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FOCO-IAS Módulo Alfabetização Texto 6 Este material integra a Formação Continuada dos Coordenadores Pedagógicos do Programa Circuito Campeão FOCO - de titularidade do Instituto Ayrton Senna. 1 Refletindo sobre a ortografia a partir de textos Livro: Ortografia: ensinar e aprender Artur Gomes de Morais Editora Ática, 2002. As situações que descreverei aqui foram organizadas no contexto dos princípios norteadores gerais e dos princípios de encaminhamento didático que apresentei no capítulo anterior. Algumas “atividades” são inspiradas em exercícios tradicionais, reinventados com a intenção de proporcionar a focalização de questões ortográficas e a conseqüente reflexão dos alunos sobre elas. Outras são mais inovadoras, pressupondo uma ruptura bem evidente com as atitudes de “medo do erro” arraigadas em tantos educadores. Para desencadear a reflexão ortográfica tendo textos como suporte, as atividades que vimos realizando assumem três modalidades básicas: ● ditado interativo; ● releitura com focalização; ● reescrita com transgressão ou correção. Explicarei e discutirei agora cada uma delas tomando, sempre que possível, exemplos concretos de vivências desenvolvidas em sala de aula. Ditado interativo Nesta primeira alternativa, em vez de aplicar um ditado tradicional que cumpre geralmente apenas o papel de verificar os conhecimentos ortográficos -fazemos um novo tipo de ditado, no qual buscamos ensinar ortografia, refletindo sobre o que está escrevendo. Ditamos à turma um texto já conhecido, fazendo pausas diversas, nas quais convidamos os alunos a focalizar e discutir certas questões ortográficas previamente selecionadas ou levantadas durante a atividade. Os alunos sabem que o ditado é para isso e já voltam sua atenção para refletir sobre dificuldades ortográficas. A opção por um texto já conhecido das crianças não é gratuita. Se o texto já foi lido e discutido, o grupo já estabeleceu com ele uma interação apropriada, tomando-o como unidade de sentido. Isso permite que o ditado interativo não repita a velha tradição de usar um texto como mero pretexto para a condução de exercícios de análise lingüística. Por outro lado, o fato de as crianças terem lido o texto previamente, já terem discutido os significados que elaboraram em torno dele, propicia que, no ditado, voltem sua atenção para as palavras que o professor focaliza ou que elas mesmas escolhem como tema de discussão. Isto é, durante o ditado o professor faz várias interrupções, nas quais pergunta aos alunos se na frase ditada há alguma palavra que acham mais “difícil” ou indaga explicitamente se determinada palavra é “difícil”. A cada palavra tomada como objeto de discussão, examina-se por que ela constitui uma fonte de dificuldade. Para isso, propõe-se aos alunos que operem transgressões mentalmente (ou por escrito) e se discute por que a forma X seria errada, por que a forma Y seria correta, etc.

Resumo de parte do livro ortografia artur gomes de morais

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Este material integra a Formação Continuada dos Coordenadores Pedagógicos do Programa Circuito Campeão – FOCO - de

titularidade do Instituto Ayrton Senna. 1

Refletindo sobre a ortografia a partir de textos

Livro: Ortografia: ensinar e aprender

Artur Gomes de Morais

Editora Ática, 2002.

As situações que descreverei aqui foram organizadas no contexto dos princípios

norteadores gerais e dos princípios de encaminhamento didático que apresentei no capítulo

anterior. Algumas “atividades” são inspiradas em exercícios tradicionais, reinventados com

a intenção de proporcionar a focalização de questões ortográficas e a conseqüente reflexão

dos alunos sobre elas. Outras são mais inovadoras, pressupondo uma ruptura bem evidente

com as atitudes de “medo do erro” arraigadas em tantos educadores.

Para desencadear a reflexão ortográfica tendo textos como suporte, as atividades que

vimos realizando assumem três modalidades básicas:

● ditado interativo;

● releitura com focalização;

● reescrita com transgressão ou correção.

