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    A escrita teraputica no autismo

    Marina Bialer*

    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, 18(2), 221-233, jun.2015

    http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2015v18n2p221.3

    O presente texto analisa as duas autobiografias de Birger Sellin,autista-escritor, que so retratos da sua luta para se liberar do isola-mento autstico glacial, atravs das suas diversas estratgias inventadasque lhe viabilizam um tratamento do gozo invasivo, com uma eficcia

    relativa, mas que lhe permitem manter seus pseudpodes estendidos emdireo aos outros. A inveno da literatura birgeriana retrata os efeitosteraputicos da escrita, evidenciando a sua importncia enquanto valiosa

    ferramenta de (auto)tratamento no autismo.

    Palavras-chave: Psicanlise, autismo, autobiografia, gozo

    * Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo USP (So Paulo, SP, Brasil)

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    Introduo

    A importncia da escrita no campo do autismo particularmenteenftica no caso de autistas no verbais, incapazes de utilizar a vozpara se comunicar oralmente. Na literatura autobiogrca de autistasconstatamos a presena de vrios autistas extremamente inteligentes esensveis que so erroneamente considerados dbeis mentais, seja pelafamlia, seja pelos prossionais responsveis pelos seus tratamentos.Presos no mutismo autstico, alm da impossibilidade de se apro-

    priarem da voz para se comunicarem, eles manifestam comportamentosmuitas vezes bizarros, cuja lgica escapa das outras pessoas. somenteaps o uso da escrita para se expressar que vrios autistas no verbaispodem, nalmente, manifestar quem so e o que estava escondido atrsdos muros autsticos. Todos os autistas no verbais das autobiograasconsultadas manifestavam os sintomas tpicos de um quadro kanne-riano de autismo mutismo autstico, comportamentos estereotipados,busca de mesmice (sameness), ausncia de contato visual, intensaagitao motora e movimentos de autoestimulao, comportamentosinadequados a diversas situaes, sendo que a grande maioria dos autis-tas-escritores analisados foram, inicialmente, enquadrados em diagns-ticos de debilidade mental ou inteligncia abaixo da mdia e autismo debaixo funcionamento ou autismo severo.

    Quando os autistas kannerianos podem escrever seus textos, elespodem nalmente mostrar que so inteligentes, pensantes, sensveis,desejosos de se expressar e de estender cada vez mais seus pseud-podes em direo aos outros, o que podemos apontar nas autobiograasescritas nos autistas no verbais, como Tito Mukhopadhay, Ido Kedar,Birger Sellin, Elizabeth Bonker e Carly Fleischmann, nos autistas

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    capazes de oralizar, mas com diculdades signicativas para conseguir expressar oque est na sua mente, como Naoki Higashida, e nos autistas verbais como DonnaWilliams e Temple Grandin. No presente artigo, enfocaremos os efeitos teraputicos

    da escrita no autismo, a partir dos livros autobiogrcos de Birger Sellin, autistaalemo que foi um dos inauguradores da tradio literria de escritos autobiogr-cos de autistas, por meio de duas vertentes: a escrita enquanto porta de acesso aoautista que viabiliza a mudana do lugar do autista no lao social e a vertente dotrabalho organizador do pensamento viabilizado pela escrita.

    O surgimento da escrita em Birger

    Tendo sido diagnosticado dbil mental e, em seguida, autista, Birger Sellinpermaneceu em um quadro de autismo kanneriano dos dois at os 17 anos, tendoexpressado uma nica frase durante esse perodo. Durante todos os anos encapsu-lado, em mutismo quase absoluto, havia apreendido uma quantidade inimaginvelde informaes, tendo mantido uma intensa vida psquica, plena de sentimentose pensamentos, e aprendido a ler e a escrever sozinho, mas era ainda incapaz deexpressar, para os outros humanos, seus pensamentos, sentimentos e ideias. Aos17-18 anos, ele comeou a escrever seus textos literrio-autobiogrcos e liter-rio-poticos, os quais constam de seus dois livros publicados e pde compartilhartoda a sua intensa vida psquica atravs da escrita. Os primeiros escritos de Birgertm como temtica principal a designao dos seus pais, do irmo e de seu prprionome, alm da nomeao de vrios objetos, de alguns nmeros e de um clculomatemtico de adio. Em seguida, Birger escreve longos textos sobre o autismo,sobre seus medos, sobre a falta de paz e o sofrimento no isolamento autstico, sobrea sua busca de estratgias para sair da sua solido, e sobre quo exaustivo paraele a luta para se expressar e a importncia da escrita. Do primeiro texto, podemosextrair o trecho: Eu no sou uma pessoa real sem a escrita porque isto meu nicomeio de expresso que eu tenho e este o nico meio de mostrar como eu penso(Sellin, 1995, p. 57).

