Retratos de Maré

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Retratos de Maré é um livro-reportagem sobre Ilha de Maré, produzido como um Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do título de bacharel em Jornalismo na Universidade Federal da Bahia. Como o título sugere, o trabalho procura mostrar retratos, ou perfis, dos marezeiros, habitantes naturais da Ilha. O livro-reportagem divide-se em três partes: A Ilha, que discorre sobre os aspectos gerais do local; A devastação, que descreve a degradação ambiental que toma conta da ilha e seu entorno; A Luz, que relata o processo de resistência dos marezeiros e suas esperanças.

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    Retratos de Mar

    Raza Tourinho

    Histia u prso meaado

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    Raza Tourinho

    Retratos

    de

    MarHistrias de um paraso ameaado

    Salvador

    2011

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    Trabalho de Concluso de Curso

    Curso de Comunicao Social com Habilitao em Jornalismo - Universidade Federal da Bahia

    Reitora da Universidade Federal da Bahia

    Dora Leal Rosa

    Diretor da Faculdade Comunicao

    Giovandro Marcus Ferreira

    Professora Orientadora

    Simone Terezinha Bortoliero

    Autora

    Raza Tourinho

    Editorao Eletrnica

    Raza Tourinho

    Fotografas

    Julien Karl/Labfoto UFBA; Alexandre Scussel Zanatta e Raza Tourinho

    Capa

    Criana na praia de Botelho em frente ao Porto de Aratu Julien Karl

    Ficha Catalogrca

    SILVA, Raza Tourinho R.

    Retratos de Mar: Histrias de um paraso ameaado.Salvador, 2011. 85 p.

    1.Ilha de Mar 2. Poluio Ambiental 3. Comunidade Quilom-bola 4.SalvadorCDD 070

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    Baa de Todos os Santos

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    Agradecimentos

    No foi fcil enfrentar esta jornada, mas com prazer que reconheo que no cumpri a

    misso sozinha. Gostaria de agradecer primeiramente minha famlia por todo apoio e

    suporte concedido, em especial ao meu pai, Joo Carlos, por ter sido, mesmo distncia,

    o meu principal crtico e motivador. Quero agradecer ainda ao meu namorado Rafael, que

    foi meu companheiro e soube iluminar, tantas vezes, o meu caminho; E aos meus amigos

    e minha prima Prola, por acreditarem em mim. Agradeo tambm professora Simone

    Bortoliero, por ter orientado meus passos no somente neste trabalho, como na vida. E,

    por m, concedo meus agradecimentos aos marezeiros, este povo lutador que me acolheu

    e conou a mim suas histrias. Em especial, para Deise e Seu Salvador que, na luta por

    uma Ilha de Mar melhor, me abrigaram em suas vidas.

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    A maior parte da Histria se oculta na

    conscincia dos homens

    (Joo Ubaldo Ribeiro)

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    Apresentao

    Este livro surgiu da doce utopia de traduzir em palavras a Ilha de Mar, por meio de um

    perl. Da o nome Retratos, oriundo de uma tentativa exaustiva de capturar o cerne do lugar,

    por mais conitante e complexa que ele seja. Ao longo dos mais de 500 dias que a ideia

    esteve em minha cabea esta tarefa foi revelando-se cada vez mais difcil. Os retratos deste

    livro no so imagticos. Embora possua os registros de uma cmara fotogrca, o relato

    que se tem aqui foi fruto de um nico olhar, o meu, diligente para mostrar no s o que viu e

    escutou, mas a alma deste lugar, capturada por meio das entrelinhas dos sentimentos. A mi-nha viso individual. Nestas pginas, portanto, encontra-se a tentativa de obter a essncia

    de ao menos uma das verdades que este pedao de terra encantador abriga.

    Este livro-reportagem divide-se em trs partes: A Ilha, que discorre sobre os aspectos gerais

    do local; A devastao, que descreve a poluio ambiental existente na ilha e seu entorno; A

    Luz, que relata o processo de resistncia dos marezeiros e suas esperanas. Espero ter trans-

    mitido da melhor maneira um pouco da saga enfrentada por esse povo que quer somente

    prosseguir vivendo no seu paraso.

    Raza Tourinho

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    Sumrio

    A Ilha

    Uma ode Mar 11

    Ali em Kirimur 15

    O ilhu que no entra no mar 19

    Cadernos e ps na gua 23

    A lha de Ogum 27

    A paixo de caryb 33

    A devastaao

    Tesouro submerso 41

    A promessa 45

    Desde o prncipio 48

    O Turquesa e o Cinza 50

    O caos 53

    Uma pitada de f 56

    Soldadinhos de chumbo 59

    O cheiro da urina 64

    A luz

    O grito dos pneus 67

    A arte rendada 73

    O peso da pele 77

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    A Ilha

    Jaz oblqua forma, e prolongada.

    A terra de Mar toda cercada

    De Netuno, que tendo o amor constante

    Lhe d muitos abraos por amante,

    E botandolhe os braos dentro dela

    A pretende gozar, por ser mui bela.

    Ilha de Mar, Manuel Botelho (16361711)

    Ponta de Itamoabo

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    A Ilha

    Uma ode Mar

    Aps morar durante anos na Europa, Manuel amou ainda mais o mundo onde

    nascera. Aquele pequeno pedao de terra em meio ao mar, despertava seu des-o mar, despertava seu des-

    lumbramento devido s riquezas naturais.

    Legado que no se resumia apenas a cana que gerava o acar produto que nanciou no

    somente sua estadia em terras lusitanas, como tambm a base econmica de todo Brasil Co-

    lnia naquele sculo mas tambm seus frutos, suas praias, seu povo. E o encantamento que

    tinha sobre a ilha atravessou sculos por meio das linhas mpares que ele escreveu:

    muito bela, muito desejada,

    como a concha tosca, e deslustrosa,

    Que dentro cria a prola fermosa.

    Estes so versos da silva Ilha de Mar, poesia do livro Msica do Parnaso (1705). Foi

    a primeira obra literria publicada por um autor nascido no Brasil. As palavras que trans-

    bordavam o sentimento que Manuel nutria pelo lugar continham um tom sensual de uma

    declarao a uma donzela. A poesia de Manuel Botelho de Oliveira imortalizou para sempre

    Ilha de Mar, regio no centro da Baa de Todos os Santos, pertencente administrativamente

    capital baiana. Pela exaltao que faz a ilha, a silva originou toda literatura ufanista que

    aconteceria depois.

    No era o primeiro livro de Manuel. Enquanto morava em Coimbra, onde conviveu durante

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    trs anos com o jovem poeta conterrneo Gregrio de Mattos, Botelho tomou gosto pelos

    versos, prazer que o acompanharia para sempre. Na poca, ele publicou a pea teatralHay

    amigo para amigo.

    O poeta baiano nasceu em 1636 e faleceu em cinco de janeiro de 1711, aos 75 anos de idade.

    Manuel Botelho estudou Jurisprudncia Cesria na Universidade de Coimbra, em Portugal,

    e mais tarde exercitou em terras brasileiras a Advocacia de Causas Forenses. Exerceu ainda

    o cargo de vereador do Senado e capito mor dos distritos de Papagaio, Rio do Peixe e

    Gameleira, posto obtido devido a um emprstimo de 22 mil cruzados para a criao da Casa

    da Moeda na Bahia. Manuel possuiu ainda dois engenhos no Recncavo, ncleo da regioaucareira baiana poca se tornando membro da orescente aristocracia aucareira da

    segunda metade do sculo XVII.

    E o poder que possua o acar na poca tornouse evidente na carta publicada no dia 20

    de junho de 1662, uma declarao dos senhores e lavradores de cana do perodo colonial.

    Quem diz Brasil, diz acar, pois o acar a cabea deste corpo mstico que o Brasil

    explicita o documento.

    Principal produto do Brasil Colnia, o acar tinha o valor que atribumos atualmente ao

    petrleo. Isso fazia de Manuel, portanto, um dos ricos senhores baianos, detentores de, no

    mnimo, dois engenhos, e que provinham de famlias solidamente implantadas na atividade

    antes da crise de 1680 quando houve uma drstica baixa no preo do acar.

    O senhorio de sua famlia deve ter se constitudo nos primeiros anos de 1600, aps a dcada

    prspera de 1580 para a lavoura do acar, quando as campanhas de Mem de S conquista-

    ram dos ndios a maior parte das terras do Recncavo. Nos anos de 1580, havia no Recnca-

    vo apenas 36 engenhos de acar; em 1629 j so 80 e, em 1676, contavam 130.

    No improvvel que um dos engenhos existentes na Ilha de Mar tambm pertencesse

    famlia de Manuel Botelho de Oliveira. Nas invases holandesas na Bahia houve incndio

    e destruio de engenhos. Os da Ilha de Mar no caram excludos da degradao, a um

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    desses engenhos degradados se refere Manuel nos versos da silva ilha de Mar:

    Nesta ilha est muita ledo e mui vistoso

    Um engenho famoso

    Que quando quis o fado antigamente

    Era rei dos engenhos preminente

    E quando Holanda prda e nociva

    O queimou, renasceu qual Fnix viva.

    Nos dias atuais ainda podem ser encontrados os resqucios de dois dos engenhos em Porto

    dos Cavalos e Praia Grande, comunidades da Ilha de Mar. Os descendentes dos escravosque trabalhavam nos engenhos do recncavo baiano continuam at os tempos atuais habi-

    tando a ilha. Mais tarde, uma das principais comunidades do local foi batizada de Botelho.

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    CapadaSilva-Manuel Botelho

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    Ali em Kirimur

    Foram os primeiros portugueses, que frequentavam aqueles lados desde meados

    de 1500, que nomearam a ilha que s se poderia chegar quando a mar estivesse

    propcia para a viagem. Ilha de Mar um pedao de 13 quilmetros de terra no

    centro da segunda maior baa brasileira: a de Todos os Santos (BTS). Os tupinambs a cha-

    mavam de Kirimur, que em sua lngua signica grande mar interior.

    Dentro da Baa, existem 54 ilhas distribudas em 14 municpios. um espelho dgua com

    mais 1.110 km, apresentando 221 quilmetros de extenso litornea, sendo que 98 km so

    relativos Ilha de Itaparica, a maior das ilhas tropicais da regio. A rea da baa correspon-A rea da baa correspon-

    de a quase o dobro do territrio de Cingapura e a 500 vezes o territrio do Principado de

    Mnaco. Alm disto, a BTS recortada por mais duas baas, a de Iguape (40 km de costa)

    e a de Aratu (17 km), o que a faz ser classicada por alguns pesquisadores como um golfo.

    Em sua extensa costa, 55 km so de reas urbanas, 268 km representam praias de lazer e os

    139 km formado por manguezais, importante ecossistema responsvel pela transio entre

    o ambiente terrestre e marinho.

    Originalmente dominada pela Mata Atlntica, vegetao que foi reduzida a 10% do tamanho

    original, aps a decadncia da lavoura aucareira, a regio de Aratu passou por um processo

    de estagnao econmica at meados do sculo XX, quando, a partir de 1947, teve incio a

    explorao de petrleo na regio de Aratu e Candeias.

