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Resistência e Anunciação - Arte e Política Preta

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Resistência e Anunciação - Arte e Política PretaResistência e Anunciação - Arte e Política Preta

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  • Resistncia e Anunciao:Arte e Poltica Preta

    Edies Tor Taboo da Serra 2010

  • Encontros

    08/05 frica do Oeste: Dilemas Contemporneos no Cinema e na Dana, com Serge Noukoue (Pesquisador em udio-visual, Assessor udio-visual do Consulado da Frana, Beninense) e Luciane Silva (Pesquisadora e Educadora da Casa das fricas, Danarina e Professora da FACAMP)

    15/05 Encontros na Encruzilhada: Buscas da Literatura e das Artes Plsticas no Miolo do Sculo XX com Mrio Medeiros (Socilogo e Pesquisador da Unicamp. Autor do livro Os Escritores da Guerrilha Urbana) e Marcelo DSalete (Artista Plstico, Quadrinhista, Ilustrador e Educador do Museu AfroBrasil)

    22/05 Quilombos: Histrias e Sentidos, Imaginrio e Arqueologia, com Patrcia Marinho (Arqueloga, Msica e Pesquisadora de Quilombos Brasileiros) e Allan da Rosa (Historiador, Estorinhador e Educador, Angoleiro do Grupo Irmos Guerreiros)

    29/05 Migraes e Trajetrias Femininas: Carolina de Jesus e Llia Gonzalez, com Flavia Rios (Professora e Estudante de Doutorado em Sociologia na Universidade de So Paulo) e Uvanderson Vtor, o Vando (Socilogo Negro e Pesquisador das Desigualdades Scio-raciais Brasileiras. Trabalha com Insero de Jovens no Mercado de Trabalho, em Embu das Artes.)

    05/06 Corpoesia: Orixalidade e Jazz em Performance na Literatura da Dispora Africana, com Slvia Lorenso (Cria do Movimento Juventude Negra e Favelada em BH/MG; Mestre em Semitica pela USP, Doutoranda em Literatura e Dispora Africana na UTexas). E Avaliao Coletiva do Curso.

  • 4ndice

    frica do Oeste: Dilemas Contemporneos no Cinema e na Dana ... 05

    Madeira, N e Desenlace na Arte Afro-Brasileira ... 11

    Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica: Associao Cultural do Negro

    (1954-1964) ... 17

    Da tigela com azeitonas aos fragmentos de faiana, ... 23

    Matriz Afro-Brasileira: suas Tranas e Encruzilhadas, ... 28

    Migraes e Trajetrias Femininas: Carolina de Jesus e Llia Gonzalez ... 34

  • AYAResistncia e Engenhosidade

    (smbolo adinkra da etnia Akan)

  • 6frica do Oeste: Dilemas Contemporneos no Cinema e na Dana

    Por Luciane Silva

    Introduo O corpo. Esse sistema complexo de msculos, tecidos, ossos... Ser

    apenas matria? A cincia ocidental props um modelo de entendi-mento que separa corpo e mente a mxima do filsofo Descartes,

    Penso, Logo existo, expressa tal concepo. Para muitas sociedades no europias, as africanas, por exemplo, o corpo no apenas um invlucro material, mas uma conjuno de carne e esprito, unidade que guarda a carne e a cultura e que age no mundo. Um todo integrado que pensa.

    Amadou Hampt Ba, importante referncia para a construo de saberes sobre o continente africano, afirma que na frica a arte no

    se separa da vida. Antes, abrange todas as suas formas de atividade, conferindo-lhes sentido. Sociedades ancestrais e contemporneas uti-lizaram a dana em suas experincias sociais. Povos africanos da regio dos territrios hoje denominados Guin, Burkina Fasso, Mali, Costa do Marfim e Senegal, danam em muitas das atividades cotidianas nas

    colheitas, na caa, na exaltao de grandes mulheres e homens, nos ri-tuais funerrios, de iniciao, nas festas de casamento.

    Na frica o rei dana, a rainha dana, o filsofo dana, o juiz dana, o ministro

    dana, o imperador dana (...) o fara dana, o chefe de estado dana, Mandela dana (...).

    (Trecho do documentrio African dance: Sand. Drum and Shostackovich )

  • 7Assim, possvel pensar num significado da dana como experin-cia fundante, imprescindvel. Uma dana vivida.

    Passos, Movimentos da Histria

    Foi nos perodos de independncia que vimos renascer nas mentes africanas a inspirao, a instiga pela criatividade - brilho embaado pelo assalto colonial. O colonialismo (1), iniciado em meados do sculo XIX, transforma o continente africano em arena para explorar e civilizar. claro que houve relaes de fora, negociaes e resistncias africanas ,mas os impactos desse perodo repercutiram na histria do continen-te, deixando marcas profundas nas identidades africanas, sejam elas polticas, sociais ou culturais. Sobre esta ultima vale lembrar que toda poltica colonial de civilizao estava baseada na desconstruo dos valores africanos, na negao das culturas e referenciais identitrios.

    Aps os processos anticoloniais, ou seja, as lutas pela independncia, muitos dos novos governantes viraram do avesso as polticas coloniais relacionadas s culturas africanas e colocaram as expresses da arte nos lugares nobres e importantes da sociedade. Muitos chefes de estado, en-tre eles Lopold Sdar Senghor (Senegal) e Ahmed Skou Tour

    (Guin), criaram corpos artsticos fixos, sustentados pelo estado,

    para representarem a nao, dentro e fora do continente. Uma das grandes contribuies desses governos foi revalorizar e gerar orgulho nas culturas africanas e, difundindo-as no mundo. Os chamados bals nacionais, atuaram como referncias para essas novas naes - o Les Ballets Africains, das mais importantes companhias de dana nacional

    1 Para mais informaes sobre o colonialismo em frica: DOPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre a partilha da frica, 1999. http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-73291999000100004&script=sci_arttext

    H. L. WESSELING, dividir para dominar. 2008

  • 8da Guin, e os conjuntos do Teatro Nacional Daniel Sorano, em Dakar, Senegal, foram grupos que levavam ao palco as danas, msicas, nar-rativas dos contextos tradicionais, originadas nos ritos de passagem, nas cerimnias de iniciao, nas festividades, nos funerais das aldeias.2 Aqui a dana passava a fazer parte, oficialmente, tambm dos contextos

    urbanos. Da aldeia, para o palco.

    Dilemas?

    Como outras expresses artsticas, a dana constitui uma forma de discurso e prtica que tambm intelectual e poltica. No contexto que tratamos, um meio de definir, descrever e interpretar as experincias

    africanas cujas foras tm moldado seu passado e que continuam a in-fluenciar os dias presentes. Assim, vemos que a dana produto das

    experincias histricas e tem relevncia nas mudanas que as socieda-des e comunidades africanas tm enfrentado.

    Quando tratamos do tema mudana imprescindvel fazer refe-rncia ao discurso contemporneo de artistas africanos da dana. Se frica continua a ser pensada, vista e julgada como espao parado no tempo e em estgios inferiores de desenvolvimento, a modernidade, audcia e inteligncia das prticas artsticas da atualidade no conti-nente, mostram-nos exatamente o contrrio - que a frica est no mundo, sempre esteve, dialogando, apropriando-se, negociando estti-cas e valores.

    A trajetria da coregrafa, danarina e professora Germaine Acog-ny, notria para exemplificar a aliana entre tradio e modernida-

    2 H outras companhias nacionais espalhadas pelo continente, citamos aqui a Cia Nacional de canto e dana, de Moambique, tambm criada durante os governos independentistas.

