do consumo. Os mitos não têm autor; a partir do momento em que são vistos como mitos, e qualquer que tenha sido a sua origem real, só existem encarnados numa tradição. Quando um mito é contado, ouvintes individuais recebem uma mensagem que não provém, na verdade, de lugar algum; por essa razão se lhe atribui uma origem sobrenatural. É, pois, compreensível que a unidade do mito seja projetada num foco virtual: para além da percepção consciente do ouvinte, que ele apenas atravessa, até um ponto onde a energia que irradia será consumida pelo trabalho de reorganização inconsciente, previamente desencadeado por ele. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p.37)

Outro estudioso de mitos que destacamos é o historiador e romancista

romeno Mircea Eliade (1907-1956), em cuja obra Mito e realidade, publicado em

1964, resgata o sentido do mito, assim como Lévi-Strauss, sem desvinculá-lo das

relações que mantém com o rito, com a tradição e com o sentido da existência. Ele

vê a importância desse conhecimento não só para entender um grupo social

específico, mas para compreender as estruturas míticas na sociedade

contemporânea.

Nossa pesquisa terá por objeto, em primeiro lugar, as sociedades onde o mito é – ou foi, até recentemente – “vivo”, no sentido de que fornece os modelos para a conduta humana, conferindo por isso mesmo, significação e valor à existência. Compreender a estrutura e a função dos mitos nas sociedades tradicionais não significa apenas elucidar uma etapa na história do pensamento humano, mas também compreender melhor uma categoria dos nossos contemporâneos. (ELIADE, 2000, p.8)

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Sua definição de mito, no âmbito temporal, acrescenta aos estudos sobre o

assunto a idéia do retorno à origem sempre que um mito é relatado para unir

presente e passado. O autor vê, ainda, que a recuperação do passado pela narrativa

mítica traz à tona o sagrado e o sobrenatural que dão sentido ao presente,

fundamentando-o:

A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças a façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente. Os personagens dos mitos são os Entes Sobrenaturais. Eles são conhecidos, sobretudo pelo que fizeram no tempo prestigioso dos “primórdios”. Os mitos revelam, portanto, sua atividade criadora e desvendam a sacralidade (ou simplesmente a “sobrenaturalidade”) de suas obras. Em suma, os mitos descrevem as diversas, e algumas vezes dramáticas, irrupções do sagrado (ou do “sobrenatural”) no Mundo. É essa irrupção do sagrado que realmente fundamenta o Mundo e o converte no que é hoje. E mais: é em razão das intervenções dos Entes Sobrenaturais que o homem é o que é hoje, um ser mortal, sexuado e cultural. (ELIADE, 2000, p.11)

Acrescenta que, para o homem arcaico, o mito se torna mais importante do

que contos e fábulas, devido a essa característica de retomar o passado, tempo

primordial e ensinar algo sobre a existência.

Seria fácil multiplicar os exemplos. Mas os já citados demonstram por que, para o homem arcaico, o mito é uma questão da mais alta importância, ao passo que os contos e as

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fábulas não o são. O mito lhes ensina “histórias” primordiais que o constituíram existencialmente, tudo o que se relaciona com a sua existência e com seu próprio modo de existir no Cosmo o afeta diretamente. (ELIADE, 2000, p.16)

É no ritual que se atualizam os mitos; a repetição ritualística cumpre a

função, dentre outras, de presentificar o conhecimento ancestral, desvelando o

segredo dos primórdios existenciais já que se procura fazer como fizeram os

deuses e heróis do passado. Nesse sentido, as narrativas míticas podem ser

consideradas exemplares, que ensinam o que precisamos saber para que

alcancemos a plenitude nessa existência, o equilíbrio com o cosmos e a natureza:

Para o homem das sociedades arcaicas, ao contrário, o que aconteceu ab origine pode ser repetido através do poder dos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos. Essencial não somente porque os mitos lhe oferecem uma explicação do Mundo e de seu próprio modo de existir no mundo, mas, sobretudo porque, ao rememorar os mitos e reatualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis, os Ancestrais fizeram ab origene. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Em outros termos, aprende-se não somente como as coisas vieram à existência, mas também onde encontrá-las e como fazer com que reapareçam quando desaparecem. (ELIADE, 2000, p.17-18)

Desse modo, pelo que vimos até aqui segundo os autores apresentados,

podemos dizer que o mito é a palavra instauradora que dá significação à existência

individual ao buscar na tradição e no relato o saber coletivo da origem. É pelo

ritual que a atualização mítica acontece e seu poder transformador do presente fica

ao alcance do indivíduo. O equilíbrio de um estado de tensão pode (ou não)

acontecer nesse momento por meio das relações de trocas estabelecidas, tanto no

plano da experiência da narrativa oral, quanto na experiência do ritual.

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Vemos, portanto, que a “história” narrada pelo mito constitui um “conhecimento” de ordem esotérica, não apenas por ser secreto e transmitido no curso de uma iniciação, mas também porque esse “conhecimento” é acompanhado por um poder mágico-religioso. (ELIADE, 2000, p.18)

O mito, quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva, que satisfaz a profundas necessidades religiosas, aspirações morais, a pressões e a imperativos de ordem social, e mesmo a exigências práticas. Nas civilizações primitivas, o mito desempenha uma função indispensável: ele exprime, enaltece e codifica a crença; salvaguarda e impõe os princípios morais; garante a eficácia do ritual e oferece regras práticas para a orientação do homem. O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstraía ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria prática [...]. Essas histórias constituem para os nativos a expressão de uma realidade primeva, maior e mais relevante, pela qual são deíerminados a vida imediata, as atividades e os destinos da humanidade. O conhecimento dessa realidade revela ao homem o sentido dos atos rituais e morais, indicando-lhe o modo como deve executá-los. (MALINOWSKI, 1955, p.101-108 citado por ELIADE, 2000, p.23)

Sobre os conceitos de mito e sua aproximação à origem, assim comenta o

filósofo francês Paul Ricoeur (1913-2005) em seu texto "Mito e interpretação

filosófica”:

Com Mircea Eliade, defendemos que o mito, enquanto história das origens, tem essencialmente uma função de instauração; só há mito quando o acontecimento base não acontece na história, mas num tempo antes da história; in illo tempore: é essencialmente a relação do nosso tempo com esse tempo que constitui o mito, e não a categoria das coisas instituídas, sejam elas a totalidade do real – o mundo -, ou um fragmento da realidade, uma regra ética, uma instituição política, ou, ainda, o modo de existência do homem numa ou noutra condição, inocente ou decaída. O mito diz sempre como nasceu alguma coisa. (p.21)

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2.2 O mito nas religiões africanas

As religiões africanas, essencialmente baseadas na tradição oral, chegaram

até nós pelos negros escravizados que, ao se distanciarem da terra natal,

procuraram manter suas raízes culturais no país em que se instalaram. No Brasil,

essa tradição misturada a outras gerou o que conhecemos, grosso modo, ser

sincretismo. Interessa, especificamente a este trabalho, a concepção de mito na

tradição Iorubá de matriz africana e suas narrativas de origem, já que é delas que

partirá a análise das relações de troca entre homens e orixás.

Entendemos que o mundo dos mitos constitui um dos pilares das religiões

dos orixás. Na sociedade iorubana tradicional, que Reginaldo Prandi (2001a) em

Mitologia dos Orixás6, qualifica como não histórica, o mito é a chave para

alcançar não apenas o passado, mas também o presente e o futuro. Sendo assim,

neste contexto cultural onde não havia a escrita, as histórias criadas, lembradas,

selecionadas e relembradas pelos anciãos e por adivinhos, também legitimados

pelas instituições de poder local, constituem a própria história desses povos. Ou

seja, neste caso o mito não representa apenas mais uma forma literária primitiva

que fala de um imaginário situado num passado remoto, mas sim do presente.

Na concepção iorubana tradicional do mundo, as histórias míticas oferecem uma orientação importantíssima, uma espécie de referência última para a vida terrestre. É por meio delas que os sacerdotes buscam avaliar o mundo da concretude. Os mitos servem para interpretar a realidade: eles afirmam e reafirmam as verdades iorubanas e dão dicas de como deve se comportar para ter sucesso. A cosmologia iorubana expressa nos mitos apresenta-se tanto como princípio quanto como meio e como fim: está na origem do mundo e é instrumento tanto para

6 Prandi apresenta a maior coleção de mitos iorubanos e afro-americanos já publicados, conseguiu reunir cerca de 301 mitos dos quais 106 seriam originários da África, 126 do Brasil e 69 de Cuba.

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interagir com o mundo como para mantê-lo tal como descrito nos mitos. (HOFBAUER, 2001).

Segundo Mircea Eliade (2000, p.87):

Os Yorubas da Costa dos Escravos acreditam num Deus do Céu denominado Olorum (literalmente: “Proprietário do Céu”) que, após haver iniciado a criação do mundo, incumbiu um deus inferior, Obatala, de concluí-lo e governá-lo. Quanto a Olorum, afastou-se definitivamente dos assuntos terrenos e humanos, e não existem templos, nem estátuas ou sacerdotes desse Deus Supremo convertido em deus otiosus. Ele é, não obstante, invocado como último recurso, em épocas de calamidade. (ELIADE, 2000, p.87)

A atualização do mito se faz pela repetição de gestos ritualísticos, como

também afirma Roger Bastide (1971), com o intuito de reproduzir modelos

anteriores e resgatar as origens.

Toda religião se compõe da tradição de gestos estereotipados e de imagens mentais, ritos e mitos respectivamente. Muitas vezes se disse que não se podia separar esses dois elementos, os mitos sendo uma definição ou uma justificação dos gestos cerimoniais. Efetivamente, o mito aparece como um modelo que deve ser reproduzido, a narração de um acontecimento passado, ocorrido na aurora do mundo, o qual é preciso repetir para que o mundo não acabe no nada. (BASTIDE, 1971, p.333)

No que se refere ao conhecimento acumulado sobre os orixás, coube aos

pais e mães-de-santo que formaram suas casas no Brasil transmitirem o rito aos

iniciados desde as comidas entregues em forma de oferendas aos santos até o

ritmo das danças e dos atabaques das celebrações festivas.

[...] a mitologia africana conservou-se ainda assim na memória dos babalaôs e Babalorixás; as filhas-de-santo também sabem que seus passos de dança constituem uma espécie de linguagem motora, que descrevem em movimentos e gestos hieráticos as aventuras passadas dos Voduns e Orixás. (BASTIDE, 1971, p.334)

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Se em outras culturas o mito desgarrou-se do rito e transformou-se em

narrativa oral transmitida de boca em boca, o mesmo não deixaria de acontecer

com o culto aos orixás. Apesar do culto afro-religioso manter ritos no candomblé,

em alguns momentos, apenas basta a narrativa exemplar do mito para que o

conhecimento sobre a importância daquele orixá seja respeitado. Por outro lado,

detalhes mais precisos do culto se perderam na transmissão oral desse saber,

restando apenas em alguns casos, gestos representativos da divindade:

Mas de súbito, percebe-se a fragilidade dessa tradição oral em relação à tradição motriz, visto que o mito não mais subsiste em sua relação com o ritual: perdeu, passando de boca em boca, de geração em geração, sua primitiva riqueza em detalhes, reduzindo-se apenas à explicação dos gestos. (BASTIDE, 1971, p.334)

Os orixás cultuados no Brasil, apesar da fragilidade da memória, mantêm

correspondência exata com aqueles cultuados na África:

Seria um erro dizer: os mitos estão perdidos; as pesquisas feitas por René Ribeiro e por Pierre Verger na Bahia ou as realizadas por mim mesmo, provam, em compensação, que muitos dos mitos originais da África tem seus correspondentes exatos no Brasil, os de Exu, de Shangô, de Oxalá, de Oxocê, e que narrativas explicativas dos Odu da adivinhação estão hoje, em sua maioria, transcritos cuidadosamente em humildes cadernos escolares, não se perdendo mais na nova pátria. (BASTIDE, 1971, p.334-335)

Prandi (2001a) nos apresenta uma precisa descrição do modo como estão

organizadas as divindades africanas e a forma de interpretação utilizada pelo

babalaô (assim chamado o responsável pelo ritual aos orixás e pelo jogo de

búzios) ao jogar os búzios, pois é através dele que os orixás enviam suas

mensagens e respondem às perguntas feitas pelos consulentes.

Os mitos dessa tradição oral estão organizados em dezesseis capítulos, cada um subdividido em dezesseis partes, tudo paciente e meticulosamente decorado, já que a escrita não fazia

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parte, até bem pouco tempo atrás, da cultura dos povos de língua ioruba. Acredita-se que um determinado segmento de um determinado capítulo mítico, que é chamado odu, contém a história capaz de identificar tanto o problema trazido pelo consulente como sua solução, seu remédio mágico, que envolve sempre a realização de algum sacrifício votivo aos deuses, os orixás. O babalaô precisa saber em qual dos capítulos e em que parte encontra-se a história que fala dos problemas do seu consulente. Ele acredita que as soluções estão lá e então joga os dezesseis búzios, ou outro instrumento de adivinhação, que lhe indica qual é o odu e, dentro deste, qual é o mito que procura. Acredita-se que Exu é o mensageiro responsável pela comunicação entre o adivinho e Orunmilá, o deus do oráculo, que é quem dá a resposta, e pelo transporte das oferendas ao mundo dos orixás. (PRANDI, 2001a, p.18)

Confundem-se mitos e orixás nas religiões de matriz africana e os rituais

envolvem festividades de devoção.

Os mitos, entretanto, continuaram presentes nas explicações da Criação, na composição dos atributos dos orixás, na justificativa religiosa dos tabus, que são muito presentes no cotidiano do candomblé, no sentido das danças rituais etc. Tudo porém muito difuso, embutido nos ritos, sem organização alguma. (PRANDI, 2001a, p.18)

Cada orixá possui a representação da natureza correspondente à sua

narrativa, à sua divindade e aos seus domínios.

Os mitos dos orixás originalmente fazem parte dos poemas oraculares cultivados pelos babalaôs, Falam da criação do mundo e de como ele foi repartido entre os orixás. Relatam uma infinidade de situações envolvendo os deuses e os homens, os animais e as plantas, elementos da natureza e da vida em sociedade. Na sociedade tradicional dos iorubas, sociedade não histórica, é pelo mito que se alcança o passado e se explica a origem de tudo, é pelo mito que se interpreta o presente e se prediz o futuro, nesta e na outra vida. Como os iorubas não conheciam a escrita, seu corpo mítico era transmitido oralmente. Na diáspora africana, os mitos iorubas reproduziram-se na América, especialmente cultivados pelos seguidores das religiões dos orixás no Brasil e em Cuba. A partir do século XIX, primeiramente estudiosos estrangeiros, sobretudo europeus, e mais tarde letrados iorubas iniciaram a

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compilação desse vasto patrimônio. (PRANDI, 2001a, p.20-21)

Assim como em outras tradições baseadas no relato mítico, nas religiões

de matriz africana o mito recupera a ancestralidade, retoma a origem e atualiza as

crenças perpetuadas no tempo. Em seu artigo "O candomblé e o tempo,"

Reginaldo Prandi (2001b, p.48-49) ressalta o tempo mítico:

Para os iorubás e outros povos africanos, antes do contato com a cultura européia, os acontecimentos do passado estão vivos nos mitos, que falam de grandes acontecimentos, atos heróicos, descobertas e toda sorte de eventos dos quais a vida presente seria a continuação. Ao contrário da narrativa histórica, os mitos nem são datados nem mostram coerência entre si, não existindo nenhuma possibilidade de julgar se um mito é mais verossímil, digamos, do que outro. Cada mito atende a uma necessidade de explicação tópica e justifica fatos e crenças que compõem a existência de quem o cultiva, o que não impede de haver versões conflitantes quando os fatos e interesses a justificar são diferentes. O mito fala do passado remoto que explica a vida no presente. O tempo mítico é apenas o passado distante, e fatos separados por um intervalo de tempo muito grande podem ser apresentados nos mitos como ocorrências de uma mesma época, concomitantes. Cada mito é autônomo e os personagens de um podem aparecer em outro, com outras características e relações, às vezes, contraditórias, sem que isso implique algum tipo de questionamento da sua veracidade. Os mitos são narrativas parciais e sua reunião não propicia o desenho de qualquer totalidade. Não existe um fio narrativo na mitologia, como aquele que norteia a construção da história para os ocidentais. O tempo do mito é o tempo das origens, e parece existir um tempo vazio entre o fato contado pelo mito e o tempo do narrador. No mundo mítico, os eventos não se ajustam a um tempo contínuo e linear. A mitologia dos orixás, que fala da criação do mundo e da ação dos deuses na vida cotidiana, bem o demonstra. (PRANDI, 2001b, p.48-49)

Mais adiante, sintetiza a importância dos orixás e suas representações de

presente e passado:

O orixá particular da pessoa é uma ínfima porção do orixá geral cultuado por todos. É o vínculo do ser humano com o divino, o eterno, o passado mítico. Com a morte do corpo, o orixá pessoal retorna ao orixá geral, àquele que existe desde o

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princípio dos tempos. O ori representa o presente do ser humano; o egum, a sua capacidade de retornar sempre a esse presente, ou se eternizar no Orum como antepassado egungum; o orixá pessoal, a ligação do presente com o mito, com o passado remoto que age sobre o presente e do qual recebe as honrarias sacrificiais. O passado reproduzido no presente pela infinidade de humanos, nos quais os orixás se perpetuam a cada nascimento, pois cada ser humano descende de um orixá, fecha de novo o ciclo africano do tempo. (PRANDI, 2001b, p.51)

2.3 Análise da obrigatoriedade nos mitos africanos Sendo o Candomblé uma religião pautada na oralidade a questão

mitológica é de fundamental importância para a sua compreensão.

A principal fonte utilizada para o levantamento da mitologia dos Orixás

será a obra Mitologia dos Orixás do Sociólogo Reginaldo Prandi (2001), em

virtude da amplitude e do trabalho primoroso do autor, reunindo em uma obra

todo um universo mítico até então espalhado pelas diversas publicações dos mais

variados autores que se debruçaram sobre o tema.

