Representações Femininas Em Helder Macedo E · PDF fileEm Memorial do Convento, Blimunda é quem possibilita o funcionamento da passarola, com seus poderes

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  • XI Congresso Internacional da ABRALIC Tessituras, Interaes, Convergncias

    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Representaes Femininas Em Helder Macedo E Saramago:

    Olhares Masculinos

    Profa. Dra. Profa. Dra. Marisa Corra SILVA - 1 (UEM) Resumo:

    Este trabalho visa discutir especificidades do olhar masculino dos autores Jos Saramago e Helder Macedo sobre personagens femininas, a partir da perspectiva do materialismo lacaniano. Libert-rias e admirveis, as protagonistas desses romancistas possuem, em sua representao, marcas do olhar masculino de seus criadores. Entretanto, a crtica feminista tradicional no oferece uma a-bordagem satisfatria para essas marcas, sendo necessrio lanar mo de outra ferramenta terica a fim de discuti-las.

    Palavras-chave: Personagem feminina, materialismo lacaniano, Helder Macedo, Jos Saramago

    Introduo J foi observado que tanto Helder Macedo quanto Jos Saramago tm profunda simpatia por

    personagens femininas e, cada um sua maneira, ambos criam mulheres fortes e independentes, anticonvencionais, competentes e ativas, contrariando a representao convencional, falocntrica, do feminino. Podemos citar trabalhos como o de Simone Pereira Schmidt (2000), ou as observaes de Mnica Figueiredo (2001), que confirmam essa opinio.

    Mas essa representao sempre nuanada, como nota a prpria Schmidt (2000), ao chamar a ateno de seu leitor para o grau de idealizao de Maria Sara, da Histria do Cerco de Lisboa. Em Saramago, existe uma predominncia de personagens femininas coerentes, centradas, generosas, que persistem em seus afetos e demonstram coragem e serenidade excepcionais face s adversida-des. Isto enfaticamente posto, atentemos ao fato que, em pelo menos dois romances de Saramago, Memorial do Convento e A Caverna,, essas mulheres ocupam um papel de coadjuvncia nos even-tos. Moralmente impecveis, mas afastadas do centro das aes hericas, das tomadas de deciso.

    Em Memorial do Convento, Blimunda quem possibilita o funcionamento da passarola, com seus poderes. Ainda assim, quem voa na passarola so Bartolomeu Loureno e Baltasar, condenan-do Blimunda a anos de peregrinao em busca do amado, remetendo ao mito de Psiqu. Em A Ca-verna, Marta no vai at o espao guardado conhecer o mistrio inicitico pelo qual passam Cipria-no e Maral. Isaura Estudiosa tampouco modifica as opinies de Cipriano: apaixonada, deve aguar-dar que ele tome a iniciativa de se declarar e de ir viver com ela. Depois, segui-lo- em sua busca.

    Podemos ver o mesmo padro em algumas outras mulheres saramaguianas: Maria Sara, de A Histria do Cerco de Lisboa, embora seja superior hierrquica de Raimundo, funciona como incen-tivadora, como algum que estimula ao revisor a provar a si mesmo que ele ainda pode conhecer o amor e a realizao pessoal. Claro que a relao desse casal um pouco mais ambgua, porque me-diatizada pelo texto que Raimundo escreve, e que fascina Maria Sara a ponto de ela cobrar repetidas vezes que Raimundo complete essa nova Histria, como uma espcie de prova cavalheiresca, na qual o homem demonstrar ser digno da afeio/admirao da mulher. Embora essas mulheres este-jam muito longe do esteretipo de fragilidade e de incompetncia que caracterizam os textos falo-cntricos, elas acabam por ser primordialmente o esteio e a base firme de onde os homens podem levantar vos. Apesar de independentes e sbias, essas mulheres tm papis restritos na diegese, confinados ao apoio afetuoso e benevolente ao homem, e este, sim, passar pelas aventuras, pelas experincias avassaladoras, pelas epifanias.

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    13 a 17 de julho de 2008 USP So Paulo, Brasil

    Em Helder Macedo, as personagens femininas podem ser fortes (Paula), frgeis (Ana, me de

    Paula), repelentes (Fernanda, cunhada de Paula), chocantes (Joana) ou mesmo eticamente ambguas (Jlia, no incio de Sem Nome), mas Margarida Calafate Ribeiro, em comunicao feita em congres-so nos EUA, j apontou o problema, de as protagonistas macedianas serem configuradas primeira-mente pela capacidade de atrao sexual, pela beleza, de onde deriva qualquer poder que elas pos-sam ter, e mais especificamente, qualquer interesse que a voz delas possa constituir dentro da narra-tiva.

    Se a viso do feminino em Saramago e em Macedo respeitosa e positiva, cabe ao crtico ho-nesto reconhecer que, curiosamente, ainda existem nessas representaes traos que podem ser lidos como originrios de uma ordem falocntrica. No se trata de cobrar que o escritor modifique seus futuros retratos de mulheres: muito menos, de sugerir que suas obras tenham menor importncia do que a que lhes atribuda at mesmo pela crtica feminista. A permanncia de traos falocntricos significativa porque aponta para a persistncia do falocentrismo na sociedade e nos discursos hege-mnicos. Mas no basta resolver a questo apontando machismos, ou resqucios falocntricos, nos dois romancistas. Se o problema existe, essa a sada mais superficial para as marcas do olhar masculino na representao feminina elaborada por ambos.

