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Rev. Psicanalitica2005

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Psicanalítica - A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

D E P O I M E N T O S

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SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRORua Fernandes Guimarães, 92 – BotafogoRio de Janeiro – RJ – CEP 22290-000Tel.: (21) 2543-4998 – Tel./Fax: (21) 2295-3148Home Page: www.sprj.org.bre-mail: [email protected]

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Psicanalítica A revista da SPRJÓrgão oficial da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro

Indexada no Index-PSI – ISSN 1679-074x

EDITORA

COMISSÃO EDITORIAL

CAPA

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA

PRODUÇÃO GRÁFICA

Vera Lúcia de Faria Benchimol

Rejane Sabbagh ArmonyRosana Igor Rehfeld

Daniel Ferenzi

Editora Atheneu

Editora Imago

Este número da PSICANALÍTICA – A revista da SPRJencontra-se na Home Page da SPRJ no endereço: www.sprj.org.br

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D I R E T O R I A S

SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO FILIADA Á

INTERNATIONALPSYCHOANALYTICAL ASSOCIATION

ANOS 1955-1956Presidente: Fábio Leite LoboSecretário: Gerson BorsoiTesoureiro: Luiz G. DahlheimComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1957-1958Presidente: Werner W. KemperSecretário: Noemy RudolferTesoureiro: Luiz G. DahlheimComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1959-1960Presidente: Luiz G. DahlheimSecretário: Gerson BorsoiTesoureiro: Otávio SalesComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1960-1961Presidente: Luiz G. DahlheimSecretário: Gerson BorsoiTesoureiro: Otávio SalesComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1962-1963Presidente: Luiz G. DahlheimSecretário: Inês BesouchetTesoureiro: Werner W. KemperComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1964-1965Presidente: Luiz G. DahlheimSecretário: Inês BesouchetTesoureiro: Maria Pereira ManhãesComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1966-1967-1968Presidente: Luiz G. DahlheimSecretário: Maria Pereira ManhãesTesoureiro: João Marafelli FilhoComissão de Ensino: Werner W. Kemper

ANOS 1969-1970-1971Presidente: Maria Pereira ManhãesSecretário: Leão CaberniteTesoureiro: João Marafelli FilhoComissão de Ensino: Fábio Leite Lobo

ANOS 1972-1973Presidente: Leão CaberniteSecretário: Ernesto M. La PortaTesoureiro: João Marafelli FilhoComissão de Ensino: Ernesto M. La Porta

ANOS 1974-1975Presidente: Leão CaberniteSecretário: Antônio Dutra JúniorTesoureiro: João Marafelli FilhoComissão de Ensino: Antônio Dutra Júnior

ANOS 1976-1977Presidente: Leão CaberniteSecretário: Nylde Macedo RibeiroTesoureiro: Adolpho HoirischComissão de Ensino: Luiz G. Dahlheim

ANOS 1978-1979Presidente: Leão CaberniteSecretário: Victor M. AndradeTesoureiro: Nylde Macedo RibeiroDiretor do Instituto: Waldemar Zusman

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ANOS 1980-1983Presidente: Victor M. AndradeSecretário: Dirceu de Santa RosaTesoureiro: Jacob David AzulayDiretor do Intituto: João Coutinho de Moura

ANOS 1983-1984Presidente: Galina SchneiderSecretário: Nilo Ramos de AssisTesoureiro: Luiz Antônio Telles de MirandaInstituto de Ensino: Antônio Dutra Júnior

ANOS 1984-1985Presidente: Clara Helena Portela NunesSecretário: José de MatosTesoureiro: Orlando Vaz GalvãoInstituto de Ensino: Jacob David Azulay

ANOS 1986-1987Presidente: Paulo R. L. Quinet de AndradeSecretário: Miguel MonteraTesoureiro: José IzaíInstituto de Ensino: Moisés Tractenberg

ANOS 1988-1989Presidente: Isaac José NigriSecretário: Magali R. GonçalvesTesoureiro: Idésio Milani Tavares

Alceu Dutra MendesInstituto de Ensino: Nilo Ramos de Assis

ANOS 1990-1991Presidente: Ramon P. Fandiño FilhoSecretário: Ângela M. Botelho MachadoTesoureiro: Rui Teixeira BastoInstituto de Ensino: Léa Lemgruber

Vera Márcia Ramos

ANO 1993Presidente: Cláudio José de Campos FilhoSecretário: Ana Maria B. Iencarelli

Ângela M. BouthTesoureiro: Leila Nunes Fandiño

Orlando Vaz GalvãoInstituto de Ensino: Maria Letícia M. Rick

ANOS 1994-1995Presidente: Carlos Edson DuarteSecretário: Carmen Glória da C. DiasTesoureiro: Judith Kosa LetscheInstituto de Ensino: Issac José Nigri

ANOS 1996-1997Presidente: José de MatosSecretário: Isabel Gouvea VieiraTesoureiro: Flávio Barros Souto MaiorInstituto de Ensino: Paulo César Hermida

ANOS 1998-1999Presidente: Carlos Edson DuarteSecretário: Carmen Glória Dias

Vera Lúcia F. BenchimolTesoureiros: Silvia Helena Kossmann

Ana Maria RozanteInstituto de Ensino: Juan Ramon A.

Conde Martinez

ANOS 2000-2001Presidente: Maria Eliana M. HelsingerSecretário: Maria Inês Mac CullochTesoureiro: Denise Oliveira SávioInstituto de Ensino: Tânia Leão Pedrozo

ANOS 2002-2003Presidente: Clara Helena Portela NunesSecretário: Mariângela Relvas PintoTesoureiro: Glaucia Bertino

Rejane Sabbagh ArmonyInstituto de Ensino: Rosa Sender Lang

ANOS 2004-2005Presidente: Vera Márcia RamosSecretário: Maria BelfioreTesoureiro: Mírian Teresa B. Lopes ChusterInstituto de Ensino: José Osvaldo Moraes

Carlos R. Saba

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Diretoria da SPRJ – 2004/2005SOCIEDADE PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO FILIADA À

INTERNATIONAL PSYCHOANALYTICAL ASSOCIATION

CONSELHO DIRETORPRESIDENTE

SECRETÁRIA

TESOUREIRA

VOGAL EFETIVO

VOGAL ASSOCIADO

IEPDIRETOR

COMISSÃO CIENTÍFICADIRETORA

MEMBROS

DEPTO. DE ASSISTÊNCIA PSICOLÓGICADIRETORA

MEMBROS

INSTITUTO DE ENSINO DA PSICANÁLISEDIRETOR

SUBDIRETORA DE SELEÇÃO

SUBDIRETORA DE AVALIAÇÃO

SUBDIRETORA DE ENSINO

SECRETARIA ADMINISTRATIVASUPERVISORA

SECRETÁRIA

AUXILIAR DE SECRETARIA

BIBLIOTECÁRIA

Vera Márcia RamosMaria BelfioreMírian Teresa B. Lopes ChusterCynthia LadvocatRosa Maria Carvalho Reis

Carlos Roberto Saba

Eliana AtiêRejane Sabbagh ArmonyRosa Maria Carvalho ReisRosana Igor RehfeldSérgio de Freitas CunhaVera Lúcia Benchimol

Maria Clara Gomes KalilLeny V. AndradeMaria Cecília Assed SennaMariângela Relvas Pinto

Carlos Roberto SabaRosa Sender LangJudith Kosa LetsheFrida Hoirisch

Jurema Pio da SilvaSelma Pereira ConceiçãoAgnaldo Marins TeixeiraÍris Maria Carvalho Braga dos Santos

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S U M Á R I O

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E D I T O R I A L

Vera Lúcia BenchimolRejane Sabbagh Armony

S P R J O N T E M E H O J E

Vera Márcia Ramos

D E P O I M E N T O S

Maria ManhãesClara Helena Portella NunesEustáchio Portella NunesMaria Eliana B. M. HelsingerGrupo MemóriaMaria Aparecida Duarte BarbosaOndina Lúcia Ceppas Resende

E N T R E V I S T A S

Encontro com a Observação de BebêsEdna VilleteRosa Sender LangMárcia ErlichMaria Inês Mac Cullock

Encontro com o DAPRegina Maria C. Chagas Lessa

A V A L I A Ç Ã O E M D E B A T E S

Apresentação: Frida HoirishRelatórios: Edna Pereira Vilete, Clara HelenaPortella Nunes, Eliane Mirilli MacCord, VictorManoel Andrade, Elie Cheniaux, Miguel Chalub,Paulo César Q. Hermida, Frida Hoirish

A R T I G O S

A Psicanálise e seu EspaçoJaques Vieira Engel

Sobre a Arte da PsicanáliseEdna Pereira Vilete

Regressão e DesenvolvimentoVictor Manoel Andrade

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As Relações da Psicanálise coma Universidade: a SPRJ e o IPUB

Elie CheniauxSérgio de Freitas

Supervisões com Bion em 1974Ana Mária Coutinho Hissa

Reações Psicológicas à Perda de VisãoMaria Cristina de C. Barczinski

E N S A I O

Ao TelefoneOswaldo José de F. Milward

R E S E N H A

Pesquisando com o Método PsicanalíticoSimone Piragibe MagalhãesTerezinha de Souza Agra Belmonte

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E D I T O R I A L

O fio condutor desta edição é o cinqüentenário da Sociedade Psica-nalítica do Rio de Janeiro.

Publicamos exclusivamente trabalhos de autores filiados à SPRJ.Estes constituem uma pequena amostra da produção científica da nossasociedade que, ultrapassando as mais diversas vicissitudes , encontra vita-lidade para produzir cientificamente e repensar seus rumos institucionais.

O texto de Vera Márcia Ramos "SPRJ; Ontem e hoje", inauguraeste número. A autora discorre sobre a história da nossa sociedade e fazconsiderações sobre o contexto atual da psicanálise e sua influência naformação psicanalítica.

A seguir, temos os depoimentos pessoais de Maria Manhães , ClaraHelena Portella Nunes, Eutáchio Portela Nunes, dos componentes do Gru-po Memória, de Maria Aparecida Barbosa; Maria Eliana Helsinger e OndinaLúcia Ceppas Resende. Nestes relatos tão singulares encontramos um elocomum: a importância da SPRJ na trajetória profissional e na formaçãodestes analistas.

Seguimos com os relatórios apresentados no debate promovido peloIEP sobre o tema Avaliação. Neles são colocados em discussão pontosmuito importantes da formação psicanalítica. Edna Vilete, Clara HelenaPortela Nunes e Eliane Mac Cord escrevem sobre Supervisão. VictorManoel Andrade, Frida Hoirish e Elie Cheniaux, sobre Monografias;Miguel Chalub e Paulo César Hermida sobre Seminários. Frida Hoirishassina a apresentação destes relatórios.

Temos duas entrevistas: "Encontro com a Observação de Bebês e"Encontros com o DAP". Na primeira, entrevistamos Edna Vilete, queimplantou a observação de bebês na SPRJ, e também Rosa Lang, MárciaErlich e Maria Inês Mac Cullock, que deram continuidade a este trabalho.

No encontro com o DAP, entrevistamos Regina Lessa, coordena-dora da equipe no período 1996/1997. Regina fala da sua experiência, edas idéias criativas que tem sobre o funcionamento do DAP.

Republicamos o artigo: "A Psicanálise e seu Espaço", de JacquesEngel. O autor escreve sobre a importância deste espaço, e as dificuldadesna construção e na manutenção do mesmo, e do seu papel na formação daidentidade do analista

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"Arte e Psicanálise" também é uma republicação de um trabalhode Edna Vilete, onde a autora estuda o trabalho do analista no setting,,comparando-o ao processo de criação do artista.

No artigo "Regressão e Desenvolvimento”, Victor Manoel deAndrade apresenta suas idéias sobre regressão e sonho, dois conceitos fun-damentais em Freud. Por meio do estudo dos sonhos é possível ampliar avisão da psicanálise e estabelecer uma ponte entre esta, a neurociência e ateoria evolucionária.

Maria Cristina Barczinsk em seu artigo "Reações Psicológicas àPerda de Visão" faz um estudo das reações dos indivíduos frente aostranstornos oculares e a cegueira. Apresenta também suas idéias a respei-to do manejo do “setting” com pacientes que apresentam transtornosvisuais graves.

Seguimos com "As Relações da Psicanálise com a Universidade: ASPRJ e o IPUB. Neste trabalho, Sérgio Freitas e Elie Cheniaux fazem umarevisão histórica da presença da psicanálise nos meios acadêmicos desdeFreud até os dias de hoje, relatando alguns pontos importantes da rela-ção da SPRJ com o Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal doRio de Janeiro.

O artigo de Anna Hissa, “Supervisão com Bion em 1974”, mostranovas lembranças e reflexões da autora sobre sua experiência de supervi-são com Bion, e a influência da mesma em seu trabalho clínico".

Temos a resenha do livro "Pesquisando com o Método Psicanalíti-co" (autoria de Fabio Hermann,Theodor Lovenkron e outros), resenhadopor Simone C. Piragibe Magalhães e Terezinha Souza Agra Belmonte.

O conto "O Telefone" de autoria de Oswaldo Milward encerracom chave de ouro este número especial da revista Psicanalítica.

Dedicamos esta edição a todos aqueles que, por meio de seu exem-plo de fidelidade e trabalho tornaram possível a comemoração docinqüentenário da SPRJ.

Agradecemos a todos os colaboradores e em especial aos colegas:Paulo Rzezinski, Diretor médico da Editora Atheneu, e Jayme Salomão,Diretor da editora Imago, que viabilizaram este número da RevistaPsicanalítica.

Rio de Janeiro, 4 de setembro de 2005

Vera Lúcia de Faria BenchimolRejane Sabbath Armony

Rosana Igor Rehfeld

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S P R J O N T E M E H O J E

Vera Márcia Ramos*

Este ano, em setembro, a nossa sociedade comemora o seu jubileude ouro, 50 anos de sua fundação, tendo sido a primeira implantada noRio de Janeiro. Um grupo de membros desde a gestão anterior vem traba-lhando para conseguir transformar a SPRJ, em um Centro de Memórias eReferências da Psicanálise. O tema é descrever sobre a SPRJ Ontem e Hoje,situá-la no passado e no contexto atual do movimento psicanalítico, falardas relações entre os analistas, antes e hoje. Pensei também em citar asdiferenças entre a formação psicanalítica de ontem e de hoje.

Penso que a importância desse tema, no ano de seu aniversário, sedeve ao fato de a SPRJ ter tido um grande crescimento ao longo de suahistória, e ter passado por crises que a afetaram embora esteja aos poucosse recuperando.

Comecei a pesquisar a história da SPRJ. Em 1990, um grupo denossa sociedade, o Grupo Memória, começou a estudar e pensar na ques-tão e valorizá-la, fato importante, pois permite conhecer as nossas ori-gens. É nossa memória que contêm o passado e parte da nossa identida-de. Utilizando, como fontes, material escrito, como a revista dos 25 anosda SPRJ, e assistindo a vídeos do acervo da biblioteca da SPRJ, foi comsatisfação que ouvi os depoimentos de Inês Besouchet, Marafelli, MariaManhães, Dalheim, Antônio Dutra, e do filho do Kemper, Jochen Kemper,na maioria nossos fundadores, e ouvindo-os falar sobre as suas vidas e anossa sociedade.

À medida que fomos vendo e pensando, tivemos a curiosidade desaber como tudo começou, e porque surgiu a sociedade. Não tive preocupa-ção com os detalhes e as datas, mas o contexto geral. Rio de Janeiro, décadade 40. São Paulo já havia iniciado a formação psicanalítica, sendo esta aprimeira sociedade fundada no país. Cristiane Facchinnette, apresentandoa sua tese sobre a história do movimento psicanalítico, mostrou a introdu-ção da psicanálise em São Paulo, por meio do movimento modernista, pois

* Presidente atual da SPRJ; membro efetivo, didata.

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estes perceberam, nesta teoria, um aspecto libertador. Durval Marcondes,um psiquiatra, grande interessado na psicanálise, com a vinda de umapsicanalista alemã, Adelheid Koch, para São Paulo, conseguiu iniciar aformação dos psicanalistas em São Paulo.

No Rio de Janeiro, o interesse pela psicanálise surgiu da psiquia-tria, já que alguns psiquiatras tiveram conhecimento de Freud, e estuda-vam a teoria psicanalítica. Segundo Marafelli, alguns psiquiatras que tra-balhavam juntos no Departamento Nacional de Doenças Mentais, e emalguns hospitais psiquiátricos, queriam trazer um psicanalista europeupara o Rio de Janeiro. Contataram Ernest Jones que era o responsávelpela difusão da psicanálise na IPA. Imaginem como o Rio de Janeiro eravisto pelos europeus da época. Eles acreditavam que o Brasil era umaselva e nos viam com mentalidade colonizadora, e ninguém queria virpara cá. No início dos anos 40, a Europa estava em guerra e um grandenúmero de analistas havia imigrado para os Estados Unidos. Por insis-tência do grupo de interessados e a participação de Domício de ArrudaCâmara junto a Ernest Jones, o inglês Mark Burke aceitou vir ao Rio deJaneiro e um tempo depois veio Werner Kemper, de origem alemã, quefoi o nosso primeiro analista.

Kemper nasceu, estudou, morou e trabalhou na Alemanha até ofinal da guerra. Em 1945, a Alemanha atravessava uma grande crise eco-nômica. Havia dificuldades para conseguir alimentos, e carvão para aque-cimento. Além disso, havia uma ameaça de ocupação russa. Com essadifícil situação financeira, ele, que era casado e tinha três filhos, devido àinsegurança do pós-guerra e à ameaça de a Rússia invadir a Alemanha,aceitou vir para o Rio de Janeiro.

Burke já viera no ano anterior, em 1947, e um grupo foi fazeranálise com ele. Kemper veio um ano depois, em 1948. O primeiro, tinhauma forte influência kleiniana, o segundo, uma formação da escola clás-sica. Segundo a descrição do filho, Kemper conseguia reunir várias pes-soas a sua volta devido às suas qualidades pessoais.

Esses dois grupos logo se desentenderam, como será visto adiante. Masa conseqüência de tão limitado grupo precursor foi o fato de um mesmoanalista didata ser também docente e ainda supervisor. A mulher de Kemper,Katarina Kemper, era supervisora e analista de algumas pessoas, e adminis-tradora da Sociedade desde o início. De qualquer forma, 10 ou 12 candida-tos com dois analistas. Essas situações geravam uma grande contaminaçãonas análises didáticas iniciais. Pode-se imaginar, um só analista didata quesimultaneamente é docente e supervisor!

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Esse entendimento para mim foi muito interessante, porque parti-cipei da Comissão Coordenadora do Núcleo de Mato Grosso do Sul, e,à medida que ia me inteirando da história, lembrava-me do que ocorreulá. Em Campo Grande, os candidatos começaram a assumir funções, an-tes que estivessem preparados, pois vários deles ainda estavam em análi-se didática. Mas isso foi necessário, evitando maior contaminação epermitindo aos didatas certo afastamento. Atualmente, é um "StudyGroup" ligado a nossa sociedade, e se tornará sociedade definitiva nopróximo Congresso Internacional. Esse já é um dos efeitos da expansãoda SPRJ, ou seja, a criação de núcleos de psicanálise em lugares afasta-dos dos grandes centros, e o Núcleo de Mato Grosso do Sul, atualmenteGrupo de Estudos, um efeito de difusão da psicanálise no Brasil e daprópria SPRJ.

Um dos depoimentos foi uma entrevista de Antônio Dutra Júnior,um de nossos mais antigos membros. Ele era da 3a turma, Dutra comentavaque seu analista era o Fábio Leite Lobo, que era analista didata e supervisor.Percebam a possibilidade de contaminação da análise, e da supervisão, jáque um mesmo analista exercia as duas funções. A situação foi amenizadapor haver a presença de um outro supervisor, o Gerson Borsoi.

Estou tentando descrever na minha visão como foi essa situaçãoinicial. O contexto histórico, a contaminação das análises e muitas vezesdas supervisões. A própria situação do país que estava começando umciclo de crescimento, os psiquiatras que se interessaram por Freud e nogrupo de pioneiras mulheres que não eram médicas.

A 1a turma foi constituída por:Fábio Leite Lobo, Gerson Borsoi, Inês Besouchet, João Marafelli

Filho, Noemi Silveira Rudolfer, Inaura Carneiro Leão Vetter e ZenairaAranha, Luís Guimarães Dalheim, Celestino Prunes.

A data oficial da fundação da Sociedade é no dia vinte e nove denovembro de mil novecentos e cinqüenta e cinco, quando foi escrita a 1a

Ata, assinada por Gerson Borsoi.Dalheim foi uma figura importante em nossa origem, foi da primei-

ra turma, estudou medicina na Alemanha, depois retornou ao Brasil, emanteve um sotaque eterno, embora não fosse alemão. Ele era analisandoe tradutor do Kemper nos seminários. Participou da sociedade desde oinício, foi presidente por três mandatos, e foi o 1o brasileiro a ser Vice-Presidente da IPA.

A essa altura já havia ocorrido a divisão das sociedades, então Ins-tituto Brasileiro de Psicanálise, e Burke já havia voltado para a Inglaterra

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em 1953. Dos que se analisavam com ele, um grupo completou sua forma-ção em São Paulo. Outro grupo havia ido para a Argentina, Danilo Perestrello,Walderedo Ismael da Silveira, Marialzira Perestrello e Alcyon Bahia, e umoutro grupo havia ido para Inglaterra fazer a formação, depois retornando.Estes formaram a Sociedade Brasileira de Psicanálise fundada em 1959.

No depoimento de Marafelli foi perguntado a ele, "mas Marafellipor que teve essa confusão aí com o Burke", e Marafelli que era muitoespirituoso respondeu, "sabe o que é, a gente chegava no Kemper e falavamal do Burke. Eles falavam mal da gente e a gente falava mal deles, e emvez de ser trabalhado, o Kemper dizia agüenta mais um pouco". Mas oque Marafelli também demonstrou com esse depoimento é como nas situ-ações institucionais fica difícil o trabalho de análise e o trabalho da trans-ferência. A análise ficou contaminada com os aspectos institucionais, e,em vez de serem trabalhados em análise, os aspectos negativos da transfe-rência, ocorria um splitting, Burke era o mau e Kemper o bom. Evidente-mente, não era só isso, devia haver dados de realidade, mas mostrava asinterferências institucionais na análise didática especialmente nos funda-dores, o que gerou divisões já no início. Isso nos leva a pensar na impor-tância da reanálise. O próprio Marafelli foi para Londres posteriormentepara fazer sua reanálise o que lhe acrescentou certa influência kleiniana.

Não poderia deixar de mencionar como curiosidade as diferençasda cultura alemã e da cultura inglesa, a questão da Katarina Kemper, quenão pretendo abordar, e também o problema da prisão do Kemper e daMaria Manhães, porque ele não revalidou o diploma, relatado com hu-mor no artigo "Notas sobre a História do Movimento Psicanalítico noRio de Janeiro". A notícia publicada no jornal O Dia deve ter sido umescândalo na época, e fonte de preocupação com o destino da sociedade.

No entanto, era um grupo que acreditava na psicanálise, que luta-va e zelava pela mesma, quiseram levar a sociedade adiante, e desta formaseu crescimento caminhava junto com o próprio desenvolvimento da psi-canálise. Quando conhecemos a história, e olhamos o passado, podemosencontrar algumas falhas, mas com certeza muitas qualidades. Afinal so-mos todos humanos, e acho que nós devemos olhar dentro dessa condi-ção, e entender que os pioneiros lutaram pelo desenvolvimento da socie-dade, e assim obtiveram êxito.

Paralelamente, o Brasil também estava se desenvolvendo. Após aditadura de Vargas corresponde a um novo ciclo de desenvolvimento,que surgiu com o governo de Juscelino Kubitschek, e prosseguiu nosanos seguintes.

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Novas turmas estavam se formando, começando uma fortevinculação com a Universidade. O movimento da sociedade começou a seampliar, os membros participavam de congressos, organizados pelas Soci-edades, que geravam recursos, e novos participantes. Nessas oportunida-des eram apresentados trabalhos, fator importante para a divulgação daprodução científica. Como parte da expansão da SPRJ, foi criado um nú-cleo de psicanálise em Porto Alegre, liderado por Dalheim.

Foi interessante perceber, ao ler o Almanaque da SPRJ, escrito porRonaldo Victer, a quantidade de trabalhos sobre psicanálise de grupo,por volta da década de 60. Nesse período artigos eram publicados e apre-sentados em congressos, o que demonstrava um forte movimento de grupo.Kemper foi um incentivador dos grupos e nas Universidades, especialmen-te no Instituto de Psiquiatria bem como no Hospital Pinel, a psicanálise degrupo fervilhava. O grupo tinha um alcance social, pois se podia atenderuma quantidade maior de pacientes com escassos recursos financeiros.

Nos consultórios particulares dos analistas, havia uma grande procu-ra por psicanálise, e o grupo era uma forma de atender a um maior número depessoas. O tratamento individual era caro, e com isso o grupo atendia a de-manda. Dutra em seu depoimento contou que chegou a ter 10 grupos em seuconsultório, o que também tem a ver com o movimento econômico financeiroda época.

A nossa sociedade se caracterizava por ser cientificamente eclética.Essa abertura se manifestava nos vários autores estudados em seminários,éramos abertos a novas teorias, permitindo aos nossos membros pensamentosteóricos vários. Como exemplo, no final da década de 70, houve um Congres-so latino-americano no qual foi apresentado um trabalho clínico, do qualparticipei, sob forma de texto teatral. Nesse mesmo congresso uma colegatrouxe material em que ela fazia análise andando com o seu paciente na praia.

Além da influência de Freud, Melanie Klein e Winnicott, havia umgrupo de analistas que tinham vinculação com a teoria de relações de objetode Fairbairn, como Fábio Leite Lobo e Galina Schneider, além daqueles quepensavam suas próprias idéias.

Vale citar como a Sociedade formou vários analistas que saíram daqui,por motivos vários, como Moises Grossman cujo trabalho (texto teatral) mereferi acima, indo trabalhar com terapia de família. Essa é uma vertente queacho interessante, que são os frutos que o Rio de Janeiro gerou, vários analis-tas que se formaram e criaram novas instituições, como exemplo, CarlosCastellar, Joel Birman, Zuzman, Carlos Nicéias, Nazar e inúmeros outros.

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Por outro lado havia um fechamento. O poder se restringia namão de um grupo pequeno de didatas e efetivos, os membros associadosque em 1980 já eram em grande número não podiam votar. Isso ocor-rendo num momento em que a psicanálise estava crescendo. Foi quandohouve a denúncia na imprensa dos "Barões da Psicanálise" feita porHélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, trazendo à tona a existênciade Amilcar Lobo que havia sido candidato de nosso Instituto, surgindoaí a primeira crise.

Além disso, a meu ver, houve um outro problema, os três primeirospresidentes ficaram no cargo por dois anos. Dalheim foi o primeiro queassumiu três mandatos seguidos, da mesma forma que Maria Manhães.Ambos foram presidentes durante seis anos. Posteriormente, em 1972,Leão Cabernite assumiu a presidência durante oito anos, ou seja, quatromandatos. Trabalhou muito pela sociedade, fazendo reformas, congressosimportantes além de contatos com as sociedades latino-americanas e coma internacional, auxiliado por Dalheim

Porém esse tempo todo na presidência demonstrava uma concentra-ção de poder que se expressava nas relações em geral, um espírito da época.Havia um pequeno número de docentes e didatas, os membros associadosnão podiam votar em assembléias, e participar das decisões, num momentoem que o Brasil reiniciava o seu processo de redemocratização, sendo res-ponsável pela crise de 1980. Eram anos de crescimento, e o Congresso Inter-nacional de Psicanálise que estava previsto para se realizar no Rio de Janei-ro em 1982 foi cancelado, e já são quase vinte anos de atraso, pois devido àcrise, esse congresso só irá se realizar este ano.

A origem da segunda crise, ressurgindo no meio da década de 90,teve a ver com a interferência da IPA, ao questionar a presença de LeãoCabernite na SPRJ. Na verdade estava relacionada à situação antiga, e aodesdobramento da questão Amilcar Lobo, que não ficara resolvida e supe-rada pela sociedade. Houve a instalação de uma Comissão de Ética, queestudou o assunto e deu um parecer, recusado pela Assembléia Geral.