    Em 1966, foi criado o Centro Industrial de Aratu (CIA), no qual operam atualmente, 170

    unidades dos segmentos qumico, plstico, txtil, metalmecnico e farmacutico. A regio

    de Aratu compreende a baa de Aratu, o canal de Cotegipe, que liga esta baa a Baa de Todos

    os Santos, e a regio situada a leste da Ilha de Mar (Caboto, em Candeias) ao norte do Porto

    de Aratu. Em 1982, a Petrobras instalou trs poos de extrao de petrleo em Ilha de Mar

    que funcionam at hoje, somados a outros nove, que extraem gs natural.

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    Na Baa de Aratu h duas marinas, que abrigam centenas de iates e lanchas. No difcil

    encontrar esses barcos transitando na Ilha de Mar. Muitos solicitam as iguarias marezeiras

    para serem degustadas em alto-mar. Os nativos levam as moquecas e os pratos carregados

    de dend em canoas at os rebuscados barcos. A elite aprova a entrega delivery.

    A Ilha de Mar possui nove povoados (Botelho, Praia Grande, Bananeiras, Santana, Marte-

    lo, Ponta Grossa, Neves, Itamoabo, Porto dos Cavalos), distantes apenas cinco quilmetros

    da capital. Os morros no interior da ilha que se avistam a distncia obrigaram os marezeiros

    a habitar ao longo da costa da ilha. Entretanto, nas comunidades de Praia Grande e Santana,

    mais povoadas, a ocupao se expande at 40 metros morro acima local ameaado porquedas, deslizamentos e tombamentos. Durante todo o ano predomina o clima tropical, cuja

    temperatura mdia gira em torno dos 24C.

    Cercada pelo mar,s se chega ou sai da ilha de barco, em travessias feitas nos terminais de

    So Tom de Paripe ou na Enseada de Caboto. O trajeto dura cerca de 30 minutos e feito

    em barcos a diesel ou canoas. A tarifa de embarque varia entre R$ 2 e R$ 4. No Terminal

    Hidrovirio de Paripe pode-se pegar um barco nas primeiras horas da manh ou no nal da

    tarde. Na ilha, caso o turista perca o ltimo barco, que sai no mximo s 16h nas comuni-

    dades mais badaladas, o pernoite no local obrigatrio.

    A inexistncia de horrios xos das viagens restringe os passageiros, que cam aguardan-

    do a lotao da embarcao para realizar a travessia. J em Caboto, as travessias no tm

    horrio xo nem terminal. Os prprios moradores da ilha que possuem canoa realizam o

    transporte, cobrando dos passageiros adicionais.

    Transportar um novo eletrodomstico ou mvel ento exige um verdadeiro talento. Mas isso

    no impede a populao de levar at mesmo motocicletas nos barcos a diesel. Os moradores

    costumam fretar um barco quando o utenslio possui um porte maior.

    Nunca aconteceu de cair nada replica um barqueiro ao ser questionado se o sof amar-

    rado no barco no corria nenhum risco de car em alto-mar.

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    ***

    Criado na Ribeira, pennsula itapagipana de Salvador, Leonardo Gomes, 27, o Freitas, co-

    meou a navegar aos 10 anos, ensinado pelo pai marezeiro. H seis anos decidiu se mudar

    para a ilha e fazer do seu barco um meio de sobrevivncia. Logo prosperou e investiu na

    carreira. Fez o exame de marinheiro auxiliar de convs, ttulo necessrio para navegar em

    guas baianas, at passar na quarta tentativa. A prxima meta obter o ttulo de marinheiro

    nacional, para navegar por guas interestaduais.

    muito difcil, tem que estudar muito conta ele, que completou o ensino mdio mesmo

    sem ter nascido para estudar.

    O seu pequeno barco, o Binica de Mar, foi construdo h quatro anos em Valena, com

    dois andares e um deck, formando uma estrutura impressionante. O barco tem capacidade

    para navegar com 186 passageiros a bordo, sendo o maior em atividade em Ilha de Mar.

    Alm de R$ 400 mil investidos para a construo do barco, Freitas conta que investiu outros

    R$ 150 mil no motor. Investimento que j teve retorno nanceiro.

    Para Freitas, a prosperidade do Binica impressiona porque os habitantes da ilha no pen-

    sam em crescer, em investir nos seus negcios. Uma constatao de um forasteiro na sua

    prpria terra, que ainda se impressiona com a Dominguinha o prolongamento do descanso

    do dia anterior que ocorre na segundafeira, dia em que apenas os atrevidos trabalham duro.

    Leonardo mora sozinho na comunidade de Praia Grande e sente saudades da agitao cul-

    tural da pennsula itapagipana.

    Sete horas no tem mais ningum na rua. Maresia s. S a internet que salva mesmo, seno

    eu nem sei...

    H poucos meses a Ilha de Mar ganhou um provedor de Internet Banda Larga, o BJWeb.

    Antes, a cobertura era restrita as bandas estreitas das operadoras 3G ou telefone xo. Nas

    ruas, difcil encontrar Lan House. E o computador ainda tem o poder de conferir statustpico das cidadezinhas de interior.

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    Freitas navegando no Binica

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    A Ilha

    O ilhu que no entra no mar

    Apesar dos sculos que nos separam de Botelho, entende-se a inspirao dos

    seus sonetos ao chegar ilha. O mar calmo que banha as areias esbranquiadas,

    cercado de uma densa vegetao, remete s paisagens paradisacas enaltecidas

    pelos pintores e poetas de outrora. A natureza exuberante e a simplicidade das habitaes

    revelam, talvez, um retrato de outros tempos, distante da lgica de consumo desenfreado de

    tudo de aparelhos tecnolgicos suposta felicidade proporcionada por minutos de prazer

    existente nas grandes cidades.

    Alis, o lazer dos marezeiros est ocialmente registrado: praia, festividades religiosas,

    bebida e futebol. Realidade simples de comprovar. Basta passar um domingo na ilha para

    vericar que a populao est dividida entre essas quatro atividades. Apesar de constarcomo lazer ocial, a praia frequentada muito mais por crianas e adolescentes do que pelos

    adultos que moram na ilha, exceto por Itamoabo a praia ocial de Ilha de Mar, cuja

    gua cristalina e calma e a areia sempre cheia de banhistas lembra um pouco o popular Porto

    da Barra, em Salvador.

    Na ilha, entretanto, no h construes dedicados ao lazer e os meninos jogam bola em

    um campo de areia que ser submerso pelo mar poucas horas depois. Os bares e as igrejas

    tambm marcam pela presena excessiva pela ilha, revelando muito dos hbitos dos seus

    moradores os botecos lideram a lista dos estabelecimentos comerciais existentes na ilha.

    O cho de areia nas comunidades no raro torna-se enlameado.

    A paixo pelo futebol caracterstica tanto de homens quanto das mulheres, embora exista

    apenas um campo para a prtica do esporte em toda ilha localizado na comunidade de

    Santana. Entre os marezeiros, inclusive, existe at um campeo brasileiro. O jogador Marco

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    Antnio, ex-zagueiro que fez parte do Flamengo pentacampeo Brasileiro em 1992, atuou

    no Galcia e hoje professor de uma escolinha de futebol em Salvador. Mas seus primeiros

    dribles foram dados nas areias da ilha.

    O baba do nal de semana a paixo do cesteiroZejuel Santana Neves, 34, o Zu. Ele no

    perde a oportunidade de jogar uma bola, fruto talvez, dos incontveis babas que perdeu para

    cuidar dos seus seis irmos.

    No tive infncia. Desde cedo tive que trabalhar para ajudar meu pai. Eu acordava de ma-

    drugada para trocar as fraldas dos menores lembra, com um tom de tristeza entrecortando

    a voz.

    Zejuel alm de bom de bola era bom de caderno. Quando garoto gostava de estudar, mas

    sem condies de pagar o barco para realizar a travessia, ele no passou do estudo primrio,

    que at os dias atuais o nico oferecido na ilha.

    Zu mesmo uma gura singular: moreno de olhos verdes, ele transmite uma timidez quase

    infantil. Para se sustentar, ele pega bicos na construo civil. Trabalha uns tempos de pe-dreiro e depois volta a fazer cestos. E assim vai procurando sobreviver na ilha.

    uma situao difcil. Estou agora mesmo correndo atrs de trabalho.

    Os pequenos cestos de cana brava que fabrica so vendidos aos atravessadores por R$ 3,

    para serem comercializados na Feira de So Joaquim. O processo de construo dos cestos

    mais trabalhoso do que as rendas tambm tpicas da Ilha. Tudo comea com o prprio corte

    da Cana Brava, uma planta cujo aspecto se assemelha a um bambu mais no.

    A poluio do ar afetou a produo da planta, que j no mais facilmente encontrada em

    Mar. O jeito atravessar a Baa e pedir autorizao aos militares para retirar a cana brava

    da Base Naval. Como benecia a prpria Marinha, que acaba tendo a rea limpa, difcil

    os militares negarem. Aps um dia inteiro cortando a planta, os cesteiros voltam no dia se-

    guinte somente para transportar a cana brava (A marinha no autoriza o transporte no mes-mo dia) que dar para as prximas trs semanas de trabalho. Depois de cortada a cana ainda

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    vai ser desada para poder dar incio a arte. Um trabalho e tanto. Os dois dias da semana

    perdidos, se transformam em trs.

    O trabalho tanto que precisa de um dia, ao menos, para me recuperar conta Zu.

    Apesar de ser ilhu, e contar que sabe nadar, Zu tem uma cisma do mar, adquirida desde

    criana. Um peixe muito grande passou por detrs dele enquanto garoto e Zu nunca esque-

    ceu a sensao. No tem medo da travessia de barco nem nos dias de tempestade, mas se

    puder no entra no mar de jeito nenhum.

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    Zu confeccionando seus cestos

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    A Ilha

    Cadernos e ps na gua

    Ausncia, na verdade, parece ser o substantivo predileto desse pedao de terra.

    No h praas, espaos esportivos, farmcia, caixas bancrios eletrnicos, cor-

    reios, hospital, posto policial (Ilha de Mar a nica das trs ilhas pertencentes

    Salvador que no possui nenhum tipo de policiamento) e escola de ensino fundamental e/

    ou mdio na ilha. As quinze mil pessoas que povoam a ilha vivem como conseguem.

    O nico posto de sade da ilha funciona em Praia Grande apenas em horrio comercial de

    segunda a sexta-feira das 8h s 17h. Mdico mesmo, somente segunda e tera-feira, entre 9h

    e 16h. Passar mal fora do horrio signica transtorno certo. Quem no possui barco para re-

    alizar a travessia, paga cerca de R$ 60 pelo frete de um, ou espera atendimento de um barco

    do Servio de Atendimento Mdico de Urgncia (Samu), que nem sempre chega a tempo.