Explicarei e discutirei agora cada uma delas tomando, sempre que possível, exemplos

concretos de vivências desenvolvidas em sala de aula.

Ditado interativo

Nesta primeira alternativa, em vez de aplicar um ditado tradicional – que cumpre

geralmente apenas o papel de verificar os conhecimentos ortográficos -fazemos um novo

tipo de ditado, no qual buscamos ensinar ortografia, refletindo sobre o que está escrevendo.

Ditamos à turma um texto já conhecido, fazendo pausas diversas, nas quais convidamos os

alunos a focalizar e discutir certas questões ortográficas previamente

selecionadas ou levantadas durante a atividade. Os alunos sabem que o ditado é para isso e

já voltam sua atenção para refletir sobre dificuldades ortográficas.

A opção por um texto já conhecido das crianças não é gratuita. Se o texto já foi lido e

discutido, o grupo já estabeleceu com ele uma interação apropriada, tomando-o como

unidade de sentido. Isso permite que o ditado interativo não repita a velha tradição de usar

um texto como mero pretexto para a condução de exercícios de análise lingüística. Por

outro lado, o fato de as crianças terem lido o texto previamente, já terem discutido os

significados que elaboraram em torno dele, propicia que, no ditado, voltem sua atenção

para as palavras que o professor focaliza ou que elas mesmas escolhem como tema de

discussão.

Isto é, durante o ditado o professor faz várias interrupções, nas quais pergunta aos

alunos se na frase ditada há alguma palavra que acham mais “difícil” ou indaga

explicitamente se determinada palavra é “difícil”. A cada palavra tomada como objeto de

discussão, examina-se por que ela constitui uma fonte de dificuldade. Para isso, propõe-se

aos alunos que operem transgressões mentalmente (ou por escrito) e se discute por que a

forma X seria errada, por que a forma Y seria correta, etc.

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Ao realizar o ditado como a turma, o professor pode propor a focalização das palavras

que contêm determinada dificuldade ortográfica. Se ele, por exemplo, está querendo

focalizar o emprego do O ou do U no final das palavras, após ditar uma frase onde aparece

a palavra “ cavalo”, pode lançar questões do tipo:

●Uma pessoa que não sabe escrever a palavra “cavalo”, como poderia se enganar? Por quê?

●E uma pessoa que sabe escrever, como colocaria? Temos como saber por que só se pode

escrever com O no final?

E assim segue, interrompendo o ditado para focalizar outras palavras que contenham

a dificuldade em pauta.

Mas o professor também pode ser menos diretivo e deixar que as crianças expressem

o que elas consideram difícil. Nesse caso, ao interromper o ditado, ele pode, por exemplo,

pedir que as crianças digam se alguma palavra é difícil, indagar que “pedaço” da palavra

pode fazer com que uma pessoa erre ao escrever e seguir com a reflexão, nos mesmos

moldes exemplificados no parágrafo anterior: identificando que foram errôneas poderiam

aparecer quando alguém que não soubesse escrever corretamente fosse colocá-las no papel

e discutindo com a turma se existem ou não regras que possam nos dar segurança sobre

qual letra é a correta. Note-se que, ao pedir aos alunos para levantar formas errôneas, o

professor está fazendo com que eles pratiquem transgressões que passam a ser objeto de

reflexão.

Enfatizo que a transgressão intencional não é usada aleatoriamente. Vimos no capítulo

3 que para transgredir intencionalmente é preciso ter um conhecimento mais elaborado,

mais explicitado, da regra ou irregularidade que se decide violar. Desse modo, fazemos

com que as crianças tomem consciência das propriedades regulares e irregulares de nossa

norma, convidando-as também a transgredir. Antecipando formas erradas, isto é,

transgredindo, elas demonstram o que sabem sobre nossa norma ortográfica, e nós

passamos a dispor de um rico material para discutir com a turma.