    Com a evoluo da sua escrita, esta se torna uma maneira de falar de si quese desdobra em uma possibilidade de, ao se falar, poder organizar pensamentos esentimentos que at ento cavam perdidos no caos, pois, nas palavras de Birger,(...) o fato que eu j podia escrever e at fazer aritmtica quando eu tinha quasecinco, mas ningum podia notar porque eu era to catico, mas eu somente eradaquele jeito porque eu tinha medo das pessoas (p. 58). Escrever se torna, ento,para Birger, a oportunidade de se liberar parcialmente, de se comunicar, de contarseu sofrimento e alguns porqus de seus comportamentos incontrolveis.

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    A liberao viabilizada pelo uso da escrita, pois a vida seria um inferno sema escrita (p. 65), permite a Birger se libertar parcialmente do mundo-sem-eu(p. 71), no qual est dolorosamente preso, para ser livre (1998, p. 71). Alm

    disto, escrever lhe permite deixar uir o uxo de pensamentos, ao encontraras palavras (p. 92) que lhe permitem se expressar. Ao contrrio, o encapsula-mento autstico o lugar de um caos ntimo de um horror inigualvel (p. 60),mas romper este encapsulamento envolve um combate contra si mesmo (p. 60)para sair da eterna solido (p. 60) e da sua priso interior. Uma vez que a falalhe inacessvel, Birger precisa enfrentar permanentemente foras defensivas ede recusa (p. 63) para poder sair deste pas-de-ningum (p. 97) por meio de suaescrita.

    A volio para a abertura concomitante ao reencontro de Birger com um

    sentimento vital dentro de si, que retratado como sua pertena ptria humanae a desistncia das suas ideias separatistas (p. 154). A escrita surge como a viade construo de um lugar social e de pertencimento ptria humana. Pela escrita,Birger inventa uma maneira de no cair no abismo da solido sem m e encontrauma forma de se comunicar e dar vida aos seus pensamentos e sentimentos. escrevendo que Birger tem esperana de que a luz entre na escurido e que elepossa compartilhar com os outros humanos os seus sofrimentos e sair da solidoesmagadora.

    Em inmeros trechos dos textos de Birger evidente a vivncia de total

    desamparo e o imenso sofrimento na solido autstica, pois a vida em total isola-mento pior que uma priso ou o que eles chamam connamento na solitria euestou afogando na solido (Sellin, 1995, p. 71), como ser enterrado vivo nasolido de um autista (p. 84).

    Birger se dirige ao leitor como algum que pode escut-lo e que podeajud-lo a ser tocado pelo amor e a encontrar foras dentro de si para enfrentar assuas defesas autsticas e conseguir se abrir para o lao. essencial para Birger suaintensa vontade de se comunicar com as pessoas que lhe so queridas, inclusivealguns de seus leitores. Deste modo, a escrita, ao viabilizar o lao com o outro e

    favorecer o amor, um apoio indispensvel para que Birger desenvolva suas estra-tgias (auto)teraputicas. Sentir-se compreendido pelos outros humanos extre-mamente importante para que Birger possa sentir ter um lugar no mundo, poiso amor dos outros e a interao com pessoas gentis, calmas e respeitosas da suahumanidade so descritos como a possibilidade de respirar para fora do seu isola-mento e priso autsticos e germinar amor dentro de seu corao, pois a gentilezae o amor so uma arma ecaz contra o autismo enervante (Sellin, 1998, p. 16),tendo poderes teraputicos de um ecaz remdio ntimo (p. 16). O seu leitor convocado como algum que pode ajudar ao l-lo, alicerando uma nova tica que

    respeite a diferena e que acolha suas maneiras de viver singularmente a vida.Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, 18(2), 221-233, jun. 2015

