13
O CONTEXTO DE FORMAÇÃO DO ACERVO FOTO BIANCHI EM PONTA GROSSA/PR (2001-2016) Jheniffer batista de Alvarenga 1 Patricia Camera Varela 2 (Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG) Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, foi adquirido por compra na gestão do Prefeito Péricles Holleben de Mello (PT) através da Fundação Cultural Ponta Grossa. A Casa da Memória Paraná, localizada em Ponta Grossa e pertencente à Fundação Cultural, recebeu em sua instituição um conjunto significativo de negativos de gelatina e prata em suporte de vidro e outros materiais produzidos por três gerações de fotógrafos da Família Bianchi no período de 1910 a 1970. O presente trabalho procurou refletir sobre os aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos daquele período e que de certa maneira convergiram para a formação do acervo. Para tal nos debruçamos sobre a documentação dita oficial, ou seja, originada do processo burocrático, mas em conjunto procuramos através de depoimentos de alguns dos envolvidos, mapear as relações que estaria postas e com elas influenciaram naquele momento. Desta maneira compreendemos que houve a necessidade de aprofundar os entendimentos sobre as relações pessoais, informais, que permearam a negociação desta venda, visto que a compra pela prefeitura é resultado de um contexto específico caracterizado por relações políticas, sociais e culturais. Palavras chave: Acervo público; Memória; Fotografia; História Oral. Financiamento: PIBIC/ UEPG. Introdução 1 Acadêmica do quarto ano de Bacharelado em História pela universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Pesquisa financiada pela bolsa PIBIC/ UEPG. 2 Professora do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Pós-doutora em História pelo Museu Paulista da USP. Doutora em História pela PUCRS e Mestre em Tecnologia e Sociedade pela UTFPR. Orientadora do projeto PIBIC: “História Oral no Acervo Foto Bianchi: história e memória”.

Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

  • Upload
    others

  • View
    1

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

O CONTEXTO DE FORMAÇÃO DO ACERVO FOTO BIANCHI EM PONTA

GROSSA/PR (2001-2016)

Jheniffer batista de Alvarenga1

Patricia Camera Varela2

(Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG)

Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, foi

adquirido por compra na gestão do Prefeito Péricles Holleben de Mello (PT) através

da Fundação Cultural Ponta Grossa. A Casa da Memória Paraná, localizada em

Ponta Grossa e pertencente à Fundação Cultural, recebeu em sua instituição um

conjunto significativo de negativos de gelatina e prata em suporte de vidro e outros

materiais produzidos por três gerações de fotógrafos da Família Bianchi no período

de 1910 a 1970. O presente trabalho procurou refletir sobre os aspectos sociais,

culturais, políticos e econômicos daquele período e que de certa maneira

convergiram para a formação do acervo. Para tal nos debruçamos sobre a

documentação dita oficial, ou seja, originada do processo burocrático, mas em

conjunto procuramos através de depoimentos de alguns dos envolvidos, mapear as

relações que estaria postas e com elas influenciaram naquele momento. Desta

maneira compreendemos que houve a necessidade de

aprofundar os entendimentos sobre as relações pessoais, informais, que permearam

a negociação desta venda, visto que a compra pela prefeitura é resultado de um

contexto específico caracterizado por relações políticas, sociais e culturais.

Palavras chave: Acervo público; Memória; Fotografia; História Oral.

Financiamento: PIBIC/ UEPG.

Introdução

1 Acadêmica do quarto ano de Bacharelado em História pela universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Pesquisa financiada pela bolsa PIBIC/ UEPG. 2 Professora do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Pós-doutora em História pelo Museu Paulista da USP. Doutora em História pela PUCRS e Mestre em Tecnologia e Sociedade pela UTFPR. Orientadora do projeto PIBIC: “História Oral no Acervo Foto Bianchi: história e memória”.