Devo ressaltar que nossa Sociedade em várias oportunidades reali-zou estudos e atividades científicas sobre Ética, assunto que foi muito dis-cutido e debatido. Em 1982 os estatutos foram modificados e democrati-zados, e vigoram até hoje com algumas modificações.

Como já disse anteriormente, a sociedade teve um grande cresci-mento que coincidiu com o desenvolvimento da psicanálise. Era grande aquantidade de pacientes procurando análise, bem como havia muita pro-cura para formação. Havia muitos candidatos e durante bastante tempo

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era um pequeno número de didatas. No livro de comemoração dos 25anos pode se ver a seguinte estatística: a sociedade conta com 24 membrostitulares, sendo 21 analistas didatas, 58 membros associados e 74 candi-datos em seu IEP.

A crise da sociedade juntou com a crise da psicanálise. Estava vendoque escrevi um trabalho em 91 sobre o "Contexto Econômico e FormaçãoPsicanalítica", e me lembrei que naquela época já havia a crise econômica quecomeçava a atingir-nos, iniciando a diminuição do número de candidatos, ede pacientes. Então coincidiram crises que foram se ampliando.

Em 1999, havia uma ameaça de desfiliação pela IPA na qual todos sesentiram inseguros, pois não se sabia se a sociedade continuaria a existir. Ten-do vindo uma comissão liderada pela Carmen Médici de Steiner, na gestão deMaria Eliana Helsinger, a SPRJ conseguiu demonstrar que somos uma socie-dade ética. Foram fornecidas todas as informações que possuíamos, e nãotivemos medo de mostrar o que tínhamos de negativo, e quais eram nossosproblemas. Como resultado final desse processo foi afastado a ameaça, e foiconfigurada a necessidade de uma divisão, tendo sido criada a Rio 4.

Desde então, o que fizemos foi abrir ao máximo a nossa sociedade.Essa abertura significa trazer para dentro de nossa casa, profissionais interes-sados na psicanálise, além de desenvolver atividades científicas cada vez maisvoltadas para a interface com outras ciências. Realizar cursos sobre temas deinteresse, jornadas que atraíam estudantes e profissionais, e retomar a nossaimportância no cenário mundial, que ficou tão de lado, e questionado. Entãoretomamos, estamos tentando crescer apesar das dificuldades hoje existentespara a prática da psicanálise.

As relações hoje dentro da sociedade também mudaram. Há mais trans-parência, as informações são repassadas, o que torna os contatos bem maispróximos, e menos desiguais. Anteriormente o candidato não escolhia seuanalista, o analista didata opinava se o candidato podia iniciar o curso teóri-co, e se podia entrar em supervisão. O candidato entrava ameaçado paraformação, com temor de que iriam descobrir tudo que ele pensava ter de ruim,que o impediria de ser analista. Isso dava um cunho persecutório à análise deformação, dificultando a comunicação levando muitas vezes o candidato aatuar e não falar.

Isso mudou totalmente, em 1983, com a mudança estatutária, o ana-lista didata já não opinava na formação do candidato. Com o aumento donúmero de didatas, o candidato já podia escolher o seu analista. Embora a

* Presidente atual da SPRJ, membro efetivo, didata.

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análise didática ainda tenha uma carga institucional, a tentativa foi de evitarao máximo essa influência. Com isso a figura do analista foi se tornando maisreal. O analista é menos idealizado e isso permite relações menos desiguais.Nos últimos anos, com essa abertura da sociedade, o que observamos nasdiretorias é uma relação bem mais próxima entre os membros e nas rela-ções com os candidatos.

Hoje, em nossos 50 anos, a sociedade conta com 106 membros.

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Comemorando o cinqüentenário

Maria Manhães*

A finalidade deste texto é, sobretudo aplaudir a atual direção daSPRJ por estar promovendo a comemoração dos 50 anos da instituição.

Enfatizar e divulgar os fatos que aqui serão mencionados não temapenas o valor de apresentar dados computadorizados. Eles irão se referirno evento atual a coisas acontecidas no decorrer da existência da Socieda-de durante 50 anos. São referências transferenciais, históricas apresenta-das com um misto de verdade e amor. Histórias afetivas.

Como já ocorreu com as comemorações dos 25 anos, infelizmenteem um clima muito conturbado, sinto o atual diferente e pacifico e queassim continue, daqui por diante no relato de fatos remotos.

Desenhar o perfil dos colegas integrantes, a instituição, atividadesrealizadas em determinadas épocas, sem manipulações, mas para seremaplaudidas e avaliadas.

Haverá pontos de referência e material para comprovação!...É aparte objetiva. Importante, discutível, mas não a de maior valor.

Estamos também ligados à situação geral do país. Ela, em conso-nância com o que está ocorrendo no mundo, envolve conhecimento demanobras táticas desastrosas, desumanas!

E a psicanálise em si, desde seu início com Freud?....Ela desencadeoua até hoje desperta nos intelectuais cisões invejosas, esquecendo a serenida-de de Freud que modestamente revelou: "Eu descobri o óbvio!"

São tantos os reformadores profissionais quanto o interesse, para modi-ficar, dos movimentos da cultura em geral, filósofos, literatos e religiosos...

Nesse clima fica compreensível a alegria que sinto pelo interesse, avalorização que está sendo voltada para a neurociência, repetindo as in-vestigações iniciais de Freud que foram expostas no Projeto!...

* Membro efetivo didata da SPRJ. Foi presidente da SPRJ no período de 1969 e 70/71.

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Apesar das divergências que ocorrem no Rio, com problemas in-ternos e divisões societárias penso, pelo que disse acima, que a situaçãose tornará viável de maneira a poder conceber mais unidade sob o pontode vista científico.

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Minhas memórias da SPRJ

Clara Helena Portela Nunes*

Nossa Sociedade comemora seu Jubileu de Ouro, tão justamenteorgulhosa, sob a batuta de nossa presidente, Vera Márcia Ramos, e suaorquestra que se estão esmerando nos festejos! Desde as obras na sede, atéa programação de várias reuniões científicas e de um jantar festivo!

Afinal, somos a sociedade psicanalítica mais antiga do Rio de Janeiro!Como homenagem a este aniversário, trago uma enorme braçada

de lembranças que são pessoais e, portanto, diferentes da história da SPRJque podemos ler no Roster da ABP.

Quando iniciei os seminários no Instituto, em 1971, eu já tinha,além de um ano de análise de formação, outros cinco anos de análise como Doutor Gerson Borsoi. Durante essa primeira análise, eu me casei, tivefilhos e iniciei meu curso de medicina. Dr. Borsoi acompanhou grandeparte da minha vida. Quando me casei, já era formada em psicologia, davaaulas na PUC e trabalhava em escolas. Foi, portanto, durante minha lon-ga análise de formação com o Doutor João Marafelli Jr, que eu comecei aatender pacientes psicanalíticos. Durante o curso de medicina, na UFRJ,fui colega de turma de muitas ex-alunas na PUC; éramos as psicomédicas,como nos chamavam os professores.

Parece que foi, ontem, nosso Jubileu de Prata de que a então Dire-tora da comissão científica, Maria da Paz Manhães, deixou um textoinesquecível como lembrança do evento. Minha atenta supervisora,Manhães, ainda nos legou uma medalha de bronze com o ex-líbris deFreud, baseado na belíssima gravura de Gustave Moreau, feita pela Casada Moeda.

Eu costumava brincar com nosso saudoso Carlos Edson Duarte queele e eu éramos os dois únicos reincidentes na presidência da SPRJ, nos últi-mos anos, sendo que as minhas duas gestões tinham intervalo maior que as

* Membro efetivo, didata. Foi presidente da SPRJ 1984-1985 / 2002-2003.

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dele; me cabendo a desculpa de não me lembrar direito da trabalheira que ocargo dá, apesar dos ótimos auxiliares que ambos tivemos, nas duas vezes.Muitas coisas nos uniam, além dessa recaída: ambos gostávamos de músi-ca, de cinema e de teatro.

Minha primeira gestão foi no biênio 85/86, quando contei com aajuda do conselho diretor seguinte:

Dirceu Santa Rosa – Vogal EfetivoJacques Vieira Engel – Vogal AssociadoJacob David Azulay – Diretor do IEPOrlando Vaz Galvão – TesoureiroEdna Pereira Vilete – Diretora da Comissão CientíficaJosé de Matos – Secretário

Éramos todos jovens e eu não sei o que seria de mim se não tivesseessa equipe para me assessorar. A Sociedade era imensa, naquele tempo eas Assembléias eram tumultuadas, com muitas divisões. E ainda tínhamosum Site Visiting Committee, que atuava na Sociedade na gestão da GalinaSchneider e na minha, também, pois a ela sucedi.

Só não sofri mais, naquelas infindáveis Assembléias Gerais Perma-nentes, porque tive a sorte de ter como Secretário José de Matos, que co-nhecia o estatuto da SPRJ muito melhor do que eu. Por essas e outrascompetências, veio a ser presidente da Sociedade. Nossa crise durou bas-tante, pois vinha de longe, e nos parecia muito grave. Contudo, pode-sedizer que o trabalho conjunto frutificou:

Nos primeiros seis meses da minha presidência, no Congresso deHamburgo, em julho de 1985, a IPA, retirou sua intervenção, retirandotodas as limitações que pairavam sobre nós. Galina, Portela e eu estivemosjuntos neste congresso e vibramos! No fim deste ano, pudemos então, co-memorar os trinta anos da SPRJ, em grande estilo, com um jantar dançan-te no Clube Paissandu, em que eu tive a oportunidade rara de valsar commeu ex-analista, Doutor Marafelli. Houve um sorteio de livros, em quevários analistas foram contemplados.

A Sociedade era tão grande, que o Paulo Quinet, que me sucedeuteve mais de setenta votos, numa Assembléia Geral Eleitoral!

Minha segunda gestão foi no biênio 2002/ 2003. Aqui, eu já bemmais experiente, para não dizer mais velha. Mas a equipe era de gentejovem, representando a renovação de que a SPRJ precisava naquele mo-mento. Porque a Sociedade, pacificada, livre das injunções da IPA, erainfelizmente, bem menor! Muitos queridos colegas se retiraram e foram

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compor a Rio Quatro, nos primeiros três meses de 2002, logo no início daminha gestão.

Meu novo Conselho Diretor foi de moços e moças, assim:Marco Antônio Saldanha – Vogal EfetivoSérgio de Freitas Cunha – Vogal AssociadoRosa Sender Lang – Diretora do IEPRéjane Sabbagh Armony – TesoureiraMaria Aparecida D. Barbosa – Diretora da CientíficaMariângela Relvas Pinto – SecretáriaMárcia Luna Azulay – Diretora do DAP

Nesta gestão, o acontecimento mais importante foi, sem dúvida, apassagem do imóvel da Rua Fernandes Guimarães, 92 para o nome daSPRJ. Isto só foi possível graças à persistência da tesoureira RéjaneS. Armony, ao excelente advogado que ela nos arranjou, à generosidadedo Doutor Antônio Dutra, que foi conosco ao cartório e ao auxílio daSecretária Executiva, Senhora Jurema Pio Converso. Esta última, diga-se, de passagem, já encontrei, nos idos de 1971. É a memória viva daSPRJ!

Os demais membros deste Conselho Diretor continuam a ocuparoutros postos em nossa Sociedade. Como jovens que são, todos têm muitochão pela frente.

Minhas memórias da SPRJ me conduzem, como é normal, à Psicanálise.A Psicanálise, ciência do fim do século XIX e início deste, tem mais

do dobro de nossa idade. Lembremo-nos, simplesmente, do que ocorriacom a psicanálise, há cem anos. 1905 foi um ano especial, desde “A Inter-pretação dos Sonhos”. Nesse ano, Freud publica “Os Três Ensaios”, o “CasoDora”, e seu livro sobre “O Chiste e sua Relação com o Inconsciente”.Depois desses, todos os anos são profícuos, inclusive os anos da doençae, sobretudo, os da I Guerra Mundial.

Freud assinalava que as três profissões impossíveis são analisar,educar e governar. Sem dúvida, ler psicanálise é, no mínimo, muito difícil!Cada leitura é sempre uma re-leitura, não importando se as marcaçõessão, aparentemente, com a nossa letra!

Nos primórdios, o ensino da psicanálise era apenas teórico. O gru-po que se reunia na casa de Freud, nas quartas-feiras, a partir de 1902,incluía musicistas (Hans Graf), editores (Hugo Heller), médicos clínicos,psiquiatras e até pintores.

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Muito cedo, ele começa a recomendar psicanálise para o futuroanalista, a fim de livrá-lo dos pontos cegos. Freud ainda cita este conceitode Stekel, para justificar sua recomendação purificação psicanalítica, mes-mo para pessoas aproximadamente normais.

Mas é só em 1926 que Freud descreve o tripé da formação, e osdois primeiros institutos a utilizá-lo foram: o de Berlim, fundado por MaxEitingon, o primeiríssimo e o de Viena. Freud ainda se refere a um terceiroa ser fundado, em Londres, por Ernest Jones.Todos os institutos de ensino,espalhados pelo mundo e vinculados à IPA, têm este tripé em comum quepossibilita o diálogo entre eles. As sociedades vivem por meio da formaçãoque oferecem, além de suas Assembléias Gerais e de suas reuniões científicas.

Que diferença entre 1926 e 1955, ano em que a SPRJ foi reconhe-cida internacionalmente como sociedade filiada à IPA! Hoje, há inumerá-veis Sociedades Psicanalíticas com essa mesma vinculação internacional.Só no Rio de Janeiro são quatro, mais uma em São Paulo (a mais antiga doBrasil) e duas em Porto Alegre.

Unitermos: SPRJ, memórias pessoais, psicanálise.

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Meio século da SociedadePsicanalítica do Rio de Janeiro

Eustáchio Portella Nunes*

Em 1955 foi fundada a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.Freud morrera em 1939 e o início da II grande guerra impediu uma avalia-ção adequada de sua influência em todo o mundo. Tangidos pelos horro-res do nazismo e do pós-guerra alguns psicanalistas vindos da Europafixaram-se na América do Sul e fundaram núcleos de estudos de psicaná-lise que foram se desenvolvendo em sociedades psicanalíticas nos moldesque haviam sido instituídos em sociedades européias nos anos vinte.

Depois do vigoroso início na Argentina, apareceu em São Paulo,inicialmente, a Sociedade Brasileira de Psicanálise e, depois no Rio deJaneiro fundou-se a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.

A melhor psiquiatria vigente no Rio de Janeiro, no início da décadade 50, era de influência fenomenológica que se baseava na Psicopatologiade Karl Jaspers com sua variante analítico-existencial, inspirada na filoso-fia de Heidegger. Embora sendo de grande valor para a compreensão dosenfermos faltava-lhe uma teoria e uma prática que pudesse orientar apsicoterapia de que precisavam todos os pacientes. A psicanálise surgiucomo o grande movimento que trazia exatamente uma teoria e uma técni-ca descoberta por Freud e que se mostrava ideal para cobrir as necessida-des que estavam vivendo os psiquiatras.

A psicanálise era mais do que isso. Incluía em seu bojo uma com-preensão global do homem e suas circunstâncias que passou a influenciartoda a visão de mundo dos intelectuais sobre a literatura, as artes, o teatro,o cinema, a vida familiar e o modo de encarar os relacionamentos sexuaise familiares trazendo mudanças consideráveis na compreensão e no modode atuar do homem em todos os seus aspectos.

* Membro efetivo didata da SPRJ.

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Toda a visão do homem ficou influenciada por essa nova compreen-são de seu mundo. Como assinala o grande crítico literário Richard Elmann,a linguagem a partir da metade do século 20 ficou impregnada do pensa-mento psicanalítico. Hoje, de modo muito natural, falamos sobre a sexuali-dade infantil e não nos estranha a rivalidade entre irmãos, assim como adependência da mãe, ou os impulsos sadomasoquistas. Com a descobertado inconsciente perdemos a inocência e desconfiamos ao perder as coisasque, provavelmente, quisemos esquecê-las. Há uma invasão de termos comoid, ego e superego, fases oral, anal e genital. Palavras que já existiam antesde Freud como agressão, ansiedade, compulsão, mecanismos de defesa,narcisismo, pulsão de morte, zonas erógenas, fixação, sentimento de cul-pa, sublimação, projeção, sonhos como gratificação de desejos, atos fa-lhos e numerosas outras, que, mesmo já existindo antes de Freud, assumi-ram conotações específicas derivadas da compreensão psicanalítica. Nin-guém duvida de que há, em cada um de nós uma parte secreta, que escapaao controle consciente A hipótese do inconsciente tornou-se necessária umavez que os dados da consciência são extremamente lacunares. Antes deFreud, os grandes escritores de todos os tempos como Dostoievski e onosso Machado de Assis já faziam alusão a uma vida secreta que nos che-gava, por vezes, através de sonhos ou atos falhos.

Forçados a um trabalho em que precisamos exercer controle sobrenossas emoções, exatamente para propiciar uma melhor visão dos proble-mas dos pacientes, os analistas, com freqüência, têm problemas no conví-vio societário. Já no início da psicanálise houve o desentendimento entreFreud e Jung. Algumas peculiaridades na maneira de formação provocamessas dificuldades que, de uma ou outra maneira, ocorrem em todas associedades quando atingem um certo desenvolvimento numérico.

Em nossa Sociedade também houve dificuldades entre grupos queacabaram com desligamentos e constituição de outra Sociedade. São cole-gas respeitados que optaram por viver em outro espaço.

Nos últimos anos a psicanálise aparentemente perdeu importânciaexatamente porque foi inteiramente absorvida pela sociedade. Toda a vidacultural está impregnada de conhecimento psicanalítico A linguagem psi-canalítica deixou de ser especializada porque faz parte da fala cotidianadas pessoas. A sociedade ocidental já se desenvolve dentro da compreen-são psicanalítica. O teatro , o cinema , a literatura, as artes em geral, a vidafamiliar, tudo "Freud explica" como popularmente se costuma dizer.

Esse exagero leva a uma simplificação que, obviamente, não fazbem à psicanálise. Outros problemas surgem com o notável desenvolvi-

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mento das neurociências que todos admiramos. Continua a existir , entre-tanto, a mesma distância que levou Freud a abandonar a neurociência desua época para criar a psicanálise. Os leitores de Dilthey sabem que aneurociência é e será sempre uma ciência natural e a psicanálise uma ciên-cia do espírito. Têm as relações que existem entre todas as ciências. Nãose pode pretender que a psicanálise seja uma neurociência. Precisamos sem-pre rever os fundamentos de nossa ciência para fazê-la recobrar a forçaque já teve em seus primórdios. Essa é a tarefa inadiável se desejamosrecobrar o vigor primitivo da psicanálise nos próximos 50 anos.

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Sociedade Psicanalítica doRio de Janeiro e a IPA

Maria Eliana B. M. Helsinger*

Quando convidada pela Dra. Vera Márcia Ramos, atual presidenteda SPRJ, para falar da relação da SPRJ com a IPA pensei: Qual das vertentesvou privilegiar? Sabemos que podemos falar de várias maneira: histórica,política etc. Decidir por escrever sobre a minha experiência como membro,presidente da SPRJ(2000-2002), membro da “Casa dos Delegados” (2001-2004) e atual Diretora de Relações Exteriores da ABP.

Nesta data comemorativa dos 50 anos da SPRJ penso em primeirolugar como ela entrou na minha vida. Psicóloga formada em meados dosanos 70 não podia fazer a minha formação lá porque essa escolha erarestrita aos médicos. Participei então junto com outros Pscicólogos da Fun-dação de uma Sociedade chamada Instituto Freudiano de Psicanálise. Maso meu desejo era pertencer à IPA. Afinal de contas essa tinha sido fundadapor Freud. A IPA representava ser reconhecida como psicanalista. Por isso,quando a SPRJ abriu para os psicólogos abriu também dentro de mim anecessidade de ir em busca do meu desejo: Pertencer à IPA que era acimade tudo um símbolo, um emblema fálico do que era ser um psicanalista.A IPA surge antes da SPRJ. A minha transferência psicanalítica era com osmeus analistas, todos membros da SPRJ. A escolha então estava feita:SPRJ.Começo a minha formação em 1987 e termino em 1992.

Nas vésperas do aniversário dos 40 anos surge a crise com o grupoque posteriormente se denominou Pró-Ética. Foi quando tive pela primei-ra vez em contato mais direto com a IPA. Diga-se de passagem que não foium bom encontro. Estávamos em um momento delicado com vários mem-bros não indo à Sociedade e uma Comissão da IPA é enviada paraintermediar o conflito: Surge o “Pacto-Contrato” entre as partes (confesso

* Membro efetivo, didata. Foi presidente da SPRJ em 2000-2001.

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que esse nome nunca me agradou). A IPA romântica dos meus sonhostornou-se um pesadelo com encontros intermináveis até que finalmenteveio o veredicto: a SPRJ e o Grupo Pró-Ética se entendam no prazo de 1ano (final de 1999 veio o veredicto) ou a SPRJ será desfiliada. E foi nomeio desse turbilhão que sou eleita Presidente. Meus amigos acharam queera um ato de loucura assumir tal posto nessa situação. Mas como psica-nalista pensava: Não devemos recuar, mesmo quando ameaçados. Ao con-trário, temos que encarar o Outro, independente de seu tamanho, força eprincipalmente: PODER. E foi com esse espírito que me encontrei a pri-meira vez em uma Reunião de Presidentes da Fepal (Federação das Socie-dades Psicanalíticas da América Latina) com o Presidente da IPA daqueleperíodo: Dr. Otto Kernberg. Um dos assuntos da pauta era sobre a possí-vel desfiliação da SPRJ. Peço então a palavra e questiono tal posição daIPA. Falo do trabalho que vem sendo realizado dentro da SPRJ, que nãodeixa nada a dever em relação às outras sociedades e que, acima de tudo,não aceitava como psicanalista sofrer tal ameaça. Dr. Otto me ouve comrespeito e a partir daí mudou o tom da reunião. Éramos ali todos psicana-listas, antes de qualquer outros emblemas. Passamos a receber a ComissãoAd Hoc (Comissão eleita pela IPA) a cada três meses. Nesses encontros afrase mais repetida era: a IPA são os membros. Sim, a IPA somos nós,membros, e temos portanto que fazê-la existir conforme aquilo que acredi-tamos ser uma Organização de Psicanalistas. Os encontros foram se tor-nando cada vez mais amistosos, principalmente no momento em que mos-trei que a premissa SPRJ e o grupo Pró-Ética se unissem outra vez eraincompatível com as premissas básicas da Psicanálise. As pessoas se junta-vam umas às outras por identificação, desejos etc. O Grupo Pró-Ética jáera de fato uma Instituição, só precisava ser de direito. E foi essa a minhaconversa com o Dr. Otto no Congresso da Fepal em Gramado. E tambémcom o Dr. Daniel Widlochett que seria o próximo presidente da IPA. Efinalmente, no Congresso Internacional realizado em Nice(julho/01) issofoi ferendado. Durante este Congresso fui eleita pelos presidentes das soci-edades da Fepal para ser representante na Casa.

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Presença do Grupo Memória

A inserção da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro no cenáriopsicanalítico nacional e regional é profunda desde os primórdios. Foi a se-gunda Sociedade componente reconhecida pela International PsychoanalyticAssociation no Brasil, gestora de núcleos psicanalíticos que depois se torna-ram sociedades componentes, tais como a de Porto Alegre, Campo Grandee a co-gestora de Recife, e ainda patrocinadora do núcleo de Belo Horizonte.Portanto, a SPRJ tem um patrimônio histórico que precisa ser conservado econstantemente evocado.

O primeiro membro a se ocupar dessa tarefa foi a Dra. Maria da PazManhães, cujo trabalho culminou com as notas comemorativas dos 25 anosde fundação da SPRJ. Dando prosseguimento a esta missão, inicialmente,alguns colegas; Virgílio Almansur de Lemos, Ronaldo Victer, AlexandreKahtalian, Márcia Câmara, Nilo Ramos, Nádia Sério, José Henrique daCunha Figueiredo, José Osvaldo Moraes e Idésio Milani, reuniram-se paraformar um grupo de pesquisas sobre as questões institucionais da SPRJ,sendo que posteriormente, outros membros se juntaram.

A partir de uma necessidade espontânea foi formado o Grupo deEstudos para o Estudo da História do Movimento Psicanalítico e da Psica-nálise – Grupo Memória –, oficialmente reconhecido pela Comissão Cientí-fica da SPRJ no ano de 1991.

Entre as atividades do Grupo Memória foram feitas entrevistas filma-das e gravadas em vídeo, com as figuras vivas que participaram ou testemu-nharam o movimento de criação da SPRJ e a implantação da Psicanálise noRio de Janeiro. Como a entrevista com Domício Arruda Câmara, JocheenKemper, Jean Laplanche e o Debate Eleitoral entre as Chapas Integração eÉtica na Psicanálise, representadas por Carlos Edson e Jeremias Ferraz, res-pectivamente. Também se somaram aos Arquivos da Memória da SPRJ asaquisições das entrevistas de Luiz Dahlheim, João Marafelli e Inês Besouchet,Evelyne Schweber, Joyce Macdougall, Antônio Dutra Júnior, Anna Guelerman.

Além de organizar o debate eleitoral ocorrido em 1994 entre as cha-pas de Carlos Esdson e Jeremias Ferraz, registrado em vídeo, o Grupo Me-mória promoveu, em 27 de outubro de 1992, um evento que se intitulou“Questão de Ordem: o processo eleitoral”, onde se discutiu o processo elei-

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toral e suas repercussões na organização societária. Também organizouem 2 de outubro de 1993 A Jornada sobre a História da SPRJ com as pre-senças de Inaura Carneiro Leão, Leão Cabernite, Maria Manhães, WilsonChebabi, Ronaldo Victer, José Oswaldo de Moraes, Nádia Sério, HélcioMattos, Jochen Kemper, Fábio Lacombe Alexandre Kahtalian, VirgílioAlmansur, Jacques Engel, José Henrique Cunha Figueiredo, Telles deMiranda entre outros.

Durante o desenrolar doloroso da crise institucional da SPRJ oGrupo Memória publicou diversos documentos para reflexão dos mem-bros da SPRJ, bem como participou ativamente dos encontros com os di-versos Site Visit Comittees que aqui estiveram.

Atualmente, Ronaldo Victer está empenhado na elaboração de umAlmanaque com notícias e fotografias relevantes de cada momento vivido

Alexandre Kathalin – Membro efetivo, didataJosé Oswaldo Moraes – Membro efetivo e docenteIdésio Milani – Membro efetivo, didataRonaldo Victer – Membro efetivo, didata

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pelos membros da SPRJ.

Meio século de existênciaDezesseis anos de convivência

Um relato

Maria Aparecida Duarte Barbosa*

Foi a psicanálise, através da leitura de " Psicopatologia da VidaCotidiana" que li na adolescência, que me motivou a buscar a área dasaúde mental. Assim escolhi a Psicologia como profissão já pensando numaespecialização na psicologia clínica. Quanto mais fazia avanço nos estu-dos da obra de Freud mais caminhava na direção da "formação" em umainstituição especializada. Mas qual? O Rio de Janeiro possui inúmeras.Algumas sérias, mas havia que ter história, consistência. Queria uma insti-tuição com um currículo estruturado onde através de um estudo teóricosistematizado ancorado na prática clínica supervisionada e na exigênciade análise intensa poderia me sentir no processo de tornar-me analista.Entendia que o famoso tripé é que efetivaria o aprendizado favorecendo osurgimento da identidade de analista. Essas são as exigencias da Ipa. Sur-gia a primeira definição; uma sociedade filiada à IPA. Deveria ser umlugar onde a troca científica permitisse o exercício de teorizar articuladocom a singularidade de cada analista com a diversidade de modelos ecorrentes de pensamento. Um lugar onde o incentivo ao desenvolvimentodo pensar ampliasse a capacidade criativa, através de currículo abrangentee diversificado dando ao candidato autonomia de escolha.

Encontrei esse compromisso de maneira mais clara na SPRJ. Nofinal da década de 80, nela iniciei minha formação. Indiretamente já mebeneficiava dela pela análise que fazia com um de seus membros ondesurgiu a idéia de me candidatar à formação. Não houve namoro e noiva-do, nos unimos num matrimônio imediato que apesar de todas as crises

* Membro associado da SPRJ.