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    A escrita como alicerce para o autoestudo psquico

    Birger (Selin, 1995) realiza um intenso trabalho psquico em busca de estra-

    tgias que lhe permitam tratar o gozo invasivo, a angstia, o medo, a agitao eo isolamento autsticos. Ele desenvolve um trabalho de reexo e pensamento quelhe permite criar seu mtodo pessoal para lidar com suas diculdades e tentar supe-r-las, pelo desenvolvimento de suas teorias pessoais (p. 69) sobre si e sobre omundo. Estas teorias lhe permitem expandir sua leitura de vrias facetas do mundo,analisar profundamente a humanidade e expandir suas estratgias de autotrata-mento. interessante enfatizar a presena, nas duas autobiograas de Birger, deum intenso trabalho psquico para pensar a si mesmo, particularmente o ser-autista,concretizando uma descrio e explicao das suas singularidades, dos seus modos

    de defesa e das suas principais angstias. Neste mbito, Birger aponta, com todapertinncia, haver leis (Sellin, 1995, p. 106) ou o que podemos caracterizar comouma lgica que alicera a sua estrutura psquica. Birger descreve as leis da lgicaautstica, mas em inmeros trechos de suas autobiograas ele tenta transformar osseus conitos e mudar do autismo para o que ele caracteriza como um funciona-mento que substitua as leis da loucura (p. 106) por leis que funcionam (p. 106)na normalidade. Se por um lado, Birger em alguns momentos s consegue imaginarum estado de tranquilidade sendo normal, ele vai, nesse entretempo, desenvolverestratgias que lhe permitem rever suas defesas autsticas e conseguir obter um

    novo equilbrio psquico, com uma reduo do sofrimento e a possibilidade de umavida um pouco mais livre, permitindo-lhe se entregar a experincias que ele anseia:como poder realizar viagens ou passeios sozinho.

    interessante que, em um dos seus textos, Birger (Selin, 1998) refere que vaitentar escrever ou uma super birger-estria (p. 224) para presentear quem est lhedando o apoio para que ele escreva, ou um poema sobre criaturas estrangeiras (p.224) e fatos selvagens (p. 224) e desregulados. Na estria, trata-se de um eventonatalino, uma data de paz, com um clima ameno e meridional (p. 224), marcadopor um riso louco (p. 224) e uma festa cordial (p. 224). Esta estria, escrita

    no nal da sua segunda autobiograa, d-nos indcios de um interessante percursorealizado por Birger, que no est mais brigando to violentamente com a estran-geirice ou com as manifestaes bizarras do seu comportamento, mas aceitandocordialmente uma soluo de acolhimento da sintomatologia, o que nos indica seucaminho curativo pela escrita que trata a alma sozinha (p. 224) e lhe permite obteruma relao mais conciliatria com as suas manifestaes autsticas.

    Outro importante alicerce para o desenvolvimento das suas autoestratgias detratamento o estudo, pois o saber se torna para Birger uma verdadeira paixo(Sellin, 1998, p. 101): ele quer aprender tudo, tem uma imensa avidez, relatando

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    que este trabalho intelectual uma fonte da vida supervivvel (p. 138). Ele desen-volve um trabalho de reexo e pensamento que lhe permite criar seu mtodopessoal para lidar com suas diculdades e tentar super-las. Os livros se tornam

    tanto uma fonte do tesouro da linguagem da humanidade quanto os alicerces paraque Birger possa criar modalidades de organizao de si mesmo e da sua apreensodo mundo, tornando-o um silencioso que pode comear uma linguagem (p. 24).

    Das reas de conhecimento, Birger demonstra um interesse especial pelaslnguas, pela matemtica, pelas cincias biolgicas e pela psicologia, ressaltandouma relao especial com a natureza e seu poder vital curativo e revigorante, comos nmeros e seu mundo misterioso, com as lnguas e a possibilidade de abrir ocorao humano e comunicar o sofrimento, com a psicologia e a possibilidade de secompreender e contribuir para o conhecimento dos outros sobre o autismo.

