14
RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA DA ÁFRICA Lúcia de Toledo França Bueno 1 RESUMO O processo de Partilha da África é, recorrentemente, reduzido às decisões tomadas durante a Conferência de Berlim (1884-1885). Contudo, tais eventos políticos não são congruentes, embora o encontro diplomático seja um episódio pontual contido no curso de alterações sistemáticas na organização socio-econômica dos povos africanos. O caso somali merece destaque na compreensão desse argumento pois, juntamente com Etiópia e Libéria, consiste em certa medida - em uma exceção quanto às heranças coloniais. Este artigo busca explorar como as motivações econômico-financeiras bem como a resistência dos somalis constituem-se como elementos basilares da atual configuração da Somália. Palavras-chave: Mitos sobre Partilha da África; Geografia Econômica; Resistência Somali. 1 INTRODUÇÃO Analisar a história e as relações econômicas estabelecidas na atual região reconhecida como Somália nos exige uma percepção dinâmica e voltada para o diálogo existente entre o Chifre (ou Corno) da África, economias árabes e as europeias. O estudo sobre essa área do globo permite-nos vislumbrar a conexão entre o que consideramos ser o Ocidente e o Oriente por meio de mais um histórico entreposto comercial e sociocultural. Considerando que diversos mecanismos utilizados pelas potências europeias com o objetivo último de subjugar governos e povos africanos antecedem, percorrem e ultrapassam o período da Conferência de Berlim, marco histórico erroneamente confundido como equivalente 1 Graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando Grupo de Pesquisa “Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes”.

RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE

PARTILHA DA ÁFRICA

Lúcia de Toledo França Bueno1

RESUMO

O processo de Partilha da África é, recorrentemente, reduzido às decisões tomadas

durante a Conferência de Berlim (1884-1885). Contudo, tais eventos políticos não são

congruentes, embora o encontro diplomático seja um episódio pontual contido no curso de

alterações sistemáticas na organização socio-econômica dos povos africanos. O caso somali

merece destaque na compreensão desse argumento pois, juntamente com Etiópia e Libéria,

consiste – em certa medida - em uma exceção quanto às heranças coloniais. Este artigo busca

explorar como as motivações econômico-financeiras bem como a resistência dos somalis

constituem-se como elementos basilares da atual configuração da Somália.

Palavras-chave: Mitos sobre Partilha da África; Geografia Econômica; Resistência Somali.

1 INTRODUÇÃO

Analisar a história e as relações econômicas estabelecidas na atual região reconhecida

como Somália nos exige uma percepção dinâmica e voltada para o diálogo existente entre o

Chifre (ou Corno) da África, economias árabes e as europeias. O estudo sobre essa área do

globo permite-nos vislumbrar a conexão entre o que consideramos ser o Ocidente e o Oriente

por meio de mais um histórico entreposto comercial e sociocultural.

Considerando que diversos mecanismos utilizados pelas potências europeias com o

objetivo último de subjugar governos e povos africanos antecedem, percorrem e ultrapassam o

período da Conferência de Berlim, marco histórico erroneamente confundido como equivalente

1 Graduanda em Relações Internacionais pelo Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade

Federal de Uberlândia (IERI-UFU). Pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas

Gerais (FAPEMIG) sob orientação do Profº Drº Pedro Henrique de Moraes Cícero, integrando Grupo de Pesquisa

“Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes”.

Page 2: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

ao processo de Partilha, não se busca dar luz às resoluções nem aos assuntos tratados

estritamente nesse evento, ainda que seja abordado durante o trabalho por sua indubitável

importância no transcorrer das decisões políticas e de suas consequências no cotidiano dos

povos aqui abordados.