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dura até hoje. Mas, veio a dúvida, essa não é "aquela" que os jornais...Sim Era! Porém logo me certifiquei de que o verbo ser deveria permane-cer no passado. Mesmo porque o período do meu ingresso foi também dereingresso de membros que haviam estado descontentes. Aos poucos fuibuscando entender a instituição. Os cinco anos da minha formação foram depujança, de intensa produção científica. Fomos por várias vezes organizadoresde congressos tanto brasileiro quanto latino-americano. Havia um climabastante dinâmico e estimulante. Nossas reuniões científicas eram muitoconcorridas devido a temas e expositores instigantes dos mais diversos seg-mentos do pensamento científico.

O Instituto de Ensino havia recém-modificado o currículo enrique-cido com autores de inúmeras correntes de pensamento num reconheci-mento que não há um pensar psicanalítico hegemônico.

A infantilização inerente à condição de candidato era minimizadacom o incentivo a participar das reuniões da comissão de ensino. Foi dadotodo apoio à criação da "Associação de Candidatos" que enviava seu re-presentante para a Associação Internacional.

Assim, transcorreram-se vários anos: efervescência intelectual ecalmaria institucional. Até que... Crise! Nova crise! Nova ou a mesma malresolvida, com pendências? Vieram as desavenças, desestruturação. Per-plexidade! Para onde foi aquela instituição produtiva, dinâmica?

Precisava entender o que estava acontecendo. Aproximei-me, par-ticipei do "grupo de reflexão" formado por membros que queriam tor-nar possível o debate, a conciliação, a convivência, a aceitação das dife-renças, uma reedição do Midle Group. Formamos o "pacto contrato "eas comissões que iriam trabalhar a reestruturação da SPRJ. A palavra deordem era" Esclarecer". Período árduo, sofrido, estressante, mas, im-possível conciliar divergências tão intensas. Decepção! Conseqüentementeveio a separação.

Senti necessidade de um afastamento para me reorganizar. O queeu faço agora? Puxam-me para um lado, puxam-me para o outro. Penso,reflito. Mergulho no estudo de outras instituições da IPA e de fora daIPA. São sempre as mesmas questões. Várias crises iniciadas desde a fun-dação da IPA. Se nem mesmo nosso mestre fundador foi capaz de aceitaras diferenças...!

Decisão: “Diga ao povo que fico na SPRJ.” A vontade de contri-buir foi crescendo. Fui aceitando os convites e por meio das atividadesque exerci posso dizer que tenho profundo conhecimento do funciona-mento ético, dinâmico, incentivador e produtivo da nossa sociedade.

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A mesma pujança que senti ao nela entrar senti nos membros que aquificaram. Apesar de muito esfolados, conseguiram reerguê-la, reestruturá-la. A SPRJ abriu suas portas. Agora é possível flertar com ela, namorá-lapor meio de tantos cursos e jornadas, e, aí sim, solicitar sua inclusão.Recupero o sentimento de confiança para compartilhar, agora lado alado, com os membros que participaram da história dessa instituiçãodesde sua fundação, que foram modelos identificatórios mas que com asabedoria dos " mestres" podem ocupar também o lugar da desidentificação.Foram eles que mantiveram a chama da SPRJ fazendo-nos crer que "quan-do a alma não é pequena..."

Aos 50 anos, voltando das cinzas, conseguimos recuperar a credibilidadeinternacional. Há respeito, há dignidade, há transparência. Há motivos parafestejarmos. Abramos o champanhe!

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Depoimento sobre a importânciada formação na minha vida

Ondina Lúcia Ceppas Resende*

Dra. Vera Lúcia Benchimol me fez um convite para fazer um “de-poimento” sobre “A importância da Formação Psicanalítica na minha vidaprofissional”. Pensei muito sobre o que eu poderia dizer em poucas pala-vras sobre algo que foi importante de tantas e diversas maneiras... “Comoeu poderia começar?”...

Resolvi “começar do começo”, ou seja, falar sobre o inicio da minhavida profissional, da influência de algumas pessoas que fizeram parte daminha trajetória e que muito contribuíram para “fazer brotar” em mim odesejo de estudar com mais profundidade a Psicanálise, buscando a Forma-ção Psicanalítica. Falo “brotar”, pois sinto que o desejo de aprofundarmosnossos estudos vem em um determinado momento da nossa prática em quenos deparamos com nossa limitação de um saber que não nos dá sustenta-ção teórica e técnica e, então, sentimos uma necessidade de “irmos maisalém”, de podermos compreender melhor os mecanismos psíquicos para,quem sabe, em algum momento, podermos decifrar certos enigmas da mentee da alma humana.

Bem, eu ingressei na Pontifícia Universidade Católica do RJ emagosto de 1978. Logo após meu ingresso na Universidade, iniciei minhaanálise pessoal com a nossa querida Dra. Anna Guelerman Ramos. Gra-duei-me em Psicologia em dezembro de 1982.

Em fevereiro de 1984 fui contratada para trabalhar no Hospitaldos Servidores do Estado, onde ocupo atualmente o cargo de Chefe doServiço de Psicologia Médica. No mesmo ano da minha contratação, co-mecei o "Curso de Psicoterapia Infanto-Juvenil de Base Psicanalítica" noCentro de Orientação Juvenil (C.O.J.), no Instituto Fernandes Figueira.Nos três anos de C.O.J. tive quatro supervisores, e desejo aqui dar desta-que para dois deles: Dra. Vera Márcia Ramos (nossa atual presidente) e

* Candidata do Instituto de Ensino da SPRJ.

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Dr. Carlos Alberto Saba (atual diretor do IEP). Só após o término dessecurso foi que iniciei, propriamente, a minha prática no consultório.

Estava atuando na clínica, aos poucos fui esbarrando na necessida-de de aprofundar meus estudos, de compreender melhor o que aconteciaali na relação com o paciente e poder ajudá-lo mais efetivamente. Procureiuma supervisora na linha psicanalítica, pois era a que eu me identificava, etive como minha supervisora, por muitos anos, Dra. Eronides Borges daFonseca (de nossa Sociedade), que muito me ajudou no trabalho com cri-anças e adolescentes.

Todas essas pessoas acima mencionadas tiveram influência de formadeterminante na minha busca pela Formação, e, na SPRJ especificamente.

A Formação nos fornece maiores recursos para a nossa prática, pois,não apenas amplia nosso campo de visão, como nos dá maior “embasamentoteórico” a fim de podermos atuar diante das diferentes patologias que en-contramos na clínica. Na verdade, a Formação nos ajuda de várias formas eem diferentes níveis. Meu trabalho no Hospital, por exemplo, em que pre-ciso usar de uma “técnica” diferente do consultório, pelas própriasespecificidades e demandas, e também a formação muito contribuíram parao meu crescimento profissional, pois ela “amplia” nosso campo de visão enos dá maior subsídio para uma melhor compreensão da situação hospita-lar, das vivências do paciente (como também do médico), das dificuldadesmédico-paciente e paciente-equipe, nos possibilitando ajudar tanto o paci-ente como a equipe no sentido de uma melhor “integração”.

Um ponto importante que desejo aqui ressaltar é em relação ao "Pro-grama da Formação" na nossa Sociedade que considero muito bom e am-plo, onde, estudando diversos autores, nos possibilita obter um conheci-mento bastante abrangente sobre a teoria psicanalítica.

Acho que o mesmo sentimento que nos leva à escolha profissional dequerer estudar Psicologia se parece com o sentimento que nos leva a quererfazer mais tarde uma formação, no sentido de desejarmos compreender me-lhor a mente humana, tentar decifrar alguns enigmas da alma... “Por quebuscamos fazer Psicologia entre tantas outras profissões?" Da mesma for-ma, “por que buscamos estudar Psicanálise? Por que buscamos fazer análi-se?” O desejo da Formação vem dessa “coisa”, de um desejo ou uma neces-sidade, em que precisamos ir mais além. O término da Formação, portanto,não é um “fim”...O saber não se esgota nunca pois nunca “dá conta” detudo, sempre haverá enigmas que não vamos conseguir decifrar... E aí está o“encanto” da nossa profissão. Quanto mais estudamos, mais vemos o quantonão sabemos, pois o “ser humano é um enigma”!

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Encontro com a observação de bebês

Vera: Iniciando o nosso encontro gosta-ria de propor falarmos sobre a experiên-cia de cada um de vocês com a observa-ção de bebês, especialmente a importân-cia desta experiência para a formaçãoanalítica. Mas antes gostaria de ouvir daDra. Edna, uma das pioneiras deste tra-balho no Rio de Janeiro, como começoua observação de bebês na SPRJ.

Edna: Acho que a observação dentro daSociedade começou com a minha vonta-de de fazer observação. Era um trabalhoque já se fazia na Sociedade Brasileira enão havia lá na sociedade. Então, eu pedià Nylde Ribeiro, que eu sabia que tinhafeito observação com a Rosa Beatriz , daSociedade Brasileira, se ela poderia su-pervisionar e coordenar um grupo entrenós. Rosa Beatriz havia passado dois anosem Londres, onde fez o curso de observa-ção de bebês pelo método Ester Bick.Nylde aceitou o convite, então eu, a AnaHissa, Ana Guelerman e Paulo Tavares,que tínhamos um grupo de estudo já hámuito tempo, iniciamos o grupo de ob-servação. Foram três bebês observados

durante uma hora, durante um ano e pou-co, e, quando terminamos, pedi à Nyldese poderíamos levar para a sociedade aobservação de bebês e fizemos o primei-ro grupo na SPRJ, com ela supervisio-nando. Depois deste primeiro grupo,Nylde se afastou, e fiquei coordenando.Depois as pessoas foram entrando, atéchegar o tempo de vocês.A Rosa, que é muito organizada, fezum arquivo do curso com o registro dasatividades, nomes das pessoas que par-ticiparam e conseguimos uma sala es-pecial para a reunião dos grupos. Fo-mos dando continuidade ao trabalho.Muitos bebês foram observados. Nósfazíamos a observação uma vez por se-mana. A cada semana, um levava o seubebê. No geral, tínhamos quatro bebêssendo observados. Ao longo, os cole-gas continuavam, quando o grupo seencerrava. Outros saíam, mas um bomnúmero continuava.Uma característica muito interessanteé que dos trabalhos exigidos pela socie-dade durante a formação, dentre os can-didatos que haviam passado pela obser-

ENTREVISTADORES:Vera Lúcia F. Benchimol, Rejane Sabbath Armony e Rosana Igor Rehfeld

PARTICIPAÇÃO:Edna Vilete Rosa, Sander Lang, Márcia Erlich e Maria Inês Mac Cullock

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vação de bebês, pelo menos um delesgirava em torno de um tema da obser-vação; impressionante! Isso para mimsignifica que a observação ficava den-tro da pessoa, não é?

Vera: Com certeza as pessoas que fize-ram observação ficaram, de alguma for-ma, marcadas por esta experiência.Gostaria que vocês falassem um poucosobre a importância da observação paraa formação do analista.

Edna: Eu queria só acrescentar que anossa sociedade tinha uma característi-ca diferente de outros grupos de obser-vação de outras sociedades, porque eraum grupo espontâneo, era um grupo deestudos, não fazia parte da formação.Como contribuiu a observação de be-bês? Contribuiu do ponto de vista pes-soal, mas, do ponto de vista formal,nunca foi parte da formação, como nabrasileira, ou como em São Paulo.

Márcia: Acho que todo candidato de-veria ter a oportunidade de vivenciar aobservação de bebês que é valiosa paraa clínica psicanalítica, estimulando asensibilidade e a percepção. O analistafica mais sensibilizado para captar eentender a parte regredida, a comuni-cação não-verbal, o lado bebê do paci-ente. Muitos aspectos percebidos peloanalista no trabalho clínico com o pa-ciente são manifestações também ob-servadas na relação mãe-bebê. A mãe,quando sintonizada com o bebê, pro-cura responder aos sinais que ele emi-te, atendendo na medida do possível.

Na clínica, o analista atento ao pa-ciente, busca compreendê-lo mesmoquando ele se expressa através do si-lêncio e da linguagem corporal, cujosignificado pode ser mais forte e con-clusivo que o uso da palavra.

Maria Inês: Sinto que não faça parte doprograma oficial do Curso de FormaçãoPsicanalítica a observação da relaçãomãe-bebê. Complementando o que aMárcia falou, já que deu uma abran-gência muito grande sobre a observaçãode bebês e sua aplicação na clínica, per-cebi que tal experiência estimulou emmim a compreensão da comunicaçãonão-verbal, do que esta nas entrelinhas,do aspecto “bebê” do paciente.Ao longo da minha prática clínica, apósa experiência da ORBM, senti aprimo-rar a escuta analítica, o meu olhar ana-lítico, a escuta do não-dito, do que estánas entrelinhas, de modo que, repito, aORBM deveria fazer parte do currículoda Formação Psicanalítica, pois ao meuver quem passa por esta experiência éfavorecido por um enriquecimento pes-soal e profissional.

Rosa: Sobre essa questão, se a obser-vação de bebês deve ser inserida naformação, concordo que ela seja. Con-tudo, a obrigatoriedade de observarcria resistência. O candidato pode, na-quele momento, não querer ou nãopoder observar, por uma série de ra-zões, como uma mobilização intensade angústias primitivas.

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Edna: Nós tínhamos uma prática; comonão era obrigatório o curso de observa-ção de bebês, nós íamos à turma e con-versávamos com os candidatos que es-tavam começando o Seminário. Expli-cávamos que tínhamos um grupo de es-tudos, o que era, dizíamos do interesseque aquilo despertava e nos colocáva-mos à disposição de quem queria co-meçar. A cada ano tinha uma data paracomeçar. E eles vinham espontaneamen-te. Mas como era um trabalho que esta-va começando, que não tinha existido,vinham membros também antigos. Maso predomínio era de candidatos, pelomenos no início; depois, não sei comoficou, mas no início, com certeza, era decandidatos do primeiro ano.

Maria Inês: Concordo com Rosa ao sereferir sobre a mobilização das ansie-dades que a ORBM provoca no obser-vador, mas estando observador/candi-dato em análise didática, a experiênciada ORBM facilitaria entrar em contatocom seus próprios aspectos primitivos.

Rosa: Acho que, teoricamente, esse ar-gumento é valido, já que o candidato,na formação, está em análise didática, eteria a oportunidade de entrar em con-tato com aspectos primários do ser.Neste sentido, o observador deve esco-lher o momento de observar. A observa-ção desenvolve uma percepção fina donão-verbal, funciona como um treina-mento para a contenção emocional,como tolerar o não saber, não atuar, nãocriar teorias. Este treinamento é funda-mental para que o candidato encontre a

sua posição com a dupla e depois, comseu paciente.

Vera: Gostaria de lembrar que faz parteda observação de bebês o grupo de acom-panhamento. O analista pode participardo grupo e não observar diretamente umbebê.Quando fiz observação de bebê pela pri-meira vez estava no início da formação,não quis observar e fiquei só participan-do do grupo, o que foi uma experiênciamuito interessante. Anos depois fiz ou-tro grupo e aí sim observei um bebê.

Edna: Nós estamos falando da resistên-cia que pode haver para fazer a observa-ção, mas existe uma resistência com re-lação a colocar a observação na forma-ção, que é uma resistência institucional.Porque a verdade é que nós tentamosincluir a observação no currículo depoisde quinze anos contínuos de trabalho es-pontâneo. Eu achava que com tanta gen-te que já tinha observado, inclusive como grande número de monografias quemostravam que a observação de bebêsvinha contribuindo para a formação, mi-nha proposta seria aprovada, mas, parasurpresa minha foi simplesmente veta-da a proposta. Então, vocês vêm que háuma resistência.

Rejane: E qual seria o motivo desta re-sistência?

Edna: Durante esse tempo todo fiqueipensando qual seria o motivo da resis-tência. E acho que é interessante, por-que diz respeito exatamente a essa ques-tão de em que medida a observação vai

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valer para o analista no seu trabalho.Concordo plenamente com o que a Már-cia falou; todos nós, que tivemos expe-riência, sabemos. Mas o benefício e ointeresse vão depender exatamente daposição do analista em seu trabalho. Porexemplo: se o analista se filia a corren-tes teóricas que acreditam no benefícioda regressão no processo analítico, oquanto isso pode realmente levar o pa-ciente a recuperar um passado que es-tava como que impedindo o próprio cres-cimento, ele vai achar a observação debebês um cenário privilegiado para cons-tatar suas idéias.Entretanto, não é todo analista, na ver-dade, que trabalha desta maneira. Defato a resistência vai muito longe e temvárias razões. Podemos pensar que exis-tiria o ciúme de ver os candidatos tãoenvolvidos, porque se cria o que a Verafalou, um grupo, e esse grupo passa apensar de uma forma diferente e leva issopara toda a formação... Então haveriauma ciumeira institucional também.

Rosa: Edna conseguiu colocar com cla-reza. Contudo, a vivência de quem par-ticipa do grupo de observação é bemdiferente da vivência de observar. A ob-servação em si, como a Inês falou, é umdivisor de águas para quem passou pelaexperiência de observar. Não sei se todomundo que ler essa matéria vai sabercomo funciona o método da observa-ção da relação mãe-bebê. A observaçãoocorre em três momentos: a observa-ção dos aspectos objetivos da duplamãe-bebê e do que ocorre no espaço

interno do observador, o registro da ob-servação após cada visita à residên-cia do bebê e a elaboração na discussãocom o grupo.

Edna: Esther Bick criou um método queé um método psicanalítico aplicado,uma questão, que é muito contestada.Você vê, às vezes, psicanalistas de pres-tígio não aceitarem o método. É curio-so como a observação desperta antago-nismos. É muito interessante!Por exemplo, uma vez vi o André Greenmuito indignado, dizendo que “aquilonão era psicanálise”, mas ele não viveuaquela experiência.

Vera: Na experiência de observação debebê, você observa, você vê o bebê, evocê reflete sobre o impacto daquelaexperiência em você. Nessa reflexão,você não vai utilizar, em um primeiromomento, nenhum conceito teórico.Você vai refletir sobre a sua experiên-cia emocional. Desenvolve, aprimoramais esse processo; não é um pensa-mento teórico que você desenvolve naobservação de bebês.O que pensam sobre este processo?

Edna: No método Esther Bick, a ques-tão freqüentemente levantada é de quetudo é registro de comportamento. En-tretanto, quem não tem a vivência, oude ter observado ou de ter acompanha-do uma observação ao longo do tem-po, que é aquele trabalho persistente,continuado, não se dá conta de umacoisa que nós psicanalistas deveríamoster como estabelecido: é que, na medi-

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da em que você tem pessoas que se en-contram com continuidade, o inconsci-ente se manifesta. Este é o segredo,vocêcria um “setting”. Esther Bick criou umsetting, um “setting” de observação,onde se pretende inclusive que não hajainterferência, o próprio observador nãointerfere, ele não deve interferir. Aí vêmos argumentos: Mas se tem observador,ele interfere... Ele interfere sim, porqueé um observador participante, mas nãointrusivo, pretendendo dirigir aquilo queestá sendo visto, mas ele é participante ese cria, então, um campo de interaçãoemocional. E o fato de dizer que é com-portamento é um equívoco, porque ocurioso, o que a gente vê, é a mãe comoo porta-voz do bebê. Como ela sintoni-za com o bebê, ela traduz o estado emo-cional do bebê, ou não. É assim nós va-mos vendo os encontros e os desen-contros... Como você diz, sem teoria, va-mos criando também uma compreen-são daquilo que está acontecendo coma mãe do bebê ao longo da observação.Quer dizer, quando você leva, no segun-do momento, aquele registro para o gru-po, você já tem um distanciamento parapoder pensar a respeito do fenômeno quefoi observado. A Márcia falou: ‘A pes-soa vai olhar, não é só a escuta.’ Na me-dida em que há o não-verbal ou o não-dito, o observador vai olhar. A Mahlertem uma expressão de que eu gosto mui-to; ela diz: é o olho psicanalítico.

Maria Inês: Eu quero complementar o quea Edna está falando: o grande ganho, ameu ver, da experiência de você observar

um bebê em uma postura neutra e re-ceptiva é a possibilidade de você apri-morar a sua escuta e, com certeza, asua atenção flutuante, que é básico paraum atendimento psicanalítico.

Vera: Qual seria a importância do gru-po de acompanhamento na observaçãode bebês?

Márcia: Penso na importância do grupocomo um holding para o observadorfrente à dupla mãe–bebê. O observadorcapta emoções, afetos, percebidos duran-te a observação, como também os mo-mentos de tranqüilidade, dificuldades oudesamparo vividos pela mãe ou pelobebê. Este material é descrito e acom-panhado pelo grupo.Participei de um grupo onde o observa-dor trazia relatos minuciosos das ses-sões de observação de gêmeos, doismeninos. Eram ricas descrições onde oraele se voltava para o bebê de aparênciatristonha, que crescia timidamente, oraele apresentava o outro bebê, que sedesenvolvia bem e recebia mais aten-ção da cuidadora. O observador traziapara o grupo com as sessões de observa-ção, expressando sentimentos frente asdiferenças apresentadas entre os bebês.Durante todo o trabalho de observa-ção, o observador pôde contar com acontinência do grupo de acompanha-mento, ainda que ele não seja um gru-po terapêutico.A trama de identificações verificadasentre o observador, a mãe e o bebê, nodecorrer da observação, constitui a meuver, um aspecto de interesse para estudo.

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Rosa: O observador vive o impacto emo-cional pelas projeções e transferênciasfamiliares, principalmente nos primeirosmeses de observação. Ao trazer o relatoda observação para o grupo estas ques-tões são discutidas, e, dentro do possí-vel, discriminadas e, quando as questõestocam em aspectos primitivos do obser-vador, ele leva para a sua análise pes-soal. O grupo de observação não é umgrupo terapêutico.

Rosana: Isso não seria equivalente adizer que, o grupo de reflexão está parao observador, como a supervisão para ocandidato?

Rosa: Exatamente. É interessante cons-tatar que observar é o primeiro passode todo acontecer psicanalítico, da prá-tica analítica. A ORBM segue os pas-sos da prática analítica, você observa opaciente, registra e discute em supervi-são e, na observação o material é dis-cutido numa Supervisão Grupal. Na ob-servação, às vezes, ocorrem determi-nados fenômenos grupais que merece-riam um estudo. Rose Sandri escreveuum trabalho sobre a função do grupo deobservação, no qual ela aponta como,às vezes, o grupo de observação, podefuncionar como corpo receptivo e sinto-nizado para o observador e podem ocor-rer identificações com os aspectos rela-tados. Eu vivi algumas experiências comos grupos de ORBM que coordeno; emuma delas, a observadora relatava a afli-ção do bebê que tentava dormir e a babáfazia de tudo para impedir. A babáconfidencia que estava cumprindo

ordens da mãe, que não a deixasse dor-mir durante o dia, para que pudessedormir à noite. No momento do relato, abebê, cambaleante de sono, levanta eengatinha até uma porta de vidro, de ondepodia ver a observadora; apoiando novidro levanta-se, ficando por algum tem-po e, de repente solta-se e desaba,estatelando-se no chão. Na medida emque a observadora ia contando, um dosparticipantes do grupo foi tomado porum sono incontrolável, tentava manterseus olhos abertos a todo o custo, e, umoutro, comenta, estava sentindo um mal-estar físico, e uma sensação de não es-tar em si. Pensamos no que poderia es-tar ocorrendo com o grupo. Quando en-tendemos que o que havia ocorrido erauma identificação primária com o bebê,o sono desapareceu e o mal-estar, tam-bém. Esta situação não era uma ques-tão pessoal do observador, mas da situ-ação observada. Houve uma comunica-ção inconsciente no grupo. Acho impor-tante dizer que a ORBM não é um gru-po terapêutico.

Edna: Gostaria de chamar atenção paraum aspecto da observação que aprendicom uma psicanalista belga, AnetteWattilon, sobre a importância de se fa-zer uma seleção na dupla que vai serobservada. Você não deve permitir, namedida em que faz um diagnóstico, quea dupla exista a partir de uma mãe queseja comprometida emocionalmente. Oobjetivo do grupo de observação não éatender a mãe em suas necessidadesemocionais. Você deve, ao contrário,

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buscar uma mãe que você sinta quevai poder desempenhar aquela tarefa,pois, caso contrário, você pode criarsituações que não são administráveispelo observador, pois não é sua fun-ção intervir.Não estou falando em solicitação. Sevocê é solicitado, se a mãe está tendoalguma necessidade e pedindo ajuda,podemos, de alguma maneira, orientar,encaminhar, mas o problema não é este.Estou falando de intervenção, quandovocê tem uma patologia. É quando vocêse vê diante de uma situação patológi-ca, que passa a ser observada, e não temo que fazer, porque não está sendo con-vidado a intervir, não é o seu papel. É ogrupo que vai refletir sobre essa obser-vação, em uma situação que mobilizaa angústia de todos, porque estão todospassivos e impotentes diante do que estáacontecendo. Eu aprendi, depois que euvivi uma situação muito grave. Foi aúnica que eu vivi. Estive fazendo a con-ta, pude acompanhar cerca de setentabebês. Só uma situação foi muito gravee duas outras em que a relação da mãecom o bebê estava com evidente confli-to e a mãe interrompeu a observação.Só. De uma maneira geral, as mães eramsuficientemente boas.

Maria Inês: Quero colocar a minha ex-periência. A minha mãe era tão sufici-entemente boa que eu nunca senti o gru-po de supervisão com a Edna como algoparecido com um grupo terapêutico;sempre senti como um grupo de pesqui-sa e de estudo. Isso sempre ficou muito

claro.

Vera: Haveria alguma outra aplicaçãoclínica na psicanálise usando o métodoEsther Bick?

Rosa: Até agora falamos do método daobservação como foi idealizado pelaEsther Bick. A intervenção precoce sur-giu como uma aplicação do método aclínica, em situações onde a dupla mãe–bebê apresentasse dificuldades no vín-culo ou quando um sintoma funcionaljá estivesse instalado, por exemplo, naalimentação, no sono, na pele etc., nes-tas situações seria indicado um atendi-mento pais–bebês. Estes sintomas fun-cionais sugerem que algo se passa narelação entre pais e bebê. O bebê, narealidade, está expressando um sinto-ma familiar. Geralmente, há um fantas-ma, algo não dito, não metabolizadopela mãe ou pelo pai, algo que funcio-na como uma barreira na relação, im-pedindo de se ver o bebê real e atendê-lo em suas necessidades, e este, de algu-ma forma, nessa relação tão próxima,tão íntima, reage expressando da únicaforma que lhe é possível, já que não fala,sua linguagem é a expressão corporal,não mais como uma manifestação cor-poral natural, mas, agora, como um dis-túrbio funcional.Gianna Willians, no Colóquio Interna-cional que ocorreu no Rio de Janeiro,apresentou um trabalho muito interes-sante. Na época ela estava supervisio-nando em Roma. Era um trabalho emque se aplicava o método Esther Bick

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no acompanhamento para pacientespsicóticas grávidas. Ela relatou – acheimuito interessante – um caso em que amãe era psicótica, tinha tido um bebê;ela era atendida em psicoterapia, mas,o papel da observadora, durante o pri-meiro período pós-parto, seria a de faci-litadora do vínculo numa posição deObservador Participante, como ela ochamou. Um trabalho delicado do ob-servador funcionando terapeuticamentejunto à dupla mãe–bebê.

Edna: Eu só queria acrescentar algo aoque a Rosa falou, queria precisar maisum pouco. É que essas possibilidades deintervenção precoce em terapias pais–bebês são realmente como que desdobra-mentos e uma evolução do método deobservação. Quer dizer, na medida emque a pessoa tenha já a experiência deobservar, ela pode transportar isso parasituações aí na clínica, como a Rosadescreveu. São duas situações distintas,porque, na verdade, elas não se mistu-ram. A proposta do observador de be-bês é uma e a proposta do observadorclínico para intervir ou tratar a relaçãodos pais com o bebê é outra. A terapiapais–bebês foi uma conseqüência natu-ral de todo esse trabalho que foi feitoao longo do tempo.

Vera: Voltando à formação... Quan-do a gente se inscreve para fazer umaformação psicanalítica, ou você temque provar que teve uma experiênciaclínica de 500 horas com pacientespsicóticos, ou você tem que fazer um

estágio durante a formação. Por quenão exigir ter uma experiência com odesenvolvimento normal, que é o quenos proporciona a observação de bebês,porque priorizar apenas o patológico.

