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Quatro ensaios sobre música e filosofia - sites.ffclrp.usp.brsites.ffclrp.usp.br/napcipem/pdf/quatro_ensaios.pdf · 4) O ensaio Filosofia, Psicanálise, Música: tema e variações

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  • Ribeiro Preto - SP2013

    RUBENS RUSSOMANNO RICCIARDIEDSON ZAMPRONHA

    (Organizadores)

    Quatro ensaios sobre msica e filosofia

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  • 2013Quatro ensaios sobre

    msica e filosofia1 Edio

    TextosRubens Russumanno Ricciardi

    Alexandre da Silva Costa Edson Zampronha

    Maria de Lourdes Sekeff

    Capa e DiagramaoLau Baptista

    ImpressoGrfica Santa Terezinha

    Jaboticabal-SP

    Ficha Catalogrfica

    Rua Amrico Brasiliense, 1.108Centro, Ribeiro Preto, SP

    CEP 14015-050

    Russumanno Ricciardi, Rubens, Edson Zapronha/ Quatro ensaios sobre msica e filosofia / 1. ed. - Ribeiro Preto, SP : Editora Coruja, 2013. 142p.

    ISBN: 978-63583-25-7

    1. Msica. Filosofia. Esttica Musical Msica e psicanlise . I. Ttulo

    CDU 82.085

    C346d

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  • A publicao deste livro uma homenagem pstuma

    Profa. Dra. Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008).

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  • ndice

    Apresentao ...........................................................................9

    A msica na madrugada do destino uma potica musical para o sculo XXIPor Rubens Russomanno Ricciardi .......................................13Figuras...................................................................................43Notas .....................................................................................47Referncias ............................................................................74

    Da relao entre lgos e damon em Herclito: a escuta Por Alexandre da Silva Costa ...............................................79Notas .....................................................................................93

    Notao interpretativa: inveno e descobertaPor Edson Zampronha ...........................................................97Notas ...................................................................................116Referncias ..........................................................................118

    Filosofia, psicanlise, msica: tema e variaesPor Maria de Lourdes Sekeff .............................................121Nota ...................................................................................136Referncias ..........................................................................137

    Sobre os autores ..................................................................138

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    Quatro ensaios sobre msica e filosofia

    APRESENTAO

    Nos dias 16 e 17 de novembro de 2007, pela USP de Ribeiro Preto, havamos organizado o Colquio Msica & Filosofia, com a presena de vrios msicos e filsofos abordando questes filosficas da msica, num fecundo encontro entre msicos leitores de filosofia e filsofos ouvintes de msica. quela altura, a Profa. Dra. Maria de Lourdes Sekeff (1934-2008) estava encarregada do posterior processo editorial. No entanto, seu inesperado falecimento interrompeu este processo. Passados estes poucos anos, este livro foi por ns retomado e organizado e se transforma agora numa homenagem pstuma to emrita pesquisadora da msica e de suas interfaces, como ainda traz luz os ensaios inditos daquele colquio:

    1) O ensaio Msica na madrugada do destino uma potica musical para o sculo XXI, de Rubens Russomanno Ricciardi, trata de conceitos fundamentais que envolvem os ofcios de compositor (poesis), intrprete/executor (prxis) e pesquisador em msica (theoria). Em especial se estuda os processos inventivos em msica, j que este ensaio tem por objetivo tambm a proposta de caminhos para a fundao e o estabelecimento de um Bacharelado em Composio pela USP de Ribeiro Preto (DM-FFCLRP). Neste contexto, os estudos panormicos de potica musical abrangem fontes desde a literatura pr-socrtica at os principais problemas do

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    ofcio do compositor neste incio do sculo XXI. Da o ensaio de uma postura crtica e j com o devido distanciamento em relao s principais questes ideolgicas que envolveram a msica no sculo XX.

    2) No ensaio Da relao entre lgos e damon em Herclito: a escuta como definidora do homem, Alexandre Costa trabalha com a hiptese de que, em Herclito, a relao entre o homem e o lgos d-se por meio de uma escuta. Desta relao origina-se um espectro de audio humana que guarda incontveis possibilidades, desde a mais absoluta surdez at a homologa, a audio perfeita. Cada um dos pontos desse amplo espectro determinado pelo modo, mais ou menos afinado e desafinado, com que ouvimos o lgos. esse modo que define o nosso damon: segundo o filsofo de feso, o modo da nossa escuta que determina o que cada um de ns , particularmente, assim como ouvir o lgos a condio ontolgica que distingue o thos do homem, universalmente.

    3) Em Notao Interpretativa: Inveno e Descoberta, Edson Zampronha estabelece o dilogo entre msica e filosofia atravs da noo de representao, especificamente atravs da notao musical que, ao ser observada atravs de um ngulo novo, produz informaes surpreendentes. Este ngulo novo parte da clssica separao de notaes musicais proposta por Charles Seeger, que as divide em prescritivas e descritivas. Zampronha introduz um terceiro tipo a esta classificao, que denomina interpretativo, e analisa as conseqncias que este terceiro tipo trs msica. Alm disto,

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    realiza uma demonstrao de como esta classificao nova pode ser aplicada na prtica para a obteno de resultados originais. Esta aplicao prtica revela com entusiasmo o quanto a adoo deste tipo interpretativo de fato uma lente eficiente que permite enxergar coisas que antes no se via, especialmente no que se refere ao intrincado e complexo modo como se relacionam pensamento composicional e notao musical.

    4) O ensaio Filosofia, Psicanlise, Msica: tema e variaes, de Maria de Lourdes Sekeff, tem como pergunta fundamental saber se h inconsciente na msica, e como pode ser detectado. Para responder a esta questo, Sekeff primeiro prepara o contexto de sua resposta comparando os sujeitos cartesiano e freudiano, afirmando que no caso do sujeito freudiano a produo de verdades realizada no no registro do pensamento, e sim nos registros do inconsciente e do desejo. Em seguida, entendendo por linguagem tudo aquilo que serve para expressar nossa interioridade, verifica que msica de fato linguagem, mostrando que os significantes desta linguagem so particulares ela. Neste sentido, pergunta se existe efetivamente inconsciente na msica. Respondendo afirmativamente a esta questo, a Profa. Sekeff passa a demonstrar de que forma este inconsciente se expressa. Esclarece, no entanto, que este inconsciente comparece em expresses musicais sem qualquer significado, embora rico em operaes analgicas e com elementos que escapam ao domnio racional. Esta original reflexo sobre o inconsciente na msica revela-se um estudo frtil e inovador, que abre as portas a uma viso muito original sobre a msica.

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    Por fim, gostaramos de agradecer ao Departamento de Msica da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Ribeiro Preto da Universidade de So Paulo (DM-FFCLRP-USP) e ao seu Ncleo de Pesquisa em Cincias da Performance em Msica (NAP-CIPEM), vinculado Pr-Reitoria de Pesquisa da USP, pelo imprescindvel apoio s pesquisas, bem como consolidao deste projeto editorial.

    Prof. Dr. Rubens Russomanno Ricciardi (Professor titular do Departamento de Msica

    da FFCLRP-USP e coordenador cientfico do NAP-CIPEM)

    Prof. Dr. Edson Zampronha (Professor especialista no Conservatrio Superior de

    Msica de Astrias e professor consultor na Universidade Internacional Valenciana)

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    A msica na madrugada do destino uma potica musical para o sculo XXI

    Por Rubens Russomanno Ricciardi(Professor titular da FFCLRP-USP)

    Deixando de lado o par prtica e teoria, procuramos chamar a ateno para o fato de que so pelo menos trs os fundamentos das atividades musicais. Relacionamos assim os trs principais ofcios da msica: 1) composio (ofcio do compositor), 2) interpretao/execuo (ofcio do instrumentista, cantor e regente) e 3) musicologia (ofcio do pesquisador em msica). Retomamos o trio de conceitos , e (potica, prxis e teoria) h muito esquecidos pela opinio pblica. Nota-se que a potica s muito raramente consta do vocabulrio de hoje em dia. Mas afinal, o que ser esta potica em msica, que requer tanto teoria como prtica, mas que transcende a ambas, contemplando uma atividade prpria de sua essncia?

    Para o estabelecimento de uma potica musical possvel para o sculo XXI procuramos re-analisar contedos e conceitos histrico-filosficos, pois, como afirmou Immanuel Kant (1724-1804), pensamentos sem contedo so vazios, convices sem conceitos so cegas (1781, A51). Mas justamente para penetrarmos com o devido distanciamento crtico em nossa contemporaneidade, no buscamos conceitos fundamentais na Idade Moderna, mas sim, pelo menos boa parte deles, na Antiguidade greco-romana. Alguns deles, os mais importantes, buscamos na Grcia pr-socrtica. Trata-se da essncia grega daquilo que todos ns artistas de qualquer parte do mundo somos

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    enquanto descendentes da tragdia grega. Afinal, foram os gregos que inauguraram a possibilidade no s do Dasein1 artstico, mas tambm do Dasein filosfico e cientfico. Por meio da assinatura do autor os gregos inventaram as artes, a filosofia e as cincias para alm da cultura2 e do culto religioso. Segundo Heidegger, grego, no nosso modo de falar, no designa uma peculiaridade tnica ou nacional, nenhuma peculiaridade cultural e antropolgica; grego a madrugada do destino... (2012 [1946], p.389).