O discurso mainstream relativo ao caráter e à construção política das fronteiras

africanas durante o período neocolonial (e modernas) carrega consigo diversos mitos, conforme

explicitado por Wolfgang Döpcke2. Estando alguns conceitos já consolidados tanto na visão da

opinião pública quanto da acadêmica, o estudo citado motiva e embasa este artigo quanto ao

entendimento dado às fronteiras, em especial, no caso do nordeste africano. Conforme o autor,

a criação das fronteiras modernas é composta por três fases: alocação, delimitação e

demarcação. Tais etapas figuram como um percurso evolutivo, iniciando em uma simples

segmentação imprecisa do território até a efetiva marcação física no mesmo. (DÖPCKE, 1999,

p. 77)

No que se refere à participação, no sistema econômico mundial, das nações africanas

durante o período neocolonial e dos Estados-nação contemporâneos, também há afirmações

equivocadas ou meio explicadas, cuja omissão promove estereótipos – por (muitas) vezes não

condizentes com a realidade. É comum apenas haver considerações sobre os acontecimentos

históricos a partir do ponto de vista das economias centrais. É também função da comunidade

acadêmica não negligenciar os interesses dos africanos no estabelecimento de tratados e demais

tipos de acordos com os interventores europeus. Parece ser perfeitamente cabível o

questionamento “O que as potências italiana e britânica buscavam na Europa com suas

incursões no continente africano?”.

Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias

periféricas - vêm ganhando evidência. Portanto, a fim de corroborar com esta visão e integrar a

área de estudos voltada para a descolonização do saber, este artigo está alicerçado em dois

volumes da Coleção História Geral da África3: “África do século XIX à década de 1880” (editor

J. F. Ade Ajayi) e “África sob dominação colonial, 1880-1935” (editor Albert Adu Boahen),

2 Para uma compreensão aprofundada das desconstruções do saber colocadas pelo autor, conferir WOLFGANG,

D. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África Negra. Disponível em:

<http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73291999000100004> 3 Os oito volumes dessa enorme produção foram organizados pela representação da UNESCO (em português, a

Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) no Brasil, pelo Ministério da Educação do

Brasil e pela Universidade Federal de São Carlos.

Page 3: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

projeto de produção científica com protagonismo de especialistas africanos (isto é, dois terços

dos mais de 350 colaboradores são do continente estudado). (UNESCO, 2010).

2 ASPECTOS SOCIO-POLÍTICOS E TERRITORIAIS DA DOMINAÇÃO SOBRE A

SOMALIA

Ao tratarmos da ótica econômica dos arranjos ocorridos em função da Partilha da África,

é essencial explicitarmos a região geográfica em questão e conceituarmos suas especificidades

sócio-políticas, que compõem o complexo quadro sobre o qual foram desenhadas as

intervenções europeias.

De acordo com Cardoso (2012), embora em termos étnicos, culturais, linguísticos e

religiosos o povo somali apresente considerável homogeneidade, o mesmo não se dá quanto a

fatores econômicos. O “complexo sistema genealógico” de clãs baseia-se na concepção de que

os seis diferentes clãs existentes na região que atualmente figura como Somalia partiram de um

só tronco personificado no patriarca Hill. Essa divisão é determinante na organização política

do extremo nordeste africano. O conceito da estrutura de clãs aproxima-se da ideia de uma

enorme comunidade familiar que, mediante sua sistematização e coordenação de atividades,

busca sua própria sustentação. A população, dividida entre as duas famílias clãs “Somale” e

“Sab”, subdivididas entre os clãs nômades do norte (Darod, Dir, Isaq e Hawie) e os clãs do sul,

agricultores sedentários (Digil e Rahawayn) respectivamente. (CARDOSO, 2012)

Como já explanado neste artigo, a dominação não se dava simplesmente pela via bélica.

Tampouco, foi iniciada em sequência às decisões tomadas em Berlim (1884-1885). Além de a

introdução das potências raramente seria dada apenas por um marco histórico, mas na maioria

dos casos apareceria como um intervalo de tempo. Via de regra, a ocupação por uma potência

europeia ocorria após reconhecimento e aceite de outra presente no mesmo território. Assim,

os tratados eram somente o preâmbulo da efetiva definição das esferas de influência.