Edna: É um problema conseqüente à for-mação médica. Mas, se você prestaratenção, os autores psicanalistas, deuma maneira geral, não se dedicam àsfamílias. Poucos se dedicaram, comoWinnicott, por exemplo que faziapuericultura. Assim ele observava obebê sadio. Podia ser, porém, que o bebêsadio apresentasse alguma perturbaçãoe Winnicott desenvolveu as consultas te-rapêuticas. Como pediatra, teve muitachance de ver o processo de amadure-cimento dos bebês. Na verdade, na psi-canálise, nós inferimos o desenvolvi-mento normal a partir da patologia dopaciente. Ainda hoje, você vê assim:dependendo da corrente teórica, os ana-listas podem atribuir ao desenvolvimen-to normal questões que são patológi-cas, que surgem na infância por causade uma patologia, inclusive na relaçãoda mãe com o bebê.A observação de bebês, é preciso lem-brar, se passa nos dois primeiros anosde vida, fundamentalmente. Principal-mente, no primeiro ano, quer dizer, se-ria todo o período pré-edípico, o desen-volvimento primitivo. E o que a gentevê é que as patologias mais presentesatualmente são patologias observadasnessa fase de desenvolmento.

Vera: Acho que podemos concluir que a

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observação de bebês é uma ferramentamuito útil para o analista no seu traba-lho clínico.Muito obrigada pela participação devocês. Acredito que nossos leitores fica-rão tão encantados quanto nós com avivência da observação de bebês.

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Encontro com o DAPRegina Maria C. Chagas Lessa

ENTREVISTADORA:

Vera Lúcia Benchimol

Esta entrevista foi uma oportunidadede reviver um período em que trabalheino DAP com Regina, juntamente comMaria Lúcia Alzuguir, Sara MenezesCortes, Ronald Sérgio M.E. de Souza eWerner Zimmermann.Regina teve uma atuação muito es-pecial como coordenadora, contagi-ando a equipe com seu entusiasmopara idealizar e colocar em práticanovos projetos.

Vera: Inicialmente gostaria que você fa-lasse, em linhas gerais, sobre a finali-dade do DAP e do seu funcionamento.

Regina: Primeiro gostaria de agradecereste convite e ressaltar o prazer de tra-balhar novamente com você, mesmo quede forma diferente.O período em que estivemos juntos noDAP; eu, você, Ronald, Maria Lúcia, Sarae Werner, foi para mim altamente enri-quecedor! Vejo o DAP como um espaçode aprendizagem, crescimento, desenvol-vimento e criatividade, assim como umespaço de interação e integração, similarao espaço potencial de Winnicott.

É interessante saber que o DAP foi cri-ado na 2a turma da SPRJ, tendo comoproposta o atendimento em grupo e gra-tuito às pessoas carentes de recursos fi-nanceiros. Os atendimentos eram fei-tos no espaço da sociedade. Logo de-pois se ampliou a proposta inicial, pas-sando-se ao atendimento individual queera efetuado, ou no consultório parti-cular, ou na própria sociedade a preçossimbólicos, sendo que o que era arreca-dado ficava integralmente para o DAP.A proposta inicial do DAP comprome-tia tanto os analistas quanto os candi-datos da SPRJ a atenderem dois paci-entes encaminhados pelo DAP para aná-lise, dentro de sua proposta social.Hoje acredito que a idéia original quan-to à proposta social permanece, só quede forma mais ampla, significando nãosó o atendimento individual para trata-mento analítico e psicoterápico, comotambém inclui o diálogo e a informa-ção à comunidade através de palestras,cursos, jornadas etc.Há também a finalidade de aprendiza-gem, uma vez que por meio do DAP faz-

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se o encaminhamento de pacientes amembros do Instituto de Ensino.

Vera: Hoje não existe mais a obrigato-riedade de atendimento dos pacientesdo DAP pelos membros da Sociedade.O que você pensa sobre isto?

Regina: Penso que seria interessante oretorno do compromisso, sem obriga-toriedade, do atendimento de duas pes-soas encaminhadas pelo DAP pelosmembros da Sociedade, priorizando sem-pre o encaminhamento de pessoas paratratamento psicanalítico, isto é, com pos-sibilidade de maior número de sessõessemanais aos candidatos.Acredito também ser interessante repen-sarmos o aproveitamento dos espaçosociosos da sociedade para atendimentos,principalmente grupais.

Vera: Como encontrou o DAP no iníciode sua gestão?

Regina: Encontramos o DAP funcionan-do no sentido de receber e encaminharos pacientes que procuravam a Socie-dade. A marcação de entrevistas e a par-te financeira encontravam-se confusase desorganizadas. Entretanto havia umlivro-caderno bastante interessante con-tendo a data das entrevistas, sexo, es-colaridade, idade, entrevistador e enca-minhamento dos pacientes atendidos,como um fichário com breves relatosdas entrevistas. Nosso trabalho inicialfoi ler, organizar e aproveitar o que ha-via sido feito na gestão anterior. Estabusca de aproveitamento e continuida-de do que havia de bom nos facilitou

enormemente o trabalho. Por este livro-caderno elaboramos um trabalho no fi-nal de nossa gestão.Conseguimos reorganizar o controle fi-nanceiro e a marcação de consulta.Em nosso primeiro Encontro Científicoconvidamos a Dra. Maria Manhães, queparticipou da criação do DAP, e o Dr.Carlos Alberto Barreto que participoude seu ressurgimento. Queríamos sabero que eles pensavam sobre o DAP, prin-cipalmente sobre seu funcionamentocomo clínica social. Foi uma surpresapara nós, e também um aprendizado,quando sentimos o entusiasmo e a con-tribuição que o trabalho no DAP haviafeito em suas vidas. Dr. Carlos Albertomantinha um serviço na comunidade doCaju nos moldes do DAP, isto é: umambulatório com atendimento em gru-po e serviços para a comunidade.Dra. Maria Manhães nos disse que mui-tos dos analistas da Sociedade haviamcomeçado sua jornada sendo atendidospelo DAP, mostrando com isso a possi-bilidade de evolução que a psicanálisepode proporcionar a uma pessoa.Percebemos com estes relatos que o tra-balho no DAP oferecia-nos um amplocampo de trabalho e muitas possibilida-des de atuação. Só dependia de nós!

Vera: O que vocês pensam da propostado DAP de atender preferencialmentepessoas de baixa renda?

Regina: Primeiramente teríamos que defi-nir o que se considera paciente de baixarenda, já que, hoje em dia, no nosso Brasil,muitos são os têm problemas de renda.

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Vou me referir aos que moram em comu-nidades carentes. Este atendimento é algoque sempre me interessou muito. Quandoestávamos no DAP, iniciamos um traba-lho no Complexo de Manguinhospor intermédio da ONG “Vivamos Me-lhor”, com financiamento da Suíça,por meio de nosso colega de equipe,Wernner, que era membro da direçãodesta ONG. A ONG faz um trabalho es-timulando a autogestão, oferecendo finan-ciamento para projetos e assistência téc-nica durante três anos. Como membrosda SPRJ e do DAP, inicialmente visita-mos os projetos, recebemos convites paraparticipar de comemorações, sendo quelogo após fomos convidados a dar pales-tras a pais e professores, como tambémbreves orientações.Houve interesse da comunidade e nos-so de abrir um ambulatório, onde osmembros da Sociedade que se dispuses-sem, teriam espaço para realizar aten-dimentos psicoterápicos.Chegamos adiscutir esta possibilidade em diferen-tes ocasiões, mas infelizmente não acolocamos em prática.Este trabalho com a “Vivamos Melhor”,paralelamente a união do DAP com aComissão de Ensino da SPRJ, fez comque Wernner e Iancarelli criassem o pro-jeto “Pequeno Jardineiro” visando aoatendimento de adolescentes, para nãosó dar-lhes uma profissão como tambémpromover a auto-estima e incluí-los nasociedade. Esse projeto foi criado emTeresópolis. Gostaria de abrir um parên-tese e dizer que eu, Wernner e Iancarelliescrevemos o projeto e o inscrevemos

para concorrer a um prêmio oferecidoanualmente pela empresa de consultoriaMac Kinsey; sendo que esse projeto fi-cou entre os finalistas daquele ano.Com isso quero dizer que há possibili-dade de o DAP atender pessoas de bai-xa renda, posto que existem diversasalternativas válidas para penetração euso da escuta/teoria psicanalítica emdiversas comunidades, trazendo inúme-ros benefícios.Por outro lado é importante lembrar queos pacientes do DAP são, em sua gran-de maioria, pessoas de nível superior ecom muita vontade de se tratar.

Vera: Você poderia falar um pouco dasua experiência como terapeuta no aten-dimento aos pacientes encaminhadospelo DAP?

Regina: Antes de entrar para o DAP , edurante minha formação , nunca haviaatendido um paciente encaminhado pelainstituição. Como você deve se lembrar,tínhamos por norma não encaminhar pa-cientes para a equipe. Logo, só fui aten-der pacientes do DAP quando eu deixeia diretoria. Hoje atendo três pacientesdo DAP, sendo que dois há vários anos.Vejo nesse paciente bastante empenhono tratamento, e progressos significa-tivos, tanto na esfera subjetiva comona objetiva.Acredito que se os candidatos se propu-sessem ao atendimento de pelo menosdois pacientes do DAP teriam muito queaprender e crescer.

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Vera: Regina, você acha que a propostado DAP pode ser ampliada?

Regina: Acho que a proposta do DAP podeser ampliada sim, em vários aspectos; porexemplo: aproveitando mais o espaçosocietário ocioso para atendimentosgrupais; promovendo e divulgando apsicanálise através do entrosamento ins-tituição/comunidade e também favorecen-do um intercâmbio maior entre a partecientífica da sociedade e a clínica.Em relação aos candidatos, o DAP pode-ria atuar no seu aprendizado, não só en-caminhando pacientes, mas também ofe-recendo supervisão sistematizada em gru-po, por um preço diferenciado.Poderia ser criada uma clínica no DAPonde faríamos convênios com empresase outras instituições, visando oferecimentode prestação mais ampla de serviços,como: atendimento de crise (antigo pron-to-socorro psicológico), atendimento degrupos diversos, psicodiagnóstico, testeneuropsicológico, grupos de acompanha-mento vocacional para adolescentes etc.Isto ampliaria as funções do DAP e aten-deria a seu papel primordial, que é oatendimento qualificado à comunidade.Você poderia falar sobre as atividadesdesenvolvidas pelo DAP durante a suagestão? Você acha que foi importante terdesenvolvido atividades envolvendo ou-tras comissões da sociedade. Por quê?

Regina: Foi extremamente enriquecedorpara todos nós o fato de estarmos liga-dos a outras comissões. Gostaria de con-tar como se passou e agradecer aos di-

retores/presidente e membros que tantocolaboraram conosco.Tivemos a idéia de fazer um “EncontroClínico” onde teríamos a teoria, a clíni-ca e o convívio social. Programamos paraser mensal e num sábado, consistindo deapresentação e discussão teórica pelamanhã, almoços na própria sociedade epequenos grupos de supervisão pela tar-de e finalizando com uma avaliação ge-ral. Penso que, inicialmente, todos acha-ram extravagante e trabalhoso demais,logo fadado ao fracasso, pois isto ocor-reu na nossa própria equipe. Levamosalgum tempo para nos convencermos deque daria certo, ou pelo menos devería-mos tentar, ninguém tinha feito do es-paço societário um ambiente onde pu-déssemos ‘digerir’ não só ciência e psi-canálise. A sociedade tinha o espaço, po-rém nada mais. A organização da parteclínica foi tranqüila. A responsabilidadepela comida e os artefatos ficou comigoe você. Tínhamos porém uma outra ta-refa que era pedir permissão, primeira-mente à presidência da sociedade, naépoca Dr. Carlos Edson. Este não colo-cou objeções, mas disse-nos que está-vamos entrando na esfera da comissãocientífica. Fomos falar então com o seudiretor, Dr. Fabio Lacombe, que não sónos autorizou como nos apoiou. Fala-mos também com o diretor do institu-to, Dr. Iancarelli. Esses encontros fo-ram altamente produtivos. Tínhamos oauditório lotado de membros e candi-datos. Com o dinheiro arrecadado equi-pamos a cozinha e o jardim interno,além de podermos contar com a cola-

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boração de todos, inclusive da secretariacom a Dona Jurema à frente, que ficouresponsável pelo trabalho de pesquisade preços e compra de material. A equi-pe contou até com a colaboração de ma-ridos e esposas na organização dos al-moços e com a participação e empenhodos membros para a parte clínica. Osencontros foram um sucesso e gostososem todos os sentidos!A partir daí partimos para os encontrosexternos. Organizamos pequenos encon-tros, primeiramente no Hospital doAndaraí onde tínhamos acesso, já que ochefe do serviço de saúde mental, Dr.Paulo Lessa, era membro da sociedade.O nosso primeiro encontro foi com umapalestra de Vera e Wernner para psicó-logos da unidade, que trabalhavam compsicoprofilaxia cirúrgica e no ambula-tório de saúde mental. Outros encon-tros foram organizados, lotando o audi-tório do ambulatório. Conquistamos es-paço para uma jornada maior no audi-tório central do hospital, contando coma presença dos membros da sociedade aprestigiar o DAP, como: Drs. Adolfo, Ale-xandre Kathalian Miguel Chalub, JoséHenrique, Paulo Lessa, juntamente comos médicos do staff de diversas clínicasdo Hospital do Andaraí e da Lagoa.Após essa jornada fomos convidadospara palestras no CREA da Tijuca, doqual fazem parte diversas escolas daregião. E começamos a receber convi-tes para palestras em outros locais,como, por exemplo, o Hospital Escolada UFRJ...

Essas palestras eram assumidas semprepor algum membro da equipe e muitasvezes com a participação dos profissio-nais dos lugares que haviam feito o con-vite, assim como profissionais externosconvidados por nós.Tínhamos também o projeto junto à "vi-vamos Melhor", o qual já me referi ante-riormente e que o diretor do IEP traba-lhou conosco ativamente. Acredito quepelo apoio e participação de outras co-missões nosso trabalho foi produtivo eintegrador.Acho fundamental o trabalho ligado aoutras instituições, não só como formade cooperação, mas também como di-vulgação da psicanálise e da SPRJ. Épossível tornar o departamento clínicoda SPRJ uma clínica de referência na epara a comunidade.

Vera: Você teria algum projeto em espe-cial que não pode ser colocado em prá-tica durante a sua gestão e que gostariade poder realizar?

Regina: Sim. Gostaria que tivéssemos cri-ado um ambulatório em uma comuni-dade carente. Um outro projeto que nãopudemos colocar em prática foi fazeruma clínica no DAP com convênios comempresas e diferentes instituições.

Vera: Poderíamos terminar nossa en-trevista deixando este desafio para aspróximas equipes do DAP.

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Apresentação

Frida Hoirish

Em dezembro de 2004 o IEP da SPRJ promoveu uma reunião como tema; Avaliação nos seus três segmentos: Seminário, Monografia e Su-pervisão. Foram convidados diversos membros com experiência de atua-ção docente e institucional para apresentar suas idéias. Estas apresenta-ções -que estão sendo publicados nesta edição-foram seguidas de debatescom os demais participantes.

O objetivo do Instituto de Ensino da Sociedade Psicanalítica doRio de Janeiro ao realizar este evento, foi o de repensar uma série de itensde nosso Estatuto e Regimento.

Três fatos chamaram atenção: a cobrança de uma das turmas eminício de formação de uma avaliação mais formal por participação nosseminários: a excelente receptividade de praticamente todos os membrosconvidados para a execução dessa tarefa e finalmente: em meio a exposi-ções, debates criativos e roteiros práticos para execução de tarefas ligadasao ensino-aprendizagem da Psicanálise, vimos surgir à possibilidade desoluções novas para as questões que estavam sendo debatidas.

Considerando o interesse despertado e o resultado da reunião queproporcionou como que uma dissecção de nosso trabalho de Formaçãoou uma radiografia de nossa sociedade, achamos que este debate deve tercontinuidade, dentro de uma proposta de formação permanente.

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Reflexões sobre o processode supervisão oficial

Edna Pereira Vilete*

Impossibilitada de comparecer à reunião de 4 de dezembro, e so-licitada pela colega Frida Hoirisch, segui sua sugestão encaminhandoidéias surgidas ao longo de minha experiência como supervisora do ins-tituto da SPRJ. Espero, assim, contribuir para a discussão em torno desteimportante tema.

Do meu ponto de vista, nenhum requisito do processo de formaçãose revela tão difícil de cumprir quanto a experiência de supervisão, nãosomente pelo aprendizado sutil da técnica analítica mas, sobretudo, porexigências institucionais que por vezes se opõem às características da pato-logia do paciente e, em conseqüência, ao próprio desenvolvimento naturalde sua análise. Refiro-me, por exemplo, às quatro ou mesmo três sessõessemanais freqüentemente recusadas pelos pacientes esquizóides e fronteiri-ços, hoje em dia tão comuns nos consultórios. A insistência no número devezes poderia abortar uma possibilidade de tratamento ou, se o pacienteaceita a regra. por mostrar em um estado de extrema necessidade, suaaquiescência tem uma qualidade de submissão que prejudica o estabeleci-mento de confiança no analista. Assim, como resultado temos um pacienteque falta às sessões, determinando, dessa maneira, por via transversa, adistância protetora que julga adequada entre ele e o analista. Percebo,porém, que tais considerações podem resultar da minha visão teórica so-bre o procedimento analítico, onde se permite que o ritmo mais espaçadoseja determinado pelo paciente, até que sua entrega e regressão possamocorrer. Suas defesas seriam, pois, respeitadas enquanto delas necessitasseporque, em situação contrária, o analista se tornaria alguém impositivo dequem é necessário desconfiar.

Questões como a que acabei de expor, resultam de se tentar aplicar,aos pacientes comprometidos da atualidade, um método de psicanáliseconstruído para o tratamento de psiconeuróticos. Poder-se-ia argumentarque seriam esses os melhores casos indicados para supervisão oficial, mas

* Membro efetivo, docente e didata da SPRJ.

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a isso respondo com uma constatação de Winnicott feita já em 1954: “Seriaagradável poder aceitar em análise somente pacientes cujas mães, no início etambém nos primeiros meses de vida, foram capazes de fornecer condiçõessuficientemente boas. Mas esta era da Psicanálise está inexoravelmente che-gando ao fim.”

Como conclusão penso que, com essa exigência de uma freqüênciaideal, estaríamos esperando dos candidatos uma tarefa impossível de rea-lizar, e o mesmo poderia acontecer com relação à interrupção da análise.Como se sentem eles temerosos de que o paciente interrompa a análise, eassim fiquem prejudicados na continuidade de sua formação! Imperícias àparte, a interrupção de uma análise pelo paciente pode representar ummovimento típico de idas e vindas em que ele se assegure de sua liberdadede entrar e sair, pelo medo de constatar a dependência ao analista. Mesmoque a perda de um paciente represente a conseqüência de uma falha docandidato, podemos pensar o quanto aprendemos com os nossos errosneste trabalho tão incerto e, assim, o importante é a compreensão do queteria ocorrido, devendo, portanto, com justiça e bom senso, ser este tempode supervisão e análise interrompida incorporado às horas oficiais.

Tenho me perguntado sobre os objetivos a serem alcançados nessassupervisões institucionais. Evidentemente buscamos a integração da teo-ria à técnica, ou ainda a destreza do diagnóstico e outros tantos elemen-tos que são parte do fazer psicanalítico, mas quase sempre isso só é al-cançado na segunda supervisão, quando o candidato já possui uma certaexperiência clínica e leitura psicanalítica suficiente. O principiante, po-rém, nesse momento inicial está às voltas com outra tarefa – a de lidarcom sua insegurança, com as dúvidas sobre si mesmo e sua capacidadeem alcançar uma nova identidade profissional. O supervisor de uma pri-meira supervisão é, por isso, o colega mais experiente que revela ao can-didato esta singularidade do nosso ofício – cada paciente é um territórioe desconhecido a explorar, e os muitos anos de trabalho não nos garan-tem um conhecimento que nos conforte em nossas perguntas, pois só opaciente sabe as respostas. Mais importante que tudo será, assim, a ca-pacidade que o supervisor tenha de ajudar o candidato a encontrar suamaneira própria de trabalhar e de estar no setting, conseguindo se ex-pressar com espontaneidade. Ainda lembrando e citando Winnicott: “Meuofício” – dizia ele – “consiste em ser eu mesmo.”

Por este motivo não concordo com a avaliação final de um supervisorsobre seu supervisionando. A avaliação, inevitavelmente, acrescentaria umcaráter persecutório que prejudicaria a relação e, do mesmo modo como

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aconteceu com a análise didática, esta parceria deveria permanecer li-vre, sem interferências institucionais, exceto aquelas que estabelecem otempo para o trabalho. Cabe, ainda, ao supervisor, auxiliar o candidatona realização do relatório, relatório este que poderia ser apresentado edefendido perante a comissão de avaliação. Esta defesa – que não existeem nossa sociedade – seria um excelente exercício para o candidato, pre-parando-o para outras experiências científicas, ao longos de sua vida pro-fissional em que terá que expor e defender o que pensa. É, também, amelhor maneira de avaliar o progresso de um candidato e sua qualifica-ção clínica.

Agradeço aos colegas, desculpando-me por não estar presente. Agra-deço em especial, à Frida por insistir em minha participação e pela leituradeste ligeiro texto.

Supervisão psicanalítica

Clara Helena Portela Nunes*

O que se conhece como o tripé de Max Eitingon tem uma longa história.Na carta 75 de 14 de novembro de 1987, escreve:"Minha auto-análise ainda está interrompida e eu compreendi a ra-

zão. Eu só posso me analisar com a ajuda do conhecimento obtido objetiva-mente (como alguém de fora). A auto-análise genuína é impossível; de outromodo não haveria doentes (neuróticos)."

A idéia, portanto, da impossibilidade da auto-análise fez de Freudum ardente defensor da análise, por um analista mais experiente, um ele-mento indispensável ao futuro analista e de uma supervisão, como veremos.

No congresso de Nuremberg, em 1910, Freud apresentou um traba-lho, publicado com o título de Prospectos Futuros da Psicanálise, em que eleusa pela primeira vez e termo contratransferência, resultado das inovaçõesda técnica psicanalítica e reitera a necessidade de um autoconhecimento cadavez mais profundo, enquanto atendem os seus pacientes. Ele deve, portantoter acesso à sua contratransferência, pois nenhum analista vai mais longe

* Membro efetivo, didata e docente da SPRJ.

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que seus próprios complexos e resistências internas permitem.Já aí, vemos que o Mestre planta as sementes da futura supervisão,

que só vai se tornar oficial, muito mais tarde.No congresso de Bad Homhurg, de 1925, Freud, já doente, sugere a

Max Eitingon, que se fizesse então, a mesma estrutura de ensino em todas associedades européias.

Este como era rico, implantou logo a Policlínica de Berlim, onde elee Abraham davam formação a seus candidatos. Já a de Viena, foi dificilmen-te implementada.

Embora anterior, o tripé de Max Eitingon ficou famoso por ter sidocitado na Questão da Análise Leiga. Sabemos que esta obra foi escrita emdefesa de Theodor Reik, membro da Sociedade Psicanalítica de Viena, e quetinha sido alvo de um processo judicial por, não sendo médico, tratar as pes-soas com "curandeirismo". O processo se deu no primeiro semestre de 1926.Freud começou a escrever seu trabalho em fins de junho, para publicaçãoimediata. Ela foi impressa em fins de julho e publicada em setembro.

Como se sabe, trata-se de um diálogo, à moda de Platão, com umjuiz imparcial a quem Freud explica toda a teoria das neuroses e o tratamen-to psicoanalítico.

Por fim, o tal juiz pergunta como se aprende a tal psicoanálise. Freudresponde:

"Até agora, existem dois institutos em que se dá a formação psicana-lítica. O primeiro se encontra em Berlim, criado por Max Eitingon. O segun-do é custeado por seus próprios recursos e com muitos sacrifícios, a Socieda-de Psicanalítica de Viena. Um terceiro Instituto de treinamento está, nestemomento, sendo aberto em Londres, sob a direção do Dr. Ernest Jones.Nestes institutos, os candidatos são analisados, recebem instrução teóricacom conferências sobre todos os assuntos importantes para eles, e gozam deuma supervisão com um analista e mais experiente quando recebem licençapara fazerem suas primeiras tentativas com casos mais leves."

Freud esclarece como é dura esta formação e de grande responsabili-dade, pode até durar uns dois anos, e, no final da formação, o candidato éapenas um principiante, não um mestre. Mas qualquer pessoa que passe portodo este processo já não é mais um leigo no campo da psicanálise.

Impressionante, a fidelidade do autor à análise leiga até o fim deseus dias, o que o levou a ter dificuldades especiais com os americanos,que só aceitavam médicos para a formação. Os leigos, em seu entender,estavam perfeitamente aptos a psicanalisar candidatos, e a darem forma-ção teórica e supervisões.

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Se a psicanálise é uma profissão impossível, muito da supervisão,vai depender da análise pessoal. É nela, que o analisando, vai ver suasdificuldades de relacionamento, seus pontos cegos e, sobretudo, vai apren-der a dividir seu próprio ego, em um que se analisa, transfere, e em outroque se observa. Na supervisão, ele vai aprender, basicamente, como ver oinconsciente de outra pessoa e a traduzir este inconsciente.

A Monografia no 1, dos Clássicos em Psicanálise, publicada em1983, trata justamente de Supervisão Psicanalítica, de autoria de JoanFleming e Therese Benedek. A metodologia usada é discutível, já que en-volve transcrições de sessões gravadas, com a desculpa de que podem sercomparadas por supervisores diferentes. As supervisões também fazem partedos intercâmbios de diversas fases do trabalho, correspondendo às fasesdo tratamento analítico, a inicial, a intermediária e a final, a primeira e asegunda supervisões. De qualquer forma, é um livro clássico e que mereceser lido por quem se interessa pelo assunto.

Na SPRJ, tanto a análise pessoal, como a supervisão é institucional,com os problemas persecutórios inevitáveis, mesmo sabendo que o analis-ta não opina, a não ser o início e o fim, com as interrupções, por acaso,acontecidas. Em minha experiência, como supervisora, embora não avaliepara a instituição, costumo avaliar o trabalho do meu futuro analista,inclusive, ajudando-o a escrever seu relatório ao final de suas horas. Aavaliação deste e de outros trabalhos fica a cargo de uma Comissão do IEP,constituída para tal finalidade.

Mesmo em sociedades, nas quais a análise pessoal é desvinculada dainstituição, notadamente chamado modelo francês, a supervisão é sempreinstitucional e extraordinariamente longa. E o que visa a supervisão? EmParis, com certeza, produzir alguns efeitos teóricos, que o didata não sabe seo psicanalista pessoal possuía, já que este nem precisa pertencer à IPA.

Mesmo na SPRJ, quando se conhece o analista, a supervisão é sem-pre um aprendizado especial, com a experiência de tratamento, hoje emdia, talvez de seu primeiro paciente a vir quatro vezes por semana. Oscasos leves preconizados por Freud, para os candidatos, foram substituí-dos por personalidades narcísicas, psicossomáticos etc. Geralmente, o can-didato recebe pacientes do DAP recebendo muito pouco por suas consul-tas. Como supervisora, eu dou um apoio ao futuro analista tão investidono seu paciente. Procuro respeitar o tempo de cada dupla, mas é impossí-vel não mostrar, mesmo com a maior sutileza os aspectos contra-transferenciais que impedem o progresso da dupla.

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Sobre a avaliação derelatórios de supervisão

Eliane Mirilli Mac Cord*

Em 1919, Freud introduziu o termo Kontrollanalyse (análise de con-trole) para designar uma análise conduzida por uma pessoa que se encontraela mesma em análise didática e que concorda em ter seu trabalho controla-do, isto é, em prestar contas dessa psicanálise a outro psicanalista.

A Kontrollanalyse foi sistematizada pela IPA cinco anos depois, em1925, no Congresso de Bad-Homburg, e tornada obrigatória, junto com aanálise didática, em todas as sociedades da IPA.

O termo "análise de controle", em desuso entre nós, impôs-se inici-almente em alemão, mas foi progressivamente substituído dentro da IPA,por influência da American Psychoanalytical Association pelo termo "su-pervisão".

Isso é bastante interessante, porque a palavra inglesa control, damesma forma que em alemão e em francês, coloca ênfase na idéia de dirigire dominar, ao passo que a palavra supervision remete a uma atitude não tãodiretiva. Jacques Lacan resgatou o termo "análise de controle" e este é geral-mente adotado nas sociedades lacanianas, reintegrando na análise de con-trole o exame das reações internas do supervisionando, uma espécie de se-gunda análise, o que difere substancialmente do que se tornou vigente nassociedades da IPA, que presumem que a supervisão não tem a mesma natu-reza da análise pessoal.