    Composio - em msica

    Podemos conferir equivalncias com nossos verbos produzir, fazer, fabricar, inventar, compor.3 A potica (ou poitica, pois se trata do ensino da ), neste sentido primordial, compreende ao mesmo tempo a concepo (projeto, programa, manifesto normativo) e a produo (composio, realizao da escritura) da obra de arte. O conceito vlido no s para a poesia, mas tambm para todas as artes, incluindo-se a msica. Tudo que envolve o trabalho de um compositor sua potica musical. Dos trs ofcios da msica a composio a atividade mais artstica em sua essncia. Segundo Adorno, a composio, em todos os tempos, sempre decide sobre a posio da msica (1975 [1949], p.9). E se Friedrich Hlderlin (1770-1843) dizia que o que permanece, inauguram os poetas (apud HEIDEGGER, 2003 [1950/1959], p.132), o mesmo procede com os compositores. Cada grande compositor tambm inaugura a histria. Portanto, a msica enquanto arte tambm histria em seu sentido mais essencial. Segundo Heidegger, a arte funda a histria (1960 [1935], p.80). A composio musical tanto fundamento da histria quanto inveno. Luigi Pareyson (1918-1991) enaltece o carter inventivo da arte, j que o simples fazer no basta para definir sua essncia. A arte tambm inveno. Ela no execuo de qualquer coisa j idealizada, realizao de

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    um projeto, produo segundo regras dadas ou predispostas. Ela um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer (1997 [1966], p.25-26). Justifica-se assim que Igor Stravinsky (1882-1971) tenha se definido certa vez no como compositor, mas como inventor de msica (1996 [1942], p.55). Tal definio passou despercebida e hoje ainda relacionamos mais comumente inveno figura de um Thomas Edison (1847-1931) ou de Santos Dumont (1873-1932). No entanto, o conceito bem antigo. De inventione, obra de juventude de Marco Tlio Ccero (10643 a.C.), encontra-se entre suas fontes primordiais. Oriundo da retrica latina o conceito passou posteriormente a outras reas do conhecimento. Na msica, o conceito de inveno enquanto composio inovadora remonta a ttulos de obras e prefcios do Renascimento e do Barroco, como as Inventions musicales (1555) de Clment Janequin (1485-1558). Entre outros, Johann Sebastian Bach (1685-1750), na introduo de uma entre suas obras didticas mais significativas, as Invenes a duas vozes (Leipzig, 1723), tambm pensava na importncia do conceito de inveno para a composio musical:

    Para que seja mostrado de maneira clara queles que tm amor pelos instrumentos de teclado e, em especial, queles que desejam ampliar o conhecimento, para que aprendam de maneira boa e correta a trabalhar no apenas (1) com duas vozes, mas tambm consequentemente aps a continuidade dos progressos, (2) para lidar com trs vozes todas elas escritas, e, ao mesmo tempo com isso, no obtenham apenas boas invenes, mas sim tambm, por si prprios, desenvolvam bem o mais possvel uma maneira cantabile de se tocar e simultaneamente um forte gosto pela composio (BACH, 1978 [1723], p.IV).

    Bach conferia importncia no s boa formao geral do aluno de msica e devendo este aprender por si prprio, ou

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    seja, s iniciativas de aprendizado, como ainda ampliao do conhecimento condicionado ao estudo incessante. Associando a composio enquanto inveno interpretao/execuo - ao estabelecer relaes evidentes com o processo notacional e o carter grafocntrico (centrado na escritura) do 4 musical - Bach articulava ainda conjuntamente teoria e esttica musical.Passados quase 300 anos, so estes mesmos exatos princpios bachianos que seguimos aqui. J Herclito a origem do , conceito este que remonta a vrios fragmentos5 seus. Sobre o sentido grafocntrico do h que se lembrar de Jacques Derrida (1930-2004). A este filsofo francs remonta o conceito de criture (DERRIDA, passim, 2005 [1967]). Para que possamos compreend-lo, vamos citar uma definio elaborada por Srgio Paulo Rouanet (*1934):

    Para Derrida, preciso desconstruir o mito fonocntrico, mostrando que no a voz (oralidade) que primria, e sim a escrita, a criture, que esta que est na origem de toda linguagem. A escritura no secundria, mas original. No um veculo de unidades lingusticas j constitudas, mas o modo de produo que constitui essas unidades. A escrita, neste sentido amplo, significa toda prtica de diferenciao, de articulao, de espaamento. A palavra-chave diferena. A criture, no sentido de Derrida, a atividade mais primordial de diferenciao, e por isso que est na origem de toda linguagem, conjunto de unidades cujo sentido dado exclusivamente por seu carter diferencial com relao a todos os demais signos (ROUANET, 1987, p.242-243).

    No h dvida de que uma mesma ideia de criture enquanto alicerce para a inveno musical e diferena intrnseca na linguagem da obra de arte j era salientada por Bach quando se referia importncia das vozes todas elas escritas - ou ainda, numa outra traduo mais literal, da execuo obrigatria das

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    partes6 (obligaten Partien). Mas estamos afirmando com isso que a obra de arte musical impossvel sem a partitura?Chegamos a tanto? No, porque a grafia musical s foi se aperfeioando medida que o experimento sonoro tambm sempre se renovou mesmo por intermdio de improvisos sem qualquer submisso a priori escritura. As relaes entre composio e performance7, tanto quanto entre escritura e interpretao/execuo, so sempre j indissociveis, de tal modo que no se pode estabelecer qualquer hierarquia - no obstante a essncia do ofcio do compositor centrada na escritura musical.

    Voltando questo da inveno, ainda naquela poca (primeira metade do sculo XVIII), numa perspectiva no to pragmtica quanto Bach, mas de modo algum menos filosfica, Antonio Vivaldi (1675-1741) publicava seu Opus VIII (Amsterd, 1725), no qual esto contidas os concertos As quatro estaes, com o sugestivo ttulo Il cimento dellarmonia e dellinvenzione (O confronto da harmonia e da inveno). Submetida prova da harmonia, a inveno confirma a sua soberania. A ordem e a liberdade saem unidas desse confronto, desse fecundo cimento (CAND, 1990 [1967], p.132). Vivaldi, inspirado quem sabe em Herclito, compreende confronto do mesmo modo enquanto 8 , evidenciando o conflito musical entre natureza (harmonia mundi enquanto 9) e linguagem humana ( enquanto inventio). Todo grande artista sempre j um David ou mesmo Dom Quixote, enfrentando o cosmo com sua inventio.

    Vamos abordar agora a questo da linguagem em msica. Alm da poesia e literatura - literalmente as artes de linguagem - abordamos sempre j a questo da linguagem na msica por meio de uma metfora, assim como nas demais artes. Numa frase atribuda a Simnides de Cos (557/556 - 468/467 a.C.) temos um exemplo de como so antigas as metforas entre as linguagens artsticas: a pintura uma poesia silenciosa e a poesia uma pintura que fala (apud DETIENNE, 1988 [1967],

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    p.56). A metfora se faz presente e nas artes j sempre vigora a linguagem. por isso que pensamos tambm a msica enquanto linguagem tal como a poesia. Numa perspectiva heideggeriana, a linguagem no apenas e nem em primeira linha uma expresso sonora (palavra falada) ou escrita (palavra impressa) daquilo que deve ser comunicado. A linguagem promove aquilo que se pretende difundir no apenas com palavras e frases. Tal como a arte, a linguagem sempre essencialmente poesia. E a essncia da poesia est presente em todas as artes. A arte, em sua essncia indissocivel, como origem, da obra de arte e do prprio artista (ver HEIDEGGER, 1960 [1935], p.7-8), desdobra-se como linguagem entendida na presena inventiva e diferenciada da existncia humana.

    E com quais condies tcnicas o compositor elabora os caminhos de sua linguagem musical? Numa perspectiva heideggeriana, entendemos a questo da tcnica no na forma redutiva de um meio para um fim ou de um mero instrumentum, mas sim sempre j enquanto 10. Nesta perspectiva o compositor trabalha com pelo menos trs condies em seu ofcio essencialmente vinculadas umas s outras: o carter operativo do arteso, a singularidade solitria e a exposio de mundo. Mesmo que esta diviso no deva se estancar em limites fronteirios por demais rgidos, certa epistemologia11 se faz necessria. Justificamos tal necessidade epistemolgica com Ludwig Wittgenstein (1889-1951): mesmo sendo o mundo infinitamente complexo, de tal modo que cada fato consista infinitamente de muitos estados de coisas e cada estado de coisas seja composto infinitamente por muitos objetos, ainda assim h que haver objetos e estados de coisas (1963 [1918], 4.2211 / p.49). No propomos uma viso meramente romantizada12 sobre o ofcio do compositor. No obstante os acadmicos relativistas13 desdenharem qualquer proposta construtiva ou definidora em arte, este justamente o caminho que trilhamos. Talvez seja

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    o momento de repensar quais as verdadeiras condies para um compositor exercer seu ofcio. H aqueles que afirmaram ter orgulho em escolher uma m esttica para os alunos de composio, se em compensao der a eles um bom aprendizado de artesanato (SCHNBERG, 1986 [1911], p.6). Esta ideologia gerou alguns resultados desastrosos em Darmstadt14 e continua gerando em seus ltimos epgonos15 ainda hoje. Est claro que houve certa precariedade filosfica na gerao dos compositores da vanguarda16 autoproclamada. Permaneceram na superfcie de uma autoidolatria tanto excntrica quanto excludente. Assim, esqueceram do mundo. No por menos que tambm o mundo se esqueceu deles. J outros, mesmo que de modo diverso, mas tambm com receitas redutivas para o triunfo da arte, citam a espontaneidade do artista, seu talento nato ou sua inexplicvel genialidade. Em ambos os casos as solues apresentadas so insuficientes. Mesmo que no tenhamos qualquer pretenso de subestimar todo um enigma que sempre envolve os processos inventivos na arte, ainda assim, alm da percia do arteso e da inspirao espontnea do artista, existem tarefas tanto exaustivas quanto incontornveis de percepo crtico-filosfica por parte do compositor.

    Tambm no pretendemos solucionar problemas de adequao ao mercado real de trabalho, tanto mais se tivermos em vista os trs principais obstculos composio musical hoje. Primeiro, a massificao17 da indstria da cultura18 - imperando hegemnica em todos os continentes. Em segundo, o esnobismo19 de muitas salas de concerto. E ainda, em terceiro, a dificuldade para desatrelar a msica composta neste incio do sculo XXI da j citada vanguarda autoproclamada da segunda metade do sculo XX, j h muito cansada e exaurida. Portanto, fora da indstria da cultura, sem esnobismo e j longe suficiente da velha vanguarda, idealizamos as condies no ofcio de compositor com toda liberdade na perspectiva de uma ampla mesmo que rara singularidade potica.