Foram selecionados 19 mitos entre os 301 reunidos por Prandi na referida

obra, uma vez que fica evidenciada nessas narrativas selecionadas a questão da

obrigatoriedade, quer seja entre os homens e os Orixás, ou mesmo na relação

entre os próprios Orixás.

Dessa forma, poderão ser observadas, nas narrativas mitológicas, as

graves conseqüências da quebra dessa relação de trocas, baseadas na tríade dar,

receber e retribuir desenvolvida por Marcel Mauss, abordada no capítulo anterior.

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Não serão realizadas durante a análise dos mitos, retomadas do

pensamento de Mauss, uma vez que as considerações teóricas em relação à

questão da obrigatoriedade já foram desenvolvidas no primeiro capítulo.

MITO Nº 1: EXU PROMOVE UMA GUERRA EM FAMÍLIA.

Um rei e sua família deixaram de prestar as homenagens devidas a Exu. Exu não se deu por vencido. Haveriam de pagar bem caro pela ofensa! Exu procurou a rainha, que vivia enciumada porque o rei só se interessava pela esposa mais nova. Disse-lhe que faria um feitiço para ela voltar a ter a preferência do marido. Deu a ela uma faca e disse que cortasse um fio de barba do rei para fazer o tal trabalho. Exu foi à casa do príncipe herdeiro e disse que o pai queria vê-lo aquela noite; e que fosse ao palácio e levasse seus guerreiros. Exu foi ao rei e disse que tomasse cuidado, porque a rainha planejava matá-lo aquela noite.

O rei se recolheu aquela noite, mas ficou acordado, esperando. Viu então a rainha entrar no quarto e dele se aproximar com a faca na mão. Imaginou que ela pretendia matá-lo e engalfinhou-se com ela numa luta feroz. O príncipe, que chegava ao palácio com seus homens, ouviu o barulho e correu à câmara real com os soldados. Viu o rei com a faca na mão, faca que tirara da rainha na luta, e pensou que o rei ia matar a rainha sua mãe. Invadiu o quarto com os soldados. Seguiu-se grande mortandade. O preço fora pago e alto. Exu cantava, Exu dançava. Exu estava vingado. (PRANDI, 2001. p.52-53)

Podemos observar que Exu7, nesse mito, pelo fato de não ter recebido suas

oferendas, causou grande desgraça à família em questão, chegando à fatalidade.

Utilizando-se de toda a sua astúcia, conseguiu vingar-se, sem ter que intervir

fisicamente, afim de que a família, que havia negligenciado suas “obrigações”

para com ele, pagasse por isso.

7 “Exu é um Orixá de múltiplos e contraditórios aspectos, o que torna difícil defini-lo. De caráter irascível, ele gosta de suscitar dissensões e disputas, de provocar acidentes e calamidades públicas e privadas” (Verger, 1997, p.76)

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No mito em questão, a negligência da família em relação às oferendas foi

uma declaração de guerra a Exu que se vingou, sem piedade, sendo a morte a

moeda utilizada para o seu pagamento.

MITO N° 2: EXU PROVOCA A RUÍNA DA VENDEDORA DO MERCADO

Abionã vendia roupas no mercado. Era uma mulher próspera e respeitada. Todos cumprimentavam Abionã solenemente, quando ela ia ao mercado fazer seu comércio. Mas havia muito Abionã se esquecera de Exu. Nada de ebós, de suas comidas prediletas, nada de aguardente, pimenta e dendê. Ela não se lembrava que Exu lhe dera tudo. Exu dera tudo o que tinha. Um dia, estava no mercado vendendo quando avisaram que sua casa estava em chamas. Ela abandonou sua banca no mercado e correu em desespero para casa. Nada mais o que fazer. Era tudo cinzas. Abionã, desconsolada, voltou à feira, mas nada de seu lá encontrou. Nada mais o que fazer. Tudo roubado. Ela gritou e chorou e todos se riram de Abionã. Abionã não era mais rica nem era a mulher respeitada do mercado. Todos faziam pouco caso dela. Exu estava vingado. (PRANDI, 2001 p.58)

Nessa narrativa, pelo fato das oferendas não terem sido realizadas, a

reciprocidade também deixou de ocorrer: “Ela não se lembrava que Exu lhe dera

tudo”, agravando ainda mais a situação de Abionã. Mais uma vez, observamos

que o não cumprimento das “obrigações” ou oferendas dos homens para com os

Orixás resulta em tragédias, nesse caso não fatais, porém, não menos desastrosas.

Da condição de muito próspera e respeitada, a comerciante, em virtude do não

cumprimento de seus compromissos para com Exu, acabou em uma ruína total,

perdendo toda a sua riqueza e o seu prestígio perante a sociedade.

MITO Nº 3: EXU CORTA O NARIZ DO ARTESÃO QUE NÃO FEZ O EBÓ

PROMETIDO.

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Era uma vez um marceneiro muito competente no ofício, mas que não tinha jeito de arranjar trabalho. O artesão teve um sonho com um negrinho que disse que ele ia ter muito serviço e ia ganhar um bom dinheiro. O negrinho do sonho, com seu barrete vermelho, disse ao marceneiro que após completar o primeiro serviço ela tinha que fazer um ebó para Exu. Devia providenciar um galo preto, sete tocos de lenha, fósforos e uma vela, um pouco de azeite-de-dendê, sete ecôs, fumo picado e muitos búzios. Que fosse para o mato fechado, acendesse a vela, passasse o galo no corpo, fizesse a fogueira com a lenha e o fósforo. Que matasse o galo e o cozinhasse com os temperos estipulados e oferecesse os búzios. Era assim o ebó que Exu queria. Se ele não fizesse o ebó, ameaçou, Exu tomaria o seu nariz. No sonho o artesão concordou com tudo. Quando acordou, porém, não deu a menor importância ao que sonhara.. No mesmo dia apareceu um grande serviço, que o marceneiro fez com capricho e rapidez, e ganhou um bom dinheiro. E depois outro e mais outro, e assim ele foi ficando bem de vida. Mas para Exu, nada. Ele nunca se interessou em cumprir a obrigação. Um dia, trabalhava sob o sol, alisando as taboas(tábuas), quando o negrinho do sonho apareceu e disse: “olha, não vais cortar o nariz com esse enxó?”. Ele respondeu: “como é que eu posso cortar o nariz com este enxó?”, e fez um gesto aproximando o instrumento do rosto. E sem querer decepou o seu nariz com a lâmina do enxó. Aí o moleque disse: “Te lembras da promessa do ebó? Exu te deu trabalho e dinheiro. Não deste nada para Exu, então vim buscar teu nariz”. Pegou o nariz que caíra no chão, deu as costas para o marceneiro que sangrava horrivelmente e foi-se embora, levando o nariz do artesão. (PRANDI, 2001, p.63-65)

Nessa narrativa, observamos novamente as conseqüências do não

cumprimento das obrigações presentes na relação homem-Orixá. O Marceneiro

que não levou em conta o pedido de Exu em retribuição à ajuda que lhe havia sido

dada, pôde sentir na carne os efeitos causados por sua negligência. A promessa de

seu sonho fora realizada, seu nariz decepado e, conseqüentemente, carregaria para

sempre as marcas causadas pelo seu descaso no cumprimento de suas obrigações

perante os Orixás, nesse caso, em relação a Exu.

MITO Nº 4 - IEMANJÁ MOSTRA AOS HOMENS SEU PODER SOBRE AS

ÁGUAS

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Em certa ocasião, os homens estavam preparando grandes festas em homenagem aos orixás. Por descuido inexplicável, se esqueceram de Iemanjá, esqueceram de Maleleo, que ela também se chamava assim. Iemanjá furiosa conjurou o mar e o mar começou a engolir a terra. Dava medo ver Iemanjá, lívida, cavalgar a mais alta das ondas com o seu abebé de prata na mão direita e o ofá da guerreira preso às costas. Os homens, assustados, não sabiam o que fazer e imploraram ajuda a Obatalá. Quando a estrondosa imensidão de Iemanjá já se precipitava sobre o que restava do mundo, Obatalá se interpôs, levantou seu apaxorô e ordenou a Iemanjá que se detivesse. Obatalá criou os homens e não consentiria na sua destruição. Por respeito ao Criador, a dona do mar acalmou suas águas e deu por finda sua colérica revanche. Já estava satisfeita com o castigo imposto aos imprudentes mortais. (PRANDI, 2001 p.395)

Esse mito, envolvendo Iemanjá, mais uma vez, demonstra as

conseqüências do não cumprimento das obrigações para com os Orixás. Ao se

esquecerem das suas oferendas à Iemanjá, os homens chegaram perto de viver

uma catástrofe de proporções incalculáveis, somente não concretizada pela

intervenção divina de Obatalá. Com base nessa narrativa, nota-se mais uma vez a

intolerância por parte dos Orixás, em relação ao descumprimento das regras, no

que se refere às oferendas. Mesmo de maneira não fatídica, as conseqüências

acabaram ocorrendo, como o último trecho da narrativa nos mostra: “Por respeito

ao Criador, a dona do mar, acalmou suas águas, e deu por finda sua colérica

revanche. Já estava satisfeita com o castigo imposto aos imprudentes imortais”.

(PRANDI, 2001, p.395, grifos nossos)

O termo imprudente aparece como afirmação do caráter não voluntário das

oferendas na relação homem-Orixá, em outras palavras, não cumprir com as

obrigações para com os Orixás não é uma atitude coerente, que acarretará em

conseqüências para os que negligenciarem seus deveres.

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Por ter sido esquecida, Iemanjá se enfurece e, por vingança, causa

destruição na terra, somente interrompendo seu castigo aos homens por

intervenção de Obatalá, em respeito a ele.

MITO Nº 5: IROCO CASTIGA A MÃE QUE NÃO LHE DÁ O FILHO

PROMETIDO

No começo dos tempos, a primeira árvore plantada foi Iroco. Iroco foi a primeira de todas as árvores, mais antiga que o mogno, o pé de obi e o algodoeiro. Na mais velha das árvores de Iroco, vivia seu espírito. O espírito de Iroco era capaz de muitas mágicas e magias. Iroco assombrava todo mundo todo mundo, assim se divertia. À noite saía com uma tocha na mão, assustando os caçadores. Quando não tinha o que fazer, brincava com as pedras que guardava no oco de seu tronco. Fazia muitas mágicas, para o bem e para o mal. Todos temiam Iroco e seus poderes. Numa certa época, nenhuma das mulheres da aldeia engravidava, já não havia crianças pequenas no povoado e todos estavam desesperados. Foi então que as mulheres tiveram a idéia de recorrer aos poderes mágicos de Iroco. Juntaram-se em círculo ao redor da árvore sagrada, tendo o cuidado de manter as costas voltadas para o tronco. Não ousavam olhar para a grande planta face a face, pois os que olhavam Iroco de frente enlouqueciam e morriam. Suplicaram a Iroco, pediram a ele que lhes desse filhos. Ele quis logo saber o que receberia em troca. As mulheres eram, em sua maioria, esposas de lavradores e prometeram a Iroco milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros. Cada uma prometia o que o marido tinha pra dar. Uma das suplicantes, Olurombi, era a mulher do entalhador, e não tinha nada daquilo para oferecer. Olurombi não sabia o que fazer e, no desespero, prometeu dar a Iroco o primeiro filho que tivesse. Nove meses depois a aldeia se alegrou com o choro de muitos recém-nascidos. As jovens mães, felizes e gratas, foram levar a Iroco suas prendas. Em torno do tronco de Iroco depositaram suas oferendas. Assim Iroco recebeu milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros. Olurombi contou toda a história ao marido, mas não pode cumprir sua promessa. Ela e o marido apegaram-se de mais ao menino prometido. No dia da oferenda, Olurombi ficou de longe, segurando nos braços trêmulos, temerosa, o filhinho tão querido. E o tempo passou. Olurombi mantinha a criança longe da árvore, e assim, o menino crescia forte e sadio. Mas um belo dia, passava Olurombi pelas imediações do Iroco, entretida que estava, vindo do mercado, quando no meio da estrada, bem na sua frente, saltou o temível espírito da árvore. À apavorada mulher do entalhador disse Iroco: “tu me prometeste o menino e não cumpriste a palavra dada. Transformo-te

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em pássaro para que vivas sempre aprisionada em minha copa”. E transformou Olurombi num pássaro e ele voou para a copa de Iroco para ali viver para sempre. Olurombi nunca voltou para casa, e o entalhador a procurou em vão por toda a parte. Ele mantinha o menino em casa, longe de todos, mas os que passavam perto da árvore ouviam sempre um pássaro cantar uma estranha cantiga sobre oferenda feita a Iroco. Até que um dia, quando o artesão se aproximou dali, ele próprio escutou o tal pássaro, que cantava assim: “Uma prometeu o milho e deu o milho, outra prometeu inhame e trouxe inhames, uma prometeu frutas e entregou as frutas, outra deu o cabrito e outra deu o carneiro, sempre conforme a promessa que foi feita. Só quem prometeu a criança não cumpriu o prometido”. Ouvindo o relato de uma história que julgava esquecida, o marido de Olurombi entendeu tudo imediatamente. Sim, só podia ser Olurombi, enfeitiçada por Iroco. Ele tinha que salvar sua mulher! Mas como se amava tanto seu pequeno filho? Ele pensou e teve uma grande idéia. Foi à floresta, escolheu o mais belo lenho de Iroco, levou-o para casa e começou a entalhar. Da madeira entalhada fez uma cópia do rebento, o mais perfeito boneco que jamais havia sido esculpido. Fez o boneco com os doces traços do filho, sempre alegre, sempre sorridente. Depois poliu e pintou o boneco com esmero, preparando-o com a água perfumada das ervas sagradas. Vestiu a figura de pau com as melhores roupas do menino e a enfeitou com ricas jóias de família e raros adornos. Quando pronto, ele levou o menino de pau a Iroco. E o depositou aos pés da árvore sagrada. Iroco gostou muito do presente. Era o menino que ele tanto esperava! E o menino sorria sempre, uma imutável expressão de alegria. Iroco apreciou sobremaneira o fato de que o garoto jamais se assustava quando seus olhos se cruzavam. Não fugia dele como os demais mortais, não gritava de pavor nem lhe dava as costas, com medo de olhar de frente. Iroco estava feliz. Embalando a criança, seu pequeno menino de pau, batia ritmadamente com os pés no solo e cantava animadamente. Tendo sido paga, enfim, a velha promessa, Iroco devolveu a Olurombi a forma de mulher. Aliviada e feliz, ela voltou para casa, voltou para o marido artesão e para o filho, já crescido e enfim livre da promessa. Alguns dias depois, os três levaram para Iroco muitas oferendas. Levaram ebós de milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros, laços de tecido de estampas coloridas para adornar o tronco da árvore. Eram presentes oferecidos por todos os membros da aldeia, felizes e contentes com o retorno de Olurombi. Até hoje todos levam oferendas a Iroco. Porque Iroco dá o que os devotos pedem, e todos dão para Iroco o prometido. (PRANDI, 2001. p.164-168)

Nessa longa narrativa, podemos levantar dois argumentos importantes para

fortalecer a idéia da obrigatoriedade na relação entre os homens e os Orixás. O

primeiro deles reside na demonstração de que tudo que foi conseguido, através da

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ação mágica de Iroco, teve necessariamente um preço a ser pago. Em outras

palavras, houve a necessidade de um “contrato”: os desejos seriam atendidos por

Iroco mediante as promessas de oferendas que seriam realizadas: “Suplicaram a

Iroco, pediram a ele que lhes desse filhos. Ele quis logo saber o que receberia em

troca. As mulheres eram, em sua maioria, esposas de lavradores e prometeram a

Iroco milho, inhame, frutas, cabritos e carneiros”. (PRANDI, 2001, p.164-168)

O segundo aspecto consiste nas graves conseqüências que o não

cumprimento das promessas ou da realização das obrigações para com os Orixás

traz aos homens. No caso específico, percebemos os fatos ocorridos com

Olurombi, a mulher do entalhador, que após ter o seu desejo atendido por Iroco

não honrou o compromisso assumido. Como conseqüência, recebeu uma severa

punição: “tu me prometeste o menino e não cumpriste a palavra dada.

Transformo-te em pássaro para que vivas sempre aprisionada em minha copa”.

(PRANDI, 2001, p.164-168)

Iroco não esqueceu, e tão pouco perdoou a promessa não cumprida, só

revertendo a punição aplicada a Olurombi, após o pagamento, que foi realizado

por seu marido, fazendo a oferenda devida a Iroco.

MITO N° 6 – OXUMARÊ FICA RICO E RESPEITADO

Oxumarê era um babalaô que atendia o rei de Ifé. Porém, não era um homem de fama, não tinha riquezas nem poder. Sentia-se humilhado, como humilhado vivera seu pai, conhecido pelo nome de Senhor-do-Xale-colorido. Oxumarê estava triste e foi consultar um adivinho. Ele ensinou-lhe um ritual para tornar-se rico e poderoso. Deveria oferecer uma faca de bronze e quatro pombos, bem como oferecer búzios em boa quantidade.

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Oxumarê, obediente, pôs-se a fazer a oferenda, mas na mesma hora, o rei mandou chama-lo . Oxumarê recusou-se a atender a sua ordem, dizendo que iria depois de terminada sua cerimônia. O rei ficou enfurecido com a ousadia e deixou de pagar uma dívida de Oxumarê.

Quando Oxumarê retornou à sua casa, recebeu um chamado de Olocum, rainha de um país vizinho, que necessitava de sua sabedoria para curar seu filho. Ifá foi consultado por Oxumarê, que fez as oferendas necessárias e curou o filho de Olocum. Em gratidão ela ofereceu-lhe riquezas, cavalos, escravos e um lindo pano azul.

Retornando à casa com um inestimável tesouro, Oxumarê foi saudar o rei, que muito se admirou ao ver a opulência do babalaô, antes tão pobre. Quis saber sobre os presentes recebidos. Oxumarê contou da cura do filho de Olocum. O rei, que tinha uma rivalidade nata com quem quer que fosse, não queria ficar abaixo de Olocum. Então ofereceu a Oxumarê uma roupa vermelha muito preciosa e muitos e muitos presentes. Foi assim que Oxumarê tornou-se rico e respeitado. (PRANDI, R. 2001. p 225-226)

Pode-se observar nesse mito, que a riqueza e o reconhecimento de

Oxumarê só foi alcançado após a realização de oferendas: “deveria oferecer uma

faca de bronze e quatro pombos, bem como oferecer búzios em boa quantidade”.

