Renato de Lima Da Costa

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  • 8/18/2019 Renato de Lima Da Costa

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    Renato de Lima da Costa

    Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra

    “A sociedade pós-moralista”

    MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    SÃO PAULO2012

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    PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

    PUC-SP

    Renato de Lima da Costa

    Ética e religião em Gilles Lipovetsky: uma análise da obra

    “A sociedade pós-moralista”  

    MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

    Dissertação apresentada à Banca Examinadora da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

    como exigência parcial para obtenção do título de

    MESTRE em Ciências da Religião, sob a

    orientação do Prof. Dr. João Décio Passos.

    SÃO PAULO

    2012

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    ERRATA

    Agradeço também à “Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior”

    (CAPES), pela bolsa de estudos a mim conferida durante 4 semestres deste curso, permitindo-

    me a continuidade dos meus estudos.

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    Banca Examinadora:

     ______________________________

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     Dedico este trabalho ao meu Senhor e Salvador Jesus

    Cristo, cujo sublime amor para comigo foi demonstrado em

    sofrimento voluntário numa cruz.

    “As palavras que eu lhes disse são espírito e vida”

    (João 6.63b).

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    Agradecimentos

    Agradeço primeiramente a Deus reconhecendo a sua bondade para comigo me ajudando no

    desenvolvimento de cada etapa desta pesquisa.

    Agradeço à minha querida esposa Silvia pelo amor, companheirismo e pelas palavras de

    encorajamento durante todo o curso.

    Agradeço aos meus pais por tudo o que me ensinaram e pelo que representam para mim.

    Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. João Décio Passos pela excelente orientação cujo fruto

    se vê na finalização deste trabalho.

    Agradeço também aos irmãos da Igreja Evangélica Batista em Vila Antonieta pela

    compreensão, orações e apoio nas fases finais da escrita deste texto.

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    Resumo

    A presente dissertação expõe o pensamento de Gilles Lipovetsky, analisando de formaespecífica a obra A sociedade pós-moralista, na qual o autor trata detalhadamente da questão

    ética na contemporaneidade. No âmbito da tradição filosófica francesa, Lipovetsky propõe um

    estudo de fenômenos sociais mais específicos, tendo como objeto central a sociedade

    hipermoderna. Nesta sociedade determinada pelo consumo, a ética coloca-se sob novos

     parâmetros. Na obra supracitada, o autor dedica-se a compreender os paradoxos que circulam

    as discussões em torno da questão ética, constatando que uma ética do pós-dever, cujo

     propósito se volta para a satisfação plena dos desejos subjetivos dos indivíduos nas mais

    variadas ações, determina hoje as relações sociais dos indivíduos nas esferas sociais. A teoria

    do autor a respeito da ética do pós-dever traz elementos significativos para uma melhor

    compreensão da questão religiosa, sobretudo em sua dimensão ética. As contribuições do

    autor apontam para a emergência de uma religião secularizada a gravitar no cenário socialdado, cujas características são expostas nesta dissertação. Ao contrapor as considerações de

    Lipovetsky com as teorias de outros autores, é possível perceber a existência de pontos

    convergentes e divergentes nas propostas éticas que eles apresentam. A análise de Lipovetsky

    se mostra pertinente para a discussão de uma possível ética global, comum a todos os povos.

    Palavras-chave: ética, consumo, individualismo, modernidade, religião.

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    Abstract

    The present dissertation exposes the thought of Gilles Lipovetsky by examiningspecifically his book The post-moralistic society, in which the author treats in detail the

    ethical issue in contemporaneity. Under the French philosophical tradition scope, Lipovetsky

     proposes a study of more specific social phenomenons, by having as central object the

    hypermodern society. In this society determined by consumption, the ethics puts itself under

    new parameters. In the book mentioned above, the author is dedicated to understanding the

     paradoxes that circulate the discussions around the ethical issue, he notes that an ethics of

     post-obligation, whose purposes is the full satisfaction of the subjective desires of individuals

    in the most variety of actions, today determines the social relations of individuals in the social

    spheres. The author's theory concerning to the ethics of post-obligation brings significant

    elements for a better understanding of the religious issue, especially in its ethical dimension.

    The contributions of the author pointed to the emergence of a secularized religion to gravitatein the given social setting, whose characteristics are exposed in this dissertation. By opposing

    the considerations of Lipovetsky with the theories of other authors, it is possible to realize the

    existence of convergent and divergent points in the ethical proposals that they present.

    Lipovetsky's analysis shows itself pertinent to the discussion concerning to the possibility of a

    global ethics, common to all peoples.

    Key-words: ethics, consumption, individualism, modernity, religion.

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    Sumário

    Introdução............................................................................................................................11

    Capítulo I: Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual.................................15

    1. A França e a Filosofia do Iluminismo...................................................................................16

    2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea................................................19

    3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade..........24

    4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky.......................................................................32

    5. Categorias principais da filosofia de Gilles Lipovetsky.......................................................39

    5.1. A emergência dos tempos do hiper : a hipermodernidade..................................................40

    5.2. O individualismo consumado: o hiperindividualismo.................................................. .....44

    5.3. Para além da exibição social: o hiperconsumo..................................................................50

    Capítulo II: A ética na sociedade pós-moralista.....................................................56

    1. A constatação do movimento ético na sociedade atual.........................................................57

    2. As matrizes clássicas da ética...............................................................................................61

    2.1. Primeira matriz: a ética subordinada à religião..................................................................62

    2.2. Segunda matriz: a ética civil..............................................................................................65

    2.2.1. O surgimento da modernidade........................................................................................65

    2.2.2. A sacralização do dever..................................................................................................68

    2.2.2.1. Os reflexos da ética do dever na esfera sexual............................................................70

    2.2.2.2. Os reflexos da ética do dever na esfera familiar..........................................................71

    2.2.2.3. Os reflexos da ética do dever na esfera do trabalho social..........................................72

    3. A ruptura com as matrizes anteriores: a ética do pós-dever e a sociedade pós-moralista....74

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    3.1. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera sexual............................................................78

    3.2. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera do consumo..................................................81

    3.3. Os reflexos da ética do pós-dever na esfera da saúde........................................................84

    3.4. Os reflexos da ética do pós-dever na relação entre o indivíduo e seus deveres para

    consigo mesmo..........................................................................................................................86

    4. Proposições éticas para os tempos do hiper ..........................................................................89

    4.1. Rumo a uma nova moral?..................................................................................................90

    4.2. Rumo a um mundo sem valores?.......................................................................................95

    4.3. Rumo a uma ética de responsabilidade?............................................................................99

    Capítulo III: Elementos sobre religião no pensamento de Lipovetsky.........103

    1. A religião na contemporaneidade.......................................................................................105

    2. Uma religião secularizada...................................................................................................110

    2.1. A espiritualidade do consumo..........................................................................................112

    2.2. O fim de um altruísmo de sacrifício e a emergência de um altruísmo indolor de

    massa.......................................................................................................................................116

    2.3. O trabalho voluntário cujo fim é o indivíduo que o realiza.............................................122

    2.4. A tolerância indiferente....................................................................................................125

    2.5. Um pluralismo religioso ou uma busca plural do indivíduo religioso?...........................128

    2.6. A manifestação de um neofundamentalismo?.................................................................131

    2.7. O culto ao ego..................................................................................................................133

    2.8. O retorno da moral sexual de tradição ou sexo comedido?.............................................136

    3. Questões a se considerar.....................................................................................................140

    Capítulo IV: Contribuições de Lipovetsky para a compreensão da relação

    entre ética e religião nos tempos atuais....................................................................143

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    1. Uma religião hipermoderna do pós-dever, é possível?.......................................................144

    2. Um projeto de ética mundial num universo pós-moralista, é possível?..............................156

    2.1. A proposta de um conjunto de valores globais estruturado sobre um referencialambiental.................................................................................................................................156

    2.2. Uma ética global a partir de um diálogo entre as religiões..............................................162

    2.3. Para além do individualismo: uma ética global a partir do sujeito..................................172

    3. A sociedade pós-moralista e seu futuro..............................................................................177

    Considerações finais........................................................................................................181

    Bibliografia.........................................................................................................................187

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    - Introdução -

    A obra de Lipovetsky se mostra relevante para o estudo de questões relacionadas ao

    campo da ética. Em  A sociedade pós-moralista, o autor rompe com um paradigma já

    estabelecido que relacionava a ética às prerrogativas do dever, da obrigatoriedade, do

    comprometimento e engajamento de causas com fins comuns, enfim, à necessidade de

    considerar o modo como o semelhante será afetado a partir de ações e práticas individuais e

     posturas assumidas pelos indivíduos em seus mais variados campos de atuação. Na

     perspectiva do autor, este paradigma marcado por uma lógica do dever está consumado,

     prevalecendo agora, em tempos hipermodernos, come ele prefere denominar a configuração

    social e cultural presente, uma lógica do pós-dever, refletindo a emergência de um

    hiperindividualismo social desconhecido em épocas anteriores.

    As correntes campanhas sociais e publicitárias cujo foco de atuação se volta para a

    conscientização das massas quanto à necessidade de responsabilidade ambiental e social, bem

    como de respeito ao próximo em sua liberdade de expressão, pensamento e escolha, para o

    autor, apenas atestam para o imperativo da lógica do pós-dever se impondo em todas as

    esferas sociais nas quais os indivíduos constroem suas relações, uma vez em que apesar da

    intensificação de campanhas que promovem mensagens desta natureza, ainda assim ohiperindivíduo não se vê obrigado a se comprometer com o bem estar alheio, a se engajar em

    favor de causas comuns. À época moralista, dos bons costumes e dos valores partilhados,

    sobrepõe-se a época pós-moralista, onde indivíduos se engajam sem o estabelecimento de

    vínculos permanentes, contribuem sem que se sintam obrigados a isso.