A discussão sobre o tema da supervisão é freqüente nos congressosda IPA e da FEPAL, principalmente porque envolve a questão da qualifica-ção do candidato a tornar-se membro da sociedade, processo a que OttoKernberg se referiu como quality control.

No exame de material desse congresso percebe-se uma variedade deposicionamentos em relação à supervisão.

Encontramos, por exemplo, a sugestão de que a função de psicana-lista didata seja completamente separada da de supervisor. Neste caso, seriaprivilegiada a capacidade pedagógica para esse trabalho, não podendo ha-

* Membro efetivo, didata e docente da SPRJ.

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ver superposição de função, isto é, o supervisor não poderia fazer a análisede candidatos.

Por outro lado, chamou-me especial atenção o Regimento do Institutoda Associação de Psicanálise de Rosário, Argentina, onde a avaliação da capa-cidade clínica do candidato é feita pelo próprio supervisor. Um relatório so-bre o caso supervisionado é entregue ao final de 1 ano de trabalho, e seráaprovado ou não pelo supervisor, que comunica a sua avaliação ao Instituto.

A falta de cumprimento do prazo de entrega do relatório ou a nãoaprovação do mesmo implicam em realizar novamente o período de supervi-são, com o mesmo ou com outro supervisor. No caso de ser reprovado pordois supervisores, o candidato será desligado do instituto.

Além de sobressair pelo rigor, este regimento mostra o supervisor exer-cendo um papel de grande responsabilidade e participação na avaliação docandidato.

Na situação específica da SPRJ, no que diz respeito à avaliação dorelatório de supervisão, não há como não vê-lo como sucessor da antiga apre-sentação de caso clínico ao Corpo Societário, quando o candidato, já tendorealizado todos os requisitos de sua formação, pleiteava sua promoção aMembro Associado.

Os colegas que passaram por essa experiência lembram do temor comque a enfrentavam, porque era sabido que seu trabalho e, por extensão, suacapacidade de ser analista, seriam ali duramente questionados por algumasdas pessoas presentes. Um desses colegas mais antigos assumia abertamenteessa posição, e costumava brincar, referindo-se a essas apresentações dizendo:“Quero ver sangue!”

Isso se passava aqui há mais de vinte anos. Desde então ocorreramcrises internas, ameaças externas, mudanças de Estatuto e Regimento e, final-mente, cisões, deixando o Corpo Societário bastante reduzido.

Ao mesmo tempo, uma crise econômica prolongada contribuiu para oesvaziamento dos consultórios e o exercício da psicanálise deixou de ser aatividade bem remunerada que costumava ser. Nosso instituto, como os dasoutras sociedades da IPA, passou a ter uma procura bastante reduzida.

Ao meu ver, tivemos tantas mudanças que deixamos de ter a antigasociedade – não está em pauta se era boa ou má – e não estamos conseguindofirmar uma nova identidade societária. Aqui, lembro que a auto-estima é umdos alicerces do sentimento de identidade.

Passarei agora a focar especificamente o instituto da SPRJ, onde parti-cipei de duas comissões de avaliação de candidatos, a da última gestão e a daatual, e trarei algumas observações ligadas à pratica dessa função.

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Entre nós, a avaliação da capacidade clínica do candidato se dápela apresentação de material em seminários clínicos e pelos relatórios desupervisão. Ao meu ver, a avaliação desses relatórios constitui o problemamais complexo com que a comissão se depara.

Carlos Edson Duarte, com quem tive a alegria de trabalhar numadessas comissões, tem uma indagação reproduzida na ata da reunião doCorpo Docente de 25/11/2003. Diz Carlos Edson: “O que deve ser avaliadonum relatório de supervisão se o relatório foi aprovado previamente pelosupervisor? A comissão de avaliação serviria apenas para referendá-lo?”

Nosso saudoso colega trouxe naquela ocasião uma indagação queexprime toda a dificuldade ligada a essa tarefa.

Certamente existem regras bem explícitas sobre a estrutura deseja-da para esses relatórios, que foram reiteradas na reunião do Corpo Docen-te de 26/06/2004: "O relatório deve conter um histórico do paciente, aprimeira entrevista, algumas sessões, e dois sonhos. Deve enfatizar a rela-ção do candidato com o supervisor e relatar o que este ensinou. Deveconter a compreensão do caso, sua evolução, e o candidato demonstrarconhecimento e aplicação dos conceitos básicos da prática psicanalítica,como transferência, contratranferência, resistência etc."

Observa-se que, nessa apresentação à comissão de avaliação, o can-didato não vem sozinho, ele vem em dupla com o seu supervisor, que ge-ralmente lê e aprova previamente o relatório. Portanto, a situaçãopersecutória que envolvia a antiga apresentação do trabalho clínico foisubstituída por uma situação em que o candidato se apresenta simbolica-mente apoiado pelo aval do supervisor ao relatório de supervisão.

Geralmente a comissão de avaliação recusa um relatório de super-visão insatisfatório, pedindo ao candidato que o refaça, mas a supervisãoem si, onde se apóia o relatório, não é refeita, mesmo que se perceba ainsuficiência clínica do candidato. E a mera reescrita do relatório de super-visão visando à sua aprovação, na verdade, não vai corrigir as deficiênciasdo candidato.

Estaríamos diante de problema sem solução se não fosse a existên-cia de um Regimento do Instituto, cuja aplicação natural solucionaria amaioria dos impasses de avaliação que se apresentam.

O fato de a maioria dos docentes desconhecer os termos do Regi-mento do IEP é um fenômeno digno de toda a nossa atenção.

Creio que esse desconhecimento, a não-utilização de seus recursose a hesitação na aplicação eventual das interdições nele previstas reflete acrise de identidade que nos afeta na Sociedade.

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Não tomamos nosso Regimento como um ponto fixo, umreferencial comum e orientador.

Há uma tendência sensível a quebrar-se regras, criar-se concessões efacilidades. Criou-se, sobretudo, a consagração de práticas paralelas aoque é previsto no Regimento, acarretando que decisões de aplicar o Regi-mento às vezes esbarram em reações de surpresa por total desconhecimen-to dessa atribuição da comissão de avaliação.

É interessante notar que aquilo que aponto como a parte maisdifícil da avaliação de um relatório de supervisão, isto é, o candidatonão se apresentar só, seria sanado se fosse colocado em prática o desco-nhecido artigo 25 do Regimento, que diz no item C: “O relatório desupervisão será apresentado por escrito e oralmente pelo candidato àcomissão de avaliação. Essa discutirá e fundamentará sua avaliação como candidato, que terá o direito de responder e contra-argumentar comfundamentação. Caso o candidato deseje, poderá apresentar o relató-rio de supervisão em reunião interna da sociedade, sem intervenção daaudiência.”

Não posso deixar de assinalar que essa última recomendação – semintervenção da audiência – corrobora o que tento demonstrar: as atuaisdificuldades, inerentes à avaliação da capacidade clínica do candidato pormeio dos relatórios de supervisão, decorrem do desejo de se evitar o ritualde iniciação que ficou no passado da sociedade, ou seja, a assustadoraapresentação do trabalho clínico.

Contudo, a existência humana chega à plenitude ao longo de umasérie de ritos de passagem.

Entre o "dentro" e o "fora" existe o limiar, que envolve a possibi-lidade de passagem de uma zona para a outra, e a imagem da porta estreitaassegura o valor de conquista.

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Diretrizes básicas para aelaboração de uma monografia

Elie Cheniaux*

Como o nome já diz, monografia se refere a um trabalho sobre umúnico tema. Todavia o que representa um tema único é até certo pontoarbitrário, pois qualquer tema pode ser subdividido, formando-se assimnovos subtemas ou temas. A monografia constitui um estudo aprofundado,o que implica numa extensão mínima do texto. No entanto não existe umlimite mínimo de páginas a partir do qual um trabalho passe a ser conside-rado uma monografia.

Há basicamente três tipos de monografia: a revisão bibliográfica, apesquisa empírica e o estudo de caso. No caso da formação analítica daSPRJ, a monografia deve ser uma revisão bibliográfica, já que o estudo decaso já é representado nos relatórios de supervisão e não existe uma tradi-ção nos institutos de psicanálise de incentivo a métodos de pesquisa maissistematizados, como na pesquisa empírica.

Acredito que só deva ser apresentado sob a forma de monografia otrabalho final da formação e não os trabalhos anuais, pois estes estãovinculados a um determinado texto, discutido nos seminários, e não a umdeterminado tema. Sugiro que esses trabalhos anuais sejam resenhas, istoé, resumos comentados. Outra sugestão que gostaria de apresentar é a deque cada candidato tenha um orientador na elaboração de sua monografia.Além disso, o instituto poderia incentivar a publicação da monografia comoum artigo em uma revista científica, tendo o orientador como co-autor dotrabalho. Atualmente é como se as monografias fossem meramente umaexigência burocrática, que se transformam em “arquivo morto”, que fica-rá esquecido para sempre. Dessa forma, não há muita motivação por partedo candidato. Poderia se pensar também numa apresentação pública porparte do candidato de seu trabalho.

* Membro associado da SPRJ.

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A seguir, apresento algumas diretrizes gerais para a elaboração damonografia, que espero que sejam úteis tanto para o candidato como paraos avaliadores dos trabalhos.

AS ETAPAS DA ELABORAÇÃO DA MONOGRAFIA

Em primeiro lugar, é necessário escolher uma área mais geral doconhecimento, a partir da qual será delimitado o tema específico damonografia. Para se escolher esse tema específico, o candidato terá que lerdiversos textos relacionados a essa área mais geral buscando alguma ques-tão mais controversa ou especialmente interessante. A monografia pode serum resumo bem didático sobre determinado tema, um trabalho de atualiza-ção – se é que novos conhecimentos têm sido realmente produzidos nosúltimos anos pelos psicanalistas – ou a análise de pontos obscuros oupouco explorados. A monografia não deve ser uma mera reprodução doque já foi publicado na literatura psicanalítica – um “chover no molha-do”, mas também não tão inovadora ou revolucionária que não possa serassociada com o conhecimento preexistente.

Quanto à metodologia da revisão bibliográfica, devem ser escolhi-das preferencialmente referências recentes, mas sem nunca excluir os estu-dos clássicos e, particularmente, os trabalhos de Freud. Até hoje, e acredi-to que sempre será assim, não é possível escrever um trabalho de psicaná-lise sem citar o seu criador.

Escolhido o tema e selecionadas as referências bibliográficas, sófalta redigir a monografia, como veremos na próxima seção.

A ESTRUTURA DA MONOGRAFIA

As partes que constituem a monografia são as seguintes: título, de-dicatória e agradecimentos, sumário, resumo, introdução, método, corpo,discussão, conclusões, e referências bibliográficas.

É importante que o título transmita qual é o tema da monografia e,muitas vezes, também a metodologia utilizada. Vez por outra encontramostrabalhos cujos títulos são enigmáticos ou obscuros, que não trazem ne-nhuma informação objetiva sobre o que vem a seguir. Isso parece se devera pretensões poéticas, muito nobres porém deslocadas, por parte do autor.Quanto à dedicatória e agradecimentos, estes itens são facultativos e intei-ramente livres: cada um dedica a monografia e agradece o que quiser, fa-zendo justiça a quem merece ou com uma intenção de bajulação.

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No sumário são encontradas as partes ou seções da monografiacom as respectivas páginas. Não confundir sumário com índice, o qualpode faltar na monografia e que relaciona determinadas palavras ou no-mes de autores com as páginas em que estes aparecem no texto. O resumo,de apenas um parágrafo, deve conter o contexto do tema, objetivo,metodologia, resultados, discussão e conclusões. Esses itens podem serexplicitados, no caso de um resumo estruturado.

Na introdução, encontram-se a justificativa, o objetivo e o contextodo estudo. Na seção método da monografia, no caso de uma revisão biblio-gráfica, têm que ser explicitados os critérios de escolha das referências, comoperíodo das publicações, presença de determinadas palavras-chave, tipos depublicação (ensaios clínicos, artigos de revisão) etc. Como instrumentos debusca de fontes bibliográficas podem ser utilizadas bases de dados como oMedline, o PsycInfo, o Lilacs, entre outros. Além disso, a metodologia em-pregada deve ser sempre adequada em relação ao objetivo proposto.

Quanto ao corpo da monografia, a correção no uso da língua por-tuguesa é fundamental. O texto também deve ser claro, sem rebuscamentos,bem estruturado e didático. Não deve haver uma mera “colagem” de in-formações: o candidato tem que ser capaz de correlacionar as informaçõesde fontes diferentes, mostrando as coincidências e divergências. Após qual-quer afirmação no texto que não tenha se originado na cabeça do próprioautor da monografia, é citada a fonte (o autor e o ano da publicação, oualgum número que remete à lista das referências bibliográficas).

Na discussão, é feita uma comparação com os resultados de traba-lhos semelhantes, pode ser incluída uma visão pessoal do autor da monografia,e são apontados caminhos para o futuro, isto é, que tipos de estudo serãonecessários para um aprofundamento da investigação científica sobre o tema.Na conclusão faz-se uma síntese das informações coletadas, distinguindo-se o que ficou bem estabelecido do que ainda precisa ser mais estudado.

Finalmente, a bibliografia tem que ter um padrão, que não precisaser os da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), mas que deveser rigorosamente seguido. A lista de referências é apresentada em ordemalfabética ou em ordem de citação no texto: um ou outro, não uma mistu-ra de ambos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se argumentar que a monografia não deveria ser uma exigên-cia obrigatória no final do curso de formação analítica, já que este tem

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como objetivo tornar o indivíduo apto a exercer a prática psicanalíticano tratamento de seus pacientes e não ensiná-lo a escrever. Todavia, esteraciocínio também seria válido para dispensar os candidatos de apresenta-rem por escrito os relatórios de supervisão. Por outro lado, aqueles queconcluem a formação analítica não vão atuar apenas nos seus consultóri-os, vão se tornar também os novos membros das sociedades psicanalíti-cas, serão as pessoas que vão pensar e moldar a psicanálise do futuro. Eescrever ajuda muito no pensar.

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Monografia – Avaliação

Frida Hoirisch*

INTRODUÇÃO

“Há um vínculo indissociável entre o tratamento e a pesquisa. É oconhecimento que traz sucesso terapêutico. Não é possível tratarum paciente sem aprender algo de novo.”

S. Freud – Suplemento à Psicanálise e Medicina, 1926

Não deve ter sido coincidência que uma das turmas de Formaçãocobrou recentemente dos Docentes, por meio de seu Coordenador, umaavaliação mais objetiva de sua participação. Sem saber desta nossa progra-mação, Docentes e Discentes coincidiram na mesma preocupação. A ver-dade é que mal temos como responder-lhes, visto que não há entre nóscritérios, como os conhecidos nos demais graus de ensino. Devemos enca-rar como natural a cobrança e um desafio encontrar as respostas. Entendoque nos encontramos com uma excelente oportunidade de pensar junto àavaliação nos três segmentos a que nos propomos hoje: Relatório de Su-pervisão, Seminários e Monografia.

DESENVOLVIMENTO

Para meu melhor entendimento começo pela definição dos termos.Trabalho seria qualquer obra realizada. Muito vaga a explicação. Jámonografia é estudo minucioso que se propõe a esgotar determinado tema,relativamente restrito, de alguma área de conhecimento. Pode apresentar-

* Membro efetivo e didata SPRJ.

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se como uma exposição escrita ou oral, para avaliadores. Entre nós, ficouestabelecido no § 1o do art. 25 de nosso Regimento, que o tema deve serescolhido entre trabalhos estudados no ano letivo em curso, em formatoreduzido e de menor fôlego que a do final da formação, apresentado oral-mente em reunião ou simpósio interno, após apreciado e aprovado pelaComissão de Ensino.

De início chama a atenção que não contamos com critérios objeti-vos firmados, indispensáveis para que haja um mínimo de concenso. Aimportância de avaliar o processo ensino–aprendizagem (ou ensinagemcomo quer José Bleger) é óbvia. É impossível dar por completada a Forma-ção Psicanalítica, sem que se avaliem os resultados da análise pessoal, su-pervisão de casos clínicos e sua aplicação nos trabalhos teóricos, práticosou clínicos. Sem tais critérios, acabamos nos valendo de nossa experiência“selvagem”, do improviso e do bom senso – quase que como autodidatas.Debatemos menos que o devido tais temas em reuniões docentes ou emPré-Congressos Didáticos, para que nossas sociedades possam benefici-ar-se de conclusões pós-debates.

Em 1977 Hans Sacks em Meu mestre e meu amigo cita S. Freud“ele tinha o hábito de dizer que um homem que lia sua conferência palavrapor palavra era como o anfitrião que convida um amigo para dar umavolta de carro, depois entra no automóvel e deixa o convidado correndoatrás”. Apresentado em mesa-redonda da SPRJ sobre “Avaliação demonografias em 04/12/04”.

Quando ficou estabelecido que o assunto para a monografia me-nor ficaria restrito aos temas ministrados no ano correspondente, percebe-mos que o fato, de um lado, facilitava a escolha pela limitação dos temas.Do outro tolhe a criatividade por não deixarmos claro como abordá-lo, onúmero de laudas... Mesmo concluindo que a decisão ficava por livre es-colha do candidato, continuava a dúvida se, por exemplo, uma só laudapoderia ser considerada válida.

Talvez essa não fosse a recomendação de S. Freud, conforme cartade 18/01/1928 ao Pastor Pfister :

“Já disse muitas vezes que considero a pesquisa mais importanteque sua significação médica.”

Outra questão ligada a esta: ela deve restringir-se ao texto, dentro daleitura recomendada para o respectivo seminário ou haveria liberdade deampliá-lo com base em bibliografia pertinente?

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Chamou-me a atenção que o já citado artigo 25 traz a explícitarecomendação “simplicidade do trabalho” – o que me parece um equívoco,visto que baixaria obviamente o nível de formação e o estímulo à pesquisapsicanalítica, ao contrário do que ocorre quanto à sua valorização nos Con-gressos da IPA, em conferência, revistas especializadas.

Outra recomendação que chama a atenção é um documento de 7de abril de 2002 que reza que “o candidato deverá apresentar umamonografia teórica”...

No meu entender o mais correto seria sugerir a inclusão de vinheta(s)clínica(s) para ilustrar o teórico, fundamentando o que se pretende de-monstrar.

Claro que a qualidade do conteúdo deverá ser mais valorizada quea quantidade e a apresentação. Vale lembrar a utilidade de aplicar as infor-mações que recebemos recentemente aqui no curso sobre “Teoria e Técni-ca da Pesquisa Científica”.

Se a eleição do tema é muito complexa, o que dizer do desenvolvi-mento?

Esgotar, na medida do possível o assunto com auxílio de bibliogra-fia? Explorar somente parte dele ou buscar um viés com originalidade?Dar provas que o Seminário ministrado foi somente bem aprendido?

Sem especificação de critério de avaliação, qualquer destas opçõespodem ou não ser válidas. Vai variar também conforme o perfil dos mem-bros da Comissão de Ensino da vez. Qual sua linha filosófica de valor? Seestes têm como característica talento, vocação e facilidade em produzirnesta área, a exigência será uma, se o contrário, obviamente será o oposto.Pesará, do mesmo modo, o conhecimento teórico-clínico da equipe.

Segundo Peter Gay em Uma vida para nosso tempo “seu aposento,cada vez mais abarrotado de livros era o único luxo do adolescenteFreud” e “Freud possuía uma veia didática desde os tempos daescola”.

Com esta citação tento justificar que entendo ser muito importantevalorizar o levantamento bibliográfico. Raros são os que publicam traba-lhos científicos sem embasar-se, para então concordar, contestar, discutir etirar suas próprias conclusões.

Conheço poucas exceções. Exemplos: Ferdinand Brandel, incomu-nicável na prisão, durante a 2a Guerra Mundial escreveu o elogiadíssimo“Felipe II e o Mediterrâneo”. Vivi duas experiências muito criativas. Umadeveria constar de uma lauda e tema original – avaliaria o poder de síntese,

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o conhecimento, além de facilitar a correção; outra com 4 a 5 horas deduração e a possibilidade de livre consulta. Local: a biblioteca.

Em carta de 3 de julho de 1912 à K. Abraham diz Freud “em respos-ta à sua pergunta , a saber, como faço para escrever, além de ocu-par-me de minha prática psicanalítica, é simples: é preciso descan-sar da Psicanálise, trabalhando, sem o que não agüento”.

Sabemos que seus escritos e palestras eram redigidos sem necessida-de de correção ou maior elaboração e com muita citação de fontes variadas.Faz sentido, para um gênio.

Agora, como eu trabalho.Quando preparo uma Monografia, mais curta ou mais extensa, enten-

do ser de grande ajuda um estímulo, por exemplo, compromisso de prazopara entrega (externo). E a motivação, que é o interesse (interno) pelo tema.

O 2o passo, a sempre difícil eleição do tema.Parto para o levantamento bibliográfico. Não tenho a onipotência

de lidar com ele sem sua ajuda e acaba sendo excelente oportunidade deenriquecimento, até com o que não aproveito diretamente. Quando emminha formação havia liberdade de eleger qualquer título para os traba-lhos, a criatividade era mais exercitada, agora sendo mais limitada, aambivalência diminui mas é fácil concluir que os primeiros títulos de Se-minário serão priorizados, por dispor de mais prazo para a tarefa.

Quantos livros e textos consultar? O que cada um desejar.

Recordo S. Freud quando consultado por seu paciente, Dr. SmileyBlanton sobre permissão de redigir um trabalho com seu materialde análise, obteve como resposta : “V. tem completa liberdade deescrever o que quiser a respeito.”

Nas leituras sempre haverá uma frase que chama especialmente aten-ção para destacar abaixo do título geral ou no início de cada subtítulo.Sigo com a justificativa da importância deste tema, para interesse do leitor.

Reparo como cada autor focalizou a Introdução, colho subsídiosse concordo com eles e destaco meu ponto de vista. Sigo com o desenvolvi-mento , que é propriamente o corpo do trabalho. Em cada etapa concor-do, discordo, crio, “debato” com os autores consultados os prós e os con-tras do que desejo defender e se cito este ou aquele autor nomeio-o e arespectiva obra, incluindo-a na bibliografia que relaciono no início ou nofinal do trabalho, dentro de uma regra que já conheço.

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Pela nova regra da SPRJ a monografia é avaliada pela comissãocorrespondente para, a seguir, ser apresentada oralmente ao público in-terno para comentários. Fazendo uma certa blague eu diria que com afacilidade de encomendá-la à profissionais para elaborá-la (10 reais alauda e 4 anos de pena, se for pega a fraude) considero útil que haja umorientador para acompanhar sua produção, mesmo que com número re-duzido de contatos.

Se por um lado é esperada a resistência ao novo esquema, isto é,apresentação aberta ao público, por outro termina-se por constatar quedificilmente alguém saberá mais do assunto para defendê-lo do que quemestudou-o mais profundamente. É ocasião de usar dos aportes para agre-gar e enriquecer o trabalho. Caso haja decisão de complementar com ilus-tração clínica, assegure-se que esteja bem trabalhada por boa prática deconsultório ou supervisão prévia.

Entendo que um dos objetivos deste novo modelo é o do CorpoSocietário conhecer melhor o processo de formação de seus candidatos.A conclusão é um acabamento – o que o autor deduziu do caso teórico-clínico como um todo.

Em trabalhos de mais fôlego para congressos ou publicação emrevistas científicas são exigidos resumo em português e/ou idioma(s)estrangeiro(s). Considero a extinta ficha-resumo extremamente válida.Curioso que uma das turmas agora em formação solicitou seu retorno ouusá-la em forma de resenha.

Ocorre que, provavelmente, sem perceber tal utilidade, em vez deaprimorarmos sua feitura, aprendendo a separar o essencial do acessório,acabaram sendo retiradas completamente.

Para preencher tal requisito só restará, mais uma vez, a auto-apren-dizagem.

Este item e o índice são organizados no início ou no final do traba-lho. Finalmente, nunca é demais lembrar que dificuldades em elaborarmonografias menores ou maiores podem ser trabalhadas na análise e queé da maior utilidade discutir critérios mais objetivos em todos os níveis daformação. O autodidatismo e o excesso de subjetividade torna a correta eindispensável avaliação impossível.

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Reflexões sobre o ato de escrever*

Victor Manoel Andrade* *

O dicionário Houaiss define monografia de forma genérica: “Tra-balho escrito acerca de determinado ponto da história, da arte, da ciência,ou sobre uma pessoa ou região.” O Aurélio é mais específico: “Disserta-ção ou estudo minucioso que se propõe esgotar determinado tema relati-vamente restrito.” Na SPRJ tem prevalecido o significado um tanto impre-ciso do Houaiss, ou seja, de trabalho em geral, apesar de receber a denomi-nação de monografia apenas aquele a ser avaliado com o propósito dehabilitar o candidato do IEP a ascender à categoria de membro associadoda SPRJ. É nessa perspectiva de trabalho promocional que o tema deve sertratado num simpósio voltado para a avaliação da formação psicanalítica,sendo desejável que não seja abordado isoladamente, mas articulado comtodos os componentes do processo de formação, que inclui análise pessoal,supervisões clínicas e seminários teóricos.

A análise pessoal, por definição, não é passível de avaliação; o de-sempenho nas supervisões clínicas é avaliado por meio de relatório de su-pervisão oficial; os seminários teóricos, através de monografias.

Proponho que invertamos os papéis, e em vez de avaliação demonografia, examinemos a necessidade de haver monografia a ser avalia-da. A questão da produção de trabalho de conclusão do curso é um pro-blema que tem perpassado toda a história da SPRJ, desde a primeira tur-ma, sem jamais ter sido solucionado de maneira convincente. Não temsido raro alunos deixarem de escrever seu trabalho final e abandonarem asociedade por este motivo. Dou como exemplo minha própria turma: ape-sar de a formação ter-se encerrado em junho de 1969, os trabalhos sócomeçaram a ser entregues em 1972, juntamente com os de candidatos dediversas turmas anteriores, depois de muitas cobranças e pressões que in-cluíam ameaças de exclusão. Pode-se imaginar o que uma intimidação des-

* Para apresentação em mesa-redonda na SPRJ sobre “Avaliação de monografias”, em 4.12.04.

** Analista-Didata do IEP da SPRJ.

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sa natureza representava na época, em que se iniciava o grande boom dapsicanálise, quando ser ligado à IPA, mesmo na condição de candidato,conferia status indiscutível e consultório cheio.

Para que a exigência da monografia vigore até hoje, apesar de conti-nuar sendo problema não solucionado depois de quase meio século de des-gastes intermináveis, é de se supor que constitua fator de importância crucialpara a formação psicanalítica. Mas, seria tão transcendental assim? Teriapapel tão relevante para a qualificação de psicanalistas? Parece que estasquestões merecem tornar-se tema de reflexão do corpo docente.

Não há dúvida quanto à relevância dos outros itens. A análise pessoalestá acima do bem e do mal, pairando sobre qualquer critério de avaliação.O relatório de supervisão, por sua vez, é um meio objetivo e seguro para seter idéia da compreensão que o candidato tem do processo psicanalítico,tanto do ponto de vista técnico quanto do teórico. Por ele se pode ter noçãoda qualificação do candidato para o exercício profissional da psicanálise.Penso que não se pode dizer o mesmo da monografia como critério de ava-liação da formação teórica do aluno, uma vez que focaliza um único assun-to, ficando de lado a ampla gama de concepções estudadas durante cincoanos. Acresce que o tema isolado costuma ser desenvolvido de modo super-ficial, geralmente não conduzindo a rigorosamente nada, a não ser o cum-primento de uma exigência burocrática. É raro, raríssimo mesmo, ser pro-duzida monografia que, por seu mérito, possa ser publicada em revista quetenha avaliadores imparciais e que desconheçam o autor, como, por exem-plo, a Revista Brasileira de Psicanálise. Em regra geral, as monografias sãopara efeito interno, do conhecimento apenas da Comissão de Avaliação.

Com as exceções de praxe, as monografias não preenchem a finali-dade de avaliar o aluno no seu percurso de cinco anos na formação teórica.Se é assim, por que continuar exigindo dos candidatos um desgaste compouca, ou nenhuma, serventia? Sugiro que se pense em outra forma de ava-liar efetivamente a formação teórica, pois as monografias não me parecematingir esse objetivo. Com isto, não pretendo excluir a monografia de umprocesso de avaliação, mas apenas sugerir que deixe de ser obrigatória, tor-nando-se opção para quem preferir fazê-la a submeter-se a outros possíveismétodos de avaliação de conhecimentos teóricos.