  • 9de nas criaes artsticas um fluxo onde as tradies populares esto

    mescladas s influncias urbanas, fazendo a dana florescer como um

    fermento da civilizao moderna.A coregrafa foi diretora artstica na fundao do Mudra Afrique,

    um centro de dana criado na dcada de 70, em Dakar, por Maurice Brjart, bailarino belga, e apoiado pelo ento presidente Senghor. A pro-posta da escola era agregar danarin@s de vrias regies do continente e possibilitar a formao em bal clssico, aliando-a s linguagens das danas africanas. O percurso artstico de Germaine Acogny, calcado na construo de uma linguagem de dana que toma tanto a diversidade das danas africanas, como as tcnicas europias, singular para com-preendermos a inter-relao em tradio e modernidade, no como for-as opostas, mas sim, como partes constitutivas de um mesmo processo.

    Dirigindo a Escola de Areia Centro Inter-nacional para as danas tradicionais e contem-porneas africanas assim como a Cia de dana Jaint-Bi, Germaine criou uma estrutura cultural muito prpria para desenvolver suas propostas de dana, que enfatizam o simblico e os valores culturais africanos, como forma de ressaltar o per-tencimento e as origens, sem deixar de lado as re-ferncias das tcnicas europias, sobretudo o bal clssico. O que se chama passo na linguagem do bal, Germaine denomina movimento e, no por acaso, codifica sua tcnica baseada em imagens e

    elementos simblicos inerentes s culturas afri-canas: o baob, a boneca ashanti, a palmeira da costa... A escola dispe de duas salas de dana de arquitetura pouco comum: uma com piso de ma-deira, la ocidental e outra com cho de areia,

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    la africana. Tal proposta nos mostra tambm a preocupao constante de artistas african@s em desconstruir a imagem da frica parada no tempo e aguardando o empurrozinho ocidental. Reivindicando o lugar de respeito dentro da moderna civilizao.

    Outro artista que apresento neste texto o nigeriano Qudus Oni-keku, protagonista de criaes que mesclam circo (ele cursou Escola Su-perior Nacional de Artes Circenses na Frana), capoeira, dana de rua de Lagos, capital da Nigria, num processo criativo que tem o questio-namento como principal marca. A dependncia de frica em relao ao ocidente, a evaso de talentos para fora do continente, o papel da arte na resoluo dos conflitos, a limitao do discurso da mundializao, o

    comprometimento do artista fricano, so algumas das perguntas que instigam o trabalho do jovem danarino.

    No documentrio Precisamos de cola-cola pra danar, Qudus reali-za um projeto com mais quatro artistas, um danarina, um videoartista, um fotgrafo e um tcnico de som, atravs de intervenes de dana improvisada em espaos pblicos e no convencionais para a prtica da dana. Excursionando por seis pases africanos geogrfica e cultural-mente diferentes, a obra nos faz lembrar os formatos de apresentao dos antigos teatros populares yorubs, mostrando que para danar no precisamos de caneta nem pincel, apenas um instrumento necessrio: o corpo humano num espao

    As danas contemporneas africanas, apesar de plurais em suas es-truturas culturais e tcnicas, talvez tragam um contedo comum: o de que as identidades africanas so construdas em conexo com o mundo. Ao mesmo tempo nos advertem tambm que @os african@s querem e podem falar por si prprios e serem protagonistas de suas histrias.

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    Referncias:

    Vdeos:Dana Africana: Areia, percusso e shostackovich. Documentrio

    de Ken G. e Alla K. http://www.kinodance.com/A danarina de bano. Documentrio de Seydou Boro. (Frana, 2002). 52.

    Precisamos de cola-cola para danar? Documentrio/projeto de Qudus Onikeku. http://www.youtube.com/watch?v=hDjmhXcVc7Q&feature=related

    Livros:

    Acogny, Germaine. African dance. Weingarten, 1980.

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    Madeira, N e Desenlace na Arte Afro-BrasileiraPor Marcelo de Salete

    O dilogo que procuro estabelecer no encontro Resistncia e Anun-ciao: Arte e Poltica Preta sobre a madeira na arte afro-brasileira. Para tanto, necessrio observar o contexto que contorna esse assunto.

    Antes disso, adequado mostrar o local de onde apresento minha fala. Como artista, realizo desenhos, ilustraes e quadrinhos. Como pesquisador, fi z minhas perambulaes pelo universo da arte afro-bra-

    sileira e curadoria em museus. Como educador, fui professor e atuei em museus, mediando o contato entre a obra e o pblico. Este dilogo com um pblico diversifi cado sobre temas que me interessam pareceu ser

    um evento nico.Se na academia estamos em contato com nossos pares, discutindo

    dentro de um universo delimitado, quando nos deparamos com pessoas fora desse limite, um novo desafi o desponta. Somos convidados a repen-

    sar nossa interlocuo. Ao mesmo tempo, nos sujeitamos a novas in-terrogaes, dvidas, incertezas e contribuies. Os participantes, mais do que espectadores distantes, so questionadores e transformadores do nosso encontro. Feita essa rpida abertura, passo a mostrar algumas idias em relao ao nosso tema.

    Pretendo contornar este assunto por partes. Primeiro, cabe compre-ender o que signifi ca arte afro-brasileira. Em relao a forma da obra,

    arte afro-brasileira remete a uma visualidade muito prxima de parte da tradio escultrica da frica: esculturas em geral verticais, talha-das em madeira, mostrando outro padro de proporo (a cabea maior

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    que outras partes do corpo ), rgidas ou expressando suave movimento. A escultura dos Senufo (etnia que fica entre a Costa do Marfim, Mali e Burkina Faso) de-monstra claros indcios desse modo de representao.

    Em 1904, Nina Rodrigues coletou objetos feitos para cultos afro-brasileiros representativos da tradi-o africana. Embora a anlise de Rodrigues seja fo-cada numa arte tradicional (o mesmo fez Mariano Carneiro da Cunha em outro artigo de 1983), a arte afro-brasileira tambm apresenta seus desenlaces em trabalhos mais contemporneos. Os artistas que citamos mais a frente neste texto so parte dessa direo.

    Como podemos notar, a arte afro-brasileira tem sua origem na arte da frica. Essas duas manifestaes por muito tempo foram mal com-preendidas pelo ocidente. A tcnica de proporo peculiar da arte da frica, dentre outras caractersticas, foi tratada como falha de execuo do artista. A histria da arte ocidental, baseada num modelo de repre-sentao idealizado que remonta aos artistas da Renascena na Itlia do sculo XVI (onde o corpo humano e o espao fsico dependem de regras matemticas muito bem estabelecidas para sua representao), mesmo no sculo XIX ainda no detinha de instrumentos conceitu-ais para compreender a produo de arte da frica. Hoje, no entanto, sabemos que o uso de outro padro de proporo nas obras africanas tem sua razo no modo especial como cada parte do corpo ou de uma entidade vista pelos artistas africanos. A idia de perfeio e de ideal de arte, assim, pode assumir diferentes configuraes e resultados ao

    Escultura Senufo - divindade Bandeguele

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    redor do mundo.Para compreender um pouco mais sobre o uso da madeira na arte

    afro-brasileira e da frica, vale expandir este universo para a arte oci-dental. A escultura europia em fins do sculo XIX foi construda a

    partir do uso especifico de certos materiais. Uma boa escultura deveria

    ser feita em madeira, metal ou argila, respeitando as possibilidades des-ses materiais, evitando cruz-los entre si ou com outros elementos. Ela no pode falsear outro suporte, ser pintada ou agregar materiais estra-nhos como tecido, couro, etc. A pureza da matria-prima como elemen-to definidor de uma boa escultura uma idia do sculo XIX que ainda

    est presente nos discursos especializados da arte atualmente.

