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307 Goiânia, v. 9, n. 2, p. 307-309, jul./dez. 2011. RESENHA A SILVA, H., RODRIGUES-CARVALHO, C. (Orgs.). Nossa origem: o povoamento das Américas: visões multidisciplinares. Rio de Janeiro: Viei- ra e Lent Casa Editorial, 2006. ntes de tudo, o livro Nossa Origem é no mínimo muito bem vindo por pelo menos dois motivos: 1) Abordar velhos problemas sobre novas perspectivas e com isso contribuir de fato para o avanço da discussão a respeito da ocupação da América; 2) Apresentar ao publico em geral, mas também à academia, um trabalho multidisciplinar que in- corpora abordagens pouco freqüentes no estudo da Pré-história brasileira, trazendo à tona a diversidade de vestígios e informações presentes no registro arqueológico, mas que por desconhecimento, descaso ou falta de preparo acaba muitas vezes sendo rele- gada ao esquecimento, não coletada ou registrada. Esse segundo ponto representa uma contribuição que merece destaque no âmbito de uma disciplina que ainda se encontra em formação no Brasil, mas que passa por um momento delicado em função da sua crescente associação com uma economia de mercado que interfere cada vez mais na definição dos métodos, técnicas e rumos da pesquisa arqueológica no Brasil. O livro é, em parte, resultado do seminário “Origens do Homem Americano”, realizado em 1999 e coordenado por Hilton Silva e Claudia Rodrigues-Carvalho, do Setor de Antropologia Biológica do Departamento de Antropologia do Museu Nacio- nal/UFRJ. Ele é composto por nove capítulos que abordam a questão do povoamento das Américas a partir de diferentes categorias de vestígio e de diferentes perspectivas, enfatizando a contribuição da Antropologia Biológica para a discussão deste tema. To- dos os capítulos foram escritos por especialistas, conferindo ao livro robustez e atuali- dade na apresentação e discussão dos dados. Ao longo desses nove capítulos são discutidas as implicações e influências dos avanços ocorridos em diversas disciplinas. Walter Neves aglutina e compara as pesqui- sas recentes sobre biologia molecular e antropologia física, ressaltando a oposição entre os resultados obtidos por ambos no que tange à antiguidade e dinâmica do processo de ocupação da América. Pedro Cabello apresenta os pressupostos e procedimentos

Resenha de Nossa Origem o Povoamento Das Américas. Visões Multidisciplinares

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SILVA, H., RODRIGUES-CARVALHO, C. (Orgs.).

Nossa origem: o povoamento das Américas: visões multidisciplinares. Rio de Janeiro: Viei-ra e Lent Casa Editorial, 2006.

ntes de tudo, o livro Nossa Origem é no mínimo muito bem vindo por pelo menos dois motivos: 1) Abordar velhos problemas sobre novas perspectivas e com isso contribuir de fato para o avanço da discussão a respeito da ocupação da América; 2) Apresentar ao publico em geral, mas também à academia, um trabalho multidisciplinar que in-corpora abordagens pouco freqüentes no estudo da Pré-história brasileira, trazendo à tona a diversidade de vestígios e informações presentes no registro arqueológico, mas que por desconhecimento, descaso ou falta de preparo acaba muitas vezes sendo rele-gada ao esquecimento, não coletada ou registrada. Esse segundo ponto representa uma contribuição que merece destaque no âmbito de uma disciplina que ainda se encontra em formação no Brasil, mas que passa por um momento delicado em função da sua crescente associação com uma economia de mercado que interfere cada vez mais na definição dos métodos, técnicas e rumos da pesquisa arqueológica no Brasil.

O livro é, em parte, resultado do seminário “Origens do Homem Americano”, realizado em 1999 e coordenado por Hilton Silva e Claudia Rodrigues-Carvalho, do Setor de Antropologia Biológica do Departamento de Antropologia do Museu Nacio-nal/UFRJ. Ele é composto por nove capítulos que abordam a questão do povoamento das Américas a partir de diferentes categorias de vestígio e de diferentes perspectivas, enfatizando a contribuição da Antropologia Biológica para a discussão deste tema. To-dos os capítulos foram escritos por especialistas, conferindo ao livro robustez e atuali-dade na apresentação e discussão dos dados.