Tem prevalecido no IEP o pressuposto de que todo psicanalista éobrigado a saber escrever monografias, sem se questionar a justeza de talidéia. Penso que a prática clínica da psicanálise não inclui a necessidade deescrever bem, à semelhança de outras atividades profissionais, como a medi-cina e a engenharia. De um modo geral, a exigência da monografia para o

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psicanalista se espelha no modelo acadêmico, sem ver que os programas depós-graduação das universidades se destinam aos que pretendem seguir car-reira universitária, seja no magistério, seja na pesquisa. Quando alguémentra num programa de pós-graduação já traz consigo um projeto a sercumprido durante alguns anos de pesquisa, cuja conclusão é publicada emmonografias, sob a forma de dissertação ou tese, objetivo final já previstono plano inicial. A graduação no IEP tem finalidade diversa, pois se destinaà prática clínica da psicanálise. É ilusão pensar que a psicanálise é curso depós-graduação, quando suas especificidades a levam a ser estudada muitosuperficialmente fora das instituições psicanalíticas, à medida que seus as-pectos teóricos dificilmente podem ser apreendidos adequadamente sem avivência clínica. O fator diferencial das instituições filiadas à IPA é justamen-te a ênfase na vivência clínica, não só pela análise didática, mas tambémpelas supervisões individuais, seminários clínicos e de teoria da técnica. Aprática clínica da psicanálise, por sua característica peculiar de se direcionarà relação intersubjetiva, requer do analista sobretudo capacidade de com-preensão empática, e não propriamente a intelectual relacionada à escrita. Éesperado do analista que tenha sensibilidade para compreender os estadosemocionais dos pacientes e saiba falar o suficiente para modificar esses esta-dos, fala que deve refletir um conhecimento teórico já integrante de suapersonalidade, como componente de seu ego inconsciente. Em sua atividadeclínica, é desejável que tenha capacidade de ouvir muito, de falar apenas onecessário e de não escrever nunca. A escrita é abolida na situação analítica,não sendo lícito sequer tomar notas do que se ouve.

Se o analista se inclinar a outras atividades além das básicas para asquais se qualificou no curso de formação, como a docência, neste casopode-se pensar em processo de pós-graduação que envolva o saber escre-ver. Por exemplo, se a situação analítica for objeto de investigaçõesconducentes a reflexões que mereçam ser comunicadas aos colegas, impõe-se o uso da escrita. Nestas circunstâncias há necessidade de saber redigirum texto científico, e o próprio analista deve ter noção de sua capacitaçãopara fazê-lo. Se souber lidar bem com a linguagem escrita e sua dificuldadeconsistir apenas em não dominar aspectos formais da literatura científica,não será difícil superar essa deficiência, seja consultando colega mais ex-periente, seja lendo textos sobre o assunto, ou freqüentando cursos rápi-dos como o que foi ministrado recentemente no IEP. Mas se o problematranscender esses aspectos formais e dizerem respeito à correção da lingua-gem e à organização do pensamento, neste caso a orientação deve ser deoutra natureza, pois envolve a própria capacidade de comunicação escrita.

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A experiência tem demonstrado que a capacidade de escrever bem não seadquire de uma hora para outra. Ao contrário, implica longo processoque começa no hábito, adquirido geralmente na adolescência, de ler porprazer uma grande quantidade de bons autores, cuja maneira de lidar comas palavras passa a ser observada depois de certo tempo. Além disso, épreciso ter conhecimento das normas gramaticais básicas. Além do atopassivo da leitura, tem de haver um desejo de transmitir ativamente ospensamentos que surgem na mente do leitor sistemático. A realização des-se desejo deve ser tentada desde cedo, pois a fluência no escrever advém doexercício, ou seja, da chamada transpiração, palavra que passou a fazerparte do jargão de escritores e artistas depois de usada, supostamente pelaprimeira vez com esta finalidade, por William Faulkner.

Inicialmente, os autores preferidos são escolhidos como modelos aser imitados. Quem tem o hábito da leitura e a prática de escrever não costu-ma em regra confrontar-se com dificuldades maiores relacionadas à falta doque dizer, pois as idéias costumam brotar naturalmente a partir do que foilido e armazenado na mente como material inconsciente. O acervo mnêmicoresultante da apreensão do que se leu se junta a estruturas afetivas e ideativasinconscientes compostas por representações de situações vivenciadas duran-te toda a vida. Essa junção desencadeia um processo de elaboração incons-ciente que acaba por despontar na mente consciente como inspiração e idéiaoriginal pronta para ser transmitida. Esta é a região em que se formam fan-tasias inconscientes — estas, se sua trajetória progressiva não for impedidapor mecanismos de defesa, desabrocham espontaneamente no pré-conscien-te, onde se tornam conscientes como idéias criativas. É também nesta região,ponto de interseção entre o id e o ego inconsciente, que as fantasias incons-cientes tomam um sentido regressivo condicionado pelo sono para produziros sonhos; é ali igualmente que, durante a vigília, o impedimento por meca-nismos de defesa da marcha progressiva no sentido do pré-consciente podelevar à formação de sintomas. Enfim, é a grande usina psíquica geradora dacriatividade, que se manifesta forjando fantasia, sonho, sublimação e sinto-ma. Segundo Freud, Goethe ao escrever tinha a sensação de que as idéiasestavam prontas em sua cabeça, não precisando criá-las conscientemente.Respeitadas as idiossincrasias e circunstâncias de cada um, fenômeno seme-lhante se passa com as pessoas que lêem por prazer e escrevem habitualmen-te, desde que não o façam sob encomenda, pois a obrigação de redigir sobretema não escolhido espontaneamente costuma descaracterizar o impulsonatural que leva ao desejo de escrever.

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Este me parece ser o modo como se desenvolve a capacidade natu-ral de escrever bem. Mas o fato de não ter adquirido o hábito de boaleitura desde cedo não impede alguém de desenvolver essa capacidade emidade posterior, desde que passe a ler com prazer e atenção e se exercite nohábito de escrever. Todavia, acredito que a escrita adquirida tardiamentenão vá ter a mesma espontaneidade daquela surgida ainda nos bancosescolares, ressalvadas algumas peculiaridades relacionadas a talentos espe-ciais. Guardadas as devidas diferenças, parece-me tratar-se de fenômenoanálogo ao que acontece com a linguagem falada. Sabe-se que qualquerbebê normal nasce preparado para reproduzir qualquer fonema humano,se for exposto desde cedo a sua audição. Depois de ouvir os fonemas pró-prios de determinada língua durante certo tempo, a criança os transformaem idioma nativo, perdendo progressivamente a capacidade de reproduzirfonemas diferentes. Quanto mais tempo levar praticando apenas a línguanativa, maior será a dificuldade de reproduzir fonemas não-familiares, daío surgimento do sotaque. Similarmente, os escritores costumam ter sidograndes leitores na juventude e cedo se dedicaram à tarefa de escrever.

Não se pode deixar de destacar a importância do papel desempe-nhado pelo prazer obtido na leitura, pois é dele que depende a facilidadeda elaboração inconsciente das idéias componentes das fantasias inconsci-entes que constituem o cerne da criatividade. Carlos Heitor Cony, a pro-pósito de pessoas que buscam inspiração para escrever na leitura da Bíbliae em autores clássicos, diz que sua escrita não depende de busca de inspira-ção, mas apenas de transpiração: “Gosto de ler a Bíblia e meus autorespreferidos, não para buscar adjutório espiritual ou ciência, mas por pra-zer, da mesma forma que fumo charutos e gosto de outras coisas.” (Folhade São Paulo, 01.12.04). O escritor confirma o que foi dito acima, ou seja,que o simples prazer na leitura é capaz de levar à inspiração de formanatural e inconsciente.

Mas devo ressalvar que essa espécie de inspiração se relaciona aproduções literárias. Quando se trata de textos científicos, além do conví-vio com bons autores, que fornece a riqueza da elaboração inconscienteindispensável ao bem escrever, há que se ter familiaridade com o conheci-mento científico que se quer transmitir, além de se ater a aspectos formaispróprios da linguagem científica.

Em suma, considerando que escrever bem faz parte de processo quedemanda grande tempo de exposição à leitura e à escrita prazerosas, pensonão ser justo exigir de alguém a obrigação de produzir um texto para oqual não se sente especialmente motivado, principalmente quando com tal

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exigência se pretende avaliar a competência para o exercício de atividadesem ligação com a necessidade de escrever bem; principalmente quandoesse texto não contribui significativamente para avaliar a formação teóri-ca de um candidato.

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Avaliação de semináriosteórico-clínicos

Paulo César Queiroz Hermida*

Membro Efetivo e Analista Didata da SPRJ

INTRODUÇÃO

Freud disse ser a Psicanálise a profissão impossível; parafraseando-o, digo ser a Avaliação a tarefa maldita, mormente no Rio de Janeiro, Brasil.

Na tentativa de expor alguns pontos para o plenário discutir estetópico, eu gostaria de tocar em algumas generalidades e singularidades daformação de Psicanalista no IEP de nossa Sociedade.

GENERALIDADES:

a) Seminário Clínico é Supervisão Coletiva.b) Supervisão e Análise Pessoal são executadas por Analista Didata.c) O Analista Didata é uma função e um status atribuídos a um

Membro Efetivo da SPRJ por uma comissão de Analistas Didatas (3 ou 4)frente a cada solicitação de titulação, em reunião do Corpo Docente doIEP e referendado numa Assembléia Geral. Sua função no ensino do IEP écoordenar seminários teóricos e clínicos, entre outras.

SINGULARIDADES:

a) Nossas turmas de formação têm um aluno Representante de Tur-ma escolhido anualmente pela própria turma.

b) Nossas turmas têm um Docente ou Didata Coordenador de Tur-ma, também escolhido anualmente pelos alunos.

* Membro efetivo e didata da SPRJ.

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c) Docente é uma função e um status atribuído a um Membro Asso-ciado ou Membro Efetivo por uma comissão de Didatas ou Docentes (3 ou4) frente a cada solicitação de titulação, em reunião do Corpo Docente IEPe referendado numa Assembléia Geral. Sua função no ensino do IEP é coor-denar Seminários Teóricos entre outras, no entanto, clínicos não.

d) Seminários no Curso de Formação em Psicanálise do Instituto deEnsino da Psicanálise (IEP) da SPRJ são encontros das turmas de formaçãocom um Coordenador (Docente ou Didata) com a duração de 1h e 30min,geralmente à noite, em que se discute, sentados em círculo, temas de teoriapsicanalítica, teoria da técnica ou caso clínico, previamente preparados.

e) A execução do Programa de Formação de Psicanalistas é organi-zada semestralmente pelo Coodenador de turma e seus alunos que esco-lhem os coordenadores de seminários entre os Didatas e os Docentes doIEP da SPRJ, segundo preferências.

Frente a estes fatos penso termos de subdividir o nosso título emAVALIAÇÃO DE SEMINÁRIOS CLÍNICOS e AVALIAÇÃO DE SEMI-NÁRIOS TEÓRICOS.

II – AVALIAÇÃO DE SEMINÁRIOS CLÍNICOS

Seminários Clínicos são Supervisões Coletivas, a meu ver.Na minha prática, como coordenador de Seminários Clínicos, faço o

oposto do que é comum em Supervisões Coletivas em Congressos de Psica-nálise. Frente a cada ponto que julgo importante para a avaliação do casoou do momento da relação analítica, interrompo a narrativa do apresenta-dor e abro a discussão para a turma, tendo o cuidado de opinar por último.Caso algum aluno não opine espontaneamente, solicito sua opinião.

No meu entender, o nosso pensar, enquanto analisamos, percebe osblocos comunicativos dos pacientes, faz avaliações — aqui é que a históriado paciente e daquela análise, a teoria psicanalítica e a teoria da técnica emnós incorporadas e a nossa experiência, estando em atenção flutuante,agem, e concluí se é o momento para interpretar, intervir, fazer uma constru-ção ou calar a continuidade das comunicações vão nos dizer se foi corretaou não nossa atitude e, caso tenhamos errado, se vai dar para corrigir emalgum momento. Tudo isto envolto no trinômio regressão–transferência–contratransferência.

Ao conduzir daquela forma o Seminário Clínico, penso ser possívelcomunicar aos alunos, intuitivamente, este funcionar psicanalítico, bemcomo avaliar o entendimento que cada aluno tem do material clínico espe-

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cífico e da clínica psicanalítica em geral. Também sinto, com este procedi-mento, mais facilidade em avaliar o entrosamento e a dinâmica da turma.

III – AVALIAÇÃO DE SEMINÁRIOS TEÓRICOS

Com relação a Seminários Teóricos gostaria de fazer algumas con-siderações iniciais. Considero que, para a coordenação deste tipo de Semi-nários, o coordenador, se arrogantemente ou não (esta discussão ultrapas-saria em escopo e limite esta modesta introdução às discussões e é temapara Metodologia Científica), deve conhecer e gostar do assunto (a meuver o fato mais importante), sua relevância para a Formação Psicanalítica,suas idéias principais e seus pontos controversos e/ou obscuros. Deve terdentro de si o que poderá ser tocado e discutido, dentro do número deencontros que dispõe para a abordagem do(s) tema(s).

Na coordenação destes seminários inicialmente estimulo a opiniãodos alunos sobre o tema, sua compreensão, suas dúvidas e incongruências.Tento esclarecer as dúvidas e as incongruências e caso tenham pulado al-gum ponto que julgo primordial ou relevante, levanto o assunto, colocoem discussão tento explicar o não-entendido e enfatizo sua relevância.

No manejo com alunos, comando um pouco os exibicionista e esti-mulo os calados (intimidados ou tímidos). Isto me facilita avaliar melhor oentrosamento e a dinâmica da turma. Considero que os que não prepara-ram o texto tem, assim, uma vivência dinâmica em grupo, do texto e suasprincipais idéias. E é nas Reuniões de Coordenação que as turmas, frente ae para o seu Coordenador, avaliam os Coordenadores de Seminários.

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Sobre o método de semináriosna organização do ensino da psicanálise

Miguel Chalub*

INTRODUÇÃO

A forma de se transmitir o conhecimento e sua eficácia sempre foramuma preocupação daqueles que se dedicavam ao ensino. O objetivo maiorera encontrar uma maneira de passar o conhecimento dos que o tinhampara aqueles que não o detinham e o método principal era a exposição queo mestre fazia perante os alunos complementada pelas perguntas feitas aoexpositor. Toda a transmissão do saber era assim feita. Por vezes, não faziapropriamente uma exposição mas sim uma leitura comentada e explicadade um livro magistral. Com efeito, a obra era lida passo a passo e o profes-sor explicava seu conteúdo, comentava-o e esclarecia as dúvidas suscitadas.Evidentemente só as obras dos grandes mestres eram erigidas na categoriade livro a ser exposto. Assim se dava o ensino na Antiguidade e na IdadeMédia. Não havia o que viria a ser denominado “aulas práticas”. Quando oconhecimento requeria uma atividade prática (medicina, engenharia), tal eraaprendido no fazer. Instruídos no domínio cognitivo, cada um partia para aaquisição do domínio da ação ao exercitar suas atribuições.

No final da Idade Média, com a nova realidade do Mundo quecomeçava a transcender as fronteiras da Europa, surgem os primeiros ru-dimentos das ciências naturais, físico-experimentais. Para tanto, os auto-res clássicos – gregos, romanos e, em certa áreas, os árabes, não tinhamnada a ensinar ou muito pouco. A descoberta do Novo Mundo, a chega-da dos europeus à India e à China, o contato com fenômenos até entãodesconhecidos, as grandes navegações, a acentuação do comércio mun-

* Membro associado da SPRJ.

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dial, a emergência do capitalismo mercantil tornaram necessária a com-preensão das leis da Natureza e por meio desse conhecimento, o domíniodos elementos naturais. Surge, então, o método experimental. A Física, aQuímica e a História Natural inauguram o concerto das ciências. Ven-cendo a enorme resistência da tradição, ao lado das aulas expositivas,iniciam-se as aulas práticas. As aulas expositivas deixam de ser meroscomentários dos autores consagrados, para serem verdadeiras explana-ções do conhecimento. As aulas práticas começam a ser demonstraçõesde como funcionam as leis da Natureza. Tudo isto caminha muito lenta-mente e sofre grande impulso a partir do final do Século XVIII e início doSéculo XIX. O que hoje conhecemos como ciências naturais, físico-expe-rimentais (Física, Química, Biologia) constituem seu corpo da doutrina.Cada uma delas, se desdobram em inúmeras outras delas derivadas, deacordo com as necessidades da vida prática.

A MEDICINA E AS CIÊNCIAS DO PSIQUISMO

Como não podia deixar de acontecer, a Medicina, de mera ciênciaempírico-observacional, passa a ser também conhecimento experimenal.Todo o conhecimento médico acumulado pela Humanidade desde seusprimórdios até o Século XIX seria apenas um grão de areia diante da mon-tanha construída. A morfologia de Bichat recebe o influxo da Fisiologia deClaude Bernard. À forma, se junta a função, o que só seria possível com aexperimentação. Não era mais possível dar conta da complexidade darealidade humana com apenas os dados da Psicologia Racional, capítuloda Filosofia. A revolução industrial , a ascensão da burguesia, o abandonodo campo, o tumultuado crescimento das cidades, as fábricas, o desapare-cimento do mundo feudal, o surgimento do operariado exigiram novasciências: as ciências humanas. A Fisiologia implode em Psicologia, Socio-logia, Pedagogia, Antropologia, Economia Política e outras. A Psicologiapassa a ser também experimental (Weber, Wundt, Fechner).

A ORGANIZAÇÃO DO ENSINO NO FINAL DO SÉCULOXIX E INÍCIO DO SÉCULO XX

O ensino e os métodos de aprendizagem evoluem lentamente. Du-rante o Século XIX continuam as aulas expositivas dadas pelos mestrescom muito pouco do que podemos chamar de aulas práticas. Na verdade,esta forma de transmissão de conhecimento era considerada de categoriainferior e os que as ministravam nem mereciam o título de professor: eram

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monitores, instrutores, preparadores, enquanto os outros eram “lentes”(os que lêem). A história, por exemplo, da Faculdade Nacional de Medici-na no Rio de Janeiro vem isto demonstrar. As ciências básicas eram pura-mente livrescas com pouquíssimas demonstrações práticas sem falar nainexistência de pesquisa e investigação científica. O famoso RelatórioFlexner, no inicio do Século XX, fechou nos Estados Unidos as faculdadesde Medicina de “fundo de quintal” e de “fins de semana” e exigiu a intro-dução das ciências experimentais no ensino básico de Medicina. Tal revo-lução foi aos poucos adotada entre nós. Ao longo do Século XX o ensinode Medicina e das profissões que com ela tinha afinidade – entre elas, aPsicologia – ficou assim organizado: aulas expositivas ministradas, emgeral, pelos professores, seus assistentes e substitutos, aulas práticas, mi-nistradas principalmente por assistentes e auxiliares. No ensino de Medi-cina, as aulas práticas eram inicialmente de laboratório e depois, no cicloclínico, com os pacientes. O termo “seminário”, por vezes, utilizado, nãotinha especificação; ora, era uma modalidade de aula prática, ora umadiscussão em grupo, ora uma exposição feita por alunos ou ainda umexercício ou estudo coletivo.

A CONTRACULTURA DOS ANOS 60

Na década de 60 do século passado como expressão da revoluçãocultural, da contestação geral das coisas estabelecidas, da contracultura,este modelo de ensino foi posta abaixo pois baseava-se na idéia do saberdos professores e da ignorância dos alunos. Ou seja, ensina quem sabe,aprende quem não sabe e precisa saber. Levanta-se a bandeira de que osprofessores não sabem tanto assim nem os alunos são tão ignorantes. Asaulas expositivas, expressão acabada desta. assimetria, são objeto de vio-lenta contestação e não são mais aceitas. Passam a ser símbolo da domina-ção e opressão dos professores. Os alunos têm também poder e a autorida-de docente é solapada. Aula teórica ou aula expositiva são coisas ultrapas-sadas, medievais, de um tempo em que uns mandavam e outros obedeci-am. O modelo igualitário agora adotado é o “seminário”. O desprestígiodas aulas teóricas é tanto que atinge até a organização espacial do ensino.Não mais os professores em seu tablado falando aos alunos mas sim todossentados no mesmo nível, de preferência em círculo.

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O SEMINÁRIO

O termo seminário – lugar onde se guardam e cultivam sementes –foi aplicado pelo Concílio de Trento (1545-1563) às novas escolas de for-mação de sacerdotes. Até então os religiosos católicos não tinham umaformação escolar uniforme. Enquanto alguns vinham de faculdades deTeologia das Universidades, outros eram ordenados semi-analfabetos. Oconcílio impôs para todos o estudo regular em seminários. O vocábulo foiadotado para o ensino leigo e, ainda que com variações, passou a designaruma forma de transmissão de conhecimento em que não haveria a locuçãodos professores mas sim uma exposição de tema pelos alunos com debates.O tema seria “preparado” anteriormente pelos alunos ou por grupos dealunos. Os professores seriam uma espécie de moderador ou animadorpodendo também fazer suas “colocações”. Ficava assim bem caracteriza-do que os professores não eram os detentores do saber que seriam impos-tos aos alunos inscientes mas que todos compartilhavam do saber–poder.

Em pouco tempo os métodos dos seminários caíram em descréditopor variadas razões:

1. Os alunos não “preparavam” os temas ou uns poucos o faziam.2. Se alguns fossem designados previamente para tal preparação,

não compareciam ou sempre havia uma desculpa bem colocada para onão-estudo.

3. Quase sempre era mera leitura acrítica de textos copiados doslivros.

4. As exposições orais, por deficiências pessoais ou falta de voca-ção didática, eram, muitas vezes, frágeis, inconsistentes e incoerentes.

5. Por estas e outras razões, poucos alunos prestavam atenção aoque era exposto.

6. Os professores, na maioria dos casos, mantinham-se alheios epsiquicamente ausentes.

7. Era uma maneira fácil de o professor não preparar suas aulas.8. Havia nítida transferência docente dos professores para os alu-

nos, sentindo-se os primeiros desonerados do estudo aprofundado do tema.9. O compromisso de o professor ensinar e de os alunos estudarem

ficava nitidamente borrado.10. Percebia-se uma acentuada diminuição do nível geral do co-

nhecimento. Evidentemente sempre houve as “honrosas exceções”.

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PROPOSTA DE UM NOVO SEMINÁRIO

A idéia de ensino por seminários tem sua validade e não pode ser sim-plesmente descartada. Expurgada da contaminação ideológica contracultural,podemos restabelecer a máxima parodiando Bernard Shaw: “quem sabe ensi-na, quem não sabe aprende”. Podemos considerar dois tipos de seminário: oteórico e o clínico.

1. ROTEIRO PARA UM SEMINÁRIO TEÓRICO

a) Fornecimento do texto pelo professor:O texto deve ser escolhido em profundidade e extensão tais que

estimulem a leitura. Não deve ser muito longo nem muito “pesado”. Lei-turas longas e muito profundas devem se deixadas a conta do interesse decada um.b) Exposição inicial feita pelo professor:

O professor deve expor para os alunos a história do texto, sua con-textualização e vicissitudes, a fundamentação doutrinária e epistemológica.c) Os alunos, na data previamente marcada, farão a exposição comentadado texto:

Cada aluno presente dissertará sobre um trecho do texto, em se-qüência determinada pelo professor. Cada aluno deve ser estimulado acomentar o texto por ele apresentado.d) Durante apresentação, todos debatem e o professor intervém nos mo-mentos oportunos.e) O professor faz as considerações finais:

O professor resume e sintetiza o texto, dá seu significado e suaimportância, seu papel semeador e os desdobramentos que teve.

2. ROTEIRO PARA OS SEMINÁRIOS CLÍNICOS

Os seminários clínicos podem ser entendidos de duas maneiras: su-pervisão coletiva e apresentação de caso clínico.

Na supervisão coletiva, o supervisionando expõe o caso, faz suasapreciações a que se segue comentários do professor, pareceres dos alunospresentes, debates. O professor deve fazer um fechamento com sua opinião.

A apresentação de caso clínico supõe sempre um relator previa-mente designado. Este expõe o caso e faz sua apreciação. Um ou doiscomentadores dão seu ponto de vista. Estes comentadores podem ter sidoanteriormente designado e conhecerão o caso ou serão escolhidos na hora

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A psicanálise e o seu espaço*

Observações sobre um lugar impossível

Jaques Vieira Engel**

R E S U M O

Através das características específicas que o autor descreve comoconstitutivas do espaço psicanalítico, são assinaladas asdificuldades para a construção e a manutenção deste espaço,seu papel na identidade psicanalítica, as razões pelas quais olugar da psicanálise no seio das outras disciplinas científicas étão especial, incômodo e instável.É acentuada a importância desde “lugar” em contraposição àda interpretação e de outros aspectos mais “instrumentais” datécnica.

Palavras-chave: espaço psicanalítico; características;construção; identidade psicanalítica.

S U M M A R Y

The author, by means of specific characters described asconstitutive of psychoanalytical space, points out the difficultiesto the construction and maintenance of this space, its significanceto the psychoanalytical identity, the reasons by which the placeof psychoanalysis in the midst of others scientific disciplines isso special, awkward and unstable.The importance of this “place” is emphasized in confront withthat of interpretation and others more” instrumental” featuresof technique.

A R T I G O S

* Publicado originalmente no Boletim Científico da SPRJ Vol 17 (1), 1996.

** Membro efetivo, analista e docente da SPRJ.

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Difícil imaginar uma disciplina que tenha marcado mais profunda-mente este século do que a Psicanálise. A influência que ela exerceu sobrea Antropologia, Sociologia, História, Filosofia, Artes, Linguística, Etologia,enfim, sobre a cultura em geral, para não falar em seu campo próprio deação na Psicologia e na Medicina e a extraordinária difusão que teve entreo público em geral, entra em flagrante contraste com o fato de seu lugarentre as disciplinas científicas não ser nem clara nem facilmente delimitável.Onde colocá-la? Entre as ciências da natureza? Entre as ciências do espí-rito? Reduzir-se-á a psicanálise a uma simples hermenêutica, a uma ética ea uma estética da existência como propõe Birman (1993)? Ou, como que-ria Ricoeur, a uma hermenêutica, situada num campo epistemológico pró-prio não identificado nem com o histórico motivacional no sentido deDilthey, nem com o causal no sentido das ciências da natureza? Ou ainda,como sugere Laplanche de uma forma muito sutil, situando-a entre odeterminismo historiográfico e a hermenêutica? Seja lá como for, é de sesupor que esta dificuldade de localizar a psicanálise esteja relacionada dealguma maneira com sua natureza essencial. A questão do lugar da psica-nálise ou da psicanálise fora do lugar habita o ideário psicanalítico comuma tal insistência que somos obrigados a colocá-lo em debate, principal-mente ante a prática indiscriminada de psicoterapias ditas “psicanalíticas”ou simplesmente de “psicanálise”, adjetivada ou não.

Parece-me estranhamente paradoxal que a psicanálise tenha se tor-nado tão difundida e aceita entre as disciplinas acadêmicas. A meu ver, “apeste”, como Freud a chamou uma vez, não tinha e não tem ainda por queser bem recebida. O seu lugar é determinado por características tão singu-lares, como assinalaremos no seguimento, que a expectativa de rejeiçãodeveria ser sempre a mais provável. Entendemos o sucesso que a psicaná-lise teve, em anos que se passaram, como produto de um mal-entendidoessencial. A psicanálise é incômoda, incômoda para as outras disciplinasque por isso tendem a englobá-la aos seus parâmetros e incômoda para simesma e por isso ameaçada, permanentemente, não apenas em relação àafirmação de sua identidade, mas de perdê-la depois de conquistada.

Muitos psicanalistas tendem a considerar, com uma certa razão,como uma ameaça, o intercâmbio irrestrito da psicanálise com outras dis-ciplinas, principalmente com as mais próximas, como a Psiquiatria. NoSimpósio de Haslemere (1976) cujo tema era “A Identidade do Analista”

Key words: Psychoanalytic space; features; construction;psychoanalytic identity.

