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QUESTÕES # DE Pathologia e Hygiene social Ç<)U

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QUESTÕES #

DE

Pathologia e Hygiene social

Ç<)U

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RICARDO MARIA NOGUEIRA SOUTO

-~X

QUESTÕES DE

PATHOLOGIA E HYGIENE SOCIAL DESEJO DE CONTRIBUIR

PARA A

REGENERAÇÃO DA SOCIEDADE PORTUGUEZA

Dissertação Inaugural APRESENTADA À

Eschola Medico-Cirurgica do Porto

Le devoir d'une société, c'est d'cire un organisme sain et fonctionnant librement, sans entraves. Le moyen, c'est d'ubscr-ver les lois de l'hygiène sociale.

BoKDlEB.

PORTO TYPOGRAPHIA OCCIDENTAL

66, Rua da Fabrica, 66

1 8 9 1

$1/4 tffe

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ESCOLA MMCO-CIR1GICA DO PORTO

CONSELHEIRO-DIRECTOR

VISCONDE DE OUVRIRA SECRETARIO

R I C A R D O D ' A L M E I D A J O R G E

CORPO DOCENTE Professores proprietários

: .* Cadeira —Anatomia descriptiva geral ' João Pereira Dias Lebre.

2.8 Cadeira—Vhysiologia' . . - Vicente Urbino de Freitas. ?.a Cadeira—Historia natural dos

medicamentos e materia me­dica Dr. José Carlos Lopes.

4.a Cadeira—Pathologia externa e tberapeutica externa . . . Antonio Joaquim de Moraes Caldas.

S.a Cadeira—Medicina operatória. Pedro Augusto Dias. 6.a Cadeira —Partos, doenças das

mulheres de parto c dos re-cem-nascidos Dr. Agostinho Antonio do Souto.

7-a Cadeira - Pathologia interna e therapeutica interna • . > Antonio d'Oliveira Monteiro.

8.a Cadeira—Clinica medica . . Antonio d'Azevcdo Maia. g.a Cadeira —Clinica cirúrgica . Eduardo Pereira Pimenta.

10/ Cadeira—Anatomia pathologi-ca . . . * . . . . Augusto Henrique d'Almeida Brandão.

1 i.a Cadeira—Medicina legal, hy­giene privada e publica e to­xicologia • Manoel Rodrigues da Silva Pinto.

i2.a Cadeira—Pathologia geral se-meiologia e historia medica. Illidio Ayres Pereira do Valle.

Pharmacia Isidoro da Fonseca Moura.

Professores jubilados

Secção medica í ^ o ã o X a v i e r ^Oliveira Barros. * j José d'Andrade Gramacho.

Secção cirúrgica Visconde de Oliveira.

Professores substitutos

Secção medica j Antonio Placido da Costa. I Maximiano A. d Oliveira Lemos Junior.

Secção cirúrgica 5 i c a í ?? ^'Almeida Jorge. t Cândido Augusto L-orreia de Pinho.

Demonstrador de Anatomia Secção cirúrgica Roberto Belarmino do Rosário Frias.

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A Eschola não responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enun­ciadas nas proposições.

(Regulamento da Escola, de 23 d'abril de 1840, art. 155)̂

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A MEMORIA

DE

ÍU&U P H €

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A

MINHA MÃE

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A

MEUS IRMÃOS

E EM ESPECIAL

A

Antonio Augusto Nogueira Souto que para mim tem sido um segundo pae

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A MEU PRIMO

JOÃO NUNES DA SILVA COMMANDANTE DO « MALANGE »

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AO ILL.M0 E EX.M0 SNR.

CONSELHEIRO ADC-OSTO MARIA RE CASTRO E

SUA EX.MA FAMÍLIA

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AO

MEU ILLUSTRE PRESIDENTE

ILL.M0 E EX.MO SNR.

RICARDO D'ALMEIDA JORGE

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AO EX.M0 CORPO DOCENTE

DA

ESCHOLA MEDICO-CIRURGICA DO PORTO E EM ESPECIAL

AO MEU ILLUSTRADO JURY

os Ill.m0" e Ex.»™ Snrs.

Dr. oAgostinho oAntonio do Souto T)r. José Carlos Lopes "7)r. 'Pedro oAugusto Dias Dr. íhíaximiano de Lemos

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AOS

Meus bons amigos :

OfFereço-vos este modesto trabalho, não como penhor á nossa amisade, que não carece de incentivo que a acalente ; mas em recordação principalmente da nossa camaradagem domestica, que é terminada juntamente com os estudos, sensações e devaneios que nos foram communs.

Quando no futuro abrirdes este livro em alguma hora d'ocio, sirva elle de tra-zer-vos á memoria esses bons tempos, que serão por certo a recordação mais saudosa da nossa vida

O vosso

CB<. Souto.

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Prefacio 2 5

EXPOSIÇÃO DE PRINCÍPIOS I—Breves considerações sobre a evolução da medicina.

—Etiologia e pathogenia.—O meio social como campo da sua exploração.—A acção morbifica d'esté meio é na rasão inversa da do meio cósmico.—Se á expressão doenças sociaes corresponde uma perfeita concepção scientifica 2 9

II—Analogia entre o homem e a sociedade : quanto á estructura : quanto ás funcções : quanto á evolução.— Lei fundamental da natureza humana.—Leis physio-logicas da sociedade e seus desvios.—Doenças so­ciaes.—A preponderância da solidariedade sobre o egoismo como lei physiologico-social 31

III—O novo campo da medicina.—Eífeitos da concepção da sociedade como organismo solidário e harmónico.— Injustificável radicalismo d'alguns sociologists e pa-thologistas.—A acção morbifica do nosso meio social e a sua relação com a intensidade d'esté.—A nossa estatistica corroborada pela estrangeira — Motivo da tardia concepção de doenças sociaes.—O novo apos­tolado e campanha da sciencia medica 39

EXEMPLIFICAÇÃO CAPITULO I

Degenerescência pela civilisação

I—Evolução da natureza physica e moral do homem.— Phase animal.—Phase psychica.—Phase intellectual. —O século e a vida moderna a toda a força do vapor. — O contraste.—A cumplicidade da civilisação nas doenças do systema nervoso . . ? '

II—O parentesco etiológico e pathogenico entre as doen­ças nervosas e as doenças chronicas. —Influencia mor­bifica da civilisação sobre umas e outras.—Sua expli­cação 5 o

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III—O principio fundamental da educação como conse­quência do exposto e dos periodos evolutivos do ho­mem.—O contraste entre a educação ingleza e a edu­cação portugueza.—O estado d'esta e a sua influencia morbifica.—O clássico verbalismo.—Vida nova . . . 62

CAPITULO II

Degenerescência legitimaria

I—Definição e justificação da épigraphe d'esté capitulo. —Estado da questão.—A herança na família e o ata­que dos socialistas.—O nosso evangelho 67

II—O regimen da egualdade entre os filhos.—Sua refu­tação pela anatomia.—Refutação pela physiologia.— Refutação pela pathologia 70

III —Refutação do regimen da egualdade perante os fa­ctos do nosso meio social 74

IV— O regimen da egualdade obrigatória não é necessá­rio como garantia da democracia.—E' antes um at-tentado contra ella.—A Inglaterra e os Estados-Uni-dos 76

V—Effeitos do regimen da egualdade obrigatória como fonte de degenerescência do individuo e da espécie.— Os ricos que antes de o serem já o eram: elementos perturbadores e dissolventes.—Os pequenos herdei­ros e a emprego-mania : o parasitismo.—A preoccu-pação dos pães.—Os casamentos e a pathologia: a nefasta theoria da egualdade dos matrimónios. . . . 78

CAPITULO III

Degenerescência pelo militarismo

I—Rasão especial d'esté capitulo 84 II—O militarismo perante os economistas e perante os

pathologistas. —O abaixamento das curvas dos casa­mentos e dos filhos legítimos.—A guerra da Crimea. —Manifesta decadência physica verificada pelas jun­tas revisoras vinte annos depois das guerras.—A ra­são d'isso. —A morbidez e a mortalidade na classe militar e suas causas.—A cifra das vidas e dos mi­lhões devorados em 14 annos pelas guerras euro-pêas.—A Europa contemporânea pôde considerar-se barbara e dissipadora.—O militarismo opera uma selecção no sentido da decadência da nossa espécie. — Reacção 86

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PREFACIO

ESITÁMOS sobre o assumpto a es­colher para these que segundo a lei é a coroa dos nossos trabalhos escholares.

Pensámos e preparavamo-nos para escre-vel-a sobre a criminologia moderna, que ba-seando-se nos progressos dos estudos anthropo-logicos e da sociologia ameaça derruir os códi­gos penaes de todas as nações, preoccupando vivamente sobretudo na Europa a attenção dos sábios e dos professores.

Mas de regresso a casa apóz as provas fi-naes do 5.0 anno, circumstancias particulares nos impediram absolutamente do desempenho de semelhante formalidade.

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Quando depois, modificadas essas circums-tancias, volvemos a cogitar n'esse dever, co­meçou a saltear-nos o espirito uma nova ordem de ideias. Sentimos que elle se achava também naturalmente preso á preoccupação e subito ar­rebatamento de todos os portuguezes pelas des­graças da pátria, tão descaroavelmente aggrava-das pela triste revolta de 31 de janeiro, que enlutara e envergonhara esta laboriosa, invi­cta e heróica cidade.

E, como se tudo não fora de mais para na­turalmente chamar a nossa attenção, veio ain­da a dolorosa circumstancia de vermos im­plicados na revolta alguns collegas, não sabe­mos se innocentes se cúmplices de mera boa fé, desventura que por certo fez vibrar a alma dos nossos respeitáveis professores, especial­mente d'aquelles de quem esses infelizes logra­ram a honra de ser discipulos.

Suspeito de tentar o manifesto assassinio da pátria até alguém da mocidade académica, que foi sempre a milicia generosa e ardente dos nossos ideaes!

Como tantos e tão graves infortúnios são os effeitos terríveis e esmagadores do estado de desanimo e de decadência em que tristemen­te se exhibe a nossa sociedade!

Affigura-se-nos que o meio de curar este

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«estado mórbido que a corroe, é combater ou extinguir as causas de tantos males ; nem have­rá cura que não seja profundamente etiológi­ca. Não é a revolução da republica ou da mo-narchia, mas a revolução do paiz contra si pró­prio. E' necessário, essencial que elle se torne quanto possivel um organismo são, e o meio principal de conseguil-o é observar os princi­pes e leis da hygiene social.

