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O médico e o monstro: a poesia da deformidade em Claudia Roquette-Pinto POR ANGELI ROSE 1 1 Professora Doutora em Estudos de Literatura,Mestre em Educação,PUC- Rio,especialização em Literatura Machado de Assis,graduada em Letras,atualmente cursando especialização em Jornalismo Cultural,UERJ;Terapeuta Social pelo Colégio Internacional dos Terapeutas? UNIPAZ-RJ,com Formação Holística de Base na mesma instituição. 1

Resenha O médico e o monstro

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O médico e o monstro: a poesia da deformidadeem Claudia Roquette-Pinto

POR ANGELI ROSE1

RIO DE JANEIRO, FEVEREIRO DE 2012

1 Professora Doutora em Estudos de Literatura,Mestre em Educação,PUC-Rio,especialização em Literatura Machado de Assis,graduada em Letras,atualmente cursando especialização em Jornalismo Cultural,UERJ;Terapeuta Social pelo Colégio Internacional dos Terapeutas?UNIPAZ-RJ,com Formação Holística de Base na mesma instituição.

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O médico e o monstro : a poesia da deformidade

“Acredito que aquele amor permanece tão forte e intenso em sua lembrança porque foi sua primeira solidão profunda,o primeiro trabalho íntimo com que o senhor elaborou sua vida.” (Cartas a um jovem poeta,Rainer Maria Rilker) O romance de Robert L.Steveson,que também inspirou o filme de grande sucesso,lançado

em 1888,trata da dualidade entre corpo e alma a que estamos submergidos desde a

antiguidade,buscando compreendê-la,em meio aos apelos da vida cotidiana .Nesta resenha

tomamos como ponto de partida e inspiração o tema, a fim de aproximar o fazer poético

que também elabora a palavra, forjando sentidos capazes de ferir e curar, como escreveu

Carlos Drummond de Andrade em crônica e tantos outros poetas e escritores.

Na bem apresentada antologia de poemas de Claudia Roquette –Pinto, por outro poeta

Paulo Henriques Britto, premiado autor, ensaísta, crítico, professor e tradutor, somos

convidados a enveredar pela leitura de parte da obra de Claudia, depois de conhecermos

alguns dos recursos de que se utiliza para fazer a sua voz chegar até o leitor.

Numa seleção de 27 poemas, editados na coleção “Ciranda da poesia”,editada pela

EDUERJ,em 2010,expresso intuito de formar, além de informar,um público leitor de

poesia(“aprender pela prática da análise”)como ressalta o coordenador ,professor Ítalo

Moriconi,na orelha deste volume de formato elegante,de 84 páginas e mais estreito do que

os clássicos volumes,em tom de rosa para causar o homônimo choque da cor(talvez

distinguindo a única poeta da coleção até o momento).

A marca d`água na capa confeccionada por fragmentos confere autenticidade às moedas

falsas ,as letras em estado de poesia,no poema sem título,tal página avulsa, que salta nesse

vai-da-valsa,que é a leitura aleatória sugerida.

A autora tem como pares na coleção Antonio Cícero, Carlito Azevedo, Chacal, Guilherme

Zarvos,Leonardo Fróes e Sebastião Uchoa Leite,apresentados por outros poetas, como

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Alberto Pucheu,Susana Scramim,Fernanda Medeiros,Renato Rezende,Ângela Melim e

Franklin Alves Dassie.

Para além da dualidade que a modernidade manifestada na obra de Robert Steveson,através

dos extremos da forma positivada – o médico – e a negativa do monstro,de outro modo

percebidas como herói e algoz;entre diversas possibilidades que a literatura traçou em seu

percurso,a presente antologia carrega a palavra lavrada de “deformidade” que se opõe,pela

diferença,aos sentidos que podem ser tomados como estabelecidos.

Claudia em “Alma Corsária”,poema de fechamento do livro,singulariza-se sem deixar de

reconhecer a tradição dualista entre corpo e alma e,assertiva,escreve “o poeta é uma

deformidade.”A partir deste último verso dentre os poemas escolhidos para integrarem este

“caderno” de poesias,como a nós soam,parece advir o convite para reabri-lo numa releitura

que agora brevemente encaminhamos acompanhados de você , leitor.

É em “Zerando” uma primeira leitura e ao mesmo tempo título do poema que abre o

volume,já sem o “feitiço” que o jogo de palavras poderia apenas incitar,a marca inicial do

mês de janeiro que passa a rodo a tua vida” e abre um ano de vida,que quer dos

poemas,quer do leitor. Nem tão curto,nem tão longo,com a quantidade que alude ao

soneto,forma fixa,clássica,de 14 versos,desconstrói a estrutura como se todo o

esquecimento de certa tradição pudesse ser atualizado pela intenção.