    O posto atende cerca de duas mil pessoas por ms. So dois mdicos, um dentista, dois

    enfermeiros, quatro auxiliares de enfermagem e um odontolgico, alm de oitos agentes de

    sade comunitria. A comunidade enfrenta transtornos para marcar alguns procedimentos

    no posto. Segundo conta os moradores, a marcao para uma consulta odontolgica ocorre

    a cada dois meses, reunindo centenas de pessoas na la, que chegam na noite anterior para

    garantir uma vaga.

    O lixo ca acumulado na costa da ilha at ser recolhido. Um barco da Limpurb faz o reco-

    lhimento trs vezes por semana nas comunidades prximas da costa. O resto incinerado

    pela prpria populao, causando um incmodo mau cheiro. O Censo Demogrco 2000

    do Instituto Brasileiro de Geograa e Estatstica (IBGE) revelou que dos 953 domiclios

    de Ilha de Mar, em 500 residncias o lixo coletado por algum servio de limpeza. Em

    181 ainda predomina o hbito da queimada no descarte do lixo e em 224, se joga o lixo em

    terreno baldio.

    A revitalizao da orla de Salvador, que em 2010 retirou as barracas de praia da orla ma-

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    rtima da capital baiana, tambm incluiu as simples barracas da ilha, que foram derrubadas

    no nal de abril de 2011.

    ***

    A solidariedade e unio estampada nas relaes entre os habitantes o nico antdoto que

    eles possuem. A economia do local baseada na pesca artesanal, agricultura (principalmente

    o cultivo de banana, iguaria da ilha), no artesanato (renda de bilro) e no pequeno comrcio.

    A maioria das residncias marezeiras abriga cerca de trs a quatro moradores. Todas elas

    so construdas com o suor dos chefes de famlia, sendo que os nicos imveis alugados so

    utilizados geralmente por veranistas ou acadmicos. Conforme aponta o Projeto de Trabalho

    Tcnico Social 2008 (PTTS), solicitado pela Embasa, 96,2% das casas possuem somente

    um banheiro. A renda familiar dos marezeiros situa-se em at dois salrios mnimos, sendo

    mnima a porcentagem dos que faturam mais (12,8%). Os programas sociais, como Bolsa

    Famlia, auxiliam a renda de quase todas as famlias da ilha, principalmente pela prioridade

    dada devido condio de quilombola, e renda nica de 17, 6% das residncias marezei-

    ras.

    ***

    Como mesmo conta, Floricia das Neves s fez nascer em Caboto, povoado do municpio de

    Candeias. Sua av, parteira, trouxe a menina ao mundo e a devolveu logo depois Ilha de

    Mar. Atualmente com 56 anos e trs lhos, Floricia responsvel pela apresentao das

    letras e nmeros a cerca de 400 alunos que estudam nas duas escolas das quais diretora.

    Aberta e carismtica, ela se orgulha de j ter formado at advogado em suas instituies.

    Conquista de quem conheceu as primeiras letras na ilha, mas foi forada a morar com o

    pai na capital para completar o ensino mdio por um supletivo. A faculdade distncia foi

    concluda h apenas quatro anos, quando seus prprios lhos entraram na universidade. As

    pequenas vitrias tm um sabor peculiar, para essa senhora que no deixa os seus estudantes

    sem merenda. Ang de banana, moqueca de peixe, feijo com farinha. As iguarias da ilha

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    A Ilha

    alimentam muito mais do que o estmago, ajudam a manter viva a cultura ancestral.

    Nove escolas primrias, sendo duas em Praia Grande, compe o universo educacional de

    Ilha de Mar, sendo que a maioria dos professores so leigos ou seja, no possui diploma

    universitrio ou no moram na ilha. Desde 2008 h projetos de implantao de uma escola

    de ensino fundamental II. No entanto, at o momento, os meninos mais velhos so levados

    Paripe para completar os estudos. Mesmo representando 90% dos alunos matriculados na

    Escola Estadual Marclio Macedo, na Base Naval, os estudantes marezeiros ainda sofrem

    com o desconhecimento dos docentes sobre as diculdades que enfrentam, sendo que mui-

    tos dos professores nunca sequer foram ilha. A prefeitura aluga um barco que os buscam s6h e os trazem s 14h. No perodo de chuvas, devido ao mar agitado, o barco no se arrisca

    a sair e eles cam em casa.

    Quando esse prefeito sair, ningum sabe se o barco vai continuar conta Floricia, re-

    velando um pouco da tradio existente de transformar o que deveria ser direito bsico em

    favor poltico.

    At h pouco tempo, os estudantes precisavam retirar os sapatos e levantar as calas at o

    meio da perna para pegar o barco. E no s eles. Quem quisesse entrar e sair da ilha deveria,

    via de regra, arregaar as mangas e molhar os ps. Com a instalao de ancoradouros em trs

    povoados da ilha ano passado, essa realidade comeou a mudar. Uma das poucas conquistas

    que este povo se lembra nos ltimos 20 de anos.

    O projeto do atracadouro antigo. Em 10 de setembro de 1985, o jornal da prefeitura janunciava a instalao de pontos de atracao, ao lado da implantao da energia eltrica e

    gua encanada na ilha:

    A falta de atracadouros no chega a ser um transtorno para as pessoas mais descontradas

    declara o jornal ocial.

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    Casal assistindo a jogo de futebol

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    A lha de Ogum

    Os marezeiros tocam a vida com a ajuda da padroeira da ilha, Nossa Senhora

    das Neves, e do padroeiro de Salvador, So Francisco Xavier. A ilha o nico

    local da Bahia que possua um templo em homenagem ao santo que, por duas

    vezes, salvou a populao da capital das pestes. Foi o caso, por exemplo, do ano de 1855,

    quando irrompeu uma devastadora epidemia de clera (cholera morbus)na Bahia. O templo

    cava localizado no local denominado atualmente de Oratrio.

    J a padroeira da ilha possui at hoje uma igreja somente para ela. a Igreja Matriz da Nos-

    sa Senhora das Neves, que batizou o povoado em que se situa as Neves, e tombada como

    patrimnio histrico cultural pelo Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional

    (Iphan). H indcios de que esta tenha sido uma das primeiras igrejas erguidas no Brasil,

    construda em meados de 1500. Segundo alguns autores, a capela foi inaugurada em1552,

    construda por ordem de Bartolomeu Pires, mestre da capela de S que era marezeiro e pos-

    sua um engenho de acar na ilha. Outros autores, no entanto, argumentam que a capela

    no poderia ter sido construda antes de 1570. Ao longo de sua histria, a Igreja j foi res-

    taurada diversas vezes. Em 1993, chegou a ser assaltada, sendo levada a imagem de 30 cm

    de madeira da padroeira. Diversas lendas cercam a padroeira. Os populares armam que a

    igreja foi erguida miraculosamente, pois ningum presenciou sua construo, e que a prote-

    o da padroeira tamanha que ningum na ilha morre por picada de cobra.

    Ilha de Mar possui ainda outros templos catlicos, como a Igreja de Santana, erguida no

    sculo passado no povoado homnimo e a tambm centenria Igreja Nossa Senhora de Can-

    deias, em Praia Grande. Os marezeiros comemoram festivamente Bom Jesus dos Navegan-

    tes, no ltimo domingo de janeiro. No sbado que antecede a data realizada uma procisso

    martima e, noite, baile no barraco local. No dia da festa tem missa solene s 16 horas,

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    seguida de procisso terrestre. Antes, no dia 11, tem a Festa do Peguari e Frutos do Mar,

    que rene centenas de pessoas para apreciar a culinria e o artesanato local, alm de muita

    msica. Nos dias 4 e 5 de agosto comemorada na ilha a Festa de Nossa Senhora das Neves.

    H grande presena evanglica na Ilha, no sendo raro visualizar nas comunidades mais

    habitadas templos de duas ou trs correntes neopentecostais. A maioria constituda por

    pequenas casas, com o nome pintado em destaque, sendo algumas localizadas na beira da

    praia. Segundo o PTTS (2008), a ilha possua 12 instituies religiosas neopentecostais re-

    gistradas, embora tenham sido encontrados 16 templos. Provavelmente, nos dias atuais este

    nmero bem maior.

    J os terreiros de candombl so mais discretos e funcionam nos quintais de

    certas casas. Dos 1.665 terreiros de Salvador, seis esto localizados na ilha

    . A discrio justicada pela intolerncia que existe em todo territrio baiano, destoando

    da sincronia religiosa que simboliza o Estado at os tempos hodiernos.

    ***

    Ela descobriu que era denominada, na verdade, Maria Angelita de Amorim, somente quan-

    do, no auge dos 20 anos, pegou a certido de nascimento para dar entrada no primeiro em-

    prego. At ento, todos no povoado, inclusive seus familiares, a chamavam de Angelina, de

    modo que crescera desconhecendo o nome registrado em cartrio. Ela que j aprendera a

    escrever o nome como achara que era, teve que reaprender a graa que a nomeava. E este

    o resumo do envolvimento de Dona Angelina, agora j septuagenria, com as letras. Mas

    no a sntese da relao dela com a educao.

    As grossas mos tpicas de quem sobreviveu durante toda a vida batendo o feijo fradinho

    para transformar em acaraj, foram responsveis tambm pela construo de creches comu-

    nitrias, clubes de mes e de reivindicaes pela construo de escolas.

    Dona Angelina, cujas mos, mesmo leigas, aplicaram injees, curativos e trouxe um meni-

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    no ao mundo, sabe bem a importncia da educao. Ela alimentou durante 22 anos estudan-

    tes em escolas na capital baiana, mas nunca sentou em uma cadeira para assistir aula. No

    quis que os lhos do seu povoado fossem tambm cegos das letras e implantou pela primeira

    vez uma creche em Botelho. A creche, que atualmente virou um bar, era administrada por

    um grupo de mes que se revezavam para apresentar os meninos ao alfabeto.

    O saber morre com seu dono. Lutei pela educao dos meus, tanto quanto lutei pelos lhos

    dos outros.

    Os seus j foram dez. Agora, restam oito lhos, 18 netos e 11 bisnetos. Quando ela lembra

    que no completou nem um ano da perda de sua lha, um n da garganta se apodera da voz

    rme pertencente mulher que construiu a vida com as prprias mos.

    Foi no dia quatro de dezembro de 2010, no bairro de Periperi, no Subrbio Ferrovirio de

    Salvador, que um assalto acabou em tragdia para sua lha. Ela, uma enfermeira de 41 anos,

    chegou a ser socorrida para o Hospital do Subrbio, mas no resistiu aos seis ferimentos de

    bala.

    Filha de Ogum, Angelina estava cuidando dos preparativos do seu 57 caruru, que promove

    desde que fundou o Terreiro de Ogum com Ians, em 1957. Os 1.100 quiabos que estavam

    de molho, foram distribudos pela vizinhana. E pela primeira vez a festa no barraco da na-

    o Keto, o nico em Ilha de Mar em outra comunidade que no em Praia Grande, deixou

    de acontecer.