    Seguramente, essa mudança no cenário social concernente ao campo da ética, da moral

    e dos valores privados e coletivos, afeta também o campo religioso em toda a sua dimensão

    ética. A obra em questão traz uma contribuição significativa para uma melhor compreensãoda questão religiosa em tempos hipermodernos.

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    grandes movimentos sociais em prol de causas solidárias com a hipótese que de que se

     presencie hoje um individualismo mais hiperindividualista do que em tempos passados.

    Há ainda alguns problemas acerca de qual seria o reflexo das mudanças correntes no

    campo da ética no universo das religiões. Em que a lógica do pós-dever, com os seus

    imperativos e prerrogativas singulares, e sobre a qual Lipovetsky fundamenta a razão das

    mudanças no campo ético da contemporaneidade, implica também no campo religioso?

    Lipovetsky considera ser possível encontrar no universo destas mudanças sociais elementos

    que permitam identificar na sociedade um retorno do sentimento de responsabilidade para

    uma prática solidária mais consistente, cujos reflexos também possam ser encontrados na

    religião? É possível, a partir desta suposta constatação, dizer da manifestação de um

    sentimento religioso voltado para uma dimensão prática solidária mais que dogmática nacontemporaneidade? Ou pelo contrário, presencia-se exatamente o seu oposto, ou seja, uma

    intensificação do sentimento de aversão à prática religiosa?

    Essas e outras questões são levantadas pelo próprio objeto desta pesquisa quando

    colocado em questão, e pretende-se ponderar a respeito delas de forma coerente a fim de se ter

    considerações que possam apontar para descobertas relevantes.

    Como hipótese, essa pesquisa pretende constatar se o pensamento de Lipovetsky,

    sobretudo em sua análise precisa da questão ética atual, pode fornecer elementos para umamelhor compreensão também das mudanças inferidas no campo religioso contemporâneo.

    Como sub-hipótese, pretende-se constatar se as mudanças, deslocamentos e rupturas com

     paradigmas passados para a emergência de novos paradigmas no campo ético atestam para a

    manifestação de uma religião secularizada permeando o cenário social contemporâneo.

    A pesquisa bibliográfica está disposta no seguinte percurso metodológico. Num

     primeiro momento, tornou-se imprescindível uma leitura mais precisa do conjunto de obras de

    Lipovetsky a fim de que um melhor entendimento do todo do seu pensamento fosse possível.A partir disto, foi feito também um levantamento de outros autores que trabalham com

    conceitos e teorias que contribuem para uma melhor compreensão acerca da questão ética. A

     partir disto, optou-se pelos títulos que mais se aproximam dos objetivos a que este estudo se

     propõe. Por fim, os textos levantados foram lidos e avaliados em vista de uma melhor

    compreensão das principais considerações dos autores.

    Pensadores como Hans Kung, Leonardo Boff e Alain Touraine, entre outros, trazem

    uma contribuição significativa para os fins desta pesquisa. Suas considerações a respeito da

    modernidade e dos desafios que elas impõem à questão ética, bem como à questão religiosa

    são consideradas e confrontadas com as colocações de Lipovetsky. Entre os aspectos tratados

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     por estes autores, destacam-se as suas colaborações no intuito de despertar as consciências

     para a necessidade de elaboração de um projeto de ética global, a saber, um conjunto de

    valores mínimos que possam ser compartilhados por indivíduos de contextos sociais, culturais

    e de crenças distintos, em virtude de grandes problemáticas, como a questão ambiental e os

    conflitos armados, que colocam em dúvida a possibilidade de sobrevivência da humanidade

    nos tempos futuros. Tais propostas, seguramente relevantes, são confrontadas com as

    constatações de Lipovetsky a respeito da sociedade contemporânea.

    O capítulo primeiro apresenta um panorama histórico da tradição filosófica francesa,

    na qual Lipovetsky se encontra inserido, bem como as principais categorias de seu

     pensamento. Segue-se a este capítulo uma descrição precisa do objeto de pesquisa proposto, a

    saber, as constatações do autor acerca da questão ética em sua obra  A sociedade pós-moralista. O terceiro capítulo situa a questão religiosa na contemporaneidade e ressalta

    também como as análises do autor são relevantes para se pensar também a respeito da questão

    religiosa na contemporaneidade. Por fim, o quarto capítulo apresenta as contribuições do

     pensamento do autor para a compreensão da questão religiosa contemporânea.

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    - Capítulo I -

     Lipovetsky: um olhar sobre a sociedade atual

    O primeiro capítulo dessa dissertação apresenta primeiramente um panorama histórico

    da tradição filosófica francesa, pontuando suas principais contribuições para o

    desenvolvimento da disciplina, bem como para promover mudanças e rupturas no cenário

    social, cultural e político não somente no seu universo de atuação particular, ou seja, a própria

    França, mas também em todo o Ocidente, e também apresenta de forma breve quais foram os

    seus principais representantes, bem como as teorias que propuseram.

    Após um breve olhar acerca da filosofia do iluminismo, cujo centro e auge ocorreram

    na França, e cuja prática de elaboração e aplicação dos conceitos a apresentava como uma

    disciplina filosófica mais voltada para uma análise e crítica do contexto histórico-social do

    que para a elaboração de grandes teorias, há também um tópico dedicado a uma análise do

    modo como se constituiu a crítica à modernidade que a filosofia francesa produziu durante

    todo o século XX, com pensadores como Foucault, Sartre, Lyotard e Baudrillard, entre outros.

    Esse panorama mostrará que a filosofia de Lipovetsky se enquadra dentro de uma

    tradição filosófica marcada pela crítica ao contexto histórico social de seu tempo. Lipovetsky

    é influenciado por pensadores que o precederam, como Lyotard e Baudrillard, mas também os

    ultrapassa quando propõe como objeto de estudo acadêmico fenômenos sociais até então

    renegados pela filosofia, pelo menos quanto à necessidade de uma abordagem filosófica mais

    rigorosa que ofereceria as condições básicas para uma compreensão séria da complexidade

    desses fenômenos.

    Uma introdução ao pensamento de Lipovetsky é apresentada considerando elementos

    como a formação acadêmica do autor, sua militância política, os principais autores e textos

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    que o influenciaram e, por fim, uma síntese das principais categorias de análise de sua

    filosofia, como a hipermodernidade, o hiperindividualismo e o hiperconsumo.

    1. A França e a filosofia do iluminismo

    A França possui uma tradição filosófica relevante tendo sido o país que serviu como o

    centro da filosofia do iluminismo. Alguns nomes, em especial, tiveram uma participação

    direta no estabelecimento deste movimento cultural e intelectual iniciado no final do século

    XVII, e que tinha como objetivo principal enaltecer a razão e suas potencialidades à categoria

    de entidade humana provedora de liberdade de reflexão e pensamento, a despeito dos

     pressupostos determinantes da religião. Foi a filosofia do iluminismo a corrente filosófica

    responsável pela exaltação de novas possibilidades de concepção e interpretação do mundo

    daquela época.

    Para que se compreenda em que consistiu a filosofia do iluminismo, bem como sua

    origem e propósito, faz-se necessário atestar para o fato de que ainda que o seu início seja

    localizado historicamente a partir das últimas décadas do século XVII ou início do século

    XVIII, muitas de suas concepções foram, de fato, pensadas e questionadas previamente ao seu

    estabelecimento, já no emergir da idade moderna. O iluminismo, portanto, representou uma

    fase histórica em que essas concepções foram desenvolvidas em construções teóricas mais

     bem elaboradas. Comentando acerca da Filosofia do Iluminismo, Cassirer considera

    Os resultados decisivos, verdadeiramente duradouros, que ela produziu não consistem

    num conteúdo doutrinal que ela teria tentado elaborar e fixar dogmaticamente. E mais do

    que isso: ainda que não tenha tomado plena consciência desse fato, a Época das Luzes

     permaneceu, no tocante ao conteúdo de seu pensamento, muito dependente dos séculos

     precedentes. Apropriou-se da herança desses séculos e ordenou, examinou, sistematizou,

    desenvolveu e esclareceu muito mais do que, na verdade, contribuiu com idéias originais e

    sua demonstração.1 

    À luz das considerações de Cassirer, a filosofia de Descartes (1596-1650), nesse

    sentido, representa um tipo de pensamento que, embora tendo influenciado diretamente a

    corrente filosófica do iluminismo, o precedeu historicamente. Na perspectiva de Descartes,

    todo indivíduo detinha a capacidade de duvidar e refletir acerca de qualquer objeto,

    1 Ernst CASSIRER, A filosofia do Iluminismo, p. 9.

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    capacidade esta que lhe fora atribuída inerentemente, virtudes que lhe conferiam a

     possibilidade de alcance da verdade e do sentido presente nas coisas e nos fatos que delas

    decorriam. Descartes, com a instituição do método cartesiano e a elaboração de outras teorias,

    é reconhecido como um dos pensadores responsáveis pela revolução científica, cujo ápice

    culminaria num rompimento, nominal e formal, com as prerrogativas impostas pela igreja,

    instituição dominante na regulação das relações sociais, da moral e do pensamento daquela

    época.