Não fica clara nessa narrativa, a quem deveria ser feita a oferenda mencionada. O

fato que promoveu o seu reconhecimento e enriquecimento, também só foi

possível através da prática das oferendas como podemos observar no seguinte

trecho: “Ifá foi consultado por Oxumarê, que fez as oferendas necessárias e curou

o filho de Olocum”.

Em última análise, podemos perceber que não só a oportunidade para que

surgisse o seu reconhecimento, como para que seus conhecimentos surtissem os

efeitos necessários, só foram possíveis através da realização das oferendas,

demonstrando mais uma vez a obrigatoriedade e a importância das oferendas, para

o funcionamento da relação entre os homens e os Orixás, e mesmo nas relações

entre as divindades.

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MITO Nº 07 – XANGÔ É VISITADO PELOS QUINZE ODÚS E ACABA FICANDO RICO

No princípio do mundo, Quinze Odus reunidos foram procurar babalaôs para saber o que fazer para melhorar de vida. Foram todos os odús menos Xangô, que era um deles. Xangô não foi avisado por ninguém dessa reunião. Os babalaôs receitaram oferendas eficazes, mas nenhum dos consulentes fez o ebó determinado. Xangô, porém, sabendo que fora menosprezado pelos outros odus e informado da fórmula prescrita pelo oráculo, correu a preparar sozinho aquele ebó que os adivinhos pediram, arriscando-se muito para realizar a tarefa.

Cinco dias depois desse acontecido, os quinze odús foram à casa de Olofim-Olodumare e novamente não avisaram Xangô da visita, porque o consideravam pobre e dele se envergonhavam. Os quinze odús saíram satisfeitos da casa de Olofim. Então, quando já iam embora, Olofim os chamou e a cada um deu uma abóbora. Os quinze odus, para não parecerem indelicados, aceitaram os presentes e se foram. No caminho sentiram fome e se lembraram de Xangô. Rumaram para a sua casa que era perto de onde estavam. Lá chegando um deles cumprimentou Xangô, dizendo: “Obará Meji, como vais de saúde? O que tens aí para comer, para mim e para meus companheiros de viagem?”. Todos estavam famintos, pois nada comeram na casa de Olofim. Xangô os recebeu muito cordialmente e os quinze odus foram logo entrando e se servindo. Enquanto eles comiam o que havia na casa, a mulher de Xangô foi ao mercado e trouxe muitos cestos de comida. Assim, os quinze odus comeram até se fartar e após a refeição deitaram-se em esteiras para a sesta. No fim da tarde, quando foram embora, deixaram as abóboras para Xangô, em agradecimento pela boa recepção.

Mais tarde, quando Xangô sentiu fome, sua mulher o repreendeu por sua generosidade extremada. Tudo o que havia de comer fora dado aos odús, que nem sequer o trataram com a camaradagem dos colegas. E por não ter mais o que comer, Xangô abriu uma das abóboras com a faca e descobriu que dentro havia muitas pedras preciosas. Xangô correu, todo alegre e ansioso para mostrar aquelas pedras preciosas a um comerciante de jóias que as examinou atentamente e disse tratar-se de brilhantes e outras pedras preciosíssimas, sim. Xangô foi para a casa e abriu cada uma das abóboras, e cada uma continha um tesouro inimaginável. Xangô torrnou-se muito rico, o mais rico habitante do lugar. Construiu um palácio e comprou cavalos das melhores raças.

Depois de um tempo, os odús voltaram à casa de Olofim. Xangô também se dirigiu à casa do Grande Rei e não foi só. Foi acompanhado de grande comitiva e muita pompa. Olofim, vendo todo aquele alvoroço de lacaios, pajens e acompanhantes, quis saber quem vinha lá com tão majestoso préstito. Era Xangô e Xangô era agora um homem rico, o mais rico. Os quinze Odús estavam embasbacados com a ostentação do Odú pobre. Olofim perguntou então aos quinze odus o que haviam feito das abóboras e todos se apressaram em responder

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que as tinham dado a Xangô. Então Olofim disse que dentro de cada abóbora existia uma fortuna que ele pessoal e generosamente destinara para cada um de seus filhos, os Odus, mas que quisera a sorte que tudo fosse somente de Xangô, o Odú Obará Meji. Xangô era então mais rico que qualquer um dos quinze Odus. Xangô era então mais rico que os quinze Odus juntos. Os odus estavam inconsoláveis e pediram que Olofim fizesse justiça. Queriam de volta as abóboras com suas heranças. Para a felicidade de Xangô, a justiça já tinha sido feita. Foi esse o veredicto final de Olodumare. (PRANDI, R. 2001. p. 267-270)

Nessa narrativa envolvendo Xangô, pode-se observar mais uma vez, que

somente através da realização das oferendas e sacrifícios solicitados, foi possível a

Xangô atingir seus objetivos de riqueza e prosperidade. Em contra partida, os

demais Odús que negligenciaram as devidas oferendas, mesmo estando de posse

da riqueza desejada, deixaram-na escapar de suas mãos, passando a Xangô, o

único a ter cumprido com as suas obrigações.

Outro elemento que nos chama atenção nessa narrativa é o fato de Xangô,

mesmo sendo considerado o mais pobre dos Odús, ter oferecido toda a fartura que

possuía em alimentos por ocasião da visita. Esse ato, aliado às oferendas

realizadas, possibilitou o seu enriquecimento imediato, passando assim a ser

respeitado, tornando-se mais rico que os demais Odús juntos.

MITO N° 8 – OGUM FAZ INSTRUMENTOS AGRÍCOLAS PARA OXAGUIÃ.

Oxaguiã, rei de Ejigbô, o Elejigbô, chamado “Orixá-Comedor-de-Inhame-Pilado”, inventou pilão para saborear mais facilmente seus prediletos inhames. Todo o povo de seu reino adotou sua preferência. Todo o povo de Ejigbô comia inhame pilado. E tanto se comia inhame em Ejigbô que já não se dava conta de plantá-lo. E assim, grande fome se abateu sobre o povo de Oxalá. Oxaguiã foi consultar Exu que o mandou fazer sacrifícios e procurar o ferreiro Ogum, que naqueles tempos vivia nas terras de Ijexá. O que podia fazer Ogum para que o povo de Ejigbô tivesse mais inhame? Consultou Oxaguiã. Ogum pediu sacrifícios e logo deu a solução. Em sua forja, Ogum fez ferramentas de ferro. Fez a enxada, a foice e a pá, fez o ancinho, o rastelo, o arado. “leve isso ao seu povo, Elejigbô, e o trabalho na plantação vai ser mais fácil. Vão colher muitos inhames, mais do que agora que plantam com as mãos”, disse Ogum. E assim foi feito e nunca se plantou tanto inhame e nunca se colheu tanto inhame. E a fome acabou.

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O povo de Ejigbô, agradecido cultuou Ogum e ofereceu a ele banquetes de inhames e cachorros, caracóis, feijão-preto regado com azeite-de-dendê e cebolas. Ogum disse a Oxaguiã: “na casa de seu pai todos se vestem de branco, por isso também assim me visto para receber as oferendas”. E o povo o louvava e Ogum ficou feliz. E o povo cantava: “A Kaja lóni fun Ògúnja mojubá” Ogunjá que come cachorro, nós te saudamos” Oxaguiã disse a Ogum: “Meu povo nunca há de se esquecerde sua dádiva. Dê-me um laço de seu abada azul, Ogum, para eu usar com meu axó funfum, minha roupa branca. Vamos sempre nos lembrar de Ogunjá”. E, do reino de Ejigbô até as terras de Ijexá, todos cantaram e dançaram. (PRANDI, R. 2001. P.91-92)

Mais uma vez notamos que as oferendas são motivos de troca e

prosperidade. O povo de Ejigbô fez sacrifícios a Exu e depois retribuíram a Ogum

a dádiva das ferramentas oferecendo-lhe banquetes de inhames e cachorros, caracóis,

feijão-preto regado com azeite-de-dendê e cebolas.

Abster-se de retribuir é faltar a um dever, a obrigação de retribuir também

é predominante nas trocas entre os orixás, qualquer dádiva deve ser retribuída

como sinal de respeito pelo outro e agradecimento. Mesmo porque, a troca de

prendas, novamente, produz abundância de riquezas.

MITO N° 9. OGUM RECOMPENSA A GENEROSIDADE DA VENDEDORA DE ACAÇÁ.

Dizia-se que noutros tempos existia uma senhora que vendia acaçá ou mingau pela manhã. Um dia essa senhora foi à casa de uma entendida na “ciência”, que lhe mandou fazer ebó para melhorar a vida. Passado algum tempo, o general Ogum apareceu com seu exército todo faminto e pediu à senhora que matasse a fome de seu pessoal. Ela os serviu atenciosamente e com abundância. Então quando a refeição acabou, como Ogum fosse justo e não tivesse dinheiro para pagá-la, dividiu com aquela senhora seu botim de guerra. Foi assim que a vendedora de acaçá tornou-se riquíssima e divulgou o gesto de Ogum por toda parte. (PRANDI, R. 2001. p. 98)

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Tendo feito um ebó para melhorar a vida, a vendedora de acaçá, algum

tempo depois, teve a oportunidade de servir a Ogum e seu exército. Ele, por sua

vez, em retribuição à atenção e generosidade da senhora, dividiu com ela seu

botim de guerra, o que a fez enriquecer. A questão da retribuição, mais uma vez, é

a questão fundamental desta narrativa, provando que deve sempre haver uma troca

de dádivas onde entre os envolvidos: a vendedora faz um ebó, ajuda Ogum que a

retribui (dar-receber-retribuir).

Deve-se salientar o fato de que nessa narrativa, a senhora em questão

oferece o ebó como obrigação por algo recebido, mas sim, em sentido inverso,

propiciando a retribuição por parte de Ogum, o orixá que recebe a generosidade.

MITO N° 10 . Oxossi ganha de Orumilá a cidade de Queto.

Um certo dia Orunmilá precisava de um pássaro raro para fazer um feitiço de Oxum. Ogum e Oxossi saíram em busca da ave pela mata a dentro, nada encontrando por dias seguidos. Uma manhã, porém, restando-lhes apenas um dia para o feitiço, Oxossi deparou com a ave e percebeu que lhe restava apenas uma única flecha. Mirou com precisão e a atingiu. Quando voltou para a aldeia, Orunmilá estava encantado e agradecido com o feito do filho, sua determinação e coragem. Ofereceu-lhe a cidade de Queto para governar até a sua morte, fazendo dele o Orixá da caça e das florestas. (PRANDI, R. 2001 p. 116)

Percebe-se novamente nessa narrativa que o presente oferecido à Oxossi

foi uma retribuição pelo cumprimento de algo que lhe havia sido solicitado. Se

por acaso, não tivesse realizado a sua tarefa, não haveria a retribuição por parte de

Orunmilá, demonstrando a importância e a necessidade dessas relações para o

funcionamento de toda a estrutura presente na narrativa.

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MITO N° 11. Ossaim tem as suas oferendas rejeitadas por Orunmilá.

Era o dia de uma grande festa em, homenagem a Orunmilá. Ossaim, que recebeu de Orunmilá o poder sobre as folhas, na porta de sua casa, muito triste e preocupado. Por ali passou Xangô,que perguntou a Ossaim o que estava acontecendo, qual o motivo de tanta tristeza? Ossaim respondeu que estava triste porque não poderia ir à festa de Orunmilá. Naquele ano sua plantação só tinha dado abóboras. E os Inhames, que era o que ele deveria levar para Orunmilá, eram muito poucos, quase nada. Xangô disse que não havia importância e que ele deveria ir assim mesmo. Ossaim, desolado, disse que não queria ir, mas pediu a Xangô que entregasse seus inhames e suas abóboras para Orunmilá, Quando Xangô chegou ao palácio de Orunmilá todos os Orixás lá estavam. Eles haviam trazido grandes quantidades de inhame, suficientes para abarrotar muitas tulhas. Xangô descarregou os seus e fez seu monte, juntando aos seus os inhames de Ossaim. Depois pegou só as abóboras de Ossaim e fez um outro monte. Orunmilá viu a pilha de inhames de Xangô e ficou muito satisfeito. Depois viu o monte de abóboras ao lado e perguntou a Xangô de quem vinham. Xangô, com mal disfarçada expressão de reprovação, respondeu que as abóboras eram presentes de Ossaim. Orunmilá recusou a oferenda e mandou devolver as abóboras para Ossaim. Ossaim ficou muito triste quando viu as abóboras de volta. Desde o episódio da devolução das abóboras, Ossaim começou a passar por necessidade. Quase nem tinha o que comer. Alguns dias depois, Ossaim estava com tanta fome que resolveu cozinhar uma das abóboras rejeitadas por Orunmilá. Quando abriu a abóbora, Ossaim levou um grande susto: em vez de sementes seu interior estava recheado de dinheiro. Ossaim, então, partiu outra abóbora e outra e mais outra, e todas estavam repletas de dinheiro. Ossaim que era pobre, tinha riqueza dentro de sua casa e não sabia. Com as suas abóboras Ossaim tornou-se rico e respeitado. (PRANDI, R. 2001. p.159-160).

Nessa narrativa podem ser observadas diversas questões. Entre elas destacamos

primeiramente a obrigatoriedade das oferendas que deveriam ser efetuadas para

Orunmilá. Um segundo tópico que merece destaque é a abundante retribuição para

Ossaim, que mesmo pensando que os dias de dificuldades que atravessava seria uma

conseqüência de não ter realizado a devida oferenda de inhames. Com o passar dos dias,

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acabou descobrindo que sua oferenda fora aceita e retribuída generosamente pela

divindade.

MITO Nº 12 – XANGÔ É ESCOLHIDO REI DE OIÓ.

Antes de se tornar rei de Oió, Xangô foi consultar o oráculo. O adivinho lhe disse que fizesse um sacrifício. Que oferecesse búzios, dois galos, duas galinhas e dois pombos. Xangô Afonjá, devia oferecer também a roupa que estava usando e dar alguma coisa para seus parentes e amigos.

Ele assim o fez e todos se reuniram para comer e beber do sacrifício. Todos se fartaram e cantaram. Então se perguntou: “Quem escolheremos para nosso rei?”. Que tal o homem em cuja casa comemos e bebemos?”, alguém propôs. “Quem, senão Afonjá? Só pode ser Afonjá!”, aclamou a multidão em coro.“Quem mais pode ser feito rei?” “Só temos Afonjá!”, alguém propôs. “Que seja Afonjá”, aclamou a multidão em coro. E escolheram Afonjá e o fizeram rei de Oió. E Xangô reinou em Oió. (PRANDI, R 2001. p. 244)

Através deste mito temos mais um exemplo da relação dar e receber, a

partir do momento em que Xangô Afonjá fez seu sacrifício e fez a oferenda,

obteve o reconhecimento da multidão, passando a ser respeitado e considerado.

Por conta disso tornou-se rei de Oió, conseguindo trazer para si o poder.

Segundo Mauss (2003, p.204), o ato de dar pode também estar ligado ao

gastar, o prestígio do indivíduo está ligado à sua capacidade de gastar e de

retribuir as dádivas aceitas, de modo a transformar em devedores aqueles que o

tinham obrigado.

MITO Nº 13 – Xangô faz oferendas e vence os inimigos.

Xangô vivia entre inimigos. O que podia fazer para derrotá-los? Foi-lhe dito que fizesse um ebó. Qual sacrifício oferecer? O babalaô disse que oferecesse muitos búzios. Ele devia oferecer

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dois galos, dois pombos, doze pedras, doze pavios de lamparina e doze bastões. Xangô reuniu essas coisas e fez o sacrifício que apaziguou aos deuses. Xangô terminou o sacrifício e voltou à guerra com os inimigos. No pavio da lamparina, Xangô acendeu o fogo que jorrou de sua boca. Ele trazia na mão o machado duplo de fazer trovão e ninguém mais podia enfrentá-lo. Xangô venceu. Quando Xangô chegou da guerra, todos o aclamavam: “Kawo, Xangô! Salve Xangô!”. “Kabyesi, Kawô! Abram alas para a sua Majestade!” “E Kabó! Bem-vindo!” Todos aqueles que nunca haviam saudado Xangô também agora o faziam com muito entusiasmo. Eles o saudavam. Xangô dançava em regozijo. (PRANDI, R. 2001 p.249-250.)

A partir do momento que Xangô fez o ebó, apaziguou aos deuses e tornou

possível derrotar seus inimigos, vencer a guerra, trazer a paz e com isso alcançou

o respeito e admiração de todos, mesmo aqueles que jamais o haviam saudado. O

fato só ocorre em função das oferendas realizadas por Xangô.

MITO Nº 14: Oiá recebe o nome de Iansã, mãe dos nove filhos.

Oiá desejava ter filhos, mas não podia conceber. Oiá foi consultar um babalaô, e ele mandou que ela fizesse um ebó. Ela deveria oferecer um carneiro, um agutã, muitos búzios e muitas roupas coloridas. Oiá fez o sacrifício e teve nove filhos. Quando ela passava, indo em direção ao mercado, o povo dizia: “lá vai Iansã”. Lá ia Iansã, que quer dizer mãe nove vezes. E lá ia ela orgulhosa ao mercado vender azeite-de-dendê. Oiá não podia ter filhos, mas teve nove, depois de sacrificar um carneiro. E em sinal de respeito, por ter seu pedido atendido, Iansã, a mãe dos nove filhos, nunca mais comeu carneiro.” (PRANDI, 2001, p.294-295)

Mais um mito contendo a troca como algo necessário no sentido de doação

e retribuição. Ao fazer o sacrifício, Oiá conseguiu o que almejava: os filhos, e

sentiu-se realizada por isso, atingindo seu objetivo. Em respeito continuou o

sacrifício não mais se alimentando de carneiro, o que pode ser considerado como

uma forma de retribuição.

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MITO Nº 15: Oxum deita-se com Exu para aprender o jogo de búzios.