Sob o império d'estas considerações e sob o influxo d'esse patriótico e santo pensamento da regeneração da sociedade portugueza, pen­samento de todos e que de todos exige a coope­ração, por mais obscuros que sejam, é que con­cebemos e damos a lume o nosso modestissi-mo trabalho.

Na i .a parte vão expostas as bases da theo-ria que concebemos sobre tão momentoso as­sumpto; a 2.a consta de alguns capítulos em que tentamos exemplificar em parte os princi-pios alli enunciados.

Não foi somente a falta de tempo e de sa­ber que nos inhibiu de dar maior desenvolvi­mento, senão também a vastidão e a alta magni­tude do assumpto.

Encarando-o tão d'alto e com tão largas vis­tas, bastantes foram ainda assim as difficulda-des com que luctamos no que escrevemos, por

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ser o campo escabroso e frouxo o auxilio dos tratadistas.

Sirva esta circumstancia de attra ir a bene volencia dos nossos illustres professores e da critica para os erros e deficiências do nosso tra­balho.

Já um escriptor disse que um bom livro é sempre bom, mas que é melhor ainda quando ao seu valor intrinseco junta o que provem das circumstancias exteriores em que é publicado. O nosso trabalho não terá o mérito intrinseco, mas tem, certamente, o da opportunidade.

Não perdemos a esperança de, ulteriormen­te, darmos maior desenvolvimento aos princí­pios enunciados.

Entretanto fazemos votos para que algum dos talentos illustres da nossa terra que culti­vam e honram a sciencia, acuda com as suas luzes a supprir ou a corrigir as imperfeições do nosso modesto trabalho e chame com maior auctoridade a attenção do povo, dos pu­blicistas e dos governos para um dos assumptos que mais interessam á sociedade.

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EXPOSIÇÃO DE PRINCÍPIOS

I

Breves considerações sobre a evolução da medicina.—Etiologia e pathogenia.—O meio social como campo da sua explora­ção . -A acção morbifica d'esté meio é na rasáo inversa da do meio cósmico.—Se á expressão doenças sociaes corres­ponde uma perfeita concepção scientifica.

E' sabido que o empirismo creára a thera-peutica, consubstanciando em si atravez de ge­rações e de séculos toda a sciencia medica. Esta não podia porém deixar de avançar com as sciencias chamadas positivas, e formou-se á proporção que ellas se adeantaram, desenvol-vendo-se e progredindo quasi que á custa d'el-las.

No século xvi os physicos e os chimicos desbravaram-lhe o terreno ainda ingrato; no século xviii physiologistas eminentes como Cl. Bernard e Magendie sulcaram-n'o e prepara­ram- n'o ; hodiernamente Pasteur com a sua es-

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chola está fazendo essa sementeira fecunda e brilhante que, abrindolhe um vastíssimo cam­po de cultura e horisontes quasi illimitados, é o acontecimento scientifico mais portentoso do século xix.

Até os climatologos lhe prestaram um au­xilio valioso, ministrando a constituição me­dica dos différentes pontos do globo.

Orientando a sua investigação e applicação á luz de todos estes elementos, a medicina toma uma phase nova. De empirica e sympto­matica a therapeutica torna-se racional e scien-tifica. A etiologia mórbida e a pathogenia cons­tituem a característica culminante d'esté perío­do de extraordinário progresso que vamos atravessando. Em torno d'ellas redobram os esforços, surgem e multiplicam-se as descober­tas, e as suas consequências therapeuticas e prophylacticas são a gloria immarcessivel da ultima metade d'esté século.

Na verdade, etiologia e pathogenia são a chave que abre a porta a todos os phenomenos pathologicos, e fornecem o único critério pos-sivel d'uraa therapeutica racional e heróica.

Sem ellas, não teríamos hoje a prophyla-xia, a vaccina contra a variola e mesmo contra a raiva, como certamente não poderíamos ter amanhã a vaccina contra a serie infinita de

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doenças bacteridianas e parasitarias que cons­tantemente assaltam e ameaçam a existência da espécie humana.

Mas tantos e tão fecundos estudos, por mais relevantes e assombrosos, são apenas as primeiras pedras do grande edifício que a scien-cia tem a construir.

Ha muito, muitíssimo que estudar e pen­sar n'este campo de investigações. Até*aqui era o meio cósmico que preoccupava e absorvia a attenção dos pathologistas; d'ora avante tem ella de convergir e concentrar-se principalmente no meio interior—o social.

A acção morbifica do primeiro tem dimi- • nuido e tende a desapparecer, graças a essa lu-cta perseverante e encarniçada contra a natu­reza physica, em que o homem se tem coberto de gloria.

Mas quem não vê que a do segundo pro­gride e nos assoberba, arrastando-nos n'um de­clive de decadência e degeneração physica e moral para um abysmo de perdição? Quem desconhece que o homem se tem deixado en­golfar na vertigem fatal de vicios e de encantos com que o meio social, lenta e sucessivamen­te, nos tem ido sugando e envenenando o san­gue, arruinando e corroendo a existência?

E' talvez a dolorosa evidencia de semelhan-

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tes phenomenos que na linguagem ordinária vai dando curso á expressão — doenças sociaes, expressão magnifica e retumbante que vemos usada e abusada por sociologistas contemporâ­neos, e que entre nós vai servindo para uso da banalidade rhetorica e do patriotismo avariado.

O que porém ainda não vimos demonstra­do, e que é preciso e urge demonstrar, é que a esta expressão corresponde uma perfeita con­cepção scientifica.

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II

Analogia entre o homem e a sociedade: quanto á estructura: quanto ás funcçóes : quanto á evolução.—Lei funda­mental da natureza humana.— Leis physiologicas da socie­dade e seus desvios.—A preponderância da solidariedade so­bre o egoísmo como lei physiologico-social.

Uma noção scientifica já em voga é que a sociedade é um organismo harmónico e soli­dário, semelhante ao homem pela sua estru­ctura, pelas suas funcções e pela sua evolução.

Encarada no ponto de vista da estructura, é como elle formada de elementos cellulares — os individuos, os cidadãos, unidos pela socia­bilidade, que é a sua grande força de attracção.

Quanto ás funcções, assim como elle é constituído por cellulas proprias para a secre­ção, para a contractibilidade, para a transmissi­bilidade e para a elaboração do pensamento tam­bém ha n'ella esta grande lei da divisão do tra­balho, o polymorphismo funccional arrastando o polymorphismo orgânico, de que são teste-

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munho irrecusável e visível as profissões. E tem até a sua sciencia physiologica — a socio­logia.

E quanto á evolução; pois as sociedades como os homens teem os seus períodos de in­fância, de adolescência, de virilidade e reproduc-ção, de decadência e de morte.

Bastaria frisar succintamente, singelamente esta tríplice analogia para demonstrar que a so­ciedade é um organismo harmónico e solidá­rio, em que se repercutem as doenças dos in­divíduos que a constituem, do mesmo modo que este phenomeno se opera entre estes indi­víduos e as suas cellulas.

Mas argumento directo e decisivo affigura-se-me este principio superior de unidade de fim, que identifica e confunde o homem e a socie­dade. Ha n'elle dois instinctos poderosos que dominam toda a sua vida e constituem a im­pulsão primaria de todas as acções : o instincto da conservação pessoal e o da reproducção. Conservar o individuo e a espécie — tal é a lei fundamental da natureza humana e o critério physiologico das sociedades.

Se para os physiologistas são ainda obscu­ras as forças que actuam nas operações intimas de nutrição e reproducção, não assim com os seus effeitos, que são claros e irrecusáveis. Não

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se sabe, por exemplo, porque o cavallo não pode exceder a edade de trinta e cinco annos, emquanto o homem, o menos corpolento, o mais débil, pode' ultrapassar os setenta. Mas o que é certo, é que os dois instinctos funda-mentaes se manifestam na sua expressão mais simples — o da conservação pessoal, com o seu estimulo no estômago, sob a forma da fome; o da conservação da espécie, com o seu esti­mulo nos centros afFectívos, sob a forma do amor; e que o homem, como todo o ser vivo, é destinado desde o nascimento a uma duração vital determinada que nada é capaz de prolon­gar, mas que a acção inopinada do mundo ex­terno pode reduzir.

De maneira que a vida duma sociedade im-põe-lhe a ella e a cada um dos seus membros esta missão suprema e sagrada de procurar a legitima expansão das innumeraveis forças e faculdades, cujo gérmen é a essência do orga­nismo humano e que se revelam n'aquellas duas categorias de instinctos, desenvolvendo e aperfeiçoando de modo regular, efficaz e har­mónico a natureza physica e moral do homem em ordem a assegurar a este e á sociedade toda a sua força vital. Eis ahi o dynamismo e as leis physiologicas das sociedades.

Portanto, todas as leis e instituições orga-

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nicas d'uma sociedade e todas as prescripções, usos e costumes do seu meio convencional que, em vez de protegerem e promoverem esta expansão vital do organismo, este desenvolvi­mento e progresso moral e physico da natu­reza humana, pelo contrario as enfraqueçam, as paralysem, as contrariem ou pervertam, constituem evidentemente desvios d'essas leis physiologicas e abrem o campo da pathologia social. Attentar contra esse principio de uni­dade superior e harmonica, que é a vida das sociedades, é fomentar a decadência e a morte dos associados, é fazer que esta seja, não o ter­mo da usura natural do organismo que é con­sequência da velhice, mas produzida, na phrase d'um dos cérebros contemporâneos mais por­tentosos, par des conditions défavorables d'existence ou par l'action de lois nuisibles et insensées.

Eis ahi a proveniência ou a etiologia das doenças sociaes, expressão esta de tanto mais rigor medico quanto é verdade assente para a sciencia que a etiologia em regra caractérisa as doenças e é o único critério scientifico para a sua classificação.

Resalta também d'esté rápido bosquejo uma lei physiologico-social que cumpre aqui parti-cularisar. Porque o homem pela lei suprema do seu destino é ao mesmo tempo individua-

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lista e preso à sociedade, que é o seu comple­mento natural, e fora da qual nem sequer poderia luctar pela existência elle, o mais mal armado dos animaes para o isolamento, a pre­ponderância da solidariedade sobre o egoismo por tal forma se impõe como dogma redem-ptor das modernas sociedades, que na relação d'estes dois sentimentos no seio de cada povo está a medida da sua força vital.