    Assim como a filosofia de Descartes, os experimentos de Newton (1643-1727)

    também contribuíram diretamente para a formação do pensamento iluminista. Suas

    descobertas acerca de fenômenos naturais desacreditavam o discurso religioso que, por sua

    vez, atestava para uma regulação e ação divina presente em cada fenômeno manifesto pela

    natureza. Newton demonstrou empiricamente que cada fenômeno seguia um curso natural,

    lógico e, portanto, desprovido de manipulação de divindades. Os absolutos impostos pela

    igreja, bem como o seu reconhecimento social como instituição provedora de sentido para a

    vida começavam a ser questionados.

    Mediante o benefício da dúvida, da observação, do experimento e da reflexão, além de

    outras virtudes outorgadas pela razão, muitos pensadores foram influenciados a crer na

    suficiência da razão para a regulação e manutenção da vida em todas as suas esferas, como

    nas relações sociais, na esfera política, da economia e das relações de classes, enfim, a razão

    desmistificou as respostas limitadas que a religião oferecia e, em fazendo isso, lhe expropriou

    o potencial de instituição orientadora das massas. Neste sentido, a filosofia de Locke (1632-

    1704) também foi precursora do Iluminismo. Em sua obra Primeiro tratado sobre o governo

    civil (1689), Locke critica diretamente a concepção corrente de que os reis detinham direitos,

    autoridade e benefícios que lhes foram outorgados mediante o querer divino manifestado pelo

    reconhecimento da igreja. Na segunda parte deste texto, Segundo tratado sobre o governo

    civil (1689), Locke expõe a sua teoria sobre a criação de um Estado liberal. Foi a criação do

    Estado o fator determinante para a desvalorização do papel do monarca como representante

    divino na sociedade e para a conseqüente desestruturação do absolutismo na Inglaterra. Para

    Locke, todo indivíduo detinha o direito à vida e à liberdade, direitos esses conferidos desde o

    nascimento.

    Para os iluministas, a religião não poderia interferir nas questões políticas da

    sociedade. Seguindo as teorias de Locke, Montesquieu (1689-1755) em  Do espírito das leis

    (1748), contribuiu para o estabelecimento do pensamento de Locke ao propor a criação de um

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    governo cujos poderes não fossem concentrados em um representante único, mas sim que

    fossem divididos, compartilhados, sendo o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Além de

    Locke e Montesquieu, Voltaire (1694-1778) também argumentou de forma contrária ao

    regime monárquico, sustentando seus argumentos a partir da contestação de uma lógica de

    interesses particulares presente em toda ação e dominação monárquica. Era o escopo de

    interesses privados presente na política realizada pelos monarcas que comprometia o

    desenvolvimento social em seu todo.

    Estabelecendo também uma crítica à sociedade de seu tempo, outro nome relevante na

    filosofia do Iluminismo foi o de Rousseau (1712-1778). Seu pensamento alcançou relevância

    ao afirmar que a sociedade era a responsável por extrair a bondade inerente de cada homem,

     por corrompê-lo em sua natureza e essência.

    Descartes, Locke, Voltaire, Montesquieu e Rousseau contribuíram diretamente na

    concretização dessa corrente filosófica que dominou a França a partir dos fins do século XVII

    e início do século XVIII. No entanto, foi com a obra Enciclopédia (1751-1772), editada por

    Diderot (1713-1784) e com a contribuição de muitos outros pensadores, que as suas

     prerrogativas principais foram difundidas alcançando popularidade em todo o ocidente.

    Foram as idéias iluministas que atuaram como fatores determinantes para que novasconcepções acerca do governo e da economia, bem como de suas atribuições, fossem

    levantadas, fazendo da filosofia francesa um instrumento prático de contestação do universo

    social dado, desde o seu nascimento, auge e também no decorrer de todo o século XIX,

    quando novas correntes filosóficas surgiram, como o utilitarismo, o marxismo, o positivismo

    e também o pragmatismo. No entanto, foi principalmente nas últimas décadas do século XIX

    e durante todo o século XX, que a filosofia francesa produziu uma crítica bastante

    contundente à modernidade, quando seus principais teóricos apresentaram contestações bem

    localizadas que apontavam para uma tentativa de abrangência do fenômeno moderno em seu

    todo, considerando benefícios e malefícios, causas e conseqüências. Evidentemente, dar conta

    de um fenômeno de tão grande amplitude e de complexidade singular como a modernidade

    constituiu-se tarefa sobremodo pesarosa e, de fato, sobraram ainda lacunas carentes de

    observação e análise críticas.

    Os principais representantes da filosofia francesa no século XX, bem como suas

     principais teorias, são colocados abaixo.

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    2. A filosofia francesa e a crítica da sociedade contemporânea

    Um dos pensadores que se destacou no cenário filosófico francês em virtude doestabelecimento de uma crítica consistente à modernidade foi Michel Foucault (1926-1984),

    nascido em Paris, França. A obra foucaultiana é bastante complexa e difícil de ser

    compreendida sem que se leve em conta o panorama histórico social no qual o filósofo se

    encontrava inserido. De forma sucinta, pode-se afirmar que os seus escritos se concentram em

    maior parte numa análise crítica das práticas e das relações de poder oriundas e necessárias

    com o advento da modernidade. No entanto, Foucault não dirige o seu foco de pesquisa para

    categorias mais teóricas de análise do poder, ou seja, não faz parte de sua preocupação os

    temas que dizem respeito à origem do poder, ao seu surgimento e outras questões localizadas

    apenas no universo teórico da pesquisa, pelo contrário, o filósofo volta o seu olhar para os

    locais onde as ações práticas do poder são aplicadas de forma mais direta e efetiva, enfim,

    onde o poder exerce dominação de forma incontestável. É nesta perspectiva que se

    compreende o desenvolvimento de uma crítica constante em relação às práticas de algumas

    instituições sociais modernas, como os hospitais psiquiátricos e os presídios, na relação com

    indivíduos marginalizados pela dinâmica social moderna, doentes mentais, prisioneiros e

    estrangeiros, entre outros. Para Foucault, que estabelece uma análise em um contexto

    histórico social bem localizado, a saber, o Ocidente, este grupo de pessoas representa uma

    ameaça em graus diversos para o padrão social pretendido pela modernidade, sendo

    necessária a sua exclusão e confinamento em locais que ele denomina de “instituições

    disciplinares”, como citado anteriormente, os presídios, manicômios, asilos etc.

    É em virtude deste foco específico de pesquisa que Foucault cria conceitos como o de

    “biopoder” ou “biopolítica”, que para ele diz respeito ao controle exercido pelo poder

    soberano, ou seja, de quem o detêm socialmente, sobre o âmbito dos processos relacionados à

    natalidade social. Na perspectiva de Foucault, esse controle é exercido a partir de critérios não

    apenas sociais, mas também relacionados a questões políticas e econômicas, definindo-se,

     portanto, como mais uma forma de controle e domínio social.

    Foucault, no início de 1980, também se deteve numa linha de pesquisa e crítica acerca

    de questões relacionadas à “verdade”. É colocado por ele em questão, por exemplo, os atos a

    que se propõem certos grupos de indivíduos, como os grupos cristãos ascéticos, a fim dealcançarem a verdade presente nos fatos, significados e relações do cotidiano.

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    O rompimento com o modo como as noções de poder, saber e sujeito social eram

    concebidos pela modernidade, fez com que alguns teóricos considerassem Foucault como um

     pensador pós-moderno, ainda que o próprio Foucault guardasse ressalvas quanto à

    aplicabilidade do termo, preferindo antes se dispor a uma discussão mais precisa a respeito de

    seus significados, questionando também se era plausível uma possibilidade de rompimento

    com um momento histórico social definido como a modernidade, cujas prerrogativas ainda se

    faziam ver e ainda influenciavam as relações sociais em seu todo. De fato, a obra foucaultiana

    é muitas vezes descrita como pós-moderna ou pós-estruturalista, sobretudo em virtude da

     publicação de trabalhos como História da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da

    clínica (1963), As palavras e as coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969), e ainda que

    Foucault tivesse se filiado ao termo pós-estruturalista, posteriormente ele o renegouafirmando não estar adaptado a uma abordagem formalista.

    Além de Foucault, Jean Paul Charles Aymard Sartre (1905-1980), nascido também

    Paris, França, se destacou no cenário filosófico francês como um dos críticos da modernidade.

    Em sua perspectiva, os teóricos precisavam atuar de forma mais ativa na sociedade,

     pensamento este que levou Sartre a se colocar como um filósofo e escritor militante apoiando,

    sobretudo, causas de esquerda. Nascido em 1905, Sartre se tornou um dos representantes

     principais do existencialismo ateu. Dentre seus conceitos principais, destaca-se a questão da

    existência, que de seu ponto de vista, precede a essência quando o ser em questão é o ser

    humano, e também a questão da liberdade vista como algo para o qual todo homem está

    condenado.