Obatalá, o Senhor do Pano Branco, aprendeu com Orunmilá a arte da adivinhação. Aprendeu o oráculo dos obís e dos búzios. A adivinhação com o opelê, com tudo, Orunmilá, jamais ensinou para ninguém. Só os babalaôs podem jogar com o opelê, a cadeira de Ifá. Mas muitas pessoas queriam aprender com Obatalá a arte de ler o destino nos búzios. Obatalá dizia que seu conhecimento era resultado da confiança que Orunmilá depositara nele e, portanto negava-se a passar adiante esta arte. Entre os que queriam tal conhecimento estava Oxum, a bonita esposa de Xangô. Oxum pediu muitas vezes para Obatalá ensinar-lhe o conhecimento do Ifá. Mesmo estando muito atraído pela bela Oxum, Obatalá recusou-se a ensina-la. Um dia Obatalá saiu da cidade e foi banhar-se num rio próximo. Deixou sua roupa sobre a moita e foi para a água. Enquanto Obatalá se banhava, Exu sempre atento às chances de desarrumar as coisas, aproximou-se da margem do rio. Ele viu as roupas brancas sobre o arbusto e as reconheceu como sendo de Obatalá. Pondo as mãos em concha sobre a boca, gritou zombeteiro: “o Senhor do Pano Branco ainda é senhor quando está sem a roupa?”. Exu pegou as roupas de Obatalá e foi-se embora. Foi dançando alegre e feliz com sua brincadeira. Quando Obatalá saiu da água, viu-se sem suas imaculadas vestes brancas. Como faria para voltar para a cidade assim? Se aquela situação era humilhante para qualquer um, que dirá para Obatalá? Obatalá andando nu? Obatalá ficou ali angustiado sem saber o que fazer. Oxum que vinha andando pela trilha em direção ao rio, viu Obatalá naquele estado e logo perguntou-lhe o que havia acontecido. Ele contou tudo. Oxum lhe disse então que iria até Exu para trazer as roupas de volta. Obatalá avisou que ninguém conseguia lidar com Exu, mas Oxum insistiu que era capaz de dobrar o espertalhão. Em troca, porém, ela exigiu os conhecimentos da adivinhação. Ele negou e ela insistiu. Oxum mostrou que ele não tinha saída. Como Obatalá ia andar nu por aí? Que vergonha! Que falta de decoro! Um Rei nú? Obatalá concordou. Fizeram o trato. Oxum então foi à procura de Exu e finalmente o encontrou numa encruzilhada, comendo seus ebós. Quando ele a viu, ficou endoidecido por sua beleza e, por que Exu é como é, tentou imediatamente ter relações sexuais com ela. Oxum rejeitou Exu, e exigiu as roupas que ele roubara. Exu só pensava em deitar-se com Oxum e não queria discutir nenhuma outra coisa. Até que finalmente eles fizeram um acordo. Oxum deitou-se com Exu e em troca recebeu as roupas furtadas. Voltou para a margem do rio, onde a esperava Obatalá. Obatalá recebeu as roupas e as vestiu. Então voltou para a cidade e, honrando sua palavra,

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ensinou Oxum a jogar búzios e obís. Desde então Oxum tem também o segredo do oráculo. (PRANDI, R 2001. p. 337-339)

Nesta narrativa podemos observar que há uma troca de interesses nas

relações entre os deuses, de um lado Oxum querendo aprender a ler o destino nos

búzios, de outro Obatalá querendo retomar suas roupas e, ainda, Exu querendo se

deitar com Oxum. Podemos dizer que graças a Exu – considerado entre os iorubas

como aquele que representa a oposição à criação, sendo o infrator das regras e da

ordem – ter roubado as roupas de Obatalá, Oxum teve a oportunidade de

conseguir o que queria: ter conhecimento sobre o jogo de búzios.

Voltando a questão da troca, é a troca de favores que se constitui na

questão central desta narrativa. Podemos dizer que nestas trocas os interesses de

todos são atendidos, mesmo que por meio de uma tensão causada por Exu.

MITO Nº 16: Oxum leva ebó ao Orum e salva a Terra da seca.

Uma vez Olodumare quis castigar os homens. Então levou as águas da Terra para o Céu. A terra tornou-se infecunda. Homens e animais sucumbiam pela sede. Ifá foi consultado. Foi dito que fizesse um ebó. Com bolos, ovos, linha preta e linha branca, com uma agulha e um galo. Oxum encarregou-se de levar o ebó ao Céu. No caminho Oxum encontrou Exu, e ofereceu-lhe os fios e a agulha. Em seguida encontrou Obatalá e entregou-lhe os ovos. Obatalá ensinou-lhe o caminho da porta do Céu. Lá chegando, Oxum encontrou um grupo de crianças, e repartiu entre elas os bolos que levava. Olodumare viu tudo aquilo e se comoveu. Olodumaré devolveu à Terra a água retirada no Céu e tudo voltou à prosperar. (PRANDI, R. 2001. p 339-340)

Vimos nesta passagem que mesmo Oxum tendo feito o ebó com intenção

de levá-lo ao céu, no caminho, pela sua generosidade, foi distribuindo os

presentes contidos no ebó, assim Olodumare se compadeceu e devolveu a água à

Terra.

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Entendemos que a comoção de Olodumare pelos presentes de Oxum pode

ser relacionada às palavras de Mauss, pois segundo ele, aceitar qualquer coisa de

alguém é aceitar qualquer coisa de sua essência, tendo em vista que as coisas

aceitas de outrem têm poder mágico e religioso sobre quem as recebe, não são

coisas inertes, já que estas coisas (oferendas) trazem parte da alma da pessoa.

MITO Nº 17: Iemanjá tem seu poder sobre o mar confirmado por Obatalá.

Um dia, no princípio dos tempos, orixás e homens revoltaram-se contra Iemanjá, pois Iemanjá, sempre que queria, saía das profundezas e invadia a terra com as suas águas. Orixás e homens, unidos, procuraram Olorum, que enviou Obatalá à Terra para averiguar a acusação. Elégua, que a tudo escutou, avisou Iemanjá e aconselhou-a a consultar Ifá. Feito isso, Iemanjá ofereceu um carneiro em sacrifício contra o poder de seus inimigos. Enquanto Obatalá, em Ifé, escutava os protestos, protestos dos homens e dos Orixás, Iemanjá invadiu de novo a terra e as águas inundaram tudo e chegaram até onde estava o grande rei. Cavalgando as ondas do mar vinha Iemanjá. Vitoriosa e soberba sobre as ondas enfurecidas, ela mostrava sua oferenda. Iemanjá mostrava a cabeça do carneiro. Lá estava Obatalá e lá estava Iemanjá e Iemanjá tinha alguma coisa preciosa para Obatalá. Iemanjá fizera o sacrifício e Obatalá aceitou a oferenda. Obatalá confirmou o poder de Iemanjá. Nunca se passa muito tempo sem que o mar invada a terra, Iemanjá cavalgando a temida maré. (PRANDI, R, 2001, p. 396-397.)

Nessa narrativa, podemos perceber que Iemanjá consegue manter o seu

domínio sobre as águas do mar, assim o como o respeito dos humanos e demais

Orixás, através da oferenda realizada para Obatalá, que recebendo essa oferenda,

não mais interfere em favor dos humanos e demais orixás. Mais uma vez, o ato de

cumprir com as obrigações, propiciou a solução do problema e amanutenção da

ordem estabelecida.

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MITO Nº 18: Olocum acolhe todos os rios e torna-se a rainha das águas. .

Olocum, a senhora do mar, e Olossá, a senhora da lagoa, andavam ambas muita preocupadas. As águas já não eram suficientes para suprir as necessidades do povo, que já padecia de sede provocada pela longa seca. Olocum e Olossá foram aos pés de Orunmilá, que as aconselhou a fazer as oferendas para que a abundância das águas retornasse. Era um sacrifício grande para ambas, mas Olocum cumpriu o recomendado, Olossá, porém, ofereceu seus sacrifícios incompletos. E veio a chuva e choveu tanto que as águas já não cabiam no curso dos rios. Oxum, o rio foi consultar Ifá para saber que destino dar ao curso de suas águas. Oxum foi orientada por Ifá para procurar um lugar onde fosse bem recebida. Assim, Oxum reuniu as águas dos rios e seguiu caminho. Encontrou a lagoa, encontrou ossá e nela se precipitou, mas as águas da lagoa transbordaram. Deixou a lagoa e chegou ao mar, ocum, e alí derramou todas as suas águas e o mar recebeu o rio Oxum sem transbordar. Então todos os rios fizeram a mesma rota e encaminharam suas águas para o mar, o ocum. Olocum fez corretamente o sacrifício. Olocum é a rainha de todas as águas. (PRANDI, R, 2001, p. 402-403)

Podemos perceber nessa narrativa, que somente o cumprimento rigoroso,

ou seja, completo das obrigações que foram solicitadas, permitiram a Olocum

concretizar seus interesses. Ao contrário de Olossá, que não tendo realizado as

suas oferendas da maneira que lhe havia sido solicitado, não consegui receber o

que havia sido solicitado. Podemos perceber então, que apenas o devido

cumprimento das obrigações solicitadas, propiciará um resultado satisfatório,

demonstrando mais uma vez o caráter de obrigatoriedade das oferendas e

sacrifícios.

MITO Nº 19: Orunmilá instituí o oráculo.

Naquele tempo não havia separação entre o Céu e a Terra. Foi quando Orunmilá teve oito filhos. O primeiro foi o rei de Ará,

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Alará. O segundo foi Ajeró, rei de Ajeró. O filho caçula foi Olouo, rei da cidade de Ouó. Havia paz e fartura na Terra. Numa importante ocasião, quando Orunmilá celebrava um ritual, mandou chamar todos os seus filhos. Vieram os sete primeiros filhos de Orunmilá. Eles lhe prestaram homenagens, ofereceram-lhe sacrifícios, prostaram-se diante de seus pés batendo palmas, prostaram-se batendo pao, disseram as palavras de respeito. Menos Olouó. Ele veio mas não deitou aos pés do pai, não fez oferendas, não o homenageou como devia. “Por que não demonstras respeito por teu pai?”, perguntou Orunmilá. Olouó respondeu que seu pai tinha sandálias de precioso material, mas que ele também as tinha; que o pai usava roupas dos mais finos tecidos, mas que ele também as usava; que seu pai usava roupas dos mais finos tecidos; mas que ele também as usava; que seu pai tinha cetro e coroa e que ele também os tinha. Que o homem que usa uma coroa não deve se prostrar diante de outro, foi o que disse o filho ao pai. Orunmilá se enfureceu, arrancou o cetro das mãos do filho e o atirou longe.

Orunmilá retirou-se para o Orum, o Céu, e a desgraça se abateu sobre o Aiê a Terra: fome caos, peste e confusão. Parou de chover, plantas não cresciam e animais não procriavam, todos estavam em desespero. Os homens ofereceram a Orunmilá toda sorte de sacrifícios, todos os cantos. Orunmilá aceitou as oferendas, mas a paz entre o Céu e a Terra estava definitivamente rompida. Os filhos de Orunmilá o procuraram no Orum e lhe pediram para retornar ao Aiê. Orunmilá entregou então aos seus filhos dezesseis nozes de dendê e disse: “Quando tiverem problemas e desejarem falar comigo, consultem ifá”. Orunmilá nunca mais veio ao Aiê, mas deixou o oráculo para que as pessoas possam recorrer a ele quando precisarem. Os filhos de Orunmilá eram assim chamados: Ocanrã, Ejiocô, Ogundá, Irosum, Oxé, Obará, Odí, Ejiobê, Osá, Ofum, Ouorim, Ejilá-Xeborá, Icá, Oturopon, Ofuncanrã e Iretê. São estes os nomes dos odús. São estes os filhos de Orunmilá. Cada odú conhece um segredo diferente. Um fala do nascimento, outro fala da morte, uma fala dos negócios, outro da fartura, um fala das guerras, outro das perdas, um fala da amizade, outro da traição, um fala da família, outro da amizade, um fala do destino, outra da sorte. Cada odu conhece um segredo diferente. Desde então, quando alguém tem um problema, é o odu que indica o sacrifício apropriado. Orunmilá disse: “quando tiverem problemas consultem Ifá”. Orunmilá nunca mais veio ao Aiê, mas deixou o oráculo para que as pessoas possam recorrer a ele quando precisarem. (PRANDI, R, 2001. p. 442-444)

Nessa narrativa, podemos perceber as conseqüências que se acarretam

quando as oferendas ou o respeito às divindades não é observado. Obatalá não

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aceita a afronta cometida pelo filho, e lança toda uma punição sobre a terra. A

quebra do respeito do filho em relação ao pai, resulta no rompimento dos laços

entre o Órun e o Aiê. Esses laços somente serão restabelecidos através da prática

das oferendas à Obatalá. Mesmo assim, não houve o retorno da unidade que

existia anteriormente, mas foi possível apaziguar a ira de Obatalá sobre toda a

terra.

A partir da leitura das narrativas selecionadas, observamos que através da

mitologia podemos perceber que é possível aos homens evitar entrar em conflito

com os orixás, por meio das práticas ritualísticas onde estão inseridas as

oferendas. Essas práticas são de fundamental importância para a manutenção da

ordem e da harmonia na relação entre os homens e os Orixás. Uma vez que o

cumprimento pode trazer a prosperidade e as conquistas para os homens, o seu

não cumprimento em contra partida, trará conseqüências negativas. Como foi

analisado nesse capítulo, os rituais são baseados justamente na mitologia, e como

será desenvolvido no capítulo seguinte, as narrativas mitológicas são transmitidas

como uma forma de herança, onde poderemos analisar a questão da

ancestralidade como ponto de partida para manutenção da tradição nas religiões

de matriz africana.

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2.4 Considerações finais sobre mitologia e as narrativas selecionadas. Nesta seleção de mitos pudemos perceber que há uma relação estreita entre

o não cumprimento das obrigações e a punição, já que nas narrativas aqueles que,

por esquecimento ou desdém, deixam de cumprir a quarta obrigação, sofrem

punições. Estas punições se aplicam não apenas pelo fato da não retribuição, mas

também àquele que não deu, ou se recusou a cumprir com as devidas obrigações.

Assim troca com os orixás, sempre que se pede algo é preciso fazer uma

troca. O dar, receber e retribuir é uma constante na relação dos homens e dos

orixás, está relação explícita nos mitos é a mesma que nas relações entre homens e

deuses.

O candomblé não rejeita nem carece de uma orientação ético moral. Parece-me inegável que os mitos atuam, isto é, são vivenciados como "base moral" da cosmovisão iorubana. As histórias míticas "revelam caminhos" aos homens, avisam como aquele que pede pode atingir o objetivo desejado. Os mitos estabelecem tabus e indicam dessa forma, freqüentemente por oposição, qual a conduta "correta" a ser seguida para que não se sofra punição (terrena ou divina). É no cotidiano ritualístico, por meio da atualização contextualizada dos mitos, que se afirma e se articula o mundo dos valores iorubanos. (HOFBAUER, 2001)

Se por um lado quando não há o cumprimento das obrigações, há uma

punição, em contrapartida percebemos que aqueles que cumprem são felicitados

com a retribuição dos orixás. Esta relação é demonstrada nos mitos Orunmilá

instituí o oráculo; Iemanjá tem seu poder sobre o mar confirmado por Obatalá;

Olocum acolhe todos os rios e torna-se a rainha das águas; Oiá recebe o nome de

Iansã, mãe dos nove filhos.

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E é também nos mitos que se acham as razões pelos "euó" (quizilas), os

vários tabus, que têm de ser seguidos também no "aiê". O cumprimento ou

rompimento de um tabu, um "ebó" oferecido no momento certo, a reverência

oferecida a um determinado orixá ou o esquecimento da mesma podem ser

decisivos para se obter sucesso no mundo do "orum". (HOFBAUER, 2001).

Ou seja, dentro das estruturas religiosas, não há como receber sem dar; não

há como viver e atingir os objetivos almejados sem respeitar os preceitos

transmitidos pela mitologia. Quando Mauss discorre sobre o regime de dádiva

entre as tribos do Noroeste Americano, observa-se uma das questões que

entendemos como também presentes nas trocas entre homens e orixás, trocas

consideradas como uma questão de obrigatoriedade.

Segundo ele a vida material e moral, a troca, tende a funcionar

concomitantemente de forma desinteressada e obrigatória. E mais, a obrigação de

trocar exprime-se de forma mítica, imaginária ou ainda simbólica e coletiva.

Portanto, a troca assume um aspecto do interesse ligado às coisas trocadas, coisas

estas que jamais estão completamente desligadas dos seus agentes de troca. Logo,

entre os trocadores passa a haver uma comunhão e uma aliança que podem ser

consideradas relativamente indissolúveis.

Nesse sentido, seriam justamente os mitos, uma espécie de corpo

doutrinário, um corpo de crenças no qual são articuladas as práticas ritualísticas,

que permitem a manutenção dessa aliança e dessa comunhão.

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3 ANCESTRALIDADE E OBRIGATORIEDADE

Neste capítulo nosso objetivo está focado em demonstrar a obrigatoriedade

analisada por Marcel Mauss, nas relações de ancestralidade e hereditariedade.

Primeiramente, será demonstrado que a estrutura religiosa do candomblé é

semelhante às estruturas familiares e de parentesco presentes em nossa sociedade.

Em seguida, será apresentada a noção de ancestralidade presente nesta religião,

para o que será necessário efetuar uma diferenciação entre os orixás e os eguns.

Concluindo essa etapa, mostraremos como a obrigatoriedade está vinculada ao

axé e a sua importância para a manutenção de todo o sistema religioso, bem como

as conseqüências da sua quebra.

3.1 A noção de família no candomblé.

Ao analisarmos a estrutura religiosa do candomblé, podemos identificar

elementos que demonstram a estrutura familiar presente nessa religião. Ao

tratarmos a questão da ancestralidade e da herança familiar, é importante observar

a postura de Pierre Verger em relação ao tema:

A religião dos orixás está ligada à noção de família, família numerosa, originária de um mesmo antepassado, que engloba os vivos e os mortos. (VERGER, 1997, p.18)

E acrescenta mais à frente:

O tipo de relacionamento é de caráter familiar e informal. (VERGER, 1997, p.19) No interior dessa família surgem problemas de consangüinidade espiritual resultantes da filiação a um mesmo terreiro, e que vem juntar-se aos já existentes entre pessoas consagradas ao mesmo orixá, implicando proibição de casamento. [...]

