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© 2019, Renato Miguel do Carmo, Ana Rita Matias e Edições tinta ‑da ‑china, Lda.

Edições tinta ‑da ‑chinaRua Francisco Ferrer, 6A1500 ‑461 LisboaTels.: 21 726 90 28/9E ‑mail: [email protected]

www.tintadachina.pt

Título: Retratos da Precariedade.Quotidianos e aspirações dostrabalhadores jovens

Autores: Renato Migueldo Carmo e Ana Rita MatiasRevisão: Tinta ‑da ‑chinaComposição: Tinta ‑da ‑chinaCapa: Tinta ‑da ‑china (V. Tavares)

1.ª edição: Março de 2019

isbn 978 ‑989 ‑671 ‑478‑9Depósito Legal n.º

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ÍNDICE

INTRODUÇÃOPara uma sociologia do mal-estar social: a experiência da precariedade 9

CONTEXTUALIZAÇÃO ESTATÍSTICA: PRECARIEDADE E DESEMPREGO NA POPULAÇÃO JOVEM 23

Tendências no mercado de trabalho: emprego e desemprego jovem 24Precariedade contratual em Portugal e na UE 27Notas finais 32

DO ENSINO SUPERIOR PARA O MERCADO DE TRABALHO:PERCURSOS E REPRESENTAÇÕES 35

Caracterização dos percursos de precariedade: fragmentação e permanência 35O papel abusivo do recurso aos estágios 42A inevitabilidade do trabalho temporário 47A precariedade no contexto académico 50O que significa atualmente ter uma carreira 51

O IMPACTO DA PRECARIEDADE NO QUOTIDIANO:IDENTIFICAÇÃO DAS DIMENSÕES EXISTENCIAIS 59

Rendimento, pluriatividade e semiautonomia 59A relação entre desigualdade de género e precariedade 62O impacto da precariedade no bem‑estar dos jovens 68Representações sobre as gerações mais velhas 71Baixos salários, alojamento e o direito a viver na cidade 76

PRECARIEDADE É PARA SEMPRE?EXPECTATIVAS, ALTERNATIVAS, FUTURO 79

Mais vale ser precário do que ser desempregado? 79Espaços de protesto e resistência: a precariedade tem limites? 81Existem alternativas à precariedade? 84Uma geração «perdida» e «à rasca»? 91

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RETRATOS DE JOVENS TRABALHADORES:EXPECTATIVAS, TRAJETÓRIAS E QUOTIDIANOSDE PRECARIEDADE 95

João, 34 anos, arquiteto 97Mónica, 24 anos, socióloga 105Carlos (28 anos, historiador) 114Fernando (32 anos, engenheiro civil) 123Carolina (26 anos, bióloga) 132Mafalda (27 anos, historiadora da arte) 139Manuel (32 anos, geógrafo) 147

CONCLUSÃO 157

POSFÁCIOA precariedade como totalidade social: tópicos para um esboço teórico e político 163

Precariedade e totalidade 163Precariedade enquanto desigualdade perante o trabalho e o rendimento 165Precariedade enquanto desigualdade existencial e vital 168Que emancipação?... Algumas ideias simples 172O direito ao tempo longo 176

BIBLIOGRAFIA 179

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ÍNDICE DE FIGURAS

FIGURA 1: Evolução das taxas de emprego, desemprego e contratos temporários em Portugal, faixa etária 15‑29, entre 1996 e 2017 26FIGURA 2: Taxas de emprego e desemprego em Portugal e na Europa, faixa etária 15‑29, em 2017 27FIGURA 3: Relação entre trabalho temporário involuntário e trabalho a tempo parcial (part-time) involuntário, faixa etária 15‑29, em 2017 30FIGURA 4: Percursos profissionais segundo ordem cronológica de entrada no mercado de trabalho 39FIGURA 5: Diferença salarial entre homens e mulheres (gender pay gap) nos setores da indústria, construção e serviços 63