Retomando o que dizia sobre o encaminhamento do ditado interativo, o próprio

professor pode fazer a seleção das palavras sobre as quais se vai discutir, ou deixar aos

alunos essa tarefa, ou ainda conciliar as duas alternativas (tanto o professor como os alunos

indicam sobre quais palavras se discutirá). Na primeira opção, quando é o professor quem

focaliza, ganha-se a possibilidade de centrar mais a reflexão sobre determinada questão

ortográfica. Nas demais, os alunos são levados a desenvolver mais autonomia, a exercitar

mais uma atitude de antecipação do que podem errar ao escrever. Nesse caso, nós, adultos,

temos dados mais genuínos sobre o que nossos alunos julgam “fácil” ou “difícil” ao

escrever, sobre quais são os pontos específicos da norma que eles conscientemente sabem

constituir fontes de dúvida.

Farei um pequeno relato de uma situação concreta, desenvolvida numa turma de 3ª

série de uma escola pública.

No início do ano, os alunos dessa turma ainda se enganavam muito quanto ao

emprego do G ou GU, o que levou a professora a investir no ensino dessa dificuldade

ortográfica.

Como estratégia para iniciar um trabalho sistemático, ela realizou um ditado

interativo com base num texto que havia sido previamente trabalhado na área de estudos

sociais e que falava sobre o trabalho escravo. Não ditou o texto inteiro, já que o interesse

era desencadear uma reflexão com a turma sobre a disputa entre o G e GU.

O parágrafo ditado e discutido apresentava o seguinte conteúdo: “Os portugueses

trouxeram os negros para o Brasil./ Os escravos trabalhavam nos canaviais/e guardavam

os engenhos./ Os capatazes guiavam os negros às plantações/e os vigiavam /fazendo o

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trabalho./ Quem não obedecesse era castigado”. As barras (/) que coloquei ao longo do

parágrafo indicam as frases

ditadas e marcam os momentos em que se fizeram interrupções para discutir com os alunos

o que eles tinham acabado de escrever. A mestra tinha optado por focalizar algumas

palavras (portugueses, negros, guardavam, guiavam, castigado). Como na maioria das

situações didáticas, surgiram novidades, e foi preciso fazer ajustes, ampliar o universo de

expectativas iniciais.

Durante os momentos de debate, as crianças disseram que não era difícil escrever o

GUE de “portugueses”, mas, mesmo assim, não houve resistência a discutir como “uma

criança que está na primeira série”, “que está aprendendo a escrever”, poderia se enganar na

notação dessa palavra. Verbalizaram que o som era “guê”, que o novato poderia usar um G

só, mas que “ficava com o som de ´gê´”. Já no caso de “ guiavam”, uma palavra menos

familiar que “portugueses”, alguns alunos disseram que era difícil. Anteciparam como erros

possíveis não só a substituição do dígrafo GU pelo G, mas também a substituição pelo QU,

e, novamente, justificaram que a palavra não podia ser escrita de forma diferente porque

“senão o som ficava diferente”.

Em outros momentos, as crianças puderam indicar o que, no trecho escrito, lhes

parecia difícil, e surgiram então discussões sobre outras questões ortográficas, que não o

emprego de G ou GU. Por exemplo, vários disseram que “engenhos” era uma palavra

difícil, e a maioria disse que não sabia se era com G ou J, “porque ficava com o mesmo

som. Quando a professora perguntou se havia algum jeito de saber qual letra usar em

“engenhos”, alguns insistiram que se sabia “pelo som”. Foi preciso discutir se havia alguma

diferença em usar G ou J naquela palavra. Quando viram que “o som ficava a mesma

coisa”, um aluno propôs então que era preciso ver no dicionário. E assim fizeram,

concluindo que, para escrever certo, tinham que decorar a forma encontrada no dicionário.

Nova discussão ocorreu quando se tratou da forma verbal “obedecesse”, outra palavra que

as crianças identificaram como difícil, embora a professora não tivesse planejado discuti-la.

