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177 Linguagem & Ensino,v.9,n.2,p.177-199,jul./dez. 2006 Retextualização de uma história em quadrinhos por alunos de meios letrados Eliene Peres de Oliveira ANDRADE Universidade Federal de Goiás Gisélia dos Santos Silva MACHADO Universidade Federal de Goiás Sílvio Ribeiro da SILVA Universidade Estadual de Campinas Resumo: Neste artigo, apresentamos o resultado de uma pesquisa feita em uma sala de aula do Ensino Fundamental (rede pública municipal) no estado de Goiás. O foco central do trabalho recai sobre a retextualização de uma história em quadrinhos feita pelos alunos. Para a análise dos dados, buscamos apoio teórico em Marcuschi (2001). As questões centrais que buscamos responder são: como os alunos retextualizam uma história em quadrinhos do Chico Bento? Ao retextualizar as falas do personagem, que tratamento darão à variedade lingüística usada por ele? Pretendemos perceber, ainda, que dificuldades os alunos teriam na transformação do texto e como fariam para não interferir na coerência do mesmo depois de retextualizado. Palavras-chave: retextualização; leitura; produção de texto. INTRODUÇÃO Neste trabalho, pretendemos analisar a relação entre o texto “falado” em uma história em quadrinhos e o texto escrito do aluno a partir do falado, observando as relações entre oralidade e escrita na perspectiva da retextualização. Além disso, seguindo orientação teórica de Marcuschi (2001, p.99), pretendemos avaliar o grau de consciência lingüística dos alunos e o seu domínio da noção das relações entre o texto oral e o texto escrito.

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Eliene P. de O. Andrade, Gisélia dos S. S. Machado e Sílvio R. da Silva

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Retextualizaçãode uma história em quadrinhos

por alunos de meios letrados

Eliene Peres de Oliveira ANDRADEUniversidade Federal de Goiás

Gisélia dos Santos Silva MACHADOUniversidade Federal de Goiás

Sílvio Ribeiro da SILVAUniversidade Estadual de Campinas

Resumo: Neste artigo, apresentamos o resultado de uma pesquisa feita em uma salade aula do Ensino Fundamental (rede pública municipal) no estado de Goiás. O fococentral do trabalho recai sobre a retextualização de uma história em quadrinhosfeita pelos alunos. Para a análise dos dados, buscamos apoio teórico em Marcuschi(2001). As questões centrais que buscamos responder são: como os alunosretextualizam uma história em quadrinhos do Chico Bento? Ao retextualizar asfalas do personagem, que tratamento darão à variedade lingüística usada por ele?Pretendemos perceber, ainda, que dificuldades os alunos teriam na transformaçãodo texto e como fariam para não interferir na coerência do mesmo depois deretextualizado.Palavras-chave: retextualização; leitura; produção de texto.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho, pretendemos analisar a relação entreo texto “falado” em uma história em quadrinhos e o textoescrito do aluno a partir do falado, observando as relaçõesentre oralidade e escrita na perspectiva da retextualização.Além disso, seguindo orientação teórica de Marcuschi (2001,p.99), pretendemos avaliar o grau de consciência lingüísticados alunos e o seu domínio da noção das relações entre o textooral e o texto escrito.

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Na retextualização, além das mudanças característicasque o texto sofre, também é preciso levar em conta amodificação do gênero textual do texto original, uma vez queeste pertence ao gênero história em quadrinhos, e o textoretextualizado ao gênero narrativa ficcional1.

Convém ressaltar que o texto original não épropriamente um texto oral, já que se trata de uma históriaem quadrinhos. O que ocorre com o referido é que elerepresenta um texto oral, usando, para tanto, recursosextralingüísticos característicos do texto falado representadona escrita, como os balões, por exemplo. Dessa forma,consideramos o texto original, a história em quadrinhos,como um texto oral e o texto produzido pelos alunos, o textoescrito, como sendo a retextualização.

Na realização da pesquisa geradora deste artigo,levantamos as seguintes hipóteses: para retextualizar os alunosdeveriam mobilizar os conhecimentos de que dispunhamsobre as marcas típicas do texto escrito, incluindo conceitosde discurso direto, indireto e indireto livre. Hipotetizamostambém que a maioria dos alunos não preservaria a fala típicado protagonista (Chico Bento), tendo em vista o desprestígiosofrido pela variedade lingüística usada pelo personagem.

Tentamos mostrar, neste trabalho, através daretextualização da história em quadrinhos, a postura dosalunos diante da mudança de um texto em discurso diretopara um texto em discurso indireto, levando em conta astransformações que ocorrem na linguagem falada para alinguagem escrita.

O corpus da pesquisa foi constituído pelos textosretextualizados dos alunos a partir da história em quadrinhosO Trabalho Enobrece, de Maurício de Souza. Não foi possívelusarmos todos os textos dos alunos para esta analise, devidoao fato de que nem todos atenderam à proposta feita.

1 Além de poder ser enquadrado como narrativa, o texto retextualizadopode ser considerado como pertencente ao gênero redação escolar.