Page 2: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

Compreendido como um Centro de Documentação regional por trabalhar com

a “reunião, a preservação, a organização de arquivos e coleções” (CAMARGO,

1999, p. 52), a Casa da Memória Paraná foi escolhida como local para a guarda do

Acervo Foto Bianchi (AFB), desde o ano de 2001. Este acervo é composto

fundamentalmente “pela união de aproximadamente 45 mil negativos de gelatina e

prata sobre vidro, além dos cadernos de serviços-clientes” (BEDIM; CAMERA, 2015.

v. 8, p. 27), das caixas originais de negativos e papéis e de alguns materiais e

equipamentos de laboratório. Esse patrimônio material e imaterial foi produzido e

acumulado ao longo de quase um século por três gerações da tradicional família

Bianchi na cidade de Ponta Grossa no Estado do Paraná, compreendendo o recorte

do período entre 1907 (documento mais antigo) a 1970.

Anteriormente pertencia ao conjunto documental particular da família Bianchi

aos cuidados de Raul Bianchi, que dentre os irmãos foi o herdeiro que deu

continuidade aos trabalhos fotográficos do ateliê e manteve o material em sua

residência na cidade de Ponta Grossa até o ano de 2001, quando realiza a venda

para a prefeitura municipal assinando como único proprietário.

A transição do acervo privado para o acervo público é carente em

historiografia, pois não havia sido pesquisado anteriormente. Deste modo, o

presente projeto se propôs a investigar a história do Acervo Foto Bianchi com foco

no processo que o legitimou como patrimônio público. Interessou-nos analisar o

processo de venda, transferência, acomodação e organização deste conjunto

documental que passou por um trâmite judicial municipal e também informal anterior

a efetivação do negócio. Para tanto, buscamos pesquisar a contextualização da

compra deste acervo, realizada no ano de 2001, pela Prefeitura Municipal de Ponta

Grossa em conjunto com a fundação Cultural Ponta Grossa e o Departamento de

História da Universidade Estadual de Ponta Grossa.

Com o desenvolvimento desta pesquisa, compreendemos que este processo

ocorreu em etapas. Primeiramente, verificamos por meio de entrevistas que existia

a ciência das condições e do estado físico dos documentos; em segundo, ocorreu a

negociação com Raul Bianchi; em terceiro foi efetivado o trâmite judicial; em quarto

foi realizada a transferência do referido material para a Casa da Memória Paraná; e

por fim foi desenvolvido o trabalho de acomodação e organização do acervo sob a

Page 3: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

supervisão do Departamento de História (DEHIS) da Universidade Estadual de

Ponta Grossa (UEPG).

No que tange as duas primeiras etapas é permissível apontar que houve,

principalmente em caráter informal, negociações entre Raul Bianchi e os irmãos

Carmencita H. M. Ditzel (professora do DEHIS) e Péricles Holleben de Mello3

(prefeito municipal da cidade de Ponta Grossa). Todos mantinham uma relação de

proximidade antes mesmo dos trâmites de compra e venda do acervo. Isso implica

em apontar que provavelmente o vínculo de confiança tenha contribuído para

desenvolver diálogos sobre a importância de preservar, disponibilizar e divulgar este

material icnográfico à comunidade. Por outro lado, averiguamos que haviam

negociações formalizadas em documentos que se encontram na Casa da Memória

Paraná e correspondem às relações políticas representadas pela Fundação Cultural

Ponta Grossa4.

Para este artigo nos restringimos em apontar quais eram os poderes e

relações presentes neste momento, a fim de mapear essa conjunção de

acontecimentos. Buscamos em um curto espaço de tempo, mapear o contexto que

envolveu a compra, assim como as relações informais e pessoais que fizeram parte

deste processo no ano de 2001.

Construção de um legado: trajetória da Família Bianchi na cidade de

Ponta Grossa/Pr.