ÍNDICE DE QUADROS

QUADRO 1: Áreas científicas e formação dos entrevistados 18QUADRO 2: Jovens com contratos temporários e trabalho a tempo parcial (part-time) em portugal, faixa etária 15‑29, em 2015 e 2017 29QUADRO 3: Principais motivos para trabalho temporário, faixa etária 15‑29 31QUADRO 4: Glossário das modalidades contratuais mais recorrentes 37QUADRO 5: Perceções dos jovens sobre os estágios 43QUADRO 6: Contratos temporários em diferentes contextos profissionais 48QUADRO 7: Características do trabalho de investigação 50QUADRO 8: O que significa ter uma carreira hoje em dia? 53QUADRO 9: Tirar um curso superior – ainda vale a pena continuar a estudar? 55QUADRO 10: Principais dimensões identificadas a partir da pergunta «mais vale ter trabalho precário do que estar desempregado?» 80QUADRO 11: Situações de protesto, renúncia das condições de trabalho, abusos de poder 82QUADRO 12: Medidas para combater a precariedade 85QUADRO 13: Que tipo de participação social têm os jovens? 89QUADRO 14: Caracterização dos jovens retratados de acordo com a idade, a formação académica e a atividade profissional, em 2016 (primeira entrevista) e 2018 (segunda entrevista) 96

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I N T R O D U Ç Ã O

PARA UMA SOCIOLOGIA DO MAL-ESTAR SOCIAL: A EXPERIÊNCIA DA PRECARIEDADE

Temos assistido a um conjunto de sinais sociais e políticos surpreendentes e inesperados que, apesar de diversificados, parecem ter algo em comum: são sintomas de um mal‑estar (percecionado e/ou materializado) não só relativamente às condições socioeconómicas presentes como em relação às expectativas de futuro. As votações do Brexit em Inglaterra, a eleição de Donald Trump e de Jair Bolsonaro, ou a ascensão da extrema ‑direita em vários países da Europa, representam momentos basilares que se vão acumulando e banalizando, sendo por isso reveladores de que algo vai mal nas sociedades contemporâneas. Este livro inicia uma pequena série de reflexões sobre o estado geral deste mal‑estar social, que tende a dissemi‑nar‑se e a agravar‑se.

Obviamente, a generalização deste sentimento não é uma especifici‑dade da atualidade. Noutros tempos históricos, alguns relativamente re‑centes, este mal‑estar não só se impregnava na vida das populações como atingia níveis de vulnerabilidade e de privação não comparáveis com os de hoje. Aliás, Portugal é um bom exemplo de uma sociedade que há 50 anos ainda se encontrava num estádio de desenvolvimento económico e humano muito baixo e arcaico quando comparada com a média dos países europeus. Isto refletia‑se numa estrutura social fortemente desigual, com uma larga maioria da população a viver na pobreza ou na sua proximidade.

Portugal era um país rural, pobre e de emigração. Isto é, um país onde apenas uma restrita minoria tinha acesso a uma vida condigna. Ao mal‑‑estar social acrescia um tremendo mal‑estar político decorrente de um regime ditatorial que se prolongou por mais de quatro décadas, tendo sido o grande responsável pela manutenção de um atraso estrutural e sem perspetivas de futuro. Durante este longo período, várias gerações de ho‑mens e mulheres nasceram e morreram vivendo de forma muito precária e em situações extremamente difíceis.

O mal‑estar generalizado não é, por isso, uma especificidade dos nos‑sos tempos, nem a situação de vulnerabilidade extrema que se vivia no

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passado é comparável com a que se vive no presente em Portugal. Contu‑do, podem identificar‑se alguns aspetos singulares que marcam os tempos que correm. Desde logo, não devemos reduzir a leitura sobre a compo‑sição social do mal‑estar apenas aos aspetos materiais e económicos. É inegável que, ao longo das últimas décadas, sobretudo a partir do período correspondente ao pós‑Segunda Guerra Mundial, muitos países europeus conheceram, mais ou menos tardiamente, um desenvolvimento assinalá‑vel e incremental alicerçado numa narrativa de modernidade que se foi cristalizando nas diversas esferas sociais e económicas.

Muito se tem escrito sobre os 30 anos dourados da Europa mediados entre as décadas de 50 e de 70 do século xx, e sobre o facto de este período não ser comparável com o que a Europa e as suas populações viveram an‑teriormente e, também, posteriormente. Não há dúvida de que estes anos se transformaram numa espécie de referencial internalizado não só pelo discurso político como pelas diversas estruturas simbólicas de muitas co‑munidades e famílias. Ou seja, é um referencial que, ao longo de gerações, alimentou expectativas e aspirações no sentido de um progresso cumulati‑vo e de uma melhoria incremental do bem‑estar social (Judt, 2010).