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    A primeira condio no ofcio de compositor diz respeito ao carter operativo do arteso, condio esta importante para o ofcio como um todo. O compositor precisa lidar com as ferramentas de trabalho e demais recursos artesanais com plena desenvoltura. Se nem todo arteso um artista, todo artista deve ser necessariamente um arteso. Como afirma Pareyson, o ofcio [de arteso] tem uma curiosa prerrogativa: pode existir sem a arte, enquanto, pelo contrrio, a arte no pode passar sem ele (1997 [1966], p.171)20. J segundo Paul Ricoeur (1913-2005), o autor [artista] o arteso em obra de linguagem (1990, p.52). Heidegger expe assim a questo:

    Os grandes artistas tm a maior considerao pela capacidade do trabalho manual. So os primeiros a exigir o seu aperfeioamento cuidadoso com base num amplo domnio. So os que mais se esforam para que haja, no mbito do trabalho manual, uma formao continuamente renovada. J se chamou a ateno para o fato dos gregos que tinham l alguma ideia sobre obras de arte utilizarem a mesma palavra () para o trabalho manual e para arte, e de designarem com o mesmo nome () o arteso e o artista. De maneira precipitada poderamos concluir que a essncia do inventar provm do trabalho manual. Acontece, porm, que a referncia ao uso que os gregos fazem da lngua (que indica a sua experincia daquilo que est em causa) deve nos levar a pensar de modo diverso. Por mais que a referncia denominao que os gregos costumavam usar para o trabalho manual e para a arte com a mesma palavra () seja comum e por mais que tal parea evidente, continua, no entanto, a ser equivocada e superficial. no quer dizer nem trabalho manual nem arte, nem, de modo algum, a tcnica no sentido atual, nem significa, em geral, nunca um tipo de realizao prtica. A palavra indica antes um modo do saber. Saber significa: ter visto, no sentido lato de ver, que significa: perceber

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    aquilo que est presente enquanto tal. A essncia do saber, para o pensamento grego, assenta sobre a , quer dizer, sobre o desencobrimento do ente (...). O artista no um pelo fato de ser tambm um arteso, mas porque tanto o elaborar de obras quanto o elaborar de artefatos acontecem no produzir que permite ao ente apresentar-se no seu Dasein (...). A denominao da arte como no implica de modo nenhum que o trabalho do artista seja apreendido a partir do trabalho manual. Aquilo que, no inventar de obras, se assemelha confeco artesanal de outro tipo. O trabalho do artista est determinado pela e em consonncia com a essncia do inventar (HEIDEGGER, 2012 [1935], p.60-61).

    Mesmo que no corresponda a um todo essencial do inventar em arte, a capacidade do trabalho manual ainda sim imprescindvel para o artista. Handwerk em alemo, know-how em ingls ou mtier em francs, assim compreendemos os conhecimentos operativos essenciais que viabilizam a . Em msica o trabalho do compositor no tratamento dos materiais musicais e sua produo a partir dos princpios de repetio, contraste e variao. Deve-se lembrar ainda de suas disposies texturais21 e estruturais na utilizao conjunta dos parmetros musicais (altura, durao, intensidade e timbre, entre outros atributos de expresso), bem como de toda sorte de articulao sucessiva e simultnea dos sons musicais, independente de qual seja o sistema musical22. Nas escolas da assim chamada msica clssica23 estes conhecimentos artesanais imprescindveis recebem nomes de disciplinas: harmonia, contraponto, orquestrao, percepo e solfejo, anlise e estudo de linguagem, forma e estruturao etc. Contudo, nos cursos de composio por este mundo afora, raramente uma proposta curricular ousa se aventurar para alm destes primeiros passos. como se esta primeira condio fosse nica no ofcio de compositor. Ser mesmo? Se assim o fosse, como na tradio da 24, seramos apenas eruditos25 e

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    acadmicos, mas no artistas. Se assim o fosse, para se tornar artista bastaria frequentar uma escola. como se a essncia da arte fosse algo para ser explicado e compreendido em lies didticas. Mas a grande arte nos exige mais que isso. Na arte da msica h algo que sempre j se encontra alm de uma mera escolaridade artesanal ou dos ensinamentos em sala de aula.

    A em msica se configura no apenas pelos procedimentos operativos do arteso e seu engenho, mas engloba questes que no so menores envolvendo a linguagem musical como um todo. No carter operativo do arteso de toda arte se incluem relaes com a em procedimentos evidentemente poticos, tanto abstraes quanto concretudes, nas mais variadas formas de analogia, imitao, citao, parfrase, sintaxe e polissintaxe, smbolo, alegoria, metfora, pardia e ironia, entre outras possibilidades.

    As ferramentas artesanais esto a servio da linguagem e cada linguagem requer maneiras diversas no uso destas ferramentas. H a um detalhe importante. A linguagem no pode nem deve estar a servio de uma ferramenta. Assim se justifica a crtica de Adorno contra Rimsky-Korsakov (1844-1908), por este ter corrigido a harmonia [da pera Boris Godunov] de [Modest] Mussorgsky [1839-1881] de acordo com as regras de conservatrio (ADORNO, 1975 [1949], p.129). Rimsky-Korsakov talvez no tenha compreendido as questes de linguagem propostas por Mussorgsky. Na verso original da pera j se encontrava devidamente resolvida tanto uma concepo de harmonia como de orquestrao no contexto inequvoco do estilo musical do prprio Mussorgsky. No estamos falando que este seja melhor que aquele, mas apenas que so diferentes. E, neste caso, Rimsky-Korsakov agiu contra a diferena, aniquilando um fundamento da arte.

    Vamos a outro exemplo, que s por acaso envolve este mesmo compositor russo. A questo a seguinte: os

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    Princpios de orquestrao (1 ed. 1913) de Rimsky-Korsakov seriam recomendados para servir como referncia na escritura de qualquer msica composta para orquestra desde ento? Claro que no, pois se este livro importante no contexto da prpria msica de Rimsky-Korsakov, j se encontra aqum das dimenses de orquestrao mesmo de Stravinsky, seu aluno mais ilustre. Aprender a lidar com uma ferramenta de trabalho (como as convenes escolares de harmonia e contraponto, como um manual qualquer de orquestrao) como uma escada que se usa para subir. Uma vez no alto (quando se atinge o domnio da linguagem), j se pode prescindir da escada. Friedrich Nietzsche (1844-1900) exps assim o problema: Foram degraus para mim, e eu subi por eles para tanto, tive que passar por cima deles. Ainda que pensassem que eu queria descansar sobre eles... (2009 [1888], p.29). Wittgenstein ainda mais incisivo: ele tem que jogar a escada fora, aps ter subido nela (1963 [1918], 6.54 / p.115). Em cada linguagem musical, cuja posio na hierarquia ser sempre superior em termos de arte, temos sempre j propostas singulares de harmonia e sistema, contraponto, orquestrao, formas e estruturas. Estas ferramentas, como os degraus de uma escada, devem ser entendidas em sua finitude histrica, localizadas em determinado contexto estilstico e cuja transposio ser sempre algo forado. Saibamos ento apreciar as diversas formas de escaladas que existem por a, para depois construirmos uma linguagem que seja reveladora, alando voo prprio e sem obrigaes que impliquem no apoio direto dos degraus de uma escada. Falamos assim de uma essncia tanto enigmtica quanto paradoxal da msica, envolvendo disciplina e liberdade. E se a primeira condio tem a ver com disciplina, j a segunda, num evidente conflito insolvel, diz respeito a um exerccio de liberdade. Vamos a esta agora.

    A segunda condio no ofcio de compositor, relacionada sua fantasia inventiva (enquanto capacidade de imaginao),

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    tambm o alcance de uma singularidade solitria em sua . Podemos afirmar que a msica s se d na singularidade solitria da obra. Para alm de qualquer concepo romntica ou simbolista do sculo XIX, no sentido primordial grego que falamos de uma singularidade solitria enquanto 26. Portanto, tambm no estamos pensando aqui no novo enquanto categoria modernista, j que o novo ex nihilo, ou seja, o novo absoluto, a inveno artstica a partir do nada, s houve quem sabe nos momentos primordiais da tragdia grega. Desde ento, tudo que fazemos em arte sempre uma nova nota de rodap s obras de squilo (525-456 a.C.), Sfocles (ca.497-405 a.C.) e Eurpedes (ca.480-406 a.C.). Queremos afirmar, contudo, que a obra de arte no se configura numa mecnica automatizada ou reproduo em srie. No segue qualquer padronizao redutiva nem regras pr-estabelecidas, j que no h regras que possam garantir a obra de arte. Consta do Dicionrio Kantiano (Kant-Lexikon, 1916), de Rudolf Eisler27 (1873-1926), uma definio tanto concisa quanto instigante no verbete regra esttica: no se pode presumir que diante dos olhos do artista tenha pairado uma regra para [a composio ou de] sua obra (Kritik der Urteilskraft, 45 - textlog.de/33183.html). O processo, contudo, dialtico. Superam-se regras anteriores, mas tambm se propem novas. Um certo Zdislas Milner advertiu que o facto duma obra se afastar de preceitos e regras aprendidas, no d [toda] a medida do seu valor (apud ANDRADE, 1979 [1921], p.17). Neste incio do sculo XXI, com o devido distanciamento crtico, podemos reler da seguinte maneira: no obstante o projeto conceitual de algumas galhofas modernistas, no se produz obra de arte apenas com irreverncia. Irreverncia de um lado, estruturalismo ensimesmado de outro, quem sabe tenha faltado nos modernistas uma perspectiva histrica mais inclusiva bem como uma maior integridade do logos. Ou seja, na velha vanguarda autoproclamada ocorreu no raramente galhofa sem melancolia e sistema sem

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    integridade. Estamos aludindo quele aforismo de Machado de Assis (1839-1908), no primeiro pargrafo de suas Memrias pstumas de Brs Cubas (1880), uma obra composta com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Num contraponto galhofa, a melancolia de Machado de Assis um mergulho nos abismos do mundo da vida. A vanguarda autoproclamada da segunda metade do sculo XX, por sua vez, jamais fora suficientemente radical para atingir tais profundezas. Permaneceu muitas vezes na superfcie da lgica de sistemas. Neste contexto, a posio crtica de Nietzsche mais parece uma profecia: eu desconfio de todos os sistemticos e me afasto deles. A vontade de sistema denota falta de integridade (2006 [1888], p.26). Portanto, mesmo que estabelea incontornveis relaes sistemticas28, a msica enquanto grande arte no se submete lgica de um sistema, quer seja um sistema artesanal (como, por exemplo, o serialismo integral) ou ideolgico (como a indstria da cultura). Lembremo-nos ainda uma vez de Herclito. Em sua utilizao do conceito de (que significava msica, j que quela altura nem sequer havia a palavra ), h sempre um confronto, um conflito, uma tenso, um desvelar daquilo que se esconde por natureza: harmonia inaparente mais forte que a do aparente (Fragmento 54). Entendemos deste fragmento de Herclito que a harmonia inaparente a verdade singular reveladora () do artista compositor, aquilo que estava oculto e est sendo revelado. A inveno. Algo que jamais ser refutado. Nada tem a ver com refutaes. J a harmonia aparente se reduz lgica de um sistema. No o sistema que possa ser inventado enquanto singularidade, mas aquele cuja reiterao se torna padronizada, seja na academia ou na indstria da cultura.

    Na escola de Arnold Schnberg29 (1874-1951) falava-se da emancipao da dissonncia. Neste incio do sculo XXI, podemos falar da superao da lgica de um sistema30. sempre esta questo que diferencia todos os grandes compositores desde

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    pelo menos o surgimento da polifonia (infelizmente no h partituras gregas que tenham sobrevivido aos tempos para que se possa estender retroativamente esta anlise at a Antiguidade).