Nosso objeto de pesquisa, o Acervo Foto Bianchi, tem sua trajetória iniciada

na década de 1910, quando Luís Bianchi se estabelece enquanto fotógrafo na

cidade de Ponta Grossa/Pr com sua recém-formada família. “Nascido na Argentina,

imigra para o Brasil no início do século XX, já na condição de fotógrafo, profissão

3 Eleito prefeito pelas eleições do ano 2000 com exercício de 2001 á 2005. Entretanto antes de cargo e representação politica, Péricles e Raul mantinham uma relação de amizade bem anterior ao processo aqui estudado. 4 A fundação foi instituída em 2001 por meio da gestão de Péricles Holleben de Mello (PT) pelo decreto de lei n° 6680, cujo estatuto garantia autonomia administrativa e financeira. Este ato foi revogado em 2005 pelo decreto de lei n° 8433, retirando a autonomia da instituição, gestão de Pedro Wosgrau Filho (PSDB).

Page 4: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

que aprendera durante o período passado no Exército” 5. Fixa-se na Lapa (PR) e

depois é contratado pela São Paulo Railway.

Sua mudança para Ponta Grossa (PR) pode ser notada a partir de sua

trajetória profissional. Primeiro são observados no jornal “O Progresso” (1910) os

frequentes anúncios da loja de armarinhos “Bianchi & Thómmen” que tinha em

parceria com sua esposa. Depois, verificam-se alguns pequenos anúncios neste

mesmo jornal sobre o estabelecimento na Rua Fernandes Pinheiro, n. 8: “Chamados

para qualquer ponto do Estado” (1912).

Mas, é somente em dezembro de 1913 que o fotógrafo formaliza sua empresa

na Rua XV de Novembro, num contexto de desenvolvimento e ampliação da cidade

de Ponta Grossa que cresceu mais rapidamente desde a chegada da estrada de

ferro de direção Mato Grosso – São Paulo. Segundo Chaves (2015, p. 2), a cidade

era “beneficiada pela condição de entroncamento ferroviário, Ponta Grossa projetou-

se como exemplo de urbanização no interior paranaense já na primeira década dos

Novecentos”.

A modernização e o “progresso”’ da cidade princesinha decorrem

especialmente da exportação da erva-mate e de seu posicionamento enquanto

entroncamento ferroviário, atraindo para a cidade um grande fluxo de pessoas em

sua maioria imigrantes que veem na cidade oportunidade de estabelecimento. Em

Bedim e Camera (2015) observa-se o crescimento populacional e

consequentemente o desenvolvimento de redes de sociabilidades entre fotógrafos e

casas comerciais de importados do período, apontando a estreita ligação entre

Ponta Grossa e Curitiba, até então cidade com mais casas de importadores de

produtos fotográficos, mas com forte demanda dos pontagrossenses. Deste modo

percebe-se que o estúdio Foto Bianchi participava ativamente da sociedade

contemporânea, sendo também um resultado do desenvolvimento da profissão de

fotógrafo ligada especialmente aos imigrantes 6.

Inserido neste contexto Luís Bianchi que já contava com a prática da

fotografia ao migrar da cidade da Lapa (PR) e casado com a imigrante suíça Maria

5 Informações retiradas de http://www.artesnaweb.com.br/index.php?pagina=home&abrir=arte&acervo=449. Acessado em: 27/06/2016. 6 SANTOS. 2009, p. 61

Page 5: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

Thómmen, transfere seu pequeno comércio para a Rua XV de Novembro,

atendendo especificamente como estúdio fotográfico antes da construção de sua

residência e ateliê na Rua Sete de Setembro em meados de 19407.

A fotografia enquanto meio de representação e afirmação social estava no

grupo de bens de consumo com alto custo e de alcance direcionado as elites

agrárias, politicas e religiosas, cujo poder aquisitivo permitia o gasto com a compra

de retratos ou de cartões postais. Uma realidade que se modifica gradativamente

com a ampliação do numero de profissionais e o barateamento devido à larga

produção dos materiais, adentrando ao consumo de outras classes sociais. É

possível observar que em Ponta Grossa havia um grupo expressivo de fotógrafos

trabalhando, ou seja, concorrência. Contudo os anúncios realizados no Jornal Diário

dos Campos de forma crescente demonstram o investimento em propaganda e um

retorno através de maior produção fotográfica. (BEDIM; CAMERA, 2015, p. 42).