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Seguindo as orientações teóricas de Vygotski e dosneovygotskianos, as atividades foram feitas em duplas, como objetivo de reiterar a natureza da aprendizagem (Terzi,2000).

Em se tratando de caracterização metodológica, estapesquisa fica enquadrada como um estudo de caso. SegundoNunan (1992), o estudo de caso pode ser identificado comouma pesquisa do como e do que acontece em uma escolaespecífica, em uma sala de aula com alguns alunos.

Este artigo é constituído de quatro seções. Na primeira,trazemos o embasamento teórico, apresentando a discussãofeita por alguns autores sobre letramento, oralidade eretextualização. Na segunda, descrevemos como foramdesenvolvidas as aulas ministradas para a coleta dos dados.Em seguida, apresentamos os dados e mostramos como osalunos fizeram a retextualização da história em quadrinhos.Por último, tecemos as considerações finais, com ascontribuições que acreditamos que o trabalho pode trazerpara os professores.

LETRAMENTO NA SOCIEDADE

Apresentamos esta pequena discussão sobre oletramento pelo fato de os alunos terem desenvolvido umaatividade de escrita e esta ser um evento de letramento.Segundo Soares (2003), a palavra letramento é nova novocabulário da Educação e das ciências Lingüísticas,possuindo apenas cerca de dez anos. A primeira vez em queela apareceu foi no livro de Kato (1986). Diz Kato, logo noinício desse livro, que a língua falada culta é conseqüência doletramento (p.7). Dois anos mais tarde, Tfouni (1988) distinguealfabetização de letramento. Talvez seja esse o momento emque o letramento ganha estatuto de termo técnico no léxicodos campos da Educação e das Ciências Lingüísticas. A partirde então a palavra torna-se cada vez mais freqüente nodiscurso falado e escrito de especialistas. Em 1995 surge um

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livro organizado por Kleiman, em que, segundo a própriaautora, Kato é que teria sido a responsável por evidenciar otermo letramento.

O dicionário Aurélio não registra a palavra letramento.Essa palavra aparece, porém, num dicionário da LínguaPortuguesa editado pela primeira vez há mais de um século:o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de CaldasAulete (1974). Aulete caracteriza letramento como “ant”, istoé, antiga, antiquada, e lhe atribui o significado de escrita.

Do ponto de vista individual, letramento seria aprendera ler e escrever, alfabetizar-se, deixar de ser analfabeto. Istotem conseqüências sobre o indivíduo e altera seu estado oucondição em aspectos sociais, psíquicos, culturais, políticos,cognitivos, lingüísticos e até mesmo econômicos. O termoletramento surge quando se percebe que não basta apenassaber ler e escrever, mas quando o sujeito, enquanto falante,sabe fazer bem o uso do ler e do escrever e sabe atender àsexigências da leitura e da escrita que a sociedade pede.

A diferença entre alfabetização e letramento fica clarana área das pesquisas em Educação, em História, em Sociologiae na Antropologia. Há muitas pesquisas que se voltam parao estudo do número de alfabetizados e sua distribuição porregião, sexo, idade, por época, por etnia, por nível sócio-econômico, entre outros, ou pelo número de crianças que aescola consegue levar à aprendizagem da leitura e da escritanas séries iniciais. Essas pesquisas sobre alfabetização buscamidentificar os usos e as práticas sociais da leitura e da escritaem determinado grupo social.

Um indivíduo pode não saber ler e escrever, isto é, seranalfabeto, mas ser de certa forma letrado; pode sermarginalizado tanto social como economicamente, mas se aleitura e a escrita se fazem presentes em seu cotidiano e ele seinteressa por ouvir a leitura de jornais feita por umalfabetizado, se pede a alguém que leia um aviso para ele, é,de certa forma, letrado, porque faz uso da escrita e envolve-se em práticas sociais de leitura e de escrita. O mesmo se dá

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com as crianças que ainda não sabem ler, mas fingem lerlivros, brincam de escrever e estão rodeadas de materialescrito. Estas crianças ainda são consideradas analfabetas,porque não sabem ler e escrever decodificando, mas jápenetraram no mundo letrado, já são de certa forma letradas.

É de suma importância que os processos educacionaisde ensino-aprendizagem da leitura e da escrita para adultose crianças tenham uma concepção clara desses dois fenômenos,alfabetização e letramento, e de suas diferenças e relações.

Modalidade oral e modalidade escrita da língua

Embora utilizem o mesmo sistema, a oralidade e aescrita são práticas sociais diferentes e cada uma apresentamaior ou menor pertinência dependendo da situação deinteração social na qual se encontram os usuários.

A oralidade e a escrita são eventos de letramento.Assim sendo, estão presentes no cotidiano das pessoas, tantodas que usam não só a oralidade, mas também a leitura e aescrita, quanto daquelas que só usam a oralidade. O queocorre com freqüência é a ligação do letramento ao uso daescrita.