Quanto mais numerosos são os indivíduos que poem o interesse próprio acima de todos os deveres de solidariedade e de todo o ideal de desenvolvimento da espécie, tanto mais proximo é o termo da vitalidade. Pelo contra­rio, quanto maior é o numero de individuos dominados pelo heroismo, pela abnegação e sacrifício pessoal, tanto mais poderosa é a for­ça vital d'uma nação. O abatimento do espiri­to de familia, como o d'um povo, começa fa­talmente com a preponderância do egoismo.

Assim se explica a decadência e estado actual da nação portugueza, em contraposição aos venturosos tempos do nosso venturoso rei D. Manoel. Então encheu-se de gloria e assom­brou o mundo inteiro com as descobertas da Africa oriental, das índias e do Brazil, porque havia portuguezes como Pêro da Covilhã, Vas­co da Gama e Alvares Cabral, como D. Fran-

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cisco d'Almeida, Affonso d'Albuquerque, D. João de Castro, personificações brilhantes de grandeza e amor da pátria, symbolos do génio, da coragem e valor, do heroismo, da abnega­ção, da pureza e justiça.

E para não alargarmos mais a demonstra­ção d'esta lei physiologica das sociedades, que se nos entolha fundamental e evidente, assim se explica a" decadência da Roma dos Césares, de que fora epilogo fatal a morte d'essa grande e assombrosa nação. Ante a marcha triumphal do egoismo desappareceu toda a solidariedade social : abriram-se as portas da desmoralisação e os costumes corriam soltos; o vicio e a cor­rupção já não encontravam barreiras.

A coragem e o valor dos antigos romanos havia degenerado. E até o amor da pátria que tantas vezes fora o seu Deus das batalhas, até esse se extinguiu por completo, extinctos os brios nacionaes e todos os sentimentos de so­lidariedade.

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I l l

0 novo campo da medicina. — Effeitos da concepção da socie­dade como organismo solidário e harmónico.—Injustificá­vel radicalismo d'alguns sociologistas e pathologistas.— A acção morbifica do nosso meio social e a sua relação com a intensidade d'esté.—A nossa estatística corroborada pela estrangeira — Motivo da tardia concepção de doenças sociaes.—O novo apostolado e campanha da sciencia me­dica.

Accentuada a noção de doenças sociaes, re-saltam a extraordinária vastidão e a enorme complexidade do novo campo que se abre á in­vestigação e á acção da sciencia medica.

Relacionada com os variados ramos do sa­ber humano, tem de penetrar e percorrer os campos do direito, da economia politica e de todas as-sciencias sociaes, para de conformidade com os progressos dos estudos philosophicos, biológicos, de anthropologia e de sociologia observar e analysar toda a prodigiosa e laby-rinthica engrenagem dos phenomenos sociaes, formar, elevando-se do effeito á causa, o pro­cesso de todas as leis e prescripções e usos e costumes que produzirem phenomenos d'or-

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dem pathologica, e seguidamente reclamar as modificações ou as leis de hygiene que forem precisas.

A verdade scientifica irrefragavel de que a sociedade é um organismo solidário e harmó­nico dordem superior não só patenteia que n'elle se repercutem os accidentes dos indiví­duos ou elementos cellulares que o constituem, mas auctorisa e legitima, singela e eloquente­mente, a expressão já hoje axiomática—o ho­mem é filho do meio social.

Com effeito, a saúde e as doenças, a riqueza e a miséria, o trabalho e a ociosidade, o desin­teresse e o egoísmo, a moralidade e o vicio, a virtude e o crime, a bondade e a ferocidade, são, exemplificativamente fallando, modalidades e qualidades individuaes que interessam ou prejudicam, não só os homens a que respeitam, mas a sociedade de que fazem parte. A felici­dade d'ella não é senão a somma das felicida­des individuaes; do bom estado e conservação de cada um dos indivíduos depende a saúde e a vida do organismo social.

Levados pela repercussão do mal individual n'este organismo, até alguns sociologistas e pa-thologistas estrangeiros, os poucos por quem vemos professado este assumpto, proclamam e bradam que não ha senão doenças sociaes.

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E' um radicalismo a que, salva a homenagem da nossa altíssima consideração, oppomos a theoria que professamos e levamos consigna­da, por isso que a etiologia é o único critério possível da classificação das doenças.

Por outro lado, desde que as doenças dos indivíduos sejam produzidas ou influenciadas pelo estado geral e radicado da sociedade, não haverá cura que não seja profundamente etio­lógica. E, para ajuisar de como é complexa e nefasta a influencia morbifica do meio social, bastará memorar que os homens de ordinário são o que as leis e mais condições d'esse meio querem que elles sejam.

Até uma verdade hoje assente, graças aos últimos e relevantíssimos trabalhos da demo-graphia, justamente considerada o escalpello do parenchyma das sociedades, é que a acção mor­bifica do meio social se impõe tanto mais ter­rível e assustadora quanto mais intenso e pe­sado elle è.

É sabido que as cidades constituem um meio mais denso, mais complexo e exigente, sendo por assim dizer os pontos de ossificação do or­ganismo social, onde a pressão do meio exte­rior é diminuta e a do meio interior extraordi­nária e prodigiosa.

Pois, apesar de dois terços approximada-

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t.

mente da sua população, segundo os melhores cálculos, serem gente valida e robusta, constan­

temente vinda das provincias nas melhores condições de saúde e de edade, demonstram os estudos demographicos que n'aquellas são muito maiores e deveras assustadores os vicios e a prostituição, a morbidez e mortalidade, os crimes e a degenerescência, os suicídios e as loucuras, em summa todos os caracteristicos que denotam uma regressão no homem mo­

ral e no homem physico. Poderíamos ficar na generalidade d'esta the­

se tão incontestada como incontestável, mas para satisfazermos quiçá aos escrúpulos de muitos e sobretudo ás exigências da sciencia moderna em assumpto de tanta magnitude, ad­

duziremos em comprovação alguns dos princi­

paes dados estatísticos tão succinta e resumi­

damente, quanto o reclama a índole d'esté tra­

balho. De creação moderna é a repartição de esta­

tística ! que hoje possuímos no ministério das obras publicas, o que equivale a dizer que os seus trabalhos ainda não podem competir com

1 Ao snr. Eduardo Villaça, seu digníssimo chefe, a cujo talento, trabalho e zelo ella principalmente deve o que é, cabe­nos aqui agradecer a boa vontade e promptidão com que nos ministrou os elementos de que haviamos mister.

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os d'outros paizès. Todavia, e apesar de luctar com a falta de elementos e informações indis­pensáveis, com a má vontade do publico e por vezes das estações competentes, tem ella já afirmado brilhantemente a sua existência com publicação de trabalhos interessantíssimos, um dos quaes recentemente sahido a lume, é a Es­tatística especial da população no anno de 1887, de que extrahimos os elementos estatisticos re­ferentes ao nosso paiz.

A percentagem dos nascimentos illegitimos é em Lisboa de 34 por cento (mais dum ter­ço), no Porto de 25 (um quarto), entretanto que nas nossas cidades de 2.a e 3-a ordem dá a média commum de 12 (um oitavo), que extra­himos em face dos elementos respectivos a cada uma, e desce nos concelhos ruraes por forma que chega a ser de 2, como em Barran­cas e em Serpa, e até de 1, como em Villa Ve­lha do Rodam.

Terriveis e esmagadoras sobretudo as per­centagens de Lisboa e Porto. Quem pôde oc-cultar que são uma das provas mais eloquen­tes da nossa decadência e degenerescência, at-tendendo a que d'esse exercito de creaturas hu­manas sem pae que as sustente e eduque, aquel-las que na primeira infância logram escapar á morte vão principalmente engrossar as fileiras

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da miséria e do crime, atulhar os hospitaes e as cadeias?

N'este ponto, note-se, estamos infelizmen­te acima até da propria França, que é em toda a Europa a nação que mais se préoccupa com as causas da sua visivel despopulação, em cujo numero a sorte dos filhos illegitimos avulta per forma que a sua mortalidade segundo cál­culos recentes de que falia Rivet *, excede allio triplo da dos legítimos, chegando a attingir a espantosa cifra de 95 por 100. Pois a percenta­gem dos nascimentos illegitimos é em Paris de 28, emquanto em Lisboa é de 34!

Como phenomeno correlativo, o numero dos casamentos está na razão inversa da inten­sidade do meio social. Assim, ao passo que em Lisboa é de 6 por 1:000 habitantes, nas outras cidades do reino é de 7, 8, 9 e mais.

Vejamos agora a mortalidade. E' de 35 e 37 por 1:000 habitantes nos

concelhos de Lisboa e Porto, e decresce nos outros concelhos do reino, dando n'estes a média commum de 19, e em alguns, como Sant'Iago de Cacem e Ponte da Barca, a percen­tagem de 8 em cada um.

Eis ahi outro facto tristemente significati-

1 Recherche de la paternité, 1890.

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vo. A mortalidade, que é thermometro das in­fluencias morbificas e sua gravidade, bem como da depressão d'um povo, não só augmenta ex­traordinariamente com a intensidade do nosso meio social, senão até em Lisboa e Porto é muito maior que em Paris, onde não passa de 28 por 1:000!

Para avivarmos as sombrias cores d'esté ge­nérico e succinto quadro com a preciosa luz d'outras condições demographicas em que a nossa estatistica é omissa, observaremos que ainda na França, consoante uma serie de cál­culos alli feitos, a edade média dos óbitos é em Paris de 24 annos para os naturaes da cidade e de 30 para os outros habitantes, sendo de 36 annos com relação a todas as demais povoa­ções.

E, como phenomenos correlativos que são, ajuntaremos que, segundo o interessante es­tudo do dr. Lagneau, a extincção das familias na capital da França é um facto vulgar; e que, conforme asseveram outros demographos no­táveis, as familias parisienses raramente se per­petuam além da quarta geração, succedendo que as classes pobres perdem a potencia prolí­fica depois da terceira.

Frisaremos por ultimo, como prova da grande decadência da população urbana, que na

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Inglaterra, em 1875, Francis Galton fez um cu­rioso confronto de escholares de 14 annos, to­mando como objectivo d'esté estudo 509 que habitavam Londres e 296 que viviam no cam­po, e constatou que todos os da cidade tinham a menos 3 centimetros de altura e 3 kilogram-mas de peso.