    A leitura de nomes clssicos da losoa se torna a fonte de conhecimento paraBirger construir seu percurso subjetivo e as suas explicaes para a vida, a morte,o autismo, suas decises e escolhas, enm, para pensar a vida. Por exemplo, aps aleitura de Nietzsche, Birger comenta a importncia desta leitura para a formao dapersonalidade, desembocando na sua reexo sobre o fato de que ele prprio luta nasua vida contra foras muito fortes, e que contra si mesmo que preciso decidiro seu destino, o que ser rearmado em outros momentos do seu texto sobre a suanecessidade constante de batalhar contra suas prprias resistncias e seu medo paraconseguir se comunicar.

    Birger precisa inventar modos de compensao para a falta do encadea-mento signicante, atravs da leitura de uma quantidade imensa de textos que eleapreendia no seu crebro doloroso (Sellin, 1998, p. 115) atravs de um olharextremamente breve no qual ele registrava o contedo escrito, que lhe era neces-srio retrabalhar mentalmente atravs de um intenso processo psquico hiper-difcil (p. 148). Birger registrava rapidamente uma quantidade enorme deinformao, mas tinha diculdade principalmente para registrar nomes e deno-minaes, caracterizando sua impossibilidade em ter certeza sobre os nomes dascoisas e as suas designaes. Ele distinguia a sua diculdade em relao aos outros

    humanos, no autistas, que podem ser seres pensantes certos-dos-nomes (p. 220),enquanto ele precisa autoinventar uma habilidade de aprender-a-conhecer-os--nomes (p. 220).

    Ao se apropriar da linguagem, desenvolvendo nomeaes e designaes queele etiqueta realidade, surge uma nova modalidade de organizao atravs daapreenso da realidade atravs das possibilidades criadas por esta linguagem, outroimportante fator teraputico evidenciado na escrita de Birger. Esta etiquetagem econsequente organizao psquica operacionalizam uma modalizao do gozo emuma modalidade de tratamento da energia em excesso (gozo) que lhe invade.

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    A escrita como tentativa de modalizao do gozo

    A funo catrtica-curativa que tem para Birger se expressar pela escrita

    permite que uma dimenso energtica que pode ser remetida ao gozo em excesso encontre uma sada para seu corpo. Em vrios trechos das autobiograas, eletenta elaborar maneiras de se ligar a uma fonte (energtica) da qual nasce uma vidaoriunda das profundezas em um movimento curativo que lhe permitiria se reapro-priar desta dimenso energtica e que seria concomitante possibilidade de ser livree poder se expressar.

    A busca desta vitalidade das profundezas do ser, que age como uma fora tera-putica, tambm marcante nas descries de Birger da sua relao com a natureza.Fascinado pela viso do mar, vento e rochas, Birger pode deixar de escanteio

    seus medos, manias e triste realidade (Sellin, 1998, p. 76). Nestes momentos dedistanciamento do prprio sofrimento e de vivncia de momentos de uma alegriatranquila, a natureza vivenciada como sua famlia pacca (p. 77) da qual recebeuma fora benca e espiritual (p. 81) com poderes teraputicos vitalizadores erevigorantes, dado que a silenciosa natureza trabalha a alma em voc como umsupermdico (p. 77).

    Neste contato com os seres da natureza, Birger busca o vigor psquico(Sellin, 1998, p. 91) que lhe permite adquirir um movimento constante e umadinmica energtica vital. A natureza personicada como a me-natureza

    que surge para auxili-lo a sair do que ele vivencia como uma terra de mortos eausentes, aprisionados em uma solido total espera de poderem ser novamenteconectados a uma fonte de energia e vitalidade que permita uma ressurreio (p.97). Birger se descreve como uma planta invernal cheia de desejo de rever o sol(p. 98), sonhando com a presena da me-natureza que acalme a sua dor, retire seumedo e lhe d acesso vitalidade, atravs do amor e da sabedoria. Em um dos seuspoemas, Birger ressalta que assim como (...) a gua busca um caminho em direodo mar (...), Birger busca um caminho em direo da vida (p. 209), sendo quesua relao com a natureza espelha precisamente este seu esforo de apropriao da

    fora energtica vital na tentativa de modaliz-la.Vale a pena ressaltarmos o intenso trabalho psquico que envolve, para Birger,

    escrever sobre este esforo de ser capaz de adquirir uma dinmica, de se apropriarde uma energia vinda das profundezas, o que podemos evidenciar, por exemplo,pelo fato de que, ao escrever, Birger tem, eventualmente, crises de gritos: o medoe a confuso aumentam), pois eu no posso me impedir de grritarx (Sellin, 1998,p. 157). Na emergncia das crises, marcante a invaso de uma agitao (gozo) queBirger caracteriza ser profundamente enraizada dentro de si e que o devora acarre-tando no colapso das primeiras palavras agonizantes (Sellin, 1995, p. 80).

