4
CADERNO CRH, Salvador, v. 17, n. 40, p. 143-146, Jan./Abr. 2004 143 RESENHAS ANTROPOLOGIA E PODER WOLF, Eric R. Sob o olhar multidimensional: antropolo- gia e poder. Gey Espinheira INTRODUÇÃO Sob a responsabilidade de seus organiza- do-res, Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ri- beiro, traduzido por Pedro Maia Soares, o livro Antropologia e poder – contribuições de Eric R. Wolf nos chega pelas editoras Universidade de Brasília, Imprensa Oficial do Estado de São Pau- lo e Universidade Estadual de Campinas, em 2003. Os organizadores são antropólogos, conhe- cedores profundos da obra do autor e dele pró- prio como orientador, como é o caso do profes- sor Gustavo Lins Ribeiro, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, cuja tese, desenvolvida na City University of New York (1988), foi orientada por Wolf. Bela Feldman-Bianco é do Departamento de Antropologia da Universi- dade Estadual de Campinas (Unicamp) e direto- ra do Centro de Estudos de Migrações Internaci- onais (CEMI/IFCH) da mesma universidade. Ambos, portanto, profundos conhecedores e res- ponsáveis pela introdução ao livro. Mas, como se não bastassem esses testemunhos qualifica- dos, um capítulo é dedicado ao próprio Eric R. Wolf – “Uma autobiografia intelectual” –, o que confere ao livro Antropologia e poder – contri- buições de Eric R. Wolf uma totalidade significa- tiva sobre a obra de um pensador contemporâ- neo que muito contribuiu para o estatuto de modernidade da antropologia contemporânea. UM LIVRO POLÊMICO E ATUALIZADOR DA ANTROPO- LOGIA CONTEMPORÂNEA Antropologia e poder é um livro que con- tém escritos do autor Eric R. Wolf e que, ao mes- mo tempo, fala do autor, ou o autor fala de si mesmo, em uma autobiografia da vida intelec- tual. Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ri- beiro, ambos professores, a primeira do Departa- mento de Antropologia da Universidade Esta- dual e Campinas (Unicamp) e o segundo, do De- partamento de Antropologia da Universidade de Brasília, oferecem ao público brasileiro, na tra- dução de Pedro Maia Soares, uma ampla abor- dagem dos textos e Eric R. Wolf, pouco conheci- do no Brasil, a não ser no pequeno círculo dos antropólogos que, de início, se dedicaram ao es- tudo dos camponeses. O livro é uma apresentação do antropólo- go americano ao meio acadêmico na forma de blocos de abordagens do autor, ou seja, dos te-

Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

Citation preview

Page 1: Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

Gey Espinheira

CADERNO C

RH

, S

alvad

or,

v. 17, n

. 40, p

. 143-1

46, Ja

n./A

br.

2004

143

RE

SE

NH

AS

ANTROPOLOGIA E PODER

WOLF, Eric R. Sob o olhar multidimensional: antropolo-gia e poder.

Gey Espinheira

INTRODUÇÃO

Sob a responsabilidade de seus organiza-do-res, Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ri-beiro, traduzido por Pedro Maia Soares, o livroAntropologia e poder – contribuições de Eric R.Wolf nos chega pelas editoras Universidade deBrasília, Imprensa Oficial do Estado de São Pau-lo e Universidade Estadual de Campinas, em2003. Os organizadores são antropólogos, conhe-cedores profundos da obra do autor e dele pró-prio como orientador, como é o caso do profes-sor Gustavo Lins Ribeiro, do Departamento deAntropologia da Universidade de Brasília, cujatese, desenvolvida na City University of New York(1988), foi orientada por Wolf. Bela Feldman-Biancoé do Departamento de Antropologia da Universi-dade Estadual de Campinas (Unicamp) e direto-ra do Centro de Estudos de Migrações Internaci-onais (CEMI/IFCH) da mesma universidade.Ambos, portanto, profundos conhecedores e res-ponsáveis pela introdução ao livro. Mas, comose não bastassem esses testemunhos qualifica-dos, um capítulo é dedicado ao próprio Eric R.

Wolf – “Uma autobiografia intelectual” –, o queconfere ao livro Antropologia e poder – contri-

buições de Eric R. Wolf uma totalidade significa-tiva sobre a obra de um pensador contemporâ-neo que muito contribuiu para o estatuto demodernidade da antropologia contemporânea.

UM LIVRO POLÊMICO E ATUALIZADOR DA ANTROPO-

LOGIA CONTEMPORÂNEA

Antropologia e poder é um livro que con-tém escritos do autor Eric R. Wolf e que, ao mes-mo tempo, fala do autor, ou o autor fala de simesmo, em uma autobiografia da vida intelec-tual.

Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins Ri-beiro, ambos professores, a primeira do Departa-mento de Antropologia da Universidade Esta-dual e Campinas (Unicamp) e o segundo, do De-partamento de Antropologia da Universidade deBrasília, oferecem ao público brasileiro, na tra-dução de Pedro Maia Soares, uma ampla abor-dagem dos textos e Eric R. Wolf, pouco conheci-do no Brasil, a não ser no pequeno círculo dosantropólogos que, de início, se dedicaram ao es-tudo dos camponeses.