A este respeito, é interessante verificar que Portugal, embora não te‑nha vivido diretamente este período dourado, já que se encontrava ainda sob o domínio de uma ditadura retrógrada, foi internalizando esta narra‑tiva num período já tardio marcado pelo impacto da revolução de 1974 e, posteriormente, pela adesão à Comunidade Económica Europeia. Estes momentos marcantes foram potenciadores da abertura a um conjunto de possibilidades até então inacessíveis para a maior parte da sociedade. Várias análises sociológicas se debruçaram sobre esta dinâmica de mo‑dernização que, apesar de desequilibrada conforme os diferentes setores socioeconómicos, progredia no sentido de uma melhoria geral das condi‑ções de vida e dos níveis de qualificação da população. No entanto, como certos autores sublinharam, tratava‑se de um processo inacabado e ainda relativamente recente (Viegas e Costa, 1998; Santos, 1990).

Esta dinâmica de criação e interiorização de expectativas e de aspi‑rações foi sendo especialmente alicerçada ao longo das décadas de 1980 e 1990. A construção da narrativa, nas suas mais diversas valências e, por vezes, contraditórias variantes, assentou na expectativa de uma melho‑ria cumulativa das condições de vida, que seria acompanhada pela gene‑

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ralização dos direitos e das garantias sociais nos mais diversos campos. Para a sua cristalização coletiva foram essenciais os desenvolvimentos que se efetivaram nos diversos sistemas que constituem o Estado social, nomeadamente na educação, saúde e Segurança Social (Carmo e Barata, 2014). Na verdade, as expectativas criadas alimentaram‑se de resultados objetivos e palpáveis corporizados na tendencial universalização e conso‑lidação dos sistemas públicos de provisão e de proteção que, entre outros aspetos, se expressou na institucionalização de um conjunto de direitos adquiridos.

Todavia, como é conhecido, apesar do aumento do bem‑estar geral, materializado em fatores como o acesso cada vez mais amplo aos serviços públicos, a variedade crescente de bens de consumo ou a distribuição dos recursos (económicos, sociais e culturais), não se rompeu decisivamente com o nível de desigualdade geral que caracterizava, e ainda caracteriza, a sociedade portuguesa (Carmo et al, 2018). Ainda assim, é inegável que, mesmo no seio de muitas famílias pertencentes a estratos sociais menos favorecidos, se foi fomentando a expectativa de um retorno económico e social a prazo, resultante, por exemplo, do investimento pessoal ou fami‑liar na educação ou na formação profissional. A nosso ver, é importante ter em conta esta contextualização, descrita de uma maneira muito breve e redutora, como uma espécie de pano de fundo que nos permite melhor interpretar um conjunto de fenómenos e de perceções atuais que, de cer‑to modo, apontam para a ideia ou o sentimento de mal‑estar a que aludía‑mos anteriormente.

Apesar de não se ter realizado ainda uma profunda análise socioló‑gica e histórica sobre o período de transição entre os séculos xx e xxi, são conhecidas e relativamente bem identificadas as alterações ou recon‑figurações ocorridas numa série de setores, que gradualmente abalaram os pressupostos que sustentavam esta narrativa de progressão e avanço da modernidade. É possível elencar algumas transformações decorridas sobretudo no espaço na União Europeia, mas não exclusivamente, que provocaram uma crescente perceção de incerteza e de insegurança social e laboral, e que se inter‑relacionam com os processos gerais de globaliza‑ção económica e financeira.

Desde logo, a liberalização financeira, o aumento do número de pri‑vatizações e a crescente deslocalização de empresas (particularmente da

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indústria) produziram impactos sociais profundos nas economias avan‑çadas, nomeadamente no aumento das desigualdades sociais e do desem‑prego (Stiglitz, 2004). Por outro lado, verificou‑se uma tendência para a concentração da propriedade através da fusão em grandes grupos econó‑micos (sobretudo no setor financeiro). Alguns deles tornaram‑se grandes de mais para poderem falir. Ao mesmo tempo, generalizaram‑se práticas de downsizing, caracterizadas pela redução de pessoal tendo em vista o au‑mento da eficácia financeira e produtiva dos grupos económicos.