    Para Sartre, ainda que um objeto qualquer, como uma caneta, tenha a sua essência

     precedendo a sua existência, ou seja, antes de se tornar o objeto como tal, este mesmo objeto

    fora concebido para então ser construído para fins previamente propostos, tal lógica se inverte

    quando aplicada ao ser humano. Em sua perspectiva, não há uma suposta essência humana

     pré-concebida ou pré-determinada, portanto, Sartre nega a possibilidade de existência de um

    Deus que estaria a definir a essência e o destino do homem como advogava o existencialismo

    cristão. “Para-si” é o termo usado por Sartre para dizer que a consciência humana difere das

    demais por deter consigo a capacidade de conhecimento acerca de si próprio e do ambiente

    em seu entorno, portanto, conclui Sartre que o “Para-si” não tem essência definida, sendo

    somente ao longo de sua vivência, ou de sua existência, que a sua essência será

    compreendida. É este o aspecto principal que a difere dos seres “Em-si”, os demais seres no

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    mundo que não possuem a mesma capacidade de conhecimento acerca de si próprios e que,

     portanto, possuem essência definida, como uma caneta ou qualquer outro objeto.

    As teorias de Sartre trazem implicações diretas no campo das ações humanas. Sendo o

    homem o único ser detentor de uma consciência capaz de refletir e pensar a respeito de si

    mesma e do mundo à sua volta, cabe a si mesmo a responsabilidade única por suas ações, por

    suas escolhas, opções e por escrever um futuro pretendido. O homem traz consigo a

    responsabilidade por suas próprias ações e decisões, bem como pelas conseqüências que delas

    resultam para si mesmo e para o contexto social no qual ele se encontra inserido. Em certo

    sentido, cada indivíduo torna-se também, então, responsável pela construção do mundo no

    qual manifesta a sua existência. São estes pressupostos que estarão a definir o conceito de

    liberdade em Sartre, para quem o homem é responsável pelo seu passado, presente e futuro.

    Para Sartre, o “homem está condenado a ser livre”.

    É este também o fundamento de toda angústia atribuída aos existencialistas, ou seja,

    um sentimento oriundo da consciência de liberdade de ação, de escolhas, de posturas,

     portanto, de existência, que cada indivíduo carrega consigo, bem como a consciência de que o

    exercício desta liberdade afetará diretamente o mundo no qual se vive e os outros também

    inseridos neste mesmo universo. Segundo Sartre, os conflitos existentes entre os seres

    humanos são oriundos das escolhas, portanto, das existências individuais manifestas

    socialmente. Cada indivíduo manifesta a sua existência em virtude de projetos singulares,

     privados e nos quais se encontra engajado. No entanto, tendo em vista a singularidade dos

    interesses de cada indivíduo e a liberdade de escolher livremente, interesses privados

    esbarram no escopo de interesses privados alheios, surgindo daí o conflito. No entanto, o

    filósofo considera necessário o conflito, portanto, a convivência com o semelhante, afirmando

    que somente pela convivência mútua um indivíduo pode enxergar-se por inteiro.

    Sartre militou em favor da Resistência francesa durante a segunda guerra como

    meteorologista e durante a ocupação de Paris pelos alemães, porém, sua arma era a palavra

    mais do que as armas propriamente ditas. Ele fez uso também do teatro para transmitir seus

    conceitos e manifestar a sua militância. Nos anos 50, no entanto, Sartre tornou-se um

    militante político cuja postura se mostrava mais comprometida. Engajou-se publicamente em

    defesa da libertação da Argélia do colonialismo francês e abraçou as idéias comunistas.

    Apesar de ter recebido o prêmio Nobel de literatura de 1964, Sartre o negou por afirmar

    categoricamente que nenhum escritor poderia ser transformado em instituição.

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    Jean François Lyotard (1924-1998), nascido na cidade de Versalhes, França, é um dos

    nomes exemplares da filosofia francesa no estabelecimento de uma análise crítica à

    modernidade no século XX. Sua principal publicação,  A condição pós-moderna, de 1979,

    expressa uma condição de vivência a que se encontram sujeitos os indivíduos no final do

    século XX. A primeira tradução para o português propunha como título desta obra a expressão

    O pós-moderno, no entanto, esta se mostrava ineficaz e limitada no intuito de transmitir com

    clareza a proposta central do livro, ou seja, de que a pós-modernidade é uma condição e não

    um estado dado. A falta de correspondência com o título original da primeira tradução para o

     português poderia sugerir que seu autor se identificava com o suposto fenômeno pós-

    moderno, assumindo consigo uma postura apologética de suas prerrogativas. No entanto, tal

    sugestão nunca faria justiça às propostas de Lyotard, pelo contrário, no todo de sua crítica eanálise do fenômeno social produzida posteriormente ao lançamento do texto em questão,

     percebe-se a postura de um filósofo cuja crítica à sugestão pós-moderna se apresenta de forma

     bastante consistente.

    Fazendo uso de um método proposto por Ludwig Wittgenstein, “os jogos de

    linguagem”, Lyotard considera que o “vínculo social observável é feito de ‘lances’ de

    linguagem”.2 A partir desta e de outras premissas, Lyotard constrói a sua teoria e a aplica no

    universo social posto da segunda metade do século XX, mostrando, entre outros

    levantamentos, as mudanças que estavam em curso na modernidade de seu tempo. Lyotard

    considera este tempo como aquele que estava a testemunhar do fim da credibilidade antes

    atribuída aos grandes discursos científicos e políticos, o fim das paixões nacionalistas, dos

    engajamentos de massa, enfim, é o tempo da desconfiança para com os grandes discursos e

     promessas antes tão comumente proferidos como ferramentas de engajamento social e

    unificação das massas. Como resultado deste desencantamento social para com as promessas

     proferidas, bem como em relação aos grandes ideais proferidos pela modernidade em suaépoca clássica, Lyotard vê emergir a pluralidade de centros provedores de significação social

    e a relativização dos absolutos. A sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, é aquela

    cujos atores interpretam vidas isoladas dentro de um contexto social comum. A condição pós-

    moderna confere aos seus indivíduos essa possibilidade singular e inédita de exibição de

    narrativas de vida distintas e fragmentadas em um ambiente social único. Mais do que a

    expressão de uma identidade singular de um grupo, com hábitos, crenças e valores em

    comum, a sociedade moderna, em sua condição pós-moderna, apresenta um grupo de

    2 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. 17-18.

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    indivíduos que assimilam e interpretam de forma divergente hábitos, crenças e valores

    comuns, criando possibilidades para a exposição de identidades correspondentes mais a

    aspirações de foro íntimo do que coletivo.

    Além de Foucault, Sartre e Lyotard, muitos outros nomes importantes compuseram a

    escola filosófica francesa em seu espectro de análise e crítica histórico social durante o século

    XX, como Morin, Castoriádis, Lefort, Camus, Ricoeur e, entre eles também o do filósofo e

    sociólogo Jean Baudrillard (1929-2007). Baudrillard desenvolve o conceito de “hiper-

    realidade”, ou seja, de uma realidade construída socialmente a partir do impacto constante dos

    veículos midiáticos e de comunicação na sociedade e cultura contemporâneas, conceito este

    diretamente inferido em outro tema abordado pelo autor, o do simulacro, cuja explanação

     precisa se encontra em sua obra Simulacros e simulação, de 1981. O conceito de simulacro

    serviu aos propósitos dos irmãos Wachowski na criação da trilogia Matrix, embora o próprio

    Baudrillard tenha afirmado posteriormente que o filme não reflete em si a sua teoria por

    apresentar duas realidades distintas em seu enredo, a realidade propriamente dita e a realidade

    virtual. Na perspectiva de Baudrillard, ambas as realidades se misturam no universo das

    relações sociais em que os indivíduos convivem.

    Em sua obra, O sistema dos objetos, publicada em 1968, Baudrillard coloca como

    objeto de sua análise, entre outros elementos, o poder da mídia, da comunicação e da

     publicidade em sua ação coercitiva sobre os indivíduos levando-os à aquisição de objetos de

    consumo. Ele pretende mostrar a complexidade de um sistema simbólico existente e

    determinante nas relações dos indivíduos com os objetos, e entre os conceitos expostos em

    seu texto, desenvolve o da “lógica do Papai Noel”, afirmando

    Os que negam o poder de condicionamento da publicidade (dos mass media em geral) não

    aprenderam a lógica particular de sua eficácia. Não mais se trata de uma lógica do

    enunciado e da prova, mas sim de uma lógica da fábula e da adesão. Não acreditamos nela

    e, todavia a mantemos. No fundo a “demonstração” do produto não persuade ninguém:

    serve para racionalizar a compra que de qualquer maneira precede ou ultrapassa os

    motivos racionais. Todavia, sem “crer” neste produto, creio na publicidade que quer me

     fazer crer nele. É a velha história do Papai Noel: as crianças não mais se interrogam sobre

    a sua existência e jamais a relacionam com os brinquedos que recebem como causa e

    efeito – a crença no Papai Noel é uma fabulação racionalizante que permite preservar na

    segunda infância a miraculosa relação de gratificação pelos pais [...]. Esta relação

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    miraculosa, completada pelos fatos, interioriza-se em uma crença que é o seu

     prolongamento ideal.3 

     Nem o caráter normativo da publicidade que, de fato, se faz de modo muito precário,

    tampouco as potencialidades do produto em si, são os responsáveis pela decisão de compra do

    indivíduo, mas sim os benefícios simbólicos agregados à mercadoria e veiculados nas

    mensagens publicitárias. Para Baudrillard, o indivíduo “não ‘acredita’ na publicidade mais do

    que a criança no Papai Noel. O que não o impede de aderir da mesma forma a uma situação

    infantil interiorizada e de se comportar de acordo com ela”.4 Essa temática compreende todo o

    enredo de O sistema dos objetos, no qual Baudrillard explora as suas infinitas possibilidades

    abordando ainda questões relacionadas ao que ele denomina de “milagre da compra”, “o

    objeto abstraído de sua função”, “o objeto-paixão”, “o objeto personalizado”, “o festival do

     poder da compra”, e outras abordagens.