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Há dentro dos grandes terreiros, uma sutil gradação de fraternidade, da mesma forma que a família poligâmica africana. Os sentimentos de fraternidade são mais estreitos entre os filhos de um mesmo pai ou de uma mesma mãe do que entre os que tem um pai ou uma mãe diferentes. [...] Na família espiritual, formada em um terreiro pelos filhos e filhas-de-santo de um mesmo pai ou mãe-de-santo, existem tais laços, de fraternidade espiritual, porém eles são mais fortes entre aqueles iniciados no mesmo barco. (VERGER, 1997, p.48)

Tratando da estrutura religiosa no que se refere às relações de parentesco,

Júlio Braga utiliza a expressão “parentesco religioso”, que segundo ele teria a

seguinte função:

Ademais, o parentesco religioso desempenha importante papel nas relações sociais, mantendo-se como força dinâmica geradora e restauradora de determinadas tramas parentais, apenas identificáveis pela intermediação do culto à ancestralidade. Assim que certas relações de parentesco, distantes no tempo, e no espaço, só são explicáveis com o interdiscurso das relações de parentesco religioso, evocadas pela comunidade iniciática a cada vez que episodicamente se reúne ou no período das festas cíclicas do calendário litúrgico. (BRAGA, 1992, p.25)

Ainda em relação ao tema o autor continua:

Na discussão da ancestralidade manifestada pela herança reconhecida e culturalmente processada no interior dos candomblés, a noção de parentesco permite a reconstrução da trama genealógica ancestral até a matriz referencial de origem, sendo redimensionada no campo simbólico do parentesco religioso, o que facilita o agrupamento, no mesmo segmento linear, de vivos e mortos ilustres, podendo retroceder até o ego referencial do fundador de uma comunidade afro brasileira. (BRAGA, p.96, 1992.)

A noção de família é profunda nas estruturas do candomblé, sendo

utilizados mecanismos para a identificação de genealogias, que transcendem as

fronteiras continentais, chegando em alguns casos à procura da identificação dos

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ancestrais na própria África. Ligações comprovadas com africanos são motivo de

prestígio e reconhecimento social.

Se analisarmos brevemente a hierarquia nas casas de candomblé,

notaremos que em uma divisão simples, os terreiros são chefiados pelo pai-de-

santo (babalorixa) ou pela mãe-de-santo (Ialorixa), estando em um segundo plano

os filhos-de-santo. Além dessa esfera, outros graus de parentesco vão se

desenrolando, como por exemplo: um filho de um irmão-de-santo passa a ser

automaticamente um sobrinho-de-santo, e assim por diante.

Assim sendo, podemos perceber a transferência do modelo de estrutura

familiar presente em nossa sociedade, para a estrutura religiosa. Toda família

apresenta a questão da descendência, fato esse também observado no candomblé.

No candomblé, a noção de família, porém, estende-se além das fronteiras

do simples parentesco por consangüinidade e afinidade, adentramos na esfera da

descendência nas relações de ordem religiosa:

Esse tipo de genealogia religiosa se intercruza com o parentesco por consangüinidade e afinidade, para não citar as vezes em que a sua construção transcende os limites das informações sobre o fundador da comunidade, visando alcançar, no tempo e no espaço, ascendentes africanos mantidos na memória coletiva através de mecanismos próprios da tradição oral, veiculados assim no interior dessas comunidades. (BRAGA, 1992, p.97).

3.2 Ancestralidade e hereditariedade no candomblé A questão da ancestralidade pode ser observada na estrutura do

candomblé, cabendo salientar que podem ser identificadas duas formas de

ancestralidade em seu interior: uma primeira de origem divina ligada diretamente

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aos orixás e uma outra ligada aos seres humanos, aqueles, que, em vida, ocuparam

lugar de destaque na hierarquia religiosa.

Podemos observar essa perspectiva na análise de Reginaldo Prandi:

No Brasil dos dias de hoje, o candomblé continua a cultuar a memória de seus mortos ilustres, invocados em diferentes cerimônias e relembrados de geração a geração, mas não pôde preservar a idéia de que os mortos renascem na família carnal, pois a adesão ao candomblé é individual e a família-de-santo não corresponde necessariamente à família biológica. A idéia do antepassado egungum veio ocupar um lugar secundário na religião, apenas complementar na religião dos orixás, que na maioria dos terreiros de formação recente é praticada sem essa referência. Como a religião dos orixás congrega grupos minoritários, cada um pertencente a um determinado terreiro, autônomo em relação aos demais, grupos formados por adeptos que fazem parte de uma sociedade mais ampla, cuja cultura é predominantemente ocidental e cristã, o culto a antepassados coletivos que controlam a moralidade de uma cidade inteira, digamos, como ocorria originalmente em terras africanas, não se viabilizou por razões evidentes. O mundo brasileiro fora dos muros do terreiro não é território dos antepassados, como era na África tradicional. (PRANDI, 2001b, p.51)

Ao falarmos em ancestralidade nos transportamos para o território da

hereditariedade onde os descendentes recebem uma transmissão do axé, como

veremos mais a diante, assim como toda uma série de conhecimentos, práticas

ritualistas, entre outros, sendo boa parte deles transmitidos através das narrativas

mitológicas, conforme observamos no capítulo anterior.

A assimilação dessa herança pode ser considerada como um dos elementos

responsáveis pela continuidade do sistema, que só será possível a partir do

momento em que as regras, rituais e todos os demais elementos compreendidos

nessa herança, são colocados em prática.

Émile Durkheim, em sua obra, Sociologia da Educação, nos mostra que a

educação, também considerada pelo autor como um processo de socialização,

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consiste na transmissão de conhecimentos da geração mais velha para a geração

mais nova. Esse processo torna possível a manutenção da coesão social, uma vez

que possibilita a transmissão de todos os valores de uma sociedade, entre eles tudo

que se refere às tradições, costumes e à cultura de um modo geral, incluindo-se

nessa categoria os valores e tradições culturais.

No candomblé, os mais diversos rituais iniciáticos, teem por finalidade

justamente essa transmissão de todo um complexo cultural, englobando das mais

simples atitudes e rituais até as mais complexas, sendo o nível de exigência

proporcional ao tempo da iniciação. Essa transmissão se dá de maneira lenta,

seguindo uma rígida hierarquia, baseada no tempo de iniciação.

Os membros de um candomblé são classificados basicamente em duas grandes categorias de idade iniciática: os iaôs, aqueles iniciados há pouco tempo e que formam o grupo júnior, e os ebômis, os iniciados há bastante tempo e que assim são capazes de realizar, com autonomia, atividades rituais mais complexas, o grupo sênior. A palavra ebômi, do iorubá egbomi, significa exatamente “meu mais velho”, e era assim que na antiga família poligínica iorubá as esposas mais velhas se tratavam. Iaô, nessa família tradicional, era a denominação dada às esposas mais novas. No candomblé, enquanto os ebômis conquistam certa autonomia em relação à autoridade suprema da mãe ou do pai-de-santo e são encarregados de tarefas rituais importantes, de prestígio dentro do grupo, com privilégios e honras especiais, as iaôs (ou os iaôs, pois há muito a palavra iaô perdeu no candomblé a conotação de esposa), os jovens iniciados, enfim, só fazem obedecer, usando símbolos e cultivando gestos e posturas que denotam a sua inferioridade hierárquica. Lembrando que a estrutura organizacional do candomblé é uma reprodução simbólica da estrutura tradicional da família iorubá, de resto perdida no Brasil, evidencia-se a importância da experiência acumulada na constituição dos grupos de autoridade. Os ebômis são os que sabem, porque são mais velhos, viveram mais, acumularam maior experiência. Sua autoridade é dada pelo tempo acumulado, que pressupõe saber maior. (PRANDI, 2001b, p.54)

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Para que ocorra o acesso ao conhecimento e a transmissão das tradições e

segredos do candomblé, os integrantes deverão passar por complexo e árduo

processo de rituais iniciáticos.

Numa determinada época da consolidação do candomblé, foi necessária a criação de rito de passagem específico que tornasse público o reconhecimento da condição de senioridade, rito hoje conhecido pelo nome de decá, a partir do qual a iaô assume a posição de ebômi, de mais velho. [...] O decá é o coroamento de uma seqüência de obrigações que inclui, depois da feitura, a obrigação de um ano, a de três anos e finalmente a de sete anos, tudo definido numa escala de tempo ocidental. Evidentemente, atrasos eventuais em qualquer etapa arrastam para adiante o período total. (PRANDI, 2001b, p.55)

Para o antropólogo Júlio Braga, essa consciência da ancestralidade afro-

brasileira presente no candomblé foi um fator de extrema relevância para a

consolidação da identidade negra no Brasil, consequentemente para a

consolidação e o enraizamento das religiões de matriz africana em nosso país,

como o candomblé e a umbanda.

Não nos aprofundaremos nessa questão em relação à Umbanda, porém,

apenas para salientar a importância da ancestralidade, podemos nela observar a

figura do chamado preto-velho, que como o próprio nome sugere, seriam espíritos

de antigos escravos que voltariam para praticar a caridade. Nesse sentido, a

memória e a consciência da ancestralidade se fazem também presentes nessa outra

religião de matriz africana, uma vez que esses antigos escravos, em certa forma e

medida, teriam sido os primeiros responsáveis pela transmissão dos

conhecimentos e ensinamentos trazidos do continente mãe: a África.

Sobre esse assunto é ainda Júlio Braga quem afirma:

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A estruturação de nítida consciência ancestral afro-brasileira elabora-se em oposição a diferentes mecanismos de resistência processados por outros componentes étnicos face à presença dessa ancestralidade, geradora e mantenedora de valores culturais específicos e particularizantes da cultura negra no cenário nacional. (BRAGA, 1992, p.95)

3.2.1 Os Orixás e os Eguns As divindades cultuadas no candomblé, os orixás podem ser considerados

como sendo a ancestralidade divinizada, pertencentes a uma esfera que transcende

à natureza humana.

Para Pierre Verger:

O orixá seria, em princípio, um ancestral divinizado, que em vida, estabelecera vínculos que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou então, assegurando-lhe a possibilidade de exercer certas atividades como a caça, o trabalho com metais, ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas e de sua utilização. (VERGER, p.18, 1997)

Ainda em relação ao tema o autor prossegue:

O orixá é uma força pura, asé imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se em um deles. Esse escolhido pelo orixá, um de seus descendentes, é chamado seu elégùn, aquele que tem o privilégio de ser “montado”, gùn, por ele. Torna-se o veículo que permite ao orixá voltar à terra para saudar e receber as provas de respeito de seus descendentes que o evocaram.(VERGER, p.19, 1997)

O que distingue os orixás dos eguns é o fato de que os orixás, mesmo

sendo humanos, atingiram o patamar de divindades, ligadas às forças da natureza,

que receberam a sua força, o axé, diretamente de Olodumare (o deus supremo),

sem a necessidade de passar pela experiência da morte para atingirem essa

condição.

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Partindo desse ponto de vista, podemos identificar nesse elemento o

caráter divino atribuído aos orixás, distinguindo-o dos ancestrais de origem

humana ou social, os egúns, conforme trabalharemos na seqüência. Veremos as

perspectivas de dois autores em relação ao tema:

Esses antepassados divinizados não morreriam de morte natural, morte que em ioruba vem a ser o abandono do corpo ara, pelo sopro emi. Possuidores de um axé muito forte e poderes excepcionais sofreriam uma metamorfose nesses momentos de crise emocional, provocada pela cólera e outros sentimentos violentos. O que neles era material desaparecia, queimado por essa paixão, e deles restava somente o axé, poder em estado de energia pura. (VERGER, 1997, p.18)

A passagem da vida terrestre à condição de Orixá desses seres excepcionais, possuidores de um axé poderoso, produz-se em geral em um momento de paixão, cujas lendas conservam as lembranças. (VERGER, 1997, p.18)

Os òrisás são massas de movimentos lentos, serenos de idade imemorial. Estão dotados de um grande equilíbrio necessário para manter a relação econômica entre o que nasce e o que morre, entre o que é dado e o que deve ser devolvido. Por isso mesmo estão associados à justiça e ao equilíbrio. São as entidades mais afastadas dos seres humanos e as mais perigosas. Incorrer no desagrado ou na irritação de um òrisá é fatal. Esta situação está associada ao sentimento que mais aterroriza o nagô: a do aniquilamento total; a de ser completamente reabsorvido pela massa e não renascer nunca mais. (SANTOS, p.76, 2007)

Além dos orixás, antepassados de origem divina, podemos constatar a

ancestralidade presente em outra forma de relação. Os Eguns, antepassados que

em função da elevada posição que ocuparam na hierarquia religiosa ou pela

posição de destaque alcançada no meio religioso, passam a ser cultuados,

recebendo as homenagens, sacrifícios e oferendas dos membros dos terreiros.

Joana Elbein nos fornece a seguinte descrição

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O Egúngún, ou simplesmente babá, espíritos daqueles mortos do sexo masculino especialmente preparados para ser invocados, aparecem de maneira característica, inteiramente recobertos de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber vagamente formas humanas diferentes alturas e corpos. Acredita-se que sob as tiras de pano que cobrem essas formas encontra-se o Égún de um morto, um ancestre conhecido, ou se a forma não reconhecível, qualquer aspecto relacionado à morte. Nesse último caso, o Egúngún representa ancestres coletivos que simbolizam conceitos morais e são guardiães de herdados costumes e tradições. Esses ancestres coletivos são os mais respeitados e temidos entre todos os Egúngún, guardiães que são da ética e da disciplina moral do grupo.(SANTOS, 2007, p.120).

Ainda sobre os egúns, podemos o que diz sociólogo Reginaldo Prandi:

Quando a memória do morto extravasa os limites de sua família particular e passa a ser louvada pela comunidade mais ampla da aldeia, da cidade, de uma grande linhagem que reúne muitas famílias, quando esta lembrança deixa de ser privativa de alguns indivíduos para se incorporar na lembrança coletiva, o morto não precisa mais renascer entre os vivos para garantir o ciclo de sua eternidade. Ele vai para o Orum, tornando-se, então, um antepassado. Isso acontece com os grandes reis, heróis, fundadores e líderes. Do Orum, o mundo mítico onde habita com os deuses orixás, ele passa a atuar diretamente nos acontecimentos do Aiê: vai interferir no presente, ajudando e punindo os humanos. O passado mítico é um passado vivo, e seus habitantes o tempo todo agem e interferem no presente. Os antepassados, que os iorubás chamam de egunguns, não se recusam a vir ao Aiê e conviver com os humanos e o fazem através de seus sacerdotes nos grandes festivais de máscaras em que se cultua a memória ancestral coletiva daquela comunidade (DREWAL, 1992, cap. 6 citado por PRANDI, 2001b, p.50).

Nessa mesma linha, podemos encontrar o pensamento de Júlio Braga:

Quando, numa outra dimensão, o antepassado conquista o respeito de todo um povo, quando sua cidade impõe seu culto a outras, quando ele se desprende da comunidade original e passa a fazer parte da memória de toda uma sociedade, a reverência por ele recebida se expande, sua influência no Aiê cresce, seu poder no mundo do presente se eterniza: ele é, então, um orixá, um entre os deuses iorubás. Sua relação não é mais com os

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parentes nem com os membros da sua comunidade, mas com a humanidade. Ele pode até mesmo ser reverenciado em terras do além-mar, onde se fará atuante no presente de muitos outros povos, como ocorreu com a diáspora iorubá na América por força da escravidão, com a fundação de novos cultos e religiões, como o candomblé, o tambor-de-mina, o xangô e o batuque, no Brasil, e a santeria, em Cuba. Ele é parte do passado mítico, e o passado mítico responde pelo presente. O passado mítico é o que existe desde o começo dos tempos, o que sempre foi, o que Nesse amplo quadro elaborador da noção de ancestralidade, a morte, sua representação e significado no campo das práticas rituais, é o elemento decisivo na fundamentação e na edificação da matriz referencial.(BRAGA,1992, p.98)

No caso dos egúns, a ocorrência da morte se fez presente. Para que esses

mortos ilustres possam começar a desfrutar dos privilégios dos cultos de seus

descendentes, deverão ser realizados os rituais funerários:

É o ritual funerário que dignifica o morto enquanto elemento indissociável da estrutura religiosa e do próprio sentido de permanência e elaboração do sistema de transferência do poder para a nova liderança que se instala na direção do grupo religioso.(BRAGA, 1992, p.99) O ritual funerário permite, para além de suas funções imediatas, a elaboração social do ancestral coletivo, toda vez que estiver em jogo o interesse de um dignatário. (PRANDI, 2001b, p.50)

Após assumirem essa condição, esses ancestrais, conforme mencionamos

anteriormente, passam a desfrutar do respeito de seus descendentes. Esses

ancestrais, em função da posição hierárquica elevada que ocupam, não são

contrariados e muito menos desobedecidos. Os descendentes não se atreveriam a

tanto, por saberem dos riscos que isso implicaria. No trecho a seguir podemos

observar esse fato:

Às vezes a discussão se acirra, alguns mais corajosos chegam até a reagir contra uma decisão do egum, que se enfurece,

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promete castigar, faz menção de abandonar o ambiente. Mas logo em seguida, restabelece-se o respeito aos ancestrais, e os recalcitrantes retratam-se diante dos eguns, seguindo a festa seu curso. (BRAGA, p. 44-45, 1992)

Ainda em relação ao tema, devemos explicitar o fato de que através dos

seus rituais, estes cultos envolvem toda uma complexidade de preparativos nos

“bastidores”, que culminam com apresentação “publica”, em que os ancestrais

podem interagir diretamente com seus descendentes. Esse fato ocorre tanto no

culto aos babá-egúns assim como nos candomblés tradicionais, onde os orixás se

manifestam, dançam ao som dos atabaques.

3.3 A Obrigatoriedade vinculada ao axé

Após termos apresentado a noção de ancestralidade, quer dos ancestrais de

origem divina, os orixás, quer dos antepassados “humanos”, passaremos a analisar

a existência de um elemento vital para a manutenção de todo o sistema religioso e

cultural envolvido nas religiões de matriz africana.