O estudo da imagem e da fotografia no campo da história já reúne uma

grande discussão teórica a respeito. De forma a sintetizar observamos que

socialmente a fotografia adquiriu um status diferenciado sob qualquer outra forma de

representação. Segundo Kossoy (2001) a fotografia tem o poder de “interromper” um

momento, que permanece interrompido e imóvel, sendo então a imagem

concretizada e transpassada para outras pessoas, outros períodos, outros lugares.

As intenções depositadas nas poses preparadas pelos fotografados e pelos

fotógrafos corresponde a uma escolha derivada das necessidades e entendimentos

socioculturais engendradas no momento da captura da cena e objetivo de tal

retratação.

Esta representação ganha espaço e reconhecimento na sociedade no início

do século XIX quando já no circuito europeu de pintura as pessoas buscavam ser

retratadas como uma forma de lembrança e afirmação social, no caso do Brasil

assume, frente aos imigrantes, o meio de comunicação com as famílias que

permanecem nos países de origem, a fim de mostras que “mudar deu certo”.

(SANTOS, 2009, p. 62).

7 Informações retiradas da entrevista realizada pelo projeto Fotógrafos Pioneiros do Paraná, onde Rauly Bianchi conta sobre a história de seu pai e sua família. Documento está sob guarda da Casa da Memória de Curitiba.

Page 6: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

Ao compreender a imagem enquanto documento é necessário ater-se ao

entendimento de que estas não são cópias fiéis da realidade ou de uma sociedade e

devem, assim como os documentos textuais, passar por uma análise criteriosa. Além

do mais é preciso no caso das imagens aprofundarem as informações referentes à

sua produção, ou seja, a qualidade dos estudos se eleva quando se tem o cuidado

de observar o conjunto documental e não uma única imagem. Assim,

o uso da fotografia como documento só é possível, quando conseguimos recuperar todas as informações explícitas e implícitas à imagem e ao processo de realização do registro fotográfico. Por isso, é fundamental que seja resgatada a historicidade da fotografia, ou seja, situá-la historicamente no tempo e no espaço. (MADIO, 2012, p. 60)

A riqueza fotográfica do AFB advém especialmente por seu caráter de

conjunto serial que acompanha os cadernos de registros, cuja função empresarial

era o registro e controle das fotografias produzidas pela empresa, hoje atuam como

agulha e linha na tarefa árdua de costurar os retalhos do passado local

representados pelas fotografias.

A partir deste breve panorama defendemos que as produções fotográficas do

Acervo Foto Bianchi têm um exímio valor histórico para análise não apenas

historiográfica da cidade e também região, mas contempla outras áreas das ciências

humanas e urbanismo.

O contexto de formação do Acervo Foto Bianchi

Partimos do entendimento que a formação de um acervo, ou seja, a história

que o remonta, suas origens de acumulação e organização formam sua identidade.

Esta identidade inicialmente pode ser formada pelas circunstâncias sociais, politicas

e culturais que resultaram nas escolhas feitas pelos organizadores e especialmente

pela escolha de guarda de determinada memória. Como é o caso do o acervo

Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) que tem seu contexto de formação no período de

forte censura da Ditadura Militar, iniciando em 1974. Atuanddo “quase que

clandestinamente por quase dez anos” (ARAÚJO; BATALHA, 1999 p. 66),

decorrente da origem e conteúdo do material ali acumulado, dando inicio a “um

arquivo de história social centrado, nos primeiros tempos, na documentação

referente ao movimento operário e as ás correntes de esquerda” (idem, p.66).

Page 7: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

Deste modo toda documentação visitada dentro do AEL tem uma história, um

origem de acumulação que especialmente se apresenta enquanto conjunto ao

pesquisador. Deste modo também procuramos investigar as condições especificas

que oportunizaram, ou melhor, resultaram na compra do AFB.