Mas, se o meio social é assim a grande of-ficina onde se fabricam quasi todas as modali­dades mórbidas, se a sua acção é tão morbifica e fatal que faz lembrar a celebre phrase de Rou-seau de que as cidades são a voragem da espé­cie humana, porque é que para os pathologis-tas teem existido até agora somente doenças in-dividuaes?

A meu vêr, é que nas doenças e diatheses do organismo social o methodo de observação e estudo, sendo diverso do seguido nas doen­ças individuaes, carecia dos vastos e complexos elementos hoje ministrados por outras scien-cias, e nomeadamente pelos recentes e impor­tantíssimos progressos da sociologia e da de-mographia.

Nas individuaes o que primeiro nos surpre-hendeu, foram os symptomas espectaculosos provenientes do estado geral do homem. As primeiras lesões verificadas são as que aífectam grandes extensões á superficie, ou um systema

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inteiro de órgãos. Só mais tarde quando pude­mos descer á intimidade estructural dos tecidos mórbidos, graças á histologia e anatomia pa-thologica, é que verificámos que as doenças são devidas a perturbações iniciaes nos elementos cellulares, sõ visiveis ao microscópio, sendo aquellas lesões já secundarias. E' pois da uni­dade cellular que partiu o processo mórbido, mas é do conjuncto que procede a observação clinica. Pelo contrario, nas doenças sociaes a observação parte da unidade social — do indivi­duo para o todo.

Primeiramente impressionam-nos, analy-sam-se e descrevem-se as modalidades mórbi­das, as lesões e as diatheses dos individuos ; es-tudam-se as differenças de tamanho, de quali­dade e de hierarchia entre elles nos différentes paizes ; observam-se as relações que ligam en­tre si esses individuos e o machinismo social em que vivem.

Depois, vê-se que uns se atrophiam, dege­neram ou morrem, porque uma existência nor­mal se lhes torna impossível num meio so­cial viciado e até pervertido ; que outros são vencidos ou eliminados, porque a constituição social os não protegera na lucta pela vida. Vê-se, por exemplo, que os ricos adoecem ou mor­rem atormentados pelo nervosismo, entorpeci-

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dos pela gotta e pela inactividade, gastos pelos prazeres e pelos vicios; que os pobres desfalle-cem ou succumbem por effeito d'uma alimen­tação deficiente, devorados pela miséria, aca­brunhados pela fadiga.

Montanhas douro cercadas porabysmosde miséria!

Eis em resumo porque em face de tamanha engrenagem de phenomenos, como da comple­xidade de estudos de que são objectivo, só modernamente pôde a medicina assentar a no­ção de doenças sociaes, e explorar o vastíssimo campo que ella lhe abre.

Mas dissemos que a esta sciencia cabia tam­bém reclamar as modificações ou leis de hygie­ne social que fossem mister.

Efiectivamente, não basta ponderar a ana­tomia normal ou pathologist duma sociedade; do mesmo modo que não basta averiguar que um homem égottoso, que os seus humores es­tão alterados, que a génese dos seus tecidos em sua renovação incessante se opera d'uma ma­neira lenta e imperfeita.

Tudo seria inane, se não servisse ao medico para deduzir e formular o respectivo regimen.

E' pois necessário que a medicina prosiga com ardor na grande obra da regeneração do nosso pobre organismo social.

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Cumpre-lhe travar uma lucta serena e ma-gestosa contra o empirismo de fazer e desfazer leis, de governar, de fazej therapeutica social, desattendendo a anatomia da sociedade e con­trariando e pervertendo as suas leis physiolo-gicas.

Cumpre-lhe iniciar e desenvolver um inces­sante e porfioso apostolado de therapeutica e de hygiene social, fazendo os seus estudos, or­denando e fazendo valer as suas consequências e applicações sobre os nossos hábitos e costu­mes, sobre todas as prescripções e influencias da nossa civilisação e meio social, sobre as leis e toda a constituição orgânica da nossa socie­dade, e operando em tudo uma dranagem pro­funda que extirpe e previna tão grossas e infi­nitas raizes e tão complexas e innumeraveis causas da nossa degenerescência physica e mo­ral.

Urge encetar e travar fervorosamente essa grande campanha, porque «o dever duma so­ciedade é ser um organismo são e que funccio-ne livremente sem obstaculcs», e o meio é so­bretudo observar os princípios e leis de hygiene social.

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EXEMPLIFICAÇÃO

CAPITULO I Degenerescência pela civilisação

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Evolução da natureza physiea e moral do homem.—Phase ani­mal.—Phase psyohica.—Phase intellectual. —O século e a vida moderna a toda a força do vapor. — O contraste.—A cumplicidade da civilisação nas doenças do systema ner­voso.

Do justo equilíbrio entre a natureza phy­siea e a natureza moral do homem depende es­sencialmente o seu bem-estar e o seu aperfei­çoamento progressivo.

E' sabido que a humanidade, antes de pro­duzir philosophos, litteratos e homens de scien-cia, creára os Hercules que com a força e a coragem prepararam a conquista do mundo para a civilisação.

Ao passo que a civilisação avança, vae di­minuindo a vida animal, accentuandose a de-

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cadencia e a atrophia dos órgãos e das funcções, augmentando a vulnerabilidade.

Com effeito nos graus inferiores da civilisa-ção, quando o homem,, errante ainda, procura uma alimentação incerta, a sua necessidade quasi única, a sua preoccupação constante — ê comer.

N'essas épocas primitivas a sua vida era toda muscular e digestiva, inteiramente animal, oppondo ás causas morbificas uma resistência hoje desconhecida.

Mais tarde formam-se agrupamentos, pen-sa-se na divisão do trabalho, sente-se a neces­sidade ou o desejo de adaptar o systema ner­voso a mais alguma coisa que ao movimento muscular; lançam-se os rudimentos da socie­dade, e concepções assas extravagantes, mais ou menos religiosas, vêem entreter e povoar o espirito. E' o começo da vida affectiva.

Esta progride e a phase psychica apparece, correspondendo ás civilisações da antiguidade, com todas as concepções monotheistas e poly-theistas, com todo o vigor e despotismo d'uma metaphysica universal.

Chega finalmente a phase intellectual, liber­tando o espirito humano das algemas da igno­rância e da superstição, que com seus destroços

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ainda fumegantes juncam de obstáculos a der­rota que levamos.

O que a civilisação tem attingido na ultima metade d'esté século, é a glorificação mais com­pleta do trabalho e da intelligencia humana.

E' este decididamente o século do movi­mento accelerado. «A modesta diligencia que em curtas jornadas rodava pelas estradas reaes dos bons tempos antigos, era a imagem fiel da vida de então; assim como o trem-relâmpago que anda cem kilometros por hora, é o sym-bolo da nossa vida a toda a força do vapor S>.

Porém a este extraordinário grau de cultura do espirito não corresponde o desenvolvimento das forças physicas e de seus órgãos. A vida animal é sacrificada pela intellectual que amea­ça absorver e consubstanciar em si toda a acti­vidade humana.

A uma vida restricta e pouco accidentada succédera uma existência febril, vertiginosa, cheia de accidentes e de responsabilidades. Ou-tr'ora o regimen das castas impunha estreitos limites á actividade humana, aos seus desejos e appetites; hoje o regimen da liberdade e a glo­rificação do trabalho abriram-lhe todos os ho-risontes. A ambição da riqueza, a febre das

Cullerre —Nervosisme et Névroses.

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honras e o desejo immoderado e insaciável das posições sociaes e dos regalos e prazeres da vida põem o espirito humano numa agitação violenta, obrigando o cérebro a uma actividade excessiva que lhe perturba o equilíbrio e o col-loca numa permanente imminencia mórbi­da.

No palco do mundo estão apparecendo sem­pre scenas novas, e acontecimentos d'um ma­ravilhoso surprehendente encadeam-se com as d'um grande efïeito dramático. A vida de hoje é cheia d'estes contrastes.

O cérebro humano, ou melhor ainda o sys-tema nervoso, semelhante a uma machina de precisão, tanto mais sujeita a desarranjos quan­to mais delicada e melindrosa, não é de molde a supportar impunemente excitações e abalos tão violentos e rápidos, commoções tão inten­sas e variadas, todo o conjuncto de phenome-nos produzidos e exaggerados pela civilisação que tem creado o nervosismo que hoje se ag­grava e diffunde dia a dia.

Os nossos sentidos, permanentemente em grande tensão pelo desenrolar d'estas impres­sões variadissimas e fatigantes, acham-se des-fallecentes e exhaustos, carecendo por isso de excitantes cada vez mais fortes, de gosos exag­gerados e excessos de toda a espécie que sue-

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cessivamente vão pervertendo o systema ner­voso e arruinando o organismo.

Eis ahi o grande e profundo contraste da vida moderna.

Temos pois a vida muscular das sociedades primitivas substituida por uma vida toda ner­vosa; o trabalho dos braços substituido pelo

.trabalho continuo e fatigante do cérebro; os serviços rudes e grosseiros que os Hercules fa­ziam, hoje desempenhados por animaes, pela propria natureza, especialmente pelo vapor e pela electricidade. E o sangue, abandonando os outros órgãos para affluir ao cérebro, conges-tiona-o, fazendo do homem um louco ou um paralytico geral com ideias de grandeza e ma­nia ambiciosa.

Em face d'esté quadro tão singello como esmagador, quem pôde negar a cumplicidade da moderna civilisação nessas graves e multí­plices perturbações do systema "nervoso que constituem uma das características culminan­tes da pathologia actual?

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II

O parentesco etiológico e pathogenico entre as doenças nervo­sas e as doenças chronicas.—Influencia morbifica da civi-lisação sobre umas e outras. —Sua explicação.

Mas outras doenças symptomatologicamen-te distinctas, etiológica e pathogenicamente idênticas se desenvolvem juntas, se multiplicam e aggravam sob o império das mesmas cau­sas.

E' o grupo das doenças chronicas intrínse­cas.

Se é natural e vulgarissimo encontrarem-se n'um nevropatha ou psychopatha antece­dentes de nervosismo, afnrmam pathologistas eminentes e a clinica de todos os dias o cor­robora que outras vezes elles não existem, an­tes se verificam manifestações variadas de doenças chronicas, como o rheumatismo, a gotta, a asthma, a diabetes, a lithiase, etc.

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Estas doenças, ou se alternam na linha as­cendente com as nervosas, ou apparecem si­multaneamente em membros da mesma famí­lia.