Esse elemento é o chamado axé, definido da seguinte forma:

É a força que assegura a existência dinâmica que permite o acontecer e o devir. Sem àse, a existência estaria paralisada, desprovida de toda a possibilidade de realização. È o princípio que torna possível o processo vital. Como toda força, o áse é transmissível; é conduzido por meios materiais e simbólicos e acumulável. É uma força que só pode ser adquirida pela introjeção ou por contato. Pode ser transmitida por objetos ou a seres humanos. (SANTOS, p.39, 2007)

Essa força dinâmica vital para todo o sistema, presente em todos os

elementos envolvidos nesse complexo religioso e cultural, as casas de candomblé

e que poderíamos denominar de axé coletivo ou axé social, seria o resultado da

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combinação e somatória de todos e tudo que está envolvido no referido complexo,

conforme nos mostra a antropóloga Joana Elbein:

(...) combinando as qualidades e as significações de todos os elementos de que é composto: a) o àse de cada orixá plantado nos peji dos ilê-orisà, realimentado através das oferendas e da ação ritual, transmitidoa seus olórisà por intermédio da iniciação e ativado pela conduta individual e ritual; b) o asé de cada membro do terreiro que soma ao de seu orisà recebidono decorrer da iniciação, o de seu destino individual, o àse que ele acumulará em seu interior, o inú e que ele revitalizará particularmente através do rito do Bori –“dar comida à cabeça”- aos quais se adicionam ainda o àse herdado de seus ancestrais; c) O asé dos antepassados do “terreiro”, de seus mortos ilustres, cujo poder é acumulado e mantido ritualmente nos assentos do ilê-ibo. (SANTOS, 2007, p.40)

São ainda da mesma autora as seguintes explicações:

Sendo o àse princípio de força, é neutro. Pode transmitir-se e aplicar-se a diversas finalidades ou realizações. A combinação dos elementos materiais e simbólicos que contém e expressam o àse do terreiro. (SANTOS, p.40, 2007)

Podemos observar a partir das explicações feitas acima, que o axé está

presente em todos os setores e atividades desenvolvidas no candomblé. A eficácia

de tudo que acontece e se realiza nas dependências dos terreiros está vinculada à

quantidade e à qualidade do axé.

Trata-se de um poder que se recebe, se compartilha e se distribui através da prática ritual, da experiência mística iniciática, durante a qual certos elementos simbólicos servem de veículo. (SANTOS, p.43, 2007)

Nessa passagem podemos identificar dois elementos: primeiramente o fato

de mais uma vez estarmos nos remetendo à hereditariedade, “trata-se de um poder

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que se recebe”; em um segundo momento o fato de que a “prática ritual” se

apresenta como um fator de extrema importância, para que possa ocorrer a

circulação e a distribuição do axé.

Ainda em relação ao axé, devemos observar o seguinte:

O àse como toda força, pode diminuir ou aumentar. Essas variações são determinadas pela atividade e conduta rituais. A conduta está determinada pela escrupulosa observação dos deveres e obrigações – regidos pela doutrina e prática litúrgica – de cada detentor de àse, para consigo mesmo, para com o grupo, para com o terreiro. (SANTOS, p.40, 2007)

A partir dessa reflexão, nos é possível iniciar a construção do argumento

que irá corroborar nossa proposta inicial, onde buscaríamos, além de demonstrar a

obrigatoriedade presente nas relações entre os homens e os orixás no candomblé,

ainda demonstrar qual seria a origem ou o elemento capaz de justificar essa

obrigatoriedade.

Tendo em vista as considerações acima, bem como a importância que se

atribui ao axé, conforme o exemplo encontrado na definição que Pierre Verger nos

fornece em relação aos orixás, “O orixá é uma força pura, asé imaterial”, podemos

concluir que toda a estrutura religiosa está alicerçada sobre este princípio.

Como observamos, o axé é uma herança, transmitida pelos ancestrais, que

fora adquirida ao longo de suas existências, quer seja através da intervenção

divina direta (como o caso dos orixás), quer através da prática ritualística (egúns).

Para que o “terreiro” possa ser e preencher suas funções, deve receber àse. O àse é plantado e em seguida transmitido todos os elementos que integram o “terreiro”. (SANTOS, p.39, 2007)

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A casa ou terreiro, só passa a existir a partir do momento em que existe a

integração ou a adição do axé, pois sem ele, o referido lugar não possuiria força e

muito menos prestígio social.

Após esse axé ter sido recebido, mantê-lo passa a ser uma obrigação,

principalmente do pai ou mãe-de-santo, porém estendendo-se a todos os

elementos da hierarquia religiosa acima mencionada.

Esse poder permite que a existência seja, isto é, que a existência advenha, se realiza, é mantido, realimentado permanentemente no terreiro. A Iyá-l’àse é responsável por isso em primeiro lugar e todos os iniciados, sem exceção, devem desenvolver ao máximo o àsé do terreiro que em definitivo constitui seu conteúdo mais precioso, aquele que assegura sua existência dinâmica. (SANTOS, 2007, p.36)

Assim, o axé, nas religiões enraizadas na ancestralidade africana, é o

princípio e a energia da vida, ao mesmo tempo espiritual e material. O culto aos

orixás permite abastecer os humanos dessa energia vital, graças a um sistema

complexo de trocas com existentes entre os orixás e os homens.

Para concluirmos, podemos afirmar que por meio do axé, força dinâmica

da vida que é transmitida pelos ancestrais, há a troca entre homens e orixás, isto

faz com que passe a existir uma obrigatoriedade nesta troca já que aos homens

cabe a obrigação da retribuição desta energia propiciada e recebida dos orixás,

caso contrário a manutenção da ordem seria quebrada o pacto seria rompido, o axé

seria perdido, impossibilitando o funcionamento de toda a estrutura religiosa,

acarretando graves conseqüências para aqueles que negligenciaram suas

obrigações perante aos orixás e seus ancestrais.

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4.0 A OBRIGATORIEDADE NA VISÃO DOS PARTICIPANTES E CLIENTES

DO CANDOMBLÉ.

Nesse capítulo, buscaremos observar a noção de obrigatoriedade

desenvolvida nos capítulos anteriores, na visão das pessoas diretamente

envolvidas com o culto aos orixás, ou com pessoas que recorreram em algum

momento aos rituais religiosos do candomblé.

Para a realização do estudo de campo, havia sido selecionada uma

tradicional casa de matriz Keto, o Ilé Axé Seja Nasse, casa essa liderada pelo

Babalorixá Almir D’Oxum, localizada na cidade de Boituva –SP, conforme

indicação realizada por ocasião do exame de qualificação. A escolha ocorreu em

função de nossas ligações pessoais com essa casa e o referido zelador, fato este

que garantiria o acesso a diversas fontes para a realização aprofundada desta

etapa, por se tratar de uma casa com muitos seguidores, fornecendo uma

amostragem ampla em relação ao tema aqui investigado.

Em função de problemas de ordem estritamente pessoais, por ocasião da

realização deste estudo, nossas ligações com o referido babalorixá foram

interrompidas, o que impossibilitou a realização do estudo, anteriormente

proposto.

Diante da nova realidade, tivemos que buscar alternativas para a realização

do presente estudo de campo, fato esse não ocorrido, impondo-nos uma série de

dificuldades, relatadas adiante.

Devemos salientar que o trabalho de campo realizado nessa etapa, não foi

amplo e aprofundado sendo possível nesse momento apenas obter uma noção

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preliminar sobre a visão dos participantes e simpatizantes da religião dos orixás

em relação ao nosso tema. Na continuação do presente estudo, que esperamos se

realize em breve, o trabalho de campo receberá a atenção necessária, ao

aprofundamento dos referenciais teóricos desenvolvidos até aqui sobre a questão

da obrigatoriedade entre as três principais nações de candomblé presentes em

nosso país, Keto, Jêje e Angola, possivelmente também na Umbanda.

Para a realização do presente trabalho de campo, foi selecionada apenas

uma casa na cidade de Tatuí, escolha essa motivada pela facilidade de acesso,

dada a dificuldade encontrada no momento para pesquisar as casas de candomblé

da região.

Partimos da relação de casas de candomblé encontrada na internet na

página do sociólogo Reginaldo Prandi, onde constam informações básicas sobre

as mesmas.

Utilizando essas informações, enviamos para as casas selecionadas

diversas solicitações de auxilio para a realização do presente estudo, porém não

obtivemos sucesso.

Das diversas solicitações8 enviadas, apenas algumas foram retornadas,

porém, com uma série de objeções e de questionamentos relacionados à realização

das entrevistas, o que tornou impossível a sua realização.

Diante dessas dificuldades, combinadas a outros fatores de ordem pessoal,

fomos compelidos a realizar esta etapa do presente estudo na cidade de Tatuí -SP,

onde moramos e temos um relacionamento mais estreito com pessoas ligadas à

8 O modelo da solicitação enviada esta disponível nos anexos finais, juntamente com os modelos de questionários que foram aplicados aos entrevistados.

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religião. Foi exatamente através desses contatos que pudemos ter acesso a uma

casa de culto aos orixás e as pessoas que concordaram em nos auxiliar na

realização dessa etapa.

A cidade de Tatuí está localizada a cento e quarenta quilômetros da

capital, com cerca de cento e dez mil habitantes, estando próxima a grandes

centros como as cidades de Sorocaba, Campinas, Itu e Piracicaba.

Para a coleta de dados, foram realizadas cinco entrevistas: com o zelador

da casa, dois filhos de santo e dois freqüentadores ou clientes da mesma. Essas

entrevistas foram desenvolvidas com base em um roteiro previamente

estabelecido, disponível nos anexos desse trabalho.

As entrevistas realizadas não serão expostas em primeira pessoa na forma

de transcrição, mas sim transformadas em narrativas construídas a partir das falas

dos entrevistados.

4.1 O local do estudo

O estudo foi desenvolvido no Templo Espírita de Candomblé e Umbanda

Caboclo Sete Estrelas, localizado na Rua Silvio Silvério de Lima, nº 47, Jardim

Rosa Garcia, na cidade de Tatuí –SP.

De raiz Keto, a casa foi fundada em 1985 pelo próprio zelador o Sr. Marco

Antonio Vieira, cujo orixá é Oxossi.

Além do culto aos Orixás, fechado às pessoas que não pertencem às suas

estruturas religiosas, ali se realizam também rituais da Umbanda, parte essa aberta

ao público, que recebe atendimento diretamente com as entidades que ali se

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manifestam. Foi justamente após a realização de uma dessas sessões, que tivemos

acesso ao zelador da casa e demais entrevistados.

4.2 As entrevistas

Não se trata de uma novidade a dificuldade de acesso às informações e

mesmo aos espaços de culto das religiões de origem africana. A maioria dos

pesquisadores quer os antigos como, Pierre Verger, Roger Bastide, Edson

Carneiro, quer entre os mais novos como Josildeth Gomes Consorte e Maria

Salete Joaquim, já demonstraram em suas obras essa dificuldade.

Essa barreira só é quebrada após uma convivência mais intensa com essas

pessoas gerando uma maior confiança de sua parte. As religiões de matriz

africana, ainda é alvo de muitas especulações, preconceitos e ataques por parte

significativa da sociedade, inclusive através da mídia.

Em função desse motivo, os participantes do culto aos orixás, adotam uma

postura hermética, cercando-se de todos os cuidados para a divulgação ou

fornecimento de informações relacionados aos rituais e principalmente em relação

aos fundamentos dessa religião.

Devemos, ainda, observar que no caso específico de nosso estudo, as

pessoas envolvidas, desenvolvem uma atividade profissional paralela a atividade

religiosa, o que restringiu ainda mais sua disponibilidade de tempo para a

realização do presente estudo.

As entrevistas foram iniciadas pelo zelador, o Sr Marco Antonio Vieira, o

Pai Marco.

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4.2.1 Entrevista com o Zelador

Após termos sido apresentados como pesquisadores, pelo Sr. Heráclito

Camargo, que também colaborou com nosso trabalho, pudemos iniciar a

entrevista com Pai Marco.

Começamos apresentando as justificativas que nos levaram a buscar as

informações naquele local, bem como fazendo uma breve exposição do tema

desenvolvido no presente estudo.

A primeira questão formulada para o zelador, referia-se a quais seriam as

principais oferendas realizadas aos orixás. Segundo o entrevistado, eram ofertados

principalmente comidas como acarajés oferecidos à Iansã, Amalás oferecidos a

Xangô, milho torrado e cozido oferecidos a Oxossi e a Ogun, farinhas temperadas

e uma série de outros alimentos como legumes, frutas, bebidas diversas, flores e

outros ornamentos, além é claro, segundo ele, de uma variedade de outros

elementos que não foram especificados.

Na seqüência foi perguntado ao entrevistado, qual era a sua visão sobre a

relação entre os homens e os Orixás. Segundo ele, a relação entre os homens e

orixás está pautada em uma troca direta e muito próxima, onde de um lado os

orixás interferem em favor dos que os procuram, por outro lado os homens

deveriam realizar suas oferendas e obrigações para essas divindades.

Na questão seguinte, após demonstrar que nos estudos teóricos foi possível

a identificação da obrigatoriedade, buscamos captar qual seria a sua visão em

relação à essa questão. Para Pai Marco, essa obrigatoriedade existe, e ela se

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manifesta às vezes de maneira mais pacífica, em alguns casos de maneira mais

conflituosa. Em relação à questão da obrigatoriedade, ele nos demonstrou seu

ponto de vista, afirmando que essa obrigatoriedade seria estabelecida antes da

reencarnação das pessoas, quando seria firmado um tipo de “contrato”. Segundo

sua análise, esse contrato firmado entre a pessoa e uma divindade(que não foi

especificada), seria embasado no livre-arbítrio, não existindo aí a obrigatoriedade.

A obrigatoriedade estaria presente no cumprimento desse contrato ou

pacto firmado antes do nascimento do indivíduo. Especificamente no caso do

culto aos orixás, mesmo não tendo sido muito específico, foi possível perceber,

que se um indivíduo concorda em cultuar os orixás nesse contrato, ele será

cobrado a cumprir com o dever assumido.

Na questão seguinte, uma vez que ele já havia mencionado a questão da

cobrança, o entrevistado foi indagado sobre quais seriam essas cobranças.

Segundo ele essas cobranças variam de caso em caso, sendo as cobranças mais

comuns problemas de saúde de várias ordens, dores de cabeça constantes que não

são solucionadas através da interferência da medicina, tonturas, desmaios em

alguns casos.

Para ilustrar essa questão, ele nos forneceu um exemplo de uma filha de

sua casa que havia abandonado suas obrigações, e que depois de muitos anos

acabou retornando, justamente em função de problemas de saúde que se

manifestaram após o não cumprimento das mesmas perante seus orixás e perante a

casa a qual ela estava vinculada.

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Aproveitando esse tema perguntamos ao zelador, quais seriam os

principais motivos que levam as pessoas a procurarem o candomblé, quer sejam

os filhos da casa ou os clientes que procuram seus serviços espirituais.

Respondendo a essa questão, foi possível perceber uma certa mágoa

presente em seu discurso. Segundo ele, normalmente, as pessoas procuram o

candomblé como último recurso, quando já tentaram de tudo, tendo sido

esgotadas as possibilidades de resolução. Em alguns casos, as pessoas se cercam

de todo o sigilo, não querendo ser vistas entrando ou saindo desses locais. Outro

fato que nos chamou a atenção, foi a menção de que na maioria das vezes, as

pessoas, após terem resolvido os seus problemas, não voltam mais.

Ainda em relação aos motivos que levam as pessoas a procurarem sua

casa, segundo ele os mais comuns seriam: desespero, depressão, perturbações,

problemas afetivos e financeiros. Em relação à cobrança, nos foi informado que é

muito comum pessoas sofrerem essas cobranças em relação à mediunidade,

melhor dizendo em relação a não utilização dessa mediunidade.

Aproveitando a oportunidade, elaboramos uma questão que se referia ao

axé da casa, à questão da hereditariedade e também à sua manutenção e expansão.

Nesse sentido, Pai Marco nos informou que a manutenção do axé ocorre através

dos rituais que são realizados, como as oferendas, danças, cantos e tudo aquilo

que movimenta a casa.

Também questionamos o entrevistado, se além da questão da

obrigatoriedade, outros motivos levavam as pessoas até sua casa. Segundo ele,

muitas pessoas procuram conhecer o lugar por curiosidade, outras estão em busca

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de uma nova religião, pois já transitaram por diversos lugares e nunca se fixaram

em nenhum e em alguns casos as pessoas acabam desenvolvendo sentimentos,

afinidades com a religião dos orixás.

Finalizando a entrevista, a última questão foi elaborada de maneira bem

aberta, dando espaço para que o entrevistado expusesse livremente algumas

considerações que julgasse útil para uma melhor compreensão das religiões de

matriz africana. Finalizando, Pai Marco se referiu ao fato de que uma

característica das religiões africanas seria justamente o fato de que elas

enfrentariam continuamente situações, onde o inesperado e a novidade estariam

sempre presentes. Afirmou que seria justamente esta característica um dos

elementos que as pessoas dificilmente encontrariam em outra religião. Cita como

exemplo dessa afirmação situações ritualísticas, onde algumas coisas são

planejadas para a realização das cerimônias, porém no momento de sua

concretização, sempre ocorrem modificações: uma comida que é feita de maneira

diferente se acrescentando ou excluindo algo, a seqüência dessas oferendas que

podem ser alteradas inesperadamente, exigindo sempre o improviso e a adaptação

imediata à nova realidade que se faz presente.

4.2.2 Entrevistas com outros participantes da casa

Após o término da entrevista com Pai Marco e mediante a sua autorização,

procuramos junto as pessoas presentes, quais deles estariam disponíveis e

gostariam de contribuir com o nosso estudo. Apenas duas pessoas se ofereceram

para isso, sendo que uma delas optou pelo anonimato. O integrante da casa que

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autorizou a divulgação de seus dados foi o Sr. Heráclito Camargo, o responsável

pela nossa apresentação e que nos deu acesso à casa.