    A religiosidade herana do av paterno, um Nag dos olhos vermelhos, cuja famlia

    habita anos Botelho provando que h quilombolas tambm nesta comunidade. Da parte da

    me, a herana vem do recncavo. Angelina tambm neta de uma ndia pegada no mato,

    l para os lados de Santo Amaro da Puricao.

    Continua sendo um ano triste, com uma dor que no passa. A alegre dona Angelina nunca

    mais foi a mesma. Os convites para festas e cerimnias da famlia e amigos se acumulam

    em suas coisas sem que ela no se anime a sair.

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    Perdi um lho quando ele tinha dez anos, de doena. Mas muito mais triste perder uma

    lha deste jeito lamenta Angelina, que acredita na justia divina para vingar a morte da

    lha, uma vez que o processo no foi levado frente pela Polcia Civil. Por essas tantas, que

    Angelina no troca sua casa em frente praia de Botelho por nada mesmo com o fedor

    de Qboa e mijo podre que sobe de vez em quando oriundo das fbricas do outro lado do

    mar.

    J tentei morar na cidade e no consegui. Aqui para mim um paraso.

    ***

    DonaAngelina no a nica mulher de fora sada dos terreiros.Alis, nos barraces nos fundos das

    casas quem dominam so as mulheres somente um liderado por um homem. A mais antiga das

    casas ativas o Terreiro de Oxssi, criado em 1949, liderado por Joana Nascimento da Encarnao

    .

    Dona Joana, como conhecida, lha adotiva da nada Balbina, uma espcie de guia es-

    piritual dos marezeiros. Balbina Brbara de Santana, Me Bina de Ians, era consideradauma pessoa poderosa. Apesar dos mais de quarenta anos de sua morte, nada Balbina con-

    tinua viva na memria dos marezeiros e nas histrias em que contam. Se fossem em outros

    tempos, e em local ou religio diferentes, provavelmente Balbina teria sido santicada ou

    se tornado um Orix, tal qual o poder que exerce ainda hoje. Parteira, vidente, curandeira,

    rezadeira, me-de-santo e lder comunitria na regio, Balbina foi responsvel por trazer ao

    mundo grande parte da populao da Ilha de Mar. E por criar trs mulheres, sendo uma

    adotiva, que honraram teu nome.

    A sua lha Madalena foi a responsvel por administrar o terreiro de Balbina, mas suas

    lhas no seguiram o mesmo rumo, tendo uma delas tornado-se evanglica. J as outras

    lhas, Maria Genoveva e Joana, receberam de Balbina a cuia, uma espcie de autorizao

    para abrir um terreiro, e abriram suas prprias casas. As lhas de Genoveva continuaram a

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    seguir a religio, sendo que uma delas, Maria do Nascimento da Encarnao (popularmente

    conhecida como Baia) administra hoje o Terreiro de Od, fundado por ela, em 1957, na Rua

    da Palha.

    O modo no qual dona Joana e Baia tocam suas vidas demonstra a fora da ancestralidade

    contida no sangue marezeiro. Ambas desempenharam diversas atividades em paralelo

    liderana religiosa. Entre elas, as funes de donas-de-casa, marisqueiras, ajudantes, comer-

    ciantes, chefes de famlias. Elas enfrentaram de cabea erguida indiferena dos maridos.

    Baia se declara viva de um esposo vivo. Seu marido abandonou a famlia para viver no

    continente com outra mulher. J dona Joana arma que no sabe qual o tempo sofreu mais:quando vivia com Balbina ou quando construiu sua famlia.

    Fui uma escrava3.

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    Dona Angelita vislumbrando a praia

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    A Ilha

    A paixo de Caryb

    Alder dos pescadores de Ilha de Mar, Marizlia Lopes, uma pessoa simples,

    mas que vive em uma casa confortvel em comparao com as residncias

    vizinhas. Revestida por azulejos laranja e piso preto a casa possui uma aura

    sosticada em relao s do entorno, em Bananeiras. A tez morena esconde os 40 anos que

    Nega arma possuir, quando mal aparenta 30. O cabelo crespo arrumado no estiloBlack

    Power, smbolo do orgulho negro. Descendente de escravos fugidos, Nega leva luta dos

    quilombolas s ltimas consequncias, como a ocupao do prdio do Instituto Nacional de

    Colonizao e Reforma Agrria que liderou em meados de 2011.

    Ela revolta-se ao perceber o descaso do poder pblico com Ilha de Mar, justicvel para ela

    por meio de um comportamento que igualmente ancestral: o racismo. A inexistncia de

    polticas pblicas e os crescentes investimentos em obras que prejudicam aos moradores da

    ilha ocorrem pela falta de voz de uma comunidade negra, cuja renda dos mais abastados no

    ultrapassa trs salrios mnimos R$ 1.635 em valores atuais. Tendo estudado at a oitava

    srie, a eloquncia com a qual Nega apresenta suas ideias esbarra na pronncia de algumas

    palavras, tal qual probrema um pequeno lembrete de quem no teve acesso adequado

    escola.

    Como duas ou trs vezes na semana os pretos, ns, tinham que sair para mariscar para

    eles (os senhores de engenho), sempre fugia um na jangada de bambu que eles construam

    escondidos conta a lder comunitria Marizlia Lopes, reproduzindo a histria sobre a

    chegada dos negros fugidos do engenho que escutava do bisav.

    Os escravos que voltavam da mariscagem sempre diziam que os que fugiram tinham, na

    verdade, morrido afogados. Mas nem sempre os senhores de engenho acreditavam. Quandoos fugidos chegavam Ilha de Mar, cavam escondidos durante vrios dias mata adentro,

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    para no serem vistos pelos navios que vinham sua procura. Por isso, existe em Bananeiras

    at hoje, um local denominado Pacincia.

    Esta somente uma das teorias para justicar a intensa presena negra em Ilha de Mar,

    pois a falta de estudos histricos e documentao dicultam o reconhecimento correto da

    origem. A principal fonte de histrias ainda a boca dos mais velhos, que passam de gerao

    em gerao os conhecimentos e causos do seu povo.

    De predominncia negra, cinco dos nove povoados da ilha so certicados pela Fundao

    Palmares como comunidades quilombolas, com um tesouro histrico no documentado.

    As reas quilombolas so: Ponta Grossa, Porto dos Cavalos, Martelo, Bananeiras, Praia

    Grande (que possui a maior populao, cerca de duas mil pessoas). So 900 hectares de

    territrio quilombola, quase metade da ilha.

    Apesar de no ser ocializada pelo Estado ainda, a histria da comunidade por meio da an-

    cestralidade e tradio, no entanto, j reconhecida pelo Relatrio Tcnico de Delimitao

    e Identicao (RTID) do Instituto Nacional de Colonizao e Reforma Agrria (INCRA),

    que deve reconhecer denitivamente como quilombolas as comunidades de ilha em breve.

    O processo que tramita h quase sete anos est praticamente concludo: j foi identicada a

    extenso da rea; feito o estudo topolgico, econmico e cultural e o cadastro das famlias

    e dos imveis. Falta ainda o conhecimento e manifestao de outros rgos pblicos, muni-

    cipais, estaduais e federais, sobre o relatrio.

    Acredita-se que boa parte dos quilombos tenham sido institudos por escravos fugidos daUsina Aliana, que funcionou at 1892 no municpio de Santo Amaro. No entanto, dentro

    da prpria ilha existiam diversas usinas. As futuras comunidades Bananeiras e Praia Grande

    teriam sido ocupadas primeiramente devido abundante vegetao, que escondia os escra-

    vos.

    ***

    As comunidades quilombolas so grupos tnicos predominantemente constitudos pela po-

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    A Ilha

    pulao negra rural, remanescentes de escravos, que se autodenem a partir das relaes

    com a terra, o parentesco, o territrio, a ancestralidade, as tradies e prticas culturais

    prprias. Estima-se que em todo o Pas existam mais de trs mil comunidades quilombolas,

    embora somente 189 possuam o ttulo de terra.

    Para ser titulada como quilombola, a comunidade precisa primeiramente solicitar o reconhe-

    cimento da autodeclarao pela Fundao Palmares. Para obter a certido, a comunidade

    deve enviar uma declarao junto ata de reunio ou assembleia, no qual os habitantes

    aprovam o pedido, alm do relato da histria da comunidade. Aps a solicitao a Fundao

    publica o reconhecimento em dirio ocial e entrega pessoalmente a certido na comuni-dade. O processo ocorre, em mdia, em trs meses. Somente aps obter a certido, que a

    comunidade deve encaminhar o documento Superintendncia do INCRA para iniciar o

    processo de identicao e titulao de terras.

    Somente a certido, entretanto, j garante alguns direitos tais quais assistncia jurdica, ces-

    ta alimentao, kits para ensino da educao quilombola nas escolas e o cadastramento do

    programa Bolsa-Famlia.

    A regulamentao de tal processo consta no Decreto n 4.887, de 2003. A primeira parte

    dos trabalhos do INCRA a elaborao de um estudo da rea, para constar no RTID do

    territrio. A etapa seguinte a de recepo, anlise e julgamento de eventuais contestaes.

    Aprovado em denitivo esse relatrio, o INCRA publica uma portaria de reconhecimento

    que declara os limites do territrio quilombola.

    Aps a delimitao territorial, cabe ao INCRA realizar a regularizao fundiria, com de-

    socupao de habitantes no quilombolas mediante desapropriao e/ou pagamento de

    indenizao e demarcao do territrio. Por m, o rgo realiza a concesso do ttulo de

    propriedade comunidade, que coletivo e em nome da associao dos moradores da rea,

    registrado no cartrio de imveis, sem despesa para a comunidade beneciada.

    O reconhecimento quilombola alm de assegurar o territrio e a autodenio populao

    remanescente, resgatando a autoestima, facilita o acesso aos recursos do governo federal

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    e aos diretos como a merenda escolar. Apesar da grande incidncia negra em toda Ilha de

    Mar, alguns moradores relatam que at h pouco tempo existia preconceito racial:

    Era muito difcil um nego de Praia Grande namorar uma branquinha de Botelho conta o

    msico e historiador amador marezeiro Ramon Carvalho.

    ***

    Outra herana da cultura quilombola a capoeira. Nomes ilustres da luta, como o Mestre

    Waldemar, o Waldemar Rodrigues da Paixo (1916 1990), foram lhos da ilha.

    Inuente mestre de capoeira, Mestre Waldemar comeou a jogar capoeira na poca que a

    luta era uma s. Assim, no se restringiu a diviso entre a capoeira Angola e a Regional,

    sendo que ele praticava diversos golpes, dos mais lentos aos mais combativos, com armada

    preferncia para os mais lentos.

    A diferena entre a Capoeira Regional e a Angola surgiu em 1928 com a fundao da pri-

    meira por Bimba, visando legalizar a luta que era proibida no Brasil at ento. Para que os

    praticantes da antiga luta no cassem marginalizados com a criao da Capoeira Regional,

    que possui caractersticas prprias como hierarquia militar e golpes em p, Mestre Pastinha

    organizou a Capoeira Angola, caracterizada pelos golpes mais lentos e prximos ao cho.