A escrita, segundo Marcuschi (2001), é umamanifestação formal dos diversos tipos de letramento. Aescrita é quase indispensável para que as pessoas possam“enfrentar” o dia-a-dia. Ela pode ser vista como essencialpara a sobrevivência no mundo moderno. Ela é mais do queuma tecnologia. Por causa de alguns atributos que foramdados à escrita, ela acabou se tornando quase indispensável,e sua prática e avaliação social fizeram com que elasimbolizasse não só educação, mas também desenvolvimentoe poder. Ela possui uma face institucional e é adquirida emcontextos formais na escola. Por essa razão, ganha um caráterprestigioso. Sendo adquirida na escola, a escrita acaba sendoidentificada com a alfabetização e a escolarização.

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Seria muito mais coerente definir o homem como umser que fala, e não como um ser que escreve. Isso se justificapelo fato de que a oralidade é prática comum na vida de todasas pessoas, à exceção dos surdos. Apesar disso, não convémafirmar que a oralidade é superior à escrita. Por outro lado,também não é coerente a afirmação de que a escrita é umarepresentação da fala (Harris, 1986; Gaur, 1987)2. Segundoesses autores, a escrita teria sido criada para comunicarinformações, e sua relação com a oralidade é indireta. ParaMarcuschi (2001), a escrita não é representação da oralidadeporque aquela não consegue reproduzir muitos dosfenômenos desta, como o movimento dos olhos e agestualidade, por exemplo. Por outro lado, o autor afirma quea escrita possui caracterizações próprias que não podem serrepresentadas pela oralidade, como cores e formato de letras,por exemplo. Embora diferentes, não são “suficientementeopostas para caracterizar dois sistemas lingüísticos, nemuma dicotomia” (Marcuschi, 2001, p.17). O autor afirma,ainda, que a escrita é uma modalidade de uso da línguacomplementar à oralidade.

Mais pertinente do que discutir se é a oralidade ou aescrita a mais ou menos importante é tentar esclarecer anatureza das práticas sociais que envolvem o uso da fala e daescrita de modo geral. São essas práticas sociais que vãodeterminar qual dos dois eventos é o mais relevante naquelemomento específico de interação social3, sem desconsiderar

2 Apud Olson, 1997.3 No mundo infantil, a oralidade é a responsável por mudanças conside-

ráveis na realidade dos personagens. É o que acontecia com o perso-nagem Ali Baba, por exemplo, ao dizer Abra-te Césamo, ou com apersonagem Sherazade, que, pela oralidade, conseguiu sobreviver mile uma noites. Na vida real, a oralidade marca eventos sociais comocampanhas políticas, quando os candidatos, através dela, apresentamsuas propostas em comícios. Por outro lado, a escrita mostra muitarelevância no mundo social. Quando uma pessoa quer receber umseguro de vida, por exemplo, ela precisa apresentar a Certidão deÓbito do falecido, e essa certidão é escrita.

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que em certos momentos existe um evento social mescladopela oralidade e pela escrita4.

Atualmente, um bom exemplo de evento social quemescla as duas atividades ocorre nas salas de bate papo daInternet. O texto construído naquela situação fica situado noentrecruzamento de fala e escrita. A situação simula umaconversa face a face. Como o canal utilizado para o envio dasmensagens é o computador, é impossível não fazer uso daescrita. Porém, essa escrita não é a mesma usada em outrosmomentos, porque ela possui características próprias,diferentes da escrita convencional.

A explicação para isso pode ser o fato de que a escritausada na sala de bate papo simula um evento de conversaçãoface a face, que é extremamente dinâmico e rápido, trazendocomo grande característica a simultaneidade temporal. Seum dos interlocutores ficar muito preso aos “detalhes” daescrita, o papo perde a dinamicidade e a outra parte podeperder o interesse pela conversa. Por conta disso, a escritausada na Internet ganha, a cada dia, caracteres novos ecaracterísticas novas.

No entender de Marcuschi (2001), a mudança maisnotável que se faz nas salas de bate papo da Internet não dizrespeito às formas textuais em si, mas sim à relação que aspessoas têm com a escrita. Ele afirma que escrever pelocomputador, no contexto da produção discursiva das salas debate papo, é uma nova forma de as pessoas se relacionaremcom a escrita, mas não uma nova forma de escrita.

Existem muitas tendências a respeito das relaçõesexistentes entre fala e escrita. Uma das maiores é a de estudara fala e a escrita como uma dicotomia. Geralmente essatendência tem a característica de categorizar a fala como olugar do erro e do caos gramatical, considerando a escritacomo o lugar da norma e do bom uso da língua. Por

4 Heath (1983) exemplifica isso com as leituras e respostas coletivas decartas pessoais.

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desconsiderar os fenômenos dialógicos e discursivos queenvolvem a fala e a escrita, essa é uma visão que não deve serconfirmada (Marcuschi, 2001).

Da transcrição de textos falados

De acordo com Ramos (2002), a atividade didática arespeito da língua tem como objetivo tornar o aluno umusuário do padrão oral e escrito. Há sugestões de um conjuntode normas para a transcrição e atividades de “tradução” detextos falados em textos escritos, enfocando traços formaisque podem ser caracterizados como especificidades da línguafalada em contraposição às marcas da língua escrita. O textofalado explicitaria etapas que no texto escrito ficariamimplícitas; o texto escrito explicitaria, por sua vez, etapasimplícitas do texto falado. A atividade de transcrição eretextualização de textos poderá ser um meio útil para avaliare revisar textos escritos, de modo a atentar para a sintaxefragmentada, redundâncias, elipses, ambigüidades,fragmentação de tópicos, discursos etc.