    Propomos, portanto, lanar mo do materialismo lacaniano a fim de discutir esse tema. Inicia-remos nossas consideraes sobre Saramago e depois abordaremos a obra de Macedo. A contribui-o dos estudos lacanianos para o enriquecimento da crtica feminista j foi apontada por Elizabeth Grosz, nos anos 1990.

    1 Saramago: o outro feminino. Mesmo a mulher do mdico, em Ensaio Sobre a Cegueira, tem sua experincia aventuresca

    determinada por uma circunstncia eventual: o fato de ser imune epidemia. Ela v essa imunidade como uma espcie de maldio. Aventaramos se o mesmo ocorreria com uma personagem mascu-lina, ou se, ao contrrio, esse homem com olhos tentaria tornar-se um rei na terra de cegos. Sarama-go faz com que a aparente vantagem da protagonista se dilua na impotncia dela para modificar o horror que se desenrola e do qual ela a nica testemunha visual. Temos tambm a mulher sem nome, em O Conto da Ilha Desconhecida, cuja deciso aventuresca de deixar o palcio e seguir o homem que deseja pelo mar sem fim determinada e possibilitada pela iniciativa do homem, que sonha buscar a Ilha, indo pedir ao Rei que lhe d o barco. A aventura feminina relacionada a seguir o homem.

    Os corpos femininos, portanto, so corpos amorosos. Destinados ao cuidado, ao afeto e ao a-poio generoso das vontades masculinas, algumas vezes at mesmo explicando a esses homens o que de fato eles buscam. Positivo, sem dvida, mas no ser uma reiterao da idia de mulher como ser para, diferente do homem, que deve buscar um destino de realizaes? Talvez por isso as rela-es amorosas em Saramago sejam pouco tensas, harmnicas e, mais ainda, deixem no leitor uma sensao de utopia: A mulher amada aparenta ser um objeto a que pode ser alcanado e, uma vez alcanado, reinstituiria uma harmonia, uma completude narcsica, ao homem. Em Lacan, a perma-nncia no estado de unio com a me significava a morte: em Saramago, uma beatitude possvel.

    Isso implica numa recolocao do Pai (enunciador da Lei enquanto proibio e castrao sim-blica), o que, de fato, no ocorre. Marta evidentemente apegada a Cipriano e aceita seus valores: Maral, progressivamente, desafia o prprio pai, colocando-se mais e mais, atravs da influncia de Marta, ao lado do sogro. A rivalidade entre ambos se resolve atravs de uma progressiva identifica-o. A marca da queimadura na mo de Maral, feita quando ele tentava agradar a namorada, traba-lhando no forno da olaria, marca a inadequao do genro aos olhos do oleiro: a mancha que assu-me o lugar do objeto, no caso, Maral. Quando Maral chama Cipriano de pai, a rivalidade aca-bou: a Lei enunciada por Cipriano aceita, a identificao se completou e o sogro pode ver no gen-

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    ro uma continuao legtima de si prprio.Podemos ler A Caverna seja um romance de afirmao da autoridade paterna do protagonista, cujos valores acabam por ser aceitos por todos os que convivem com ele, o que inclui Isaura.

    Mas o Centro surge como o novo enunciador da Lei, o novo castrador, reduzindo o patriarca Cipriano figura que subsume o resduo pattico de uma castrao radical: o velho, o intil, o de-sempregado. Para sobreviver, Cipriano tem de escapar das proibies enunciadas pelo Centro: de se sustentar, de amar, de respeitar a si mesmo. Mas na viso de mundo saramaguiana, o Centro (que smbolo do Capitalismo) no representa o Nome do pai (Nom du pre) lacaniano: a proibio, o corte fundamental, a ruptura que instaura a falta mas que, em compensao, insere o Simblico, im-pedindo que o Desejo da Me/Outro (mOthers desire) anule o indivduo, engolfando-o. No, trata-se de um Pai saturnino, devorador dos prprios filhos, cuja ao (unicamente castrao) levada s ltimas conseqncias, destruindo o Sujeito, realizando uma pulso de morte.

    Neste sentido, lgico que o princpio feminino seja benfico e vivificador: a reunio com a Me no , novamente, lacaniana, a fantasia impossvel porque, se realizada, seria a morte. , em vez disso, o desafio radical ao Pai saturnino: a afirmao do Desejo em contraposio pulso do consumo; a (re)constituio de uma esfera de completude, idlica, sem tenses, na qual o Desejo do Outro e o do indivduo no mais existem como entidades separadas. Lacan argumentaria que essa idealizao equivocada, inatingvel. Ento, como fica a analogia entre a amada e o objeto a?

    Em Memorial do Convento, as figuras propriamente paternas so reduzidas. O Rei, pai da na-o e enunciador mximo da Lei, desautorizado o tempo todo pelo texto; da mesma forma, os bis-pos, pretensa encarnao da vontade divina. Ridicularizados, monarca e autoridades eclesisticas so postos sob o escrutnio do leitor. A lei enunciada s se mantm atravs do uso da fora: autos-de-f, exrcito seqestrando