A deslocalização de empresas e fábricas para países em vias de desenvol‑vimento teve um impacto acrescido na destruição de emprego (sobretudo no setor produtivo), designadamente nas economias da Europa ocidental e dos Estados Unidos. A pressão concorrencial e dos mercados implicou uma pressão sobre os direitos laborais, cuja maior consequência foi o aumento dos níveis de precariedade (Cantante, 2018; Organização Internacional do Trabalho – OIT, 2018). A estas e outras tendências somaram‑se alterações políticas e económicas no seio das instituições europeias, que provocaram impactos profundos nas sociedades e nas vidas das pessoas cuja real extensão está ainda por aferir. Referimo‑nos especialmente à instauração da moeda única e à constituição da Zona Euro, assente em pressupostos macroeco‑nómicos dominados pela perspetiva liberalizante e concorrencial, e não por uma lógica de coesão e de solidariedade entre países (Abreu et al, 2013).

No seguimento das alterações económicas e políticas identificadas, aconteceu ainda a grande crise financeira de 2008 e, posteriormente, a crise das dívidas soberanas, conduzindo aos designados programas de ajustamento e aos dramáticos anos de austeridade que se abateram par‑ticularmente sobre os países do sul da Europa e sobre alguns países do leste europeu. A imposição desta agenda provocou, em Portugal como nos outros países visados, um aumento significativo do desemprego e dos níveis de empobrecimento das camadas sociais menos favorecidas (incluindo franjas importantes dos estratos intermédios). Esta política aponta para dois setores preferenciais: o desmantelamento do Estado social e a flexibilização e liberalização do mercado de trabalho (Carmo e Barata, 2017).

A crise económico‑financeira e as políticas de austeridade que lhe sucederem provocaram, em muitos casos, um retrocesso abrupto das ga‑rantias e dos direitos que foram sendo adquiridos cumulativamente nas

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décadas precedentes. De certa maneira, podemos dizer que o adquiri‑do deixou de ser um dado garantido – pelo contrário, passou a ser alvo de pressão, estando sujeito a crescentes ameaças. A crise e as suas con‑sequências políticas significaram uma espécie de catalisador que inten‑sificou algumas das evoluções que já vinham dos anos anteriores, parte das quais descrevemos muito brevemente. Ou, dito de outra forma, os tempos difíceis de 2008 a 2015 provocaram um rompimento decisivo face aos pressupostos que alimentaram e orientaram até aí a narrativa da mo‑dernização cumulativa e incremental.

A perceção de avanço deu lugar ao sentimento generalizado de re‑trocesso e ao receio de ficar para trás (de ir para o desemprego, de perder rendimento, de cair na pobreza, de não ter meio de responder às despe‑sas e às necessidades dos dependentes, etc.). O que existe agora é uma incerteza constante, a sensação de que quase tudo se pode alterar de um momento para outro, o risco iminente de ficar pelo caminho e de não conseguir recuperar.

Neste sentido, torna‑se importante analisar e estudar a dissemina‑ção do mal‑estar social considerando a desigual distribuição dos recursos, sejam eles económicos, qualificacionais ou culturais. Porém, é também necessário ir mais além na abordagem interpretativa destes processos. A análise sociológica não pode assim descurar a importância das subjetivi‑dades e até dos aspetos relacionados com o simbólico e com a produção de sentido. Por exemplo, a perceção e os sentimentos decorrentes do risco e da incerteza podem não resultar unicamente de um desfavorecimento so‑cioeconómico (pobreza, privação, baixos salários, precariedade laboral), mas de interdependências e de relacionamentos que se estabelecem entre estas e outras dimensões, e que remetem para as condições existenciais e vitais da vida quotidiana.

Neste sentido, a distribuição do mal‑estar pode não ser completa‑mente coincidente com a distribuição dos recursos económicos (Beck, 2017). Pode não se estabelecer uma relação direta e unívoca entre as duas dimensões. Daí a pertinência de aprofundar análises de cariz mais refle‑xivo e qualitativo, que incidam sobre os discursos e as práticas sociais, identificando por esta via o modo como as desigualdades são simultanea‑mente produzidas por mecanismos intangíveis que em muitas situações agravam as disparidades materiais.

