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Retratos da desigualdade até na ficção - Blog do GalenoRetratos da desigualdade até na ficção  Autor: Panorama Editorial  junho de 2008  Professora do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè está mergulhada desde 2003 numa abrangente pesquisa: investigar como os diversos grupos sociais têm sido representados na narrativa brasileira a partir da segunda metade do século 20. O estudo segue em andamento, mas ela e sua equipe já puderam constatar que, nas mais de 250 obras analisadas, a autoria e o protagonismo das histórias estão a cargo de homens brancos, cidadãos urbanos da classe média, sem doenças ou deficiências, heterossexuais e intelectualizados. As autoras não chegam a 30% do total de escritores editados e menos de 40% das personagens são do sexo feminino. Além disso, as mulheres têm menos acesso à posição de narradoras e de protagonistas das histórias, afirma Regina. Coordenadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da UnB e autora de quatro livros, ela afi rma nesta entrevista que o universo masculino ainda domina o imaginário social, mas sente que os grupos excluídos não pretendem fi car fora da literatura nem de outras manifestações artísticas: A inclusão de outros grupos só vai se dar com muita luta. Será o único modo de mudar essas representações nos livros. Afi nal, ninguém abre mão de seus privilégios assim facilmente."  Panorama Editorial  Como foi desenvolvido e qual o objetivo desse estudo sobre a representação dos grupos sociais no romance brasileiro contemporâneo que a senhora coordena na UnB? A que resultados ele já chegou?  Regina Dalcastagnè  A pesquisa, que começou em 2003, tem como foco a personagem do romance brasileiro contemporâneo. Envolveu a seleção de um recorte de obras, a produção de uma fi cha padronizada de leitura, a programação de um software estatístico e o treinamento dos auxiliares de pesquisa  cerca de 30 alunos de graduação e de pós-graduação. Numa primeira etapa, fi zemos um mapeamento das personagens, tanto masculinas como femininas, dos autores do romance brasileiro de 1990 a 2004  foram cerca de dois anos de trabalho. Também fi zemos o mapeamento das personagens de romances do período 1965 a 1979; das personagens do cinema brasileiro da retomada; e ainda um aprofundamento da compreensão da representação das mulheres na literatura. Ainda não está tudo completo, mas já são quase cinco anos de pesquisa. O objetivo não era mapear tudo o que se produz sob o rótulo de literatura, mas um conjunto de obras representativas, dotadas de reconhecimento social, com certa penetração. Entendi que as editoras são as principais fi adoras deste reconhecimento. Assim, consultei um grupo de 30 escritores, críticos e  professores sobre quais seriam as três principais editoras para a publicação de literatura brasileira em prosa, no período de 1990 a 2004  aquelas que conferiam mais prestígio a seus autores. Desta enquete  que é chamada de método reputacional  surgiram, com grande clareza, os nomes da Companhia das Letras, da Record e da Rocco. Foram lidos e fi chados, inicialmente, todos os romances brasileiros publicados em primeira edição por estas três editoras no período, num total de 258 obras. E, para o foco mais detalhado nas personagens femininas, foi estabelecida uma amostra estratificada, com a seleção aleatória de personagens brancas e não-brancas, protagonistas e secundárias, de autoras e autores, dentro da base de dados principal.  PE  Qual é o perfi l dessas mulheres retratadas pelas obras?  Regina  Em primeiro lugar é preciso registrar que as autoras não chegam a 30% do total de escritores editados. E isso tem refl exo na sub-representação das mulheres como personagens em nossa fi cção. A mesma

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Retratos da desigualdade na ficçao brasileira

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Retratos da desigualdade at na fico - Blog do GalenoRetratos da desigualdade at na fico Autor: Panorama Editorial junho de 2008 Professora do Departamento de Teoria Literria e Literaturas da Universidade de Braslia (UnB), Regina Dalcastagn est mergulhada desde 2003 numa abrangente pesquisa: investigar como os diversos grupos sociais tm sido representados na narrativa brasileira a partir da segunda metade do sculo 20. O estudo segue em andamento, mas ela e sua equipe j puderam constatar que, nas mais de 250 obras analisadas, a autoria e o protagonismo das histrias esto a cargo de homens brancos, cidados urbanos da classe mdia, sem doenas ou deficincias, heterossexuais