Ramos (2002) diz que o processo de reconstrução dalíngua falada, enquanto fenômeno pragmático, alimenta odiálogo; enquanto fenômeno textual, tem papel coesivoaditivo; e, enquanto fenômeno semântico, serve paraespecificar, generalizar, expandir, sintetizar, atenuar, enfatizaros argumentos do texto.

Diferentes etapas são usadas para transcrever o textofalado para os moldes da escrita. Todas essas etapas são vistaspor Marcuschi (1994) como um conjunto de operaçõesordenadas.

Processos de retextualização

Para Marcuschi (2001, p.47), a retextualização não é umprocesso mecânico, já que a passagem da fala para a escritanão se dá naturalmente no plano dos processos de

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textualização e nem se trata da passagem de um textosupostamente “descontrolado e caótico” (o texto falado) paraoutro “controlado e bem formado” (o texto escrito); trata-seda passagem de uma ordem para outra.

Há nas atividades de retextualização um aspecto muitoimportante: a compreensão. Antes de qualquer atividade detransformação textual é preciso que se compreenda o que foidito para que não ocorram problemas no plano da coerênciano processo de retextualização.

Marcuschi (2001, p.48) sugere quatro possibilidades deretextualização, considerando fala e escrita e suascombinações.

Quadro 1: Possibilidades de Retextualização

1. Fala => Escrita (entrevista oral => entrevista impressa)

2. Fala => Fala (conferência => tradução simultânea)

3. Escrita => Fala (texto escrito => exposição oral)

4. Escrita => Escrita (texto escrito => resumo escrito)

De acordo com o autor, é preciso diferenciarretextualização de transcrição. Transcrever a fala é passar umtexto de sua realização sonora para a forma gráfica com basenuma série de procedimentos convencionalizados. Natranscrição ocorrem mudanças, mas essas não devem interferirna natureza do discurso produzido do ponto de vista dalinguagem e do conteúdo. Já no caso da retextualização, ainterferência é maior e há mudanças mais sensíveis, emespecial no caso da linguagem. Transcrever não é umaatividade de simples interpretação gráfica do significantesonoro. A transcrição representa uma passagem (do sonoropara o grafemático) que já é uma primeira transformação,mas não é ainda uma retextualização.

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Toda transcrição é uma espécie de adaptação e, nesseprocedimento, ocorrem perdas, pois sempre haverá algo queescape ou que mude. Por exemplo, a entonação, os aspectosgestuais e mímicos etc. Na passagem do oral para o escrito,realizada pela transcrição, ocorre uma transcodificação emque se passa da substância e forma da expressão oral para asubstância e forma da expressão escrita (Rey-Debove, 1996,p.79). Na visão de Marcuschi (2001), quando fazemos umaatividade de retextualização, causamos interferência na formae substância da expressão e na forma e substância do conteúdo.

RELATO DOS ENCONTROS

Para realizarmos a pesquisa geradora deste artigo,utilizamos quatro aulas de quarenta e cinco minutos cada,perfazendo um total de 180 minutos. Os encontrosaconteceram entre os dias 7 e 10 de junho de 2005 em umaturma de oitava série noturna do programa de Educação deJovens e Adultos.

Inicialmente, mostramos para os alunos as principaismarcas de um texto oral representado na escrita. Em seguida,explicamos o que é retextualização, enfatizando que elaacontece todas às vezes que contamos para outra pessoa o queassistimos na televisão, o que ouvimos no rádio ou umacontecimento que presenciamos, ou quando resumimos umtexto, por exemplo. Depois disso, mostramos uma históriaem quadrinhos de Maurício de Sousa retextualizada por nós,assinalando as mudanças geradas pelo processo deretextualização. Através dessa atividade, discutimos com osalunos que a retextualização de um texto oral para um textoescrito provoca mudanças nos tempos verbais, nos pronomese nos adjuntos adverbiais, por exemplo; e ainda mostramosque desaparecem repetições, hesitações e algumasenfatizações próprias da linguagem oral. Finalmente,propusemos para eles que, em dupla, lessem a história em

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quadrinhos O Trabalho Enobrece e em seguida fizessem aretextualização da mesma.

Para orientá-los quanto ao desenvolvimento da tarefa,colocamos no quadro negro algumas instruções: tendo emvista as discussões feitas a respeito do que é e como se faz umaretextualização, retextualize a história de Chico Bento (O TrabalhoEnobrece). Lembre-se de que você será o narrador de terceira pessoae o seu texto deverá ser feito somente com discurso indireto.

Percebemos que os alunos ainda não tinham feito umaretextualização escolar, embora sempre fizessem isso nocotidiano. Observamos que não tinham muito contato com ogênero textual em estudo, no qual tanto a parte escrita quantoa ilustração são fundamentais para a compreensão da história.Por esse desconhecimento, alguns deles apresentaramdificuldade no entendimento do texto.