    Em Mozart podemos ter um exemplo da lgica de um sistema e sua superao. Na Figura n1 alteramos as funes harmnicas e a disposio do acompanhamento para representar o que seria uma escritura trivial de sua poca. Na Figura n2 mantemos o original de Mozart, com sua superao da lgica de um sistema e suas funes harmnicas surpreendentes, bem como a linha inusitada do baixo, num movimento meldico que transcende a ideia de um simples acompanhamento a tal harmonia inaparente de Herclito.

    Vejamos ento um segundo caso mais recente. O incio da abertura da pera Tristan und Isolde (1859) de Richard Wagner (1813-1883) Figura n3 - acaba sendo referncia para a ironia do incio do Prlude laprs-midi dum faune (1894) de Claude Debussy (1862-1918) Figura n4. Como ocorre a superao da lgica de um sistema aqui? Tal como na hiptese da emancipao da dissonncia? De nenhuma maneira. Aludindo escala de tons inteiros, Debussy efetua uma nova resoluo do Acorde de Tristo, apenas agora de tal modo transfigurado, que j no se reconhece a fonte original wagneriana, no obstante o mesmo desfecho num acorde maior com stima. Um sistema que se alimenta de outro, mas num conflito insolvel que une e distingue. Tais fatos provam que no a antinomia consonncia ou dissonncia que decide, pois estas so sempre j contextuais, mas sim a superao da lgica de um sistema. Neste sentido, a ideia da emancipao da dissonncia no passa de um engodo.

    A origem desta confuso talvez esteja em Pitgoras de Samos (sculo VII a.C.), quem sabe o precursor das cincias emprico-matemticas. Na Escola de Pitgoras a harmonia est diretamente relacionada afinao musical e s propores numricas dos intervalos musicais. Os pitagricos se preocuparam, em especial,

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    com o estabelecimento das consonncias ditas matemticas. Entenderam a matemtica enquanto fundamento determinante da harmonia musical. Esta concepo pitagrica prevaleceu ao longo dos sculos. J em Herclito, talvez o precursor dos estudos que envolvem os conflitos enigmticos da existncia e linguagem humanas, temos uma dimenso maior e mais crtica da harmonia enquanto processo de elaborao de linguagem por meio de seu novo conceito de . Nos fragmentos de Herclito, o no est subordinado matemtica. Segundo Wittgenstein, a matemtica um mtodo lgico. As sentenas da matemtica so igualdades, ou seja, sentenas aparentes. A sentena da matemtica no expressa qualquer pensamento. (...) A lgica do mundo, que mostra as sentenas da lgica em tautologias, mostra a matemtica em igualdades (1963 [1918], 6.2-6.22 / p.102). por isso que as funes de verdade na lgica (na matemtica) no so funes materiais (ibidem, 5.44 / p.71). No dizem nada, no tm contedo. Desse modo, no so as propores matemticas que determinam a priori os enigmas da linguagem. As supostas consonncias e dissonncias so sempre j contextuais em meio a uma complexidade de elementos constituidores de uma fecunda tenso entre movimentos contrrios. Segundo Herclito, o contrrio convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia (Fragmento 8). Aristteles (Do mundo, 5.396b 7) confirma o quanto o conceito de harmonia representa uma questo musical essencial em Herclito:

    A msica mescla notas agudas e graves, longas e curtas, realizando, de diferentes sons, uma inequvoca harmonia; a gramtica mescla vogais e consoantes e, a partir disso, compe toda sua arte. O mesmo dito tambm pelo obscuro Herclito: conjunes: completas e no completas, convergente e divergente, consonante e dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas (Fragmento 10).

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    A mesma concepo de confronto em Herclito - sempre j uma questo maior do , da linguagem estende-se tambm para a tenso, como j mencionamos aqui, entre a lgica de um sistema (que ele chama de harmonia aparente) e sua superao por meio de uma singularidade reveladora (harmonia inaparente). Podemos concluir que, se na arte ocorre uma maior possibilidade de transcendncia do ser humano, a tarefa da linguagem artstica justamente ultrapassar a lgica constituda de um sistema.

    Temos ainda o exerccio de imaginao do inexistente por parte do compositor, mesmo quando se possa chegar to somente a um novo contexto para velhos materiais musicais. Lembremo-nos, por exemplo, do incio do poema sinfnico Also Sprach Zarathustra (1896) de Richard Strauss (1864-1949), quando toda uma monumentalidade da linguagem musical se arquiteta sobre as mais banais funes harmnicas (em D maior na funo de Tnica, mas inicialmente com a quinta vazia sem tera, depois nas articulaes sbitas do modo maior para o modo menor e de menor para maior, e ainda depois to somente com as funes de Subdominante, Subdominante menor com sixte ajoute, Tnica com quinta no baixo, Tnica Paralela, Dominante e Tnica) Figura n5. Estava tudo ali por natureza, mas a verdadeira harmonia se encontrava ainda sim escondida, s revelada ento de forma singular pela orquestrao e pelas tenses provocadas pelo espaamento temporal. Estamos afirmando que devemos ter Richard Strauss como modelo para a msica de hoje? Est claro que no. Apenas que os caminhos para a msica de nosso tempo no podem mais ser trilhados por meio de um nico sistema fechado. Vivenciamos hoje tempos de dilogos abertos. Em msica isso se traduz no s por sistemas abertos, mas tambm por dilogos entre sistemas.

    Neste caso ocorre algo que nada tem a ver com um ecletismo gratuito, nem vale tudo e muito menos que tudo seja relativo, pois a questo da verdade (ainda mais se pensarmos com

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    maior profundidade a ) no um problema particular de cada um. Lembremo-nos da advertncia de Herclito: embora sendo o lgos comum, a massa vive como se tivesse um pensamento particular (Fragmento 2). Da tambm nossa tentativa epistemolgica de universalizao, para talvez procurar recuperar a dignidade do ofcio de compositor na arte da msica. Temos em vista acima de tudo o trabalho com as novas geraes de alunos, quem sabe poder despertar neles um esprito crtico, j que o espao perdido em especial para a indstria da cultura nos ltimos anos no deixa de ter sido brutal.

    A terceira condio no ofcio de compositor a exposio de mundo. Trata-se das questes alm-msica, as chamadas referncias externas que configuram a autonomia relativa do material musical - mesmo que as questes do mtier interno da msica sejam por si s apaixonantes e inesgotveis. Falamos aqui que a obra musical culmina na exposio de mundo enquanto interao existencial. Heidegger define neste mesmo sentido o Dasein - um dos conceitos centrais em sua filosofia. A obra musical no se configura apenas no mtier e na capacidade inventiva do compositor, mas acima de tudo linguagem enquanto morada do ser: e em ideais contextuais de beleza. Segundo Bernard Chapman Heyl, a noo de belo suficientemente ampla para qualificar qualquer obra de arte bem realizada (texto original de 1943, apud ABBAGNANO, 1998 [1960], p.367). Na msica h inmeras possibilidades de confrontos e sentimentos (31) em meio finitude humana sempre j historial. A exposio de mundo tambm a paisagem que a grande msica sempre proporciona, numa dialtica sem sntese entre o concreto e o abstrato. Esta uma diferena entre Herclito e a dialtica de Hegel. Em Herclito a harmonia um confronto constante e no h conciliao algo talvez mais instigante para a arte ainda hoje. So na msica tambm as incontornveis relaes entre e , como diria o prprio Herclito.

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    No sculo XIX, ocorreu uma perspectiva no menos fecunda que vai durar por geraes. Heine inaugura o conceito de Lebenswelt (2005 [1833], p.575), ou mundo da vida, num contexto tanto pictrico quanto musical, enaltecendo de maneira otimista a fora proponente da vida humana, mesmo que simultaneamente revele com sarcasmo seus lados mais sombrios. J Nietzsche afirma que a arte o maior estmulo para a vida: como se poderia entend-la como sendo sem propsito, sem finalidade, apenas lart pour lart? (2009 [1888], p.104) - e ainda que o existir e o mundo s se justificam eternamente como fenmeno esttico (apud SAFRANSKI, 2005 [2000], p.63). Talvez seja neste mesmo sentido que, segundo Wittgenstein, o mundo e a vida so um s (1963 [1918], 5.621 / p.90). A mesma relao mundo/vida (Lebenswelt) se torna ainda um conceito central na obra de Edmund Husserl (1859-1938), em que se coloca as questes sobre sentido e falta de sentido deste Dasein humano como um todo (1976 [1935]). Um dos maiores legados que o Romantismo e logo aps tambm a gerao dos filsofos da vida nos deixaram foi este conceito de Lebenswelt. Se havamos falado da exposio de mundo, poderamos falar tambm da exposio de mundo da vida, pois no h como apartar a vida do mundo exposto pela obra de arte. A msica enquanto linguagem artstica , acima de tudo, uma instituio humana. Justamente por isso, so pobres de mundo as obras que ficam encerradas em tecnicismos redutivos, mesmo hermticos, como se a autonomia do material musical fosse absoluta. o trabalho de Ssifo de se tentar resolver questes musicais restringindo-se to somente s prprias questes musicais: ser sempre um esforo intil. Neste caso, a viso do artista se torna miopia. No devemos esquecer que os caminhos da msica se encontram, no raramente, fora da msica.

    Tendo-se em vista as referncias externas da msica, tratamos aqui, acima de tudo, de um encaixe crtico-contextual da

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    obra, pois o artista, numa perspectiva brechtiana, no pode deixar de perguntar sobre as complexas relaes no mundo em que vivemos: o que ? como ? de onde vem? a quem serve? Marx diria que se faz necessria uma crtica ideologia. Se o conceito de ideologia remonta a um Zeitgeist32 francs do final revolucionrio do sculo XVIII, no significa que antes sempre j no houvesse, mesmo sem possuir este nome, a questo ideolgica na arte. O mesmo vale para outros conceitos, igualmente neologismos, que tambm surgiram naquele mesmo exato momento, tais como esquerda poltica, direita poltica (e se ambos so anteriores a Marx e ao socialismo, por que ento no mant-los tambm aps Marx e a queda do socialismo?), vanguarda, banalizao e ainda terrorismo. Todos estes conceitos remontam ao Zeitgeist da Revoluo Francesa (1789) e do perodo logo seguinte de Napoleo Bonaparte (1769-1821), que afinal, ao lado da Revoluo Industrial, inauguraram vrios dos fundamentos da modernidade. Mas, desde os primrdios dos tempos, sempre houve prxis tanto revolucionria quanto reacionria na poltica, alternativas de uniformidade ou de diferena em meio aos projetos de arte, bem como momentos de estagnao ou descaso e ainda outros tantos de violncia extrema na sociedade. Em relao questo ideolgica, o fato que, com Marx, a fecunda hiptese de trabalho sobre a questo ideolgica passa a ser reconhecida pelos critrios de representao, dominao e distoro33, cujas origens remontam aos estudos sobre a religio de Heine34. O problema ideolgico na msica se confunde com os primrdios de sua prpria histria e no se delimita a qualquer momento em especial. Em arte nunca houve algo como iseno ideolgica absoluta, queiram ou no queiram os granfinos do esteticismo (ANDRADE, 1945, p.15).