    Essa rápida passagem pela tradição crítica do pensamento francês expõe a

     preocupação comum dos pensadores: construir uma crítica de sua época em nome da

    liberdade e do compromisso social. Rompendo com a tradição clássica, o pensamento francês

    contribuiu na teoria e na prática com a construção da modernidade, bem como com a crítica

    da mesma em tempos mais recentes.

    Lipovetsky é um autor que se localiza na mesma linha dessa tradição filosófica

    francesa que, como já apontado anteriormente, se caracteriza por uma prática filosófica

    voltada para uma análise crítica da contemporaneidade. O que o torna singular são as suas

    abordagens de fenômenos até então considerados marginais pela filosofia, o luxo, a moda, a

    feminidade, e também uma abordagem mais precisa do fenômeno do consumo e da sua

    capacidade de inferência e de determinação das relações sociais como se dão.

    Após localizar Lipovetsky na tradição filosófica francesa, será considerado a seguir a pessoa do filósofo, sua formação, suas influências e suas principais categorias de pensamento.

    3. O debate em torno das categorias propostas como definição da contemporaneidade

    Muitos autores têm proposto termos e elaborado categorias que possam definir com

    maior precisão aquilo que a contemporaneidade tem manifestado e se permitido revelar como3 Jean BAUDRILLARD, O sistema dos objetos, p. 175-176.4  Ibid , p. 176-177.

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    ordem social atual. Em virtude das correntes mudanças no cenário social, nas relações entre

    os indivíduos em razão das mudanças e inovações tecnológicas, bem como das ferramentas de

    comunicação, grande parte dos sociólogos e filósofos consideram que a modernidade atual é

    diferente daquela conhecida em seu nascimento. Desta forma, este tópico pretende apresentar

    quais são as principais categorias propostas como definição da contemporaneidade ao longo

    dos séculos XX e XXI, termos que pretendem encerrar em seus significados a complexidade

    do fenômeno moderno, ou pelo menos captá-lo com maior sensibilidade.

     Modernidade  é o termo empregado para classificar a contemporaneidade e cujos

    representantes resistem à proposição de que haja elementos suficientes para afirmar a

    emergência de um momento histórico social divergente daquele que nasceu em oposição à era

     pré-moderna. Anthony Giddens é um dos que compartilham desta afirmação. Para este

    sociólogo inglês, ainda que as correntes inovações tecnológicas, sobretudo a partir da segunda

    metade do século XX, e o alargamento das capacidades de comunicação imponham uma

    dinâmica social que possibilita um modo de organização de vida distinto daquele conhecido

    em décadas e até mesmo em séculos passados, tais movimentos apenas fazem jus àquilo que a

    modernidade vem representando desde o seu início, ou seja, uma fase histórica em que a razão

    vem sendo empurrada para os limites de sua atuação, provendo aos indivíduos modernos

    todas as condições necessárias para a construção e manutenção de um viver promissor, auto-

    suficiente e, portanto, alheio às demandas imperativas da religião.

     No entanto, ainda que Giddens não se familiarize com outras definições que sugerem

    uma fase histórica pós-moderna como característica da contemporaneidade, ele reconhece o

    tempo atual como singular e inovador e adota a expressão  Modernidade tardia, ou  Alta

    modernidade para descrever com maior presteza os desencaixes sociais vistos e reconhecidos

    nas últimas décadas. Como “desencaixes” compreendem-se as complexas mudanças

     percebidas no cenário social, compreendendo desde as relações sociais entre os indivíduos,

    incluindo a legitimação de comportamentos antes reprimidos e as novas formas de

    organização da vida, as inferências da lógica de variação, inovação e exibição pertinentes à

    lógica da moda nas relações dos indivíduos com os objetos, e as possibilidades de realização

    social e significação existencial a partir dos engajamentos privados nos empreendimentos de

    consumo massivos.

    Giddens, tratando da proposta de uma modernidade tardia, considera a relevância de

    uma abordagem reflexiva em relação ao objeto que é a própria sociedade em si, que a todos

    está posta, a fim de que uma apreensão precisa e responsável pelos indivíduos seja possível

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     Nas situações a que chamo de modernidade “alta” ou “tardia” – nosso mundo de hoje -, o

    eu, como os contextos institucionais mais amplos em que existe, tem que ser construído

    reflexivamente. Mas essa tarefa deve ser realizada em meio a uma enigmática diversidade

    de opções e possibilidades.5 

    A tarefa reflexiva proposta por Giddens faz-se relevante também em virtude dos riscos

    inéditos que incorrem aos indivíduos e que foram introduzidos pela alta modernidade. “O

    mundo moderno tardio [...] é apocalíptico não porque se dirija inevitavelmente a calamidade,

    mas porque introduz riscos que gerações anteriores não tiveram que enfrentar”.6 Há o risco da

    não possibilidade de manutenção do eco sistema, apontando para o fim eminente dos

    fornecimentos de vida abundante, há o risco de um colapso da economia mundial, do aumento

    no número dos desfavorecidos e marginalizados pelo sistema moderno, de pequenas novasguerras e maiores e conhecidos grupos de indivíduos dizimados, enfim, riscos que fazem da

    modernidade tardia um fenômeno paradoxal, pois na tentativa de criar condições para o seu

     prolongamento pretendido, a modernidade fornece também elementos para que o risco de um

    fim eminente seja plenamente possível. Giddens coloca que “na alta modernidade, a

    influência de acontecimentos distantes sobre eventos próximos, e sobre as intimidades do eu,

    se torna cada vez mais comum”.7 

    Em face dos riscos iminentes postos acima, Giddens afirma ser a modernidade “uma

    ordem pós-tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham

    sido substituídas pela certeza do conhecimento racional”.8 Tendo relativizado os absolutos, a

    modernidade radicalizou o princípio da dúvida, do questionamento, das inseguranças, das

    ansiedades e necessidades de se colocar em verificação toda e qualquer afirmação que se

     pretenda ser categórica. Nas palavras de Giddens, “a modernidade institucionaliza o princípio

    da dúvida radical e insiste em que todo conhecimento tome a forma de hipótese [...]”.9 

     Modernidade líquida é outra tentativa de dar um nome mais preciso e coerente àquilo

    que os tempos contemporâneos têm revelado. Quem deste termo faz uso é o sociólogo

     polonês Zygmunt Bauman. Fazendo uma analogia com a idéia de fluidez ou liquidez, ou seja,

    se referindo a não consistência dos objetos desta natureza, de sua incapacidade de

    solidificação, de resistência a intervenções externas, a pressões vindas de seu exterior, enfim,

    de sua limitação e incapacidade de resistência temporal, Bauman busca compreender com

    5 Anthony GIDDENS, Modernidade e Identidade, p. 10-11.6  Ibid , p. 12.7  Ibid , p. 12.8  Ibid , p. 10.9  Ibid , p. 10.

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    maior clareza a natureza dos movimentos que a história moderna tem presenciado. Em suas

     palavras

    Concordo prontamente que tal proposição deve fazer vacilar quem transita à vontade no

    “discurso da modernidade” e está familiarizado com o vocabulário usado normalmente

     para narrar a história moderna. Mas a modernidade não foi um processo de “liquefação”

    desde o começo? Não foi o “derretimento dos sólidos” seu maior passatempo e principal

    realização? Em outras palavras, a modernidade não foi “fluída” desde sua concepção?10 

    Bauman desenvolve o seu argumento afirmando que a modernidade tratou de

     provocar em seus próprios eixos de sustentação, a saber, suas instituições modernas

    caracterizadas como centros plurais provedores de significação social e de normatização da

    vida, e também o seu sistema de produção de mercado regido pelo modo econômico

    capitalista, o derretimento dos sólidos. Como sólido, Bauman compreende todo e qualquer

    elemento que resista aos chamamentos de mudança em virtude das transformações e

    inovações no cenário moderno social. O “derretimento dos sólidos” significa a compreensão

    de que o espírito era moderno “na medida em que estava determinado que a realidade deveria

    ser emancipada da ‘mão morta’ de sua própria história”.11 Bauman ressalta ainda de forma

    contundente que “os primeiros sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as

    lealdades tradicionais, os direitos costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos,impediam os movimentos e restringiam as iniciativas”.12 

    A modernidade em sua fase líquida, portanto, caracteriza-se como sendo o tempo dos

    desprendimentos às noções de obrigações e determinações éticas nas relações sociais em

    todas as suas esferas, sem, no entanto, estar alheio aos seus apelos. Em virtude da ausência de

    absolutos, pluralizam-se as propostas de instituições que reivindicam para si a competência de

    atuação como estruturas sociais provedoras de regulação e significação existencial. A

    modernidade, seguindo seu curso natural, continua a provocar rupturas, inovações e novas

     possibilidades, no entanto, se depara em sua fase líquida com o exílio de elementos que

     proporcionem bases sólidas para a sua manutenção e para o estabelecimento de valores e

    normas comuns. A ética em sua faceta ambiental, o respeito aos direitos e escolhas dos

    indivíduos com os quais o espaço social é dividido, o apego a alteridade, a aceitação de

    modos de vida divergentes dos modelos tradicionais, entre outros elementos, são estruturas

    10 Zigmunt BAUMAN, Modernidade líquida, p. 9.11  Ibid , p. 9.12  Ibid , p. 10.

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    muito rasas, sem sustentação e em constantes deslocamentos, pois são regidos pela lógica da

    moda e do consumo.