e intelectualizados. As autoras no chegam a 30% do total de escritores editados e menos de 40% das personagens so do sexo feminino. Alm disso, as mulheres tm menos acesso posio de narradoras e de protagonistas das histrias, afirma Regina. Coordenadora do Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contempornea da UnB e autora de quatro livros, ela afi rma nesta entrevista que o universo masculino ainda domina o imaginrio social, mas sente que os grupos excludos no pretendem fi car fora da literatura nem de outras manifestaes artsticas: A incluso de outros grupos s vai se dar com muita luta. Ser o nico modo de mudar essas representaes nos livros. Afi nal, ningum abre mo de seus privilgios assim facilmente." Panorama Editorial Como foi desenvolvido e qual o objetivo desse estudo sobre a representao dos grupos sociais no romance brasileiro contemporneo que a senhora coordena na UnB? A que resultados ele j chegou? Regina Dalcastagn A pesquisa, que comeou em 2003, tem como foco a personagem do romance brasileiro contemporneo. Envolveu a seleo de um recorte de obras, a produo de uma fi cha padronizada de leitura, a programao de um software estatstico e o treinamento dos auxiliares de pesquisa cerca de 30 alunos de graduao e de ps-graduao. Numa primeira etapa, fi zemos um mapeamento das personagens, tanto masculinas como femininas, dos autores do romance brasileiro de 1990 a 2004 foram cerca de dois anos de trabalho. Tambm fi zemos o mapeamento das personagens de romances do perodo 1965 a 1979; das personagens do cinema brasileiro da retomada; e ainda um aprofundamento da compreenso da representao das mulheres na literatura. Ainda no est tudo completo, mas j so quase cinco anos de pesquisa. O objetivo no era mapear tudo o que se produz sob o rtulo de literatura, mas um conjunto de obras representativas, dotadas de reconhecimento social, com certa penetrao. Entendi que as editoras so as principais fi adoras deste reconhecimento. Assim, consultei um grupo de 30 escritores, crticos e professores sobre quais seriam as trs principais editoras para a publicao de literatura brasileira em prosa, no perodo de 1990 a 2004 aquelas que conferiam mais prestgio a seus autores. Desta enquete que chamada de mtodo reputacional surgiram, com grande clareza, os nomes da Companhia das Letras, da Record e da Rocco. Foram lidos e fi chados, inicialmente, todos os romances brasileiros publicados em primeira edio por estas trs editoras no perodo, num total de 258 obras. E, para o foco mais detalhado nas personagens femininas, foi estabelecida uma amostra estratificada, com a seleo aleatria de personagens brancas e no-brancas, protagonistas e secundrias, de autoras e autores, dentro da base de dados principal. PE Qual o perfi l dessas mulheres retratadas pelas obras? Regina Em primeiro lugar preciso registrar que as autoras no chegam a 30% do total de escritores editados. E isso tem refl exo na sub-representao das mulheres como personagens em nossa fi co. A mesma pesquisa mostra que menos de 40% das personagens so do sexo feminino. Alm de serem minoritrias nos romances, as mulheres tambm tm menos acesso voz, isto , posio de narradoras, e esto menos presentes como protagonistas das histrias. H uma diferena signifi cativa entre a produo das escritoras e dos escritores. S como exemplo, em obras escritas por mulheres, 52% das personagens so do sexo feminino, bem como 64,1% dos protagonistas e 76,6% dos narradores. Quando os autores so homens, os nmeros no passam de 32,1% de personagens femininas, com 13,8% dos protagonistas e 16% dos narradores. Fica claro que a menor presena das mulheres entre os produtores se refl ete na menor visibilidade do sexo feminino nas obras produzidas. PE No que diz respeito s diferenas entre os livros de autoria masculina daqueles escritos pelas mulheres, o que foi constatado? Regina As mulheres constroem uma representao feminina mais plural e mais detalhada, incluem temticas da agenda feminista que passam despercebidas pelos autores homens e problematizam questes que costumam estar mais marcadas por esteretipos de gnero. Tudo isto, preciso ressaltar, quando as personagens so brancas. Caso contrrio, as marcas de distino so bastante reforadas, talvez at mais que nas obras masculinas. PE Que razes justificariam essa escassa presena feminina no protagonismo das narrativas? Regina Creio que os resultados da pesquisa demonstram a persistncia, no nosso imaginrio, do universal masculino. Quer dizer, o masculino a regra, o feminino a diferena. Por isso, os homens so retratados em muito maior variedade, ao