Como se pode ver, a flexibilidade na condução do ditado interativo permitiu aos

alunos participar da reflexão ortográfica, colocando seus pontos de vista, e usar o dicionário

num contexto de necessidade natural. Ressalto que a situação agora resumida foi a primeira

atividade de um processo mais longo de ensino sistemático, durante o qual a mestra

enfocou mais detidamente com sua turma o emprego do G e do GU. Em nenhum momento

houve a expectativa de “encerrar” o trabalho em torno daquela dificuldade com um ditado

interativo. Se o vemos como uma estratégia para promover a reflexão ortográfica,

sobretudo para iniciar a discussão sobre determinadas questões de nossa norma escrita, não

esperamos que tenha efeitos “instantâneos” sobre o rendimento dos alunos.

Releitura com focalização

Um encaminhamento semelhante ao do ditado interativo é usado na releitura com

focalização. Durante a releitura coletiva de um texto já conhecido, fazemos interrupções

para debater certas palavras, lançando questões sobre sua grafia.

Insisto em que se trata de uma releitura, na qual os alunos refletem sobre as palavras

de um texto já conhecido. Interessa-nos manter a coerência mencionada na seção anterior:

como unidades de significado e materialização de processos discursivos, os textos escritos

existem para serem lidos, comentados, “degustados”. Usar um texto desconhecido para

desencadear a reflexão ortográfica seria distorcer a natureza e as finalidades do ato de ler

um texto pela primeira vez.(1)

Ao reler o texto, incentivamos as crianças a focalizar a atenção na grafia das palavras.

Vimos no capítulo 5 que alguns leitores fluentes têm dificuldades ortográficas. E que,

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segundo os estudiosos desse tipo de problema, a causa poderia estar na forma como esses

bons leitores processam o texto escrito: como identificam com muito automatismo as

palavras lidas, elaboram os significados do que lêem sem se deter nas unidades gráficas das

palavras. Na atividade que agora comento, o interesse é justamente investir na possibilidade

de adquirir informação sobre a ortografia por voltar-se a atenção para o interior das

palavras.

Mais ainda que no ditado interativo, é fácil o professor controlar as palavras sobre as

quais deseja refletir com os alunos.

Mas nada justifica que ele também não deixe os alunos expressarem o que acham

difícil no conjunto das palavras lidas.

Durante a releitura, a cada frase ou trecho lido, o professor pára e lança questões,

estimulando os alunos a elaborar (mentalmente ou no papel) transgressões e a debatê-las,

expressando os conhecimentos que têm sobre regras ou irregularidades.

Ilustrando com uma situação concreta, na mesma turma de 3ª série, a professora

decidiu, no segundo semestre, desencadear uma reflexão sistemática sobre o emprego de R

ou RR, uma questão que várias crianças da classe não tinham ainda superado. Para tanto,

optou por não iniciar o trabalho com um ditado interativo, mas com a releitura de uma

fábula de Esopo que tinham lido há pouco: “A cigarra e a formiga” (2).

O texto escolhido, que havia sido lido, comentado e reescrito na semana anterior,

continha muitas palavras que propiciavam a discussão sobre o emprego de R ou RR:

palavras como “cigarra”, “formiga”, inverno”, “verão”, durante”, “trabalho”, “trigo”,

“respondeu”, etc. Com exceção de um único contexto de emprego de R (quando ele aparece

depois de consoantes em palavras como “honra” e “desrespeito”), todas as demais formas

de emprego de RR e R estavam presentes no texto selecionado.

É importante considerar que, àquela altura do ano letivo, as crianças já estavam mais

habituadas ao tipo de reflexão ortográfica introduzido no primeiro semestre. Por outro lado,

como na situação de releitura os alunos não têm que investir tempo no registro do texto

(como acontece no ditado), a professora encaminhou o trabalho de modo a centrar a

discussão quase exclusivamente nas palavras que queria focalizar com a turma. E os

meninos e meninas verbalizaram muito seus conhecimentos, que, posteriormente,

materializados sob a forma de regras, foram registrados em seus cadernos e no “quadro de

regras”. sobre o qual falarei no próximo capítulo.