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Os sinais preocupantes a que vamos assistindo tanto na esfera polí‑tica como no espaço social são expressões de sentimentos contraditórios e difíceis de caracterizar. Contudo, independentemente das suas razões, muitos destes sentimentos derivam da sensação de se ter sido sujeito a uma ou mais injustiças. A injustiça de levar uma vida inteira a trabalhar e acabar no desemprego, a injustiça de perder o subsídio de desemprego apesar de se ter descontado anos a fio para a Segurança Social, a injustiça de investir tudo na educação dos filhos e estes acabarem na precariedade e em empregos mal remunerados… Estas e outras sensações e perceções povoam os quotidianos e fazem parte da vida de todos os dias. E, por ve‑zes, são vividas isoladamente e desgarradas dos laços sociais e das redes de apoio e de solidariedade.

Curiosamente, o mal‑estar objetivado, em realidades e grupos que padecem de um conjunto mais ou menos profundo de vulnerabilidades sociais e económicas, tende a ser representado nas várias esferas da vida social em categorias contraditórias e que, por vezes, se anulam mutua‑mente. Arriscando uma formulação um tanto simplista, não é absurdo dizer‑se que ao nível dos discursos e dos posicionamentos dominantes no espaço público ora se tende para a ocultação do mal‑estar como algo que se torna clandestino e para o qual se fecha os olhos, como acontece no caso da pobreza e da miséria, ora se irrompe numa diabolização sobre certos atores que corporizam e condensam toda a raiva resultante do mal‑estar, como se nota pelas brutais reações face aos imigrantes ou aos estrangeiros que se propagam pelo mundo fora.

Ocultar a pobreza no espaço público significa invisibilizá‑la porque se considera, entre outros aspetos, que esta resulta em grande medida da responsabilidade individual. A pobreza é, assim, vista como tendo origem em atos que derivam de incapacidades individuais, sejam de ordem psi‑cológica ou de personalidade (preguiça, libertinagem…) sejam decorren‑tes de características físicas (por vezes de natureza étnica e racial) ou de enfermidades e doenças. Por outro lado, a pobreza tende a ser empur‑rada para territórios circunscritos e periféricos da cidade, como se esses espaços se escondessem por efeito da ação voluntária. Ao naturalizar a pobreza como realidade isolada, esta passa a ser um problema específico de alguns indivíduos e de grupos restritos, cuja solução depende antes de mais da sua predisposição para enfrentarem as suas incapacidades.

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Quantas vezes se ouve dizer que a pobreza só se resolve com a al‑teração das mentalidades?... Como se quase tudo dependesse apenas da vontade individual de conquistar uma vida melhor. A este respeito, con‑vém notar que muitas das iniciativas de solidariedade para com os mais pobres, de caráter assistencialista, não conseguem (ou não lhes interessa) romper com este tipo de noções que enfatizam a responsabilidade indi‑vidual como o único caminho para se sair da condição de pobreza. Num certo sentido, estas acabam também por ser geradoras de mecanismos acrescidos de invisibilidade social.

Diabolizar significa alimentar sentimentos de forte hostilidade que têm como alvo o «outro», que, por seu turno, se transforma na suposta fon‑te de todos os males vividos. A perceção das injustiças, desilusões ou frus‑trações é em muitos casos exacerbada em confronto com a presença (física e/ou mediatizada) de um indivíduo ou grupo percecionados como estra‑nhos, no sentido em que são exteriores à vida próxima e habitual. Estes são, em muitos casos, vistos como beneficiados na obtenção de determi‑nados recursos e direitos (seja o subsídio, o serviço público, o emprego…). A construção do «outro» imaginado como privilegiado parte da preconce‑ção de que este vive à custa do esforço e do trabalho alheio, tornando‑se, por isso, uma ameaça que põe em causa a estabilidade geral da vida social e económica. É assim imaginado como alguém supostamente favorecido, al‑guém que obteve um determinado benefício não merecido, alcançado em detrimento e às custas de um hipotético e também imaginado «nós». É este «nós» que, alegadamente, por estas razões, passa a ter uma acessibilidade mais limitada e dificultada a um conjunto de meios, de apoios e de direitos.

Está ainda por compreender, do ponto de vista sociológico, quais os fatores sociais e culturais que condicionam decisivamente a constitui‑ção destas posturas de forte intolerância em relação ao outro, e que, em certos casos, alimentam movimentos e partidos políticos de cariz popu‑lista, que proliferam por diversos países. Além disso, também é necessá‑rio compreender porque é que estes movimentos são a expressão mais poderosa dos profundos sentimentos de injustiça que se intensificaram desde 2008. Contudo, apesar de conhecermos ainda muito pouco sobre as causas destes processos, parece‑nos assente que estas e outras expres‑sões são formas diferenciadas de objetivação de um mal‑estar difuso que se generalizou e foi comprometendo e esvaziando decisivamente as

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aspirações e as expectativas sobre uma progressão assegurada das condi‑ções e da qualidade de vida.

