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Resenha de “Acauã!”, de Inglês de Souza Rachel Rabello 1 Acauã! Acauã! Inglês de Souza nasceu em Óbidos, Pará, em 28 de dezembro de 1853. Apesar de passar grande parte da sua vida longe de sua cidade natal, é nela que irá se inspirar ao compor sua obra literária. Formou-se bacharel em Direito em São Paulo e publicou seus três romances em Santos (O Cacaulista, História de um pescador e O coronel sangrado) sob o pseudônimo de Luiz Dolzani, antes de escrever o livro que consideram ser o mais importante de sua obra: O Missionário. Além de escritor, Inglês de Souza foi governador de Sergipe e do Espírito Santo, deputado federal, banqueiro e jornalista, além de advogado e professor de Direito no Rio de Janeiro e membro fundador da Academia Brasileira de Letras, cadeira 28. Escreveu seu livro Contos Amazônicos, publicado em 1893, no contexto da literatura naturalista, em que as personagens são submetidas ao plano e ao desejo de forças superiores à sua vontade as leis da natureza impelindo o homem à determinada direção, sem que ele possa dominá-las. Em Acauã, esse aspecto é evidente. Veremos por quê. O Capitão Jerônimo Ferreira tinha perdido sua esposa e morava só, com sua filha Aninha de dois anos de idade, em uma vila pacata e quase deserta. Voltava, certa vez, de uma caçada infrutífera, que decidira fazer, após uma noite de insônia, no mais agourento dos dias da semana, sexta-feira. Era noite feita, sem lua ou estrelas, de uma “escuridão pavorosa”, e, por algum motivo desconhecido, o capitão não chega à sua casa a primeira da vila , mas, não se sabe como, às margens do Rio Nhamundá, do qual, do fundo, se levantava um ruído que, crescendo, transformou-se num “clamor horrível, insano, que dominava todos os ruídos da tempestade”, clamor comparado, pelo narrador, ao dos condenados ao inferno no dia do juízo final: era a Sucuriju, a Cobra Grande, Boiúna, que vive no fundo dos rios e lagos. Os gritos seriam do “monstro em laborioso parto”. O grito cresceu a ponto de Jerônimo desmaiar. E, com a queda, espantou um pássaro negro que cantou: Acauã! Acauã!”. Quando o capitão tornou a si, a noite estava ainda escura. Olhou para o rio e percebeu que estava com uma cor diferente, estranha. Viu um objeto estranho na água que flutuava por uma força desconhecida em direção a ele. Quando o objeto se aproximou, ele percebeu que se tratava de uma pequena canoa e que dentro dela estava uma criança. 1 Graduanda do Curso de Letras da UERJ e membro do Grupo de Pesquisa “O medo como prazer estético”, sob a orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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Resenha de “Acauã!”, de Inglês de Souza Rachel Rabello1

Acauã! Acauã!

Inglês de Souza nasceu em Óbidos, Pará, em 28 de dezembro de 1853. Apesar de passar

grande parte da sua vida longe de sua cidade natal, é nela que irá se inspirar ao compor sua obra

literária. Formou-se bacharel em Direito em São Paulo e publicou seus três romances em Santos

(O Cacaulista, História de um pescador e O coronel sangrado) sob o pseudônimo de Luiz Dolzani,

antes de escrever o livro que consideram ser o mais importante de sua obra: O Missionário. Além

de escritor, Inglês de Souza foi governador de Sergipe e do Espírito Santo, deputado federal,

banqueiro e jornalista, além de advogado e professor de Direito no Rio de Janeiro e membro

fundador da Academia Brasileira de Letras, cadeira 28.

Escreveu seu livro Contos Amazônicos, publicado em 1893, no contexto da literatura

naturalista, em que as personagens são submetidas ao plano e ao desejo de forças superiores à

sua vontade – as leis da natureza impelindo o homem à determinada direção, sem que ele possa

dominá-las. Em “Acauã”, esse aspecto é evidente. Veremos por quê.

O Capitão Jerônimo Ferreira tinha perdido sua esposa e morava só, com sua filha Aninha de

dois anos de idade, em uma vila pacata e quase deserta. Voltava, certa vez, de uma caçada

infrutífera, que decidira fazer, após uma noite de insônia, no mais agourento dos dias da semana,

sexta-feira. Era noite feita, sem lua ou estrelas, de uma “escuridão pavorosa”, e, por algum motivo

desconhecido, o capitão não chega à sua casa – a primeira da vila –, mas, não se sabe como, às

margens do Rio Nhamundá, do qual, do fundo, se levantava um ruído que, crescendo,

transformou-se num “clamor horrível, insano, que dominava todos os ruídos da tempestade”,

clamor comparado, pelo narrador, ao dos condenados ao inferno no dia do juízo final: era a

Sucuriju, a Cobra Grande, Boiúna, que vive no fundo dos rios e lagos. Os gritos seriam do “monstro

em laborioso parto”.