Os sinais claros de uma mística pautada em informações milenares de filosofias e

religiosidades diferentes é a marca subliminar dos poemas. A linha de uma mão a ser lida

abre-se com o primeiro mês do ano, que muitos contam ter nos seus 11os.dias as ações

sobre os meses seguintes. Tomamos a liberdade de entrar por essas vias, considerando que

em evento de 2010, na PUC-Rio,Claudia,na mesa de debate de que participava sobre poesia

na contemporaneidade,esclarecia que era afeita à leitura das cartas de tarô.

Pode-se dizer e já houve quem dissesse que a literatura é um caminho(rota),tal o tarô em

sua tradição que remonta a povos milenares,tanto pela adivinhação como pelas

possibilidades de aberturas terapêuticas(no seu uso mais atualizado e veiculado amplamente

para os adeptos da “nova era”.

Sob a inspiração de outro Ítalo (Calvino),a partir de “O castelo dos destinos

cruzados”,seguimos o jogo de cartas como o jogo que dá lugar à senhora,dançarina,de Bizet

na ópera Carmen,o mito instaurado na obra literária de Prospero Merrimé.A cigana

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malfadada até a trágica morte, anunciada no tabuleiro de cartas que ela mesma põe e

dispõe, como o rumo de sua vida. Na história, assassinada pelas mãos do “escravo” José,de

dentro de uma prisão,o ex-militar narra desde o instante em que recebe a flor rubra lançada

em sua testa(o chamado terceiro olho,capaz de abrir a visão para outra forma de

percepção)até o desencontro com a mulher desejada,chegando ao encontro de sua vocação

como narrador,também escravo de outro amor, o de contar histórias pela memória.

O militar desertor, sob a sedução sagaz e a desfeita da amante, dada a preferência clara ao

toureiro vitorioso,mata aquela que irá ser o instrumento de certa liberdade, paradoxal.

Carmen nos fundos de um pátio, solitária e esquecida, têm o pescoço cortado como se a

expressão pessoal daquele feminino se dobrasse sob o estigma do desejo do outro. Na roda

da vida, da fortuna e das cartas ou letras, também a literatura ou a poesia em flor de poemas

pode ser esquecida depois que o leitor – escravo dos sentidos – encontra algum significado

para abandonar a sedutora palavra em estado de poesia.

Esta rápida analogia prepara para o “Blefe” de que somos objetos e sujeitos como “existe

azul, mas é um azul de asma”,assim,antes que o leitor acredite na sorte protetora de

qualquer “azul”.O “Blefe” faz parte de alguns jogos, como “maio”,o mês do

movimento,pode sugerir trânsitos sem que se desloque espacialmente, do ponto de vista da

fisicalidade dos sujeitos e objetos. Quem sabe,blefes da vida cotidiana,reafirmada por mais

14 versos da memória dos sonetos?Em “Jazz”,podemos encontrar a ouvinte de música no

gênero que combina a noite com “ o sax[que] desperta flores nos quadris”.Cabe aqui

resgatar certa alusão que nossa leitura privilegia: Habanera,ária famosa da ópera Carmen

de Bizet ou em Carmen na África,sobre certa mesa seria uma forma de lembrar a

ciganagem carmesina que um livro em curso de leitura – sobre qualquer mesa – também

seduz ,através da dança das palavras,tanto em versos como em frases,que jazem melodias

aparentemente improvisadas sobre (mesmos) temas.

Claudia, na voz lírica, pergunta-se e faz-nos perguntas, qual Fernando Pessoa e tantos

outros poetas: “de que lugar em um vento esse caos?” Um mito já não ocupa qualquer lugar

em forma de território. Um mito vaga pelos espaços que o poeta descobre, desapropria em

si e no mundo, porque nunca foram próprios, porém carregados de singularidades.

Singularidades delicadas (e por que não dizer também, perigosas?),frágeis como

“porcelana”. Uma brincadeira sonora(a vespa/crespa/chispa/e espera:/cada nêspera/uma

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véspera). Mais do que a permuta de letras a sinestesia entre sentidos que bailam entre as

mãos criadoras prudentes no ritmo que respira pela a espera e pela pausa entre dois pontos.