As razões que levaram a aquisição pela prefeitura e a venda por Raul tem

sido uma incógnita para todos que trabalham com Acervo atualmente, o que implica

em um vazio historiográfico a respeito da memória de formação do próprio acervo.

Esta lacuna afeta não somente o acervo em si, mas todas as produções

bibliográficas sobre o mesmo que em certa medida precisam de tal contextualização

para compreender os documentos a partir de sua biografia e organização.

De um modo geral acredita-se que o motivo da venda esta diretamente e

unicamente relacionado ao estado de saúde do senhor Raul Bianchi, isto devido

uma entrevista que o mesmo concedeu ao Jornal Diário dos Campos, publicado no

dia 10 de setembro de 2001 falando sobre o assunto. Segundo Raul na matéria

intitulada Bianchi e suas batalhas ele defende que “o povo de Ponta Grossa fechou

o Foto Bianchi”, isto após sua loja ter sido roubada no dia 26 de janeiro do mesmo

ano, segundo relato ele perdeu uma média de 90 mil reais em equipamentos,

ficando “sem os dedos para trabalhar”.

Compreendemos que este foi um dos motivos da venda, entretanto não o

único. Defendemos que tal acontecimento é resultado de um conjunto e fatores que

envolvem diferentes setores da sociedade, assim como reflexões do próprio Raul

sobre seu acervo e a guarda de noventa anos que não podia manter.

Através da documentação de compra e venda do Acervo Foto Bianchi foi

possível detectar que este trâmite tem, como base e início, a solicitação de compra

realizada pelo Departamento de História (DEHIS) da Universidade Estadual de

Ponta Grossa, direcionada à Fundação Cultural Ponta Grossa, no dia 23 de fevereiro

de 2001. Este pedido teria como objetivo principal a defesa e busca pela

preservação do banco de imagens e os outros materiais, devido seu “valor histórico

incalculável, que abrange imageticamente a maioria das atividades cotidianas e

Page 8: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

extraordinárias que formam a prática urbana, a identidade, e as sociabilidades

públicas e privadas princesinhas em seus mais diferentes aspectos” 8.

Desta maneira passamos a nos questionar. Quais foram os envolvimentos e

contatos prévios entre o DEHIS com o conjunto documental da Família Bianchi que

permitia tais constatações e que motivaram a solicitação? Foi apenas esta

solicitação que desencadeou a movimentação? Em quais circunstâncias ocorreu?

Foi, então, recuando a anos anteriores a procura de elementos que

apontassem esse contato prévio, que em leitura ao Jornal de História (JH),

produzido entre 1996-1998 pelo DEHIS observa-se a utilização de imagens do Foto

Bianchi na primeira e em diversas outras edições. Ora ilustrativa, ora como

questões, mas até o momento é tido como o primeiro meio pelo qual as fotos foram

efetivamente divulgadas e trabalhadas cientificamente como fontes.

O professor José Augusto Leandro, então responsável pelo jornal durante seu

período de existência, em conversa conosco defende que “o Jornal de História selou

ou ilustrou para todo mundo a riqueza do acervo [...] foi a melhor vitrine sobre a

importância do acervo”. Segundo ele, naquele momento de alguma forma ele sabia

da existência do banco de imagens, assim como outros professores do

Departamento de História, porém foi através das edições do JH, que com temáticas

variadas, conseguiu evidenciar a riqueza imagética do Foto Bianchi, sendo assim

tratado como um representante da memória local.

O envolvimento a priori ao ano de 2001 aponta outros caminhos sobre a

aproximação do DEHIS e sua participação efetiva no processo de transição e

organização deste patrimônio material para a Casa da Memória Paraná. Até o

momento da compra pela prefeitura e transferência, é possível afirmar que o DEHIS

esteve em contato com tal material, não apenas como fonte, mas pela aproximação

pessoal entre alguns professores com Raul Bianchi e o banco de imagens.