Naquele dia, já expressaram a seu modo alguns dos princípios gerativos que nos

dizem quando usar R ou RR. Mais exatamente, disseram que:

●”No começo das palavras não se escreve com RR. Só usa RR no meio ou no fim”;

●”Quando o som é forte, como o R de ´rato´, e aparece no meio das palavras, entre vogais,

tem que ser RR”;

●”O R quando está no começo das palavras é forte”;

●”Usa um R só quando tem o som fraco no meio da palavra e no fim”.

Aquele foi o primeiro dia de uma seqüência didática que se desenvolveu em sete

ocasiões (com duração de 20 a 30 minutos em cada dia), durante duas semanas. Nas

ocasiões seguintes, as crianças realizaram atividades específicas em que classificavam e

formavam palavras reais e inventadas que continham R e RR. E avançaram na formulação

das regras que iam discutindo.

Reescrita com transgressão ou correção

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Geralmente, quando reescrevemos um texto, nossa intenção é aprimorá-lo e, no que

concerne à ortografia, corrigi-lo.

Algumas das situações que descreverei agora envolvem corrigir, alcançar “a forma

certa”. Mas, como o objetivo dos momentos de reescrita é especificamente refletir sobre as

propriedades de nossa norma ortográfica, também lançamos mão do recurso de pedir às

crianças que transgridam, reescrevendo “errado de propósito”. Assim como no caso das

atividades há pouco descritas, nossa intenção real é discutir com eles os acertos ou erros

que produzem/descobrem.

Há alguns anos, uma colega, Noêmia de Carvalho Lima, e eu pensamos em usar as

historinhas do Chico Bento, personagem de Maurício de Sousa, como recurso para refletir

com as crianças sobre questões ortográficas. Para quem não o conhece, esclareço que esse

personagem é um menino que mora no campo, filho de agricultores pobres e que, como

muitas crianças brasileiras, trabalha e estuda e ...não se sai bem na escola. Além de ingênuo

e “ecologicamente correto”, o cativante Chico Bento se caracteriza por falar um dialeto

rural que é “transcrito” pelos autores na revista em quadrinhos onde aparece.

A idéia de colocar as crianças em contato com essa revista desencadeou muitas

resistências na maioria das professoras com quem trabalhávamos. Sua reação tinha como

pano de fundo a seguinte questão: Se os alunos já erram ao escrever, por que expô-los a

mais erros ainda? Compreendendo a origem de tal preocupação, discutimos com as mestras

a concepção mecanicista que estava por trás de seu medo: a velha crença de que o aluno

aprenderia passivamente, que ele “fixaria o que vê”, sem capacidade de refletir e reelaborar

seus conhecimentos.

Depois de algumas negociações, conseguimos “vender” nossa proposta e começamos

a desenvolver nas turmas (de algumas daquelas professoras) situações de reflexão

ortográfica com as revistinhas do Chico Bento. Apresentarei agora alguns dos

encaminhamentos experimentados.

Depois que as crianças leram os gibis em diferentes ocasiões, se familiarizaram com o

personagem e descobriram que ele “falava errado”, resolvemos propor atividades mais

específicas. Num primeiro caso, escolhemos uma “tira” pequena e lhes pedimos que

identificassem o que havia de errado na escrita da história.

As crianças detectaram que, nesse texto, os verbos (no infinitivo) sempre apareciam

sem o R final (“apagá”, fritá”, “fazê”). Viram também que certos erros tinham a ver com o

modo como os personagens Chico Bento e Zé Lelé falavam (“vamo”, “ocê”, “pru”,

“armoço”). A tarefa permitiu desencadear uma discussão mais geral sobre como pessoas de

diferentes regiões ou grupos sociais falam distintamente nossa língua, sobre o cuidado que

precisamos ter ao escrever, já que não escrevemos tal como falamos. Contudo, interessava-

nos explorar mais a situação. E propusemos aos alunos que reescrevessem a mesma

história, mas, em lugar de escrever uma história, em quadrinhos, contassem o que tinha

acontecido, sem usar diálogos.