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as questões principais colocadas diziam respeito à ameaça de “diluição” eperda de essência da psicanálise pela associação com a psiquiatria, com asinstituições acadêmicas, enfim, pela sua integração na cultura. Nas pala-vras de Gitelson, analista considerado como uma espécie de consciência dapsicanálise americana: “Cooperação interdisciplinar, na sua forma presen-te, tem freqüentemente significado diluição senão desaparecimento totaldos princípios essenciais e perda da identidade funcional específica dospsicanalistas”1 , ele não se colocava contra esta cooperação que julgavapositiva para as outras disciplinas mas manifestava reservas quanto aoimpacto dessa aliança sobre a própria psicanálise devido a um turvamentodos limites tanto da técnica quanto da teoria. Esta posição guarda umaestreita relação com observações feitas pelo próprio Freud muitos anosantes no seu “Estudo Autobiográfico”, quando, apesar de orgulhoso comas inúmeras aplicações da psicanálise a outros campos de conhecimento ecom o reconhecimento da psicanálise em círculos acadêmicos, apontavapara a perda de essência e diluição implicadas2 . Outros psicanalistas3 ,acham que a integração da psicanálise com a filosofia, com a sociologia,com a crítica literária, ou seja com o que for representa uma evoluçãoinevitável e que seria um erro a oposição a ela. A questão, sob este pontode vista, está em como aceitar, as novas aplicações que surgem para a psi-canálise e ao mesmo tempo guardar a singularidade da descoberta de Freudcomo uma prática insubstituível. Para eles a identidade do psicanalistapermanece de fato na descoberta, que cada um precisa fazer por si próprio,da experiência psicanalítica, identificada com a descoberta freudiana.

Passados quase 20 anos do Simpósio de Haslemere, anos duranteos quais a discussão permaneceu ativa em praticamente todos os congres-sos de psicanálise, a questão ainda permanece em aberto. Podemos dizermesmo que, se naquele Simpósio, a posição da psicanálise entre as discipli-nas era objeto de questionamento, sob o ponto de vista teórico, houvepelo menos concordância em relação à importância da experiência psica-nalítica , experiência tão singular que foi comparada por uns a uma expe-riência de conversão4 , enquanto outros a identificavam com um método

1. Trazidas por Weinschel ao Simpósio.

2. Freud, S (1925), p. 68:... “Ela não perdeu terreno nos Estados Unidos desde a nossa visita; é extrema-mente popular entre o público leigo e reconhecida por grande número de psiquiatras oficiais comoimportante elemento nos estudos médicos. Infelizmente, contudo, muito sofreu por ter sido diluída.”

3. Como Widlocher, no mesmo Simpósio.

4. Klauber, J. (1983).

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específico de funcionamento mental descrito como função psicanalíticada personalidade5 . Hoje, podemos dizer que a preocupação é mais séria,e que é a própria essência da experiência psicanalítica que está sendocolocada em jogo, fato que se reflete num turvamento cada vez maior doslimites de quase todos os parâmetros do setting. Grande parte das diver-gências existentes entre os analistas surgem em conseqüência da dificulda-de de reconhecerem a identidade de suas experiências analíticas . Háalgum tempo, quando as “escolas” de psicanálise mantinham uma disputamais acirrada, havia uma tendência dos membros de uma mesma escola desuporem que suas experiências analíticas eram comuns, mas hoje, com aredução da crença de detenção da verdade de que cada escola se julgavapossuída e com o conseqüente relaxamento dos rígidos padrões a que sesubmetiam seus membros e até com sua substituição por um relativismoextremado e duvidoso, a dificuldade de reconhecimento se torna, todavia,ainda mais difícil. Além disto, outros fatores, relacionados com mudançasculturais mais amplas, alteram as formas de expressão sintomática dasdoenças e exercem uma poderosa influência sobre os padrões técnicos.Veja-se, por exemplo, o aumento extraordinário de quadros narcísicos emcomparação com as neuroses clássicas, dominantes na época de Freud.Este fenômeno, reflexo de umas narcisificação da cultura (?), altera deforma significativa a expressividade da transferência e, a partir daí, asmanifestações típicas das neuroses transferenciais. As interpretaçõestransferenciais tornam-se muito mais difíceis de serem feitas em organiza-ções psíquicas dominadas pela onipotência e pelo narcisismo. Além disto,a cisão, sempre presente nestes estados regressivos, torna possível a manu-tenção da negação da percepção da incongruência alinhando impossibili-dades sob a rubrica de condescendência ou de não-rigidez. É dentro destecontexto que o desconhecimento é substituído por um pseudo-reconheci-mento indiscriminado de práticas que não guardam mais qualquer relaçãode parentesco entre si mas que, não obstante são tratadas todas como sefossem a mesma psicanálise.

A dificuldade da psicanálise de se situar comodamente entre as dis-ciplinas acadêmicas se torna ainda mais evidente quando tocamos no pro-blema de seu ensino nas universidades. Os psicanalistas resolveram estaquestão há tempos optando por constituírem seu próprio campus no inte-rior das sociedades em virtude do receio de não conseguirem manter vivosas especificidades e singularidades do processo. O problema é difícil: se a

5. Grinberg, L. (1976).

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psicanálise se enclausura em torno de seu próprio umbigo ela corre o riscode desaparecer com o falecimento do último dos moicanos; se elaintercambia intensamente corre o risco de se dissipar na fusão commetodologias e técnicas assemelhadas.

A posição de Freud sobre o assunto pode ser percebida através darelação entre a psicanálise e a psicoterapia. Em 1919, numa visão do futu-ro da terapia psicanalítica ele apontava para uma convivência pacífica en-tre ambas através da famosa metáfora da fusão do “ouro da psicanálise”com o “cobre da sugestão direta”6 . Já em 1933 achava muito difícil quepsicanálise pudesse conviver com a psicoterapia no interior da mesma ca-beça psicanalítica: a "atividade psicanalítica é árdua e exigente; não podeser manejada como um par de óculos que se põe para ler e se tira para saira caminhar. Via de regra, a psicanálise possui um médico inteiramente, ounão o possui em absoluto. Aqueles psicoterapeutas que empregam a psi-canálise, entre outros métodos, ocasionalmente, pelo que sei, não se situamem chão analítico firme; não aceitaram toda a análise, tornaram-na agua-da – mudaram-lhe a essência, quem sabe; não podem ser incluídos entre osanalistas. Penso que isto é lamentável. Na prática médica, a cooperaçãoentre um analista e um psicoterapeuta que se limita a outras técnicas servi-ria a propósitos muito úteis".

O que significa isso? Por que a dificuldade de convivência? TeriaFreud razão? O fato é que ele sempre esteve muito apreensivo quanto aofuturo da psicanálise. Tinha uma consciência muito aguda da fragilidadee sutileza do que havia criado e temia "o que a turba humana poderiafazer com ela no dia em que deixasse de existir" , não tendo sido outra arazão pela qual se criou o famoso Conselho secreto encarregado de zelarpela sua autenticidade. Por mais que se possa criticar a posição de Freudque cobra do psicanalista uma dedicação e exclusividade quase monásti-cas, ela aponta para uma dificuldade que é muito real: a dificuldade que épara o psicanalista descobrir o lugar que lhe é próprio e manter-se ali.

O ponto de vista que defendo neste trabalho é o de que o lugar doanalista, com suas funções, constitui a mais importante base de sustenta-ção da psicanálise, mais ainda que as grandes descobertas que propiciou, oinconsciente dinâmico, o papel da sexualidade, a transferência etc., e que é

6."É muito provável, também, que a aplicação em larga escala da nossa terapia nos force a fundir oouro puro da análise livre com o cobre da sugestão direta; e também a influência hipnótica poderá ternovamente seu lugar na análise, como o tem no tratamento das neuroses de guerra.” Linhas de Progres-so... pág. 211

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com a natureza incômoda deste lugar que se relaciona o permanente mal-estar da psicanálise, mal-estar que hoje tende a ser atribuído a fatores oca-sionais, conjunturais ou culturais, mas que a meu ver é constitutivo daprópria psicanálise.

Retornemos nesse momento a Freud, mais uma vez, apenas paraindicar a relação intrínseca existente entre a sua mente e a descoberta psi-canalítica. Não se tem exemplo de um outro caso, dentre as disciplinascientíficas, de relação tão estreita entre a obra e o criador. A mente queforjou a psicanálise não era ainda a de um psicanalista, mas tinha um certotipo de funcionamento que propiciou a criação, sob o influxo do que perce-beu, de uma nova função mental. É esta nova função com seus requisitospara entrar em ação que procuramos constituir nas análises de formaçãoou recuperar quando circunstâncias adversas ameaçam-na de dissoluçãoou diluição.

Historicamente, a descoberta desse espaço por Freud se deu a par-tir de uma base já existente em sua mente, de uma Weltanschauung cientí-fica, de uma postura do observador diante do observado, de umdistanciamento crítico, de uma necessidade investigativa que colocou apsicanálise numa dupla conexão absolutamente essencial: a de ser umapesquisa e um tratamento, a de ser uma pesquisa que é em si mesma tera-pêutica. A observação tantas vezes feita por ele, de que não era umterapeuta entusiasta, parece-me hoje revelar algo muito mais fundamen-tal do que a casualidade de um traço pessoal. Procurar o conhecimento eobter a cura (nessa seqüência) é um traço distintivo com procedimentoscujo objetivo primordial é a cura. Mas, mais do que isso, o que importasublinhar neste ponto é a particular localização do sujeito que observa osfatos mentais, é sublinhar, mais do que aquilo que está sendo observado,ou a diretriz investigativa, o posto onde se coloca o observador e a formacomo opera sua atenção.

A transformação desse estado mental particular num método deapreensão dos fatos mentais e a regra das associações livres que força opaciente a se colocar num estado semelhante, corresponde, não apenas aum método de vencer resistências, mas a um verdadeiro corte epistemológicocom tudo o que havia antes, exatamente por implicar num posicionamentodo observador que lhe permitisse uma estranha leitura: a leitura do quenão está escrito. A suspensão da realidade visível, do tempo, do desejo e

7. Freud, S. (1933)”Explicações, Aplicações e Orientações”.

8. Jones, E. (1955) Vida e Obra..., Vol. II, pág. 168.

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simultaneamente, o que é muito importante, na manutenção de tudo istocoloca-o frente a um novo palco que se situa no espaço entre a realidadeobjetiva e a imaginária, palco onde se desenrola uma cena que tem apenasdois observadores: o analista e o seu cliente. Não resta dúvida: esta posi-ção é forçada e somente pode ser mantida contra a tendência natural se forinstituída como método.

Esse estranho espaço inter-, herdeiro de uma postura científica, per-manecerá sendo sempre para Freud o lugar de uma descoberta cujo resulta-do é terapêutico. Reproduzido em cada nova análise, este passo determinantevisa criar uma área completamente nova na mente e sem correspondênciana realidade cotidiana. O aspecto distintivo deste lugar é marcado tantopela característica inter- (entre consciente e o inconsciente), quanto pelacaracterística supra- (acima, suspenso, para além da realidade e da fanta-sia), quanto pela extra- (no sentido do estranho, extraterritorial, de extra-ordinário), características que o situam como um lugar artificial, antinatural,forçado e distante. Ao mesmo tempo este lugar é profundamente marcadopor uma outra característica, que o torna ainda mais paradoxal – a de serum espaço onde a ausência (do analista), a suspensão, o colocar entreparênteses da realidade ingênua bem como dos julgamentos morais, con-trasta com a presença de um desejo de contenção, de um espaço continentetanto para as mais absurdas cenas que nele se desenrolarão, como para aausência de qualquer cena ou drama. Forçosa a lembrança da mãe-conti-nente, da capacidade de reverie e da função alfa (Bion-). Neutralidadeque não é neutra e abstinência que não se abstém – novamente aqui estamosutilizando significantes portadores de significados muito especiais coloca-dos no espaço inter- (subentenda-se por...). "Sem memória" que não é semmemória e "sem desejo" que não é sem desejo. Será que poderemos espe-rar uma compreensão fácil de conceitos desta ordem? E principalmente deuma prática neles baseada?

No entanto, tudo isto é certo, sem neutralidade e sem abstinência nãose cria o lugar para a contenção do outro... E também para a interpretação.Na feliz concepção de Grinberg este espaço inclui a capacidade de pensarem circunstâncias adversas (no meio da tempestade); a capacidade de discri-ção e de evitação do atuar; a tolerância à frustração; a capacidade deesperar e manter a atenção flutuante; a capacidade negativa, definida comohabilidade para lidar com incertezas, mistérios, dúvidas, meias-verdades,sem a irritante compulsão de encontrar explicações e certezas a respeitodas coisas. Abrir espaço para pensar no meio da tempestade, mas tam-bém no meio da mesmice de soporífera pasmaceira que freqüentemente

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o invade. Este espaço é um espaço não apenas transitório (já que não seconsegue mantê-lo por muito tempo), mas também de transição (já queele cria uma nova realidade, entre a concreta e a da fantasia). Ele existe,inicialmente, apenas dentro das condições especialmente criadas pelosetting, condições de confiabilidade que tornam sua instalação demoradae o seu desfazimento rápido. Nele, os pensamentos se articulam com umafolga inteiramente incomum aos processos mentais conscientes: a mobili-dade catexial dos processos inconscientes enfraquece a catexia quiescenteconsciente. A debilitação do vínculo entre as palavras e as coisas, nospacientes neuróticos, favorece o processo de atribuição de novos signifi-cados (a interpretação) e a criação de vínculos entre as palavras e ascoisas favorece o processo de simbolização nos psicóticos.

Gostaria de diferenciar este espaço, que é prévio, da interpreta-ção propriamente dita, que muitos consideram como a marca registradada psicanálise9, não apenas como Etchegoyen (1987) fez ao considerá-locomo uma condição necessária da interpretação, mas de tratar a inter-pretação como parte constitutiva e constituinte deste espaço, cujas di-mensões ela ajuda grandemente a ampliar. Isto é importante, porque se ainterpretação é prévia, se ela já existe por antecipação, ela não contribuipara constituição deste espaço, mas para o seu fechamento. Ela não sur-ge como uma percepção, mas como um ditame. A interpretação que é aatividade analítica por excelência representa o "a mais" que o analistausa para ampliar este espaço. Esta atuação se faz predominantemente“per via de levare” embora tenha que ser reconhecido o papel que o “pervia de porre” tem nesta constructio, já que o escultor desta conhecidametáfora freudiana não pode retirar da pedra senão os excessos da figu-ra que ele próprio projetou lá dentro.

Filho da fria observação científica este espaço terá que permanecersempre parcialmente vazio e é à experiência desse vazio “positivo” quecorresponde uma angústia que precisa ser experimentada e tolerada, masnão abolida. O vazio e a angústia a ele correlativa são partes intrínsecas doencontro com o novo que aí se dará. O saber constituído é sempre umperigo para o saber constituinte. Desde tempos imemoriais isto tem sidoassim. Seria enganoso dizer que o espaço psicanalítico seja sempre um

9. Eissler (1953), por exemplo, tratou de delimitar o território específico da psicanálise por meio doestabelecimento das diferenças técnicas entre a psicanálise e a psicoterapia. Seu modelo técnico nãoapenas privilegiava a interpretação mas a considerava como um instrumento técnico exclusivo: “Paraum caso ideal”, ele assinalou, “a atividade do analista está limitada à interpretação; tornando-se desne-cessário qualquer outro instrumento.”

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espaço revolucionário de saber constituinte, porque ele é, ao mesmo tem-po, um espaço de saber constituído. A situação ambígua deste estranhoespaço, situado preferencialmente no território neutro da divisa, confere aele uma natureza instável e insegura. O analista como qualquer outro serhumano interage com o mundo que o cerca de diferentes maneiras. O fatode ter que atuar neste espaço de uma forma marcada basicamente pelacontinência e pela “suspensão” e de ter que atuar em outros espaços (queconstituem a maior parte de sua vida) pela assunção do saber e do desejo,que tornam estes espaços muito mais incontinentes, cria para ele uma difi-culdade, uma instabilidade adicional e uma nova fonte de conflito que ten-de a ser “resolvido” através de spliting. Quando for este o caso, o queocorre com uma certa freqüência, segundo penso, estaremos diante de umamá solução em termos de desenvolvimento egóico, já que este mantém in-variavelmente as partes cindidas sob suspeição de falsidade (falso self). Narealidade, a assimilação desta extraterritorialidade precisa ser realizadade tal forma que ela se constitua como um espaço “a mais” que possa servisitado com certa freqüência, mesmo fora da hora analítica.

Este é o tipo de influência que a prática psicanalítica pode levarpara o meio que a cerca. Esta é a “abertura” com a qual a psicanálise ficapermanentemente identificada. Com uma freqüência insistentemente maior,no entanto, é o contrário que ocorre e o espaço analítico vê reduzida ex-traordinariamente sua continência, e o seu vazio, pela plenitude do já cons-tituído. Este espaço é muito sensível a invasões ideológicas de qualquernatureza: qualquer crença muito fortemente sustentada, seja de naturezareligiosa, filosófica, social, política ou mesmo científica, contribui rapida-mente para o seu desfazimento.

Para mim, a diferença fundamental entre a psicanálise e outras for-mas de tratamento psicológico, mesmo quando designadas também pelomesmo nome – “psicanálise” – é determinada por esta posição prévia maisdo que por qualquer outra questão relacionada com a técnica e com omanejo das interpretações. Estas técnicas diferem da psicanálise principal-mente porque a “posição” do analista é fundamentalmente diferente. O“espaço”, nestes casos, está sempre muito ocupado pelo “saber” doterapeuta, mas, essencialmente, preenchido ou pelo desejo de curar que“aponta” direta ou indiretamente um caminho, que “escolhe” o foco atratar nas assim chamadas psicoterapias focais, que pretende atingir resul-tados terapêuticos previamente definidos a partir de atuações determina-das, ou pela ausência de qualquer desejo de cura e de um descompromissocom os resultados. Este lugar não tem nem as característica inter- nem

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supra- nem extra- embora o terapeuta possa se utilizar tecnicamente deinterpretações sobre o material inconsciente de uma forma transferencialou não, apresentar-se mais ou apresentar-se menos, usar mais ou menossugestões diretas etc. etc. O matiz determinante do espaço está ocupadopor objetivos terapêuticos, ou outros, ou pela ausência de objetivos, e,neste sentido o processo se perde totalmente, já a partir de suas raízes.

Se considerarmos agora a problemática levantada por Freud a res-peito da utilização, por um mesmo indivíduo, da psicanálise e de outrosmétodos psicoterápicos, poderemos compreender melhor a dificuldade aque ele se referia com a imagem dos óculos. Para mim, é mais fácil deentender uma mudança dos aspectos instrumentais e técnicos da psicanáli-se, quaisquer que eles sejam, do que do “lugar” do psicanalista, cuja pre-servação é equivalente à preservação da psicanálise.

A ênfase nos processos que se passam no interior do paciente ou naforma de se lidar com ele (a questão da interpretação) manteve o foco dapsicanálise, desde Freud, centrado em apenas um dos membros do par ana-lítico ou na técnica analítica. A contribuição do psicanalista para o estabe-lecimento (ou não) do processo psicanalítico e para sua manutenção e de-senvolvimento permaneceram num plano secundário por muito tempo.

Alterações no “lugar” do psicanalista têm os mais importantes re-flexos sobre a análise e sobre todo o processo interpretativo. Esta é arazão pela qual nenhuma norma consegue atingir com eficácia o seu efeitonormativo. A neutralidade que é uma condição sine qua non pode sertambém a condição impeditiva dependendo, menos de seus aspectos for-mais e técnicos, do que da forma como este espaço está sendo vivido. Éevidente que esta situação tende a criar um caos na mente de quem estátentando ser analista. Nem o sim, nem o não, muito antes pelo contra-rio... A decisão fica por conta da cabeça de cada um ou do acaso? Deve-remos renunciar ao estabelecimento de critérios? Sob o ponto de vista quedefendo neste trabalho a questão só pode ser resolvida pela descoberta,pelo analista, antes de tudo, de qual é o lugar que ele está ocupando. Ésomente a partir daí, situando-se, que ele poderá situar o paciente. O fatode ser mais ou menos ativo, de estabelecer parâmetros ou não, de interpre-tar mais ou de interpretar menos, terá seu sentido na análise, apenas, apartir das alterações que fizer neste espaço e em suas funções. Atuaçõesque impliquem em seu desmantelamento destroem o processo analítico.

Há uma tendência para confundir o estabelecimento deste espaçocom o estabelecimento de uma boa relação terapêutica (aliança terapêu-tica). São coisas diferentes. É a aliança que permite ao paciente suportar

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aos poucos as exigências adicionais que o estabelecimento desta constructiofaz sobre seu psiquismo. Na fase inicial da análise e até que esta localiza-ção do analista seja aceita pelo paciente por meio de um lento reconheci-mento dos benefícios que ela lhe traz, haverá uma luta marcada pela suaoposição ao estabelecimento deste espaço, tão novo como fundamental.Depois, na medida em que o tratamento progride, o paciente perceberáatravés de inúmeros detalhes da relação estabelecida aspectos da formacomo o analista organiza seu próprio pensamento, seu espaço mental emrelação ao que é conhecido e em relação ao que é desconhecido e tambémem relação ao vazio. A identificação com este espaço e com suas funçõesprecisa no entanto ser distinguida de uma identificação ou de uma contra-identificação com o analista, razão pela qual os aspectos que constituemsua realidade como pessoa ou seus valores precisam, na medida do possí-vel, de estarem suspensos.

Há também uma tendência de confundir este espaço com o da trans-ferência. Meu ponto de vista é de que, embora a transferência seja o fenô-meno principal com que o psicanalista tem que lidar em seu trabalho, olugar do psicanalista no processo analítico não é determinado por ela. Atransferência, que por sua própria natureza vai conferindo ao analista tan-tos postos diferentes, não é, contudo, determinante deste lugar, antes, é olugar que determina a transferência. Na verdade, o ato inaugural do pro-cesso psicanalítico não é a demanda do paciente, mas a localização doanalista no posto que lhe cabe, função de uma aquisição prévia, lugarímpar e condição necessária sem a qual não haverá análise.

Os autores ligados à psicologia do ego como Eissler (1953), Gill(1954), Stone (1967), Kernberg (1982) tendem a considerar o que é análise,baseados em critérios como a neutralidade do analista, o uso da interpreta-ção como instrumento fundamental ou exclusivo, a análise sistemática datransferência, a indução da regressão e a resolução da neurose transferencial,ou seja, por aspectos que colocam a ênfase em elementos mais instrumentaisda técnica. Dentro desta visão, o âmbito da psicanálise acaba reduzido àsneuroses clássicas. Boa parte dos quadros narcísicos, borderlines, certospsicóticos, quadros psicossomáticos diversos estariam fora do âmbito deuma técnica aprisionada aos seus instrumentos. Poder-se-ia chamá-la depsicoterapia analítica ou de qualquer outra coisa, mas não de psicanálise.Os psicanalistas ligados à escola kleiniana, apesar das marcantes diferençasem relação à forma de interpretar da Escola da Psicologia do Ego à qualEissler estava ligado, também concediam à interpretação um papel quaseexclusivo, basta lembrar a controvérsia Klein - A. Freud, o trabalho de

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Segal (1962), a republicação (1969) do famoso trabalho de Strachey (1934)sobre a interpretação mutativa, o trabalho de Rosenfeld (1972) etc. A in-terpretação estrita transferencial e neutra transformou-se num brado deguerra.

O prestígio mítico da interpretação e da neutralidade na qual ela sebaseava, não obstante o reconhecimento geral, não era abraçado por todoscom a mesma intensidade. Lowenstein (1958), na famosa controvérsia comEissler no Congresso de Paris, já apontava para o fato de “as interpreta-ções” poderem requerer, antes que pudessem ser formuladas, uma série deintervenções prévias “destinadas a fazer com que”..... “tivessem o efeito di-nâmico desejável ou mesmo criar condições sem as quais o procedimentoanalítico seria impossível”. Apesar da importância dada às questões técni-cas, principalmente ao papel fundamental da interpretação, certos autorescomo Balint (1949), Nacht (1962), Loewald (1960) Klauber (1972), apon-taram para a relevância de outros fatores relacionados com a natureza darelação analítica, a personalidade do analista ou a identificação com o modode funcionamento da mente do analista. Winnicott (1955), entre estes, assi-nala em sua contribuição ao Congresso de Genebra, falando sobre o falsoself surgido a partir de falhas ambientais: “No trabalho que estou descre-vendo, o setting torna-se mais importante que a interpretação”... o compor-tamento do analista, representado pelo que chamei de setting, sendo sufici-entemente bom no que diz respeito à adaptação à necessidade, é gradual-mente percebido pelo paciente como alguma coisa que aumenta a esperançade que o verdadeiro self possa finalmente ser capaz de encarar os riscosenvolvidos na experiência de começar a viver.”

A relativização dos critérios formais formulada por estes autores en-tre os quais podemos incluir Kohut, relativização que levou Sandler à famo-sa acepção de que “psicanálise é aquilo que os psicanalistas praticam”, cri-tério cuja insuficiência flagrante nem necessita de comentários, cria por suavez (ou mantém?) a dificuldade de delimitar o campo da psicanálise.

O ponto de vista sustentado neste trabalho tem importantes seme-lhanças com os do clássico trabalho de Strachey, mas tem também impor-tantes diferenças. O espaço, como o estamos considerando aqui abrangeaspectos não somente superegóicos, mas principalmente, aspectos egóicos.Não é apenas o superego primitivo do paciente que se modifica pela análi-se da transferência: a introjeção da nova figura superegóica se faz acompa-nhar da introjeção de funções egóicas muito importantes e estruturantesde um novo espaço mental. Por outro lado, embora reconhecendo o papelprimordial da interpretação na construção deste espaço, consideramos como

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exagerada a importância dada à interpretação específica transferencial ecompleta, por ele denominada de mutativa. A contribuição de Strachey dáum papel muito grande à interpretação, como um instrumento quase ex-clusivo e também ao superego. Além disso ela é focada principalmente nopaciente e nos processos dinâmico-estruturais que se passam no interior desua mente. A contribuição do analista se restringe à neutralidade e à inter-pretação. Sem questionar a validade dos fatores colocados por Strachey,vários autores, já citados, assinalaram que a importância de outros ele-mentos encontra-se minimizada no seu esquema. Klauber (1972), numtrabalho muito judicioso, aponta vários destes elementos que vincula, deuma forma genérica, à personalidade do analista ou à relação analítica.

A posição defendida neste trabalho, embora reconhecendo o lugarúnico da interpretação transferencial e da reconstrução do superego dopaciente, não pode deixar de considerar que a excessiva ênfase em seuvalor exclusivo enviesa o rumo da análise para o lado da tradução, esque-cendo-se do tradutor. Por outro lado, também reconhece que a ênfase ex-cessiva no tradutor e nos aspectos genericamente incluídos na sua perso-nalidade tende à dispersão e ao não-reconhecimento da especificidade daexperiência analítica. Além disso, ela tem uma diretriz mais ampla ao su-blinhar transformações que se dão, não apenas no superego, mas na pró-pria estrutura do ego analisante. O lugar do analista corresponde a umposto muito específico e que implica na assunção de funções bastante com-plexas, entre as quais está a interpretação e cujo resultado implica na cria-ção, pelo paciente, de um novo espaço mental através do qual ele possa“pensar” a si mesmo. Loewald (1956) compara o analista a um cientistacujo método de pesquisa é em si mesmo terapêutico e cujo efeito terapêuticoparece ter algo a ver com a necessidade do objeto de estudo – o paciente –estar comprometido neste “projeto científico” que em última análise sedirige para ele próprio.