Este contato pessoal era decorrente das visitas realizadas com frequência por

interessados nas imagens. As visitas não eram públicas, pois o próprio Raul

restringia e escolhia quais pessoas poderiam ter acesso ao conjunto material, como

aponta o entrevistado, professor Leandro.

8 DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, 2001, p. 3.

Page 9: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

Isto decorre de uma característica do Departamento naquele momento em

focar as pesquisas, projetos e produções para a memória local e regional. Neste

período observa-se que a produção bibliográfica dos professores departamentais era

quase exclusivamente dedicada a memória local, de forma individual ou coletiva.

Concomitantemente havia uma movimentação da esfera do poder público

municipal na busca de preservação da memória local, através dos patrimônios que a

representam. No que tange o poder público, havia juntamente uma manifestação

cultural em defesa do patrimônio que se figurou usando a causa e luta pela

permanência e restauro da Estação de Saudade, antiga estação ferroviária

construída nas décadas iniciais do século XX, sendo representante deste período da

cidade.

No cenário politico observa-se uma movimentação e olhar para o setor

cultural e patrimonial da cidade. Através do plano político do atual Deputado Federal

Péricles Holleben de Mello, que já enquanto vereador buscava “o resgate da

identidade local” 9.

Desta maneira a participação ativa desses profissionais, o departamento

representado por seus docentes, aparece “envolvido organicamente” com questões

políticas de preservação da memória local, que representado pelo movimento

Cidade Viva, tinha como objetivo a preservação da memória local através do

patrimônio material e imaterial, como afirma nosso entrevistado Marco Aurélio

Monteiro Pereira10.

Neste amplo campo de pesquisa vale ressaltar que o presente acervo passou

pelo processo de mudança de estatuto, ou seja, ele constituiu-se como banco de

imagem de uma empresa familiar e após sua compra pela prefeitura de Ponta

Grossa em 2001, o mesmo vem passando por tratamentos que buscam

compreendê-lo e apresentá-lo à sociedade como um patrimônio material e imaterial.

Em um primeiro momento é possível perceber a formação do acervo

enquanto produto e resultado do trabalho de três gerações de fotógrafos na cidade

de Ponta Grossa, ou seja, um acervo familiar de organização empresarial que

9 Fala de Péricles em uma entrevista concedida a nós no dia sete de agosto de dois mil dezesseis. 10 Professor adjunto do Departamento de História (DEHIS) qu participou ativamente do processo de compra instalação dos materiais na Casa da Memória Paraná, qual manteve uma estreita relação com Raul Bianchi neste período.

Page 10: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

entendia o conjunto enquanto propriedade e de valor afetivo pessoal, como uma

memória particular, um reconhecimento de identidade familiar.

Apesar disso, era latente a necessidade de tornar esse banco de imagens

uma fonte histórica. O contexto, que é investigado nesta pesquisa, sugere ser

propício para que ocorresse o contato de professores e pesquisadores com o Raul

Bianchi, para que este material particular sofresse um processo que resultaria em

longo prazo na transferência desse material para a guarda pública.

O reconhecimento do meio acadêmico e politico do potencial documental

apresentado pelas fotografias trazem para a investigação duas questões que devem

ser analisadas, as condições físicas e acessibilidade.

Ambas se interligam de forma que uma é resultante de outra e vice-versa. Ao

pensar em acessibilidade de visitação ao documento, sendo ele uma fonte primária

é preciso considerar a sua integridade física. A preservação do conteúdo dos

documentos, especialmente da fotografia se dão de forma diferenciada. Sabe-se que

o tempo é um agente sem limites e que somado a condições que favoreçam a

degradação do material temos seu acesso comprometido.

Nessa inter-relação entre a estabilidade física e química das fotografias e o meio ambiente em que vivem, este último tem papel fundamental, podendo funcionar como agente acelerador ou retardador do processo e deterioração fotográfica. (FILIPPI; LIMA; CARVALHO, 2002 p. 17)

Apesar da acessibilidade do acervo em questão ter sido controlada pelo

proprietário, as condições do espaço físico dificultavam em preservar a qualidade do

material que estava a se perder e que, de fato, foi perdido em partes. Como aponta

Carmencita, Raul tinha consciência disso: “ele achava que o acervo deveria ser

preservado, que ele tinha uma boa parte da história da cidade, que não havia outro

acervo igual [...] e que era interessante para o município”.