Paulatinamente, o país recém-chegado poderia, então, formalizariam suas antigas instalações

comerciais, seus estabelecimentos missionários. (UZOIGWE, 2010)

Muito antes da Conferência, portanto, já havia um mecanismo extremamente

controverso e que veio a resultar em efeitos maliciosos às custas da soberania do povo somali.

Recorrer aos tratados foi um recurso extensamente utilizado, podendo tais documentos serem

Page 4: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

classificados como “afro-europeus” ou “bilaterais”. Estes captavam os interesses de duas

potências europeias e definiam suas futuras ações no continente africano. Já os afro-europeus,

poderiam ser novamente ramificados em aqueles tratados relativos a tráfico de escravos e

comércio que incitavam intervenção europeia em função dos conflitos decorrentes do mesmo e

aqueles que induziam governantes africanos a se subjugarem à “proteção” de uma nação

europeia ou a não oficializar nenhum tratado com outras potências.

3 OS INTERESSES GEOPOLÍTICOS DAS POTÊNCIAS NO GOLFO DO ADEN

Esta seção dedica-se a explorar determinantes geopolíticos da resistência econômica

somali às intervenções estrangeiras bem como algumas das motivações europeias para suas

incursões no continente africano. Há séculos, a região (Mapa 1: Aspectos Físicos e Políticos da

Somália) consiste em um importante entreposto e, consequentemente, fonte de diversas disputas

que tinham como finalidade última não somente o domínio militar, como (e talvez

principalmente) a supremacia econômica.

O local estabelecia (assim como permanece estabelecendo) conexões comerciais muito

menos custosas e arriscadas do que a rota comercial traçada pelo Cabo da Boa Esperança (ou,

o Cabo das Tormentas, ambos títulos indicando a grave ameaça enfrentada pelos

expedicionários nessa região). Destarte, potências europeias como Itália, Grã-Bretanha e França

buscaram posicionarem-se na área de modo sistematicamente arbitrário, almejando controle da

segunda maior costa marítima do continente africano (unicamente atrás da atual África do Sul).

Page 5: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

MAPA 1: ASPECTOS FÍSICOS E POLÍTICOS DA SOMÁLIA

Fonte: University of Texas Libraries4

Geoestrategicamente posicionada, a atual região que compreende a Somália sustenta

um elo entre o Oceano Índico, o Golfo do Aden (bem como o estreito Gate of Tears ou Bab el

Mandeb), o Mar Vermelho e o Canal de Suez. As características geográficas do território nos

ajudam a explicar suas relações comerciais. Particularmente, o porto de Berbera era um centro

fascinante e sob disputa das diferentes sociedades somalis, dentre outros motivos, por possuir

intensas trocas comerciais entre negociantes da Arábia, do Golfo Pérsico e da Índia.

De acordo com Pankhurst e Cassanelli (2010), os somalis muçulmanos – intensamente

influenciados pelos árabes – habitavam as terras litorâneas do golfo do Aden enquanto o

4 Originalmente publicado com o título “Shaded Relief Map of Somalia”, foi produzido pela U.S. Central

Intelligence Agency e encontra-se na plataforma Perry-Castañeda Library Collection, disponível em:

<http://www.lib.utexas.edu/maps/africa/somalia_rel_1992.jpg>. Acesso em: 05. Dez. 2017.

Page 6: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

restante da porção litorânea pleiteava controle da cidade. Em “A Etiópia e a Somália”, os

autores reavivam o ditado popular que afirmava: “aquele que comanda Berbera tem a barba de

Harar em suas mãos” (p. 446) A extensão da costa norte das futuras “Somalilândias” também

apresentava forte presença dos egípcios, principalmente antes das intervenções europeias. Na

ponta do Chifre, os portos eram majoritariamente coordenados por Omã (na Península Arábica)

e Zanzibar (ilha presente na altura da atual Tanzânia).