O livro é uma apresentação do antropólo-go americano ao meio acadêmico na forma deblocos de abordagens do autor, ou seja, dos te-

Page 2: Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

ANTROPOLOGIA E PODER

CADERNO C

RH

, S

alv

ad

or,

v. 17, n

. 40, p

. 143-1

46, JA

n./A

br.

2004

144

mas que privilegiou como campos de preocupa-ção intelectual. A disposição dos capítulos per-mite que o autor seja conhecido por si mesmo,através de uma autobiografia, pela abordagemda complexidade que toma como foco uma soci-edade complexa: “México, parentesco, amizadee relações patrono-cliente”. A vida rural é trata-da na analise de “tipos de campesinato latino-americano, como uma discussão tomada comopreliminar, centrada em comunidades campo-nesas corporadas, fechadas na Mesoamérica e emJava Central”. “Aspectos específicos dos sistemasde Plantations no Novo Mundo: subculturas dascomunidades e classes sociais e fases do proces-so rural na América Latina” são capítulos que“explicam a complexidade e a vida rural”.

“Nação, nacionalismo e etnicidade” abor-da “A formação da nação: um ensaio de formu-lação”, a “Virgem de Guadalupe: um símbolonacional mexicano”, “Nacionalismo camponêsem um vale dos Alpes” e “Etnicidade e naciona-lidade”.

Para além desses campos de abordagem,em que se observam as pesquisas empíricas e asrevisões teóricas, contribuições para uma antro-pologia que incorpora a moderna concepção daglobalização e do poder, Eric. R. Wolf faz impor-tantes incursões no campo mesmo da teoria dasciências sociais, transgredindo fronteiras e abrin-do espaço para uma antropologia da complexi-dade.

No bloco final do livro, “Teoria”, os orga-niza-dores selecionaram contribuições significa-tivas do autor e, por que não dizer, radicais, naseguinte seqüência: “Os antropólogos america-nos e a sociedade americana”; “Os moinhos dadesigualdade: uma abordagem marxiana”; Cul-tura: panacéia ou problema?”; “Inventando asociedade”; “Encarando o poder: velhos insights,novas questões” e “Trabalho de campo e teoria”.

Como última parte, os organizadores apre-sentam as publicações do autor, permitindo aoleitor entrar em contado com o universo de EricR. Wolf, um dos mais importantes incorporadoresda perspectiva marxiana e marxista da antropo-

logia americana e que se volta para o estudo dasrelações complexas no mundo contemporâneo.

Um autor sem fronteiras temáticas ouepistemológicas

Pode-se dizer que Eric R. Wolf passou aser conhecido no Brasil por seu trabalho sobre ocampesinato, considerado um clássico escrito em1966 (Peasants), traduzido como “Sociedade cam-ponesa”, mas, mesmo assim, por um público res-trito de estudiosos da temática agrária sob o ân-gulo da antropologia. Os organizadores do livroreconhecem que agora ampliam as possibilida-des de conhecimento da obra de Wolf com estelivro-coletânea de textos, mas também ummapeamento das preocupações intelectuais doautor, tanto no que concerne a campos de estu-do como na formulação teórica das ciências hu-manas, mais particularmente a antropologia. Élembrado o seu instigante artigo, polêmico des-de o título, com as idéias desenvolvidas sobre aantropologia contemporânea: “they divide andsubdivide, and call it anthropology” (eles divi-dem e subdividem e lhe dão o nome de antropo-logia) (Wolf, 1980).

A sensibilidade de Eric R. Wolf para asciências sociais, e mais particularmente para aantropologia, foi manifestada como uma orien-tação, ao ouvir uma conferência de NorbertoElias, da qual uma conclusão lhe foi marcante eele confessa: “a idéia de que o indivíduo nascedentro de uma rede estabelecida de pessoas eque sua pessoa é um fenômeno social foi umarevelação e abriu meus olhos para as ciênciassociais” (Wolf, p.60), como é ressaltada pelosorganizadores do livro, extraindo-a da autobio-grafia intelectual, que é um capítulo do livro.

A perspectiva dos estudos da formaçãoda nação é mais um campo em que Wolf fazprovocações aos antropólogos e contribui deci-sivamente para dar à antropologia uma aberturamaior para a compreensão das sociedades com-plexas, a partir da construção de modelos na for-ma de tipo ideal abrangente, capaz de conter oselementos e as fases do processo de constituiçãoda nação. De forma simplificada, o esquema de

Page 3: Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

Gey Espinheira

CADERNO C

RH

, S

alvad

or,

v. 17, n

. 40, p

. 143-1

46, Ja

n./A

br.

2004

145

constituição da nação abrange três aspectos prin-cipais: “ecologia, estrutura social e caráter daaculturação interna, em termos de três estágiosde desenvolvimento: (1) desenvolvimento nuclearlocalizado; (2) extensão e consolidação territorial;(3) a nação”. (p. 203).