Predominando ellas no homem e as nervo­sas na mulher, é de notar que umas e outras se encontram nas mesmas classes sociaes e que todas assentam sobre o mesmo fundo mór­bido.

Ou seja pelo funesto poder duma herança diathesica ou por um gasto demasiado em tra­balho cerebral e excessos de qualquer ordem ; ou seja por um desequilíbrio orgânico e afrou­xamento de funcções, por falta de movimen­tos e outras causas accidentaes, acontece fre­quentemente uma de três coisas. Ou os mate-riaes de reparação não soffrem as metamorpho­ses chimicas suficientes para leval-os ao esta­do de assimilação; ou não chegam ao seu des­tino em quantidade que baste ás necessidades orgânicas ; ou finalmente os elementos cellu-lares não possuem para a passagem mysteriosa da nutrição intima uma potencia assimiladora capaz de apropriar os materiaes que a circula­ção arrastou á sua esphera trophica.

Em todos estes casos a nutrição ou a repa­ração intima fica portanto deficiente e retarda­da, o que tudo se traduz por esta phrase assas

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expressiva, mas de pouco rigor scientifico — o sangue está empobrecido.

D'esté facto, aliás vulgar, das transmuta­ções chimicas ficarem incompletas resulta que as substancias não soffrem toda a serie de me­tamorphoses ou reacções que as levem ao termo da sua assimilação e da sua desassimilação na­tural, e portanto a permanência d'esses restos encrava o organismo e intoxica o sangue, que vae envenenar os tecidos, em vez de nutril-os e vitalisal-os. D'estes restos variados e comple­xos uns (acido úrico e uratos) ou se depositam nos pontos onde a circulação é mais diíficil e frouxa—as articulações—, gerando a gotta; ou se eliminam pela pelle, dando origem com a irritação produzida a eczemas e outras derma-thoses. Outros normalmente dissolvidos no sangue precipitam-se ou não se utilisam, e as­sim a colesthrina dá a lithiase, o assucar a dia­betes; etc.

Ora estas substancias que produzem as doenças chronicas são exactamente as mesmas que, depositando-se ou circulando no sangue, envenenando-o, vão ferir os centros nervosos, intoxical-os ou irrital-os, produzindo um longo e complexo cortejo de nevropathias e degene­rescências psychicas.

Vejamos agora como a reducção da nossa

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actividade muscular concorre para este resul­tado.

O concerto da vida orgânica repousa sobre a incessante renovação da materia, sobre a as­similação de materiaes convenientemente ela­borados, tirados ao sangue e ao ar inspirado, e sobre a eliminação doutros impróprios para se utilisarem ou já envelhecidos. Qualquer trans­torno n'esta ordem de phenomenos produz a enfermidade e a morte. Por isso, quanto mais enérgica fôr a renovação, tanto mais a vida me­lhorará nas suas condições de rejuvenescimen­to, de força e duração.

Mas o estimulo d'essa renovação e remoça-mento dos órgãos é determinado pela activida­de d'esses mesmos órgãos. E o systema mus­cular, o mais generalisado e mais vasto dos sys-temas que constituem o corpo humano, per­tence ao numero dos tecidos orgânicos que, pela sua actividade bem applicada, pela contrac­ção de todas as suas fibras, possue no mais elevado grau a faculdade de transformar e re­novar as substancias. E' este systema o mais apto para favorecer as transformações intimas da materia que constituem a base physica da vida, e imprimir impulso a todos os seus actos em completa harmonia com as leis da nature­za, e ao mesmo tempo velocidade ao sangue,

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vehiculo de todos os materiaes de entrada ou de saída, de integração e desintegração. Os actos mais complexos da vida orgânica estão sob a sua dependência, recebem o seu influxo, desde os primeiros momentos das funcções di­gestivas e respiratórias até aos últimos proces­sos de eliminação.

Está determinado por investigações physio-logicas que um homem, cujos músculos func-cionam permanentemente, tem de todo reno­vada a massa do seu corpo ao cabo de seis se­manas, emquanto outro —cujos músculos não exercem a necessária actividade, gasta pelo me-

. nos o dobro do tempo n'esta substituição. Provado, como está, que a actividade mus­

cular é o agente mais importante da nutrição intima e da expulsão dos restos impróprios ou envelhecidos, nocivos uns e outros, é manifesto que a falta ou deficiência de exercício muscu­lar importa uma reparação incompleta na usura dos elementos e nas forças do homem bem como a permanência d'aquelles materiaes no­civos que encravam os órgãos ou intoxicam o sangue e vão ferir os centros nervosos, gerando os dois grupos de doenças já referidas.

Portanto as exigências e progressos da nos­sa civilisação, concentrando os nossos esforços no desenvolvimento da actividade do espirito,

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no exercício das mais elevadas funcções do cé­rebro, reduzindo e supprimindo progressiva­mente a vida muscular, são de certo a causa dos nossos maiores prazeres e encantos, mas não são menos os cúmplices de muitos dos soffrimentos que affligerai e torturam a huma­nidade.

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O principio fundamental da educação como consequência do exposto e dos periodos evolutivos do homem.—O contraste entre a educação ingleza e a educação portugueza.—O es­tado d'esta e a sua influencia morbifica. — O clássico ver­balismo.—Vida nova.

Em face das considerações que precedem, quem ousará contestar que a solidez anatómica é a primeira condição do organismo e que sem ella não pôde esperar-se boa physiologia?

Pela ontogenia sabe-se já que a evolução do homem desde o nascimento é a miniatura ou a synthèse da evolução da humanidade. Atravessa todas as phases d'esta como na vida intra-uterina tocara abreviadamente todos os graus da escala zoológica.

Quando nasce, não traz ainda a sua cara­cterística imprescindível—a linguagem articu­lada. Possue apenas a linguagem automática ou irreflectida, por meio da qual accusa as ne-

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cessidades do estômago e tudo que o incom­moda.

Durante annos continua a ser o symbolo dum verdadeiro selvagem nos seus instinctos e no seu egoismo.

Sáe da phase da nutrição e entra na affecti-va, periodo em que apparecem e predominam os sentimentos e as commoções. Vem depois a phase intellectual, a da razão pura.

De modo que do desenvolvimento anterior como da analyse d'estes periodos evolutivos in­fere-se rigorosamente o principio fundamental ou melhor ainda a formula da educação do ho­mem: promover a cultura physica, base essen­cial da vida; desenvolver e dirigir as aptidões e faculdades efficaz e opportunamente; respeitar e fomentar o equilíbrio entre os diferentes ór­gãos, corrigindo ou evitando as tendências e os desvios que attentem contra as leis physio-logicas da natureza humana.

Tudo o que fôr conducente a prejudicar o desenvolvimento proporcionado dos órgãos e a estimular o das faculdades fora do tempo, é contrariar essa natureza em vez de respeital-â e protegel-a como é obrigação nossa; é pol-a em conflicto com as suas leis biológicas e au-gmentar a vulnerabilidade e a degenerescência que, juntas ás influencias nocivas da civilisa-

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ção, arrastam o homem numa vertigem fatal de decadência, de cujo epilogo não é licito du­vidar.

Respeitando-a e protegendo-a. habilitamos o elemento constituinte do organismo social a desempenhar no mais alto grau as suas func-ções em proveito próprio e da collectividade, e tornamol-o forte e vigoroso para resistir impu­nemente á maior parte dos ataques morbificos.

E' por este caminho que se tem orientado a educação ingleza e a americana.

Na Inglaterra a educação conta por tal forma com os exercícios physicos que estes estão nos hábitos da nação, mesmo nos d'aquellas pes­soas mais dedicadas á vida cerebral. E' da cons­ciência d'esté valor physico pessoal que nascem o génio emprehendedor e o espirito de inicia­tiva e de independência que tanto caracterisam aquelle audacioso povo.

E se ha alguém que tenha em pouco aquel-les preceitos é considerado uma creatura des-presivel, incapaz de luctar pela vida e de exigir uma reparação á dignidade ultrajada.

A nossa, educação... que doloroso con­traste! !

Em nenhuma outra nação culta se vota tão grande despreso ao desenvolvimento dos ór­gãos.

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Se aconselhamos os pães a mandarem seus filhos para as aulas de gymnastica, riem-se de quem isso lhes lembra.

Não se toma a serio que uma senhora ou um cavalheiro de elevada posição social se en­tregue a esses exercícios.

Mas o cérebro adquire precocemente um desenvolvimento extraordinário, fatiga-se com um estudo pesado, fastidioso .e estéril, conges­tiona-se, hypertrophia-se, perturba-se ou de­genera. Os outros órgãos são as victimas sa­crificadas ao excesso cerebral.

E com o sacrifício d'esses órgãos nem se­quer logramos uma boa cultura de espirito !

Em nossas escholas, o clássico verbalismo impera soberano e os verdadeiros processos scientificos modernos — a experiência e a ob­servação— não conseguiram carta d'alfoîria.

A nossa educação obe.dece na realidade a um critério que está em manifesto conflicto com as leis da natureza humana, collaborando na nossa decadência e ruina.

Em vez de servir-nos de elemento de pro­gresso e de meio prophylactico, quenr duvida que ella é o maior factor mórbido a ajuntar-se ás nocivas influencias da civilisação!

Urge emanciparmo- nos e abrirmos os olhos á luz do mundo moderno.

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O desenvolvimento do cérebro carece de ser opportuno, regular e eíficaz.

A boaestructura orgânica, o vigor dos mem­bros e a robustez do estômago não são o pri­vilegio do mechanico, d'esta classe ou d'aquel-le povo; devem constituir o património de quantos queiram supportar impunemente as consequências morbificas da civilisação e avan­çar com ella.

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CAPITULO II

Degenerescência legitimaria

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Definição e justificação da épigraphe d'esté capitulo.—Estado da questão. — A herança na familia e os ataques dos socia­listas.—O nosso evangelho.

As legitimas, taes quaes se acham estatuí­das e encarnadas nas nossas leis e nos nossos hábitos e costumes, affiguram-se-nos um po­deroso factor sociológico de innumeros e cons­tantes phenomenos de degenerescência do in­dividuo e da espécie. E' o conjuncto d'estes phenomenos que designamos pela expressão que serve de épigraphe a este capitulo.

Parece que não incorreremos por isso na maldicçâo, nem nas iras dos nossos lexicogra-phos. Se o qualificativo — legitimarios — no uso diário da lingua se pospõe ao termo — bens — para significar aquelles que dizem res­peito ás legitimas, não será muito que adopte­mos o pospositivo — legitimaria — para accen-tuarmos a degenerescência moral e physica re­ferente a ellas.