    Na opinio pblica referente cultura - e reiteramos que, em nossa perspectiva, a arte se encontra fora da cultura -, ocorrem no raramente debates estreis em torno da identidade35 (sempre sujeita a falsificaes), da nacionalidade (como afirmamos no

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    incio deste ensaio, a arte da msica sempre j grega, sem qualquer necessidade de se criar peculiaridades tnicas ou nacionais, nem muito menos nacionalistas36), do relativismo cultural37 (se tudo relativo, at a autoridade do autor, por meio de sua obra, deixa de ser verdadeira, e, ento, a arte sucumbe diante da cultura) e do politicamente correto (nada h de mais anti-artstico e de mau gosto do que esta praga38 dos nossos tempos). O mbito da arte no pode se subjugar a tais problemas ideolgicos da atualidade.

    Ainda no macrocosmo do mundo de hoje vivenciamos situaes as mais drsticas. Ser que vale a pena elencar algumas mazelas? Podemos citar a impossibilidade de crescimento sustentvel, a degradao ambiental, o consumismo predatrio, a injustia social, a pobreza e mesmo ainda a misria, a imprensa sensacionalista e o totalitarismo da mdia39 (de modo algum um problema menor que a corrupo em geral, mesmo na poltica), a lgica oportunista do sistema financeiro, a metanarrativa do desempenho (lucro), o terror tecnocrata dos decisores40, o crime organizado em toda parte, bem como ainda o mau gosto globalizado41 por intermdio da indstria da cultura e seu agressivo marketing massificador. Ento queremos afirmar com tais premissas que a arte s pode se inspirar em graves problemas ou terrveis distores ideolgicas, tragdias humanas ou mesmo desastres causados pelos homens? Uma perspectiva excludente assim no seria menos empobrecedora. Lembremo-nos de Antonio Gramsci (1891-1937): sou pessimista com a inteligncia, mas otimista pela vontade42. No podemos subtrair da arte o sonho, em suas relaes evidentes com a utopia. Eis que uma das teses centrais de Karl Mannheim (1893-1947), numa interessante releitura de Marx, a de que as ideologias olham para trs, ao passo que as utopias olham para frente. As ideologias se acomodam realidade que justificam e dissimulam, ao passo que as utopias enfrentam a realidade e a fazem explodir43 (apud RICOEUR, 1990, p.88). Ou seja, as ideologias procuram manter

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    aparelhos de poder j estabelecidos ao passo que as utopias pretendem mudar a realidade. Em todos os casos, a morte da ideologia seria uma estril lucidez. Porque um grupo social sem ideologia e sem utopia seria sem projeto, sem distncia em relao a si mesmo, sem representao de si (ibidem, p.89), conforme reiterou Ricoeur. Localizando a distoro ideolgica, o artista se ocupa da verdade. No h grande artista no mundo que no pratique em algum momento este fecundo exerccio de utopia. o momento de sua transcendncia, uma condio para se ir alm. Provavelmente at no v melhorar o mundo, mas quem sabe sua arte se torne mais instigante. Com isso tambm no queremos afirmar que o artista deva necessariamente transmitir uma mensagem otimista. Pelo contrrio, sua potica pode ser mesmo a potica da runa, seja esta fsica, moral ou existencial. Mas o artista sempre tem uma coragem extraordinria, uma virtude, uma condio verdadeiramente nietzschiana do bermensch44, porque toda grande obra de arte carrega em si um projeto de perfeio algo distante, portanto, do cotidiano do homem mediano.

    Quando discorremos sobre a singularidade solitria da verdade na arte, acabamos por lidar com a questo da exposio de mundo, e, agora, com este tema, voltamos quele. Em Bertolt Brecht (1898-1956), por exemplo, temos a seguinte concepo sobre a tarefa contextual do artista: ele precisa ter a coragem de escrever a verdade, embora ela esteja sendo reprimida em toda parte; a inteligncia de reconhec-la, embora ela esteja sendo ocultada em toda parte; a arte em sua utilizao como uma arma; o julgamento na escolha daqueles em cujas mos ela se tornar eficaz; a astcia de viabilizar sua disseminao entre eles (BRECHT, 1966 [1920/1939], p.265). A exposio de mundo por meio da arte pode se configurar assim num fecundo exerccio de utopia. Mas, ser que com isso queremos afirmar que a obra de arte se reduz a um panfleto poltico? Jamais. O prprio Eisler, justamente ele, o compositor mais politicamente engajado de

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    todo o sculo XX, chegou a afirmar que a superpolitizao na arte leva barbrie na esttica (1975, p.155 - na sexta conversa com Hans Bunge, gravada a 18 de julho de 1961). Eisler quer aqui realar a autonomia da arte, mesmo que relativa, considerando que ela tem um campo prprio e que no pode se tornar um mero veculo poltico.

    Cabe aqui, ainda, outro tipo de advertncia. No obstante as incontornveis questes filosficas que envolvem a exposio de um mundo, mesmo a opinio de grandes filsofos pode no ser decisiva para os rumos da arte. Basta lembrarmos os inmeros casos de esttica precria em relao aos compositores de suas respectivas pocas: Jean-Jacques Rousseau45 (1712-1778) em relao a Jean-Philippe Rameau (1683-1764), Hegel46 e Beethoven ou mesmo ainda Adorno47 e Stravinsky.

    O que aludimos esttica diz respeito ao modo como percebemos a arte, percepo esta sempre complexa. E como citamos o conceito de esttica j mais de uma vez neste ensaio, talvez caiba aqui um breve parntese. Vejamos que a palavra remonta a (percepo, sensao, sensibilidade, reconhecimento, compreenso). Podemos at traduzir por estesia, cuja negao anestesia. Sexto Emprico (sculo II) (Contra os matemticos, VII, 126 - apud COSTA, 2002, p.171) aponta em Herclito a importncia da e do para o reconhecimento da verdade:

    Herclito, tendo considerado que o homem [ dotado] de dois elementos para o conhecimento da verdade, aisthsis e lgos, diz (...) que a aisthsis no confivel, e adota o lgos como critrio. A aisthsis, contudo, Herclito censura expressamente, dizendo: para homens que tm almas brbaras, olhos e ouvidos so ms testemunhas (Fragmento 107).

    Herclito conferiu uma dimenso filosfica inferior ao . Por isso tambm Heidegger jamais se refere a uma

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    esttica enquanto categoria filosfica, mas sim, concentra-se no problema maior da origem da obra de arte. Est claro porque no h uma esttica na Antiguidade grego-romana. O conceito moderno de esttica (atividade filosfica e especulativa) enquanto categoria tardia remonta ao Iluminismo (sculo XVIII). Segundo Luigi Pareyson, a esttica no uma parte da filosofia, mas a filosofia inteira enquanto empenhada em refletir sobre os problemas da beleza e da arte, de modo que uma esttica no seria tal se, ao enfrentar tais problemas, implicitamente tambm no enfrentasse todos os outros problemas da filosofia (1997 [1966], p.4). Pareyson, com toda a razo, ainda chama a ateno para a confuso que se faz frequentemente entre esttica e potica:

    A distino entre esttica e potica particularmente importante e representa, entre outras coisas, uma preocupao metodolgica cuja negligncia conduz a resultados lamentveis. Se nos lembrarmos que a esttica tem um carter filosfico e especulativo enquanto que a potica, pelo contrrio, tem um carter programtico e operativo, no deveremos tomar como esttica uma doutrina que , essencialmente, uma potica. Isto , tomar como conceito de arte aquilo que no quer ou no pode ser seno um determinado programa de arte (ibidem, p.15).

    De fato, nos jornais e revistas de hoje em dia constam reiteradamente aluses esttica de determinado artista, quando na verdade se pretende aludir ao seu estilo artstico. Ou seja, querem falar sobre sua potica, mas desconhecem este conceito, acabando por empregar mal o outro. Resumindo, para Pareyson, esttica teoria, observao, anlise, especulao, enfim, um ofcio de filsofo. J a potica ofcio de artista, que elabora seu projeto e compe (produz) sua obra.

    Mas h uma questo talvez no resolvida em Pareyson. Se por um lado, a esttica no pode ser considerada uma prerrogativa

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    exclusiva do ofcio de filsofo, j que este nem sequer goza de iseno absoluta em ideologia ou matria de gosto, por outro lado, no s o artista, como tambm o historiador e mesmo o crtico de arte sempre j se encontram atrelados a uma dimenso esttica, sua capacidade de percepo. As observaes e anlises de artistas, historiadores e crticos, entre outros, no podem ser subestimadas a priori, tal como o julgamento de Pareyson, que as considera notas esparsas... sem uma reflexo filosfica que as fecunde... [e que] elas prprias ainda no so esttica (ibidem, p.7). Na esttica musical, em especfico, h ainda outra questo que permanece aberta: a condio de um msico leitor de filosofia pode ser julgada a priori inferior quela de um filsofo ouvinte de msica? Em ambos os casos no haveria sempre um lado mais diletante e outro mais aprofundado em cada um?

    Pareyson aponta com lucidez para o fato de que os olhares [do artista] so reveladores sobretudo porque so construtivos, como o olho do pintor, cujo ver j um pintar e para quem contemplar se prolonga no fazer (ibidem, p.25). Mas no devemos esquecer que tambm o artista desenvolve um senso esttico justamente para o no fazer, rejeitando ou evitando aquilo que, aps suas anlises estticas, deve permanecer fora de sua potica, no pertencendo assim aos seus recursos estilsticos. Quando Villa-Lobos, por exemplo, afirma que logo que sinto a influncia de algum, me sacudo todo e salto fora (apud HORTA: 1987, p.22), est demonstrando uma percepo profunda da msica de seu tempo, percepo esta que no deixa de ser uma anlise (mesmo que oral e no escrita) de fato esttica. Mesmo ele, que no tinha qualquer diploma.