Na explicação sobe etnicidade e naciona-lidade, a ênfase recai na idéia de construção so-cial histórica da etnicidade e da nacionalidade,na percepção dos elementos comuns utilizadosna formação das nações: “as formas simbólicasda formação da nação foram bem semelhantes:bandeiras, emblemas, feriados, monumentos,canções, teatro; a construção de uma estéticanacional; a exaltação de uma língua padrão...”.Pelo viés das observações e de estudos compara-tivos, a exemplo do que fez ao estudar o “Nacio-nalismo camponês em um vale dos Alpes”, asproximidades e diferenças culturais, políticas,tecnológicas e ecológicas são levadas em consi-deração para ressaltar as formas como as comu-nidades assumem seus “nacionalismos”. Essa for-ma de proceder assemelha-se, de algum modo, àmetodologia de Norberto Elias, que, ao elaborarestudos em pequenas comunidades, procura “iso-lar” aspectos que se expressam em grandes soci-edades: “grosso modo, a pesquisa indicou que osproblemas em pequena escala do desenvolvimen-to de uma comunidade e os problemas em largaescala do desenvolvimento de um país sãoinseparáveis” (ELIAS, 2000, p.16). Assim, paraElias, tanto como para Wolf, o estudo de comu-nidade de pequena escala pode ser visto “comouma espécie de “paradigma empírico”. Aplican-do-o como gabarito a outras configurações maiscomplexas desse tipo, pode-se compreendermelhor as características estruturais que elas têmem comum e as razões por que, em condiçõesdiferentes, elas funcionam e se desenvolvem se-gundo diferentes linhas” (Elias, 2000, p. 21).

Os diversos campos de abordagemtemática, objetos de estudo e da contribuiçãoteórica, fazem deste livro um apanhado da obrado autor, levando o leitor a entrar em contatocom o universo das preocupações de Eric R. Wolf

e com a abertura de novas orientações teóricasque atualizam a antropologia na contemporanei-dade.

A estruturação do livro, ajudada pela apre-sentação de seus organizadores e pela autobio-grafia intelectual, completam uma visão amplae, ao mesmo tempo, densa do pensamento e daorientação teórica e metodológica das pesquisasdesenvolvidas no campo da compreensão daquestão dos camponeses como tipos específicos,assim como das singularidades de comunidades,na técnica da confrontação de diferentes reali-dades de comunidades em termos de seus ar-ranjos culturais, como é o caso do estudo sobreo “Nacionalismo camponês em um vale dos Al-pes”.

A perspectiva antropológica de Eric Wolftrouxe contribuições importantes para a formu-lação de uma teoria antropológica do estudo dassociedades complexas, sobretudo quando faz adistinção entre o interior e o exterior, o dentro eo fora, no que poderíamos falar de local e global,em que a permanência e as transformações sãoreconhecidas como interconexões entre essesdois universos produtores de cultura e de figu-ração social em uma dada sociedade.

Um outro aspecto demonstrativo da for-mulação de modelos explicativos de Wolf, so-bretudo quando se volta para as sociedades com-plexas, é o seu ponto de partida “de dentro”, emmenor escala, para o “de fora”, em maior escala,ao reconhecer o processo de aculturação, cujoconceito é referenciado por Kroeber:“as mudan-ças produzidas numa cultura por influência deoutra cultura que resultam numa semelhançacrescente entre as duas”. Conclui, portanto, que“o problema colocado pela integração em gran-des conjuntos socioculturais de diversas e nu-merosas culturas locais na Europa não difere emsua natureza do problema da formação de umanação, como, por exemplo, no México moder-no”. (p.200).

Poder-se-ia dizer que Wolf procura as for-mas estruturantes e as aplica em suas “explica-ções” – pois é explicando temas ou conteúdos

Page 4: Resenha de ANTROPOLOGIA E PODER de Eric Wolf

ANTROPOLOGIA E PODER

CADERNO C

RH

, S

alv

ad

or,

v. 17, n

. 40, p

. 143-1

46, JA

n./A

br.

2004

146

que os capítulos do livro foram compostos –,transpondo-as para as análises de sistemas com-plexos da sociedade contemporânea.

Antropologia e poder – contribuições Eric.R. Wolf é uma grande contribuição às ciênciashumanas, uma abertura de caminhos para todosaqueles que se preocupam com o mundo con-temporâneo, com a teoria da complexidade. Omais a ser dito: a capacidade do autor de buscar,nas tradições mais densas do pensamento mo-derno, as bases para a compreensão do mundocapitalista sob o prisma antropológico, mas nadimensão da epistemologia da complexidade.

(Recebido para publicação em fevereiro de 2004)

(Aceito em março de 2004)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e osoutsiders. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge ZaharEd., 2000.

FELDMAN-BIANCO, Bela; RIBEIRO, Gustavo Lins (Orgs.)Antropologia e poder- contribuições de Eric R. Wolf. Trad.de Pedro Maia Soares. Brasília: Editora da Universidade deBrasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Pau-lo; Editora Unicamp, 2003.376 p.