No início da tarefa detectamos que estavam apenastranscrevendo a história, mas, com as nossas intervenções ecom acompanhamento individualizado, alguns conseguiram.Outros, mesmo com todas as explicações, fizeram apenastranscrição, talvez pela ausência de atividades deretextualização em sala, ou por não ter ficado claro para elesa nossa proposta. Outros, ao retextualizarem, mostraram quenão compreenderam a história, fizeram mudanças quealteraram o sentido da mesma, produzindo o que Marcuschi(2001, p.86) chama de falseamento. Outros, ainda, nãoconseguiram nem transcrever a história.

ANÁLISE DOS DADOS

Dentre os textos produzidos pelos alunos, selecionamosdois que mais se aproximaram do objetivo pretendido pornós. Chamaremos o primeiro de texto A e o segundo de textoB. Para analisarmos as marcas de retextualização presentesnos mesmos, nossa base foi o diagrama de Marcuschi (2001,p.75).

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Texto original Retextualização feita Retextualização feitano texto A no texto B

Chicoooo! Ei, Chico!Chico!!!(Quadro 7 e 24)

Para melhor visualização de nossa análise, numeramosos quadros da história, num total de vinte e cinco. Da mesmaforma, os parágrafos dos textos retextualizados foram tambémnumerados, totalizando dez parágrafos no texto A e seis notexto B.

Na retextualização, os alunos não fizeram uso de todasas nove operações textuais-discursivas propostas porMarcuschi na passagem do texto oral para o escrito. Dentreessas operações, as utilizadas pelos alunos foram: eliminaçãode marcas estritamente interacionais, hesitações e partes de palavras;introdução de pontuação com base na intuição fornecida pelaentoação das falas (adequamos essa operação ao que percebemosna retextualização dos alunos, caracterizando-a comoeliminação de pontuação ao invés de introdução de pontuação);retirada de repetições, reduplicações, redundâncias, paráfrases epronomes egóticos (em relação aos pronomes egóticos,assinalamos as modificações feitas nesses pronomes pelosalunos); introdução de marcas metalingüísticas para referenciaçãode ações e verbalização de contextos expressos por dêiticos(assinalamos as modificações que os alunos fizeram nosdêiticos usados); reconstrução de estruturas truncadas,concordâncias, reordenação sintática, encadeamentos; tratamentoestilístico com seleção de novas opções léxicas. No quadro 3,apresentamos as modificações que os alunos fizeram nasonomatopéias, embora Marcuschi não apresente essamodificação em suas operações.

Quadro 2: Eliminação de marcas estritamente interacionais:hesitações

Rosinha soltouum grande grito.(parágrafo 2)

Rosinha deu umgrito com Chico.(parágrafo 4)

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Quadro 3: Onomatopéias

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

Z(Quadro 2)

ronc... ronc...(Quadros 4,5,6)

glup!(Quadro 7)

fop, tum, paf, arf! arf!Arf! Arf! (Quadros:16,17 e 18)

pof (Quadro 23)

(nãoretextualizaram aonomatopéia querepresenta sono)

Ao se aproximarescutou um ronco.(Parágrafo 2)

Fez com que Chicoacordasseassustado.(Parágrafo 2)

Todos trabalharammuito o dia todo.(Parágrafo 8)

Chico estava muitocansado e deitou alino chão e dormiu.(Parágrafo 8)

Rosinha estava acaminho da casa doChico Bento eencontrou os amigosdele e viu que osamigos do Chico iamtrabalhar cedomesmo.(Parágrafo 2)

Escutou algunsroncos. (Parágrafo 3)

Ele levou um susto.(Parágrafo 4)

Começaram atrabalhar atéanoitecer. (Parágrafo8)

De repente ele caiuadormecido e aRosinha tentouacordá-lo.(Parágrafo 6)

Na retextualização, os alunos apagaram as marcascaracterísticas da hesitação de Rosinha, substituindo-as porpalavras e expressões. As expressões corporais, tanto doChico como de Rosinha, desapareceram e os gritos de Rosinhaforam expressos com poucas palavras significativas. Paraexpressarem o grito e as onomatopéias, usaram maior númerode palavras.

Uma consideração interessante diz respeito à introduçãodo clítico feita pelo aluno autor do texto B (último exemplo doquadro 3). O aluno, além de apagar a onomatopéia, insere

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uma informação não apresentada pelo autor do texto A:Rosinha tentou acordá-lo. Com o uso do clítico, ele demonstrabom conhecimento de certas regras não só do texto escrito,mas da estrutura gramatical da língua.

Quadro 4: Eliminação de pontuação

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

Ei, Chico! Rosinha chamou ele Rosinha ficouChico!!! umas duas vezes e tentando(Quadro 24) nada dele acordar. acordá-lo.