Já na região do Vale do Shebele – onde se encontra a capital Mogadíscio – a

preponderância de atividades agrícolas inclusive no interior. O interesse principal das potências

europeias concentrava-se nas regiões norte e nordeste, concomitantemente em contato com o

Golfo do Aden e Oceano Índico, em detrimento das áreas à sudeste. Ademais, as intervenções

dedicavam-se de forma restrita ao litoral. Ainda consoante Pankhurst e Cassanelli, “a maioria

dos somalis, que vivam nas terras do interior, era (...) livre de todo domínio externo e vivia sob

o controle de seus clãs locais.” (2010, p. 476)

4 INTENSIFICAÇÃO DA PARTILHA PRÉ-CONFERÊNCIA DE BERLIM

Retomando Döpcke (1999), o segundo mito tratado pelo autor aborda, dentre outras

questões, a ideia de que a Partilha poderia ser resumida na Conferência de Berlim (ocorrida de

15 de novembro de 1884 a 26 de fevereiro de 1885). Além disso, de acordo com a visão

tradicional, a Conferência seria a origem de toda a concreta partição do continente, sendo o

momento em que todas as potências deliberaram de modo definitivo e consensual as regras que

regeriam a divisão do continente. O estudioso trabalha sobre as hipóteses relativas ao fato de

que as sociedades africanas tinham pleno conhecimento do conceito de fronteira, não sendo

uma novidade com a chegada dos colonizadores europeus; explicita a limitação da Conferência

na prática da delimitação de fronteiras; também ressalta a não-passividade dos povos africanos

fronteiriços na busca por seus interesses mediante manipulação das fronteiras.

Conforme Uzoigwe (2010, p. 32), Portugal e França lançaram-se à frente do processo

de Partilha ao buscarem um controle formal de certas regiões da África, o que despertou em

potências como Reino Unido e Alemanha a necessidade de ações que visavam a manutenção

de seu poder relativo no quadro internacional. No caso, estes Estados utilizaram-se da anexação

de territórios desde 1883, acelerando e adiantando o decurso da partilha.

Page 7: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

Não obstante, a dominação não se dava estritamente em termos militares. A atuação

europeia no que tange ao seu controle e subjugação de governantes e negociantes norte-

africanos correspondia, especialmente, ao poderio financeiro que constrangeu tais economias,

então colocadas em estado de dependência colonial em um movimento de progressiva sujeição

dos regimes locais por meio da usurpação da soberania africana pelas potências europeias.

(RODNEY, 2010, p. 380)

Com a supremacia britânica e, ulteriormente, italiana, houve corrosão da independência

econômica africana. Inicialmente, as relações econômicas existentes entre as potências e as

nações somalis subalternizadas eram de menor medida. No entanto, a corrida por novos

mercados abertos impeliu a tomada de medidas brutais com o objetivo de expansão imperialista

neocolonialista. Em termos gerais, a descoberta de recursos minerais vendidas a altas quantias

convocaram a entrada do grande capital das nações hegemônicas em questão devido ao

inevitável uso de tecnologias modernas e concentrações de capital para a realização de tais

atividades. No que tange ao caso somali, no entanto, os interesses giravam em torno de

benefícios fiscais e mercantis relativos à proveitosa logística prevalecente no Chifre da África

em função de sua confluência de relevantes mercados de dimensão global.

De forma igualmente hostil, a tributação configurou-se como um dever expressivo na

submissão dos somalis, sobrecarregando-os. Dadas as diferenças nas relações de produção do

nordeste africano em comparação às europeias, os impostos tinham como função destituir

daqueles suas culturas próprias de comércio e relações de trabalho, moldando-as às condições

das economias centrais em um círculo vicioso. Estando em constante comunicação com outras

economias dentro e fora do continente africano, camponeses eram avessos ao sistema imposto

pelos europeus e a dominação ocorreu com brutalidade imensurável, embora em um percurso

de vitórias e perdas para as potências. (RODNEY, 2010)