Considerando que o fotógrafo tinha a intensão de preservar, ele sabia que

deveria vender, pois não tinha recursos financeiros para proporcionar as condições

adequadas para a manutenção e organização de seu banco de imagens, sendo o

único da família a ter contato efetivo com o material. Somando essas condições ao

fechamento do ateliê fotográfico e as relações pessoais e profissionais de Raul

Bianchi com a comunidade pontagrossense, tais aspectos podem ser apontados

para o entendimento da venda.

Page 11: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

De fato, a condição de guarda não era adequada. Segundo Adreane11 “dava

para perceber que estava chovendo em cima, tinha insetos dentro andando pelos

negativos, um grande número de negativos sem caixas, soltos, avulsos“. Uma parte

da quantidade de negativos se perdeu, devido às dificuldades encontradas por Raul.

Deste modo a venda deste conjunto documental para a prefeitura significou a

priori em um ganho para ambas as partes, pois todos estavam focados no interesse

de preservar a memória visual e a história da família Bianchi. Desta forma, a partir

desse novo estatuto, se iniciou algumas práticas de pesquisa na área de

preservação, conservação, história, artes e cultural sem deixar de lado o

desenvolvimento da educação da cultura visual na comunidade.

Os resultados positivos dessa mudança de estatuto foram vistos em

publicações e pesquisas que ocorreram logo após sua aquisição como a trilogia

Visões de Ponta Grossa12, a dissertação de mestrado aqui citada de Francileli

Lunelli Santos e a obra Espaço e Cultura: Ponta Grossa e Campos Gerais13. Além

disso, desde 2014 o Acervo Foto Bianchi tem funcionado como palco de diferentes

ações, coordenadas sob a perspectiva de pesquisas de iniciação científica, projeto

de extensão, exposições, palestras e cursos com o objetivo principal de preservar,

conservar pesquisar e divulgar este patrimônio material.

Considerações Finais

Com as entrevistas realizadas, podemos apontar alguns dos fatores que

rodeiam a discussão sobre a negociação de compra e venda. A compra era um

interesse compartilhado da Prefeitura com o Departamento de História da

Universidade Estadual de Ponta Grossa e a venda interesse de Raul, pois este

enxergava na prefeitura o meio que possibilitaria a preservação e divulgação das

fotos como desejava.

Nesta pesquisa defendemos que a aquisição do banco de imagens e a

constituição do Acervo Foto Bianchi de caráter público é resultante de uma junção

de fatores externos à qualidade do acervo em questão. Foi possível perceber que a

11 Atuou como estagiária durante o processo de acomodação e tratamento dos negativos já na Casa da Memória pelo período de oito anos, de 2001 á 2009. 12 Organizados e produzidos pelo DEHIS e publicados pela Editora UEPG 13 Organizado por Carmencita H. Mello Ditzel e Cecilian Luiza Sahr.

Page 12: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

aproximação do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta

Grossa com as questões latentes na cidade, assim como a relação com o poder

público, adentrando e participando de secretarias e conselhos favoreceram a

efetivação da compra e quiçá a formação de um acervo público de tamanha

importância, pois foram estes os negociadores e intermediadores entre as

exigências de Raul e as condições da prefeitura.

Juntamente a estes apontamentos, é preciso evidenciar a participação ativa

de Raul Bianchi em todo o processo, antes – durante – depois da compra, pois seu

interesse em vender dizia respeito ao anseio pela perpetuação da memória de sua

família e da cidade. Logo, podemos com clareza afirmar que o envolvimento deste

fotógrafo em todas as esferas do processo, especialmente no pós-venda representa

o apego emocional e a preocupação com a destinação do conjunto dos negativos,

buscando sempre supervisionar os trabalhos cotidianamente.