passo que a mulher se reduz quilo que pretensamente a singulariza, isto , sua feminilidade. como nos desenhos animados, histrias em quadrinhos ou seriados de TV: quando h uma equipe, homens ou meninos brancos so a maioria e aparecem uma mulher e um negro como concesses ao politicamente correto. Em suma, por mais que ningum v assumir isso em pblico, percebe-se que a experincia de vida da mulher ainda no vista como to rica, signifi cativa, plural, ou seja, reveladora da multiplicidade da existncia humana quanto a do homem. PE De que maneira esse retrato que os escritores fazem das mulheres est ligado ao panorama da prpria realidade social brasileira? possvel identificar esse mesmo padro de abordagem em relao a outras minorias sociais? Regina Creio que um processo que se realimenta. Escritores criam a partir das suas vivncias, mas tambm, em grande medida, a partir de modelos da tradio literria. Estes modelos esto em falta e aqueles existentes parecem defasados, porque a condio feminina evoluiu muito mais rapidamente que sua representao na literatura. Quanto baixa representao das demais minorias, sem dvida. Se o retrato da mulher j estereotipado, o da mulher negra ainda pior. E isso se d, inclusive, nos livros escritos por autoras. Brancas, claro! PE Diante do fato de que mais da metade da populao brasileira do sexo feminino, o que afastou e ainda tem distanciado as mulheres da autoria desses romances? Esse quadro tambm se repete em outros pases? Regina No tenho dados estatsticos de outros pases, mas sei que na Frana, por exemplo, a situao bastante semelhante. Creio que, em primeiro lugar, as mulheres escrevem menos porque tm menos tempo livre. Quando um homem volta do trabalho, noite, e se senta em frente ao computador para escrever, ele muitas vezes tem uma mulher preparando seu jantar e cuidando de seus fi lhos. Normalmente, ningum faz isso para uma mulher. E ela ainda se sentiria culpada se algum o fi zesse. Depois, mesmo que a mulher consiga escrever, temos ainda o profundo machismo da sociedade brasileira, que considera o trabalho da mulher inferior. Isso no diferente no meio literrio em alguns casos, pode ser at pior. PE Na entrevista da edio de maro de Panorama Editorial, o jornalista e crtico Manuel da Costa Pinto disse que a produo literria brasileira vive atualmente num ambiente de baixa voltagem em relao a tentativas de renovao. A senhora concorda? Regina Acho que h pouca renovao porque h pouca ousadia, pouca pretenso entre nossos escritores. Eu acredito que a renovao possa ser impulsionada por esses novos agentes sociais que esto tentando se aproximar do discurso literrio: os cidados das periferias, negros, pobres etc. No que eles possam fazer isso sozinhos, mas acho que podem contaminar nossa literatura com outros modos de ver o mundo. Vivo dizendo que isso, para mim, um gesto poltico que se faz esttico, ou vice-versa. PE Isso pode afetar de alguma maneira, ainda que no longo prazo, o uso do livro e da literatura como ferramenta de representao artstica dessa diversidade humana? Regina Penso que a incluso de outros grupos s vai se dar com muita luta. Afi nal, ningum abre mo de seus privilgios assim basta olhar em volta e ver como alguns escritores, e alguns crticos, se contorcem quando colocados diante dessa discusso. Esse o nico modo de mudar essas representaes nos livros. E mesmo fora do contexto artstico a sociedade tambm precisa se repensar. A comear por ns prprios, os crticos, que temos de assumir uma posio e entender que a literatura no algo que acontece fora de nossa realidade social. E que ela tem implicaes nessa realidade, que pode ajudar a reforar preconceitos, ou chamar ateno para o fato de que nossa sociedade preconceituosa. Da vem tambm a necessidade dos escritores perceberem que no esto acima dessa realidade, e que precisam avaliar suas prprias construes. Editoras, bibliotecas, instituies que do prmios a livros, ou que os selecionam para as escolas, tambm precisam repensar seus critrios. PE Diversos fatores afastaram grupos excludos de manifestaes artsticas como a literatura. A literatura ainda pode ser uma ferramenta para a construo de uma sociedade melhor? Regina No acho que a literatura tenha a responsabilidade, ou possa ter a pretenso de mudar o quadro social de excluso. Em primeiro lugar porque no acredito na viso idealizada de alguns de que a literatura pode mudar o mundo, melhorar as pessoas. Se fosse assim, os alemes no teriam perpetrado o holocausto, por exemplo quantos admiradores de literatura e das artes em geral no estavam entre os carrascos nazistas? O perigo desse tipo de