    A delimitao do suporte na escultura europia diferente da ex-perincia por trs de alguns exemplos da arte da frica. Estas esculturas so feitas de madeira e podem agregar outros ele-mentos como tecido, conchas, couro etc. Ou seja, atrelar diversos materiais para a construo de uma mscara ou escul-tura tem certa constncia dentro da arte dos povos africanos. Ainda que essa con-figurao da obra a partir de vrios com-ponentes seja um trao relevante, certo que outra parte da arte da frica traz objetos feitos apenas em marfim, cobre,

    madeira etc. Isto, no entanto, no exclui o uso de diversos elementos em parte da escultura africana e a continuidade dessa prtica em artistas afro-brasileiros.

    A obra de Rubem Valentim (1922 - 1991), feita majoritariamente

    Ms

    cara

    Sen

    ufo

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    em madeira, repleta de cor e luminosidade. Para esse artista a cor significativa e, junto com a sua compo-sio geomtrica, componente essencial da obra. A cor vibrante da escultura de Valentim tem origem no so-mente em movimentos da arte moderna ocidental, mas tambm na organizao plstica baseada nas cores vivas das vestimentas e liturgia dos orixs. Isso demonstra a fora da pintura na escultura desse escultor. H um n-tido dilogo de linguagens nesse processo. Outro ponto relevante, a escultura de Valentim no realizada sub-traindo o excesso da madeira como a tradicional escultura da frica, mas aglutinando, encaixando, sobrepondo e justapondo objetos de ma-deira cortados com mquinas e serras eltricas.

    Mestre Didi (1917 - ) um artista baiano cuja arte est muita prxi-ma da arte da frica. Suas esculturas so em geral verticais. A linha se desdobra no espa-o, desenha contornos e formas. Como uma rvore, sua escultura irradia braos pelo en-torno. A maneira de aglutinar diferentes ele-mentos fibra de dendezeiro, madeira, couro,

    conchas e tecido aponta para uma forma de realizao prpria da prtica artstica da fri-ca, principalmente da indumentria litrgica yorub. Como podemos ver, o uso de cores for-tes, primrias e contrastantes adqua-se a arte de Valentim. Por outro lado, a visualidade da composio de Mestre Didi orgnica, sinuosa

    e sensual, caracterstica dispare da organizao geomtrica e concretista de Valentim.

    Mes

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    Obra de R

    ubem Valentim

  • 16

    A obra de Agnaldo Manoel dos Santos (1926 1962) traz outra soluo para a madeira nas artes plsticas. Suas esculturas demonstram o uso mais convencional deste suporte. Agnaldo compreendeu a sntese formal por traz das esculturas de parte da frica: figuras hu-manas concisas, um padro de proporo singular, com-posio vertical, tcnica precisa do entalhamento e a po-lidez da finalizao. Em sua breve produo, Agnaldo s

    utilizou madeira em suas esculturas. Esta foi sua escolha fundamental. Se Rubem Valentim altera a percepo da

    madeira atravs da cor e Mestre Didi acopla diversos elementos para compor suas esculturas, Agnaldo, por outro lado, apresenta um proces-so simples e direto de trabalho baseado na subtrao da madeira, des-cortinando assim sua obra.

    Por fim, embora esses artistas apiem-se numa mesma iconografia

    de origem da frica, o resultado e caminho percorrido por cada um deles singular. Todas essas vivncias so formas diferenciadas mas igualmente representativas da arte afro-brasileira. Esse resultado, como vimos, tem na madeira seu veculo fundamental. O corte preciso e ge-omtrico de Valentim, a adio e agrupamento de Mestre Didi, a sub-trao e sntese da talha de Agnaldo. A tcnica de cada artista sobre a madeira altera e muito o resultado final de suas esculturas. Alm disso,

    ao mesmo tempo que utilizam smbolos yorubs, a maneira de ressigni-ficar estes dispositivos extremamente nova, traando um outro cami-nho para a arte de ascendncia da frica.

    Bem, o propsito desta conversa foi estabelecer um rpido dilogo sobre o uso da madeira na escultura de alguns artistas afro-brasileiros. Vale notar que a transformao da madeira em obra pode representar a descoberta de muitas possibilidades na arte. Atravs da madeira pode-

    Agn

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    da

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    mos reaprender a olhar e a sentir o mundo. Um texto, entretanto, no pode substituir a viso e percepo atenta das obras dos artistas citados. Nosso dilogo completa-se a partir da observao da tcnica apurada destes mestres. Nesse olhar podemos presenciar os ns, desenlaces, complementos e conflitos permitidos pelas obras. Desse modo, no pos-so deixar de mencionar que esses artistas esto presentes no Museu Afro Brasil em So Paulo. Local que um marco para ver, conhecer, ana-lisar e observar obras relevantes de nossa sociedade, principalmente no que atesta a presena africana.

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    Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica: Associao Cultural do Negro (1954-1964)

    Por Mrio Augusto Medeiros da Silva

    Caminhando na Longa Estrada

    A Associao Cultural do Negro [ACN] nasce, em 1954, do interes-se de homens e mulheres negros, em So Paulo, de continuar um tra-balho de longa durao: intervir, questionar, procurar mudar o estado das coisas que colocavam o grupo negro numa posio subalterna na sociedade paulistana em meados da dcada de 1950. Seus principais membros Jos Correia Leite, Raul Joviano do Amaral, Geraldo Cam-pos de Oliveira etc. vinham de experincias em organizaes e jornais negros produzidos na capital paulistana desde os anos 1920 at 1937, quando foram impossibilitados de continuar, em razo do Golpe do Es-tado Novo, de Getlio Vargas, que, entre outras aes, proibiu diferentes atividades polticas consideradas como perigosas.

    Razes de Surgimento, Fases, Membros, Localizao

    Em 1954, So Paulo comemorava seu aniversrio de 400 anos. O quartocentenrio, para os grupos econmica e culturalmente dominan-tes (empresrios, setores comerciais, intelectuais, membros das classes altas etc.) deveria simbolizar, como se fosse parte de seu destino, a gran-deza do Estado, a sua vocao para o progresso, a bravura e o destemor dos paulistas e a sua capacidade de ser a locomotiva da Nao. Tudo o que fosse identifi cado como ligado a um passado atrasado, que no

    Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica:

    Caminhando na Longa Estrada

    Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica: Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica: Encontros na Encruzilhada da Arte e Poltica:

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    fosse conectado ideia de moderno e avanado, estaria de fora das co-memoraes. Os grupos negros e indgenas foram enquadrados nesse segundo lugar. Os negros que conseguiram se organizar consideraram--se excludos das comemoraes. E afirmavam que, entre outras coisas,

    tinham sido eles que haviam construdo So Paulo e colaborado para a grandeza do Estado. No entanto, nada ou muito pouco receberam em troca. A Associao nasce ento, j como uma proposta importante: situar a histria do grupo negro, poltica e culturalmente, num lugar positivo e de destaque em meio a um cenrio social de apagamento que no considerava esse grupo e sua histria importante. Ela possuir duas fases: de 1954 a 1964, aproximadamente; e de 1965 a 1976, quando en-cerra suas atividades. Alm dos nomes j mencionados acima, as pes-soas que frequentaram e ajudaram a construir a ACN, alm de militan-tes, escritores e artistas, a maior parte dos membros era composta por funcionrios (pblicos e do servio privado) e empregadas domsticas. s suas custas e s duras penas, homens e mulheres negros pagavam mensalidade e ajudavam a manter salas e aluguel, por considerar aqui-lo importante. sabido que a associao chegou a ter algo em torno de 700 scios. Os lugares escolhidos pela direo da ACN para ser suas sedes, na primeira fase, so igualmente importantes de ser destacados: sala num edifcio na Praa Carlos Gomes e, posteriormente, o 16 andar do Edifcio Martinelli, na Rua So Bento. Especialmente nesse segundo endereo se dar o perodo mais ativo da associao. Ocupar o centro da cidade permite que os scios e interessados, vindos de diferentes regies, sados do trabalho, no perodo noturno, possam participar das ativida-des. Alm disso, d visibilidade para os negros no antigo centro velho e corao econmico e cultural da capital, em que durante muito tempo foram mal vistos (durante algum tempo os negros foram proibidos ou questionados por passear na Rua Direita, por exemplo).

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    Aes da 1 Fase: Editorao, Literatura & Ao Poltica

    As atividades que, nesta primeira fase de 1954-1964, fizeram da

    ACN uma organizao importante se referem a: A)reunies comemo-rativas de datas histricas, em que a situao presente do negro era questionada, como a Quinzena do Negro,em 1956. Aliada comemora-o, juntava-se a reflexo, convidando-se estudiosos, bem como a rei-vindicao, uma vez que autoridades pblicas eram convidadas para as sesses, embora raramente comparecessem; B)exaltao de nomes importantes para histrica cultural e poltica do negro, por ocasio de seus aniversrios de nascimento ou falecimento. Exemplo: Noite Cruz e Sousa, Noite Luiz Gama, Noite Auta de Souza etc. Uma das aes que ex-pressam essa tentativa de cristalizao da memria o esforo da ACN em colocar um busto de Cruz e Souza ladeando a Biblioteca Municipal Mrio de Andrade, de So Paulo; C)Depois da Quinzena do Negro, a ACN projetou e conseguiu publicar alguns nmeros da Srie Cultura Negra, livros auto-custeados de scios da associao, em que se publi-caram estudos, conferncias, poemas. O primeiro nmero da Srie se referiu s comemoraes do Ano 70 da Abolio [1958], em que se publi-cou o poema Protesto, de Carlos Assumpo. Publicaram-se ao todo cin-co nmeros, todos auto-custeados pelos autores e editados pela ACN, constituindo-se assim uma editora; D)No 70 aniversrio da Abolio, a ACN distribuiu um manifesto em So Paulo, discutindo o 13 de Maio e nessa mesma ocasio, foi declamado um dos poemas mais emblem-ticos desta fase, que o Protesto:

    Mesmo que voltem as costas/ s minhas palavras de fogo/ No para-rei/ No pararei de gritar/[...]/Senhores/ Atrs do muro da noite/ Sem que ningum o perceba/ Muitos de meus ancestrais/ J mortos h muito tempo/

    Renem-se em minha casa/ E nos pomos a conversar/ Sobre coisas amar-

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    gas/ Sobre grilhes e correntes/ Que no passado eram visveis/ Sobre grilhes

    e correntes/ Que no presente so invisveis/[...]/Mas, irmo, fica sabendo/ Piedade no o que eu quero/ Piedade no me interessa/ Os fracos pedem

    piedade/ Eu quero coisa melhor/ Eu no quero mais viver/ No poro da so-ciedade/ No quero ser marginal/ Quero entrar em toda parte/[...]/ Eu quero o sol que de todos/ Ou alcano tudo o que eu quero/ Ou gritarei a noite

    inteira/ Como gritam os vulces/ Como gritam os vendavais/ Como grita o

    mar/ E nem a morte ter fora/ Para me fazer calar!

    Carlos Assumpo, excertos de Protesto, 1958.

    O Negro Africano e o Negro Brasileiro: Aproximaes

    Alm disso, comea a haver, entre os ativistas da ACN, uma preocu-pao crescente com o Continente Africano, bem como ligao com in-telectuais negros de outros pases. Por exemplo, a ida de Geraldo Cam-pos Oliveira, presidente da ACN, em 1959, para o II Congresso Mundial de Escritores Negros, realizado em Roma; Lon Gontram Damas, um dos criadores com Aim Csaire e Leopold Senghor do Movimento da Ne-gritude nos anos 1930, objetivava conhecer poetas negros brasileiros que comporiam parte de sua Nova Reunio de Poesia do Mundo Negro [Nou-velle Somme de Poesie du Monde Noir], publicada pela Prsence Africaine em 1967. Entre os escritores negros brasileiros, estavam Oswaldo de Ca-margo e Eduardo de Oliveira, participantes da ACN; O posicionamento pblico que a Associao assume em 1960, convocando um ato pblico contra o regime do apartheid na frica do Sul tambm importante, por faz-la ser conhecida entre os refugiados africanos, asilados em So Paulo; E so dessa fase tambm poemas de escritores da Associao so-bre a libertao africana:

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    Meu grito estertor de um rio convulso.../Do Nilo, ah, do Nilo o meu

    grito.../E o que me di fruto das razes,/ ai, cruas razes!,/das bruscas flo-restas da terra africana/Meu grito um espasmo que me esmaga,/h um

    punhal vibrando em mim, rasgando/meu pobre corao que hesita/ entre

    erguer ou calar a voz aflita:/ frica! frica![...]/ Meu deus, porque que

    existo sem mensagem,/[...]Senhor! Jesus! Cristo!/ Por que que grito?, Oswal-do de Camargo, excertos de Meu grito, publicado em 15 Poemas Negros, 1961, edio da ACN.

    Eu sei, eu sei que sou um pedao dfrica/ pendurado na noite do meu povo./ Trago em meu corpo a marca das chibatas/ pelos quais, as carretas do

    progresso/ iam buscar as brenhas do futuro/[...] Eu vi nascer mil civilizaes/ erguidas pelos meus potentes braos;/ mil chicotes abriram na minhalma/

    um deserto de dor e de descrena/ anunciando as tragdias de Lumumba/

    [...] Eu sinto a mesma angstia, o mesmo banzo/ que encheram, tristes, os mares de outros sculos,/ por isso que ainda escuto, o som do jongo/ que

    fazia danar os mil mocambos.../ e que ainda hoje percutem nestas plagas./

    [...] Eu sei, eu sei que sou um pedao dfrica/ pendurado na noite do meu povo.

    Eduardo de Oliveira, excertos de Banzo (Ao meu irmo Patrice Lumumba), publicado em Banzo, 1963, editora Obelisco.

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    O Fim: Crise e Legado

    Por volta do ano de 1963, a ACN comea a ter sucessivas crises de fi-nanciamento, dificuldades de pagar seus aluguis e compromissos, bem

    como embates internos. Alguns dos fundadores e membros centrais, se afastam da ACN em razo da idade avanada ou por discordncias com as novas orientaes assumidas. Sua segunda fase se d em meio a crise, depois do Golpe de 1964. J no mais est no centro de So Pau-lo, de onde fora despejada, mas sim no bairro da Casa Verde, dirigida pelo socilogo Eduardo de Oliveira e Oliveira e a advogada Gliclia de Oliveira. A, procura estabelecer cursos de instruo para a populao do bairro. O nmero de scios decai progressivamente, at que ela en-cerra suas atividades em 1976. Esse esforo no passou despercebido, seja por estudiosos como Florestan Fernandes e outros intelectuais, seja por escritores e ativistas negros como Luiz Silva [Cuti] e os membros do Quilombhoje [Cadernos Negros], que ajudaram a recuperar a histria da ACN.

