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Os problemas não dizem a idade que têm: tempo, finitude e historicidade Paulo Massey [email protected] Nossas lembranças não são apenas os elementos com os quais tecemos a unidade das experiências narradas por um eu na intenção de registrar uma trajetória de vida com claros referenciais de espaço e tempo. Elas são também o pano de fundo onde se projetam fantasias e expectativas sociais que, como questões colocadas às possíveis soluções e escolhas singulares, mobilizam nossos desejos. É comum pensar que nossas lembranças sejam apenas um conjunto de imagens fixas, armazenadas, e a memória tão somente a capacidade de acessar arquivos mortos para trazê-los de volta à vida da consciência. Mais do que isso, elas são representações fragmentárias continuamente recriadas por sujeitos que rememoram os acontecimentos formadores de sua existência a partir das questões do presente. Lembrar não é sem efeito, é uma forma de reinscrever os acontecimentos e reescrever a história, dada a radical instabilidade dos significados de nossas construções singulares. A historiografia tradicional concebe o passado como algo que ficou para trás na linha do tempo. Mas o passado não é algo que passa completamente. Ele está aqui, nas memórias, nas marcas, nos monumentos, nas ruínas. Além disso, o passado continua a nos assediar, interrogando sobre o que fazer com ele. Marx (1818-1883) certa vez afirmou que “nenhuma sociedade se impõe questões que não possa responder”. Podemos pensar, então, que determinados problemas não dizem a idade que têm como forma de nos manter ligados a eles, ao seu passado, a sua origem, nos fazendo acreditar na beleza de sua novidade. Em um texto maior sobre a técnica psicanalítica, Freud (1856-1939) observa que certos fatos psíquicos não são repetidos como lembranças trazidas à consciência pela análise, mas sim como ação, de tal maneira que a repetição desses atos esconde o conteúdo das lembranças recalcadas, tornadas inconscientes, e, por isso, constitui uma forma de esquecimento in actu. Isso ocorre porque o passado histórico, tal como o sintoma neurótico de um trauma não elaborado, costuma se repetir indefinidamente, até que sejamos capazes de construir em torno dele um sentido e, então, esquecê-lo sem sofrimento. Essa “compulsão à repetição” é um fato presente tanto na memória individual como na memória social, comum. Podemos pensar a relação entre esses domínios não como metáfora, como transposição ou mero reflexo. Eles são, na verdade, momentos distintos de uma mesma experiência do tempo, da finitude e da historicidade. Se quiséssemos levar a diante essa idéia, bastaria ver que, assim como certos procedimentos da racionalidade clínica surgiram de outros domínios do saber, nada impede que se possa extrair dessa experiência problemas que só encontram solução na análise social. Assim como é necessário se apropriar do passado, do que deve ser lembrado ou do que não pode ser esquecido, é preciso não manter a vida presa a rituais de culpa e ressentimento – pois, como lembra Nietzsche (1844-1900), isso é também motivo de sofrimento para o qual, aliás, só o esquecimento “ativo e alegre” serve de antídoto. Walter Benjamin (1892- 1940) fala da experiência de certos acontecimentos traumáticos como sendo impossíveis de narrar. Ele ficou intrigado com o fato de que os soldados voltaram da guerra sem ter nada a dizer. Freud já havia percebido isso quando começou a tratar ex-combatentes que se queixavam de pesadelos recorrentes, pensamentos de morte e outras idéias obsessivas. É claro que o que estava em questão era a desorganização das estruturas simbólicas causada pela força das experiências traumáticas que viveram. No entanto,

Resumo - Filosofia e Psicanálise - Paulo Massey

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Os problemas não dizem a idade que têm: tempo, finitude e historicidade

Paulo Massey [email protected]