percepo tambm est ligado ao fato de que, se eu gosto de ler, ento sou superior queles que preferem jogar futebol. Este elitismo intelectual , no mnimo, desagradvel e, em sua extenso, pode servir muito bem para excluir algumas pessoas e grupos sociais. Agora, acredito que a literatura seja um dos discursos sociais presentes e atuantes no Brasil. Ele se junta aos outros, aos discursos polticos, publicitrios, jurdicos, mdicos... Dialoga com eles. Da sua responsabilidade social. Ela pode simplesmente reforar preconceitos, legitimando-os. Ou pode question-los, trazer novos modos de pensar nossas relaes com o outro; pode contrariar, ou mesmo contaminar os demais discursos com perspectivas diferentes. PE Lindsay Waters, editor de Humanidades da Harvard University Press e entrevistado na edio de outubro passado, disse que nos Estados Unidos h um problema no meio editorial acadmico que ele chama de ditadura da monografi a, resultado de uma avalanche de livros que reproduzem resumos ou comentrios de estudos universitrios. Este nicho existe no Brasil? Em que medida essas publicaes trazem reconhecimento e lucro para os autores? Regina No conheo esse tipo de livro aqui no Brasil. mais comum livros que tragam trechos e comentrios, por exemplo, nos romances de leitura obrigatria para os vestibulares. O que h dentro das universidades a produo de monografi as e dissertaes, at mesmo teses de doutorado, que no passam de uma compilao de outras teorias. Isso frustrante e, a meu ver, intil em tempos de Google, porque deixa claro que o estudante precisa mostrar apenas que leu muita coisa, mesmo que no tenha entendido. Felizmente isso vem mudando. claro que o aluno precisa conhecer o assunto com o qual vai trabalhar, mas espero que meu orientando pense em seu objeto de estudo antes de soterr-lo com um monte de teoria isto feito, justamente, para driblar a necessidade de se criarem conceitos prprios. Em resumo: a teoria, que seria uma ferramenta para iluminar determinada discusso, passa a ser o foco e o pior, apenas de maneira descritiva. PE Waters disse tambm que o baixo ndice de leitura entre os estudantes preocupante por l. De maneira geral, a senhora acha que os alunos brasileiros do ensino superior lem adequadamente? Regina Meus alunos so devoradores de livros, mas no podem ser usados como modelo. Todos os que trabalham comigo foram selecionados justamente por terem um interesse especial na leitura e no estudo. No tenho dados para falar com certeza sobre isso. Imagino que exista uma diferena grande tambm entre estudantes universitrios e os outros, uma diferena entre os que estudam em universidades pblicas e particulares (as reclamaes dos professores das faculdades particulares nesse aspecto so muito freqentes). Pelo senso comum, creio que sempre vamos dizer que nossos estudantes lem pouco. S acho que h uma diferena grande entre os universitrios norte-americanos e os brasileiros: eles praticamente s lem em ingls (muitas vezes s obras escritas em ingls); ns, que no temos uma lngua hegemnica, somos obrigados a aprender outras. Abra uma tese brasileira e espie a bibliografi a; voc ver obras em trs ou quatro lnguas diferentes. Fora isso, em nossos cursos costumamos apresentar muitos autores diferentes para nossos alunos. Quase sempre lemos um captulo do livro e no o livro inteiro de determinado autor. H quem ache isso ruim, pela fragmentao. Mas h o lado bom: em vez de conhecermos a posio de uma autoridade sobre o assunto, analisamos vrias, colocamos diferentes perspectivas em confronto. PE Voltando ao estudo, a senhora disse que ele no est completo. O que ainda falta? Qual a importncia de pesquisas como esta para a crtica literria no mbito acadmico? Regina Falta fazer novos cruzamentos, analisar os dados mais detidamente, pensar outras perguntas. interessante porque cada vez que apresento uma parte do trabalho surgem, entre os que me ouvem, novas questes para serem investigadas. Falta tambm, a partir desses dados mais abrangentes, analisar o especfico. Ou seja, os negros mal aparecem nos romances, mas, quando aparecem, como so construdos efetivamente? Eles so personagens ou apenas objeto da fala de um outro? Acabo de escrever um artigo sobre isso, mas ainda h muito a se pensar. Fora isso, acho que a pesquisa prossegue por muitos outros caminhos. Tenho orientandos de graduao, mestrado e doutorado trabalhando com a representao de grupos especfi cos. Por exemplo, sobre as crianas, os loucos, as velhas, as mulheres negras no romance e no rap, os pobres no romance e no cinema... Os desdobramentos so muitos. www.blogdogaleno.com.br IMPRIMIR