O mal‑estar é um sintoma profundo de que algo de muito errado está a acontecer nas nossas sociedades. Diabolizar ou ocultar o mal‑estar significa antes de mais afastarmo‑nos de qualquer esforço ou predispo‑sição para a sua compreensão. É por isso que este gera exacerbamentos e polarizações difíceis de racionalizar e de assimilar, que levam a movi‑mentos extremistas, ou então à completa indiferença relativamente ao outro.

Este livro pretende contribuir para a compreensão de um fenómeno que padece sobretudo de invisibilidade: a precariedade laboral. Na verdade, a generalização das formas de precarização do trabalho nas suas mais va‑riadas aceções e práticas representa, sem dúvida, um fenómeno profun‑damente errado e com consequências desestruturadoras e muito nefastas em termos sociais e pessoais.

O estudo centra‑se na análise de testemunhos de jovens com esco‑larização superior que se encontravam em situação laboral e contratual precária. Trata‑se, assim, de uma população específica, que está longe de ser representativa de todas as realidades assoladas pelo mal da precarie‑dade nas suas mais variadas configurações. Por seu turno, são jovens que mobilizam um recurso relativamente privilegiado (a formação superior) e, nesse sentido, não podemos dizer que são um grupo excluído ou mar‑ginalizado. Contudo, apesar dessa posição favorecida perante o recurso educacional, depreendem‑se, por intermédio da análise dos discursos re‑colhidos, sinais diversificados e contraditórios de mal‑estar decorrentes da experiência laboral1.

A investigação realizada, de caráter qualitativo, retoma algumas das dimensões sociológicas de um projeto anterior, no âmbito das atividades do Observatório das Desigualdades2, diferenciando‑se deste em termos

1 Alguns dos capítulos desenvolvem e aprofundam amplamente uma primeira versão previa‑mente publicada. Estas referências serão devidamente identificadas ao longo do livro. 2 Projeto intitulado «Estudo exploratório qualitativo sobre os jovens trabalhadores inseridos em trabalhos pouco qualificados», coordenado por Nuno Alves (ISCTE‑IUL) e desenvolvido no âmbito do Observatório das Desigualdades (2010). Realizaram‑se 80 entrevistas a jovens com diferentes níveis de escolaridade, residentes na Área Metropolitana de Lisboa e do Porto e também no concelho de Guimarães.

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de amostra, na medida em que as entrevistas aplicadas se circunscre‑veram, como já foi referido, aos jovens com escolaridade superior. Este dado não significa que a precariedade incida de forma mais acentuada neste grupo. Na verdade, esta é tendencialmente transversal à popula‑ção trabalhadora mais jovem independentemente do seu nível de esco‑laridade (Alves et al, 2011). Todavia, considerámos que seria pertinente identificar mais pormenorizadamente o modo como a precariedade afe‑ta diferentes dimensões da vida profissional e social entre jovens que mobilizam a formação superior como um recurso fundamental de inser‑ção no mercado de trabalho, tendo como pano de fundo uma conjuntura temporal ainda marcada pelos impactos da crise económico‑financeira. Esta contextualização será abordada pela análise desenvolvida no capí‑tulo «Contextualização estatística».

Depois disso, discutem‑se os efeitos da precariedade na vida dos indivíduos além da estrita esfera profissional, a partir dos resultados de um estudo qualitativo onde foram realizadas entrevistas semidiretivas a uma amostra não probabilística de 24 jovens em situações de precarieda‑de profissional (estágios remunerados/não remunerados; bolsas de inves‑tigação; contratos a termo ou a tempo incerto; recibos verdes; trabalho informal; situação de desemprego).

Os jovens entrevistados, com idades balizadas entre os 21 e os 32 anos, possuem formação superior em diferentes áreas científicas (Quadro 1), vivem na Área Metropolitana de Lisboa e foram selecionados a partir da técnica bola de neve (são identificados com nomes fictícios). Nas en‑trevistas realizadas procurou‑se perceber as suas trajetórias desde a altura em que saíram do ensino superior até ao momento em que entraram no mercado de trabalho, focando as seguintes dimensões: a) percurso e re‑presentações do ensino superior, trajeto profissional e laboral (capítulo «O impacto da precariedade no quotidiano»); b) quotidiano, transições, autonomia financeira e perceções de justiça (capítulo «Do ensino superior para o mercado de trabalho»); c) participação sociopolítica, cidadania e projeções do futuro (capítulo «Precariedade é para sempre?»).