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Preceitua o artigo 1:684 do código civil portuguez:

«Legitima é a porção de bens de que o tes-«tador não pôde dispor, por ser applicada por lei «aos herdeiros em linha recta ascendente ou «descendente.

«§ único. Esta porção consiste nas duas «terças partes dos bens do testador, salva a dis­te posição do artigo 1:787.»

Nos termos expressos e peremptórios d'esta lei, o testador que tem filhos pôde dispor so­mente da terça parte de seus bens; os outros dois terços pertencem a esses filhos, que os herdam por egual, e em regra constituem um direito inauferivel, inviolável e sagrado.

Que os pães não possam dispor senão d'um terço em favor de extranhos comprehende-se, afim de que todos os outros bens constituam a herança dos filhos.

Ninguém ignora que, hoje mais que nunca, é o direito de herança aceusado comq cúmplice de graves e profundos accidentes no organis­mo e vida das sociedades.

«Empenhemo-nos em modificar as bases do nosso edifício legal e social, abolindo a he­rança.» Todos adivinham quaes os sectários d'esté evangelho, porque a doutrina proclama­da dá a ideia dos que a apregoam.

Luctam e porfiam n'esse ideal seitas sócia-

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listas, velhas, novas e renovadas, san-simonia-nos, equalitarios, communistas e nihilistas, um aguerrido exercito de publicistas e innovadores que, audaciosos e destemidos, são hoje a hydra da Europa inteira.

Sabemos quem são e o que pretendem. Não estamos com elles.

Queremos e exalçamos a herança na famí­lia, porque a família do homem é o próprio ho­mem. Elle identifica-se com seus filhos. Sentin-do-se responsáveis pela existência que lhes de­ram, é para os filhos que os pães trabalham, economisam e amontoam ; é para assegurar-lhes o futuro, que se impõem cuidados, sacrifícios, privações. Não pôde haver lei que revogue estes sentimentos da natureza humana, que são mais fortes que todas as leis.

Tirae a esperança de transmittirem o patri­mónio aos filhos, e os pães não se dedicarão ao trabalho com o mesmo ardor; perderão o espirito de ordem e de economia; tornar-se-hão indolentes, dissipadores, viciosos. Mais ainda : não evitareis que semelhante lei seja frustrada e escarnecida, em que pese a todos os legislado­res do mundo.

Eis, em resumo,porque reputamos a herança um principio essencial á vida e progresso das so­ciedades, uma lei sociológica tão imperiosa e ine-luctavel como as leis da mechanica ou da biologia.

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II

O regimen da egualdade entre os filhos.— Sua refutação pela anatomia.—Refutação pela physiologia.—Refutação pela pathologia.

Mas a faculdade de dispor somente da terça dos bens, com quanto sufficiente e justa quando se applica em favor de extranhos, parece-nos demasiado diminuta, e inteiramente obnoxia, quando o direito de testar se exerce no seio da familia, e escolhe entre os próprios filhos.

Permitte-se que em favor d'um ou outro fi­lho o testador só possa dispor d'uma diminuta parcella do seu património, porque da egual­dade da partilha de todos os outros bens entre todos os filhos, fez a lei uma obrigação.

Admittida a causa, não podia deixar de ad-mittir-se o effeito. Mas combatemos e fulmina­mos esta lei com todo o ardor d'uma sincera convicção.

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Movem-nos ponderosas considerações ana­tómicas, physiologicas, pathologicas, e muitas outras de natureza social.

Na humanidade, como em nenhum dos outros seres da escala zoológica, não existe a egualdade absoluta.

A analyse orgânica demonstra que os indi­víduos da espécie humana não são eguaes na qualidade nem na quantidade. Na qualidade não, porque entre os elementos constitutivos dos or­ganismos ha uns que são communs, taes como o oxygenio, o hydrogenio, o carbone, etc., e ha outros que o não são como o arsénico, o bo­ro, etc.

Na quantidade também não, porque os ele­mentos communs não se encontram em cada organismo nas mesmas proporções.

Esta verdade scientifica, que se verifica até entre irmãos em idênticas condições sociaes, é reforçada pela physiologia. E' sabido que uma parte da nossa alimentação é destinada a repa­rar a usura dos órgãos, e que em regra os in­divíduos não se servem precisamente das mes­mas substancias ou de quantidades eguaes. Conclue-se d'aqui que são différentes as neces­sidades intimas, diversa a usura dos elementos, e portanto diversas as porções d'estes de indi­viduo para individuo.

A estas differenciações anatómicas e phy-

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siologicas correspondem necessariamente diffé­rentes faculdades de acção e psychicas, e diffé­rentes necessidades económicas. Ora, sendo o património do testador destinado a prover ás necessidades dos filhos, como admittir que seja repartido por egual? como acatar uma lei que está em opposição com a natureza ?

Mais se accentua o absurdo á luz da patho-logia.

Generalisada e radicada como está, quem desconhece que a degenerescência da espécie humana, dentro da mesma geração, no seio da mesma familia, possúe essa mysteriosa influen­cia, que, a par de anemicos, rachiticos, paraly-ticos, em summa, de individuos impossibilita­dos de luctar pela vida, permitte que outros se­jam sadios, robustos, numa palavra, bem cons­tituídos para por si sós proverem a todas as suas necessidades? Numa familia de progenitores tuberculosos, por exemplo, é frequente ficarem os primeiros filhos immunes ao virus paterno, ao passo que os mais novos nascem já com esse estigma terrível, que lhes flagella a exis­tência e ameaça destruil-a.

Este singello quadro é tão triste como es­magador. A lei que decreta a egualdade entre individuos collocados pela natureza em condi­ções tão profundamente deseguaes, reveste as proporções dum verdadeiro attentado. La véri-

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table égalité, proclamam os melhores pensadores d'e ste século, consiste à traiter inégalement des êtres inégaux.

Repartir pelos que não precisam, e podem até viver ricos e felizes, os bens que tantas ve­zes mal chegam para as necessidades imprete-riveis dos irmãos infortunados, sem recursos e inhabilitados para o trabalho, é evidentemente votar estes filhos á miséria e quiçá á morte.

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Ill

Refutação do regimen da egualdade perante os factos do nosso meio social.

Vem ainda o meio social, que cria novas desegualdades ou aggrava as existentes.

Um pae dedicando os filhos a carreiras scien-tificas consegue dar-lhes posições elevadas e lucrativas, á custa da maior parte do seu patri­mónio e dos máximos sacrifícios d'elle e das filhas. Elles teem n'essa posição uma dotação que os torna independentes, incomparável e immensamente superior á herança que aliás poderiam esperar por morte do pae, treplicam-n'a ou sextuplicam-n'a pelo casamento, vivem opulentos e felizes, emquanto ellas, além da condição do seu sexo, que lhes difficulta a vida, ficaram com a educação descurada e a saúde compromettida pela parte que lhes cou­be n'essa nobilíssima lucta de sacrifícios.

Não estará o pae quite para com elles ? não será ultrajar a equidade inhibii-o de applicar o que resta do património, para formar o dote das irmãs ?

Até a penna nos estremece ao commentar esta lei monstruosa, que faz da virtude quasi um'crime.

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Mas ha mais, e melhor. Que diremos d'ella nos casos em que essas amarguradas irmãs á força de dedicação fraternal, ficaram impossibi­litadas para o trabalho e perdidas de saúde, e esse resto do património paterno apenas repre­senta o estrictamente indispensável á sua con­gruente sustentação n'este estado de enorme desventura e irremediável desgraça, ou nem para isso chega ?

Que lei tão criminosa e homicida ! Senhores reformadores sociaes ; vós, obser­

vadores attentes do viver e costumes do nosso povo, e que sabeis como o interesse pessoal é o grande motor do género humano, aqui ten­des esta lei, que explica os motivos porque as familias agrícolas, ainda as mais ricas ou reme­diadas, de ordinário se revoltam contra a ideia da educação scientifica ou profissional d'alguns de seus filhos ou irmãos.

Não, não pôde ser. Aos pães que são a pro­videncia terrestre dos filhos, e que tiveram li­berdade ampla para proverem á educação e ne­cessidades d'estes durante a vida, não podem ser ligadas as mãos, precisamente quando mais carecem de tel-as livres e desembaraçadas, quando querem continuar a missão paternal para além do tumulo, e não têm outro meio senão a livre repartição de todos os seus bens.

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IV

regimen da egualdade obrigatória não é necessário como garantia da democracia. — E' antes um attentado contra ella.— A Inglaterra e os Estados-Unidos.

Bem sabemos que o impedimento irrogado aos pães de favorecerem além d'um certo limite alguns dos filhos, em prejuizo dos outros, ha sido considerado um dos instrumentos da egualdade democrática, e nomeadamente o obs­táculo necessário ao restabelecimento do direito de primogenitura.

Não ha que temer o regresso ás tradições do passado. Na Inglaterra, esse paiz que é na Europa a imagem viva do direito de primoge­nitura, pôde este principio justificar-se como uma instituição politica, nunca como uma ins­tituição civil.

E' uma prerogativa da aristocracia, conce­dida áquelles a quem o nascimento investira de funcções publicas.

Em Portugal, como em outras nações de-

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mocraticas, esse privilegio, devido puramente ao acaso do nascimento, é odioso e incompa­tível com a egualdade penetrada e fundamente gravada nos hábitos e costumes.

Não são os Estados da America do Norte o exemplo prático da mais pura e brilhante de­mocracia?

Pois emitemos essa extraordinária e glo­riosa nação, que até nisto é modelo de sabe­doria: a egualdade da partilha não é ahi im­posta pela lei.

E comtudo a instituição d'um primogénito pareceria tão iniqua a um americano como aliás parece natural e justa a um inglez.

Em summa, o primeiro dever da democra­cia moderna é o respeito á liberdade nos limi­tes traçados pela natureza e pelo ideal da jus­tiça, e a liberdade do pae, cuja alma é o coração dos filhos, é, como levamos dicto, o correctivo necessário e imperioso á egualdade da partilha entre elles.

Não ha democratas, como não ha cérebros humanos, que concebam e acariciem uma lei que, sem estimulo para o bem e repressão con­tra o mal, equipara os bons e os maus filhos, a moralidade e o vicio, as virtudes e os crimes, a opulência e a miséria, a felicidade e a des­graça.