    Finalmente, fechado o parntese sobre esttica e voltando ao problema ideolgico na msica (mas a relao permanece, pois uma verdadeira crtica ideolgica no pode prescindir de uma anlise esttica), apenas afirmamos aqui que um suposto artista alienado48 ter maior dificuldade em cuidar da exposio

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    de mundo em sua obra. Embora a alienao (Entfremdung) seja um conceito importante para vrios filsofos, como para Marx (enquanto trabalho alienado) ou ainda Heidegger (enquanto esquecimento do ser), aqui ns pretendemos entender por alienado to somente aquele que no se interessa por problemas gerais, quer sejam poltico-ideolgicos ou sociais. Os gregos j definiam um mesmo perfil de indivduo, aquele voltado apenas a interesses particulares, chamado de - o precursor do nosso idiota moderno. E longe de ser uma pessoa de pouca inteligncia (podendo ser at bem esperto, por isso em alemo se diz Fachidiot, ou seja, idiota com conhecimento de matria), o idiota, bem como o alienado (neste sentido popular que propomos aqui), tem como caracterstica principal a mesquinhez intelectual sempre j adequada indstria da cultura.

    Mas que fique claro, por fim, no s a arte gozar sempre de uma relativa autonomia como seus caminhos so sempre multifrios - tais como aqueles da vida. O artista livre por natureza e no h tema ou assunto que lhe possa ser tabu salvo, claro, a questo do bom gosto49. Concluindo as condies do ofcio de compositor, no obstante todas estas consideraes aqui expostas, o fato decisivo que Gustave Flaubert (1821-1880), no Prface La vie dcrivian, j havia reconhecido um desequilbrio evidente em qualquer em arte. Ele indica o problema desde as origens da arte na tragdia grega: possvel que, desde Sfocles, todos ns sejamos selvagens tatuados. Mas na Arte existe alguma outra coisa alm da retido das linhas e do polido das superfcies. A plstica do estilo no to ampla como a ideia... Temos coisas demais para as formas que possumos (apud DERRIDA, 2005 [1967], p.11). Ou seja, na arte h limites no s conceituais como tambm potico-operacionais. Portanto, tudo que propomos so apenas caminhos para se construir uma postura crtica.

    Mesmo que no se pretenda aqui uma cartilha para

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    nefitos em msica, no temos qualquer pretenso de radicalismo como alguns mestres do passado. Nietzsche, por exemplo, chamava a ateno para o problema de discpulos que seguem um determinado mestre: Como? Procuras? Gostarias de multiplicar-se por dez, por cem? Procuras proslitos? Procura por zeros! (2009 [1888], p.24). E Mrio de Andrade confirma a mesma convico: Eu no quero discpulos. Em arte: escola = imbecilidade de muitos para a vaidade dum s (1979 [1921], p.32). J Machado de Assis, que jamais fora professor, na ltima frase de suas Memrias pstumas de Brs Cubas, afirma ainda: no tive filhos, no transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa misria. Se esta postura excludente de Nietzsche, Machado de Assis e Mrio de Andrade fosse levada ao p da letra, Villa-Lobos, que no teve filhos nem alunos, seria um raro privilegiado. Mas Villa-Lobos privilegiado no por isso, mas sim por ter sido o maior compositor do Novo Mundo. Nossa inteno ao escrever este ensaio, na condio de professor do Curso de Msica pela USP de Ribeiro Preto, sempre j levantar algum assunto para discusso em sala de aula. Que mal h nisso? sim para nossos alunos que escrevemos. Aos meus alunos da USP de Ribeiro Preto eu dedico este ensaio.E uma vez finalizadas estas trs condies (mas deve haver muitas outras) no ofcio de compositor, bem como alguns de seus senes, passemos agora a outra grande rea da msica: a interpretao/execuo.

    Interpretao/execuo - em msica

    diz respeito prtica, ao, aplicao, execuo, sempre j implicando uma condio de destreza. No caso do intrprete-executante em msica, a prtica vem sempre j procedida do estudo das fontes musicais, de um exame rigoroso e detalhado da partitura. Alm da escritura musical do compositor,

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    que deve ser exaustivamente estudada, h ainda o mundo da obra exposta, bem como o contexto histrico-estilstico deste mundo, sua paisagem pictrica, sua poesia. por isso que para o msico executante o constante exerccio de interpretao e ainda mais, uma atividade mesmo hermenutica, uma conditio sine qua non em seu ofcio. E da tambm sua dupla condio, tanto interpretativa como performtica. Em latim h a expresso que bem define este ofcio: mente manuque. Em 1993, fundamos o Ensemble Mentemanuque, voltado msica contempornea, tendo como princpio esta atividade de interpretao/execuo musical nas mais estreitas relaes com a pesquisa musicolgica e com a composio musical preferencialmente indita. Ou seja, ao mesmo tempo uma habilidade mental (hermenutica) e uma manual (e mais que com as mos, executando msica com o corpo num todo, tocando um instrumento, cantando ou regendo).

    Devemos lembrar que a potica (produtivo, inventivo) diferente da prtica (ao). Segundo Aristteles, h que se distinguir o que produtvel daquilo que realizvel pela ao. A produo () diferente da ao (). Assim, a disposio prtica conformada por um princpio racional diferente da disposio produtora conformada por um princpio racional. Assim, nenhuma das duas envolvida pela outra, porque nem a ao produo nem a produo ao (tica a Nicmaco, Livro VI, captulo IV, 1140a1-5 traduo de traduo de Antnio de Castro Caeiro - So Paulo: Atlas, 2009). por isso que dizemos corretamente que um intrprete performtico no tem um estilo, mas sim ele interpreta e executa o estilo de cada compositor. Eis a diferena entre composio e interpretao/execuo em msica. Mas no raramente se fala por a de um suposto estilo de intrprete ou estilo de interpretao. Como o intrprete performtico aquele que trabalha na rea das prticas interpretativas poder possuir um estilo prprio? H que se estar atento s incontornveis idiossincrasias de um intrprete-

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    performtico. Por um lado, o compositor no pode perder de vista as especificidades bem como toda possibilidade de recurso para o meio musical para o qual escreve. Afinal, na escritura musical de hoje j est mais que sugerido todo um conjunto de informaes voltado execuo50. Por outro lado, o intrprete-performtico tem uma inequvoca obrigao de fidelidade potica do compositor. Mas existe ainda sim e sempre um amplo espao por parte do intrprete-performtico para exercer seu ofcio com dignidade.

    Pesquisa musicolgica - em msica

    em sua origem um neologismo. Embora no se possa precisar qual autor o utilizou primeiramente, a data de aparecimento deste conceito coincide com o surgimento da filosofia nos sculos VII e VI a.C (mais provvel VI do que VII, ou na virada de um sculo para outro). At ento havia dois verbos relativos viso, e , indicando o fenmeno do olhar imediato. Enfim, equivalente aos nossos verbos olhar e ver. Contudo, com o aparecimento de temos o incio de um modo de viso que, ainda que dependa da viso sensvel, atravessa essa sensibilidade no intuito de penetrar agudamente no que seria a natureza () dos fenmenos. Da que originalmente a palavra significa uma da viso, uma viso analtica do concreto, aquela que pretende ver a fundo as coisas ao redor, um modo distinto do olhar51. por isso que se torna precria sob um ponto de vista tanto histrico quanto filosfico qualquer suposio hoje de uma teoria apartada do mundo real. Ela no seria nem certa nem errada. Apenas no faria sentido enquanto teoria. Neste sentido tambm, a teoria de modo algum oposta prtica, mas sim, encontra-se em oposio abstrao. Se teoria, no pode ser jamais uma abstrao ex nihilo. Abstrao umatributo da , no da . E por em msica, tendo-se em vista as origens histrico-filosficas do conceito, podemos

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    entender hoje a musicologia como um todo. A pesquisa em msica deve abranger necessariamente histria, crtica, esttica e potica, anlise estrutural, sistemas harmnicos, teoria da interpretao/execuo e edio musical, em suas evidentes relaes com as demais questes internas e externas msica, bem como com suas interfaces com outras reas do conhecimento. A musicologia trata tambm dos universos musicais, suas diferenas e interfaces. Neste amplo sentido, a pesquisa musicolgica uma atividade de estudo, essencialmente hermenutica, contemplando toda possibilidade analtica, observacional, especulativa e editorial em msica. O musiclogo se encontra ainda em meio s contradies do conflito insolvel entre cultura e arte52, analisando os processos de aculturao que j no vocabulrio de Pond se torna uma incontornvel promiscuidade cultural - bem como das manifestaes musicais em meio s mais amplas perspectivas interdisciplinares.

    Fuso de horizontes

    Finalizadas as anlises sobre as trs grandes reas da msica, podemos concluir que se deve evitar a especializao precoce por parte do estudante de msica. Deve-se estimular antes o constante exerccio de cruzamento e fuso de horizontes53 entre estas trs principais reas da msica. No vivemos num horizonte fechado, nem tampouco num nico horizonte, da a necessidade de uma compreenso transcendental, quando procuramos compreender a perspectiva do outro. Para ser mais claro, o aluno de composio deve por bem conhecer os amplos problemas da interpretao/execuo e da pesquisa em msica. O aluno das prticas interpretativas deve se inteirar profundamente sobre as questes relativas composio e musicologia. E o futuro musiclogo no poder jamais exercer seu ofcio com a devida dignidade se no conhecer em detalhes e intensamente

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    tanto a atividade do msico intrprete-performtico como aquela do compositor. Antes destas etapas no poderemos sequer falar sobre uma formao especfica de um professor de msica. E, ainda mais importante, as referncias externas msica no podem ser ignoradas, pois no h artista e/ou pesquisador de fato que no saiba pensar ou desprovido de um esprito crtico.

    Agradeo cordialmente a Susana de Souza pela leitura do original, a Cristiano Henrique Ferrari Prado pelo apoio no design das figuras e ao apoio editorial de Maria Beatriz Ribeiro Prandi e de Lau Baptista.

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    Notas

    1 O Dasein (o ser/estar a) diz respeito verdade existencial revelada, a pre-sena ou realidade humana, o ser do homem no mundo. Segundo Alexander Kojve (1902-1968), sem seres humanos o Ser seria mudo: estaria a, mas no seria o Verdadeiro (apud SAFRANSKI, 2005 [1994]).