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[18] R E T R ATO S D A P R E C A R I E D A D E

QUADRO 1: ÁREAS CIENTÍFICAS E FORMAÇÃO DOS ENTREVISTADOS

CIÊNCIAS DAVIDA E DA

SAÚDE———

CIÊNCIAS EXATAS,ENGENHARIA EARQUITETURA

———

CIÊNCIASSOCIAIS E

HUMANIDADES———

Enfermagem

Radiologia

Engenharia Civil

Engenharia Eletrotécnica

Engenharia Informática

Engenharia Geológica

Física

Biologia

Arquitetura

Gestão

Solicitadoria

Ciências da Comunicação

Relações Públicas

Antropologia

Sociologia

Ciência Política

História

Psicologia

Ciências Musicais

História da Arte

Estudos Artísticos

Assim, a seguir à apresentação do enquadramento teórico e estatístico em torno das dimensões laborais e socioeconómicas da precariedade, este livro revela uma das principais conclusões resultantes da análise das entrevistas realizadas: apesar de estarmos perante percursos profissio‑nais ainda curtos, depreende‑se uma enorme fragmentação e multiplici‑dade de situações contratuais, fazendo com que a entrada e a continui‑dade dos jovens no mercado de trabalho aconteça através da acumulação de empregos precários, independentemente do tipo de atividade desen‑volvida.

Explora‑se posteriormente a ideia de um modo de vida precário de‑corrente da incerteza profissional e dos baixos rendimentos auferidos, assim como o seu efeito naquilo que é o dia‑a‑dia dos jovens e a sua ca‑pacidade para traçar projetos de vida. Por seu turno, do ponto de vista económico‑financeiro, a precariedade tende a representar uma situação de «semiautonomia» que se pode perpetuar ao longo de anos. Simultanea‑mente, desenvolve‑se a análise sobre dimensões geralmente mais invisí‑

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veis da precariedade, a saber: o seu impacto no bem‑estar mental e na qua‑lidade de vida do indivíduo, e a forma como se enquadra o tempo presente e futuro tanto no mundo do trabalho como na sociedade em geral.

Em 2018, voltámos a inquirir sete dos jovens entrevistados em 2016, tendo como objetivo a elaboração de retratos sociológicos (Lahire, 2002) de jovens trabalhadores e conhecer mais aprofundadamente as suas traje‑tórias, desde o momento em que saíram do ensino superior até à experiên‑cia profissional mais recente no mercado de trabalho, para perceber até que ponto as suas situações laborais se alteraram nos dois anos anteriores (ver capítulo «Retratos de jovens trabalhadores»). Para tal, retomaram‑se três dimensões principais: caracterização do percurso laboral; quotidiano e transições; projeções do futuro e alternativas. A partir do estudo de‑senvolvido, elaborou‑se uma análise de conteúdo tendo como principais eixos analíticos a identificação das dimensões nucleares que caracterizam a situação social resultante da precariedade laboral. Esta baseou‑se nos testemunhos recolhidos pelas entrevistas aprofundadas.

Segundo Pierre Bourdieu, «a entrevista pode ser considerada como uma forma de exercício espiritual, visando obter, pelo esquecimento de si, uma verdadeira conversão do olhar que lançamos sobre os outros nas circunstâncias comuns da vida» (Bourdieu, 1999 [1993]: 704). Foi a partir desse exercício de conversão do olhar, canalizado para o outro, que em‑preendemos uma identificação sobre o modo como os atores expressam e interpretam as situações e as múltiplas experiências sociais em que estão ou estiveram envolvidos na vida quotidiana. Pretendeu‑se, por isso, par‑tir do ponto de vista dos entrevistados, enquanto substrato fundamental que, por intermédio da análise de conteúdo, permite entrelaçar e recons‑truir reportórios de produção de sentido e de significado. Considerando os discursos registados, tentámos estabelecer ligações entre processos sociais interdependentes que se influenciam mutuamente (Becker, 1996). Ou, dito de outra forma, o estudo pretendeu analisar a precariedade a par‑tir de dentro, da subjetividade produzida, tendo como fonte as perceções e os sentimentos expressos através de um manancial discursivo e reflexivo sobre a própria experiência de vida.