A espera do amadurecimento que é véspera também de toda nutrição,mesmo quando a

aspereza sugerida risca o traçado veloz(quem sabe dizer se de uma moto na urbanidade

feminina?).Nessa ludicidade que abre e fecha troca e desloca(-se),para abrir (uma outra

vez,diriam outros poetas na canção popular)um outro vaso de significados.

Sabemos que todos os significados são frágeis quando os deitamos sobre os textos. Leitores

que somos em mote contínum,insistimos nesta empresa com os fígados entregues aos

abutres que nos cabem a cada dia. Uma promessa cumprida no comprimento de cada

existência.

Seja por “blefe” ou por movimentos de qualquer “maio”,encontramos

“Móbile”,”Rastros”,”Space-wrinting”,poemas de estruturas e ritmos diferenciados entre

si,tanto pelo vocabulário inesperado como pela versificação livre. E assim submersos na

leitura dos textos, vamos em direção à espontaneidade e ao esmero, como pontos de

oscilação para “ a escrita que perdura para o/espasmo o “olho armado” em “Poema

submerso”.Novo “blefe”,haveria entre as palavras em estado de poesia um jogo de ganha e

perde?haveria entre poeta e leitor este mesmo jogo?Haveria algo que não seja apenas a

leitura e a escritura sobre leituras?Quantos significados o “jogo” pode assumir num poema,

ou numa antologia?

Parece que o jogo(de que jogo se fala/escreve/canta?)da necessidade de criar,inventar,a

poiesis da voz lírica que subjaz da força impulsiva de Claudia Roquette-Pinto em “Fait-

accompli” entremeia a realidade do vivido com a realidade criadora,como bem observou

Britto em seu ensaio de apresentação: “ A matéria-prima dessa poesia, como a de toda obra

poética digna de nota, é a existência da autora.”E podemos reafirmar a existência fundida

depois da preocupação didática de compreender que ao leitor cabe: do vivido que

rememora e assim cria e do imaginado prescrito que também recria.

Britto observa os traços biográficos presentes na poesia que chega às mãos do leitor,

através de detalhes mais pessoais, individualizantes(“detalhes tão pequenos”para os eus- de

um poeta.).

E num rasgo mais filosófico, a poesia tinge a “tela” em branco(para nós leitores e críticos

que ainda não alcançamos a virtualidade criadora)de um “palimpsesto”,dando tons

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escuros,soturnos até que se exploda(“densidade máxima!”)uma fusão de vozes(sejam

pessoas ou personagens).

Segue-se a rota em “A caminho”,uma trilha aberta pela epígrafe drummondiana(Abriu-se

majestosa e circunspecta/sem emitir um som que fosse impuro”).Os dois caminhos do carro

do tarô,são também o espelho d`água dividido em “as duas/águas se apartam/súditas”).a

mão nua– cigana -que joga cartas também seduz pela nudez “abrindo o fio/(começa

comigo)a costura invisível/do rio”,como dissesse,da leitura,da escrita.

Entretanto o “caminho “ encontra algum descanso sem pacificação possível na linguagem

que perscruta, na “Cadeira de em mikonos”.Nela,uma visão platônica sobre o conceito é

anunciada para dar lugar a certa reflexão sobre o fazer poético: “sobre a camurça-

conceito:/na lingua,terceirto objeto,/menos cadeira,se a escrevo/ tampouco devo(se a

quero)/nos arrebaldes das sílabas”(...).

Encontra-se em seguida um nome “georg trakl” grafado por letra minúscula, dando uma

dimensão de anônimo ao que ganha algum destaque em reconhecimento ao dar título ao

poema.Um processo de humanização pelo individual sem dar traços ao individualismo de

uma celebridade.

Tal personificação da palavra por um nome própria desapropriado é seguida por “Fósforo”

que paradoxalmente vem numa prosa poética tomada pelo curso de uma palavra pausada,

refletida, e ao mesmo tempo com ares de onírica noite ígnea.Os poemas que seguem são

sem título, mas dão continuidade ao espaço de sonho e pulverização de idéias incendiadas

na encenação noturna da mente criativa, que descobre imagens entre olhos

anoitecidos/despencando no hiato das ventanias(...), que talvez ficaram insones diante dos

textos de Novalis, a quem o penúltimo poema desta série , sem- título, é dedicado.

A escrita, a criação pela palavra é sem dúvida o mote destes versos em seu conjunto, mas a

explicitação no final do livro é a certeza que seduzirá o leitor para voltar e reler os textos

sob outra ótica.