O grito cresceu a ponto de Jerônimo desmaiar. E, com a queda, espantou um pássaro negro

que cantou: “Acauã! Acauã!”. Quando o capitão tornou a si, a noite estava ainda escura. Olhou

para o rio e percebeu que estava com uma cor diferente, estranha. Viu um objeto estranho na

água que flutuava por uma força desconhecida em direção a ele. Quando o objeto se aproximou,

ele percebeu que se tratava de uma pequena canoa e que dentro dela estava uma criança.

1 Graduanda do Curso de Letras da UERJ e membro do Grupo de Pesquisa “O medo como prazer estético”, sob a

orientação do Prof. Dr. Julio França (UERJ).

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Jerônimo a toma nos braços e nesse momento rompe o sol, corre o rio voltando à sua cor

habitual, os cães ladram, os galos cantam e ele percebe que caíra, à noite anterior, justamente no

limiar de sua casa. No dia seguinte, toda a vila comentava que o viúvo havia adotado uma menina

linda e que iria criá-la como sua, juntamente com Aninha.

Inglês de Souza mistura, em um só conto, mito e ficção. Em primeiro lugar, o pássaro Acauã

existe: é um falcão que habita tanto florestas úmidas quanto áreas secas, como o cerrado e a

caatinga, e que se alimenta de serpentes e morcegos, sendo as serpentes as que mais lhe atraem

(o que explica sua aparição no conto no momento em que a Sucuriju aparece). A ave, porém,

aparece também em muitas lendas indígenas, como a dos índios Tupinambás, que reconheciam,

no canto melancólico da ave “Macauan”, um sinal das almas, um aviso bom dos antepassados.

Escutavam o pássaro dias inteiros e faziam um ritual para evocá-lo. Já para os Guaranis, o pássaro

é chamado de Macaguá e, por se alimentar de serpentes, é considerado santo e encantado,

protetor contra picadas. Quando são picados por cobras, os guaranis procuram o remédio em uma

folha conhecida como "guaco" – nome também dado ao falcão no Peru. Mas, para as mulheres

guaranis, seu canto é anúncio de desgraça iminente. A lenda na qual o escritor parece ter se

baseado é a de que o canto do acauã é agoureiro, anunciador de tragédias e desgraças, assim

como pensavam as mulheres guaranis.

Já as lendas sobre a Sucuriju – a maior serpente do mundo, que pode alcançar até 10m de

comprimento e vive à beira da água ou mergulhada em rios e lagoas – contam que ela cresce

desproporcionalmente e sai da floresta em direção ao fundo dos rios. Ao rastejar pela terra firme,

os sulcos que deixa se transformam nos igarapés. Contam ainda que a cobra-grande pode se

transformar em embarcações ou outros seres. Mas a fonte principal do conto do escritor paraense

parece ser a lenda indígena que narra como, em certa tribo da região, uma índia foi engravidada

pela Boiúna e deu à luz a duas crianças gêmeas. Uma delas, má, atacava os barcos, naufragando-

os. Muito semelhante à construção de Inglês de Souza, em que duas irmãs são o centro da

narrativa, uma “prometia ser alegre e robusta” antes de a irmã – filha da Boiúna – aparecer. Era de

boa índole, embora, desde o aparecimento da irmã, tenha se tornado cada vez mais triste e mais

pálida e franzina. A outra, adotada, “era alta e magra, de compleição forte, com músculos de aço”,

“tinha os olhos negros, rasgados, de um brilho estranho”. As duas foram criadas como se fossem

da mesma idade, como gêmeas, tal qual a lenda; uma era boa e sua bondade era afetada pela

maldade da outra, por isso a tristeza e a palidez.

Desde o primeiro parágrafo, o autor faz uso de palavras que são recorrentes em textos do

gênero a que chamamos de Literatura do Medo ou Literatura de Horror (textos ficcionais

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relacionados ao sentimento de medo físico ou psicológico): morte, solidão, silêncio, insônia,

cansaço etc. Especialmente a “insônia” e o “cansaço” são essenciais para o efeito do fantástico, já

que o estado insone, somado à noite, ao cansaço, ao silêncio, aos barulhos da floresta e à solidão

em que se encontrava, pode facilmente ter contribuído para que ele imaginasse ter visto a Cobra

Grande e, por isso, quando acorda do desmaio, sequer liga a aparição da menina na água ao

“laborioso parto” da Boiúna. Tudo isso leva o leitor a também hesitar, sem saber se o monstro era

fruto da imaginação da personagem, induzida pelas lendas e pela noite, ou se de fato apareceu

naquela noite. O fato da Sucuriju e do pássaro Acauã existirem só contribui, pois, para o efeito do

fantástico, pois legitima a hesitação em acreditar ou não na aparição de ambos no conto.