(Parágrafo 9) (Parágrafo 6)

drumindo...drumindo...(Quadro 9)

Rosinha saiu irritadae disse que pareciaque a única coisa queChico sabia fazerera dormir.(Parágrafo 4)

Rosinha saiu brava falandoque parecia que era a únicacoisa que ele sabia fazer.(Parágrafo 4)

Em todo texto original havia muitos sinais de pontuaçãopara enfatizar a fala, como o exemplo citado no quadro 4, emque se percebe a preocupação de Rosinha em relação a Chico.Estes sinais foram eliminados pelos alunos ao retextualizarem.Percebemos também que desapareceram dos textosretextualizados as repetições, redundâncias e pronomesegóticos, sendo estes substituídos pelo nome da personagemRosinha e pelo pronome ele.

Quadro 5: Retirada de repetições e redundância

Texto original Retextualização Retextualização feitafeita no texto A no texto B

Uma das características da oralidade é a repetição deitens lexicais, sintagmas, orações ou até mesmo estruturas(Marcuschi, 2001, p.79). Nas duas retextualizações, a repetição

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Bão...eu tavadrumino, uai!(Quadro 8)

Eu num quero sênamorada dumsujeito perguiçosoqui nunca vai têfuturo! (Quadro 11)

Ele respondeu queestava dormindo.(Parágrafo 3)

Rosinha falou quenão queria sernamorada de umsujeito preguiçososem futuro e que sósabe dormir.(Parágrafo 5)

Chico respondeuque estavadormindo.(Parágrafo 4)

Rosinha retrucandofalou que nãoqueria sernamorada de umsujeito preguiçosoque não ia terfuturo.(Parágrafo 5)

No texto original há o pronome egótico “eu’’, quedesapareceu nos textos retextualizados, tornando-se “ele” notexto A e “Chico” no texto B, devido à passagem para odiscurso indireto, que elimina os falantes e insere a figura deum narrador.

Quanto ao uso dos parágrafos, percebemos que, tantono texto A quanto no texto B, sua organização tornou oproduto final mais coerente.

Quadro 7: Pronome dêitico

da expressão drumindo, dita por Rosinha, foi substituída pelaafirmação de que a única coisa que Chico sabia fazer eradormir.

Quadro 6: Pronomes egóticos

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

É! Os minino aqui ... e pensou consigo ... viu que os amigosda roça começa a mesma, na roça de Chico iamtrabaiá cedo mermo! os meninos começam trabalhar cedo(Quadro 3) a trabalhar bem cedo. mesmo.

(Parágrafo 1) (Parágrafo 2)

Texto original Retextualização Retextualização feitafeita no texto A no texto B

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Segundo Marcuschi (2001), uma das características dafala é utilizar-se do contexto físico de maneira sistemática,seja para referenciação ou para orientação espacial. Trata-sede uma forma de explicitação vinculada a aspectos nãoestritamente verbalizados e que quando se elimina o contextofísico devem ser supridos com uma informação equivalenteque os recupere. A reformulação visa à explicitude sob oponto de vista da necessidade escrita que não presentifica ocontexto situacional como a fala. De maneira geral, faz-seorientação espacial usando o indicativo de lugar aqui e seusequivalentes.

Observamos que os alunos do texto B nãoretextualizaram o dêitico aqui com o equivalente lá ounaquele lugar. Houve uma modificação no texto A nomomento em que eles escreveram que Rosinha havia pensadoconsigo mesma, sendo que isso não foi um pensamento, esim uma fala, talvez por não atentarem, ou não saberem queo balão em questão representava a fala e não o pensamento.Mesmo assim, a inserção de na roça em lugar de aqui foi feitadevidamente.

Vimos também que os alunos mudaram o texto,adequando a linguagem falada à modalidade escrita, conformeexpresso no Quadro 8.

Quadro 8: Reconstrução de estruturas truncadas, concordâncias,reordenação sintática, encadeamentos (adequação da linguagemfalada à modalidade escrita)

Oi, Tonico! Ocê Rosinha perguntou A Rosinha encontravai trabaiá? Pois é! a Tonico se ele iria o Tonico e perguntaComeço logo cedo! trabalhar. Tonico se ele já ia trabalhar.(Quadro 1) respondeu que O Tonico respondeu

começava bem cedo. que estava indo(Parágrafo 1) logo cedo.

(Parágrafo 1)

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

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Quando ocorrem, na retextualização, mudanças com ointuito de promover adequação da fala de acordo com asexigências da escrita, percebemos o grande peso que é impostopela normatização desta. Nos dois textos retextualizadoshouve modificações movidas por exigências de ordemestrutural/composicional da escrita. A modificação maisevidente diz respeito à eliminação das marcas típicas dodiscurso direto de ambos os personagens do texto original ea adequação à norma padrão.

No que diz respeito à operação sete do diagrama deMarcuschi, sobre as estratégias de substituição visando auma maior formalidade (Quadro 9), notamos que, nos doistextos retextualizados, os alunos fizeram as mudançasnecessárias, ou seja, usaram novas formas sintáticas e lexicais,sem, no entanto, alterarem o sentido do texto.