Foi elaborado outro roteiro para as entrevistas com os participantes da

casa, mais simples e direto. No caso do Sr. Heráclito, ele é filho de Oxalá, já está

na religião há quase dez anos, e ocupa a posição de Pai-Pequeno da casa. A outra

entrevistada, que solicitou o anonimato é apenas uma filha da casa, não ocupando

nenhum cargo. Ela é filha de Iemanjá. e está na casa há dois anos.

Quando questionado em relação aos motivos que o conduziram até o

candomblé, ele nos passou a informação de que na realidade não teria sido um

motivo específico, mas sim a combinação de diversos fatores que o conduziram a

esta religião. No caso da entrevistada anônima, foram problemas de saúde, mais

especificamente problemas neurológicos.

A questão seguinte, referia-se a quais tipos de oferendas normalmente são

realizadas pelos entrevistados. Nesse item ambos responderam sobre as oferendas

de comidas, bebidas, feitas especificamente para cada orixá, e deram ênfase nas

obrigações feitas ao orixá Exu, que devem ser realizadas todas as primeiras

segundas-feiras do mês. Questionados sobre o que se oferecia a Exu, disseram que

eram oferecidas farinhas temperadas com dendê e mel, cachaça, velas, panos,

entre outras coisas.

Na questão seguinte, perguntamos sobre a relação de obrigatoriedade

dessas oferendas se eram feitas livremente. Ambos responderam que não, apesar

da entrevistada indicar que ela fazia suas obrigações por respeito.

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Depois desse questionamento, indagamos aos entrevistados se na visão

deles haveria algum problema se essas obrigações deixassem de ser feitas. A

resposta de ambos também foi semelhante. Afirmaram que como os orixás cuidam

dos seus interesses, os protegem e tudo mais, é necessário que eles estejam “de

bem” com eles. Questionados sobre esse “de bem”, segundo eles, somente através

das realizações das obrigações. A entrevistada anônima, ainda afirmou que

quando não é possível a realização das obrigações nos dias estipulados, é

necessário ao menos acender uma vela e explicar para o orixá os motivos da não

realização das oferendas, e que segundo ela, “eles entendem que não deu para

fazer”. Adotando essa prática, não existiria nenhuma cobrança.

A última questão foi elaborada de maneira direta, com o objetivo de

perceber como os entrevistados se sentiam diante da obrigatoriedade na realização

das oferendas e obrigações para os orixás. Apenas o Sr. Heráclito respondeu a

essa questão. Segundo ele existe sim essa obrigatoriedade, mas que na maioria das

vezes ele “faz de coração” por gratidão pela proteção e por toda a ajuda que os

orixás já lhe deram. Pudemos notar em sua fala, claramente a questão da

reciprocidade.

4.2.3 Entrevistas com os clientes da casa.

Aproveitando a oportunidade, foi possível, após a autorização do zelador,

entrevistar duas clientes que estavam presentes. Não foi elaborado um roteiro

específico pra essa finalidade, pois não era a nossa intenção inicial, porém com a

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falta de participação dos demais filhos da casa, foi necessária a improvisação, que

em nossa percepção, enriqueceu nosso trabalho.

Uma das entrevistadas foi a Srª Maria Fabiana da Cruz, residente em Tatuí,

que concordou em responder a algumas questões, após uma breve exposição sobre

o tema central de nosso trabalho.

Após a devida identificação, perguntei-lhe quais os motivos que a levaram

a procurar o candomblé. Segundo ela, seu maior problema era em relação a

questões afetivas. Tinha problemas em encontrar namorados, e quando os

encontrava, seus relacionamentos não duravam quase nada. Após ter procurado

cartomantes, ter feito simpatias e outros procedimentos não especificados, ela

informou que através de uma consulta com Pai Marco, foi identificado um

problema, ou melhor, uma dívida ou cobrança que ela tinha com um orixá, que

quando indagada, ela achou melhor não revelar. Disse que o referido problema foi

resolvido após passar por um ebó e realizar algumas oferendas de tempos em

tempos.

Questionada sobre a obrigatoriedade dessas oferendas, a entrevistada disse

que acreditava que sim, já que os problemas só foram solucionados após a

realização dessas oferendas. Questionamos mais uma vez a Srª Fabiana(nome pelo

qual ela prefere ser chamada) em relação a continuidade dessas oferendas. Ela

respondeu prontamente: “...em time que esta ganhando, não se mexe”.

Finalizando as entrevistas repetimos as mesmas questões para a outra

cliente da casa, que optou pelo anonimato. Nossa segunda entrevistada ao ser

indagada sobre quais teriam sido os motivos que a levaram até aquela casa de

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candomblé, nos respondeu que foi um problema relacionado à insônia. Pelas

informações que nos foram transmitidas, ela chegou a passar duas semanas em

claro, não conseguia dormir, tinha muito sono apenas nos horários em que não

podia estar descansando, em função de suas atividades profissionais. Após ter

conhecido a casa através de outra pessoa conhecida que fez a indicação do lugar,

ela fez uma consulta e descobriu que o seu problema de insônia estava relacionada

a uma “cobrança de santo”. Segundo a entrevistada, após a realização das devidas

oferendas, o problema da insônia foi resolvido,

Perguntamos se essas obrigações devem continuar sendo feitas, e segundo

ela sim, de tempos em tempos elas devem ser realizadas. Indagada sobre o

intervalo dessas obrigações nossa entrevistada disse que ela sabe que esta na hora

de fazer as obrigações novamente quando ela começa a não dormir bem. Em

relação a esse tema, questionamos se o fato de ela começar a não dormir bem

poderia ser encarado como uma cobrança do orixá. A entrevistada nos afirmou

que sim, e que não se sente muito à vontade fazendo essas obrigações e oferendas,

mas não tem alternativa, precisa do “sono em dia” para cumprir com suas tarefas

cotidianas.

4.3 Considerações finais sobre o trabalho de campo.

Conforme explicitado na introdução desse capítulo, não foi possível

desenvolver esta etapa empírica a partir de uma fonte mais ampla e aprofundada,

conforme planejado, isso em função das dificuldades surgidas e motivos

apresentados, razão pela qual o presente trabalho assumiu um caráter mais teórico.

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Consideramos mesmo assim, extremamente relevantes as informações que

foram levantadas nessa etapa. Mais uma vez a sensibilidade e a experiência da

Profª Drª Josildeth Gomes Consorte, através de sua orientação atenta, nos

conduziu pelo caminho correto.

Nosso contato com a casa de santo foi restrito. Não nos foi permitido

acessar as instalações onde são realizados os atos ou obrigações, restando-nos

apenas a área aberta ao público em geral. Mesmo assim, as informações coletadas

durante esta pesquisa, nos permitem chegar a algumas considerações finais.

Assim como demonstrado teoricamente através dos estudos realizados por

grandes pesquisadores das religiões africanas como Pierre Verger, Júlio Braga,

entre outros, a obrigatoriedade na relação homem-orixá pode ser constatada na

análise dos referenciais mitológicos, assim como nos estudos relacionados à

ancestralidade. Na presente etapa também nos foi possível perceber o elemento

obrigatoriedade entre as pessoas diretamente relacionadas ao candomblé.

Tanto na opinião e nas informações fornecidas pelo zelador entrevistado, o

Pai Marco, um líder da religião, que ocupa o lugar mais elevado na hierarquia de

sua casa, assim como pelo outro entrevistado o Sr. Heráclito, que também ocupa

um lugar de destaque na hierarquia, mas também na visão de uma pessoa que não

está em destaque nessa hierarquia, nos foi possível notarmos que existe essa

percepção da obrigatoriedade implícita na relação homem-orixá e que essa

obrigatoriedade pode aparecer acompanhada de outros sentimentos como gratidão,

ou mesmo de reciprocidade.

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Além das pessoas diretamente envolvidas com a prática ritualística, nos foi

possível perceber através das entrevistas realizadas, que as pessoas que procuram

o candomblé como “clientes” também possuem essa percepção da obrigatoriedade

que está presente e envolvida nas oferendas, ebós e demais obrigações oferecidas

aos orixás.

Nesse sentido, durante a realização desse trabalho de campo, nos foi

possível reunir mais um argumento que vem corroborar a proposição realizada na

introdução do presente trabalho, quanto à obrigatoriedade nas relações de troca

entre os homens e os orixás.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tomando como referencial, O Ensaio Sobre a Dádiva de Marcel Mauss

nos foi possível estabelecer o foco de nosso estudo, ou seja, analisarmos essa

noção de obrigatoriedade nas relações estabelecidas entre os homens e os orixás

no interior das religiões de matriz africana, mais especificamente o candomblé de

raiz Keto.

Para demonstrarmos sua existência, recorremos, no segundo capítulo, ao

estudo das narrativas mitológicas, onde esse elemento aparece abertamente nas

relações que se estabelecem entre os homens e os orixás, e até mesmo entre os

próprios orixás.

Através da análise da importância do mito para a compreensão dessas

relações, pudemos perceber a importância que o mesmo possui como um

elemento que propicia a transmissão dos conhecimentos necessários para que a

ordem, a harmonia e todo o sistema religioso seja mantido.

A partir da análise dessa obrigatoriedade nas narrativas mitológicas,

podemos entender como o caráter de obrigatoriedade se faz presente na estrutura

social e religiosa do candomblé. Nos mitos selecionados, ocorriam graves

conseqüências aos indivíduos que não cumpriram com as suas obrigações perante

os orixás, ou mesmo situações que não seriam resolvidas ou apaziguadas, senão

pela realização das obrigações que eram solicitadas, diretamente, ou por

intermédio do oráculo.

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Outro aspecto abordado refere-se à questão da ancestralidade, onde após

observarmos a noção de família presente no candomblé, conseguimos identificar

uma estrutura de parentesco, quer seja de um ancestral divinizado como é o caso

dos orixás, quer seja através dos eguns e sua importância para as relações de

obrigatoriedade.

Em relação à ancestralidade e a hereditariedade, pudemos analisar a

questão da obrigatoriedade no que se refere à transmissão e a manutenção do axé,

elemento vital para a existência de todo o sistema religioso, sem o qual seria

impossível a manutenção da aliança entre os homens e os orixás, em outras

palavras, a obrigatoriedade da realização das práticas ritualísticas que possibilitam

a manutenção e a expansão dessa força vital.

Finalmente através do contato com as pessoas diretamente envolvidas

nesse sistema social e religioso percebemos que existe uma consciência dessa

obrigatoriedade, tanto em relação às lideranças assim como aos demais

participantes e à clientela da casa analisada. Conforme as entrevistas somente

através do cumprimento das chamadas obrigações, ou das oferendas, foi possível

a resolução de problemas específicos, que já se prolongavam sem solução durante

muito tempo.

Consideramos assim que o objetivo proposto para a realização do presente

estudo foi plenamente alcançado, ou seja, demonstrar através das linhas

argumentativas desenvolvidas, através da mitologia, da ancestralidade e do

contato direto com os integrantes e clientes dessa religião, que a noção de

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obrigatoriedade proposta por Mauss se faz presente nas estruturas religiosas do

candomblé.

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GLOSSÁRIO Esse glossário foi elaborado com o objetivo de propiciar uma melhor

compreensão para os leitores, uma vez que, principalmente nas narrativas

mitológicas selecionadas, existe uma diversidade de termos específicos utilizados

no cotidiano do candomblé pelo povo de santo.

Usaremos como referencial o glossário elaborado e presente na obra

Mitologia dos Orixás do sociólogo Reginaldo Prandi, uma vez que desta obra

foram extraídos as narrativas mitológicas selecionadas.

Abará: bolinho de feijão-fradinho amassado cozido no vapor.

Abebé: leque de metal; ferramenta dos orixás femininos.

Aberé: agulha; no Brasil, escarificações rituais (tatuagens) feitas no corpo e

membros do iniciado.

Abicu: entidade que faz com que as crianças morram prematuramente. O abicu

nasce para morrer e assim poder nascer de novo.

Abô: infusão de água com folhas maceradas e outras substâncias como mel,

sangue, etc.

Acaçá: bolinho de amido embrulhado em folha de bananeira.

Acarajé: bolinho de feijão-fradinho amassado frito em azeite-de-dendê.

Acocô: planta africana Newbouldia Laevis Seem., Bignoniaceae. Usada na

coroação de reis e sagração de sacerdotes de alta hierarquia.

Acorô: pequena coroa usada por Ogum.

Adê: coroa.

Adié: galinha.

Adjá: espécie de instrumento ritual; no candomblé, campainha metálica.

Adô: pequena cabaça para carregar pólvora, embornal dos orixás caçadores.

Também nome da cabaça com búzios que Eua leva na mão quando dança e que

em alguns candomblés é chamada de aracolê.

Agbô: carneiro macho.

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Agogô: instrumento rítmico composto de duas campânulas metálicas.

Agutã: carneiro ou ovelha.

Aiabá: rainha, esposa do rei; no candomblé, orixá feminino.

Aiê: Terra, mundo dos homens. Outro nome para o orixá Onilé.

Ajagunã: título com o significado de grande guerreiro; outro nome para Oxaguiã,

o Oxalá jovem e guerreiro que inventou o pilão.

Ajalá: orixá da Criação, é encarregado de fabricar as cabaças, ori; está esquecido

no Brasil e Cuba.

Ajé: feiticeira.

Ajê Xaluga: orixá da riqueza.

Alá: pano, pano branco, pálio de Oxalá.

Alabê: dono da navalha, encarregado das escarificações rituais (aberés); no

Brasil, ogã tocador de atabaque, chefe da orquestra do candomblé.

Alafim: título do rei de Oió.

Amalá: comida predileta de Xangô; no candomblé, comida à base de quiabo,

camarão seco e azeite-de-dendê; no batuque, prato preparado com folhas de

mostarda.

Apaocá: título sacerdotal e árvore sagrada africana; no Brasil, a jaqueira

(Artocarpus integrifolia, L. Moraceae). Também nome de divindade.

Aquicó: galo.

Aroni: duende de uma perna só que habita a floresta e conhece o uso medicinal

das ervas. Diz-se que acompanha Ossaim, a quem teria ensinado o segredo das

folhas.

Ató: pequena cabaça usada para guardar remédios, símbolo de Ossaim e Omulu,

orixás ligados à cura.

Atori: vareta usada para flagelação em cerimônia a Oxaguiã; representa os

ancestrais; vara da árvore africana Glyphaea lateriflora.

Axé: força mística dos orixás; força vital que transforma o mundo.

Axexê: rito fúnebre em que os assentos dos orixás do morto são quebrados e

despachados juntamente com o despacho do egum.

Axó: roupa.

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Babalaô: sacerdote de Orunmilá; sacerdote do oráculo; adivinho.

Balé: relativo ao culto dos antepassados, eguns, culto que é restrito aos homens.

Bará: outro nome para Exu; é o nome de Exu no batuque gaúcho.

Bata: tambor usado em cultos afro-brasileiros, como no Xangô de Pernambuco;

na África, tambor de Xangô.

Bilala: chibata usada por Otim e Oxossi.

Bori: sacrifício à cabeça; primeiro rito de iniciação no candomblé.

Ebó: sacrifício, oferenda, despacho.

Ecô: bolinho de amido de milho branco ou amarelo embrulhado em folha de

bananeira.

Ecodidé: pena vermelha de um papagaio africano, edidé, ou papagaio-da-costa.

Ecuru: bolinho de feijão-fradinho cozido no vapor.

Edum ará: pedra de raio, fetiche de Xangô.

Efum: giz, pó branco.

Egbé: fazenda, associação, comunidade; no candomblé. Comunidade do terreiro;

também emoções profundas, coração.

Egbé: orixá também considerado uma espécie de egungum feminino cultuado por

mulheres em Ibadã, muito ligada aos problemas de saúde das crianças. A cana-de-

açúcar é seu atributo.

Egum: antepassado, espírito de morto, o mesmo que egungum; alguns orixás são

eguns divinizados.

Egungum: o mesmo que Egum.

Eié: pássaro.

Elegbara: outro nome para Exu.

Eleguá: nome pelo qual Exu é conhecido em Cuba, onde o termo Exu é reservado

às qualidades maléficas dos orixás.

Eleié: literalmente, o dono ou a dona do pássaro; epíteto usado para referir-se às

Iá Mi.

Equede: literalmente, segunda (pessoa); na África, cargo sacerdotal do rei, que só

estava abaixo do orixá daquela cidade, de quem se acreditava que o rei descendia

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diretamente; no Brasil, a iniciada no candomblé para cuidar dos orixás, vesti-los e

dançar com eles.

Erinlé: orixá da caça, pai do orixá Logum Edé; o mesmo que Inlé. Está esquecido

no Brasil, onde Oxossi tomou seu lugar em muitos mitos, e é raramente cultuado

em Cuba.

Euá: orixá das fontes; dona dos cemitérios.

Euê: folha.

Euó: interdição religiosa; tabu; quizila.

Exu: orixá mensageiro; dono das encruzilhadas e guardião da porta de entrada da

casa; sempre o primeiro a ser homenageado.

Funfum: branco.

Gã: instrumento rítmico em forma de cone metálico achatado.

Iá Mi Oxorongá: feiticeiras, mães ancestrais.

Ialodê: encarregada de organizar o trabalho comunitário das mulheres da aldeia.

Iamassê: mãe de Xangô.

Iansã: outro nome para Oiá; literalmente, a mãe dos nove filhos.

Iaô: esposa jovem; filha ou filho-de-santo; grau inferior da carreira iniciática dos

que entram em transe de orixá.

Ibá: cabaça; assentamento ou altar da divindade.

Ibejis: orixás gêmeos; protetores das crianças.

Ibiri: cetro ritual de Nana em forma de jota.

Icu: a Morte.

Idá: espada, punhal.

Idoú: terceiro irmão dos gêmeos Ibejis.

Iemanjá: orixá do rio Níger, dona das águas, senhora do mar, mãe dos orixás.

Iemu: orixá esposa de Obatalá. Foi substituída na maioria dos mitos por Iemanjá.

Seu culto está restrito à cidade de Ifé, na Nigéria.

Ifá: outro nome para Orunmilá; também os apetrechos do babalaô e do próprio

oráculo.

Igbá ou ibá: cabaça; cabaça que contém a representação material de um orixá,

assento ou assentamento de orixá.