5 RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO ÚLTIMO QUARTEL DO SÉCULO XIX

Ainda que sejam tratadas de forma homogênea, as relações econômicas (sejam estas

comerciais, financeiras, monetárias ou fiscais) entre africanos e europeus possuem diversas

camadas a depender da organização socio-econômica das nações africanas, de sua abertura às

relações comerciais com os estrangeiros europeus, à presença de relações econômicas

Page 8: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

internacionais já desenvolvidas com outros povos (como árabes e outros asiáticos), dos

interesses das diferentes potências, dentre outros aspectos. Ao tratarmos de Partilha da África,

o foco recai sobre a porção ocidental do continente, a qual já dispunha de vínculos robustos

com algumas empresas europeias, fornecendo mão de obra escravizada bem como recursos

naturais como ouro e cobre.

É justamente devido à vigorosa estrutura do comércio entre a costa oriental africana e

empresas do Oceano Índico que a penetração de europeus na economia desta porção de África

ocorreu com maiores obstáculos (RODNEY, 2010). Novas articulações afro-europeias apenas

ganhariam posto fundamental na economia do nordeste africano quando governantes e

negociantes da localidade enxergassem em tais relações vantagens em relação a seus vizinhos

ou aos comerciantes orientais.

Entre 1887 e 1889, houve movimentos de contundentes atividades de ocupação por

parte europeia. Segundo Hernandez (2005), a pouca aderência entre os clãs regionais

possibilitou sucesso evidente na infiltração de europeus, embora com muitos avanços e recuos.

Partindo da porção que, hodiernamente, encerra-se no Djibuti, a dominação veio por parte da

França; já mais abaixo, nas regiões norte e nordeste, Inglaterra tomou a soberania

(Somalilândia); enfim, a seção meridional veio a ser incorporada como território italiano.

A partir dessa divisão, percebe-se hierarquização entre as potências europeias no

controle dos diferentes territórios africanos. Absorver o status econômico dos governos e

mercados europeus como que de caráter homogêneo consiste em um equívoco. Conforme

Kennedy (1989), a condição de potência era determinada pelo grau de avanço da

industrialização nos referidos Estados.

Retornando um pouco no quesito temporalidade, é possível dizer que um dos eventos

históricos que merece destaque neste debate foi a construção do Canal de Suez, em 1869. Em

conformidade com Passetti (2016), as zonas norte e nordeste do continente africano recebiam

especial atenção da potência britânica. A primeira e melhor consolidada potência mundial (no

território somali) a estabelecer um protetorado na região foi a Inglaterra, acontecimento datado

de 1887. Em seguida, em 1889, os italianos tomaram posse da área centro-sul do que

conhecemos como Somália nos dias de hoje. É interessante captar a distinção brutal entre o

posicionamento do domínio de cada uma das potências e seu poder relativo no cenário

internacional à época.

Page 9: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

Por um lado, o Estado-nação italiano era um elemento “recém-chegado em

desvantagem”, segundo Kennedy, tendo em vista que seu nascimento havia ocorrido há menos

de três décadas com uma unificação tardia. O autor ainda considera que a Itália aparentava ser

grande potência, contudo, seu atraso econômico (sobretudo no sul rural, sobre o qual

investimentos em infraestrutura eram precários) era evidente e parâmetros como o produto

bruto eram próximos aos de países europeus periféricos, caracterizando-a como uma potência

de segunda ordem. Ainda que - a partir de 1869 - tenha sido iniciado o “grande impulso” na

economia italiana (como constatado na figura 1: Expansão da malha ferroviária italiana no

século XIX), o ponto de partida demonstrava tamanha desvantagem no quadro europeu que os

indicativos de crescimento e desenvolvimento estavam muito atrás de pioneiros como a Grã-

Bretanha. Além disso, a carência de coesão nacional, má imagem diplomática e a falha

infraestrutura (ferrovias e marinha) propiciam um melhor entendimento das poucas conquistas

dessa nova potência, que outrossim, tiveram relevância estratégica de menor significância em

relação aos domínios de potências consolidadas, como França e Inglaterra.