Nossas lembranças não são apenas os elementos com os quais tecemos a unidade das experiências narradas por um eu na intenção de registrar uma trajetória de vida com claros referenciais de espaço e tempo. Elas são também o pano de fundo onde se projetam fantasias e expectativas sociais que, como questões colocadas às possíveis soluções e escolhas singulares, mobilizam nossos desejos. É comum pensar que nossas lembranças sejam apenas um conjunto de imagens fixas, armazenadas, e a memória tão somente a capacidade de acessar arquivos mortos para trazê-los de volta à vida da consciência. Mais do que isso, elas são representações fragmentárias continuamente recriadas por sujeitos que rememoram os acontecimentos formadores de sua existência a partir das questões do presente. Lembrar não é sem efeito, é uma forma de reinscrever os acontecimentos e reescrever a história, dada a radical instabilidade dos significados de nossas construções singulares. A historiografia tradicional concebe o passado como algo que ficou para trás na linha do tempo. Mas o passado não é algo que passa completamente. Ele está aqui, nas memórias, nas marcas, nos monumentos, nas ruínas. Além disso, o passado continua a nos assediar, interrogando sobre o que fazer com ele. Marx (1818-1883) certa vez afirmou que “nenhuma sociedade se impõe questões que não possa responder”. Podemos pensar, então, que determinados problemas não dizem a idade que têm como forma de nos manter ligados a eles, ao seu passado, a sua origem, nos fazendo acreditar na beleza de sua novidade. Em um texto maior sobre a técnica psicanalítica, Freud (1856-1939) observa que certos fatos psíquicos não são repetidos como lembranças trazidas à consciência pela análise, mas sim como ação, de tal maneira que a repetição desses atos esconde o conteúdo das lembranças recalcadas, tornadas inconscientes, e, por isso, constitui uma forma de esquecimento in actu. Isso ocorre porque o passado histórico, tal como o sintoma neurótico de um trauma não elaborado, costuma se repetir indefinidamente, até que sejamos capazes de construir em torno dele um sentido e, então, esquecê-lo sem sofrimento. Essa “compulsão à repetição” é um fato presente tanto na memória individual como na memória social, comum. Podemos pensar a relação entre esses domínios não como metáfora, como transposição ou mero reflexo. Eles são, na verdade, momentos distintos de uma mesma experiência do tempo, da finitude e da historicidade. Se quiséssemos levar a diante essa idéia, bastaria ver que, assim como certos procedimentos da racionalidade clínica surgiram de outros domínios do saber, nada impede que se possa extrair dessa experiência problemas que só encontram solução na análise social. Assim como é necessário se apropriar do passado, do que deve ser lembrado ou do que não pode ser esquecido, é preciso não manter a vida presa a rituais de culpa e ressentimento – pois, como lembra Nietzsche (1844-1900), isso é também motivo de sofrimento para o qual, aliás, só o esquecimento “ativo e alegre” serve de antídoto. Walter Benjamin (1892-1940) fala da experiência de certos acontecimentos traumáticos como sendo impossíveis de narrar. Ele ficou intrigado com o fato de que os soldados voltaram da guerra sem ter nada a dizer. Freud já havia percebido isso quando começou a tratar ex-combatentes que se queixavam de pesadelos recorrentes, pensamentos de morte e outras idéias obsessivas. É claro que o que estava em questão era a desorganização das estruturas simbólicas causada pela força das experiências traumáticas que viveram. No entanto,

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essa incapacidade de narrar não deve ser atribuída apenas às condições psíquicas de defesa e elaboração de cada um. Melhor seria pensar que esses sujeitos nada tinham a dizer por que não havia quem lhes ouvisse. É isso que Benjamin observa quando trata das relações entre sofrimento e memória, narração e história. Segundo ele, contra a vivência degradada da experiência individual isolada, incomunicável, que suplantou a tradição, é preciso fazer do passado uma experiência comum, despertar no presente suas esperanças não realizadas, vencidas e que, por isso, estão presas no tempo, marcadas pelo sofrimento, à espera de sua salvação que é, a um só tempo, a salvação do presente.