    Fazendo uso desta metáfora, Bauman constrói sua teoria aplicando-a a outros

    elementos que também são afetados pelas novas imposições da modernidade em sua fase

    atual. Obras como “Amor líquido”, “Vida líquida”, “Medo líquido” e “Tempos líquidos”,

    além de outros títulos, expressam bem esse emprego.

    Pós-modernidade é o termo empregado por Jean François Lyotard em seu livro  A

    condição pós-moderna para tentar encerrar num conceito único as mudanças presenciadas no

    cenário cultural moderno. Na perspectiva de Lyotard, o termo  pós-modernidade “designa o

    estado da cultura após as transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da

    literatura e das artes a partir do final do século XIX”.13 

    Lyotard é ainda mais perspicaz ao considerar que a idéia de pós-modernidade reflete

    uma época em que as grandes narrativas perdem a credibilidade e a admiração dos indivíduos,

    e com isso, a capacidade de domínio das consciências. As promessas enunciadas pela ciência

    em razão de sua ilimitada capacidade de inovação, a incapacidade do Estado de provocar o

    engajamento das massas a partir de um sentimento de paixão nacionalista, a incapacidade da

    religião de promover ajuntamentos dentro de seus ambientes de atuação, as incertezas presente nas consciências em relação à capacidade da razão de organizar cenários culturais e

    sociais ideais, em virtude da contemplação do cenário catastrófico do mundo pós-guerra,

    enfim, a crise na crença aos grandes discursos de pretensão a uma aplicabilidade universal de

    suas propostas, enunciados e articulados pelas grandes instituições modernas marca, na

     perspectiva de Lyotard, o emergir do momento pós-moderno.

    David Harvey faz uso do mesmo termo e justifica sua aplicabilidade à luz da mesma

    hipótese de Lyotard. Segundo Harvey, “a fragmentação, a indeterminação e a intensadesconfiança de todos os discursos universais ou (para usar um termo favorito) ‘totalizantes’

    são o marco do pensamento pós-moderno”.14 

    À luz das considerações de ambos os autores, compreende-se que a fase histórica que

    o pós-guerra compreendeu desqualificou a credibilidade de que os metarrelatos desfrutavam,

     bem como as instituições que os promulgavam. Dá-se início a uma fase de incertezas, de

    desconfianças, de questionamentos da realidade dada. A partir desta crise, intensificou-se o

    13 Jean François LYOTARD, A condição pós-moderna, p. XV.14 David HARVEY, Condição pós-moderna, p. 19.

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    individualismo exacerbado, a crise dos absolutos, a relativização do agir e do pensamento

    éticos, a intensificação do viver o tempo presente com intensidade máxima em virtude das

    incertezas que um futuro reservava, a escassez de engajamentos de massa, os interesses

     pessoais suplantaram o escopo de interesses coletivos, a religião viu-se desmanchando em

    espiritualidades plurais, enfim, o mundo moderno do pós-guerra difere consideravelmente

    daquele que estava posto em épocas passadas sendo, portanto, pós-moderno. Harvey coloca

    que “o pós-moderno [...] privilegia ‘a heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras

    na redefinição do discurso cultural’”.15 

    Sendo o termo contestável, Harvey levanta questionamentos quanto à legitimidade de

    seu emprego

    O pós-modernismo, por exemplo, representa uma ruptura radical com o modernismo ou é

    apenas uma revolta no interior deste último contra certa forma de ‘alto modernismo’ [...]?

    Terá ele um potencial revolucionário em virtude de sua oposição a todas as formas de

    metanarrativa (incluindo o marxismo, o freudismo e todas as modalidades de razão

    iluminista) e da sua estreita atenção a ‘outros mundos’ e ‘outras vozes’ que há muito

    estavam silenciados (mulheres, gays, negros, povos colonizados com sua história

     própria)? Ou não passa de comercialização e domesticação do modernismo e de uma

    redução das aspirações já prejudicadas deste a um ecletismo de mercado ‘vale tudo’,marcado pelo laissez-faire?16 

    Ainda que não haja um consenso quanto à aceitação do termo  pós-moderno, mediante

    os argumentos apresentados pelos expoentes acima, verifica-se evidentemente a existência de

    uma ruptura significativa nos modos de vida e de organização da sociedade na segunda

    metade do século XX em relação aos modos de vida em sociedade de épocas anteriores a este

    momento. Como colocado anteriormente, ainda que a modernidade continuasse a seguir o seu

    curso natural de inovação e de otimização das potencialidades da razão e da ciência,mudanças ocorridas no pensar e na postura dos indivíduos, ou seja, em seu foro íntimo mais

    que coletivo, por razões diversas e complexas, são irrefutáveis. Mudanças estas que, de tão

    relevantes, comprometeram todo o curso da história social, provocando novas rupturas e

    novas diretrizes na continuidade da história moderna.

    O antropólogo e etnólogo francês Marc Augé propõe o termo Supermodernidade 

    como designação ideal da contemporaneidade. Augé observa os constantes deslocamentos e

    15  Ibid , p. 19.16  Ibid , p. 47.

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    movimentos promovidos pelos indivíduos na sociedade atual para construir o conceito de

    “não-lugares”, que são os espaços povoados por multidões de passagem, em constantes

    deslocamentos, permitindo um fluxo contínuo de indivíduos em seus ambientes, porém, sem

     permanência certa ou possibilidade de promoção de relacionamentos. Aeroportos com seus

    restaurantes e lojas de conveniência, estações de trem, salas de espera e outros são exemplos

    de espaços “não-lugares”.

    São estes espaços bastante complexos, intensificam o individualismo, pois quaisquer

    relações que ali se iniciem tendem a não se prolongar, refletem uma absorção do mundo e de

    seus espaços pela inovação e desenvolvimento tecnológicos, diminuindo a quantidade de

    espaços vagos para ocupação ao mesmo tempo em que estabelecem novos espaços povoados

    de indivíduos vazios, são espaços que preenchem necessidades e elevam a efemeridade,

    enfim, espaços em que o consumo de um tipo não fixado se manifesta. Antes encerrados em

    lojas e locais específicos de compra, como os grandes centros comerciais, hoje, o consumo se

    desprende desta estrutura sólida e se transporta a si mesmo para espaços tidos como “não-

    lugares”, a fim de acompanhar os deslocamentos dos potenciais consumidores. Este tipo de

    consumo inédito acompanha o indivíduo em aeroportos, no próprio tempo de viagem com as

     possibilidades de compra oferecidas pelas companhias aéreas durante os trajetos dos vôos, em

    sua descida ao local pretendido e também em sua própria residência, quando possibilidades de

    consumo estão disponíveis através da internet.

    São nos espaços “não-lugares” que o indivíduo moderno despende a maior parte de

    seu tempo, podendo-se afirmar, portanto, que a sociedade com sua cultura Supermoderna

    como Augé designa, vem sendo preenchida ou transformada em pequenos espaços “não-

    lugares” fragmentados e desconectados entre si.

     Na perspectiva de Augé, o termo Supermodernidade reflete a idéia de continuidade e

    não de uma nova fase histórica se manifestando como implicada na idéia do “pós-moderno”.

    Trata-se de um tempo em que os excessos têm se multiplicado e com os excessos a perda de

    referenciais norteadores e de sentido para a vida. Novos espaços de circulação são criados, no

    entanto, intensifica-se o individualismo, a efemeridade, o vazio e o imediatismo nas mais

    variadas relações.

    A Supermodernidade designa uma cultura paradoxal, com discrepâncias, contradições

    em seus próprios valores e distâncias singulares.

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    Ainda outros termos têm sido sugeridos como categorias que descrevam o que a

    contemporaneidade representa, como o emprego de Ultramodernidade, que Jean-Paul

    Willaime17 comenta da seguinte maneira

    Passa-se das certezas modernas das sociedades nacionais às incertezas ultramodernas da

    sociedade-mundo. A ultramodernidade representa um processo de secularização da

    modernidade, de desmitologização dos ideais seculares, em nome dos quais, justamente, a

    modernidade contribuiu para a secularização do religioso. É o desencantamento dos

    desencantadores. O próprio movimento de modernização crítica que atingiu o religioso

    alcança agora todas as esferas de atividade e todas as instituições, inclusive a própria

    modernidade.18 

    Compreende-se, portanto, que para Willaime, o tempo atual denominado como a faseda Ultramodernidade tem como característica principal, diferentemente da proposta de Augé,

    que ressalta as discrepâncias produzidas pelo fenômeno, a secularização da própria

    modernidade, ou seja, desmanchar na e da própria modernidade os seus aspectos religiosos,

    ou desvestir da modernidade de sua roupagem religiosa.

     Desmodernização  ou  Modernidade dividida é empregado por Alain Touraine para

    descrever a modernidade atual. Segundo o autor, a  Modernidade dividida é a conseqüência

    dos embates e imposições entre razão e sujeito, cada qual brigando por seus espaços e

    liberdades de atuação, ambos interferindo nas estruturas sociais da modernidade conforme

    seus interesses e provocando, conseqüentemente, rupturas de modo a comprometer o bem

    estar e a vivência entre os indivíduos. A solução para a manutenção da modernidade dividida

    seria a busca pela unificação entre as duas esferas, a saber, da razão juntamente com a esfera

    do sujeito. Significaria unir ou diminuir as distâncias discrepantes entre a dimensão da

    técnica, da razão, da ciência e de suas potencialidades com a dimensão humana que abrange

     peculiaridades da cultura, da tradição, enfim, de tudo aquilo que expressa a riqueza presenteno universo da criação humana.