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V

Effeitos do regimen da egualdade obrigatória como fonte de degenerescência do individuo e da espécie. — Os ricos que antes de o serem já o eram: elementos perturbadores e dissolventes. —Os pequenos herdeiros e a emprego-ma-nia : o parasitismo.— A preoccupação dos pães. — Os ca­samentos e a pathologia: a nefasta theoria da egualdade dos matrimónios.

Por outro lado, o regimen da egualdade obrigatória fomenta a indolência e o vicio, es­tes dois grandes factores da degenerescência physica e moral do individuo e da espécie. E ajuisar-se-ha das proporções e alcance d'esté mal, memorando que a saúde e a vitalidade do organismo social depende essencialmente do bom estado e da boa conservação de cada um dos seus elementos cellulares, — os indiví­duos.

Como todos os filhos sabem que terão qui­nhão egual na herança paterna, contam com esta em vez de contarem somente comsigo. E sem o aguilhão da necessidade fallece o esti-

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mulo que poderia insufflar-lhes o espirito de iniciativa, tornal-os emprehendedores, com-merciantes, industriaes, cidadãos úteis e pres­tantes.

Bastará relancear os olhos para os extranhos phenoraenos que incessantemente se dão no nosso meio social.

Não preciso de trabalhar — é a phrase triste­mente eloquente que reiteradas vezes temos ouvido no seio do povo, e que, nas povoações ruraes mais que nas urbanas, de ordinário anda na bocca d'aquelles a quem o acaso deparou pães relativamente ricos ou abastados. Mas in­comparavelmente mais funesta que esta funesta doutrina, é a evidencia terrível dos factos.

Demos o logar de honra aos grandes her­deiros.

Far-se-ha ideia de como cooperam no aper­feiçoamento próprio e da espécie, e da acção que exercem sobre a sociedade com o ineffavel realismo do seu viver e costumes, lembrando que aquelles a quem a vertigem d'uma moci­dade irrequieta e impetuosa não custa a propria vida ou a propria saúde, esses mesmos, por via de regra, cavam para sempre a sua ruina eco­nómica. Perde-os o capitalismo e a agiotagem que na sua cobiça insaciável lhes empolga o património futuro com os adeantamentos que vae fazendo, de sorte que o dia em que entram

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na posse effectiva d'esse património, é, por as­sim dizer, o primeiro em que ficam sem elle.

E eis ahi a obra d'uma sciencia legislativa que, em sua alta sabedoria, applicou o caso da pescada a esses herdeiros que, graças ao direito hereditário, antes de serem ricos já o eram!

Vem seguidamente, e são estes os mais nu­merosos, os casos de famílias regularmente abastadas em que cada filho, ao mesmo tempo que conta com a sua parte da herança paterna, sente a insuficiência d'ella.

Contentatn-se pois com um supprimento á almejada fortuna, e, como as posições sociaes de rendimento fixo sejam as únicas que os col-locam ao abrigo das contingências da sorte, vão de preferencia pedil-o a esses modernos conventos que se chamam ministérios e reparti­ções publicas.

Aqui está, com toda a singeleza, uma das causas d'essa horrível epidemia que, zomban­do de todos os antisepticos, definha e corroe o organismo social da nossa pátria: a emprego-mania.

As pretensões assombrosas de tamanho mal fizeram dizer a um illustre estadista que metade de Portugal estava empregado e a outra metade desejava empregar-se. E note-se que, se­gundo os cálculos dos nossos melhores publi­cistas, a maior parte dos empregados, ou por-

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que não saibam, não possam ou não queiram saber do seu officio, ou por desnecessários, ape­nas servem para embaraçar o serviço, de modo que o melhor que teem a fazer, é o que so­mente fazem — receber o ordenado.

Assim, pondo mesmo de parte os effeitos d'esta invasora emprego-mania, que só de per si produz no organismo do paiz os estra­gos d'urria anemia progressiva de que é epilogo fatal a morte, eis, senhores legisladores, as bel-lezas da vossa lei: ou elementos perturbadores e dissolventes, ou parasitas; — estas duas gra­ves doenças, cada uma das quaes daria um grosso volume de pathologia social.

Mas ha mais: » Como todas as esperanças dos filhos se con­

centram no património dos pães, preoccupam-se estes mais em transmittil-o intacto, senão augmentado, que em dar áquelles uma boa e solida educação que os prepare para serem por si próprios, por seus merecimentos e trabalho, os artistas da sua fortuna. E assim receia-se uma prole numerosa que é não só um penoso encargo no presente, mas objecto de grandes inquietações para o futuro.

Depois, estas máximas praticas que entram no senso moral do nosso povo, estendem, é claro, o seu império degenerescente e fatal so­bre os casamentos.

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Que importa que esta nobre instituição re­presente a funcção mais sublime do organismo — a copula, e ao mesmo tempo o aíto culmi­nante da vida social, aquelle precisamente que não só decide da felicidade ou infelicidade dos filhos de hoje e cidadãos de amanhã, mas traz á sociedade as novas gerações que incessante­mente a renovam ?

Que importa que uma gotta de esperma transmitia aos futuros seres o gérmen imper­ceptível de todos os defeitos orgânicos e psy-chicos dos. seus progenitores?

Que importa que a herança mórbida, esta lei implacável da natureza, leve aos filhos as af-fecções, as doenças, a loucura, a imbecilidade, os instinctos, as paixões, os hábitos, em sum-ma, todos os predicados moraes e physicos dos pães dando á sociedade degenerados, inúteis ou nocivos?

A voz da sciencia é uma burla e uma he­resia. Campeia o egoismo infrene na sua forma a mais grosseira e nefasta. São as condições de fortuna dos nubentes, effectiva ou a herdar, pois, graças á lei, tão inauferivel se considera uma como a outra, o regulador único ou su­premo dos enlaces nupciaes.

E este critério puramente mercantil im-põe-se de modo tão terrível e brutal que os ma­trimónios são reputados bons para um e outro

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dos desposados só quando é egual ou approxi-madamente egual o património de ambos. E' a famigerada theoria dos casamentos eguaes, que sobre tudo nas nossas villas e aldeias é a arca santa dos costumes dos proprietários, lavrado­res e fazendeiros.

A educação d'um filho e as suas qualidades pessoaes de trabalho valem uma grande fortu­na, um thesouro até?

Não basta para que mereça a mão d'uma herdeira, ainda que muito inferior em educa­ção e qualidades e que seja mesmo uma ane-mica, uma tuberculosa, uma doente de névrose ou psychopathia.

Chamamos para tão momentoso assumpto a attenção dos homens competentes.

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CAPITULO III

Degenerescência pelo militarismo

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Rasão especial d'esté capitulo

O ultimato de i i de janeiro de 1890 accor-dára dolorosamente o espirito nacional.

A' violência brutal do acto e ao inesperado da situação correspondera uma commoção pro­funda no paiz, e um movimento sincero agi-tou-lhe todo o organismo. Venha a guerra! vamos a ella! — clamavam poucos; não! somos pequenos e fracos! — bradavam quasi todos.

Veiu depois esse periodo que se seguiu á apresentação do tratado de 20 d'agosto, e em que a alma nacional evidenciou a grandeza da sua dôr e a força do seu patriotismo.

E quando a nação assim convulsionada e receiosa, rendida á impotência d'uma lucta ar­mada contra a vil Inglaterra, vê congregados todos os partidos politicos e concentrados to­dos os elementos de ordem e de patriotismo

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para se poder arcar com os árduos problemas da salvação nacional, uma vertigem tenebrosa apossa-se d'alguns elementos do exercito portu-guez e, levando-os a calcar o dever e as glorio­sas tradições da sua instituição, arrasta-os e preçipita-os numa luçta fratricida!

Estes factos, que caracterisam o presente momento histórico da nossa pátria, movem-nos a considerar no ponto de vista do nosso trabalho a instituição do militarismo, na bella phrase de Naquet—este monumento da loucu­ra humana que se chama a paz armada.

Bem sabemos que quando uma nação é ameaçada, e presentemente todas na Europa o estão ou podem razoavelmente suppol-o, é obri­gada a pôr-se em estado de defeza, custe o que custar, porque o seu primeiro bem é a vida.

Queremos até reconhecer que a paz não pôde ser fecunda sem ser digna, e que a nação que se aviltasse para evitar a guerra, teria talvez de soffrel-a em condições mais desvantajosas.

Mas por isso mesmo é que ao velho adagio latino— si vis pacem, para bellum que tem sido programma dos Bismarks e dos Crispis, é mis­ter contrapor em todos os povos da Europa a causa da justiça e da sciencia, e que todos, por mais obscuros que sejam, contribuam para ella na alçada das suas forças.

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II

O militarismo perante os economistas e perante os patholo-gistas.—O abaixamento das curvas dos casamentos e dos filhos legítimos.—A guerra da Crimea.—Manifesta deca­dência physica verificada pelas juntas revisoras vinte an-nos depois das guerras.—A razão d'isso.—A morbidez e a mortalidade na classe militar e suas causas.—A cifra das vidas e dos milhões devorados pelas guerras europeas.— A Europa contemporânea pode considerar-se barbara e

dissipadora. —O militarismo opera uma selecção no sen­tido da decadência da nossa espécie.—Reacção.

Esta febre de militarismo, que tanto cara­ctérisa a nossa epocha, é sob vários aspectos um factor de decadência e de ruina.

Pois que significa esta loucura da paz ar­mada ? Evidentemente um phenomeno de ata­vismo social; uma ameaça permanente á tão desejada fraternidade universal; e um rochedo inabalável de encontro ao qual se desfazem os mais generosos esforços da democracia mo­derna.

Os economistas horrorisados com esta pre-occupação do século 19 entoam com ardente enthusiasmo os cantos do seu exterminio. Con-sideram-n'a uma deplorável selecção de dinhei­ro que, desviado do curso natural, da agricul­tura e da industria, das artes e das sciencias, é consumido louca e improdutivamente no

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custeamento de grandes exércitos, e na acquisi-ção e aperfeiçoamento de explosivos com que mais prompta e eficazmente se faz caça ao gé­nero humano e se esmaga a consciência dos povos !

Sem duvida o armamento forçado a que a victoria prussiana sujeitou a Europa inteira é a preoccupação de todos os governos, a voragem dos seus orçamentos, a causa das suas dividas, o flagello e a ruina do contribuinte, em sum-ma, o poderoso obstáculo que afrouxa e encra­va a labyrintica engrenagem do progresso hu­mano.