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    Da tigela com azeitonas aos fragmentos de faianaPor Patrcia Marinho

    Ento, malungo, est comendo to caladinho!... fala sua verdade, isto no melhor do que comer uma cuia de feijo com angu, que o diabo temperou, l na casa de seu senhor?...

    E s vezes nem isso, pai Simo. Laranja com farinha era almoo de ns, e enxada na unha de sol a sol... isto aqui sim, outra coisa... se eu soubesse j h mais tempo estava c. Viva o quilombo, meu malungo, e o mais leve tudo o diabo.

    O dilogo acima se deu entre Pai Simo e Mateus, duas personagens do conto Uma histria de Quilombolas, do livro Lendas e romance de Bernardo Guimares.

    No desenrolar do conto descobrimos que o negro Mateus fugiu da casa de seu senhor naquele mesmo dia para se juntar aos aquilombados liderados por Zambi Cassange. Sentados sbre um jirau de paus rolios cobertos com uma esteira de talos de bananeira, no meio de uma mata virgem das Minas Gerais, os dois quilombolas proseavam e comiam azeitonas servidas numa tigela por Pai Simo, velho quilombola esperto e matreiro.

    Fruto da imaginao e do real, a literatura tambm alimento imaginao. Imagtica, a cena descrita oferece ao leitor a possibilidade de recriar em sua mente, momentos do cotidiano desses negros rebelados. Rancores do cativeiro, euforia da liberdade e banzo.

    Ns podemos dar continuidade essa cena, e mais, podemos imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade l pelos idos de 1800, e que nossos conhecidos quilombolas foram

    Ns podemos dar continuidade essa cena, e mais, podemos imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade l pelos idos de 1800, e que nossos conhecidos quilombolas foram

    azeitonas servidas numa tigela por Pai Simo, velho quilombola

    Fruto da imaginao e do real, a literatura tambm alimento imaginao. Imagtica, a cena descrita oferece ao leitor a possibilidade de imaginao. Imagtica, a cena descrita oferece ao leitor a possibilidade de recriar em sua mente, momentos do cotidiano desses negros rebelados.

    Ns podemos dar continuidade essa cena, e mais, podemos

    recriar em sua mente, momentos do cotidiano desses negros rebelados.

    Ns podemos dar continuidade essa cena, e mais, podemos imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade

    Ns podemos dar continuidade essa cena, e mais, podemos imaginar que o dilogo entre Pai Simo e Mateus aconteceu na realidade l pelos idos de 1800, e que nossos conhecidos quilombolas foram l pelos idos de 1800, e que nossos conhecidos quilombolas foram l pelos idos de 1800, e que nossos conhecidos quilombolas foram

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    surpreendidos pelo alarme do negro que estava de vigia e avistou no horizonte a chegada do bandeirante e seu bando, que a muito estavam no encalo do quilombo de Zambi Cassange. Pernas pra que te quero, os dois negros se embrenharam no meio da mata deixando tudo para trs, no a lembrana da enxada na unha e da cuia de feijo com angu, essa era na verdade o que mais os fazia correr, mas a tigela com azeitonas e a esteira de talos de bananeira, que mais tarde, bem mais, foram pisoteadas pela turba escravista quando os negros quilombolas j estavam seguros em um novo esconderijo.

    Os sculos passaram e chegamos em 2010, quando um arquelogo que investiga aquela colina, cuja mata fechada, conforme a histria e a cultura popular contam, abrigou o lendrio quilombo de Zambi Cassange, encontrou fragmentos de uma loua do tipo faiana portuguesa e esses fragmentos, agora arqueolgicos, no passado foi uma tigela, a tigela com azeitonas compartilhada por Pai Simo e Mateus, naquele dia sob o jirau nos 1800. Assim, enxada, cuia, tigela so elementos da cultura material e alimento para a interpretao do modo de vida de grupos humanos do passado.

    Mas o que fragmentos de faiana portuguesa estariam fazendo ali, naquele local que abrigara um antigo quilombo?

    A histria conta que alguns quilombolas mantinham relaes de troca com os colonos das redondezas, assim, produtos por eles cultivados podiam ser trocados por produtos manufaturados, como por exemplo, ferramentas para agricultura. Alguns quilombolas organizavam saques fazendas de antigos senhores, podendo ser essa uma outra forma de obteno de manufaturados, e tambm uma explicao possvel para a presena dos fragmentos de faiana portuguesa no antigo quilombo.

    Porm um estudo arqueolgico detalhado da cultura material, no s dos fragmentos da faiana portuguesa, mas de todo o material arqueolgico encontrado no stio arqueolgico do antigo quilombo,

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    como cacos cermicos, restos de fogueira, restos de tecido, entre outros, podem agregar novos conhecimentos sobre o modo de vida desse grupo quilombola que a histria no contou.

    A cultura material entendida como tudo aquilo que foi produzido, transformado ou apropriado pelo homem. Enxadas, cuias, tigelas, machados, armas, grilhes, carros, computadores, so artefatos produzidos pelo homem. Abrigos sob rocha, diques, canais de capitao de gua, uma rvore consagrada a um orix do candombl so elementos da cultura material que foram modificados ou apropriados pelo ser

    humano. Os povos produzem artefatos que carregam em sua essncia

    elementos que fazem parte de suas crenas e ideologias, do seu universo simblico e de suas necessidades. Dessa forma, o arquelogo procura por meio da anlise desses objetos ou de seus fragmentos, entender o universo cultural dos grupos humanos que existiram no passado.

    Pra investigar o modo de vida dos grupos humanos que habitaram o Brasil no passado a arqueologia foi dividida basicamente entre Arqueologia Pr-histrica e Arqueologia Histrica. A primeira est direcionada a investigao das populaes que habitavam essas terras antes da chegada do colonizador portugus, ficando o perodo posterior

    a 1.500 a cargo da Arqueologia Histrica. Porm essa delimitao temporal um tanto imprecisa, haja vista as diferenas regionais do contato inicial sem fixao do colonizador, assim, no seria o perodo

    histrico estudado pela arqueologia histrica que a caracterizaria, mas sim o amplo campo de interesses relacionados com o estudo arqueolgico dos aspectos materiais, em termos histricos, culturais e sociais concretos, dos efeitos do mercantilismo e do capitalismo que foi trazido da Europa em fins do sculo XV, e que continua em ao ainda

    hoje. Dando a essa temtica um enfoque propriamente arqueolgico a partir do estudo da cultura material, principal fonte na formulao de

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    inferncias sobre as sociedades pretritas (ORSER, 1992, p. 23).Dessa forma, os estudos de arqueologia de quilombo se encaixam

    no mbito da Arqueologia Histrica. E os fragmentos de faiana portuguesa da antiga tigela com azeitonas do Pai Simo e Mateus sero analisados luz da teoria e mtodo dessa disciplina.