    Um dos mais aclamados mestres de capoeira, o fundador da capoeira Regional, Mestre Bim-

    ba arma que se espelhou na sua capoeira. Durante sua vida Mestre Waldemar colecionou

    amigos famosos, como o pintor argentino Caryb, que frequentava suas rodas de capoeira e,

    provavelmente, conheceu a Ilha de Mar levado por Waldemar e Bimba. At hoje, canta-se

    nas rodas de capoeira o episdio em que o argentino pintou um quadro dedicado ao Mestre

    Bimba na ilha.

    Na histria de Hector Bernab

    Conhecido como Caryb

    Ele pintou um quadro pra Bimba

    L na ilha de Mar

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    A Ilha

    Outro clebre capoeirista nascido em terras marezeiras, o Mestre Moraes. Pedro Moraes

    Trindade nasceu em 1950 na Ilha e conhecido atualmente por ser o maior difusor da Ca-

    poeira Angola aps o Mestre Pastinha.

    Ele comeou a treinar por volta dos oito anos, por provvel inuncia de seu pai, tambm

    praticante de Capoeira Angola. Ele foi aluno de Joo Grande, que discpulo de Mestre Pas-

    tinha, ensinava em sua academia, uma vez que o mestre que j estava cego e sem dar aula.

    Para preservar e transmitir os ensinamentos de seus mestres, Mestre Moraes fundou nosanos 80 o Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP), entidade do qual presidente at

    os dias atuais.

    Moraes foi alm da academia de capoeira e mestre em Histria Social e doutorando em

    Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente vive em Salvador e

    divide seu tempo entre lecionar Ingls e Portugus em uma escola pblica, e presidir os

    projetos culturais da GCAP.

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    Sada de Botelho

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    A devastao

    Todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equili-

    brado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de

    vida, impondose ao poder pblico e a coletividade o dever de defen-

    dlo e preservlo para as futuras geraes.

    Artigo 225, Constituio brasileira de 1988.

    Lixo antes da praia - Botelho

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    A Devastao

    Tesouro submerso

    Ariqueza cultural de Ilha de Mar somente no comparada a diversidade biol-

    gica da regio. At mesmo Manuel Botelho saudou a variedade de plantas, de

    frutas e de animais marinhos que habitam a localidade:

    No falta aqui marisco saboroso,

    Para tirar fastio ao melindroso;

    Os polvos radiantes,

    Os lagostins amantes,

    Camares excelentes,

    Que so dos lagostins pobres parentes;

    Retrgrados caranguejos,

    Que formam ps das bocas com festejos,

    Ostras, que alimentadas,

    Esto nas pedras, onde so geradas;

    Enm tanto marisco, em que no falo,

    Que vrio perrexil para o regalo.

    Apenas de moluscos, h cerca de cinco mil espcies na costa marezeira, alguns desses es-

    pcies endmicas, ou seja encontradas somente na regio. A Baa de Todos os Santos (BTS)

    como um todo possui uma exuberante e pouco pesquisada riqueza biolgica abaixo de suas

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    Retratos de Mar

    guas.

    A costa baiana abriga os recifes de maior diversidade biolgica do Oceano Atlntico Sul. E

    os recifes da BTS possuem uma biodiversidade similar aos recifes do Banco de Abrolhos, a

    maior rea de recifes de coral do Brasil.

    Ao sul da Ilha de Mar, logo aps as praias, existe uma diversidade enorme de corais. Os

    recifes representam o ecossistema marinho de maior biodiversidade, similar a encontrada

    em orestas tropicais. Ao redor dos corais, vivem lagostas, siris, polvos e inmeras es-

    pcies de peixes. A produtividade biolgica dos recifes de corais normalmente de cin-

    quenta a cem vezes maiores do que em guas do entorno onde no h presena de recifes

    .

    Os corais so formados por carbonato de clcio proveniente de esqueletos de animais e se-so formados por carbonato de clcio proveniente de esqueletos de animais e se-letos de animais e se-

    dimentos acumulados durante milhares de anos. Eles oferecem abrigo e comida e somente

    um recife pode conter cerca de trs mil espcies diferentes. A importncia dessa estrutura

    vital ainda para o equilbrio ambiental do mundo: so responsveis pela disposio de mais

    da metade do clcio dos oceanos e lagos e retiram da atmosfera mais de 111 milhes de to-

    neladas de carbono por ano. Porm, os recifes ao sul da ilha esto sendo degradados devido

    retirada de calcrio para ns comerciais.

    Outro fator de grande degradao ambiental foi o extrativismo mineral submarino para a fa-

    bricao de cimento da fbrica Cocisa, que provocou a destruio da ora e fauna existente

    nos corais.

    ***

    Apesar de desconhecidos de grande parte da populao marezeiro (99,1%), inclusive os

    mais idosos, Ilha de Mar possui rios que formam uma bacia hidrogrca.

    Talvez o motivo para tal desconhecimento seja que a maioria dos rios da ilha, segundo o

    livro Caminho das guas, tem inuncia salina, so encapsulados, intermitentes e de baixavazo. Muitos o curso nem ui naturalmente no ambiente. As bacias existentes na ilha esto

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    A Devastao

    com um alto grau de desmatamento em diversas nascentes, inclusive com o aterramento de

    manguezais.

    A perda da cobertura vegetal nativa causa a diminuio da vazo de suas guas, com grandes

    malefcios para a recarga do aqufero. Embora tenha apresentado ndices acima do permiti-

    do pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) de fsforo e oxignio dissolvido,

    no geral os resultados indicam boa qualidade da gua do rio monitorizado na Ilha de Mar.

    ***

    Chamado de berrio natural, devido proteo que oferece s espcies que abriga, outro

    ecossistema de fundamental importncia biolgica presente na ilha o Manguezal.

    Tpicos da Mata Atlntica, os manguezais so um dos ecossistemas mais ricos em bio-

    diversidade marinha, abrigando diversas espcies de peixes, crustceos, moluscos, dentre

    outros seres aquticos. o ecossistema mais produtivo do mundo, que serve como fonte

    de alimentos, remdios, material de construo (barro e madeira), curtume, combustvel

    e outros.

    Alm da importncia para o ser humano, o manguezal exerce o papel de estabilizador am-

    biental, funcionando como barreira natural contra impactos permanentes de inundaes ca-

    tastrcas, alm da eroso elica. O mangue atua ainda como despoluidor, pois algumas de

    suas espcies acumulam, seletivamente, metais pesados.

    Entretanto, os mangues da ilha esto seriamente ameaados devido ocupao e a destrui-

    o do ecossistema pela prpria populao e por empresas, entre outros fatores externos.

    Alm disso, o desmatamento provocado em algumas nascentes est aterrando os mangues

    da ilha.

    ***

    Infelizmente, no somente com os manguezais que os marezeiros precisam se preocupar.

    Na lista de fatores que degradam a riqueza biolgica da ilha, prejudicando ainda a sade da

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    Retratos de Mar

    populao, constam problemas de todo o tipo de natureza: humanos, tal qual o extrativismo,

    a pesca com bombas e o desmatamento da mata nativa para a plantao de monoculturas,

    principalmente os bananais; industriais, como o Porto de Aratu, a Renaria de Petrleo

    Landulfo Alves, a construo de termoeltricas e os poos de petrleo e gs existentes ao

    norte da Ilha; e ambientais, como a poluio oriunda de Santo Amaro trazida pelo desague

    do Rio Suba e a ausncia de saneamento bsico, cujo esgoto a cu aberto convive com a

    populao e desagua na baa.

    Tantos fatores poluentes conitam, contudo, com o status de Reserva Ecolgica conferida

    Ilha de Mar em 1982, pela Lei n 3.207. Alm de a localidade estar inserida na Baa deTodos os Santos, considerada rea de Proteo Ambiental (APA) desde 1999.

    A criao da APA BTS visa, segundo a lei estadual 7.295: preservar os remanescentes da

    oresta ombrla; preservar os manguezais, assegurando a diversidade gentica da fauna

    nativa e seus processos evolutivos naturais, em especial a avifauna migratria; proteger

    as guas doces, salobras e salinas; disciplinar o uso e ocupao do solo; combater a pesca

    predatria pelo incentivo ao uso de tcnicas adequadas atividade pesqueira; promover o

    desenvolvimento de atividades econmicas compatveis com o limite aceitvel de cmbio

    do ecossistema.

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    A promessa

    Prximo a cada casa escorre um o de gua misturado aos restos dos dejetos huma-

    nos. A inexistncia do saneamento bsico em toda a Ilha de Mar destoa do desen-

    volvimento e avano tecnolgico existente no sculo XXI. Temos que desviar dos

    esgotos e, quando no h alternativa, atravess-lo equilibrando-se em taboas de madeirite.

    Apesar da necessidade da implantao do sistema de esgoto sanitrio constar em documen-

    tos ociais nos anos 80, at hoje a ilha no possui saneamento bsico. Em 2008, a construo

    do sistema foi incluso no Programa de Acelerao do governo federal (PAC), cuja previso

    de incio era junho do mesmo ano. Entretanto, at o momento, o cenrio desolador. Crian-

    as descalas brincam prximas ao esgoto a cu aberto, dividindo o espao com animais

    domsticos e de rua, em meio sujeira e o mau cheiro percebido nas estreitas vias da Ilha.

    O prprio relatrio daEmpresa Baiana de guas e Saneamento (Embasa)reconhece que os

    esgotos so lanados em valas de drenagem de guas pluviais escavadas no solo a cu aber-

    to, lanados posteriormente ao mar. Segundo o relatrio realizado pela empresa tais fatores

    contribuem para a proliferao de insetos e doenas infectocontagiosas, elevando o ndice

    de insalubridade da Ilha, j bastante comprometido.

    Diante da escassez de polticas de saneamento e gesto ambiental, quem no constri seu

    prprio esgoto voltado para a Baa de Todos os Santos faz fossas que, invariavelmente, noesto a mais de 200 metros da mar cheia, o que acaba por poluir, ainda mais, os lenis

    freticos. A Embasa j possui o projeto para a implantao do saneamento bsico para a ilha,

    mas ainda no dispe dos recursos necessrios para a execuo. Para implantar o sistema

    de esgoto, a Embasa apresentou trs alternativas, cujos custos variam entre R$ 12 milhes e

    R$ 19 milhes. O projeto aprovado encontra-se em anlise pelo Instituto do Meio Ambiente

    (Ima).

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    Infelizmente a ausncia de saneamento bsico no privilgio da Ilha de Mar. Embora

    60% da populao brasileira tenha acesso ao sistema de esgoto sanitrio, somente 20% do

    que recolhido tratado adequadamente. Dados que apontam que ainda h muito h se

    avanar ainda no Pas.

    Um dos efeitos mais signicantes da falta do saneamento o impacto sobre a sade: diarreia

    e as infeces intestinais esto diretamente ligadas ao esgotamento sanitrio e pode ser fatal

    em crianas abaixo dos cinco anos. As diarreias e verminoses foram, inclusive, as doenas

    ocorridas no ltimo ano mais citadas no PTTS (por 9,6% e 8% dos entrevistados), logo atrs

    de gripe (32,7%), hipertenso (18,9%) e febre (18,9%).