Num notabilissimo artigo Alfred Neimark calculou com notável exactidão o numero espantoso de milhões que annualmente devo­rava na ociosidade o exercito europeu.

Que progresso não fariam as sciencias, as industrias e todo o bem estar dos povos se aquellas montanhas d'ouro fossem empregadas no seu desenvolvimento moral e physico?

Mas se por ventura são estas as considera­ções que se impõem á attenção de publicistas eminentes como Naquet, Jules Simon e mui­tos outros de egual estatura intellectual, ha razões imperiosas de natureza pathologica que nos obrigam a proclamar a condemnação dos exércitos permanentes e das guerras.

Os mancebos mais pequenos, menos ro-

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bustos e menos vigorosos, toda essa serie infi­nita onde se encontram os tuberculosos e os tuberculisaveis, os anemicos, os rachiticos, os enfesados, que a junta revisora regeitára, são os que constituem família e procriam filhos em cuja phisionomia a lei ineluctavel da herança accusa os soffrimentos e a miséria physiologica dos seus progenitores.

Os desenvolvidos, sadios e robustos, são arrebatados ao seio das famílias, vão passar no exercito o melhor tempo para a funcção da re-producção e produzem um numero indetermi­nado de filhos illegitimos, onde por via de re­gra as fileiras do crime e da miséria fazem o seu recrutamento.

Se voltam e casam, a sua descendência ac­cusa a pobresa physiologica e as doenças que seus pães contraíram n'aquella vida das caser­nas e de irregularidades.

A flor da mocidade é pois no período da sua pujança sequestrada ao trabalho e á proge­nitura.

E' em virtude d'esta relação que a curva dos casamentos e dos filhos legítimos não sobe como devia. E' um phenomeno de caracter per­manente e portanto imperceptível, mas cuja importância podemos calcular pelas oscilações que accusa em tempo de guerra.

Os períodos guerreiros produzindo maior

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afastamento do seio das famílias permittem ava­liar as curvas dos casamentos e dos filhos legí­timos n'esse tempo.

Assim durante a guerra da Crimea, houve em França, por anno, urna diminuição de 3:450 casamentos e de 10:075 nascimentos legítimos! Vinte annos depois appareceram os mancebos com mais fraca constituição e menor altura, e o numero das isempções era espantoso. E' que elles foram gerados por pães que a junta revi­sora regeitára.

Estes factos falam tão alto que por si jus­tificariam a épigraphe d'esté capitulo.

Ha porém mais. A degenerescência, a morbidez e a mortali­

dade são no exercito muito maiores que na po­pulação civil. O dr. Marvaud num importante estudo estatístico encontrou no exercito fran-cez 541 doentes por anno em cada 1000 solda­dos. Mais de metade. O que se dá em França encontra-se proximamente nos outros paizes, sendo essa percentagem muito maior ainda na Italia e na Russia.

A mortalidade militar * apesar de ter dimi­nuído com o melhoramento das condições hy-gienicas e alimentícias offerece ainda na popu­lação escolhida que constitue o exercito da

N.ão tae refiro á mortalidade nas batalhas.

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grande republica, uma percentagem de 14 por 1:000, e a mortalidade civil n ; muito menor pois n'essa massa que ficou com os doentes e enfesados, que entre os sãos e robustos, esco­lhidos pela junta.

As doenças infecciosas são as que se enfu­recem mais.

A febre typhoide matta em média na classe militar 9 por 1:000, e na civil 1,5 apenas.

A tysica, essa doença aristocrata que se dá bem em peitos femininos, frequentadores das salas e dos theatros, encontra-se também em maior escala na classe militar.

O exercito francez dá uma mortalidade pela tysica de 6 por 1:000, o inglez 8, o italiano e o russo mais, emquanto na população civil ha a média apenas de 3 por 1:000.

Esta estatística mostra-nos bem quanto a profissão militar predispõe para a tuberculose, se attendermos sobretudo ao facto de que a junta revisora regeita todos os tuberculosos e os que para isso tenham disposição.

Ha uma espécie de doenças a que as condi­ções do celibato expõem especialmente os mi­litares. São as doenças venéreas as quaes depois vão repercutir-se na descendência se elles con­traem familia quando volvidos á vida civil.

E' de fácil comprehensão o augmento da morbidez e da mortalidade no exercito. Os mi-

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litares, gente de todos os pontos da província tirada á vida dos campos, são enviados para as cidades cuja população augmentam, e no viver accumulado, pouco hygienico e viciado das ca­sernas, criam entre si um meio assassino para o seu organismo que definha, e uma atmos-phera contagiosa, onde tudo é epidemico, os próprios costumes e hábitos, os vicios, o sui-cidio, a loucura. E' um meio embrutecedor e estiolante onde a malaria urbana encontra as condições do seu desenvolvimento, e a decadên­cia da nossa espécie um dos seus factores mais poderosos.

O militarismo é portanto um perigo grave e progressivo, verdadeiramente desastroso no ponto de vista económico, como, e principal­mente, no ponto de vista da salubridade social.

Posto que a Europa contemporânea possa considerar-se para o meu propósito quasi num estado de guerra permanente, não é inoppor-tuno nem alheio ao nosso fim, reportando-nos a um auctor abalizado, referir a cifra das vidas humanas e dos milhões, devorados por algu­mas guerras, que hoje poderiamos considerar apenas meros accidentes sobrevindo na vida de tensão bellicosa dos povos.

Leroy Beaulieu n'um importantíssimo estu­do que fez, investigando a perda de homens e capitães nas guerras desde 1853 a 1866, chegou

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á conclusão de que a Europa de hoje tem pro* vas de sobejo para reputar- se barbara e dissipa­dora. Beaulieu demonstrou que as guerras d'esse período de 14 annos, excepto as que a Hespa-nha teve com as republicas sul-americanas, rou­baram um milhão e oitocentos mil homens, ás famí­lias, á humanidade, ácivilisação e á riqueza das nações! N'essa voragem desappareceu a fabulosa somma de 48:230:000:000 francos ou reis 8:681:400:000:000!

Entre as muitas considerações sensatas d'esté illustre esçriptor, extrahimos a seguinte que nos parece edificante: ccEsta quantia im-mensa se fosse empregada em obras de paz te­ria transformado as condições materiaes da vida dos povos civilisados ; todavia o flagello das guerras devorou-a não só inutilmente, mas além d'isso fazendo desapparecer da face. do mundo um milhão e oitocentas mil creaturas humanas.

A este horroroso quadro podemos aceres-centar outro: O total das vidas que a Prussia perdeu na guerra de 70 foi de 175:000 e o da França 603:000! E' positivamente um exter-minio, que só uma perversão do espirito hu­mano pôde tolerar.

Darwin observou e formulou a lei da selec­ção natural em virtude da qual se opera per­manentemente no seio da natureza uma elimi-

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nação dos fracos que succumbem na lucta pela vida, e um avigoramento dos fortes pela selecção sexual.

Mas esta loucura da nossa epocha, este es­pirito de conquista perseverante, tão absorvente de actividade, de capitães e de vidas, arrasta ir­resistivelmente uma selecção inversa.

Se aquella é um poderoso factor de aper­feiçoamento da espécie humana, esta não é me­nos uma causa de decadência e degeneração.

O militarismo é pois para o organismo so­cial uma sangria de forças de saúde, uma causa de anemia universal que importa muitas doen­ças e vicios.

E para que tudo isto? Para atropellar o di­reito abusando da força, pôr a musculatura ao serviço do egoismo, esbulhar a intelligencia do serviço do direito e da justiça.

Vae já longe o tempo em que as sociedades careciam de ser guerreiras.

As guerras foram precisas para constituir as nações, para as disciplinar, para ellas se im­porem á Barbaria e domestical-a, para levar a civilisação até onde era mister abrir o caminho com as armas na mão.

Na juventude dos povOs íoi mesmo um elemento e um estimulo de progresso. Foi as­sim que o Occidente da Europa se antecipou ás outras nações, por isso que as luetas das ra-

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ças e das nacionalidades alli se feriram com maior intensidade.

Porém hoje não ha povos a disciplinar, nem Barbaria a domesticar; temos o direito e a ra-são para resolver todas as pendências e dar a cada povo o que de direito lhe pertence. Temos o arnor á lei que nos suggère o horror á guer­ra. Temos a civilisação que repudia todas as violências que o nosso altruísmo condemna.

E' em nome de todos estes princípios que exornam o espirito moderno, que se levanta por toda a parte uma enérgica reacção contra esta reproducção do passado.

O joven e glorioso imperante allemão ini­ciou uma crusada de véhémente protesto con­tra a presente situação militar.

Em todos os paizes da Europa e até na propria França onde o espirito de represália é tão forte como justo, aquella ideia encontra defensores intransigentes, publicistas de grande valor corno Jules Simon e Naquet.

Não são só os economistas que devem pu­gnar por aquelle ideal. Aos hygienistas, aos medicos por mais obscuros que sejam—cum-pre-lhes enfileirar-se n'esta sacrosanta propa­ganda com as suas observações, com todo o peso de seus argumentos, cheirs de autoridade e isemptos de paixão, a bem das nossas famí­lias, da sociedade e da espécie humana.

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;», I

Proposições , - - - — *

A n a t o m i a . — A s invenções e exigências da vida mo­derna imprimem modificações anatómicas.

Pl iye í io lo jr i t i .—A civilisação progride com sacrifício das leis physiologicas.

M a t e r i a m e d i c a . — 0 único processo possível de classificar medicamentos é por medicações.

M o t l i c i n a o p e r a t ó r i a . — A castração impõe-se por vezes nos fungos parenchymatosos do testículo.

P a t h o l o g i a i n t e r n a . —A pathologia interna tende a desappareccr.

A n a t o m i a p n t n o l o g i e n . — A d m i t t o a especifici­dade cellular.

I P a t h o l o j ç i a e x t e r n a . — A s ulceras nos paludosos revestem ã maior parte das vezes os característicos das febres palustres e só cedem ao tratamento especifico.

M e d i c i n a l e g a l . — O s progressos recentes da an-thropologia criminal justificam cabalmente a pena de morte.

P a t h o l o g i a g e r a l . - O s progressos da bacteriolo­gia vieram confirmar a theoria nervosa da febre.

P a r t o s . — N a s hemorrhagias uterinas depois do aborto prefiro a raspagem seguida de irrigações de agua quente.

VISTA. PODE IMPRIMIR-SE. O director,

Ricardo Jorge. Visconde de Oliveira.