    Para exemplificar uma etapa da pesquisa arqueolgica, vamos supor

    que o aps a anlise do material e do contexto arqueolgico no qual foi encontrado, os nresultados levaram o pesquisador a inferir que a introduo dessa tigela no cotidiano desse grupo quilombola alterou sua produo de cuias de cermica, que conforme aponta a anlise dos fragmentos cermicos, tambm encontrados no antigo quilombo, passaram a apresentar um novo padro de decorao que uniu grafismos

    africanos com o padro de decorao da tigela com azeitonas de faiana portuguesa. E esse padro hbrido poderia ser verificado nos dias atuais

    no artesanato produzido pelas populaes remanescentes de quilombo da regio.

    Alm da anlise dos artefatos, o mtodo utilizado pelos arquelogos histricos conta com a anlise de documentao histrica do colonial, alm dos relados orais de descendentes de antigos escravos.

    A documentao histrica que chegou at os nossos dias sobre o negro foi produzida, quase que em sua totalidade, pelo colonizador branco e escravista. Ela muito valiosa, porm deve ser analisada com cuidado, haja vista que uma narrativa unilateral sobre os fatos, que muitas vezes pode ser duvidosa e pouco esclarecedora.

    Assim, a arqueologia que se prope a estudar os restos materiais deixados por antigas populaes de negros aquilombados, antigos escravos, ou populaes atuais de remanescentes de quilombo, pode contribuir para o melhor entendimento da formao cultural do negro brasileiro. Deve essa arqueologia alinhar o mtodo arqueolgico aos pressupostos tericos dos estudos da dispora africana. Mas isso, isso outra prosa.

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    Referncias bibliogrficas

    GUIMARES, Bernardo. Uma histria de Quilombolas. In: Lendas e romances. Rio de Janeiro. B.L. Garnier, 1871

    ORSER, Charles E. Jr. Introduo arqueologia histrica. Belo Ho-rizonte: Oficina de Livros, 1992

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    Matriz Afro-Brasileira:suas Tranas e Encruzilhadas

    Por Allan da Rosa

    Num momento em que se demonstra urgente o ensino de histria e cultura africana e afro-brasileira na escola, temos o risco de ensinar carto-postal, de ensinar vazio e caricatura, desrespeitando tanta beleza, fundamento e cincia elaboradas durante sculos de resistncia.

    Neste espao da cartilha, e nestas semanas que reunidos nossos corpos geram e transmitem conhecimento e sensibilidade, nem cabe aqui o tanto giro desenvolvido por nossos ancestrais, por nossas crianas e por ns, dia a dia, noite a noite, h muitos invernos e primaveras.

    A vitalidade de nossos gestos e fi losofi as como um cavalo, nobre e

    elegante, de galope sedutor, manhoso, bailador. Nobre, mas acostumado a sujar seus cascos tambm nos charcos mais podres.

    Dessa vitalidade, aqui pra baixo vou citar, desenvolvendo idias sobre algumas das fundamentais marcas nossas, presenas de sempre, que no so camisas com gola de arame farpado nem p de gesso no salo, que no so correias militares visando a paralisia, mas so marcas de fontes que garantem a raiz, em seu movimento de fi rmar, alimentar,

    crescer e frutifi car.

    Estudando a Capoeira Angola com suor e ouvidos, com a cabea e a sola, podemos perceber como estes elementos esto em nossa vivncia a cada instante, aqui na Senzalinha. E ns os encontramos, atentos a mais outras formas de resistir como indivduos, como pessoas e como comunidade, compreendendo outras formas boladas entre o lamento e a redeno, entre a sanha e o sonho de ter que sempre se afi rmar como

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    gente, peleja de se garantir como ser humano, fato que bordou a filosofia

    de ser negro no Brasil em outras quebradas, ladeiras, esquinas e roas das Amricas todas.

    Jongos, caxambus, partidos-altos, sambas de tantos jeitos, bumbas-meu-boi, maracatus... e os candombls, tambores de mina, catimbs de devoo... nessa fieira de expresses que j brotam num ritmo em

    nossa memria, nessa linha de cultos e cultivos onde religiosidade e comunidade, msica, trabalho, segredos e cincias se misturam, est muita da fonte afro-brasileira. So mapas onde ainda vermelhas vo as marcas das pisadas pretas, que seguem pareadas com obrigaes dirias, com mos dadas e afetos ou desentendimentos prprios de cada comunidade. Talvez estas que citei a em cima surjam assim, jorrando e brilhando, pela potncia de sua poesia, de sua arte total, e por sua cantoria-instrumentao-dana, que so magnticas e que despertaram e despertam tanta vontade de chegar (ou de xingar, como as leis da histria toda do Brasil fizeram at agora h pouco. E ainda

    fazem muito. Entuchando a cultura afro em questo de delegacia ou de vergonha).

    Imaginemos o trato, em silncio concentrado ou em festa versada, de quem cuida das folhas e dos panos que simbolizam tantas passagens e desejos. Imaginemos quem pensa e monta a arquitetura das moradas e templos, quem modela e testa a sonoridade dos instrumentos, buscados e trabalhados no tempo certo da lua e do ano. Imaginemos o carinho e a responsabilidade de quem cuida da comida, da bebida, do remdio, de quem organiza as reunies entre as famlias e as comunidades pra resolver problemas e propor questes. Imaginemos... e agora vamos na busca de reconhecer alguns desses fundamentos que articulam nossa memria negra e nossa movimentao:

    A Ancestralidade talvez o princpio dos jeitos de viver afro-descendente. O inico da noo de mundo. Sem congelar numa linha

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    dura de antes-durante e depois, mas conjugando a cada instante, a cada toque, a presena dos mortos, dos vivos e dos que viro. Como num berimbau gunga que toca a sua cadncia, refazendo pro ar o toque que antigos j levaram e que tambm s de quem est tocando. Indito e milenar. Repetindo e ao mesmo tempo surgindo pela primeira vez, mensagem por dentro da eternindade para quem est vindo e j est aqui, na comunidade, no pensamento, no gesto. Esta fora de considerar o ontem, como viga pra tudo o que e o que vem. Esta escolha de considerar os mais velhos, esta nostalgia que no paralisa mas que puxa a graa e apresenta o destino.

    Diante das condies de giro aqui nas terras brasileiras, marca negra que se mistura a cada verbo e a cada olhar de resistncia o princpio da Luta, do Desafio. To presente mesmo nas trocas e pelejas do verso, da dana, do batuque. Princpio que se desamarra nos jeitos de abrir o jogo e aceitar o perigo, e tambm nas estratgias da necessidade. Em muitos campos, dos polticos mais institucionais e anestesiados, s cabanas e garagens das periferias, seja num comercinho ou no preparo de uma fuga, o tom da luta bssola no passo afro-brasileiro.

    Essa luta, se disfara volta e meia ( pra no dizer sempre), dadas as condies injustas que fazem o p da sociedade, o cho das (ds)estruturas. Entra no seu cozimento a Seduo. Seduo que aqui no est ligada idia estereotipada de sexualidade superficial, leviana, mas

    sim aos truques e artimanhas. Como no movimento que faz ir por ali e vai por c, como na malandragem sadia e ligeira que chama ao contato. Que seduz porque se deixa seduzir, porque risco, necessrio e desejado.

    Estas pontes de luta e seduo fluem bem num ambiente de Jogo. Jogo do If, jogo de Angola. Jogo do batuque e do tempo. Jogo com as surpresas, que se realam porque fagulham no inesperado que as regras reforam. Jogo porque aberto, dentro das regras combinadas, s tantas e tantas possibilidades de perguntar e responder, diferentes da previsvel e

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    mecnica forma de ver o mundo (e quando muito, s ver) que considera tudo como causa e efeito, desconsiderando as muitas vertentes que o caldo do jogo abre.