Em “Sítio” temos o lugar do cotidiano citadino presente pelo evento da violência de uma

bala.Aquele “morro pegando fogo” não tem incêndio do fósforo, mas das balas de um

tiroteio noturno, como tantas notícias de jornais comentam.Um certo ar de Bandeira volta e

se nos apresenta como referência de um poema tirado de uma notícia de jornal, mesmo que

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este, de Claudia Roquette não o tenha sido.A tragicidade é a mesma: a bala na cabeça do

menino que brincava na varanda.

Tragicidade que é em seguida contraposta pela cidade partida que traz “Praia linda”,um

canto à beleza.A beleza masculina e feminina que caminha pelas praias de qualquer cidade

litorânea e tropical, encontrando em “você” um diálogo, ou uma chamada que faz do leitor

um comparsa como o sol da praia.A inconstância da versificação dentro do próprio poema,

por exemplo, em “Praia linda”,é a inconstância da paisagem por que passeia a voz criativa,

nos múltiplos estímulos que encontra e delineia com as palavras sentidas.”As pernas

emberbes” parecem encontrar o “Primeiro beijo”,o íntimo do medo,como a primeira

palavra de um poema, ou o primeiro poema,são íntimos de todo medo.

A palavra poética vai para o cinema, pelo menos é como a plasticidade de “Na montanha

dos macacos” se apresenta interrompendo o fio condutor do livro de poemas.Interrupção

com teor de pausa, mais do que de corte, pois é no esclarecimento do título que se tem a

informação da área de um lugar no Vietnã, onde Johnny e Susie são os personagens.Uma

narratividade pouco esclarecedora e ao mesmo tempo clara e objetiva sobre o encontro

sexual entre os personagens.

A análise extensa de Paulo Henriques, crítico responsável pelo volume, dá a ver a

deformidade positivada no poeta e em específico em Claudia Roquette- Pinto, deformidade

que em “Odre”, o corpo,/ este odre enganador,comenta o envelhecimento como fim de

uma aparência fixada e a ser transformada, tal qual a palavra lavra no poema,os sentidos.

E para tanto, nada melhor do que uma Alma corsária (último poema) que na solidão

recorrente e nomeada em vários momentos ao longo da antologia, por diferentes textos, se

refaz da deformidade de escrever deformando a palavra de seu sentido dicionarizado, sem

dele abdicar.Alma pirata que rouba em forma de aventura poética até palavras de outro

escritor, como em “tenho um coração que estala/com o peteleco das palavras de

Clarice”(Lispector, observamos tendenciosamente).Alma encarnada que acredita na

existência de um espírito no corpo para afirmar a crença no corpo: Sim, eu acredito no

corpo.Lição que, aliás, em Clarice Lispector encontramos em “Uma aprendizagem ou o

livro dos prazeres.”E finaliza: se me perguntarem o que é um poeta/(eu daria tudo o que

era meu por nada),/eu digo,/O poeta é uma deformidade.

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O que podemos dizer sobre a poesia de Claudia Roquette-Pinto?Uma poesia múltipla que

rasteja sob um céu de palavras de contextos familiares e que é submetida ao processo de

desfamiliarização para dar voz à experiência sensível de um tempo único, presente nas

mãos que deformam a normalidade da visão do lugar-comum e ao mesmo tempo quer nele

estar inscrita para apartar-se do que preenche a solidão.

A poesia de Claudia está consciente da tradição poética que a antecipou, entretanto, dá-se a

permissão necessária para fazer a própria experiência antenada com o tempo de agora, um

agora também perceptível em um tempo passado.A poesia como deformidade do passado,

uma forma no presente, deformidade futura aos olhos de outrem, certamente, dando

continuidade ao processo de contínuas descontinuidades que em paradoxos permitem o ato

de criação poética.Ela é uma voz do seu tempo, sem abrir mão da história, ao seu modo,

que a perpassa pelas palavras já deformadas pelas leituras e desleituras de si e do Outro.

A modernidade com suas ambigüidades e dualidade como Zigmun Bauman veio apontando

no final do século passado e no início deste século com seus estudos fundamentados pela

sociologia, principalmente, são elementos que compõem a poesia de Claudia Roquette,mas

também a busca de uma terceira margem que deixa a nu o paradoxo da experiência pós-

moderna, em parte amortizada pela banalidade, em parte,anunciada sem ares de

panfletagem, porém crítica em relação ao presente.Nenhuma escola ou corrente, apenas o

fluxo da palavra filtrada no corpo do poeta, que se desdobra, se deforma e deforma,

desenforma, para achar a poiésis.

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