    Após esta breve contextualização daquilo que tem sido proposto a respeito de uma

    nomenclatura que melhor descreva e compreenda a contemporaneidade em toda a sua

    complexidade e inovação, há ainda a proposta trazida por Lipovetsky, a saber, de que a

    17 Jean Paul Willaime é francês, sociólogo da religião, diretor da École Pratique des Hautes Études (Seção deEstudos da Religião), diretor do Institut Européen em Sciences des Religions, presidente da International Societyfor the Sociology of Religion, membro da Société Groupe, Religions, Laicités. Embora o termo

    Ultramodernidade tenha sido empregado principalmente por Pierre Legendre, a referência a Willaime é feita emvirtude deste autor elucidar de forma mais prática o sentido do termo.18  Jean Paul WILLAIME, A favor de uma sociologia transnacional da laicidade na ultramodernidadecontemporânea, Civitas, v. 11, n. 2, p. 307.

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    sociedade atual vê emergir uma fase inédita que ele denomina de hiper , cujos desdobramentos

    se fazem ver num consumo de prática hiperconsumista, bem como num individualismo de

    caráter hiper . São práticas que refletem a manifestação de uma sociedade hipermoderna.

    Embora Lipovetsky já tenha sido adepto do termo  pós-moderno, o autor agora o

    considera limitado como categoria científica que dê conta de fenômenos tão singulares do

    tempo presente. Em sua concepção, há novos paradigmas que estão a impor novas restrições e

    concepções aos indivíduos, impelindo-os a reorganizarem suas vidas a partir de outras lógicas

    de direção, como a lógica da moda e do consumo.

    Os argumentos apresentados pelo autor como justificativas para o emprego do termo

    hiper , bem como as características que, segundo ele, refletem um movimento social em

    direção ao hipermoderno, são apresentados no próximo tópico, quando o pensamento de

    Lipovetsky, bem como suas principais categorias de pensamento são situados.

    4. Situando o pensamento de Gilles Lipovetsky

     Nascido em 1944, na cidade de Millau, na França, Gilles Lipovetsky é atualmente um

    dos principais pensadores e críticos da presente sociedade. É filósofo, doutor  Honoris Causa

     pela Universidade de Sherbrooke, no Canadá, e pela Nouvelle Université Bulgare, em Sofia,

    na Bulgária. Lipovetsky é membro do Conselho Nacional dos Programas Educacionais e do

    Conselho de Análise Social da França, e já foi condecorado como Cavaleiro da Legião de

    Honra da França. Atualmente, Lipovetsky é pesquisador e professor da Universidade de

    Grenoble, também na França.

     No início de seus estudos de Filosofia na Sorbonne, Lipovetsky já assumia um realdesinteresse pelos textos clássicos e pelos filósofos fundadores da filosofia. Como ele mesmo

    afirmou posteriormente, “o que me animava era não as grandes questões da metafísica ou da

    moral, mas a interpretação do mundo moderno”.19 Como muitos estudantes de sua época, em

    torno dos anos 60, Lipovetsky também se encontrava possuído pelas convicções marxistas.

    Em 1965, as idéias do marxismo o levaram a participar de um grupo militante de esquerda,

    cujo nome era Poder Operário, fundado por Lefort e Castoriadis, do qual também fazia parte

    Lyotard, Veja e Souyri. O caráter do grupo era militante, marxista revolucionário, denunciava

    19 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 110.

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    o capitalismo e a formação de uma sociedade de exploração de classes não apenas no

    ocidente, mas também na União Soviética. Sua participação no Poder Operário foi de apenas

    dois anos, vindo após este tempo o afastamento do grupo. A militância de Lipovetsky era

    inconstante, desinteressada e, portanto, limitada aos ideais antes propostos. Acerca deste

    afastamento e da frustração em relação ao currículo disciplinar oferecido pela Sorbonne, o

    autor comenta

    Fiquei dois anos nesse grupo, mas, como eu freqüentemente saía de férias, questionaram

    minha militância um pouco hedonista e descontraída demais!... A nova era do lazer já

    exercia sua influência... O afastamento se deu sem crise pessoal, sem peso na consciência,

    sem nenhum sofrimento. Para mim, a “vida de verdade” já estava em outro lugar. A bem

    dizer, a questão da revolução não me preocupava quase nada, porque eu não acreditavarealmente nela – procurava sobretudo ferramentas de análise para compreender o real. E

    os cursos propostos na Sorbonne não atendiam a essa expectativa.20 

     Nessa mesma época, os textos de Lyotard e Baudrillard influenciaram fortemente o

     pensamento de Lipovetsky, fornecendo uma base teórica consistente cujo reflexo crítico seria

    notado em seus textos futuros. As considerações de ambos os autores acerca do desejo, do

    gozo, da mídia e do consumo, entre outras, esferas estas que despertariam o interesse de

    Lipovetsky para uma análise mais minuciosa, foram por ele amplamente discutidas eexploradas em toda a sua complexidade, na medida em que esta se permitia compreender. Nas

     palavras do autor

    Aquelas análises do desejo e do gozo, do consumo e da mídia, tinham o mérito de

    subverter os domínios teóricos separados, de revitalizar a crítica da economia política ou

    libidinosa, de abrir um além-do-político ao compor como que odes a uma revolução

    transpolítica. Desde essa época, julgo que o existencial, os modos de vida, o frívolo

    devem ser levados em conta, e não ser de imediato considerados a ‘falsa consciência’.21 

    É a partir deste tempo que Lipovetsky rompe com um paradigma já estabelecido em

    relação à influência da sociedade no comportamento dos indivíduos. Para ele, não é apenas a

    lógica da alienação a chave interpretativa para se compreender o porquê de uma assimilação

     passiva por parte dos indivíduos de conceitos e propostas de vida promulgadas pela

    sociedade, pelo mercado e pela publicidade. Lipovetsky conseguiu se distanciar desta

     premissa já inquestionável se mostrando incomodado com esta conclusão que, em sua análise,

    se mostrava simplista: “... logo me incomodei com a noção de alienação: ela veiculava em20  Ibid , p. 110.21  Ibid , p. 112.

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    demasia a idéia de que as pessoas eram mistificadas, passivas, manipuladas, hipnotizadas –

    Debord –, incapazes de distanciamento crítico, de compreensão do que lhes acontecia”.22 Sua

     percepção rompia com a análise marxista, o que se deu de modo mais incisivo ainda, quando

    de suas leituras dos textos de Tocqueville, Marcel Gauchet, Louis Dumont e Daniel Bell.

    Como fruto destas leituras, Lipovetsky comenta:

     Nelas encontrei esquemas analíticos e ferramentas insubstituíveis, que devolviam um

     papel de fato produtivo às ‘idéias’ na história: o indivíduo, a revolução democrática, o

    direitos humanos, tudo isso, já não eram mais a superestrutura, simples “reflexo” da

    economia. Essas problemáticas me deram maior liberdade para entender a sociedade nova,

    na qual se observava um impulso de autonomia individual, uma sujeição menor aos

    enquadramentos coletivos.23

     

    Os autores que foram citados acima fazem parte de um grupo de teóricos que

    influenciaram diretamente o pensamento de Lipovetsky. Foram estes que deram à Lipovetsky,

    como ele mesmo atesta, as ferramentas essenciais para que os seus estudos pudessem ser

     produzidos. Além disso, o contexto social em que o autor se encontrava inserido, preenchido

     por uma revolução crescente nos modos de vida social, pela expansão das capacidades sociais

    de comunicação e também pela legitimação de práticas constantes de consumo, entre outros

    elementos, proporcionaram-lhe as condições necessárias para que as suas análises sobre oindividualismo democrático fossem relevantes.

    Com análises que refletem uma percepção extremamente aguçada da sociedade e de

    suas mudanças, Lipovetsky é singular por sustentar suas hipóteses a partir de uma análise

    mais empírica do que apenas baseada em teorias já existentes. Neste aspecto, o próprio autor

    estabelece uma crítica à tradição filosófica mais comumente conhecida, distanciando-se dela e

    afirmando que “a maior parte dos filósofos, mesmo que digam o contrário, é platônica e busca

    a Idéia atrás dos fatos”.24 Ele é ainda mais incisivo em sua crítica porque em sua perspectiva,aos filósofos, e não apenas aos atuais, faltou ou ainda falta um olhar mais cuidadoso para os

    detalhes impregnados em cada fenômeno, os quais são percebidos e compreendidos a partir de

    um estudo mais preciso de suas manifestações.