    Alm disso, as fossas spticas, disposio de esgoto a cu aberto, depsitos de lixo prxi-

    mos das fontes e poos rasos encontrados sem proteo so vetores de contaminao das

    guas subterrneas.

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    Crianas brincam perto de esgoto - Praia Grande

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    Desde o princpio

    Oincio da degradao ambiental na Baa de Todos os Santos comeou antes mes-

    mo dos primeiros portugueses aportarem por aqui. Dados arqueolgicos reve-

    lam que a zona costeira do Brasil, j possua sambaquis, depsitos de conchas

    marinhas e restos humanos, h oito mil anos, mas os problemas comearam, de fato, com as

    primeiras prticas agrcolas, com os tupis.

    Onde os tupis avanam, a oresta recua (). A agricultura tupiniquimtupinamb se pro-

    cessa, basicamente, pelo mtodo da coivara. Isto , da queimada . A agricultura, invaria-

    velmente, representa uma reviravolta radical na relao do homem com a natureza. Quando

    o sistema agrcola humano se impe, o ecossistema deixa de imediato de ser regido por

    processos unicamente naturais.

    Depois do desmate, os tupis cultivavam Mandioca e Algodo no territrio. Os homens bo-

    tavam fogo e as mulheres plantavam. E a produo agrcola tupi no era nada desprezvel.

    Em 1532, o navio Pilerine levou daqui para a Frana, nada menos do que 55 toneladas de

    algodo.

    Vale ressaltar, entretanto, que nada se compararia a devastao que viria depois. Inicial-

    mente no Sculo XVI, com a implantao dos primeiros engenhos de cana-de-acar e dos

    estaleiros de navio. E, sculos depois, com as primeiras indstrias qumicas no Estado.

    ***

    A devastao ambiental que atinge a Ilha foi acentuada na segunda metade do Sculo XX,

    com a implantao dos poos para a extrao de Petrleo e Gs no Porto dos Cavalos, co-

    munidade no norte da Ilha de Mar. A empresa petroleira mantm doze poos de extraona ilha. Ainda hoje h nove poos ativos.

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    A Baa pode ser considerada como o bero histrico das atividades petrolferas no Brasil. O

    descobrimento do petrleo ocorreu em 1939, no subrbio ferrovirio de Salvador, no bairro

    Lobato, com o poo DNPM-163.

    Apesar da existncia de registro da explorao de petrleo para ns comerciais antes do sur-

    gimento da Petrobras, a instalao da primeira renaria brasileira no Recncavo Baiano na

    dcada de 50, a Landulpho Alves, pode ser considerada como um marco, sendo o ponto de

    partida do processo de industrializao do Estado. O recncavo foi o nico produtor nacio-

    nal de petrleo, nas trs dcadas seguintes, chegando a produzir um quarto das necessidades

    nacionais. A instalao de poos de petrleo na Ilha, em 1982, foi justamente uma tentativa

    do Estado de retomar a liderana na produo do ouro negro, perdida aps a segunda

    grande crise do petrleo em 1979.

    A Renaria Landulpho Alves-Mataripe (RLAM), com sede em So Francisco do Conde,

    tambm prxima da Ilha e produz materiais poluentes como propano, propeno, iso-butano,

    gs de cozinha, gasolina, nafta petroqumica, querosene comum e de aviao, paranas,

    leos combustveis e asfaltos.

    O petrleo, produzido na ilha e na RLAM, o principal responsvel por um tipo especco

    de hidrocarboneto, o policclico aromtico (HPA), composto que apresenta maior toxicidade

    ao ambiente e sade humana. Entre as patologias que causa esto a irritao e dermatite na

    pele, mucosa e olhos; distrbios no fgado, no sistema imunolgico, no sistema nervoso e na

    medula ssea. Alm de leucemia, cncer e tumores no pulmo e estmago.

    O sistema de dutos da Petrobras presente na Ilha atravessa manguezais para chegar at a

    RLAM. Segundo especialistas, tal sistema de transporte representa risco populao local,

    uma vez que h possibilidade de rompimento, vazamento, contaminaes ou exploses. Os

    marezeiros no pescam mais na rea o pescado tem o leve sabor de gs.

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    O Turquesa e o Cinza

    Talvez por ser o primognito, Domcio Nascimento, 63, foi o nico dos trs lhos

    que seguiu a prosso do pai. Diariamente ele percorre os trinta minutos que o

    separam de sua roa, e ca deprimido no dia em que no consegue cuidar da la -

    voura.

    No me conformo. Tenho que ir todos os dias, no tem feriado nem nada enfatiza.

    No seu pedao de terra, se planta de tudo: feijo, milho, quiabo, cana. Mas ele lamenta que

    nem todas as plantaes se desenvolvam como deveriam. Segundo ele, aps nascer forte,

    a plantao cresce um pouco e depois cai. O p no que amanhece em cima do quiabo no

    deixa dvidas que a causa herana de um lugar que ele ajudou a fundar: o Porto de Aratu.

    Nos anos 70, Domcio foi marteleteiro, quebrador de pedras e concretos, do Porto. Ele conta

    que na poca a construo ajudou muita gente foram quase cinco mil empregados. Um

    engenheiro chegou a avislo que ele estava ajudando a fundar sua prpria destruio, mas

    ele no acreditou tanto como hoje, quando v a lenta morte de sua lavoura e o odor forte que

    invade sua casa.

    um cheiro insuportvel. Tem dias que no consigo nem dormir. Ali tem tudo de ruim

    relata.

    ***

    A viso de quem chega comunidade em que o poeta Manuel Botelho emprestou o nome se

    divide em duas: ao lado direto, o mar turquesa fornece uma beleza peculiar s matas virgens

    do entorno, vista digna de um paraso. Do lado esquerdo, no entanto, em vez de vegetao

    abundante, o que se avista so estruturas metlicas de vrias formas e tamanhos, e o azul do

    mar se confunde com as grandes embarcaes. o Porto de Aratu, cujaestrutura compostapor quatro terminais, equipados para a movimentao de granis slidos, produtos lquidos

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    e gasosos suporta grande variedade de produtos, operando simultaneamente minrios e

    produtos petroqumicos.

    Localizado na enseada do Caboto, em frente costa leste da Ilha de Mar, na cidade de Can-

    deias, o porto foi criado na dcada de 70, para facilitar o escoamento porturio das produ-

    es do Centro Industrial de Aratu (Cia), construdo em 1966. Atualmente, o Porto atende

    ainda o Plo Petroqumico de Camaari.

    De acordo com a Companhia de Docas da Bahia (Codeba), responsvel pelos portos de Ara-

    tu, Salvador e de Ilhus, o porto atende a 60% das atividades porturias baianas, sendo fator

    de grande importncia no desenvolvimento da minerao na Bahia. So quatro milhes

    de toneladas de produtos qumicos e fertilizantes ao ano, dez vezes mais do que o Porto de

    Salvador.

    Vinte e seis tipos de materiais qumicos so transportados mensalmente em suas docas,

    incluindo amnia, enxofre e soda custica produtos estes que poluem o entorno por vias

    areas e pela lavagem dos navios no mar.

    Como parte do plano de desenvolvimento industrial do Estado, o Porto de Aratu est pas-

    sando por uma srie de mudanas. At 2014, esto previstas a ampliao do per de lquidos,

    originando dois novos beros de atracao; a duplicao da tancagem; e o arrendamento e

    modernizao do Terminal de Granis Slidos.

    O primeiro passo para recepcionar navios de maior porte dentro da Baa j foi dado: a Dra-

    gagem.

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    Produtos transportados no Porto de Aratu

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    O caos

    No dia 30 de novembro de 2010, a populao de Ilha de Mar amanheceu ven-

    do uma cena que mal podia acreditar: centenas de peixes mortos boiavam na

    superfcie. Infelizmente no foi a primeira e no h sinais de que ser a ltima

    vez.

    Somente em um nico dia, um dos ltimos em operao, as obras para aprofundar a capaci-

    dade da Baa de receber navios de grande porte mataram cerca de 400 peixes. No se pode

    dizer que era uma surpresa a mortandade dos peixes. Desde o incio das obras que era quase

    impossvel uma boa pesca. Os peixes que no eram mortos pelas dragas, fugiram da regio.

    Na poca, a Codeba considerou a mortandade de peixes inerente ao processo da dragagem,

    devido a dois processos inevitveis: a suspenso de partculas slidas na coluna dgua e a

    ao mecnica do equipamento de suco da draga.

    A dragagem do Porto de Aratu retirou dois milhes m de sedimentos e 54 mil m de pedras

    durante trs meses no segundo semestre de 2010. O processo feito por uma draga que suga

    os sedimentos do mar at a superfcie do equipamento, sendo levados depois a 180 metros

    do local para ser despejados no meio do oceano atlntico.

    Quando lanados no mar, os metais associam-se ao material particulado em suspenso, sen-

    do depositados nos sedimentos de fundo do mar, formando reservatrios relativamente est-

    veis. As atividades da draga podem, contudo, revolver esses sedimentos, trazendo-os tona

    novamente.

    A obra foi licenciada pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais

    Renovveis (IBAMA), com a condio de que a Secretaria de Portos da Presidncia da Re-que a Secretaria de Portos da Presidncia da Re-a Secretaria de Portos da Presidncia da Re-

    pblica realizasse o monitoramento da qualidade da gua e do nvel de sedimentos.

    ***

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    Com uma personalidade to forte que se nota logo ao primeiro olhar, podemos denir a

    pesquisadora Marlene Peso como o paradoxo em pessoa. Ao mesmo tempo em que acredita

    que a dragagem do Porto de Aratu proporciona a assepsia da rea ela no nega os efeitos

    negativos da poluio ambiental na rea e apieda-se quando se lembra da situao dos ma-

    rezeiros.

    Doutora em Ecologia e Recursos Naturais pela Universidade de So Carlos, Marlene Cam-

    pos Peso de Aguiar j foi diretora do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia

    (UFBA) por duas vezes. Professora titular do Departamento de Zoologia da UFBA, ela co-

    ordena o Laboratrio de Malacologia e Ecologia de Bentos e o Grupo de Pesquisa Ecologiae Biomonitoramento de Comunidades Bentnicas. Como consta em seu Currculo Lattes,

    Marlene:

    possui ampla experincia na rea de Ecologia, com nfase em Biomonitoramento aqu-

    tico de comunidades bentnicas e dinmica de populaes de organismos de interesse

    extrativista, principalmente relacionados Baa de Todos os Santos. Coordena e executa

    atividades de servios tcnicos especializados de Diagnsticos ambientais e Biomonito-

    ramento do Meio Bitico Aqutico para empresas do Governo Estadual e da Unio, alm

    da iniciativa privada, atravs da UFBA.

