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Resenha

Entre chantagens e conspirações

ECO, Umberto.Número Zero.

Trad. Ivone Benedetti.Rio de Janeiro: Record, 2015.

José Augusto Dias Júnior Doutor em História Cultural pela Unicamp, professor da Faculdade Cásper LíberoE-mail: [email protected]

Volume 15 – Nº 2 – 2º Semestre de 2015

José Augusto Dias Júnior 145

A edição italiana de “Número Zero”, de Umberto Eco, foi publicada em ja-neiro de 2015, cerca de um ano antes da morte de seu autor. Salvo alguma surpresa – a eventual descoberta de um manuscrito até agora desconhecido, por exemplo – , trata-se do último texto de ficção que leva a assinatura do mais eclético dos pensadores contemporâneos. Isso confere particular interesse à obra: quais teriam sido os temas abordados por Eco em seu derradeiro empreendimento literário?

O primeiro deles certamente é o dos usos e abusos da imprensa. No en-redo, ambientado em 1992, uma figura um tanto obscura, a do Comendador Vi-mercate, decide criar um periódico movido não exatamente pela disposição de noticiar e informar, mas pela intenção de intimidar e chantagear. Aqueles que viessem a se colocar no caminho de seus planos de ascensão passariam a estar sujeitos aos tormentos das insinuações maledicentes e dos ataques pessoais, das manchetes escandalosas e das invasões de privacidade, entre tantos outros pro-cedimentos típicos da chamada “imprensa marrom”.

Na realidade, essa “máquina de enlamear” – como a definiu o próprio Eco em uma das entrevistas de divulgação do livro – sequer precisava fazer cir-cular quaisquer edições para atingir seus objetivos. O simples rumor de que ela estava em processo de montagem já servia como ameaça aos possíveis detratores do Comendador. Eis o motivo pelo qual os jornalistas contratados para compor sua redação, e que trabalham sem saber bem o que se passa, são obrigados a ela-borar seguidas versões experimentais da suposta publicação – cada uma delas um “número zero”. A efetiva edição do “numero um” dependia das oscilações de humor e das conveniências políticas do Comendador.

Nessas circunstâncias, eles têm bastante tempo livre para imaginar pe-ças jornalísticas de todos os tipos – desde uma seção de anúncios fúnebres in-ventados até uma matéria sobre o uso de telefones celulares, um fenômeno novo naquele início da década de 1990 e que, na opinião de um dos personagens, era uma frivolidade passageira e sem qualquer futuro (“É uma moda destinada a de-saparecer no espaço de um ano, no máximo dois. Por enquanto o celular é útil só para os adúlteros, para poderem ter seus casos sem usar o telefone de casa, e talvez para os encanadores, que podem ser chamados a qualquer momento en-quanto estão circulando. Para ninguém mais”).

Percebe-se que uma das características do estilo literário de Eco, a ironia, está presente até a obra final. E é com a mesma ironia que ele coloca na boca de um de seus personagens, Colonna, um pequeno repertório de chavões e frases feitas típicos da escrita jornalística mais preguiçosa: “fazer omelete sem quebrar os ovos, centro de gravidade do poder, entrar em campo, na mira da Justiça, dan-ça das cadeiras no Senado, sair do sufoco, agora o estrago está feito, não há mi-lagre que resolva, não vamos baixar a guarda, arrancar a erva daninha, os ventos

Revista Communicare

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estão a favor, a televisão fica com a parte do leão e só nos deixa migalhas, voltar aos trilhos, o índice de audiência despencou, dar fortes sinais, de olho no merca-do da bola, sair arranhado, uma virada de trezentos e sessenta graus, uma pedra no sapato, trânsito lento na volta do feriado...”

Número Zero, porém, é bem mais do que essa radiografia do mau fazer jornalístico. O retrato de uma verdadeira obsessão contemporânea – as chamadas teorias da conspiração – aparece por intermédio da figura do jornalista Bragga-docio, sempre pronto a enxergar maquinações por todos os lados. É com paranoia exemplar que ele vai se convencendo pouco a pouco de que a maçonaria, a máfia, os altos comandos militares, grupos neofascistas, setores do Vaticano e mesmo a CIA haviam formado uma insólita aliança para preservar o mais tremendo dos segredos: o de que Benito Mussolini, na realidade, não havia morrido em abril de 1945, como imaginavam os desavisados. Vivendo na clandestinidade e cuidadosa-mente protegido, Mussolini estaria preparando uma volta triunfal como paladino de uma grande cruzada anticomunista. Categórico, Braggadocio sustentava ter desvendado toda a trama.

Umberto Eco vinha tratando do tema das teorias da conspiração desde seu penúltimo romance, O Cemitério de Praga, publicado em 2010. O fenômeno da crença coletiva em pavorosos conluios cultivados nas sombras é interessante em si mesmo, mas para Eco a questão era muito maior. Para ele, mais do que ane-dóticas, as falsas conspirações são perigosas porque podem servir às verdadei-ras conspirações. O exemplo mais significativo é o do nazismo. Ao alardear uma conspiração inexistente – a que teria como objetivo levar as lideranças judaicas ao domínio mundial –, Hitler conseguiu fazer triunfar outra conspiração, esta muito concreta – a que o levou ao poder e às políticas oficiais de perseguição aos judeus. A irrealidade pode ser incrivelmente útil para os que sabem dela se servir. Com Número Zero, Eco reafirma essa lição com a lucidez que sempre caracteri-zou seus escritos. Convém não a esquecer. Até porque, em uma época tão marca-da por fanatismos e intolerâncias, rancores e dogmatismos, pode-se argumentar que Mussolini de fato está bem vivo – ainda que em sentido muito diverso do que imaginava o delirante Braggadocio.