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    Em um dos seus escritos, Birger descreve diferentes etapas da sua crise: naprimeira etapa h o surgimento de um medo imenso oriundo de uma obscuri-dade mental (Sellin, 1998, p. 114), em seguida tudo se tornaria opaco e preto e

    ento ele teria uma vivncia somtica de isolamento glacial (p. 115), cujo nicoremdio seria o encontro com outro humano capaz de o acolher com tranquilidade,oferecendo-lhe um discurso sensvel (p. 115) e que no fosse nem tomado pordemasiada tenso em face da sua crise, nem que casse hesitante ou em silncio.

    A escrita de Birger sobre como o outro humano pode ser teraputico para ele,de qual maneira algum pode estar ao seu lado de modo a favorecer a sua extensodos pseudpodes e amparar as suas invenes subjetivas para tratar o gozo invasivo, tambm uma temtica constante nos seus textos. O autoestudo das suas sinto-matologias e funcionamento psquico desembocam em orientaes para as outras

    pessoas a partir do seu saber construdo sobre o seu autismo e as singularidades dasua lgica psquica. Birger arma a importncia destes laos com pessoas capazesde se adaptar ao funcionamento psquico autstico e, assim, funcionarem comoantdoto para a solido e o isolamento, em uma abertura para o amor e para a vida.

    atravs das cartas que recebe de leitores que Birger encontra fora para lutarcontra seu medo e suas defesas e continuar a se comunicar, enfrentando um riscoatroz (Sellin, 1998, p. 146), mas decidido a batalhar e a ousar conar, entregando-seao mundo dos outros humanos pela aposta no encontro confortante da compreenso.As trocas de cartas com os leitores so uma fonte de reconhecimento e afeio

    essenciais para Birger, sendo que ele salienta ter aprendido na interlocuo comseus leitores a ternura ntima (p. 147) e a empatia, o que lhe d uma intensaalegria e o sentimento de que vale a pena viver a vida e sair do mundo tenebrosoonde ele vive solitariamente.

    A escrita como organizadora do pensamento

    Nos momentos em que Birger no consegue escrever, apesar da intensavontade de encontrar os caminhos para se expressar, ele tomado por uma solidoque o impede de se levantar de seu caixo como se houvesse dentro dele ummuro rude e confuso ou alguma coisa que obstrui com veemncia o caminho emdireo ao exterior (Sellin, 1998, p. 96). Estas resistncias interiores so descritascomo fontes de energia negativa-negadora de vida, oriundas em si mesmas, o quelhe exige o apoio de um outro humano, sem o qual lhe impossvel superar estaspoderosas foras que lhe tornam um catico eterno gritador (p. 170).

    O ritmo dos pensamentos na sua mente era to intensamente rpido, e aomesmo tempo catico, que seus elos se perdiam e ele era invadido por ataques

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    de agitao. Birger cava perdido, sem organizao, quando deparado com suavoz silenciosa ou a fala na mente solitria (Sellin, 1995, p. 102), constitudapor pensamentos loucos, rpidos, sem m, os quais podiam ser autotratados pelo

    escrever. Se, por um lado, o pensamento se perdia no caminho at ele ser expressooralmente, quando Birger recorria escrita, ele conseguia manter a conexo entreo pensamento e a sua expresso. Neste sentido, a escrita lhe permitia organizarseus pensamentos, deixando de serem perdidos ao longo do caminho: os pensa-mentos que cavam soltos por no estarem crochetados pelo signicante-mestrepodiam, deste modo, ser encadeados atravs do processo de escrever. Ao colocar empalavras, Birger aponta poder sistematizar este uxo de ideais e se sentir aliviado docaos de pensamentos (p. 103).