    Marlene atualmente responsvel pela coordenao do monitoramento ambiental das dra-

    gagens do Porto de Aratu e o de Salvador, mas a parceria de mais de 20 anos com empresas

    privadas, alm do posicionamento a favor da realizao da dragagem, fez com que os mare-

    zeiros desconassem dela.

    A dragagem um caos ambiental. Mas faz parte da economia do Pas e precisamos fazer

    essa limpeza admite.

    A limpeza ou assepsia que Marlene se refere aconteceu na ltima vez que ela monitorou os

    efeitos ps-dragagem no Porto de Salvador. Segundo conta, anos aps uma dragagem de

    manuteno no porto, a biodiversidade marinha estava anos-luz melhor do que antes. Ela

    acredita que na natureza tudo se recupera, basta dar tempo.

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    A primeira vista o visual de Marlene engana. A imagem que transmite logo que a vemos

    que ela transborda simpatia. Impresso que se esvai primeira palavra: a voz rme e inci -

    siva desfaz a fragilidade que aparenta. As opinies fortes, apesar de nem sempre seguir em

    uma linha de defesa clara, do um tom a mais. Longe de ser maniquesta, ela explica que a

    questo complexa e assim que deve ser abordada.

    A dragagem um impacto localizado. Ao redor da ilha existe um passivo ambiental imen-

    so. Se for para falar sobre a situao ideal vamos ser xiitas. O ideal que a gente voltasse

    para poca de Cabral. Mas ningum vai abrir dos confortos da vida moderna.

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    Uma pitada de f

    Ocheiro da comida de Dona Del, a Delzuta dos Santos, 59, conquista a qualquer

    um que passe em frente a seu restaurante, uma casa com uma modesta mesa e

    frutos-do-mar feitos na hora. praticamente o nico estabelecimento na rua

    principal de Praia Grande que no bar.

    Dona Del baixinha, falastrona, simptica, com a pele queimada do sol e muitas marcas

    de expresso, alm de uma cozinheira de mo cheia desde 10, marisqueira, vendedora de

    roupas, evanglica e artes.

    Estudei at essa idade. No tive pai para me sustentar, tive que trabalhar cedo conta.

    Ela mora em cima do restaurante, que dicilmente est cheio em dias normais. Ela cozinha

    principalmente no vero, quando tem mais movimento, os frutos-do-mar que a neta marisca.

    No inverno, ela vai at Caruru (PE) comprar roupa para vender. Em uma dessas viagens, h

    cerca de cinco anos, ela sofreu um acidente no nibus e quebrou cinco de suas costelas. Ela

    recebeu alta no mesmo dia e um ms depois j cozinhava. Ela atribui sua rpida recuperao

    a Deus. Evanglica fervorosa, Dona Del acredita que o que conquistou na vida foi com

    base na f.

    Casada com um pescador e cesteiro, a sua famlia realiza as atividades mais comuns aos

    habitantes da ilha. Sua me at hoje, com 86 anos, continua a fazer doce de banana, sendo

    uma das melhores produtoras da ilha, segundo a lha.

    Achei muita proposta de restaurante de Salvador, mas nunca quis sair daqui. Sinto-me

    bem ressalta.

    Entretanto, h algum tempo a violncia e a poluio atmosfrica vm tirando sua paz. Al-

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    guns de seus 12 netos tm problemas respiratrios e mesmo um dos seus quatro lhos,

    Jadson, 24, tinha srias crises na infncia. Mas, segundo Del, ele foi curado com xaropes

    base de plantas.

    Essas nebulizaes no adiantam nada. Parece at que piora acredita.

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    Dona Del e suas iguarias

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    Soldadinhos de chumbo

    Apoluio atmosfrica na ilha um dos problemas ocasionados pelas fbricas

    ao redor. Um estudo realizado em Bananeiras apresentou mdia de partculas

    totais em suspenso no ar menor que o Porto de Aratu, mas ainda acima dos

    valores permitidos pelos padres brasileiros. O zinco foi a espcie metlica mais abundante

    em Bananeiras, com uma concentrao mdia de 145 ng m-, muito maior do que o Porto de

    Aratu, 4 ng m-

    .

    J as taxas de deposio dos hidrocarbonetos potencialmente txicos, os HPAs, so expres-

    sivas em Bananeiras, local que deve receber fortes cargas de partculas e contaminantes que

    so transportados pela atmosfera, uma vez que no h circulao de veculos automotores

    na comunidade.

    O estudo comprovou que a contribuio de espcies carcinognicas em Bananeiras, por

    exemplo, de origem antrpica e inclui fontes tais como: emisses industriais, veiculares

    (automveis, caminhes, barcos de pequeno porte e navios), atividades de carga e descarga

    no Porto de Aratu, a queima de carvo e madeira no cozimento de alimentos.

    A nutricionista Neuza Miranda realizou o estudoA Sade Ambiental em Ilha de Mar, Sal-

    vadorBA: Cenrio e Propostas de Remediao. A pesquisa, realizada em dez povoados

    da ilha, relacionou a exposio contaminao ambiental com a dieta de famlias de pes-

    cadores e marisqueiras da regio. A pesquisadora examinou amostras dos mariscos mais

    consumidos pela populao local: o chumbinho, o sururu e o siri; alm de analisar amostras

    do sangue e do cabelo de 113 crianas de at seis anos de idade, em Santana, para traar um

    panorama dos nveis de chumbo no organismo da populao infantil da ilha.

    A anlise do material coletado indicou que no chumbinho, extremamente consumido pela

    populao, havia at dezesseis microgramas de chumbo por grama do marisco. Uma con-centrao oito vezes maior do que o permitido pela Agncia Nacional de Vigilncia Sani-

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    tria (ANVISA), de at 2 g/g. O diagnstico da substncia no siri e no sururu tambm

    ultrapassou os ndices considerados tolerveis para a sade humana 2,17 g/g e 3,19 g/g,

    respectivamente. O marisco um bioacumulador natural, funcionando como um ltro dos

    contaminantes qumico.

    Os ndices da anlise do chumbo no cabelo e sangue das crianas trouxeram tambm resul-

    tados desoladores. H nveis de at 19,2 microgramas do metal pesado por decilitro de san- nveis de at 19,2 microgramas do metal pesado por decilitro de san-pesado por decilitro de san-

    gue e os exames no cabelo apontaram que at 21,2 de microgramas de chumbo por grama

    de cabelo. A Organizao Mundial de Sade (OMS) considera que o limite de concentrao

    da substncia no corpo humano no deve ultrapassar 10 g.

    alarmante. Pois encontramos estes nveis em crianas com apenas um ano de idade. De

    modo que, estes elementos estavam no corpo h, no mnimo, trs meses. Ou eles so ex-

    postos a esta dieta ainda bebs ou a contaminao pode estar at mesmo no leite materno

    arma a pesquisadora, dizendo que so necessrios mais pesquisas no local a m de detectar

    com certeza as fontes da tal contaminao.

    A exposio prolongada ao chumbo prejudicial sade independentemente da quantidade.

    No entanto, grandes concentraes da substncia podem causar inamao no sistema ner-

    voso central e nveis baixos podem afetar o desenvolvimento mental e a gestao, alm de

    causar anemias e doenas cardacas. Em crianas, o elemento qumico pode diminuir em at

    dois pontos o Quociente de Inteligncia (QI). Elas so as maiores afetadas por este tipo de

    exposio, pois absorvem cinco vezes mais componentes qumicos do que adultos.

    Um inventrio realizado em 2008 pelo antigo Centro de Recursos Ambientais (CRA), atual

    Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hdricos (Inema), cadastrou 58 indstrias e uma

    olaria como fontes de contaminao da Baa de Todos os Santos. Dentre os principais ramos

    de atividades, destacamse as indstrias qumicas, petroqumicas, metalrgica, alimentcias

    e fertilizantes. Apesar de desativada em 1993, a empresa Publum/Cobrac tambm uma das

    principais poluidoras da BTS ainda hoje.

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    Instalada em Santo Amaro, a empresa deixou como passivo ambiental para a cidade o ttulo

    de maior contaminao por Chumbo do Planeta. At hoje os resduos so estocados de for-

    ma inapropriada nos ptios da empresa, a cu aberto, de modo que os resduos que contami-

    nam o lenol fretico, o escoamento supercial e a poeira de resduos so fontes do metal

    para o Rio Suba, que desagua na Baa, ao sul da Ilha de Mar.

    ***

    Talvez seja devido vista privilegiada que Seu Chico, o Francisco Paulo dos Reis, 81 anos,

    no deixa Ilha de Mar por nada. Ele nunca morou em outro lugar e no faz questo: da ilha

    ele diz que s sai para o cemitrio.

    Ele nasceu a algumas casas de onde mora, uma casa em frente ao ancoradouro de Botelho

    que anuncia vende-se cocada e doce de banana iguarias produzidas por sua mulher.

    Dono de bar, Seu Chico j fez roa, plantio de banana e aipim, e j foi pescador. Ele ar-

    mou que pouca coisa mudou do seu tempo de menino at agora.

    Aqui tinha muita banana. Mas o Porto acabou a roa.

    Agora, a banana que batiza uma localidade da ilha e cujo doce uma iguaria ainda hoje

    produzida, comprada muitas vezes em feiras de Salvador.

    ***

    A grande maioria dos marezeiros reconhece que h agentes poluidores na gua consumida

    pela populao (83%). Entretanto, somente 1% destes acredita que a contaminao advmdos produtos qumicos. Para boa parte, a poluio vem do esgoto (58,3%) e dos resduos de

    animais (23,6%), segundo dados do PTTS 2008.

    Para a populao, o principal problema ambiental da ilha o esgoto a cu aberto (36,9%),

    seguido do mau cheiro vindo dos crregos (30,4%), contaminao dos mananciais (14,6%),

    lixo nas vias pblicas (10,5%) e emisso de gases (5,1%).

    A concepo de preservao ambiental tambm preocupante segundo os dados da pesqui-

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    sa. Somente 1,7% dos entrevistados acreditam que o potencial dos recursos ambientais de-

    veria ser conservado. Para a maioria, os recursos deveriam ser usados para o lazer e turismo

    (55,7% e 28,7%).

    Quase 60% dos marezeiros no souberam informar se existiam reas de vegetao nativa na

    comunidade, sendo que somente 14,6% das pessoas reconheceram essas reas. Mais alar-

    mante ainda o desconhecimento das condies dos mananciais cuja gua consome. 97%

    das pessoas no souberam informar a qualidade da gua.

    A professora da Universidade Federal da Bahia Rosilia Oliveira, que trabalha com a His-

    tria Ambiental da Ilha, conta que o desconhecimento das condies ambientais do local

    evidente na populao, cuja maioria das pessoas no passou dos estudos primrios.

    Tem muita gente que acha que a gua do mar mata tudo arma ela.

    ***

    Nem nos dias livres o chapeiro de navios da Base Naval, Beto, 53, deixa de fazer os servi-

    os navais. Em uma manh de domingo, ele aproveitou a folga para retocar a pintura do seu

    barco Deus que me deu ou seu carro, como gosta de o chamar.