    Matutando sobre o jogo e a seduo, espraiadas pelas lutas contnuas de sempre, sem data separada dos calendrios que rodam, a gente percebe como a Aparncia (esta to desprezada pela metafsica europia, que a v como quem garante erro e engano) e o Estilo so importantes na pegada dos quereres e dos seres. Assim como a Teatralidade, que aberta aos entendimentos, arma e carinho. Que abre bifurcaes no entendimento e no se murcha na determinao de um sentido s. Teatralidade que representando apresenta o mundo, desanuvia e que pode enganar os inimigos. Teatralidade no passo e na colheita.

    Na dificuldade de se afirmar como gente, como pessoa que gera e

    transmite amor e saber, chegando e continuando num pedao de cho estranho e indesejado, preciso criar um Territrio. Esse territrio pode ser o peji do santo, pode ser a encruzilhada, pode ser a porteira, tudo que parece ficar em mais do que um lugar, o que parece arranjar

    sua vitalidade num entre-lugar. A roda um territrio, clssico, da cultura negra. Completa, mvel, horizontal, ambiente de troca e de ensinamento, ritmado por natureza. Comunidades, fundos de quintal e, principalmente, o prprio corpo da gente, um territrio, um mapa de lutas e de encontros, de reconhecimentos e estranhamentos. Templo primeiro, territrio.

    A concepo bantu de compreenso e experimentao da vida d ao Movimento um papel que no se d a outro. Nada considerado inerte e a falta de movimento sinal de doena e decrscimo de energia. Assim como as energias ancestrais esto em movimento, exigindo trato e culto, a fora dos vivos se alimenta do movimento, fundamentado, com base, que no rasga a atmosfera machucando o redor, mas que na dana da

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    presena tem a inteno de se harmonizar a natureza e ao espao onde se acolhe.

    Nos jogos e no cotidiano de cada comunidade que se afirma como

    afro-brasileira, a Iniciao pe as frestas dos antigos em contato com os nossos teores mais ntimos. Etapas, degraus, cheinhos de atos e materiais simblicos, recheiam e do base. Essa inciao pode pedir retirada pra aprofundamento, pra rituais guardados e tambm pode ser considerada como o que acontece quando o mestre inicia, dia a dia, seus discpulos e aprendizes nos tabuleiros da vida, que sua cincia permite contemplar e suar.

    O Segredo mais uma cor desse arco-ris de ancestralidade negra. Ele mesmo quando anunciado, tem a fora de no matar o mistrio. Uma rasteira guardada em segredo dentro de uma linha de movimentos, um objeto saravado que mantm seu encanto e sua aura, um quartinho reservado, um lugar com suas histrias que no se expem toa, tudo isso soma, garantindo nas entrelinhas majestade pra seguir.

    em Comunidade que se cuida, que se inventa, que se vive e se celebra. Roda nenhuma se faz sozinho, assim como no assim se monta terreiro. E essa comunidade engloba tanto os que esto ao lado quanto os que esto dentro, nos costumes, os antigos e j idos. E na razo dessa comunidade que se desata a intuio, que se trabalha a vida e se resiste.

    A histria das comunidades negras feita com a fora de seus pensadores, e estes esto ligados no seu cho. So as mulheres que acolhem e refletem sobre as sadas, as mesmas que agem e que partem

    e repartem. So os Mestres, que por meio de seus ofcios, no caem na pasmaceira de separar o pensamento do gesto, no separam a cabea do restante do corpo. So sim, intelectuais, mas sem marra e sem bolor e sempre trilhando o destino de seu povo. Organizando, pleiteando mudanas e conservaes. Guiando, trazendo o conforto de seus pensamentos mas tambm botando a espinha pra arrepiar, quando

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    com suas artes, por dentro das comunidades, elaboram suas crticas e rinhas. Nos ltimos 500 anos, pode se perceber o estrago que se fez nas comunidades negras, quando seus mais velhos, seus mestres, seus artistas, eram escorraados, presos ou mortos, na inteno elitista de vampirizar ainda um bocadinho mais.

    A concepo bantu de universo, h centenas de anos prope que, seja nos tempos ou nos espaos, tudo est interligado. Toca-se aqui e reverbera-se ali, como uma Teia. E assim no se possvel separar arte de trabalho de vida de religiosidade. No se pode colocar os dias e as vontades e realizaes em departamentos, na cosmoviso bantu. J que tudo se interelaciona, dentro desse balaio de movimento, andando pelas encruzilhadas das sensaes e situaes, esperadas ou no.

    O que chamamos de Ax, que o Muntu para a nascente bantu, essa energia que temos que desenvolver, que vai muito alm de uma noo de bem ou de mal, e que mais apropriada noo de energia criativa ou destrutiva, positiva ou negativa. Nossos gestos e pensamentos ensolaram nessa praia dos nossos espritos, cabendo a ns desenvolver essa fora vital que ns, e tudo o que existe, traz. Na capoeira da vida.

    Agradecendo a ateno, mentalizo crescena e amor em nossos caminhos.

    Valeu e Vale!

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    Migraes e Trajetrias Femininas:Carolina de Jesus e Llia Gonzalez

    Por Flavia Rios e Uvanderson Vtor, o Vando

    As trajetrias de Carolina e Llia talvez nunca tenham se cruzado no espao, porm muitas semelhanas podem ser traadas a partir de alguns aspectos de suas vidas. Tanto Carolina quanto Llia so mineiras e migraram para as grandes capitais brasileiras em busca de melhores condies econmicas. Em comum, h tambm o perodo que ambas se mudaram para as cidades onde passariam o resto de suas vidas. H, por outro lado, uma diferena signifi cativa de idade entre elas: a primeira

    nascera em 1914 enquanto que a ltima nasceu somente em 1935.Llia de Almeida para usar seu nome de solteira - veio para o Rio

    de Janeiro na infncia sob a proteo fi nanceira do irmo mais velho,

    que a poca era jogador de futebol no Flamengo, mesmo assim, na ado-lescncia, ela precisou trabalhar como empregada domstica nas casas de famlia da capital fl uminense. J Carolina fi zera uma migrao so-

    zinha, passando pelo interior de So Paulo e logo fi xando moradia na

    capital daquele estado, onde morou at morrer. Trajetrias comuns no apenas das duas mulheres em tela, mas presente na realidade de muitos migrantes que buscavam alternativas nas duas grandes cidades vistas como a promessa de progresso.

    A despeito das semelhanas ressaltadas, destinos dispares as aguar-davam nessas grandes capitais. Gonzalez por ser uma das mais novas de sua famlia pde estudar mais do que seus irmos, que tiveram que tra-balhar ainda crianas para assegurar o sustento da famlia de 18 mem-bros, contando com a me e j sem o pai, que falecera cedo deixando

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    os filhos ainda pequenos. Llia estudou em uma das melhores escolas

    pblica do Rio de Janeiro durante os anos 40 e 50. A slida formao escolar recebida possibilitou a ela cursar Filosofia, Geografia e Histria

    na antiga Universidade da Guanabara e, posteriormente, ocupar uma cadeira de professora universitria. Esta profisso, de grande prestgio

    nos anos 70 e 80, lhe permitiu lecionar em grandes estabelecimentos, pblicos e privados, formadores das elites e classes mdias fluminenses.

    Carolina, por sua vez, chegou capital paulista nos idos dos anos de 1940. Chegara com pouco estudo, tendo cursado to somente o grupo escolar, o qual no conseguiu concluir integralmente em Minas Gerais. Os dois anos completos de estudos em escola formal aguaram na jo-vem Carolina a curiosidade pela leitura. Em seus escritos sempre dei-xou registrado o seu gosto por ler jornais, romances e folhetins.