    Alm da diculdade de organizao dos pensamentos, havia a diculdade

    deles poderem ser expressos. Em Birger h uma distncia muitas vezes intranspo-nvel entre seus pensamentos e a expresso deles. Ele arma saber como agem asfrases as palavras como ns as escutamos interiormente, mas no exterior diferentesem controle dos mundos interiores (Sellin, 1998, p. 31). Os mundos, interior eexterior, so mundos fabulosos imensamente separados (p. 63), sendo que a nicapossibilidade dele junt-los era pela escrita, como ponte para a passagem de umabismo.

    Se o escrever no uma soluo denitiva, evidenciamos que ela envolve umrduo trabalho psquico, contnuo, que permite a Birger desenvolver sua linguagem,

    apreender a realidade por meio da organizao propiciada pelas estruturas lingus-ticas, organizar e sistematizar seus pensamentos e sentimentos, encontrar uma viade conexo dimenso vital-energtica e inventar modalidades de autotratamentosingulares.

    O estilo da escrita de Birger

    interessante notarmos a evoluo dos escritos de Birger, das primeirastentativas de nomeao de objetos e sentimentos, ele vai cada vez mais articulandopensamentos e sentimentos mais complexos, surgindo nestes textos, cada vez maispresente, o estilo birgeriano: um olhar singular, marcado por uma viso de si mesmoe do mundo extremamente lcida, com pitadas de humor e ironia. Alm disto, noseu estilo tambm emergem expresses criativas e seu modo de ver um mundo ondeh coisas e pessoas fabulosas e extraordinrias nascidas do corao birgeriano(Sellin, 1998, p. 76).

    Ser um escritor-poeta , para Birger, poder elaborar as suas experincias devida, transformando-as ao express-las em uma forma estilstica cristalina, simples e

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    autntica que retrata (e trata) as verdades do sofrimento humano e dos sofredores semvoz. Birger o porta-voz das pessoas solitrias que tentam dizer algo sem palavras(...), algo simples na sua linguagem isolada na linguagem de pessoas solitrias

    como uma pessoa totalmente louca com nome de birger (Sellin, 1995, p. 97).O escrito de Birger tem uma marca singular. Na sua poesia, nas estrias e nostextos autobiogrcos propriamente ditos podemos armar que Birger vive nostextos (Barbosa, 2013, p. 7). Publicar as suas autobiograas surge da vontade deBirger de encontrar um lugar para si no mundo e de permitir que as pessoas tenhamacesso ao seu mundo e compreendam a sua vontade de se ligar aos outros. Seustextos evidenciam o seu esforo de organizao do pensamento para inventarpercursos que lhe permitam se transformar de uma no pessoa (Sellin, 1995, p.105) em uma pessoa com um lugar social na humanidade.

    Sua escrita um pseudpode estendido em direo aos outros humanos naesperana de ser escutado. O efeito da leitura no leitor depende, no entanto, dapossibilidade deste permitir ser tocado pelas reverberaes dos abismos de Birger.O estilo sem enfeite (...), sem desperdcio de palavras e de franqueza semrodeios (Barbosa, 2013, p. 6) envolve uma intensa experincia de contato comuma dimenso humana que remete diretamente ao Real desnudado. Atravs Birger,o leitor pode se deparar tanto com o estranho ntimo da sua prpria existncia ese abrir para uma nova experincia vicariante, quanto sentir horror do que lhe tocaprofundamente, ao se deparar com uma dimenso do Real, nos alicerces de todo ser

    humano.Para ler Birger, preciso se entregar ao desconhecido e s dores das profun-dezas do ser que suas palavras carregam, mas deste sofrimento, desamparo eangstia, surge uma abertura para o respeito da diferena do outro humano. No toa, a leitura da literatura de Birger me lembrou a tese de Rita Barbosa (2013)quando arma a existncia de uma tica de compaixo (p. 108) que emerge dapossibilidade de solidariedade com o outro, de oferecer a mo ao sofrimento, decompreenso do diferente e de se deixar tocar pela vulnerabilidade do outro,aspectos estes tambm to marcantes no escrito birgeriano.

    Consideraes nais

    Birger realizou um importante percurso que retrata um trabalho (auto)tera-putico do qual sua escrita um aspecto de importncia essencial. Birger se tornoucapaz de se expressar com uncia, concretizando uma literatura autoral na qualpodemos notar vrios dos mecanismos psquicos que ele operacionalizou e quelhe permitiram estender seus pseudpodes e se comunicar atravs da sua escrita.