    2 De profundidade filosfica so as palavras de Jean-Luc Godard (*1930) em seu vdeo-ensaio Je vous salue, Sarajevo, 1993: Cultura regra, arte exce-o... A regra quer a morte da exceo. Faamos aqui um pequeno estudo. Propomos uma hiptese de trabalho com duas acepes para cultura. A pri-meira, qual chamaremos de significado forte da cultura, menos utilizada. Nesta acepo (sempre assumida neste ensaio), as dimenses da cultura se restringem condio mediana da existncia humana - da tambm o fecundo significado da expresso indstria da cultura cunhada por Theodor W. Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973). Neste mesmo contexto, Martin Heidegger (1889-1976) define o homem enquanto homem mediano - que se submete cultura, na convico de que o normal o essencial, de que o me-diano, e, com isso, universalmente vlido, o verdadeiro (o eterno mediano). Este homem normal toma suas aprazibilidades como critrio para o que deve viger como sendo a alegria; seus pequeninos acessos de medo como critrio para o que deve ser o pavor e a angstia; suas fartas comodidades como critrio para o que pode viger como certeza ou incerteza. (...) Com tais juzes se pode promover um dilogo maximamente derradeiro e extremo? Quem nos garante que nesta auto-apreenso de hoje em dia o homem mediano (normal) no tenha elevado ao nvel de Deus sua prpria mediocridade? (HEIDEGGER, 2006 [1929/1930], p.27). Nesta primeira acepo, o conceito de cultura se restringe ao costume, ao hbito, ao cotidiano, norma, regra, repetio no crtica de padres e a toda forma restante de comunicao ou retrica (tanto arbitrria como manipulada), incluindo-se ainda a lgica de sistemas. Nesta acepo, a obra de arte (enquanto exceo e singularidade solitria) no pertence cultu-ra. A arte justamente uma condio rara e privilegiada (tal como a filosofia) de distanciamento crtico em relao cultura. Portanto, aqui exclumos deli-beradamente a arte da cultura. Segundo Jos Teixeira Coelho Netto, na arte tambm h regras - mas a arte no a regra, enquanto a cultura, se no for regra, nada (Teixeira Coelho, p.11). Neste primeiro significado forte no se

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    poder afirmar que algum seja culto ou inculto, pois o homem inculto, aquele desprovido de cultura ou mesmo sem cultura, em si um paradoxo, pois teramos que pensar abstratamente o homem fora de qualquer sociedade e convvio humano. Um homem que sequer saberia falar ou produzir gestos. O ser humano aqui domesticado na cultura. Contudo, a liberdade do Dasein humano se encontra alm da norma cultural. Para Heidegger, a liberdade da cultura uma liberdade cmoda, mesmo preguiosa. Quando estancada num estado de cultura, a liberdade j se perdeu (ver SAFRANSKI, 2005 [1994], p.230). J na segunda acepo, que chamaremos de significado fraco da cul-tura, defendida pelos culturalistas, justamente a mais corrente, cultura se con-funde com escolaridade, com os diferentes nveis de erudio ou instruo de um indivduo. Uma cultura geral estaria de alguma forma relacionada antiga tradio da . Aproximamos aqui o significado fraco da cultura a Ernst Cassirer (1874-1945): a cultura o transcender tornado forma, que erige a ampla casa do ser humano, mais fcil de destruir do que de preservar, frgil proteo contra a barbrie que sempre ameaa o humano possvel (apud SA-FRANSKI, ibidem). neste significado fraco que ocorre a metafsica de uma cultura humanstica. O indivduo culto seria aquele letrado, altamente sensvel ou com formao erudita. Alguns falam tambm de uma diferenciada cultura cientfica, como na tese das duas culturas de Charles Percy Snow (1905-1980). A primeira cultura seria a cultura tradicional, os no cientistas, como os literatos. J a segunda cultura seria a cultura cientfica, os cientistas pu-ros, como os fsicos, e aplicados, como os engenheiros (passim SNOW, 1995). Entendemos aqui que ambas as culturas definidas por Snow e no importa se concordamos ou no com suas teses - esto inseridas em nosso significado fraco de cultura. Nesta segunda acepo no s existem indivduos cultos e incultos, ignorantes e instrudos, como tambm a arte est inserida na cultura. A arte aqui uma mera manifestao cultural, pois tudo no s se explica como tambm se relativiza por intermdio da cultura posio esta dos relativistas da cultura. Por fim, poderamos concluir que, se no significado fraco (como em Cassirer), temos a arte de morar na cultura, por sua vez, em seu significado forte (como em Heidegger), devemos antes transformar este cho num abismo: Cassirer a favor do trabalho de conferir significado pela cultura, da obra que com sua necessidade interna e sua durao triunfe sobre a contingncia e efemeridade da existncia humana. Heidegger rejeita tudo isso como um gesto pattico. O que permanece so poucos momentos de grande intensidade (SAFRANSKI, op. cit. p.231). Ainda para Heidegger, a cultura poupa ao ser humano o confronto com sua finitude e sua insignificncia: a mais alta forma de existncia do Dasein s se deixa referir a bem poucos e ra-ros momentos de durao do Dasein entre a vida e a morte, e o ser humano s

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    em muitos poucos momentos existe no auge de suas prprias possibilidades (apud SAFRANSKI, ibidem) - e estas so exigncias no s da filosofia como tambm da arte. Heidegger pergunta e ele mesmo responde: A filosofia [assim como a arte] no ter exatamente a tarefa de entregar o homem radicalmente angstia? A filosofia [assim como a arte] deve, antes de mais nada, provocar terror no ser humano e for-lo a recuar para aquele desamparo do qual ele sempre volta a fugir para a cultura (ibidem). Apesar da crtica de Heidegger e de sua distino fecunda entre cultura e filosofia (e o mesmo vale para a arte, quando separamos arte da cultura), no podemos subestimar a importncia de instituies culturais (as universidades, as fundaes, os teatros pblicos, as leis de incentivo quando bem empregadas etc.) no raro momento em que elas funcionam como mecenas para a viabilidade do trabalho independente do ar-tista. Neste ltimo aspecto a arte depende de alguns poucos, mas essenciais procedimentos culturais. Mas que fique claro, no no processo inventivo da arte, mas sim meramente para a viabilidade de sua performance, pois jamais devemos esquecer que, por princpio, a cultura quer sempre a morte da arte.

    3Na traduo de enquanto fenmeno artstico ns exclumos no s o verbo criar, como tambm o substantivo criao e ainda o adjetivo criativo. No apenas para Toms de Aquino [1225-1274] o conceito de criao apli-cado a obras humanas pareceria blasfmia (DAHLHAUS, 1967, p.9) e, por certo, aquele santo medieval estudioso de Aristteles (384-322 a.C.) teria l suas razes para tal considerao - mas tambm porque os publicitrios e os profissionais da tecnologia gentica vm conferindo acepes no mnimo dis-cutveis ao conceito. O que h de artstico na autoproclamada criatividade da propaganda e do marketing? E ser que Deus concedeu o dom aos tecnlogos da gentica para que prossigam um pouco com a criao, quando criam, por exemplo, nossos replicantes?

    4 um conceito central em Herclito de feso (c.544-474 a.C.). Ou mesmo, a palavra das palavras em Herclito (COSTA, 2002, p.223). O con-ceito de pertence ao vocabulrio dos mais diversos idiomas, j que as tradues possveis acabam lhe conferindo um significado estreitamente de-terminado, restringindo-se assim suas dimenses originais. Podemos traduzir num primeiro sentido maior relacionado s questes da linguagem hu-mana (linguagem, enunciado, expresso, discurso, narrao, ditado, proposi-o, orao, sermo, palavra, verbo). No por menos, tem a ver com (colecionar, recolher, enumerar, bem como contar, dizer, falar, conversar, proferir um discurso ou conferncia, ler em voz alta, explicar, relatar, nomear, chamar, ordenar, declarar, avisar), e, em especial, com (dizer algo

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    significativo, enunciar). Tambm o indica os caminhos entre linguagem e pensamento (ensinamento, tratado, tema, considerao, modo, sentido, defi-nio, conceito, termo) e as dimenses do prprio pensamento. Neste segundo sentido maior e no menos importante, traduz-se o pela capacidade de discernimento por parte do ser humano (inteligncia, raciocnio, razo), en-tendido sempre j enquanto grande pensamento, para alm de qualquer razo particular. No de Herclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Herclito temos a unidade da linguagem enquanto reve- de Herclito temos a unidade da linguagem enquanto reve-lao e pensamento. No entanto, Heidegger, que se preocupou reiteradamente com este conceito primordial, restringe sua anlise ao primeiro sentido acima citado, j que se fala de uma lgica arcaica e no se pensa que s possa haver lgica no quadro da atividade escolar platnica e aristotlica (HEIDEGGER, 2012 [1946], p.373). Analisemos agora algumas das concluses de Heideg-ger, em especial para desatrelar tanto da lgica como da racionalidade: desde a Antiguidade, interpretou-se o de Herclito das maneiras mais diversas: ora como ratio, ora como verbum, ora como lei do mundo, ora como o que lgico e a necessidade de pensamento, ora como sentido, ora como razo. Sempre de novo um convite razo insiste, como o parmetro de todo fazer e deixar fazer. Mas o que poder a razo se, junto com a des-razo e a anti-razo, ela se mantm no patamar de uma mesma negligncia? Ou seja, da negligncia, que se esquece de pensar de onde provm a essncia da razo e de se empenhar por seu advento? O que poder fazer a lgica, (), de qualquer espcie que seja, se nunca comeamos a prestar a ateno ao e em seguir sua essncia originria. do que depreendemos o que o . O que significa ? Todo mundo que conhece a lngua grega sabe a resposta: significa dizer e falar; significa: , como aussa-gen enunciar, e , como o enunciado ausgesagten (HEIDEGGER, 2001b [1951], p.184).

    5 A numerao dos fragmentos de Herclito remonta aos fillogos alemes Hermann Diels (1848-1922) e Walther Kranz (1884-1960). J as tradues das fontes primrias de Herclito diretamente para o portugus sero sempre citadas aqui segundo Alexandre da Silva Costa (Herclito Fragmentos con-textualizados, 2002). Por sorte, ns lusfonos dispomos em vernculo no s destas extraordinrias tradues, como tambm deste que o mais importante e abrangente estudo crtico realizado at hoje sobre a integral dos fragmentos de Herclito em qualquer idioma.

    6 A parte na msica a execuo individual de um instrumento ou voz. Bach designou aqui por parte cada uma entre as linhas meldicas de suas invenes

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    a duas ou trs vozes, executadas sempre por um nico tecladista. Na msica de cmara ou sinfnica cada msico l em separado sua parte. J a solfa (antiga denominao em portugus para notao musical ou papis de msica) que rene todas as partes escritas pelo compositor recebe o nome de partitura ou grade. Geralmente os msicos trabalham com partes cavadas. J o compositor e depois tambm o regente com a partitura.