    O apego ao empírico, a um olhar minucioso sobre os fatos como se dão, podendo-se a

     partir disto compreendê-lo em toda a sua complexidade, aspecto este característico da

    22  Ibid , p. 112.23  Ibid , p. 112.24 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 148.

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    metodologia de Lipovetsky, é atestado abaixo quando sua obra é analisada por Sébastien

    Charles, que comenta

    Um dos méritos das análises que Gilles Lipovetsky propõe há vinte anos é romper com

    tais juízos excessivos, sempre demasiado elementares porque olham apenas um aspecto

    das coisas, a fim de livrar-se de toda a complexidade do real e circunscrever as

    contradições de que este está urdindo. [...] as análises de Lipovetsky não se contentam

    com juízos apressados nem submetidos a ditames ideológicos; antes, seguindo um método

    empirista ou indutivo, procuram partir dos fatos, e do estudo destes no tempo longo, para

     propor um quadro de análise que possibilite fazê-los falar e dar-lhes sentido.25 

    Lipovetsky é também perspicaz por fazer de seu objeto de estudo fenômenos até então

    desconsiderados, pelo menos em termos de um estudo sistemático sério e progressivo, pelaanálise filosófica. Propondo uma análise histórico-social crítica, apresentando quais foram os

    elementos então responsáveis para a emergência da presente configuração atual dos

    fenômenos estudados, bem como as implicações destes na vida social dos indivíduos,

    Lipovetsky questiona e estuda a lógica da moda, as mudanças no pensar ético, o feminismo, o

    luxo, o consumo, enfim, fenômenos que circundam a vida social de todo e qualquer indivíduo,

    independentemente de sua faixa etária e condição sócio-econômica, mas que até então não

    haviam ainda sido submetidos a uma análise acadêmica rigorosa. Faz-se importante enfatizarmais uma vez que, neste sentido, Lipovetsky é bastante peculiar em relação à grande parte dos

    filósofos, distanciando-se da filosofia tradicional e rompendo com uma análise que, de seu

     ponto de vista, não considera os detalhes dos fenômenos, mas o concebe apenas em sua

    totalidade, em seu aspecto geral e universal, o que para ele, trata-se de uma análise bastante

    limitada e comprometedora.

    Em se tratando de sua paixão por questões diferentes das mais comumente conhecidas

    e discutidas pela Filosofia, Lipovetsky, na perspectiva de Charles Sébastien, se assemelha ao pensamento de Foucault

    O pensamento de Gilles Lipovetsky poderia ser facilmente aproximado ao de Michel

    Foucault. De fato, nossos dois filósofos – e mesmo que Lipovetsky não recorra

    exclusivamente ao pensar filosófico – empregam um método genealógico para

    circunscrever domínios de estudo freqüentemente negligenciados pela confraria filosófica.

    Assim, ambos evocam fenômenos muitas vezes qualificados de marginais (a loucura ou a

    25 Gilles LIPOVETSKY & Sébastien CHARLES, Os tempos hipermodernos, p. 15.

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     prisão por Foucault, a moda ou a feminidade por Lipovetsky), aos quais é recusada uma

    análise conceitual rigorosa e histórica.26 

    Lipovetsky por si mesmo assume um pouco de afinidade com o pensamento de

    Foucault

    Aí está um ator com o qual, em compensação, eu me sinto em profunda afinidade quanto

    ao método... mas não quanto ao fundo. O método é, de fato, similar. Quando Michael

    Foucault fala da loucura, ele constrói seu objeto e dele tira a seguir sua conclusão. É no

    trabalho de construção do objeto que a dimensão filosófica aparece e não a priori. É

    também o que procuro fazer.27 

     Nas análises de Lipovetsky acerca de fenômenos como o feminino, a moda, o luxo e,

    sobretudo, o consumo, percebe-se de forma mais clara esta construção de uma análise a partir

    de uma construção do objeto em questão, pretendendo o autor dar conta de toda a

    complexidade de seu objeto a partir da realidade social dada, para então, a partir disto,

    estabelecer as suas considerações e verificar a validade de suas hipóteses.

    Em virtude das conclusões simplistas proposta por muitos filósofos acerca de

    fenômenos mais precisos da vida social, tais como a moda, o luxo, a feminidade e outros já

    anteriormente citados, realidades que merecem um estudo mais aprofundado quanto à sua

    concepção e expressão, o autor, como anteriormente apontado, critica diretamente a Filosofia

    atual por este suposto descaso, rompendo com teorias simplistas que não consideram o objeto

    em toda a sua complexidade e os detalhes a ele imbuídos, satisfazendo apenas em parte as

     problemáticas levantadas. Quando questionado a respeito deste rompimento, Lipovetsky,

    citando o exemplo da beleza feminina posta em análise e em foco de um estudo acadêmico

    sério e crítico, diz

    Eis o tipo de pergunta que me veio ao espírito e que não interessa ao filósofo: o que é a

     beleza feminina? É um fenômeno universal ou trans-histórico? Todas as sociedades a

    valorizaram? E da mesma maneira? E se não, quando isso se estabeleceu? Por quê? O

    que esse fenômeno significa nas relações entre os homens e as mulheres? Que

    orientação ele toma em uma sociedade igualitária? Como é possível que em uma

    sociedade democrática com aspiração igualitária como a nossa se recomponha a

    dissimetria dos homens e das mulheres no que se refere à aparência física? São questões

    fundamentais, de cuja existência os filósofos nem sequer suspeitam. Para eles, isso não é

    26 Sébastien CHARLES, Comte Sponville, Conche Ferry, Lipovetsky, Onfray Rosset, é possível viver o que eles pensam?, p. 140.27  Ibid , p. 150.

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    nem mesmo uma questão, ainda que ponha em causa um valor filosófico essencial, o da

    igualdade. Eles tendem antes a denegrir a questão, o que para mim é cegueira filosófica.

     Não querem ver as coisas e não procuram dar-lhes uma compreensão e uma

    inteligibilidade reais.28 

    O mesmo teor crítico é notado quando a questão da moda é posta em debate, a qual,

    segundo Lipovetsky, tem escapado a uma avaliação crítica da filosofia. “Quando os filósofos

    falam da moda, não conhecem nada sobre ela. Nem sequer vão ver os fatos, uma vez que

    sabem já interpretá-los. [...] Pois bem, eles não sabem o que é realmente”.29 

    Em  A era do vazio, ensaios sobre o individualismo contemporâneo,  este que foi o

     primeiro livro publicado por Lipovetsky em 1983, o autor ganha repercussão mundial ao

    apresentar as suas teorias acerca do modo de funcionamento da sociedade pós-moderna, de

    seus valores, das relações entre seus indivíduos, dos novos paradigmas que estavam a se

    instituir de modo a redefinir as relações sociais em suas mais variadas esferas de vivência,

    entre outros. O autor trata do individualismo social com uma percepção aguçada, afirmando

    que a sociedade se encontra mergulhada num imenso vazio a abranger várias dimensões da

    vida. Os valores de tradição mais comumente conhecidos estão comprometidos, os grandes

    discursos da modernidade estão postos em dúvida, o consumo de massa direciona o indivíduo

    a um comportamento individualista e irresponsável. Essas e outras realidades se manifestam

    na obra A era do vazio e fazem parte do objeto de estudo proposto pelo autor.

    Seis anos após a publicação de  A era do vazio, Lipovetsky escreve O império do

    efêmero, a moda e seu destino nas sociedades modernas , publicado em 1989. Neste texto, o

    autor mostra como a lógica da moda, do frívolo e do efêmero, tem se manifestado também em

    outras esferas sociais, reapropriando e redefinindo as relações sociais que se dão nestes

    contextos a partir das prerrogativas desta nova lógica. Ainda que Lipovetsky tivesse

    desfrutado de reconhecimento acadêmico meritório pela publicação de  A era do vazio, o seu

    segundo livro, O império do efêmero, foi alvo de críticas mais incisivas, tendo em vista uma

    abordagem proposta pelo autor que não demoniza o fenômeno da moda. Quanto a isso, o

    autor comenta dizendo

    Ainda que seus múltiplos e negativos defeitos sejam reais, seus benefícios estão muito

    longe de ser nulos. Eu simplesmente quis mostrar que a forma-moda não era sinônimo de

    “barbárie”, de ruína do pensamento e da liberdade. A questão merece exame mais atento e

    28  Ibid , p. 148-149.29  Ibid , p. 148.

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     juízos mais contrastados do que esses que freqüentemente os “profissionais” da

    conceitualização e outros minuciosos hermeneutas dos grandes textos canônicos nos

    oferecem.30 

    Lipovetsky não faz uso da apologia ou da condenação em suas análises, mas se propõe

    a expor as suas conclusões a partir das realidades postas.

    Em  A sociedade pós-moralista, o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos

    tempos democráticos, de 1992, Lipovetsky se propõe a um estudo sistemático da questão

    ética, tomando como ponto de partida a fase histórica pré-moderna, quando a ética estava

    estritamente relacionada com preceitos de caráter religioso, sendo estes os pressupostos

    determinantes para toda e qualquer ação ética dos indivíduos em suas mais variadas esferas

    sociais de vivência. Num segundo momento, o autor estabelece os marcos que foram

    fundamentais para que uma ruptura em relação ao paradigma anterior emergisse, sendo a

    ética, a partir deste momento, concebida ainda de modo subordinado a uma lógica do dever,

    da obrigação moral para com o semelhante, de ações responsáveis que sejam tomadas de

    modo a levar em conta o outro que se apresenta perante o indivíduo e que precisa ser afetado

     pelas ações deste de modo responsável, porém, toda essa dimensão ética impregnada pela

    lógica do dever será imposta não mais pela instituição religião, mas sim, pelas instituições

     próprias e oriundas da modernidade. Há, portanto, uma transferência de legislador ético, mas

    não de preceitos propriamente ditos. É neste ínterim que o autor, ao observar as relações

    sociais no tempo presente, denominado por ele de hipermoderno, apresenta uma nova

    hipótese ética, a do pós-dever.

    Para Lipovetsky, o indivíduo hipermoderno e hiperindividualista não conhece

    quaisquer regras que o obriguem a uma vivência que corresponda aos imperativos da lógica

    do dever. Suas ações são praticadas, mesmo aquelas consideradas como altruístas, tendo em

    vista