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Reportagem Projeto Surf.Art na Revista NAU XXI - A Exclusão de Poseidon ou como no mar são todos iguais

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Água, crianças e terapia. Quantas formas existem de mergulhar pela inclusão? Paulo Canas e Nuno Fazenda fizeram-no através do SURF.ART, um projeto que desenvolveram na Associação Pressley Ridge, que visa promover a integração e bem-estar de crianças e jovens

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Page 1: Reportagem Projeto Surf.Art na Revista NAU XXI - A Exclusão de Poseidon ou como no mar são todos iguais

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C arla Ferreira tem 42 anos e pagaia como peixe na água. O facto de ter paralisia cerebral não a impediu de subir, pela primeira vez em 37 anos, para a linha de partida de uma competição de canoagem. Demorou dez minutos a concluir

a prova, quando os colegas demoraram apenas quatro. Pelo caminho, ouvia-se “despacha-te lá que ainda queremos ir almoçar”, em tom de brincadeira. O que é certo é que, na plateia, ninguém sabia que Carla tinha uma perturbação do controlo da postura e do movimento, até que alguém começou a passar a informação. As brincadeiras acabaram para que todos seguissem a conclusão da prova com um novo olhar. Quando a atleta passou a linha de meta, tinha uma nuvem de pessoas à sua espera. E uma nova etapa para vencer.

A inscrição de Carla na Federação Portuguesa de Canoagem (FPC) não foi pacífica, conta Ivo Quendera, treinador da atleta e especialista da modalidade. Quando quis inscrevê-la para competir, a FPC informou-o que não existiam “deficientes” a praticar canoagem em Portugal. Ivo Quendera não aceitou: “Mas como é que não há se eu tenho aqui uma pessoa que pratica?” Perguntou ao médico da Carla se era possível passar o atestado médico e ele respondeu que sim. Até, porque em lado ne-nhum, lhe pediam para especificar se a atleta tinha alguma deficiência. Atestado passado, inscreveu-a. E a FPC não deu por nada.

Carla Ferreira é a primeira atleta de canoagem adaptada portu-guesa, termo que Ivo Quendera prefere substituir por “canoagem de inclusão”, ou, simplesmente “canoagem”, visto que todos os barcos têm de ser adaptados às estaturas físicas de quem neles se senta. O primeiro

reportAgem

A exClusão de Poseidon ou Como no mAr todos são iguAisSe o homem fosse feito para estar dentro de água teria guelras como os peixes. E o mar não teria de hostil o que tem de libertador. O que fazem pessoas com ou sem deficiências e de estratos sociais diferentes no único meio onde não é possível respirar a plenos pulmões? Aproximam-se. E se ainda houver dúvidas, incluem-se. É que em território de Poseidon, deus dos mares, somos todos excluídos.

P O r a n a p i m e n t e l

i l U S t r A ç ã O g o n ç a l o v i a n a

s o c i e d a d e

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contacto que o jovem de 33 anos teve com a deficiência aconteceu quando dava aulas de natação e conheceu um bebé de ano e meio com paralisia cerebral. “Foi aí que se deu o crash”, explica. A paixão ficou em standby até que encontrou Carla na piscina do Montijo, município onde é técnico de desporto, em 2005. Já a conhecia do remo, moda-lidade que a atleta praticava anteriormente e da qual teve de desistir por não existir uma classe específica para a sua limitação. “Disse-lhe para vir fazer canoagem, mas que não tivesse intenções de competir”, conta. Durante dois anos ainda conseguiu dissuadi-la, mas depois não teve outra hipótese senão inscrevê-la na federação.

O nível de dificuldade motora que Carla Ferreira tem não se enqua-dra em nenhuma das classes desportivas existentes, conta o treinador. Por isso, quando compete, fá-lo em desigualdade. Mas a atleta já par-ticipou em campeonatos mundiais e serviu de inspiração a Fernando Fernandes, modelo brasileiro que é campeão do mundo de canoagem adaptada, e que veio a Portugal conhecê-la.