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Igbim: caracol catassol; animal predileto de Oxalá:

Ilu: tambor.

Imolé: designação das divindades que habitaram a Terra nos tempos primordiais e

que participaram da Criação; o mesmo que irunmolé. Dizem que são em número

de trezentos e um, ou seja, incontáveis; também se diz que são os próprios orixás.

Indé: metal amarelo, pulseira.

Inlé: outro nome para Erinlé; orixá do rio Erinlé.

Iroco: árvore africana sagrada (Chlorophora excelsa, Moraceae) onde mora Oro,

o espírito da floresta; no Brasil, gameleira-branca (Ficus máxima M., Moraceae),

cultuada como orixá nos antigos candomblés da Bahia e Pernambuco.

Irofá: sineta-bastão de madeira usada pelos babalaôs para invocar Ifá no ato da

adivinhação.

Irunmolé: o mesmo que imolé.

Iruquerê: espanta-mosca feita com o rabo de cavalo ou outro animal, usado por

reis africanos como símbolo de poder e por alguns orixás, especialmente Oiá e

Oxossi.

Logum Edé: orixá da caça e da pesca; filho de Erinlé ou Oxossi com Oxum.

Mariô:folha nova da palmeira de dendê.

Nana, Nana Burucu: orixá do fundo dos lagos; dona da lama com que Obatalá

modelou o homem. Teria sido a mãe dos orixás Omulu e Oxumarê, que com ela

formam a tríade de voduns do Daomé incorporados ao panteão dos orixás.

Obá: orixá do rio Obá; uma das esposas de Xangô.

Obá: rei, soberano da cidade.

Obaluaê: orixá da varíola, das pestes, das doenças contagiosas.

Obarixá: outro nome para Obatalá.

Obatalá: literalmente, Rei do Pano Branco; orixá da Criação; criador do homem;

considerado o maior dos orixás.

Obé: faca.

Obi: noz-de-cola, fruto africano aclimatado no Brasil (Cola acuminata,

Streculiacea), indispensável nos ritos do Candomblé; substituído em Cuba pelo

coco.

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Ocum: mar, oceano.

Odara: bom, bonito.

Odé: caçador, nome genérico para orixás da caça; denominação de Oxossi na

nação nagô do Xangô pernambucano e no batuque gaúcho.

Odu: nome de uma das mais velhas feiticeiras Iá Mi Oxorongá, que teria sido

mulher de orunmilá.

Odu: signos do oráculo iorubano, formado de mitos que dão indicações sobre a

origem e o destino do consulente. O odu é obtido ao acaso, pelo lançamento de

dezesseis búzios, dezesseis cocos de dendê, ou pela cadeia de adivinhação de Ifá.

Na África, os odus são histórias em forma de poemas recitados de cor pelo

babalaô. Em Cuba, os babalaôs mantém os mitos dos odus escritos em caderno

que conservam em segredo (pataquis). No Brasil, os poemas estão esquecidos,

conservando-se contudo seus nomes, nomes de orixás que fazem parte das

narrativas e presságios de cada um deles. Odus são divindades enviadas por

orunmilá para ajudar os homens.

Odudua: orixá da Criação; criador da terra; masculino ou feminino.

Ofá: arco e flecha; ferrameneta de Oxossi.

Ofó: cantiga de encantamento.

Ogã: na África, alguém que ocupa um cargo superior, mestre; no Brasil,cargo

sacerdotal masculino do candomblé, incluindo o tocador, o sacrificador e homens

de prestígio ligados afetivamente aos grupos de culto.

Ogó: porrete usado por Exu, geralmente com formato fálico.

Ogum: orixá da metalurgia, da agricultura e da guerra.

Oiá: orixá dos ventos, do raio, da tempestade; dona dos eguns; uma das esposas

de Xangô.

Oiê: cargo, posto hierárquico, título.

Ojá: pano de amarrar na cintura das mulheres, laço, lenço.

Ojé: sacerdote do culto dos mortos.

Olocum: orixá dos mares; mãe de Iemanjá; também aparece como orixá

masculino. No Brasil é uma qualidade de Iemanjá.

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Olodumare: deus supremo. Criou os orixás e deu a eles as atribuições de criar e

controlar o mundo.

Olofim: denominação pela qual o Deus Supremo (Olodumare, Olorum) é

chamado em Cuba. Na África, Olofim ou Alafim é o título do rei de Oió. No

recife, no terreiro Sítio de Pai Adão, Olofim está assentado como qualidade de

Orixalá.

Olorum: literalmente, Dono do Céu; nome pelo qual é denominado

preferencialmente no Brasil o Deus Supremo.

Omi: água.

Omi eró: literalmente, água que acalma; abô de folhas suaves; também “sangue”

de caracol.

Omulu: outro nome para Obaluaê.

Onilé: literalmente, Dona de Ilê, Dona da Terra. Orixá feminino pouco conhecido

no Brasil, homenageado, contudo, em candomblés tradicionais na Bahia e

candomblés africanizados, especialmente no início do xirê. Também chamada

Aiê.

Opaxorô: báculo ou longo bastão de madeira usado por Oxalá, no Brasil

confeccionado com material prateado.

Opelê: instrumento de adivinhação de Ifá, formado por oito metades de caroços

de dendê unidos por uma cadeia. O babalaô atira a cadeia no chão e a

configuração obtida (faces côncavas ou convexas voltadas para cima) determina o

odu.

Oquê: orixá da montanha; está esquecido no Brasil.

Oquerê: variante de Oquê; título do governante da cidade de Xaqui.

Oraniã: orixá das profundezas de Terra, filho de Odudua e rei de Ifé.

Ori: divindade da cabeça de cada indivíduo; recebe oferendas no ritual do bori.

Ori: cabeça; destino.

Ori: manteiga vegetal usada para untar a pele, limo-da-costa.

Oriqui: epíteto, frase de louvação que acompanha o nome de determinada pessoa,

família ou orixá a que fala de seus atributos e atos heróicos.

Orixá: divindade, deus do panteão iorubá.

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Orixá Oco: orixá da agricultura; esquecido no Brasil.

Orixalá: Orixá Nlá, o grande orixá; outro nome para Oxalá. Forma pela qual

Oxalá ou Orixalá é referido na nação nagô do Xangô pernambucano.

Orô: temido espírito da floresta, de voz rouca e cavernosa e mau gênio; também

egum. Esquecido no Brasil e raramente lembrado em Cuba.Também chamado

Orixá-Orô e Ita. Seu culto é interditado às mulheres.

Orobô: noz-de-cola amarga, falso obi (Garcinia gnetoides, Guttiferae), fruto

usado no culto de Xangô.

Orum: Céu, mundo sobrenatural, mundo dos orixás; cada um dos nove mundos

paralelos da concepção ioruba.

Orungã: orixá filho de Iemanjá, que a teria violentado, dando origem ao

nascimento dos demais orixás. Esquecido no Brasil e em Cuba.

Orunmilá: orixá do oráculo. Importantíssimo em Cuba, onde é chamado de orula,

está praticamente esquecido no Brasil, exceto em alguns xangôs tradicionais de

Pernambuco e em candomblés africanizados, em que seu culto vem sendo

recuperado.

Ossá: lagoa, lago, mar.

Ossaim: orixá das folhas, orixá que cura com as ervas.

Ossum: pó vermelho usado para pintar o corpo em certas cerimônias; giz.

Otá: pedra; seixo usado para assentar (representar) o orixá.

Otim: aguardente, bebida.

Otim: orixá do rio Otim, cultuado no batuque do Rio Grande do Sul como a

mulher de Odé ou Oxossi: no candomblé queto é uma qualidade de Oxossi.

Ouô: búzio, dinheiro.

Oxaguiã: Oxalá jovem; orixá da Criação; inventou o pilão para comer inhame

mais facilmente, criando assim a cultura material. No Brasil e em Cuba é

considerado uma qualidade de Oxalá; na África é o orixá que teria sido rei de

Ejigbô, o Elejigbô.

Oxalá: Grande Orixá; outro nome para Obatalá; nome preferencial de Obatalá no

Brasil.

Oxalufã: Oxalá velho; nome pelo qual Obatalá é referido no Brasil.

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Oxé: machado duplo de Xangô.

Oxo: iniciado; nome do cone feito de obi mascado, ori e outros elementos, que é

fixado no alto da cabeça raspada do iniciado, indicado que ele está pronto para

receber o orixá no transe.

Oxóssi: orixá da caça.

Oxu: orixá da lua.

Oxum: orixá do rio Oxum; deusa das águas doces, do ouro, da beleza e da

vaidade; uma das esposas de Xangô.

Oxumarê: orixá do arco-íris. Em Cuba é o nome da coroa de Iemanjá e às vezes

uma qualidade dela.

Paó: bater palmas; palmas ritmadas em tom respeitoso; saudação aos orixás ou

iniciados de alta hierarquia, que se faz prostrando-se no chão.

Peregum: a planta dracena (Dracaena fragrans, Agavaceae).

Sapatá: outro nome para Obaluaê.

Uági: pó azul usado para pintar o corpo em certas cerimônias.

Vodum: divindade, deus do panteão jeje; alguns voduns foram incorporados ao

panteão ioruba como orixás.

Xangô: orixá do trovão e da justiça; teria sido rei de Cossô e o quarto rei de Oió.

Xapanã: outro nome para Obaluaê.

Xaxará: vassoura-cetro de Omulu.

Xequerê: chocalho feito com cabaça coberta por uma rede de contas.

Xere: chocalho usado no culto de Xangô.

Xirê: brincar; no candomblé, ritual em que os filhos e filhas-de-santo cantam e

dançam numa roda para todos os orixás.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARAL, Rita. Xirê! O modo de Crer e de Viver no Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2002. AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral. Dicionário histórico de religiões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002. BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição a Uma Sociologia das Interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira Editora, 1971. ________. O candomblé da Bahia. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. BRAGA, Júlio. Ancestralidade Afro-Brasileira: o culto de babá egum. Salvador: CEAO/Ianamá, 1992. CAILLOIS, Roger. O Mito e o Homem. Portugal: Ed. 70, 2000. CAMPBELL, Joseph (Org.) Mitos, Sonhos e religião. São Paulo: Ediouro, 2001. CARNEIRO, Edson. Candomblés da Bahia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. CONSORTE, Josildeth G. Sincretismo, Antisincretismo e dupla pertença em terreiros de Salvador, in NEGRÃO, Lísias N. Novas Tramas do Sagrado: trajetórias e multiplicidade. Edusp: São Paulo, 2009. DICIONÁRIO DE CIÊNCIAS SOCIAIS. Fundação Getúlio Vargas. Rio de Janeiro, 1986. ELIADE, Mircea. Aspectos do Mito. Portugal: Ed. 7, 2000. ________. Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Mercuryo, 2007. ________. Mito e Realidade. São Paulo: Pespectiva, 2007. ________. Mitos, Sonhos e Mistérios. Portugal: Ed. 70, 2000. HOFBAUER, Andreas. Mitologia dos orixás. Rev. Antropol. [online]. 2001, v. 44, n. 2, pp. 251-258. ISSN 0034-7701. doi: 10.1590/S0034-77012001000200015. JOAQUIM, Maria Salete. O papel da liderança religiosa feminina na construção da identidade negra. Rio de Janeiro: Pallas; São Paulo: Educ. 2001.

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LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002. LEITE, Fábio. A Questão Ancestral: Notas Sobre Ancestralidade e Instituições Ancestrais em Sociedades Africanas. Tese de Doutorado USP. LEVI-STRAUSS, Claude. Introdução à Obra de Marcel Mauss. in Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. _________. Minhas Palavras. São Paulo: Brasiliense, 1991. _________. Mito e Significado. Portugal: Edições 70, 1989. _________. O Cru e o Cozido (Mitológicas vol.1). São Paulo: Cosac & Naify, 2004. MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a dádiva. in Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. MAUSS, Marcel e HUBERT, Henry. Ensaio Sobre a Natureza e a Função do Sacrifício. In: Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, 2001. MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. Candomblé: religião do corpo e da alma: tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2000. OLIVA, Anderson. As faces de Exu: representações européias acerca da cosmologia dos orixás na África Ocidental (Séculos XIX e XX). Disponível em: http://www.upis.br/revistamultipla/multipla18.pdf#page=9. Acesso em: 02 fev 2009. OWUFA Ogbebara. Igbadu: a Cabaça da Existência: mitos nagô revelados. Rio de Janeiro: Pallas, 1998. PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Cia. das Letras, 2001. ________. Segredos Guardados: Orixás na Alma Brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 2005. PEREIRA, José Carlos. Sincretismo Religioso e & Ritos Sacrificiais: influência das religiões afro no catolicismo popular brasileiro. São Paulo: Zouk, 2004. PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica. 3. ed. Lisboa: Calouste Gulkbenkian, 2002, v.1 RAMOS, Wellington Santos. Significado do Sacrifício no Candomblé. Dissertação de Mestrado PUC-SP, 1999.

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REIS, Alcides Manoel dos. Candomblé: a Panela do Segredo. São Paulo: Mandarim, 2000. ROCHA, Agenor Miranda. Caminhos de Odu. Rio de Janeiro: Pallas, 1999. SANTOS, Acácio Sidnei Almeida. A dimensão Africana da Morte regatada nas Irmandades Negras, Candomblé e Culto Babá Egum. Dissertação de Mestrado PUC-SP SANTOS, Juana Elbein. Os nagô e a Morte: Páde, Asèsè e o culto Égun na Bahia. Rio de Janeiro: Vozes, 2007. SOUZA, Eudoro de. História e Mito. Brasília: EdUNB, 1981. VELHO, Yvonne Maggie Alves. Guerra de Orixá: um Estudo de Ritual e Conflito. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977. VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas Africanas dos Orixás. Salvador, Currupio, 1997. ________. Notas Sobre o Culto dos Orixás e Voduns. São Paulo: Edusp, 2000. ________. Orixiás: Deuses Iorubas na África e no Novo Mundo. Salvador: Currupio, 1997. VOGEL, Arno. A Galinha D’Angola: Iniciação e identidade na cultura Afro-Brasileira. Rio de Janeiro: Pallas 2005.

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ANEXO I Questionários para a realização das entrevistas

QUESTIONÁRIO/ROTEIRO PARA DESENVOLVIMENTO DE TRABALHO DE CAMPO

MODELO I – IDENTIFICAÇÃO DA CASA

( ) Autoriza a divulgação/publicação da identificação ( ) Anonimato

Questões 1)Nome da Casa:__________________________________________ 2)Ano de Fundação:________________________________________ 3)Nome do Selador/Responsável:_____________________________ 4) Qual o Orixá da Casa?:__________________________________________________ 5)Localização: Município:_______________________ ESTADO:______________ CEP:____________ Endereço:________________________________________________ _____________________________________ BAIRRO:__________________________ 6) Contato: e-mail________________________________________ Telefone:_____________________________________ 7) Está vinculada a outra Casa? ( ) SIM ( ) NÂO 8) A Casa é de matriz: ( ) Angola ( ) Keto ( )Jêje ( ) Outros

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QUESTIONÁRIO/ROTEIRO PARA DESENVOLVIMENTO DE TRABALHO DE CAMPO

MODELO II – ZELADOR/RESPONSÁVEL

( ) Autoriza a divulgação/publicação da identificação ( ) Anonimato

Questões

1)Nome do Zelador/Responsável: ________________________________________________________ 2)Quais são os principais tipos de oferendas que são realizadas em sua casa? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3)Quais são os principais motivos que levam as pessoas a freqüentarem a sua casa? Seria algum tipo de cobrança? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 4) Qual é a sua visão da relação que existe entre os homens e os Orixás?

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________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5) Nos estudos realizados, através da mitologia e da questão da ancestralidade, pude perceber a existência de um caráter de obrigatoriedade existente nessas relações. Na sua vivência e experiência direta com a religião, qual é a sua visão em relação à essa questão? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6) Haveria algum tipo de cobrança/prejuízo para a Casa e seus participantes caso as “obrigações”/oferendas deixassem de ser realizadas? Quais seriam? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 7)Em relação à questão do “Axé” da Casa, como se dá a sua manutenção ou expansão? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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8)Em sua opinião existiria essa relação de obrigatoriedade no culto aos Orixás ou o que motiva as pessoas a praticar/cultuar os Orixás ocorre por outros motivos? Quais seriam esses motivos? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 9) Você poderia ou gostaria de acrescentar alguma informação que julgaria útil para um melhor entendimento das religiões de matriz africana? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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QUESTIONÁRIO PARA DESENVOLVIMENTO DE TRABALHO DE CAMPO

MODELO III – PARTICIPANTES DA CASA

( ) Autoriza a divulgação/publicação da identificação ( ) Anonimato

Questões

1)Identificação do(a) entrevistado(a): Nome:___________________________________________________ Tempo de iniciação/participação:______________________________________ Cargo/Função que exerce na casa:___________________________________________________ É filho de qual Orixá?:_________________________________________________ 2) Quais foram os motivos que o levaram a participar dessa religião? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 3) Quais são as oferendas que você costuma fazer aos Orixás? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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4) Em sua opinião, essas oferendas são feitas livremente? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 5) Você acredita que haveria algum problema se você deixasse de fazer essas oferendas? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ 6)Você se sente obrigado a realizar essas oferendas ou as realiza por outros motivos? ________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

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ANEXO II Modelo de Solicitação de entrevistas para a realização do trabalho de campo enviados por email para as casas e zeladores. Olá... Meu nome é Renato... Sou professor universitário na área das Ciências Sociais... Estou concluindo meu mestrado na PUC–SP e preciso realizar uma pesquisa de campo diretamente com as pessoas de Santo... Devo salientar que não se trata de especulação, mas sim estou tentando através de meu trabalho, demonstrar a grandiosidade cultural que o Candomblé representa para nosso País, e que tenho muito respeito pelas pessoas e pela sua religião... Caso haja disponibilidade e interesse de sua parte em estar participando desse projeto, gostaria que me retornasse após a leitura dessa mensagem. Sua participação consistiria em uma entrevista, onde através de um questionário, buscaria compreender a sua visão em relação ao tema da minha pesquisa. Desde já agradeço sua atenção... Muito obrigado... Prof. Renato