FIGURA 1: EXPANSÃO DA MALHA FERROVIÁRIA ITALIANA (1868 – 1914)5

Fonte: Zanichelli Dizionari Più

5 A figura referenciada consiste na concatenação, por parte da autora, de mapas da plataforma mencionada. O mapa

à esquerda encontra-se em: <http://dizionaripiu.zanichelli.it/storiadigitale/p/mappastorica/174/l-estensione-della-

rete-ferroviaria-italiana-nel-1868>, enquanto o mapa à direita foi disponibilizado em: < http://dizionaripiu.zanichelli.it/storiadigitale/p/mappastorica/193/le-ferrovie-in-italia-nel-1914>.

Page 10: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

Por outro lado, a industrialização difundida pela Grã-Bretanha veio a erodir sua primazia

industrial e comercial, levando-a a iniciar uma corrida por novos mercados. Sua estrutura já

substancial em termos financeiros (investimentos, comércio internacional de mercadorias) e

marítimos (bases navais, maior marinha mercante do mundo) possibilitava a essa potência

global articulações de maior sucesso em suas empreitadas militares.

O choque entre as diferentes macroorganizações econômicas tratadas neste trabalho -

somali e europeia de forma geral - pode ser abordado sob a perspectiva de Moore (1975): o

processo de construção do sistema comercial britânico da época iniciou-se com os enclosures

ou cercamentos nas últimas décadas do século XVI, que também seria o período correspondente

aos princípios da industrialização desse povo.

Ao invés do que a literatura mainstream traz, atendo-se ao entendimento de que apenas

no século XVIII poderíamos enxergar uma Revolução Industrial, o autor coloca em seus

escritos a ideia de que a formulação de concepções como o individualismo, a liberdade

econômica como respaldo da sociedade, a crescente importância do comércio (tanto no meio

rural quanto no urbano) e a finalidade última das atividades econômicas configurando-se no

lucro geraram uma visão de mundo progressivamente mais liberal, permitindo o

desenvolvimento eficaz das transformações tecnológicas. Assim, desde o início da aplicação de

métodos legais e semilegais objetivando desgastar a camada camponesa e seus respectivos

direitos de uso da terra, houve um movimento em massa de deslocamento forçado para o

trabalho operário. Seu ofício transfigurou-se em mercadoria.

Já no tocante aos arranjos econômicos em África, não houve nenhum mecanismo dessa

natureza. Segundo Rodney (2010), a visão econômica da dominação nos permite identificar a

necessidade - aos olhos europeus - em arquitetar um vínculo entre o capital europeu e a mão de

obra africana. Atrativos, como salários altos, que funcionariam para os operários europeus não

se aplicariam em solo africano pois a estrutura basilar era outra em sua essência.

Portanto, diferentemente de como ocorreu no Estado britânico - onde a violência deu-

se dentro das estruturas da legalidade (MOORE, 1975, p. 28) -, os hegemônicos conceberam

que o único recurso capaz de “converter” a população local seria a força, fosse abertamente ou

protegidos pelas leis dos regimes coloniais afins. Particularmente para regiões de baixa

densidade demográfica como a Somália, a brutalidade negligenciava limites pois era

considerada apenas um meio para atingir a finalidade de recrutar mão de obra escravizada,

Page 11: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

mesmo que fosse indicado utilizar o máximo de coerção para não somente recrutar como manter

os cativos nas zonas de produção. (RODNEY, 2010, p. 383).

No período de trinta anos entre 1880 e 1910, houve uma importante resistência que

permitiu que o avanço do processo colonizador fosse retardado. No caso da ocupação e

instalação da administração italiana, houve empecilhos em diversas ocasiões. A Itália foi a

potência que sofreu as piores derrotas “ignominiosas” nas palavras de Godfrey N. Uzoigwe.