Ivo Quendera é treinador e coordenador técnico do Clube Atlético do Montepio. Tudo pro bono. Em casa, põe comida na mesa com o emprego que tem na Câmara Municipal. A seguir à Carla treinou ou-tros atletas, como Norberto Mourão, bi-amputado, que, aquando desta entrevista, estava a disputar a final do Campeonato da Europa Abso-luto de Canoagem, em Montemor-o-Velho. Actualmente, Quendera treina seis pessoas na modalidade, mas quer fazer mais. Muito mais.

No Clube Naval de Cascais, a escala é outra: cerca de 50 pessoas praticam vela adaptada semanalmente. A iniciativa surgiu pela mão de Charles Lindley, há 10 anos, e desde então já houve mais de 7 mil saídas de barco. Há quatro anos que assumiu funções como presiden-te da Associação Portuguesa da Classe Access, tipo de barco que é utilizado na modalidade adaptada. Através de uma parceria do Clube Naval com a Câmara Municipal de Cascais e com a CERCICA – Co-operativa para a Educação e Reabilitação de Cidadãos Inadaptados de Cascais, conseguiu avançar com a prática regular de vela durante três ou quatro dias por semana. No clube, conta com três monitores, uma equipa de competição e cerca de metade dos atletas já velejam sozinhos, sem monitor.

Pedro Reis e Bruno Pereira já trouxeram para Cascais dois galar-dões de campeões europeus da classe e ambos têm uma deficiência motora. “Infelizmente, só os deficientes motores podem competir internacionalmente em vela adaptada”, lamenta Charles Lindley, de 69 anos, apesar de a maioria dos praticantes da modalidade terem limitações a nível intelectual.

O clube promove um programa de avaliação técnica constante e, juntamente com a CERCICA, procura saber quais são os resultados

terapêuticos desta actividade. “Concluímos que há benefícios sociais enormes. Interagem com pessoas sem deficiência, saem de casa, das instituições, praticam desporto ao ar livre, o que lhes dá uma sensação de liberdade total em condições de igualdade com os outros”, adianta. O que é certo é que, dentro de um barco, as condições são iguais para quem tem ou não limitações e todos são exemplos de coragem para o velejador. “O simples facto de se tirar estas pessoas das cadeiras de rodas ou das camas e transportá-las com uma grua para dentro de um barco à vela numa nortada da baía de Cascais é, por si, uma conquista.”

Isabel Araújo é um exemplo. Diagnosticada com uma doença dege-nerativa, ficou tetraplégica, mas isso não a impediu de velejar sozinha com a ajuda de um comando eléctrico, até ao dia em que a doença lhe tirou a força para comandar o joystick. Não foi suficiente para a fazer desistir. Isabel continua a comparecer no clube e sai regularmente de barco com o monitor.

Quem se atreve e se transformaÁgua, crianças e terapia. Quantas formas existem de mergulhar pela inclusão? Paulo Canas e Nuno Fazenda fizeram-no através da Surf ART, um projecto que desenvolveram dentro da associação Pressley Ridge, que visa promover a integração e bem-estar de crianças e jovens com problemas de ajustamento e desenvolvimento. Estavam numa formação sobre o futuro da organização quando a ideia surgiu. “Com todas as aprendizagens que vivi no mar, pensei que poderia proporcionar o mesmo a crianças e jovens que vivessem em zonas mais fragilizadas”, conta Paulo Canas, 33 anos e surfista há cinco.

Em Janeiro de 2013, estava tudo pronto para arrancar com a Surf ART. O Bairro da Cruz Vermelha foi o escolhido. Objectivo: estimular a resiliência de 14 crianças, entre os 9 e os 11 anos, através do surf e do contacto com a natureza. Na base, está a aliança terapêutica que existe entre os coordenadores, professores de surf e as crianças. “O mar funciona como um simulacro da vida real. Num ambiente seguro, en-volvemos activamente a criança nesta aventura que é surfar, para que ela consiga vivenciar o sucesso e o fracasso e levar essa aprendizagem para a sua vida”, explica.

As crianças frequentam a escola EB1 n.º3 de Alcoitão e foram escolhidas segundo dois critérios: não estarem inscritas noutra ac-tividade desportiva e morarem no Bairro da Cruz Vermelha. “Isto fez com que tivéssemos no projecto crianças de etnia cigana, afro-portuguesa, caucasiana, de estratos sociais mais ou menos fragili-zados, etc”, conta.