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    treatment of invasive jouissance, but which also allowed him to keep his pseudopodsextended towards others. The invention of Birgerian literature portrays the therapeuticeffects of writing, highlighting its importance as a major tool for (self-) treatment in

    autism.Keywords: Psychoanalysis, autism, autobiography, jouissance

    (Lcriture thrapeutique dans lautisme)

    Cet article analyse les deux autobiographies de Birger Sellin, autiste-crivain,

    qui illustrent sa lutte contre lisolement autiste glacial, mene travers de diffrentes

    stratgies labores par lui-mme et qui lui ont permis de suivre un traitement de jouis-sance invasive. Bien que lefficacit de ce traitement reste relative, il lui a nanmoins

    permis de maintenir les pseudopodes tendus vers les autres. Linvention de la littra-

    ture birgerienne met en lumire les effets thrapeutiques de lcriture, tout en soulignantson importance comme outil majeur dans l(auto )traitement de lautisme.

    Mots cls: Psychanalyse, autisme, autobiographie, jouissance

    (Escritura teraputica en el autismo)

    En el presente trabajo se analizan las dos autobiografas de Birger Sellin, escritorautista, que son obras que reflejan la lucha por liberarse del aislamiento autstico

    glacial mediante diferentes estrategias inventadas, las cuales hacen posible un trata-miento del goce invasivo que, con una relativa eficacia, le permiten mantener sus

    pseudpodos extendidos hacia los otros. La invencin de la literatura birgeriana dejaen evidencia los efectos teraputicos de la escritura y destaca la importancia de lamisma como una potente herramienta para el (auto)tratamiento del autismo.

    Palabras clave: Psicoanlisis, autismo, autobiografa, goce

    (Die therapeutische Schreiben im Autismus)

    Der vorliegende Text analysiert zwei Autobiographien von Birger Sellin, einemAutisten und Schriftsteller, welche seinen Kampf gegen die eisige autistische Isolationbeschreiben. Sie erzhlen, wie er verschiedene Strategien entwickelte, die ihm zwar mit

    relativem Erfolg einerseits eine Behandlung des invasiven Genieens ermglichten,andererseits aber auch, seine Pseudopodien in Richtung der Anderen ausgestreckt zuhalten. Die Erfindung der birgerianischen Literatur illustriert die therapeutischen

    Effekte des Schreibens, sowie ihre Wichtigkeit als ausgezeichnetes Werkzeug der (Selbst)Behandlung des Autismus.

    Schlsselwrter: Psychoanalyse, Autismus, Autobiographie, Genieen

  • 7/23/2019 Rev Bras

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    233

    ARTIGO

    Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., So Paulo, 18(2), 221-233, jun. 2015

    ()

    BirgerSellin

    (birgeriana

    Citao/Citation: Bialer, M.(2015, junho). A escrita teraputica no autismo.Revista Latinoa-mericana de Psicopatologia Fundamental, 18(2), 221-233.

    Editores do artigo/Editors: Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck e Profa. Dra. Sonia Leite

    Recebido/Received: 18.4.2014/ 4.18.2014 Aceito/Accepted: 15.6.2014 / 6.15.2014Copyright: 2009 Associao Universitria de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este um artigo delivre acesso, que permite uso irrestrito, distribuio e reproduo em qualquer meio, desde

    que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricteduse, distribution, and reproduction in any medium, provided the original authors and sourcesare credited.

    Financiamento/Funding:A autora declara no ter sido nanciada ou apoiada / The author hasno support or funding to report.

    Conito de interesses/Conict of interest: A autora declara que no h conito de interesses/ The author has no conict of interest to declare.

    MARINABIALER

    Psicloga; Master em Lettres, Langues, Sciences Humaines et Sociales pela Universit Paris7 Denis Diderot (Paris, Fr); Doutora em Psicologia Clnica pela Universidade de So Paulo USP (So Paulo, SP, Br); Doutora em Recherches en Psychopathologie et Psychanalysepela Universit Paris 7 Denis Diderot; Ps-doutoranda na Faculdade de Educao daUniversidade de So Paulo FEUSP, Pesquisadora LEPSI-USP.Rua Joo Ramalho, 257/2405008-001 So Paulo, SPe-mail: [email protected]