    7 O conceito de performance utilizado em lngua portuguesa nas mais diver-sas reas do conhecimento humano. Na msica equivale s prticas interpre-tativas. Em 2012, fomos contemplados pela Pr-Reitoria de Pesquisa da USP com o novo Ncleo de Pesquisa em Performance Musical (NAP-CIPEM), o que evidencia a importncia desta atividade em nosso Departamento de M-sica da USP no Campus de Ribeiro Preto. Aqui entendemos a performance essencialmente vinculada composio, bem como a toda possibilidade de pesquisa musicolgica, quer seja histrica, filosfica, terica ou editorial.

    8 O conceito de dos mais importantes em Herclito: necessrio saber que a guerra comum e a justia, discrdia, e que todas as coisas vm a ser segundo discrdia e necessidade (Fragmento 80), ou ainda, de todos a guerra pai, de todos rei; uns indica deuses, outros homens; de uns faz escravos, de outros, livres (Fragmento 53). Alexandre Costa justifica sua tra-duo de por guerra: preciso salientar que o sentido predominante do termo , aqui, o figurado. A guerra , portanto, menos o acontecimento concreto e hopltico do que o combate, a luta intrnseca a toda guerra e cons-titutiva de todas as oposies e anteposies a tenso que une e distingue (COSTA, 2002, p.111). Por isso, utilizamos em nossa definio de arte o sen-tido do confronto tambm como polmica de ideias, pois pode ser pensado de uma maneira mais ampla. Temos em vista, em especial, o conflito ideolgico, quando se reconhece as iluses no conhecimento humano e as distores na poltica. Lembremo-nos de Karl Marx (1818-1883) influenciado por Georg W. Friedrich Hegel (1770-1831). A influncia de Hegel foi decisiva para a elabo-rao das anlises crticas de Marx (no obstante a inexistncia do conceito de ideologia em Hegel). E o conceito de e todos demais contidos nos fragmentos de Herclito foram referncias fundamentais para que o prprio Hegel elaborasse suas teses dialticas (no obstante a inexistncia de sntese em Herclito).9 O conceito de habitualmente traduzido por natureza que vem do latim, natura, nasci: nascer, surgir, crescer, ser criado. Podemos tambm falar de uma potica da natureza, pois tambm a , o surgir e elevar-se por si mesmo, uma produo, . A at a mxima

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    (HEIDEGGER, 2001a [1954], p.16). Aristteles, no princpio das consideraes temticas da Fsica, delimita a ontologia dos [entes que existem por natureza], em contraposio com os [entes produzidos pelo homem]. Os so aquilo que, ao brotar, vm a ser a partir de si prprios; os vm a ser atravs do representar e produzir humanos (HEIDEGGER, 2012 [1946], p.375). Por fim, o conceito de , como por exemplo, em Herclito, a natureza ama ocultar-se (Fragmento 123), de fato ainda mais amplo do que hoje poderamos entender como objeto das cincias naturais (fsica, qumica, biologia etc.). Heidegger a define como a vigncia autoinstauradora do ente na totalidade. Ou seja, a enquanto este ente na totalidade no pensada no sentido moderno e tardio da natureza, mais ou menos como o conceito contrrio ao conceito de histria. Ao invs disso, ela vista como mais originria do que estes dois conceitos: ela vista em uma significao originria, que diante da natureza e da histria encerra a ambos e que tambm contm em si de certa maneira o ente divino (HEIDEGGER, 2006 [1929/1930], p.32-33).

    10 diz o que pertence . Devemos considerar duas coisas com relao ao sentido desta palavra. De um lado, no constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal, mas tambm do fazer na grande arte e das belas-artes. A pertence produo, , , portanto, algo potico. De outro lado, o que vale considerar ainda a propsito da palavra de maior peso. ocorre, desde cedo at o tempo de Plato [ca.427-ca.347 a.C.], justamente com a palavra . Ambas so palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo. Dizem ser versado em alguma coisa, dizem entender do assunto. O conhecimento provoca abertura. Abrindo, o conhecimento um desencobrimento. Numa meditao especial, Aristtoles (tica a Nicmaco, livro VI, captulos III e IV) distingue [cincia] de [arte] e justamente no tocante quilo que e ao modo em que ambas desencobrem. A uma forma de - ela desencobre o que no se produz a si mesmo e ainda no se d e prope, podendo assim apresentar-se e sair, ora num, ora em outro perfil. Tcnica uma forma de desencobrimento, vige e vigora no mbito em que se d descobrimento e desencobrimento, em que acontece , verdade (HEIDEGGER, 2001a [1954], p.17-18). Nas palavras do prprio Aristteles, a arte uma disposio produtora configurada por um princpio de verdade (tica a Nicmaco, livro VI, captulo IV, 1140a20). Hegel reitera que na arte no lidamos apenas com o meramente agradvel ou com o entretenimento til, mas sim... com o desdobramento da verdade (apud ADORNO, 1975 [1949], p.13).

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    Quatro ensaios sobre msica e filosofia

    11 Este conceito definido comumente por teoria do conhecimento, cujas razes remontam (cincia, conhecimento) e ao (discurso).

    12 comum empregarmos o adjetivo romntico para falar da ingnua nostal-gia do passado ou da sonhadora esperana do futuro (DUARTE, 2011, p.11). Torna-se uma mecnica facilitadora evitar as discusses de fato filosficas quando simplesmente se confere um ideal romntico a toda e qualquer atitude afirmativa ou proponente em arte. Mas se assim o fosse, Herclito j teria sido romntico bem antes do inventor do romantismo, que foi Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Mesmo a essncia da paixo romntica no privi-lgio do perodo romntico. Leia-se, por exemplo, esta frase extrada de uma melodia cantada: voc est comigo, morrerei feliz... ah, como seria prazeroso se assim fosse meu fim, se as tuas belas mos fechassem meus olhos fiis. No se trata aqui de um compositor romntico do sculo XIX, mas sim de Bist du bei mir (Voc est comigo), ria de Gottfried Heinrich Stlzel (1690-1749), arranjada por Bach por volta de 1725, logo aps seu casamento com a jovem cantora Anna Magdalena. Bach teria sido romntico?13 Hilton Japiassu (*1934) nos ensina que contrariamente ao que se costu-ma dizer, o relativismo uma teoria intolerante (JAPIASSU, 2001, p.93). Os relativistas contemporneos, praticamente identificados com os chama-dos pensadores ps-modernos, partem do pressuposto epistemolgico de que nosso conhecimento limitado pelas lnguas, culturas e interesses particula-res. E que a cincia no tem condies de apreender alguma realidade externa comum. O padro de verdade cientfica reside, no no mundo natural em si, mas nas normas particulares de comunidades especficas. As leis cientficas seriam o que determinada comunidade diz que so em determinado momento. Ademais, rejeitam categoricamente todo conhecimento totalizante e quaisquer valores universalistas (ibidem, p.232). Japiassu elucida equvocos conceitu-ais em relativistas como Richard Rorty (1913-2007): observemos que este pragmatismo relativista, ao pregar uma tica sem obrigaes universais, parece desconhecer a natureza mesma do universal. Confunde a referncia ao univer-sal com uma aceitao ingnua de uma natureza humana idntica a si mesma atravs das pocas, de uma essncia do homem bem conhecida e perfeitamente identificvel. Ao fazer uma leitura simplista dos grandes filsofos do passado, Rorty no se d conta de que, pelo menos depois de Kant, no podemos mais confundir conceito de universal com a deduo de uma teoria completa do homem nem com a consequncia do conhecimento perfeitamente garantido de uma essncia humana. Porque o universal se afirma, antes de tudo, como um movimento, com um dinamismo, como uma universalizao do que cada um e como a abertura para o outro (ibidem, p.117). Tambm no concorda-mos com os relativistas, porque so incapazes de compreender a arte fora da

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  • Rubens Russomanno Ricciardi e Edson Zampronha (Organizadores)

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    cultura. A grande arte tem sim vocao universal, justamente porque sempre j transcende a cultura. A verdadeira filosofia, a grande arte e tambm as raras cincias que contemplam fundamentos filosficos, por terem um domnio pr-prio, no podem ser subjugadas cultura, nem compreendidas por parmetros redutivos da antropologia e da sociologia.

    14 Os Cursos de Frias de Msica Nova (Internationale Ferienkurse fr Neue Musik), sediados na cidade alem de Darmstadt, foram fundados em 1946. As diretrizes potico-estilsticas foram determinadas pelos principais compo-sitores, tais como Luigi Nono (1924-1990), Pierre Boulez (*1925), Karlheinz Stockhausen (1928-2007), e, posteriormente, Helmut Lachenmann (*1935) e Brian Ferneybough (*1943).

    15 Epgono vem de (descendncia), nascido depois. Na arte, so aque-les que repetem os mesmos estilos ou processos poticos das geraes ante-riores. Por exemplo, um epgono em msica hoje aquele que ainda compe nas linhas da neue Musik de Darmstadt que, na verdade, remontam dcada de 1950. Acham que escrevem msica nova ou ainda pior, de vanguarda, mas suas poticas so mais que sexagenrias (mesmo quando autoproclamados her-deiros de outros rtulos mais recentes como msica espectral ou nova comple-xidade). No entanto, h ainda aqueles compositores retrgrados e convencio-nais, cuja nica habilidade a reproduo de clichs de tradies ainda mais remotas e para os quais o sculo XX sequer existiu. Estes so casos ainda mais vergonhosos de epgonos. Alis, sequer so epgonos melhor no arriscar qualquer definio.

    16 Vanguarda (guarda avanada) um conceito oriundo do vocabulrio militar, cuja teoria nos tratados de guerra remonta ao final do sculo XVIII. Trata-se de um pequeno grupo militar mais frente de seu regimento (seja infantaria ou cavalaria). So os primeiros a travar contato com o inimigo, configurando-se como tropa de elite que tem funo especial de inteligncia ao mesmo tempo em que sua habilidade guerreira diferenciada. Nos tempos da Revoluo Francesa adquiriu nova acepo na poltica. O conceito de vanguarda nas artes, por sua vez, remonta a certo literato francs hoje esquecido. Em sua publicao De la mission de lart e du rle des artistes (1845), Gabriel Dsir Laverdant (1802-1884) props pela primeira vez o conceito de vanguarda na literatura: a arte, expresso da sociedade, manifesta, em seu mpeto mais alto, as tendncias sociais mais avanadas; ela precursora e reveladora. Ora, por saber se a arte cumpre dignamente a prpria misso de iniciadora, se o artista se encontra verdadeiramente van