A situação foi planejada de modo a incluir uma reescrita com correção, sem explicitar

aos alunos que eles deveriam eliminar os erros. Ao transformar os diálogos em discurso

indireto, nada justificava a manutenção, na escrita, dos traços da pronúncia dos

personagens. E os alunos localizaram esse tema. A partir de questões levantadas por alguns

deles (“Mas a gente não vai mais escrever errado, não é, professora?”), discutiu-se com o

grupo como deveria proceder. Ao final, os próprios alunos constataram que, como eram

eles que iriam contar a história, não tinham por que repetir os erros do original.

Comecei relatando essa situação de reescrita propositalmente, porque, além de

enfocar a ortografia e envolver um trabalho de transformação de gêneros textuais

(quadrinhos → narrativa), não assume o tom carregado de propor às crianças a tarefa de

“fazer desaparecer o erro”. Creio que precisamos ser cautelosos quando falamos de

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reescrita com correção. Em várias escolas onde se pratica um ensino mais tradicional de

ortografia, tenho encontrado como inovação o emprego de fichas nas quais o aprendiz deve

corrigir textos ou palavras que contenham erros. Se essa pode ser uma alternativa de

trabalho, parece-me importante que não se torne uma alternativa dominante, sobretudo

porque a tarefa de corrigir feita desse modo frequentemente não adquire um sentido nem

inclui um contexto de discussão.

Quando a escola só pede às crianças que transformem o “errado” em “certo”,

contribui para a manutenção de preconceitos lingüísticos, pois não questiona os critérios

(ideológico, históricos, sócio-políticos) que levam as pessoas a acreditar que certas formas

de usar a língua são as únicas “boas” ou legítimas – enquanto as muitas outras formas

variantes são tratadas como “erros de português”, “degenerescências do idioma” (3). Ao

enfocar as questões ortográficas, temos defendido uma postura diferente. A fim de

“descriminalizar” o erro – e usá-lo como fonte de explicitação, de tomada de consciência -,

optamos por transformar as situações de reescrita em uma via de mão dupla: atuamos com

as crianças indo tanto”do errado ao certo” como do certo ou errado” (e, lembro, sempre

discutindo o que fazem!!!).

Retomando o trabalho com as revistas do Chico Bento, em outra ocasião pedimos aos

alunos que reescrevessem os diálogos da história (a mesma), mas que o fizessem com mais

erros ainda. Assim como quando propusemos a situação há pouco descrita, eles gostaram

da atividade, em que puderam revelar e discutir seus conhecimentos ortográficos. Ao

transgredir, modificam, por exemplo, a notação do gerúndio (usando, por

exemplo,”pegano” no lugar de “pegando” e “levano” em vez de “levando”) e comentaram

que o autor devia ter escrito assim, dadas as características do personagem: uma criança do

meio rural. Isto é, tal como no primeiro dia, discutiram questões relativas às variações de

pronúncia existentes em nosso país. E...investiram em questões ortográficas regulares e

irregulares, substituindo letras que “competem” entre si em determinadas correspondências

letra-som (“Chicu” por “Chico”, “fogu” por “fogo”, “oji” por “hoje”, etc.).

Em outras situações, usamos mais tirinhas ou histórias de Chico Bento, além de

outros textos que não eram histórias em quadrinhos. Em todos os casos, ao reescrever –

com transgressões ou correções -, as crianças tinham a oportunidade de tratar a ortografia

como um objeto de conhecimento, como algo que se aprende/internaliza por meio de

reflexão.

(1) Só os profissionais que trabalham como revisores de textos é que se defrontam com as

circunstâncias de ler algo desconhecido para encontrar problemas de ortografia,

pontuação, concordância gramatical, etc.

(2) Naquela unidade as crianças estavam trabalhando sistematicamente a leitura e a

reescrita de fábulas.

(3) Para quem se interessar pelo tema, sugiro trabalhos como os de Magda B.Soares,

Linguagem e escola; uma perspectiva social, São Paulo, Ática, e de Eglê Franchi, A

redação na escola...e as crianças eram difíceis, São Paulo, Martins Fontes.