Quadro 9: Tratamento estilístico com seleção de novas opções léxicas(parte I)

É! Os minino aqui daroça começa a trabaiácedo mermo!(Quadro 3)

Bão... eu tavadrumino, uai!(Quadro 8)

Ai... o meu fofo vaitrabaiá!(Quadro 14)

Rosinha estava acaminho da casa doChico Bento eencontrou os amigosdele e viu que osamigos do Chico iamtrabalhar cedomesmo. (Parágrafo 1)

Chico respondeu queestava dormindo.(Parágrafo 4)

A Rosinha espiando oChico ficou surpresacom ele porque ele foitrabalhar.(Parágrafo 6)

Rosinha viu osmeninos aindacriança ir para otrabalho e pensouconsigo mesma quena roça os meninoscomeçam a trabalharbem cedo.(Parágrafo 1)

Ele respondeu queestava dormindo.(Parágrafo 3)

Então Rosinha ao verseu namorado Chicoindo para o trabalhofica muito feliz.(Parágrafo 6)

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

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Podemos notar isso também no Quadro 10 e nos comentáriosseguintes a eles.

Quadro 10: Tratamento estilístico com seleção de novas opçõesléxicas (parte II)

Ei, gente! Diz quenum é o Chico qui eutô veno! (Quadro 15)

Quadrinhos quatro,cinco e seis expressospor onomatopéias:“ronc...ronc...”

Ai! É isso Qui dánamorá rapaiz Quitrabaia dimais!(Quadro 25)

Chico chegou notrabalho e os meninosque lá estavam nãoacreditaram no queviram.(Parágrafo 7)

Rosinha foi para casado seu namoradoChico e ao aproximarescutou um ronco, aochegar, espiou pelajanela, e viu que eraseu namorado Chicoroncando.(Parágrafo 2)

Então ela comentaque é isso que dánamorar um rapaztrabalhador.(Parágrafo 10)

Texto original Retextualização Retextualizaçãofeita no texto A feita no texto B

Um dos amigos doChico perguntouum para o outro senão estavam vendocoisas.(Parágrafo 6)

Quando a Rosinhaestava chegando nacasa do Chicoescutou algunsroncos e resolveuespiar o que eraaquele barulho eviu que estavadormindo.(Parágrafo 3)

Depois ela pensouconsigo numatristeza que era issoque dava namorarum rapaz quetrabalhava demais.(Parágrafo 6)

Além das modificações que dizem respeito aotratamento estilístico, pode-se observar que houve umaumento no número de palavras nos textos retextualizadosem relação ao texto original. No primeiro exemplo houveaumento de 7% no texto A, e 3% no texto B. No segundoexemplo, isso também ocorreu: 28% no texto A e 24% no textoB. No terceiro exemplo houve aumento de 5% no texto A e17% no texto B. Esse aumento se deu devido às ilustrações

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e onomatopéias que aparecem no texto original e que foramsubstituídas por palavras nos textos retextualizados. Os alunosusaram outras palavras para demonstrar o que estavaacontecendo como, por exemplo: então, depois, resolveu, aoaproximar, ao chegar, tudo isto para dar continuidade aotexto escrito e para demonstrar a força pragmática das açõesexpressas pela representação iconográfica dos desenhos.Assim, pode-se perceber que os alunos não fizeram umresumo do texto e sim uma reorganização textual com oobjetivo de tornar clara para os leitores a históriaretextualizada.

Apesar da afirmação de Marcuschi (2001) de quetransformar fala em escrita pode acarretar diminuição detexto, vimos que não houve diminuição em relação ao textooriginal neste caso. Isto se justifica, talvez, pelo fato de que otexto proposto para ser retextualizado é uma história emquadrinhos voltada para o público infantil. Em função disso,as imagens muitas vezes dizem mais do que o texto escrito.Neste caso, ao retextualizarem, houve um aumento no textoescrito exatamente pelo fato de transformarem as imagensem texto gráfico. Em linhas gerais, a história retextualizadaaumentou 18% em relação à história em quadrinhos.

Outro ponto também bastante pertinente a nosso verdiz respeito à construção de parágrafos, uma vez que osalunos tinham que, obrigatoriamente, construí-los, por setratar o texto retextualizado de um gênero narrativo. Pelodesempenho dos mesmos, achamos que demonstraramconhecimentos satisfatórios de paragrafação.

Observamos que, durante toda a história emquadrinhos, apareceram, mais de uma vez, como já dissemos,as pontuações e hesitações do diagrama de Marcuschi. Nãorepresentamos todos os exemplos para que esta análise nãoparecesse tautológica.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizamos este estudo envolvendo a retextualizaçãopara verificarmos como alunos de uma escola públicaretextualizariam uma história em quadrinhos.Intencionalmente, escolhemos uma história de Mauricio deSousa, com o personagem Chico Bento, para verificarmos seos alunos iriam modificar a variedade lingüística usada pelopersonagem.