    Ao contrrio de Llia, ela no teve a oportunidade de continuar es-tudando, precisou trabalhar muito, sobretudo porque teve que criar trs filhos sem auxlio dos pais das crianas. Chefe de famlia e com pou-ca instruo, Carolina de Jesus foi diarista, empregada domstica at permanecer definitivamente na condio de catadora de papel, trabalho

    que lhe permitia maior autonomia se comparado queles j experimen-tados sob o julgo da figura da patroa. Apesar das condies precrias e

    da miserabilidade, seu orgulho e sentimento de dignidade lhe incen-tivaram o desejo de trabalhar por conta prpria. Essa opo lhe custa-ria muito caro, sobretudo porque tinha poucas escolhas a fazer naquele momento. Disso resultava ter algum recurso em certos dias, mas no os ter em outros. Instabilidade financeira era o dia-a-dia de Carolina, que

    preferia o gozo da autonomia regulao arbitrria das mulheres para quem trabalhava nas casas de So Paulo.

    Tanto Carolina quanto Llia vivenciaram alguma forma de ascen-so social ao longo da vida, fato que lhes permitiram ver a sociedade de um outro lugar. Contudo, no por via nica, nem pelas mesma lentes.

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    Llia ascendeu por um caminho relativamente utilizado pelos negros: o sistema de educao formal. Nesse processo de mobilidade ascendente, ela casou-se com um colega universitrio branco, que lhe emprestar o nome Gonzalez. Tragicamente, viu seu casamento ruir pelo preconcei-to racial dos pais dele que no a aceitara na famlia e pelos problemas psicolgicos de seu marido que o levou ao suicdio, quando estes ainda no tinham completado dois anos de casados. Histria que poderia ser uma forte candidata a roteiro de novela das oito, caso os dramaturgos gostassem de revelar a vida como ela .

    No caso de Carolina, sem um companheiro, teve que sustentar sua casa sozinha durante anos. Ela viveu uma experincia singular de mo-bilidade social. Tornara-se famosa com a venda de seu primeiro livro, Quarto de despejo (1960), um sucesso publicitrio. O que fez com que sasse da favela direto para um bairro de classe mdia na zona norte de So Paulo. De onde desejou sair para habitar em um lugar mais reser-vado, longe dos olhares e comentrios daqueles que vieram a ser seus novos vizinhos. Fato era que Carolina tinha feito uma rpida e extra-ordinria mudana econmica em sua vida, mas no possua redes de relaes nem instrumentos educacionais e sociais para sustentar a sua permanncia num bairro hostil aos seus hbitos, ao seu comportamen-to e a sua cor.

    Situao muito diferente daquela vivida por Gonzalez, que expe-rimentou ascenso social via formas expressas de embranquecimen-to, isto , realizou um casamento inter-racial, estudou em boas escolas onde aprendeu os gostos das classes mdias e seu estilo da vida. Ade-mais, desenvolveu algumas habilidades, como a fluncia em lnguas es-trangeiras e a boa capacidade de falar em pblico. Gonzalez fez amigos no seio da classe mdia carioca e adotou sua forma de viver e sentir a vida, como o gosto pela bossa nova, os passeios pela cidade, a prefern-cia por roupas e cortes de cabelo moda da poca. Era, em seus dizeres,

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    uma verdadeira lady. Uma forte candidata a ingressar no mundo dos brancos ilustrados, utilizando para isso de todos os artifcios econmi-cos e sociais que conquistava e aprendia no convvio com seus colegas no negros.

    Com condies originais semelhantes e percursos diversos, essas duas mulheres encontraram na palavra escrita uma forma de expres-so de suas opinies e pensamento. Llia Gonzalez tornou-se uma das intelectuais negras mais importantes no Brasil do sculo XX, enquanto Carolina de Jesus ficou famosa mundialmente atravs de seu dirio, um

    best seller traduzido para diversas lnguas.Nos anos 60, perodo de revelao de Carolina, as elites paulistas e

    brasileiras ficaram bestializadas diante da potncia crtica emanada da

    escritora negra e catadora de papel, cuja qualidade literria no foi le-vada em considerao pelos seus crticos, que se importavam mais com o teor de suas denncias do que com sua forma de expresso. Era ntido que Carolina no possua o domnio completo da lngua padro. Mas, nada disso importava, ao contrrio, suas dificuldades davam vazo para

    o realismo que os editores e publicitrios queriam imprimir ao seu tra-balho. Era a favela falando com os recursos que dispunha.

    Llia Gonzalez, por sua vez, conquistava platias tanto pelo que di-zia como pelo modo como escolheu se expressar. Com seu repertrio de leitura e sua vasta experincia educacional escreveu ensaios e artigos crticos realidade social daqueles que chamou de minorias silencia-das. Utilizando-se dos recursos de vrias disciplinas e valendo-se de um certo ecletismo acadmico, ela dialogou com vrias reas das cha-madas humanidades (antropologia, sociologia, historia e filosofia) para

    denunciar as desigualdades raciais e econmicas presentes no Brasil. Como aquela mulher que fora completamente embranquecida conse-guiu superar essa dominao simblica tornando-se uma militante dos direitos da populao negra? Essa apenas uma das questes intrigan-

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    tes a ser trabalhada em nosso curso.Carolina nascer no lugar de negro, assim como Llia. Mas ao con-

    trrio dessa ltima, ela nunca deixou de ser negra durante a sua tra-jetria social: A minha vida, at aqui, tem sido preta. Preta a minha pele. Preto o lugar onde eu moro (Quarto de Despejo). Ao que parece, Carolina nunca deixou de perceber os conflitos, preconceitos e discri-minao raciais, ainda que vivesse num ambiente cujas debilidades so-ciais pareciam igualar todas as pessoas. Seja num ambiente pobre ou de classe mdia percebeu que a cor e a condio socioeconmicas eram decisivas nas chances de vida dos indivduos. Mesmo assim, nunca es-condeu sua preferncia por relacionamento com pessoas brancas. Todos os seus filhos eram de homens brancos por quem nutria mais interes-se. Quais seriam as explicaes para tanta ambivalncia na construo desta identidade?

    Esses perfis resumidos suscitam muitas perguntas. Certamente, al-gumas dessas questes permeiam os trajetos e percepes das identi-dades de vrias figuras negras ilustres e annimas. Entendemos que

    elas so bons exerccios para pensar como se construram os processos de excluso da populao negra, como se d o seu ingresso seletivo no mundo dos brancos e, sobretudo, como se constroem discursos crticos e pensamentos autnticos no que diz respeito ao problema do racismo e das desigualdades que perfazem a vida social deste pas. Essas e ou-tras questes aparentadas sero objeto de nossas discusses da aula Migraes e Trajetrias Femininas: Carolina de Jesus e Llia Gonzalez

  • DIREO GERAL:Mestre Marrom

    REALIZAO: Grupo de Capoeira Angola Irmos Guerreiros & Edies Tor

    ARTICULAO PEDAGGICA: Allan da Rosa

    CONCEPO E DIAGRAMAO DE CARTAZ E APOSTILAS: Mateus Subverso

    APOIO: Ns por ns

    AGRADECIMENTOS PLENOS: Aos educadores que vieram na graa e na luta. E comunidade que

    chega ou oferece ateno.

  • www.irmaosguerreiros.comwww.edicoestoro.net