    Desde pequeno, Beto tomou gosto pelo mar, fruto dos ensinamentos do pai pescador. O

    menino aprendeu nadar antes dos 10 anos. Mais moo foi iniciado na arte da carpintaria e se

    orgulha de j ter trabalhado na maioria dos navios da marinha.

    Beto nasceu no continente soteropolitano, mas marezeiro de corao. Habitando a ilha

    desde pequeno, ele s deixou de morar em Mar aos 18 anos, quando a empresa na qual

    trabalhava solicitou seus servios Brasil afora. Aos 20, j trabalhava na Base Naval, local de

    onde pretende sair daqui a pouco menos de dois anos, aposentado.

    Aqui bom de se morar. S saio se o vazamento a piorar. A pulo daqui que nem camaro

    conta, falando sobre os vazamentos de gs txicos que costumam ocorrer de quando em

    vez no Botelho.

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    A Devastao

    Beto pintando o F em Deus

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    O cheiro da urina

    P

    equenos vazamentos, principalmente de gases, j fazem parte do cotidiano da

    Ilha. Entretanto, de quando em vez ocorrem alguns que podemos atribuir ostatus

    de desastre ambiental.

    Em 2005, houve um vazamento de amnia na Fbrica de Fertilizantes Nitrogenados deSergipe (Fafen). O cheiro forte de urina tomou conta da ilha e at as palhas dos coqueiros

    sucumbiram.

    A empresa possui um duto de aproximadamente 50 Km para o transporte de amnia entre o

    Porto de Aratu na Baia de Todos os Santos e a sua unidade fabril no Plo Petroqumico de

    Camaari. A mesma empresa foi responsvel em 2008 pela morte de trs toneladas de pei-

    xes, no Rio Laranjeiras, em Sergipe. Entretanto, os vazamentos de gases so aqueles cujos

    efeitos so mais silenciosos.

    Os maiores vazamentos que afetaram a Ilha de Mar ocorreram nos anos 1990 e 2008, cau-

    sados pelo transporte de produtos comercializados por navios.

    Foram 20 mil litros de leo diesel no incio dos anos 90, vazados do casco de um navio, que

    deixou um cenrio desolador na Ilha de Mar. O betume deixou um rastro negro nas plantas,

    peixes, no mangue, nas pedras e na areia. Tudo estava banhado de preto. As comunidades

    mais atingidas foram Botelho e Itamoabo, mas Bananeiras, Santana e Neves tambm no

    escaparam do leo.

    Na poca, a Petrobras contratou uma empresa para fazer a raspagem do betume. No entan-

    to, o leo impregnado nas razes das rvores no foi eliminado to cedo do meio ambiente

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    A Devastao

    marezeiro.

    J o vazamento que ocorreu em 2008, aconteceu no Porto de Aratu devido a uma manobra

    imprecisa do navio noruegus NCC Jubail. Parte dos cinco mil litros de leo que vazou

    atingiu a Praia de Bananeiras, na Ilha de Mar, no interior da Baa de Todos os Santos. Foi

    uma mancha de leo com aproximadamente trs metros de largura e mais de 300 m de com-largura e mais de 300 m de com-e mais de 300 m de com-

    primento que chegou praia de Bananeiras. Era uma parte dos cinco mil litros de leo que

    vazou na Baa.

    Como contrapartida pelos vazamentos dos produtos, foi enviada cesta bsica para os pes-

    cadores cadastrados enquanto eles no puderam pescar. E foi s. Os impactos causados no

    foram estudados profundamente e muito pouco se faz para evitar novos acidentes.

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    A luz

    Minha ilha s tem mato, mas linda de se ver

    Eu no troco a minha ilha nem por mim nem por voc

    Minha ilha deu petrleo, tm azeite de dend

    E ainda tem marisco que d pra sobreviver

    Minha Ilha de Mar ca perto de So Tom

    Faz fronteira com Caboto, faz fronteira com Pass

    Seu Djalma, pescador marezeiro

    Menino altivo no entardeceder de Praia Grande

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    A Luz

    O grito dos pneus

    No eram nem oito horas da manh do dia seis de setembro de 2011, quando

    centenas de marezeiros interditaram a rodovia BA-521, de acesso ao Porto

    de Aratu, em frente a terraplanagem feita pela Superintendncia de Desen-

    volvimento Industrial e Comercial (Sudic) para construir um complexo termoeltrico, no

    municpio de Candeias.

    Na pista, ao lado dos tradicionais pneus, o fogo queimava tambm troncos de rvores e pe-

    daos de madeira. Era um grito desesperado de quilombolas e pescadoras das comunidades

    de Ilha de Mar, Caboto, Pass, Alto do Toror, So Tom e da Baa de Aratu.

    Ilha de Mar no aguenta mais poluio clamava uma faixa de protesto segurada pelosmanifestantes. E provavelmente esto certos.

    O complexo termoeltrico de Aratu prev a construo de seis usinas termeltricas, com a

    capacidade instalada para mil megawatts. A estimativa era que comeasse a funcionar em

    janeiro de 2011, mas houve atraso pelo qual a Anael, agncia reguladora do setor, multou

    o grupo Bertin, responsvel pela obra, em R$ 33,5 milhes devido energia no entregue

    em Janeiro e Fevereiro.

    Entretanto, essa obra ainda abre espao para muitas especulaes. De acordo com a pesca-

    dora Marizelia Lopes, a Nega, no h qualquer sinalizao indicando o tipo de construo,

    o valor investido ou os responsveis pela obra. O trabalho de terraplanagem, iniciado no

    ano passado, j atingiu a mata nativa e auentes de riosna regio. Alm disso, em nenhum

    momento houve audincias pblicas para esclarecer a populao do entorno sobre a natureza

    das usinas.

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    Durante o protesto, as lideranas se dirigiram ao Ministrio Pblico de Candeias para soli-

    citar Promotoria o embargo das obras da usina. O principal argumento foi o no cumpri-

    mento de normas de licena ambiental por parte dos responsveis pela usina. A Constituio

    Estadual determina que construes deste tipo devam ser feitas a uma distncia mnima de

    30 km do litoral ou de comunidades.

    A comunidade mais distante ca a sete quilmetros do terreno e Bananeiras (a que ela

    mora) a apenas dois quilmetros denuncia Nega.

    De acordo com documento publicado pela Superintendncia de Desenvolvimento Industriale Comercial da Bahia (Sudic), o Consrcio Promon/Ecoluz pretende construir outras duas

    usinas, movidas a leo combustvel, localizadas na mesma regio (Complexo Industrial de

    Aratu CIA), com capacidades de 20 MW e 11,5 MW, respectivamente.

    Embora a Promon desmentiu que tivesse algum projeto para a instalao de uma termeltri-

    ca na regio de Aratu, armando que no pretende faz-lo, em nota divulgada no jornal

    A Tarde, de Salvador, em seu website9h uma descrio do projeto:

    A Usina Termeltrica Bahia (UTE Bahia) uma joint venture entre a Promon e a Ecoluz

    Consultores Associados, na qual a Promon detm 80 por cento do capital. Localizada no

    Plo Petroqumico de Camaari, a usina est enquadrada no Programa Emergencial do

    Governo, que cria uma reserva de energia assegurada para suprir o sistema interligado

    em situaes de emergncia.

    Atualmente, a Bahia possui duas usinas termoeltricas em funcionamento: a Camaari I,

    com capacidade de gerao de 290 MVA e a Usina Termeltrica Arembepe Energia (UTE),

    sociedade entre a Petrobras e a Nova Cibe Energia. Inaugurada em 2010, a usina tem capa-

    cidade instalada de 150 MW, sucientepara abastecer uma cidade de 500 mil habitantes.

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    A Luz

    Ainda em fase de implantao, alm do consrcio no CIAos grupos Promon, Aterpa e Eco-

    luz pretendem implantar a usina termeltrica UTE SulBahia I, em Eunpolis. A termeltrica

    a gs natural ser a primeira do Brasil a utilizar-se do ciclo combinado Single-Shaft de gs

    e vapor, com 371,3MW de potncia instalada. Ainda em fase de construo encontram-se

    a Termobahia, que vai possibilitar a gerao de 460 MW, a produo de 1,1 milho de m/

    dia de gs natural e 350 toneladas de vapor/hora, a Nordeste Generation, que ir implantar

    um sistema de usinas termoeltricas utuantes, acionadas por leo combustvel, localizada

    no Porto de Aratu, e com capacidade de 190 MW.

    ***

    Para Lus Antnio Santana da Silva, o Nem Carpinteiro, 48, Ilha de Mar signica esperan-

    a. Um dos ltimos saveristas da Bahia, ele mudou-se de Maragogipe, cidade onde nasceu,

    h dezessete anos. Como na sua cidade o mercado estava em declnio, com apenas 21 sa-Como na sua cidade o mercado estava em declnio, com apenas 21 sa-

    veiros, Nem mudou-se para Ilha de Mar. Fazendo servio para um e para outro, conseguiu

    comprar um galpo em frente ao mar, aonde recebe suas encomendas. Comeou a vida

    como marceneiro e virou construtor naval aos 22 anos. At hoje, ele trabalha de domingo a

    domingo e diz que ama o que faz.

    bom demais diz, tentando denir a sensao de quando um barco seu entra no mar.

    Nem um dos dois saveristas da ilha. Ele trabalha com o lho mais novo no galpo ao nal

    de Botelho. Nem conta que trabalha com bra e madeira, mas prefere construir barcos com

    as jaqueiras importadas de Maragogipe. A prosso incerta, tem dias que ganha R$ 300,R$ 500, e tem dias que no ganha nada. Mas com orgulho que um dos ltimos dos savei-

    ristas conta que obteve reconhecimento.

    - H alguns anos me entregaram um prmio armando que era um dos melhores saveiristas

    em atividade, melhor at do que o meu mestre.

    ***

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    As doze pesadas pastas que cam em cima de um armrio da6 Promotoria de justia do

    meio ambiente do Ministrio Pblico do Estado da Bahia (MPBA), ainda em Nazar, so

    os volumes do Inqurito Civil-Pblico n 003.12106, instaurado em 2008. Logo na capa de

    cada uma das pastas h o objetivo do inqurito: Apurar as causas da mortandade de animais

    marinhos e danos sade dos moradores da Ilha de Mar, vericando suas consequncias

    e possvel infringncia ao artigo 54 da lei n 9.605/98 (que dispe sobre as sanes penais

    e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente), provocada

    pelo Porto de Aratu.

    O Ministrio Pblico um importante instrumento para a sociedade e essencial para osmarezeiros. Mesmo a ilha sendo frequentemente ignorada pelos grandes empresrios, a ten-

    tativa de punio legal exercida pelo rgo permite que algumas batalhas sejam vencidas.

    No fcil admite a promotora Cristina Seixas, promotora titular da 6, armando como

    difcil fazer entender que os marezeiros s querem garantir o que deveria ser direito. Elas

    falam:Doutora eu sou formada na mar, sou marisqueira. No quero trabalhar no Porto.

    Respeitem meu direito de ser marisqueira. E essa