Face ao exposto, convém ainda esclarecer alguns pontos que orienta‑ram o decorrer da investigação. Assim, primeiramente, é necessário dizer que esta não se trata de uma investigação que se enquadra especificamente

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na área da sociologia da juventude. O seu objetivo passou simplesmente por identificar e reconstruir trajetos de precariedade laboral entre traba‑lhadores jovens que iniciaram recentemente a transição para o mercado de trabalho. O intuito fundamental foi o de perceber até que ponto estes percursos laborais afetam as diferentes esferas da vida quotidiana. Neste sentido, pretendemos não reificar nem essencializar categorias geracio‑nais por via do uso de conceitos como millennials, Geração Y, entre outros. De qualquer modo, é importante frisar que o significado do conceito de geração, e, na relação com este, o de juventude ou de jovens, tem merecido da parte das ciências sociais, e particularmente da sociologia, um profícuo e intenso debate científico.

Embora neste livro se tenha optado por não utilizar categorias gera‑cionais que supostamente identificam uma dada coorte etária associada a um certo contexto histórico marcado por processos socioeconómicos e políticos específicos e diferenciadores, convém sublinhar que determina‑do tipo de marcadores geracionais, como o de geração milénio, estão longe de abarcar e identificar realidades que não se caracterizam pela homo‑geneidade ou por uma vincada padronização social (Ferreira et al., 2017). Na verdade, como muitos autores têm salientado, desde os anos de 1990, a categoria «juventude» (ou «jovem») enquadra necessariamente dinâmicas sociais e processuais não lineares e marcadamente heterogéneas, designa‑damente na diversidade dos seus modos de vida e das suas práticas cultu‑rais (Pais, 1993; Simões, 1999).

Em segundo lugar, embora não se adote uma perspetiva geracional é óbvio que a noção de geração surge recorrentemente plasmada nos dis‑cursos apresentados e também em certas passagens do texto. De qualquer modo, o seu uso é sobretudo instrumental, no sentido de captar certos padrões, regularidades e até coincidências. Contudo, não nos escusamos a tomar uma posição crítica sobre o modo como, por vezes, se representam e se projetam, através de formulações mais ou menos mitificadoras, os comportamentos e as ações destes atores na relação com o contexto his‑tórico contemporâneo em que vivemos. No nosso entender, é importan‑te resistir a tentações que projetam nas designadas gerações mais jovens, tendencialmente mais qualificadas, a emergência e a constituição de um novo sujeito histórico de cariz transformador (identificado em categorias como a de precariado). Ou, em sentido contrário, não devemos também

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embarcar em visões de vitimização, como se estes fossem completamente incapazes de inverter alguns constrangimentos que abalam as suas vidas. Tentámos evitar maniqueísmos (nem heróis nem vítimas), assim como oposições artificiais (ou emancipadores, ou acomodados), que em nada ajudam a análise destes processos sociais complexos e multidimensionais.

Em terceiro lugar, gostaríamos de frisar que um dos objetivos prin‑cipais da investigação não foi o de apresentar uma versão unívoca sobre a situação precária dos jovens entrevistados. Apesar de certas regulari‑dades identificadas, evidenciamos tensões e ambivalências que perpas‑sam na produção dos múltiplos sentidos e significados. Assim, ao invés, o objetivo passou fundamentalmente por dar visibilidade à diversidade dos discursos e às complexidades reflexivas e argumentativas produzidas num contexto histórico onde os impactos regressivos da crise económica e social ainda estavam muito presentes.

Na verdade, estes jovens acabaram os seus cursos e/ou foram ingres‑sando no mercado de trabalho no auge da crise e dos efeitos das políti‑cas de austeridade que, como referimos, representaram uma espécie de catalisador do mal‑estar social. Daí a relevância em estabelecer uma re‑lação analítica entre os seus percursos individuais e o impacto dos ma‑croprocessos sociais e políticos que, de maneira mais ou menos vincada, influenciaram as suas perceções e posicionamentos sobre o fenómeno da precariedade.

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foi composto em caracteres Hoefler Texte impresso na Guide, Artes Gráficas,sobre papel Coral Book de 80 gramas,no mês de fevereiro de 2019.

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