As condições sociais, culturais e especialmente politicas daquele momento

favoreceram para a concretização da compra e a construção do Acervo Foto

Bianchi, considerado de imensurável valor histórico. A frase do professor Marco

Aurélio Monteiro Pereira é enfática: “Eu creio que em outro momento aquilo se

perderia de qualquer maneira.”.

Referências

ARAÚJO, Angela Maria C.; BATALHA, Cláudio H. M. Preservação da memória e pesquisa: a experiência do arquivo Edgard Leuenroth (AEL). In: SILVA, Zélia L. da. (Org). Arquivos, Patrimônio e Memória: Trajetórias e Perspectivas. São Paulo: Unesp, 1999. 65-77. BEDIM, W; CAMERA, P. O contexto comercial e a produção de Luis Bianchi: memória escrita e fotográfica. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DA IMAGEM, 5., 2015, Londrina, PR. Anais do V Encontro Nacional de Estudos da Imagem [e do] II Encontro Internacional de Estudos da Imagem. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2015. p. 27-44. BIANCHI, Rauli. Entrevista concedida a Loreno Luiz Zatelli Hogedorn e Roseli T. Boschilia para o Projeto Fotógrafos Pioneiros do Paraná. Ponta Grossa, 3 nov. 1982. Acervo: Casa da Memória, Curitiba/PR. BORGES, Maria Eliza L. História e fotografia. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2003.

Page 13: Resumo. Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto ...€¦ · Em 2001, o material que compõe hoje o Acervo Foto Bianchi, ... buscamos pesquisar a contextualização da compra

CAMARGO, Célia R. Os centros de documentação das universidades: tendências e perspectivas. In: SILVA, Zélia L. da. (Org). Arquivos, Patrimônio e Memória: Trajetórias e Perspectivas. São Paulo: Unesp, 1999. 49-62. CAMERA, Patricia. Foto Bianchi: o caderno de controle de serviços como indicador do circuito de sociabilidades. In: II Encontro História, Imagem e Cultura Visual. Anais Eletrônicos. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. GT História, Imagem e Cultura Visual - ANPUH-RS. 2013. p. 1-8. Disponível em: http://www.anpuh-rs.org.br/conteudo/view?ID_CONTEUDO=1162. CHAVES, Niltonci Batista. Os “problemas citadinos” em uma “cidade civilizada”: estratégias discursivas de um intelectual polivalente no Jornal Diário dos Campos – Ponta Grosa/PR (Década de 1930). In. II Congresso Internacional de História UEPG – UNICENTRO: Produção e circulação do conhecimento histórico no século XXI. 2015. Ponta Grossa/PR, Anais eletrônico. Disponível em: http://www.cih2015.eventos.dype.com.br/resources/anais/4/1435542639_ARQUIVO_NiltonciBatistaChaves.pdf KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 2. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. LEANDRO, José Augusto. Luis Bianchi, fotógrafo dos Campos Gerais. Jornal de História. Ponta Grossa, ano I, n. 3, agosto de 1996. MADIO, Telma de C. Carvalho. Uma discussão dos documentos fotográficos em ambiente de arquivo. In. VALENTIM, Marta L. P.(org.). Estudos avançados em Arquivologia. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2012. p. 55-68. NETTO, Irenêo. Bianchi e suas batalhas. Jornal Diário dos Campos. Ponta Grossa: ano 95, n. 28.423, set. de 2001. O PROGRESSO. Ponta Grosa. 1910 – 1912. PINTO, Elisabeth Alves. A população de ponta grossa a partir do registro civil "1889 -1920”. Dissertação de Mestrado em História do Brasil da Universidade Federal do Paraná, 1980. SANTOS, Francieli Lunelli. Arranjos fotográficos, arranjos familiares: representações sociais em retratos de família do Foto Bianchi (Ponta Grossa 1910 – 1940). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas. Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2009.