Observamos que as questões levantadas por nós foramrespondidas afirmativamente. A partir da retextualizaçãofeita por alguns alunos ficou claro que eles têm conhecimentodo que seja a linguagem oral e a escrita, tendo em vista que aoretextualizarem a maioria adequou seu texto à norma padrãoseguindo os princípios definidos pela escrita. Outraobservação é que eles mudaram a fala dos personagens quepossuem uma variedade lingüística desprestigiada, passando-a para a linguagem padrão. Talvez isso tenha ocorrido porquena escola passa-se uma idéia de soberania da norma culta.

Constatamos que houve relações entre as atividades deoralidade e escrita, demonstradas nos textos analisados pornós, em que os alunos perceberam que, ao retextualizarem otexto oral, o mesmo sofreria modificações em função danorma escrita.

Também observamos que os alunos não interferiramna situação. Isto se deu porque eles partiram de um eventocotidiano relatado em uma história em quadrinhos econseguiram transformar o diálogo em texto escrito, atravésde mecanismos que eliminaram expressões exclusivas dafala, como as onomatopéias, e que, para dar uma seqüênciano texto, incluiram novas palavras, tais como quando, então,de repente, ao se aproximar. Uma das mudanças mais correntespercebidas diz respeito aos tempos verbais, estando a grandemaioria dos que estão expostos nas versões retextualizadasno pretérito perfeito do indicativo.

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Embora a professora da turma, em conversa informal,tenha afirmado já ter trabalhado atividades de retextualizaçãocom seus alunos, estes demonstraram muitas dificuldades.Prova disso foi que, diante de doze duplas, somente duasdelas, 20%, conseguiram retextualizar o texto, sendo que umtotal de 80% não conseguiu fazer a retextualizaçãoadequadamente.

Apesar das dificuldades da maioria, verificamos quealguns alunos compreenderam que, ao retextualizarem umtexto, ocorrem transformações nos tempos verbais, nospronomes e nos adjuntos adverbiais. Verificamos que muitosentenderam as mudanças como, por exemplo, a exclusão dasrepetições, das hesitações, das onomatopéias e das demaisformas geralmente pertencentes à fala, quando passadaspara o texto escrito.

Com este trabalho, percebemos a dificuldade que osalunos tiveram em compreender um texto para transformá-lo em outro e, muitas vezes, mesmo entendendo o texto, aoretextualizá-lo, mudaram partes substancialmenteimportantes, havendo, assim, uma incoerência entre o textooriginal e o texto retextualizado. Convém afirmar queMarcuschi (2001, p.86) deixa claro que para transformar(retextualizar) um texto é preciso compreendê-lo.

Julgamos importante este trabalho, porque, apesar de aretextualização estar presente no nosso cotidiano, atividadesdessa natureza não são muito comuns nas escolas, talvez porfalta de conhecimento dos professores sobre o tema e pelodesconhecimento da contribuição dessa atividade paramelhorar os conhecimentos lingüísticos dos alunos.

Além disso, tendo em vista o que vem sendo postuladopara o ensino de língua, especificamente de língua oral,inclusive nos PCN, achamos que um trabalho inserido nocampo da retextualização pode ser produtivo. Concordamoscom Marcuschi (2001) quando diz ser a retextualização umamaneira prática e eficiente de se conseguir informações sob oponto de vista textual-discursivo e acabar com certos mitos a

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respeito da oralidade na sua relação com a escrita, ficando,especialmente, em evidência que a escrita não é umarepresentação da fala.

Esperamos ter demonstrado a pertinência daretextualização, não se limitando apenas ao contexto escolar,mas, principalmente, fora dele, e contribuído para que osprofessores, especialmente os de Português, percebam anecessidade de se trabalhar com essa atividade.

Esperamos ainda que os professores de Português façamcom que os alunos percebam a importância da retextualização,mostrando para os mesmos que muitas vezes há problemasgerados na fala e na escrita justamente pelo fato de as pessoasnão conseguirem repassar adequadamente o que ouviram,leram ou viram.

E, finalmente, acreditamos que este trabalho pode serimportante também, porque, como diz Ramos (2002), quandoo professor pede para que o aluno reescreva um texto, estealuno deve avaliar a adequação do vocabulário e toda estruturagramatical, o que contribui para que ele torne revisor do seupróprio texto.

REFERÊNCIAS

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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Análise da conversação. São Paulo: Ática,1994.

______ . Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 2° ed.São Paulo: Cortez, 2001.

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RAMOS, Jania. M. O espaço da oralidade na sala de aula. São Paulo:Martins Fontes, 2002.

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TERZI, Sylvia Bueno. A construção da leitura. Campinas: UNICAMP,2000.

[Recebido em agosto de 2005e aceito para publicação em maio de 2006]

Title: Retextualization of a comic strip by literate studentsAbstract: In this article, we present the results of a research carried out in a publicjunior high school in Goiás. The main focus of the paper is the retextualization thatstudents made of a comic strip. To analyze the data, we searched for theoreticalsupport in Marcuschi (2001). The main questions investigated are: how do thestudents retextualize a Chico Bento comics? When retextualizing the character’sspeech, which treatment will they give to the linguistic variety used by him?Furthermore, we intended to verify which difficulties the students would have inthe transformation of the text, as well as what they would do in order not to interferein its coherence after the retextualization.Key-words: retextualization; reading; text production.

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