Todavia, ainda que os aspectos mais explorados pela literatura tradicional estejam relacionados

a questões militares, Terence O. Ranger em “Iniciativas e resistência africanas em face da

partilha e da conquista” (2010) coloca que a resistência africana relevante foi direcionada à

manipulação econômica exercida pelas potências europeias.

De maneira geral, o tráfico de pessoas escravizadas não forneceu sustentação para a

existência de novas forças produtivas em território africano, o que poderia gerar um círculo

virtuoso relativo ao efeito multiplicador de tais medidas. Os impactos foram muito incisivos na

desintegração social. (RANGER, 2010) Na prática, correntemente a resposta africana consistia

em ações violentas: a oposição era dada pela recusa aos investimentos em infraestrutura de

transporte e comunicações, com participação popular na sabotagem de construções por

exemplo. (RODNEY, 2010, p. 378) Segundo Ranger, os governantes somalis possuíam

conhecimento das disputas inter-potências e articularam, por meio de tratados com as mesmas,

medidas institucionais intentando manter sua independência.

É importante ressaltar o fato de que, embora em muitos momentos a segmentação em

clãs aparente ser causadora da penetração europeia, em certas oportunidades os sentimentos

religiosos que uniam os diferentes clãs foram decisivos na mobilização da oposição à

administração colonial. (RANGER, 2010, p. 96) Novamente, fatores demográficos fazem-se

imprescindíveis para a compreensão da singular entrada de estrangeiros no território somali.

Havia uma distinção fundamental entre as economias litorâneas, estreitamente adaptadas ao

sistema comercial europeu, e a organização das populações interiorianas, que mantiveram suas

atividades autônomas durante um período de tempo mais extenso, particularmente, custando a

fornecer trabalho assalariado e plantações dirigidas ao exterior.

CONCLUSÃO

Page 12: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

Além das questões econômicas intercontinentais, observar que o estágio analisado

consiste em um momento precisamente favorável a muitos Estados europeus (por presenciarem

o Concerto Europeu) pode nos remeter a um entendimento melhor apurado de seus sucessos,

apesar de toda a resistência. Paralelamente, o último quartel do século XIX constituiu uma

conjuntura instável para as nações somalis. Muitos dos acordos estabelecidos por governantes

somalis com potências europeias tinham como principal finalidade a superação de disputas

interestatais e intraestatais, sobressaindo-se em relação a seus vizinhos. Seguindo esse

raciocínio, verifica-se que as intervenções militares figuravam como medidas apartadas umas

das outras, desassociadas entre si dentro de um sistema econômico constrangedor aos povos,

governantes e negociantes somalis.

REFERÊNCIAS

CARDOSO, Nilton César Fernandes. Conflito armado na Somália: análise das causas da

desintegração do país após 1991. 2012. 94 f. Monografia (Especialização) - Curso de Graduação

em Relações Internacionais, Departamento de Economia e Relações Internacionais,

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. Disponível em:

<http://hdl.handle.net/10183/71689>. Acesso em: 07. dez. 2017.

CARVALHO, Daniel Duarte Flora. Conflitos no chifre da África: oportunidades e

constrangimentos da difusão do poder. 2010. 147 f. Dissertação (mestrado) -

UNESP/UNICAMP/PUC-SP, Programa San Tiago Dantas, 2010. Disponível em:

<https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/96013/carvalho_ddf_me_mar.pdf?seque

nce=1&isAllowed=y> Acesso em: 07. dez. 2017.

DOPCKE, Wolfgang. A vida longa das linhas retas: cinco mitos sobre as fronteiras na África

Negra. Rev. bras. polít. int., Brasília, v. 42, n. 1, p. 77-109, June 1999. Available from

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-

73291999000100004&lng=en&nrm=iso>. Access on 06. Dec. 2017.

HERNANDEZ, Leila L. A África na Sala de Aula: Visita à história contemporânea. São

Paulo: Selo Negro, 2005.

KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências: Transformação Econômica e

Conflito Militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989. Tradução de: Waltensir Dutra.

Page 13: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

IBRAHIM, Hassan Ahmed. Iniciativas e resistência africanas no nordeste da África. In:

BRASÍLIA. UNESCO. (Org.). História geral da África: VII: África sob dominação colonial,

1880-1935. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap. 4. p. 73-98. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190255POR.pdf>. Acesso em: 06. Dez.

2017.

MOORE Jr., Barrington. A Inglaterra E As Contribuições Da Violência Para A Evolução. In:

As origens sociais da ditadura e da democracia. Senhores e camponeses na construção do

mundo moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1983

MUHUMED, Abdirahman A.; SIRAJ, Mohamed A.. Somali Region in Ethiopia: Historical

Developments during the Period 1884-1995. Somali Studies: A Peer-reviewed Academic

Journal For Somali Studies. Mogadishu, p. 60-75. 28 nov. 2017. Disponível em:

<http://isos.so/images/Volume2/SSJ-V2-Article-3.pdf>. Acesso em: 07. dez. 2017.

MWANZI, Henry A.

UNESCO. (Org.). História geral da África: VII: África sob dominação colonial,

1880-1935. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap. 17. p. 167-189. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190255POR.pdf>. Acesso em: 06. dez. 2017.

PANKHURST, Robert K.P. A Etiópia e a Somália. In: BRASÍLIA. UNESCO. (Org.). História

geral da África: VI: África do século XIX à década de 1880. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010.

Cap. 15. p. 435-476. Com algumas notas sobre a história da Somália fornecidas por L.V.

Cassanelli. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190254POR.pdf>. Acesso em: 06. dez. 2017.

PASSETTI, Gabriel. Os britânicos e seu Império: debates e novos campos da historiografia do

período vitoriano. História, Franca, v. 35, e77, 2016. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-

90742016000100503&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 09. Dez. 2017.

RANGER, Terence O.

UNESCO. (Org.). História geral da África: VII: África sob dominação colonial,

1880-1935. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap. 3. p. 51-72. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190255POR.pdf>. Acesso em: 06. Dez.

2017.

ROCHA, Maria Corina; BARBOSA, Muryatan Santana (Ed.). Síntese da Coleção História

Geral da África: século XVI ao século XX. Brasília: Unesco, 2013. 784 p. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0022/002270/227008POR.pdf>. Acesso em: 06. dez. 2017.

RODNEY, Walter. A Economia Colonial. In: BRASÍLIA. UNESCO. (Org.). História geral

da África: VII: África sob dominação colonial, 1880-1935. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap.

14. p. 377-399. Disponível em:

Page 14: RESISTÊNCIA ECONÔMICA SOMALI NO PROCESSO DE PARTILHA … · Contudo, estudos trazendo a outra perspectiva – com um olhar que parte das economias periféricas - vêm ganhando evidência

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190255POR.pdf>. Acesso em: 06. Dez.

2017.

UZOIGWE, Godfrey N. Partilha Europeia e conquista da África: apanhado geral. In:

BRASÍLIA. UNESCO. (Org.). História geral da África: VII: África sob dominação colonial,

1880-1935. 2. ed. Brasília: Unesco, 2010. Cap. 2. p. 21-50. Disponível em:

<http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001902/190255POR.pdf>. Acesso em: 06. Dez.

2017.

ZANICHELLI DIZIONARI. L’estensione della rete ferroviaria italiana nel 1868.

Disponível em: <http://dizionaripiu.zanichelli.it/storiadigitale/p/mappastorica/174/l-

estensione-della-rete-ferroviaria-italiana-nel-1868.> Acesso em: 10. Dez. 2017

_______________________. Le ferrovie in Italia nel 1914. Disponível em:

<http://dizionaripiu.zanichelli.it/storiadigitale/p/mappastorica/193/le-ferrovie-in-italia-nel-

1914.> Acesso em: 10. Dez. 2017