Paulo e Nuno vão buscar as crianças às 14 horas de quinta-feira e sábado, em frente à escola, e levam-nas para a praia de Carcavelos,

onde está a Surf Academia, parceira do projecto para a área técnica. Antes de a aula começar, cada criança diz qual é o seu objectivo para a sessão, tal como os professores. No final, há espaço para a reflexão. É aí que Paulo e Nuno, psicólogo, intervêm para ajudar as crianças a transferirem o que viveram na praia para o dia-a-dia. Sentados em círculo, cada um tem de dizer o que correu bem na aula, o que poderia ter corrido melhor e quantos pontos merece a sua prestação naquele dia. O resto do grupo diz se concorda e, no final, cada criança tem de atribuir um ponto a um dos companheiros e justificá-lo.

Paulo explica que ao enfrentarem uma força da natureza como o mar, as crianças passam por uma situação de risco. Se conseguiram ultrapassá-la e voltar ao estado normal, então é porque desenvolveram competências para isso, como a tolerância à frustração e a gestão de emoções, entre outras. “Isto é um programa de prevenção de compor-tamentos de risco”, relembra o surfista. Durante estes seis meses, a Surf ART funcionou como um protótipo e os fundadores já andam à procura de financiamento para avançar com a segunda fase, em Setembro, na qual querem incluir mais uma turma e uma sala de apoio ao estudo no bairro. Nota: ART representas as iniciais de “Atreve-te”, “Realiza-te” e “Transforma-te”.

Mas o mar não é só ondas ou navegação. Debaixo de água também se trabalha pela inclusão. Como? Através do mergulho. Paulo Guerreiro tem 47 anos e deve ter posto a primeira máscara de mergulho na cara quando tinha uns cinco anos. Com o tempo, acabou por se especiali-zar em mergulho técnico. Foi durante um círculo de conferências da Associação Portuguesa para a Dinamização do Mergulho, em 2008, que ficou com vontade de saber mais sobre a modalidade para pessoas com deficiência. “A partir daí fiz formações até chegar a formador de instrutores”, conta.

Em 2010, ficou responsável pela DDI Portugal, organização sem fins lucrativos e agência certificadora de mergulho para pessoas com deficiência. Além dos baptismos, a DDI dá cursos de mergulho in-clusivos, onde quem tem limitações convive com quem não as tem. “A primeira pessoa a fazer o curso foi Ana Drago, uma senhora com mais de 40 anos e amputada de uma perna”, conta Paulo Guerreiro. Juntamente com Mário Jubério, Ana Drago aventura-se debaixo de água com regularidade.

“Nos cursos de mergulho, começo logo por dizer que vamos entrar num meio que não é o nosso, a água. E que se tivéssemos sido feitos para estarmos lá dentro teríamos guelras como os peixes. O meio é tão hostil para mim como é para uma pessoa bi-amputada, paraplégica ou que tenha outra deficiência qualquer, porque a maior adversidade é mesmo não respirarmos dentro de água”, conclui.

Água, crianças e terapia. Quantas formas existem de mergulhar pela inclusão? paulo Canas e Nuno Fazenda fizeram-no através da Surf Art, um projecto que desenvolveram dentro da associação pressley ridge, que visa promover a integração e bem-estar de crianças e jovens com problemas.

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ANDDI – portugalAssociação Nacional de Desporto para a Deficiênciawww.anddi.pt | (+351) 22 712 9138

ANDDemotAssociação Nacional de Desporto para a Deficiência Motorawww.andemmot.org | (+351) 21 417 7326

LpDSLiga Portuguesa de Desporto para Surdoswww.lpdsurdos.org.pt | [email protected]

pC-ANDParalisia Cerebral Associação Nacional de Desportowww.pcand.pt | (+351) 239 780 436

FpDDFederação Portuguesa de Desporto para Pessoas com Deficiênciawww.fpdd.org | (+351) 21 937 9950

SUrFaddictAssociação Portuguesa de Surf Adaptadowww.surfadaptado.pt | [email protected]