Ao longo desses nove capítulos são discutidas as implicações e influências dos avanços ocorridos em diversas disciplinas. Walter Neves aglutina e compara as pesqui-sas recentes sobre biologia molecular e antropologia física, ressaltando a oposição entre os resultados obtidos por ambos no que tange à antiguidade e dinâmica do processo de ocupação da América. Pedro Cabello apresenta os pressupostos e procedimentos

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gerais utilizados no estudo da genética de populações e suas possíveis contribuições na determinação da origem do Homem Americano. Marta Lahr e Roberta Guimarães Souza trazem uma importante contribuição ao contextualizar a ocupação da América no processo global de dispersão da espécie humana, associando assim o tema à discus-são sobre origem e dispersão da diversidade humana no planeta, o que amplia signifi-cativamente a escala de abordagem dessa questão. Adauto Araújo, Marcelo Gonçalves e Luiz Fernando Ferreira discutem a relação e implicação dos estudos sobre paleopara-sitologia no estudo de migrações pré-históricas, ressaltando a existência de evidências que apontam para utilização de diferentes rotas no processo de colonização da Amé-rica, dentre as quais figura uma possível migração transpacífica. No entanto, os dados apresentados, apesar de oferecerem uma argumentação contundente sobre a utilização de rotas alternativas ao estreito de Behring, carecem de associações cronológicas claras. Adilson Salles, Sheila Mendonça de Souza e Valéria Braz discutem a contribuição da reconstrução de faces como uma ferramenta importante não só no encaminhamento de discussões científicas, mas principalmente para divulgação dessas discussões para o grande público.

Completando a obra, além destes capítulos relacionados a abordagens inseri-das no escopo da Antropologia Biológica, há capítulos que discutem o estágio atual da pesquisa na Arqueologia e a contribuição da linguística para o estudo do povoamento da América. No primeiro, Tânia Andrade Lima, ressalta a fragilidade atual do Modelo Clovis First, mas mais que isso, aponta para a necessidade de mudança de paradigmas, enfatizando tópicos que investiguem a diversidade e variabilidade associada ao processo de ocupação da América. Isso envolve um distanciamento da discussão quase onipre-sente sobre antiguidade da ocupação do continente, para temas que envolvem padrões de mobilidade, diversidade cultural, estratégias de subsistência e ritmo, direção e alcan-ce dos deslocamentos associados aos primeiros habitantes do continente. No segundo, Luciana Storto e Bruna Franchetto apresentam de forma clara e concisa os pressupostos dos métodos utilizados pela lingüística para reconstrução e agrupamento da diversida-de lingüística identificada no continente americano. Através dessa apresentação discu-tem criticamente os fundamentos e resultados do Modelo de Greenberg, apontando os limites da história lingüística e a importância do estabelecimento de um diálogo interdisciplinar para obter um avanço concreto na discussão da ocupação da América.

Como não poderia deixar de ser, todos os artigos passam de uma forma ou de outra por três questões principais: antiguidade da entrada inicial no continente, motivos ou razões para a variabilidade biológica identificada entre as populações que ocuparam e ocupam o continente atualmente, e legitimidade do modelo Clovis First. Essas três questões, de fato, não apresentam nada de novo, sendo parte da discussão da ocupação da América desde pelo menos meados do século XIX. No entanto, como dissemos anteriormente, o que muda e que representa a grande contribuição desta obra é a apresentação de uma grande diversidade de evidências disponíveis para discussão dessas questões a partir dos avanços realizados pela Antropologia Biológica nos últimos anos. Além disso, o fato dessas visões estarem aglutinadas numa mesma obra e não dis-persas em publicações específicas possibilita a comparação entre os resultados obtidos a partir de evidências e análises independentes, o que contribui para um avanço real na discussão sobre a ocupação do continente.

Com essa composição esta obra deve ser utilizada como referência para a di-vulgação das possibilidades de abordagens atualmente em curso no estudo sobre o

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povoamento da América, atendendo um público amplo e principalmente estudantes no nível de graduação em arqueologia e ciências afins. A estrutura dos capítulos refor-ça essa indicação na medida em que envolve sempre uma parte inicial que apresenta os fundamentos, métodos e objetivos de cada abordagem, seguidos de uma discussão sobre suas implicações e resultados no estudo da ocupação da América. Nesse sentido é um ótimo livro de divulgação, pois apresenta de forma sucinta diferentes propostas e diferentes formas de investigação da ocupação da América. Outro aspecto relevante nesse mesmo sentido é que todos os capítulos ressaltam a complexidade do estudo desse processo e apresentam prós e contras a respeito das abordagens apresentadas. Todos os capítulos ressaltam que este é um conhecimento em construção, que há evidências con-traditórias até mesmo quando lidamos com a mesma categoria de evidências.

Apesar de reforçar essas contradições, há um consenso nesta obra: há evi-dências suficientes, embora não conclusivas, para o questionamento do Modelo Clovis First; não é mais possível sustentá-lo como paradigma único e absoluto para o estudo da ocupação da América e novas evidências e propostas não podem mais ser eliminadas ou descartadas a priori por não se encaixarem às expectativas formuladas por tal modelo. Ou seja, o consenso envolve a constatação de que o modelo vigente construído prati-camente desde o início do século não se sustenta, embora não haja, hoje, outro modelo capaz de ocupar seu lugar. Mas talvez esta nem seja a questão e o objetivo das discussões atuais que apontam para a existência de uma diversidade de processos simultâneos, de rotas alternativas, da adoção de estratégias adaptativas singulares.

Lucas Bueno

Laboratório de Estudos Interdisciplinares em Arqueologia

Departamento de História/CFH

Universidade Federal de Santa Catarina

E-mail: [email protected]