Parte das elaborações contidas neste trabalho foram observadas numsetting não-psicanalítico. A natureza peculiar deste “espaço analítico” ficoumuito evidenciada por este contraste. Isto ocorreu em conseqüência de ativi-dades de supervisão de psicoterapia para residentes e estagiários, muitosdos quais estavam nos estágios iniciais de suas análises (ou psicoterapias),ou não tinham qualquer experiência a respeito. A tentativa de “posicioná-los” para a escuta e a compreensão do que se passava na relação com seuspacientes deu-me uma idéia muito clara da dificuldade implícita na assunçãodeste “lugar”, independentemente do conteúdo do material que surgisse.Na realidade, parecia-me, naquela situação, onde o que se visava era a

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demonstração de que uma “outra” escuta era possível, que esta esbarra-va numa forte resistência, do próprio observador, de mudar de local o seuposto de observação. Mas não apenas este, que era um fato mais do queóbvio na circunstância, o que se apresentou a mim como um fato novoera que o “lugar” ocupado pelo “terapeuta” determinava a natureza,não apenas do lugar ocupado pelo paciente, que se adaptava de umaforma complementar (seja por conformidade ou por oposição), mas tam-bém a natureza do material que produzia, cujo significado inconscienteestava preso a uma cadeia de significantes determinado pela postura doterapeuta. O que o terapeuta dizia não parecia ter importância a não serquando relacionado com a sua postura. Algo semelhante ao dançar deacordo com a música ou ao jogar de acordo com as regras de um jogo que,ou era proposto pelo terapeuta e seguido pelo paciente, ou era propostopelo paciente e seguido pelo terapeuta, jogo para o qual, no entanto, suaposição era absolutamente determinante. Naquela circunstância, a postu-ra habitual, que é a usual em nossos relacionamentos diários, colocavaambos os membros do par terapêutico num determinado tipo de jogo comregras tais e quais, que nada a diferenciavam formalmente da postura ingê-nua do cotidiano, mesmo que este cotidiano fosse o pouco usual de umarelação terapêutica. Neste caso, a relação não inquietava os membros dopar terapêutico que pisavam, ambos, em terrenos conhecidos. Quando,por determinadas circunstâncias, a postura era analítica a diferença eramarcante: neste caso, a inquietação visível para ambos os membros pare-cia relacionada a uma quebra do contrato convencional pelo qual nosrelacionamos uns com os outros, ruptura que jogava o par terapêuticonum espaço tanto desconhecido quanto estranho... A forma como oterapeuta ia se colocando neste espaço determinava a forma correlata doposicionamento do paciente, mas, principalmente, as “interpretações” dadassó adquiriam sentido quando o terapeuta conseguia formulá-las a partirda posição previamente assumida por ele. As associações “livres” que opaciente trazia eram governadas por uma diretiva inconsciente apontadatransferencialmente para o terapeuta, a partir do “lugar” por este assumi-do. A comunicação do paciente ao seu terapeuta, por mais livre que seja,dirige-se a ele, como seu interlocutor e relaciona-se intrinsecamente com olugar que ele ocupa.

A importância do lugar do analista foi se tornando cada vez maisevidente para mim, a um ponto tal, que o considero hoje crucial para odesenvolvimento do processo analítico. O ato que inicia o processo é umaimposição do psicanalista. Por mais que o paciente o aceite, é um ato que

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força o paciente (e o próprio psicanalista também), gerando invariavel-mente sua oposição. É somente a partir do lugar de onde o analista falaque suas interpretações irão adquirir valor significativo.

As característica descritas como constitutivas de um espaço especí-fico na mente do psicanalista dentre as quais ressaltamos:

1. Seu aspecto transicional marcado pelos aspectos inter-, supra- e extra-.2. Seu aspecto transitório e sua dependência de um esforço extra mantidocontra uma tendência natural.3. Sua natureza delicada e o seu desfazimento sob a influência de diversostipos de influxos.4. Sua aquisição lenta, dentro de condições muito especiais de continênciae de segurança implementadas pelo setting analítico.5. Sua complexidade estrutural.

justificam a preocupação permanente da psicanálise com a sua so-brevivência e a inevitável “estranheza” e ambigüidade de sua relação comoutros campos de conhecimento. A experiência de viver este espaço quaseimpossível é cercada de exigências, todas elas difíceis de cumprir e todaselas decorrentes de sua natureza essencial. Segundo penso, esta sobrevi-vência está relacionada com os resultados, com as transformações estrutu-rais que a análise propiciou à mente dos próprios analistas. Somente osbenefícios experimentados com este acréscimo de estrutura e a gratidãoresultante justificariam o dispêndio de esforço e de sacrifício envolvidosem sua preservação. A natureza essencial da psicanálise não tem nenhumelemento para justificar a popularidade e o sucesso que teve como métodoterapêutico. Sua vocação natural aponta numa direção contrária...

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S O B R E A A R T E D A P S I C A N Á L I S E

Sobre a arte da psicanálise*

Edna Pereira Vilete**

I – “Nossa alma é uma morada. E, quando nos lembramos das casas,dos aposentos, aprendemos a morar em nós mesmos.”

Bachelard

R E S U M O

A autora estuda o trabalho do analista no setting, relacionando-o ao processo de criação na arte. Desenvolver suas idéias apartir do desenvolvimento emocional primitivo, em especialda comunicação entre o bebê e a mãe. Utiliza o depoimento deartistas para mostrar a relação entre este estado especial deabsorção e o ato da criação.

Unitermos: desenvolvimento emocional primitivo, comunicaçãomãe–bebê, criação.

S U M M A R Y

The author studies the analyst´s work at the setting and sheestablishes relations to the process of creation in art. Thedevelops her ideas from the primitive emotional development,especially through the communication of baby and mother.The uses the testimony of artists to show the relation betweenthis especialcondition and the creative act.

Keywords: setting, primitive emocional developments, baby andmother communication, creative act.

* Publicado originalmente no Boletim Científico da SPRJ Vol 2 (1), 1986.

** Membro efetivo e didata da SPRJ.

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Relembro o trecho de um filme de Saura – Bodas de Sangue – em queos bailarinos chegam ao teatro para um ensaio; sentam-se diante dos espe-lhos no camarim, o borborinho cessa, concentrados, cada qual abre umacaixa de maquiagem, de onde tiram seus pertences – retratos, cartões pos-tais, imagens de santo, talismãs que arrumam com cuidado religioso. Sóentão espalham os lápis, blushs, batons, pincéis e esponjas, instrumentos detrabalho que usam com olhar distante e sonhador.

Antônio Gades, o coreógrafo, enquanto se pinta, pensamento solto,vai até seu tempo de menino e jovem iniciante na dança. Dirige-se depois,sozinho, para o salão vazio e, diante dos espelhos, a mesma expressão emseus olhos, ensaia novos movimentos.

O expectador se vê agora, e outras vezes, diante de uma sala vaziamas, dentro de si, pleno de expectativa. O espaço anuncia e antecipa o atocriador; o artista, como que protegido pela intimidade de que se cercou,com seus pequenos gestos rituais, pôde se lançar no mundo imenso e desco-nhecido de sua criação.

O psicanalista, ao trabalhar, manipulando conceitos teóricos e se-guindo preceitos de técnica, é mais facilmente considerado um cientista, doque igualado ao artista; mais comumente é visto como um cirurgião, do queum poeta falando à alma do seu paciente. Se este assunto me interessa éporque acredito haver, como parte fundamental do processo analítico, umcampo de fenômenos ainda bastante misterioso para nós, e que encontrariacorrespondência no processo criador vivido pelo artista.

Sob este enfoque, comecemos por olhar o local de trabalho do psica-nalista – o setting – o ambiente analítico com todos os seus referenciais.O analista, como os dançarinos no camarim, também se cerca de seusobjetos conhecidos e se instala em uma rotina de horários. A sala se man-tém em certa luminosidade, os ruídos são afastados, e todos sabemos oquanto analista e analisando podem se ressentir de alterações neste enqua-dre. A mudança de consultório, por exemplo, pode levar o analista a terque se familiarizar, com antecedência, ao novo ambiente, para se pôr àvontade ao atender os pacientes; para estes, o tema inicial é certamente olugar novo e a estranheza que desperta, estranheza que se verifica até mes-mo com uma simples mudança de horário, e com a variação de incidênciade luz na sala.

Não é também um episódio raro quando, às vésperas de férias ouapós algum acaso onde os parâmetros do setting se alterem, que os pacientessonhem e vejam o consultório de portas abertas, invadido por outras pessoas,sua hora ocupada, em uma indicação clara de privacidade perdida. O acor-

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do prévio de um tempo para a sessão, a presença constante do analista, oisolamento da dupla, conduziram a uma atmosfera especial de intimidade,desejada e esperada pelo paciente e, por sua vez, o ambiente familiar e ínti-mo é a condição necessária para surgir e crescer a associação livre e a aten-ção flutuante; o setting é o local criado e adequado ao devaneio.

O pensamento solto, já nos sugere o fragmento do filme de Saura,volta com facilidade ao passado. Freud, ao recomendar o setting, e emparticular o divã, fala de sua importância para o desenvolvimento plenoda transferência. Aos poucos, o próprio paciente percebe que a limitação aque se vê exposto, sua visão restrita, sem olhar o analista, liberta sua capa-cidade de sentir, que vai, longe, buscar os afetos perdidos na infância. Suaimobilidade ao deitar-se, o “branco” de pensamento que tantas vezes as-sim ocorre, pode ser vivido como um aprisionamento, mas acaba por levarà descoberta das profundezas sem limites do mundo interno.

Tomando de empréstimo palavras de Bachelard, podemos dizer que,no setting analítico, o analisando descobre ou reencontra sua “consciên-cia imaginante” e, para este autor, a imaginação é a faculdade de formarimagens que ultrapassam, que cantam a realidade.

II – “Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela, e oculta mão coloraalguém em mim.”

Fernando Pessoa

Voltando ao passado, a situação do paciente imobilizado, deitadono divã, se assemelha a do bebê em seu berço, e antigos registros de percep-ção podem, agora, ocorrer. Como se manifesta a presença do analista para opaciente que não o vê? Que sentido acurado permite perceber, com tamanhaprecisão, a desatenção do analista, seu alheamento no setting? Como o bebê,que para de sugar se os olhos da mãe não olham os seus, também o pacientese perde em suas associações, ou interrompe o que fala, se o pensamento doanalista dele se distancia.

Tudo isto faz pensar que a primitiva forma de comunicação entre obebê e sua mãe, o diálogo particular, de sinais significativos somente paraos dois, é revivido e atualizado pela dupla analítica e parte fundamentalno seu trabalho.

Atentos à fala do paciente, pouca importância tem sido dada ouexplicitada à linguagem que se estabelece por trás e junto com as palavrasque são ditas – o aperto de mão, gestos e trejeitos, a expressão da face, o

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olhar, o sorriso, a postura corporal, a respiração, as inflexões e a altura davoz, o ritmo da frase, a escolha das palavras.

Traduzindo direta e concretamente sentimentos e emoções, estesdados veiculam informações, numa via expressa de acesso ao inconscien-te, já assinalado por Freud em “O Ego e o Id” e bastante conhecida nosestudos de comunicação onde, no dizer de Mac Luhan, “o meio é a men-sagem”. Nos primeiros tempos de vida, na comunicação restrita ao cho-ro do bebê, a mãe zelosa identifica mensagens variadas que vão desde afome até o desejo de colo, do embalo, do contato corporal. Só a sintoniaextrema, a dedicação exclusiva, permitem perceber nuances tão sutis,sintonia esta evidente quando, à noite, o simples movimento do bebê,seu choro – mesmo que leve – desperta a mãe e ninguém mais. Nos cin-qüenta minutos de sessão o setting provê condições ideais para tal sintoniaacontecer; a disponibilidade emocional do analista faz o resto.

Um belo exemplo vivido e oferecido por uma colega em supervi-são pode ajudar a entender o mecanismo e a importância desta comuni-cação primitiva.

O paciente procurou a analista desejando se tratar, em virtude deum tique que muito o incomodava. Após três entrevistas e indecisões, re-solve, afinal, adiar o começo da análise. Poucos meses depois, porém, tele-fona pedindo para ser atendido com urgência. Muito angustiado por umcaso de amor que vivia no momento, intensamente enamorado e despre-zado pela amante, inicia suas sessões. Curiosa, a analista se pergunta sobreo tique, que jamais havia presenciado e não fora descrito pelo paciente,muito embora o dissesse freqüente e extremamente perturbador. Um dia,durante a sessão, em clima de muita angústia e queixas do paciente, queprotestava por não melhorar, a analista se viu inspirando profundamen-te, iniciando um suspiro que, subitamente, interrompeu como num es-pasmo, emitindo um ruído que pareceu semelhante ao coaxar de umsapo. Mais de uma vez o fenômeno se repetiu e, agora, constrangida esurpresa, ela se pôs a pensar se não seria, este, o tique escondido. Ao sair,como que numa confirmação, o paciente repete o mesmo movimento e omesmo som, numa escala aumentada.

O ocorrido permitiu uma compreensão inicial do paciente, sua sôfre-ga busca amorosa, vital para ele como o ar que respirasse, tão intensa quan-to a inspiração profunda a que se entregava, mas que bruscamente inter-rompia ou via interrompida, numa expiração – expulsão súbita e explosiva.

O sintoma, e sua interpretação, pôde levar a outros detalhes que nãohá interesse agora em relatar, mas que deixaram evidente sua possibilidade

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de comunicar, seu caráter de mensagem cifrada captada pela analista quan-do, sem se dar conta, copiou os movimentos respiratórios do seu paciente.

A imitação inconsciente de gestos e expressões emocionais represen-tam identificações afeto–motoras, um estágio primitivo no processo de aqui-sição da identidade e realizado à custa de mecanismos de introjeção. É o quese passa com o bebê, por exemplo, ao imitar o sorriso da mãe ou suas ex-pressões faciais, ou suas vocalizações, já no primeiro ano de vida. Antes,porém, que isto ocorra, o oposto deve ter acontecido; a mãe amorosa, atentaao filho teria aberto os olhos às suas contrações musculares, os ouvidos aossons que emite, recebendo-o dentro de si, como estivera antes de nascer,retomando a primitiva união para poder entendê-lo e cuidá-lo. Também oanalista, partindo da contemplação de seu paciente, se oferece como materialde prova, testando e experimentando em si mesmo seus sentimentos, comoforma de descobrir e entender o que se passa com ele como ocorreu nasituação clínica que descrevemos.

Pouco tem sido dito ou investigado sobre as sensações experimenta-das pelo analista durante determinadas sessões – bem-estar e relaxamento,tensão muscular, sudorese, alterações dos ritmos cardíaco e respiratório,inquietação física, tonteiras, sonolência, e outras mais, que cada um podereconhecer em sua experiência clínica. Estas alterações corporais surgem emdecorrência de uma “recepção cenestésica”(13), uma sensibilidade profun-da, de músculos e vísceras, respostas neurovegetativas aos estímulos doambiente. É a sensibilidade, no princípio exclusiva, predominante nos pri-meiros meses de vida, sem a qual o recém-nascido não pode sobreviver, e oponto de partida para o sistema de comunicação já descrito, uma verda-deira linguagem do corpo. Substituída, com o desenvolvimento, por ou-tras formas de percepção, os sinais semânticos obscurecendo os demais,persiste entretanto nos artistas e em condições especiais de intimidadeemocional. Em ambas, a união libidinal entre o self e o mundo resulta emum sentimento provisório de auto-expansão, de enriquecimento como étão bem descrito por Bachelard (1) quando diz:

“Antes da obra, o pintor como todo criador, conhece o devaneiomeditante, o devaneio que medita sobre a natureza das coisas.Com efeito, o pintor vive, de muito perto, a revelação do mundopela luz, para participar, com todo seu ser, do nascimento inces-santemente renovado de um universo... Aceitando a solicitaçãoda imaginação dos elementos, o pintor recebe o germe natural deuma criação.”

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Mas o próprio pintor dá seu testemunho quando revela, em confi-dência (15):

“O artista é o abrigo de emoções vindas não importa de onde, docéu, da terra, de um pedaço de papel, de uma figura que passa, deuma teia de aranha ... “por isto, “quando entro em meu ateliê detrabalho, deixo meu corpo à porta, como os muçulmanos deixamos sapatos antes de entrarem na mesquita”.

Se o corpo fica à porta, podemos concluir, deve ser para receber ooutro e poder, ao criar, traduzi-lo, já que o poeta, falando melhor do quetodos, nos leva mais adiante:

“Não sou eu quem descrevo. Eu sou a telaE oculta mão colora alguém em mim.Pus a alma no nexo de perdê-laE o meu princípio floresceu em Fim.”

A alma perdida é uma bela imagem para definir o sentimento deperda de identidade na situação de regressão provisória, no estado de fusãodo eu e do mundo, do eu e do outro, condição prévia e necessária à criação.Esta breve experiência de união, porém, embora transformadora do self edos objetos deve permitir o restabelecimento dos limites entre os dois – oque não acontece nos estados de regressão patológica – pois o que caracteri-za a comunicação particular entre a mãe e o bebê, entre analista e paciente éa desigualdade, de experiência e maturidade, dos participantes. As sensa-ções corporais, atrás descritas, representam para o analista os sinais em umatrilha desconhecida, ele, o guia que abre o caminho, ligando as sensaçõesaos afetos, e os afetos às idéias que estão reprimidas e dissociadas no pacien-te. Até chegar a este ponto, porém, o analista pode viver, em confusão, umestado de inquietude, de expectativa, por algo que precisa ser entendido,encontrado e que, afinal, consiste no reconhecimento de si mesmo. Locali-zando as emoções, as vivências desencadeadas na relação analítica – toda agama de sentimentos contratransferenciais – e que estão relacionadas à suahistória, à sua própria experiência – o analista pode, por analogia, por iden-tidade, chegar à compreensão do seu paciente.

Do estado anterior de fusão, o analista atinge, pois, a discriminaçãoentre ele e o paciente, repetindo, quem sabe, o processo de diferenciaçãovivido entre o bebê e sua mãe. Mahler (8), a propósito, nos conta que aconsciência inicial da falta da mãe – a metade simbiótica do seu eu – leva obebê a um estado especial, de interrupção de atividade, de introspecção,

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concentrando interiormente sua atenção, ocupado em fazer o que ela cha-ma de “imaginar”, buscando recapturar a mãe ausente nesta atividadeimaginante. Seria este o instante mágico em que se origina o pensamentoreflexivo, o insight, o ato criador? Seria a expressão do bebê igual a quevimos, curiosos, no rosto dos bailarinos de Saura?

Novamente, o poeta pode confirmar a nossa hipótese quando, ten-tando desvendar o mistério de uma invisível presença, pergunta (11):

“De quem é o olharQue espreita por meus olhos?Quando penso que vejo,Quem continua vendoEnquanto estou pensando?Por que caminhos seguem,Não os meus tristes passos.Mas a realidadeDe eu ter passos comigo?”

III. “Por meu ofício – isto – o espalmar de minhas mãos pequeninaspara colher o Paraíso.”

Emily Dickinson

A entrega, a emoção, a premência são partes da descrição que oartista faz do seu trabalho. Fernando Pessoa, declarando que viver não énecessário, o necessário é criar, ainda que tenha de ser o corpo e a alma alenha desse fogo, explica as horas seguidas, sem cansaço, de Picasso antesua telas, ou o calor, a febre de que Drummond se diz possuído ao escrever.Mesmo nas situações anônimas, do artista amador, sem talento ou suces-so, facilmente acontece esta absorção e esquecimento do mundo à volta,característica do ato criador.

E o psicanalista, retido por vezes todo o dia no consultório, esten-dendo, à noite, a tarefa em cursos ou seminários, escrevendo e estudandoem suas poucas horas livres? Que chama mantém esta atividade tão inten-sa? Que motivos induzem o psicanalista a uma profissão de esforço, priva-ção e isolamento, em que se expõe ao sofrimento de acolher, dentro de si,a projeção da dor mental do seu paciente? Que desafio o leva a enfrentar aameaça da contratransferência à sua integridade psíquica?

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Talvez a resposta esteja na crença de que o ser humano busca, ati-vamente, estímulos diferentes, situações de conflito, mesmo que represen-tem angústias e incertezas e tenha que se esforçar por resolvê-las, pois é omeio de integrar experiências novas e dar, assim, continuidade ao seu self,ao seu existir.

O uso dos meios primários de comunicação, àqueles já citados, ante-riores à palavra, e que implicam em experiências olfativas e auditivas, táteise cenestésicas, colocam o artista e o analista em contato direto com o pró-prio inconsciente, com seu conteúdo de sentimentos e emoções, em um fun-cionamento de processo primário. O analista, com seu paciente, confirma oconceito de que o ser humano só se conhece na presença de um outro, e nafonte inesgotável das fantasias e vivências contratransferenciais encontrarecursos para explorar e expandir o seu mundo interno. O trabalho analíti-co representa, pois, para o analista, um processo interminável de introspecção,de observação e descoberta de si mesmo, uma análise sem fim.

Por outro lado, o poeta e o pintor, o dançarino, o ator e o escultor,tantos outros, cada qual com sua arte, se vê dotado e impelido a expressartudo o que agita o coração humano, o que fermenta em sua natureza.Espelho do homem, o artista reflete o que ele sente lapidando os sentimen-tos em bruto de sua realidade, permitindo assim que, agora, ele os vivacom sua razão.

Esta é também, em toda a sua extensão, a tarefa do psicanalista. Dedepositário das vivências que o paciente ainda não suporta sofrer e preci-sa, por isso, dissociar e projetar, se transforma no artífice de seus sentimen-tos quando, ao interpretar, consegue transmitir toda a atmosfera emocio-nal que cerca suas idéias. Pois, assim como o músico através de bemóis esustenidos transmite, sem equívocos, a essência íntima da tristeza e daalegria, o analista, por ser não somente observador, mas também partici-pante na relação, através das inflexões da sua voz, pela forma com queinterpreta as palavras que emprega, sua atitude, enfim, pode levar ao paci-ente a veracidade do que diz e a convicção de sua empatia. Como se, nasentrelinhas, de uma forma implícita, sem sugestão ou asseguramento (12),o analista estivesse dizendo: “Eu entendo o que você sente, também jápassei por isto, é difícil, mas é o caminho.”

E, depois de todo este caminho percorrido, e das vicissitudes en-frentadas, junto com a resolução de suas dificuldades, quando o pacientevai às suas sessões atraído sobretudo por se descobrir e se expressar, se elevê os seus sintomas, embora penosos, como um código secreto que o insti-ga e pretende traduzir, se é capaz de sonhar e, ao acordar, se assombrar

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com seus sonhos, se encanta com o riso e o brinquedo das crianças, seaprecia a poesia e a natureza, o analista poderá, então, supor que sua obraesteja concluída.

Os aspectos artísticos de nosso trabalho clínico, tal como tenteiaqui esboçar, apresenta a Psicanálise não somente em sua versão depsicoterapia que persegue a cura, mas com o propósito mais amplo e, semdúvida, mais ambicioso, de intensificar a vida interna de nossos pacientese avivar a centelha da sua criatividade.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BACHELARD, G. (1978) “A Poética do Espaço”. Abril Cultural, São Paulo.

________. (1985) “O Direito de Sonhar”. Difel, São Paulo.

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________. (1969) “A Revision of the Psychoanalytic Theory of the Prymary Process”.

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“O Pensamento Vivo de Picasso” (1985). Martin Claret Editores.

“Picasso” (1981) – O Correio da Unesco – Ano 9, no 2. Fundação Getúlio Vargas.

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Regressão e desenvolvimentoO Sonho como Ligação da Psicanálise com a

Neurociência e a Teoria Evolucionária*

Victor Manoel Andrade**

R E S U M O

Desenvolvimento e regressão são conceitos fundamentais emFreud: se o primeiro descreve o processamento da estruturaçãonormal da mente, o segundo expressa o funcionamentopsicopatológico. Entretanto, o sonho é uma regressão saudável,motivo por que é o instrumento primordial para examinarfenômenos regressivos patológicos dos quais é o protótiponormal. Experiências neurocientíficas têm confirmado a tesefreudiana de que o sonho é um estado primitivo da mente queressurge durante o sono, de modo a constituir-se em ponte entrea psicanálise, a neurociência e a teoria evolucionária.O aprofundamento nos aspectos neurobiológicos do sonhopermite uma visão mais ampla da psicanálise, capaz decontemplar a preservação da vida como o mais fundamentaldos impulsos instintivos. Nessa perspectiva, o ego pode serobservado em sua totalidade, de modo a poder-se acompanharo desenvolvimento de quadros psicóticos, que se originariamde frustrações ligadas à autopreservação, ao contrário dasneuroses, que seriam derivadas da sexualidade. Nos primeirosestágios de vida os instintos sexuais não são frustradosseriamente pelo objeto, pois são auto-eróticos. Já os instintosde autopreservação podem ser frustrados, e se o forem deforma acentuada em etapas muito precoces determinam

* Apresentado em Reunião Científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, julho-2000.

** Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro.

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graves lesões do ego, ensejando a fixação de processosalucinatórios, que, em vez de estágios transitórios dodesenvolvimento normal, se manifestem na mente adulta.

Unitermos: sonho, psicose, sexualidade, autopreservação, ego.

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Development and regression are fundamental Freudian concepts:if the former describes mind normal structuring, the latterexpresses psychopathologic functioning. But dreaming is ahealthy regression, and this is the reason why it is the main toolto examine pathologic regressive phenomena, since it is theirnormal prototype. Neuroscientific experiences have confirmedthe Freudian thesis that dreaming is a primitive state of themind that reappears during sleep, in a way that it forms abridge between psychoanalysis, neuroscience and evolutionarytheory. A deepening in the neurobiologic aspects of dreamingopens the door to a wider view of psychoanalysis, whichincludes the consideration of life preservation as the mostfundamental instinctual drive. On this perspective, the ego canbe observed in its wholeness, in a way to follow the springingup of psychotic states, which originates in frustrations relatedto selfpreservation, differently from what happens to neuroses,which come from sexuality. Sexual drives are not severelyfrustrated by the object during the first stages of life, since theyare self-erotic. Selfpreservation drives, on the contrary, maybe frustrated. If they are intensely frustrated in early stages ofdevelopment, the ego may be severely disturbed. In this case,hallucinatory processes may be fixed, and instead of transitorynormal stages of development they appear in the adult mindas pathologic states.

Key words: dreaming, psychosis, sexuality, selfpreservation, ego.

Em outra oportunidade (1993) disse estar a psicanálise completandoentão o primeiro século de existência, considerando a Comunicação Preli-minar o marco inicial. Pareceria incoerência vir tanto tempo depois celebraro primeiro centenário novamente, tendo agora por referência a Interpreta-ção dos Sonhos. Deve ser lembrado, contudo, que Freud (1923a) definiu a

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psicanálise como sendo: (1) uma psicoterapia; (2) um método de investiga-ção do inconsciente; (3) uma nova doutrina científica.

Como uma psicoterapia, ela teve início com a experiência de Breuerdurante o tratamento de Ana O., no período 1880/82, só vinda a públicopreliminarmente em 1893 e definitivamente em 1895. Naquela época nãotinha ainda identidade própria, recebendo denominações genéricas, comopsicoterapia, análise psíquica, ou simplesmente tratamento psicológico.Como método de investigação do inconsciente, veio a lume em 1896, quan-do o termo psicanálise surgiu pela primeira vez, já então ligado ao métodode associação livre, substituto da hipnose. Esse método foi desde entãoconsiderado a regra fundamental da psicanálise, privilégio mantido atéhoje. Como uma teoria geral do aparelho psíquico, isto é, como a novadoutrina científica que marcaria o século XX, ela sem dúvida surgiu com aInterpretação dos Sonhos, em 1900. É sobre esta última característica dapsicanálise que pretendo discorrer aqui.

Desde que abraçou o método terapêutico criado por Breuer, Freudacalentou o desejo de descrever o funcionamento global do psiquismo,não só em seu lado patológico, mas também no normal. Mas a tarefaparecia inexeqüível, pois nada havia até então em que se basear para ori-entar uma descrição psicológica dessa natureza. Num esforço hercúleo,tentou fazê-lo a partir do conhecimento trazido da neurologia, esboçandouma psicologia para neurologistas, que nunca levou a cabo: o projetomostrou-se inviável, por vários motivos. Finalmente, depois que chegouao total desvendamento do segredo dos sonhos, a meta que se propôscomeçou a parecer mais próxima, ao observar nos sonhos indícios de algoalém do conteúdo latente recém-descoberto.

A revelação do mistério dos sonhos ensejou que o funcionamentode todo o psiquismo fosse compreendido, fato talvez responsável pelo aban-dono da prodigiosa psicologia neurológica esboçada anteriormente. Alémde corroborar a decifração já ocorrida do significado dos sintomaspsiconeuróticos, a elucidação do enigma do sonho propiciou avançar ain-da mais, para vasculhar todos os desvãos da alma, transcendendo o pato-lógico, mostrando não só aspectos da história individual, mas tambémabrindo perspectivas de compreensão do desenvolvimento pré-individual.

Esse feito já era em si mesmo notável o suficiente para ficar regis-trado como uma das maiores realizações do ser humano. Mas Freud nãoficou nisso. No mesmo ano da publicação da Interpretação dos Sonhos,disse a Fliess, em carta de 1.2.1900, que não era um pesquisador, ou umcientista, mas um conquistador. Com esse espírito, não satisfeito em des-

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cobrir o segredo dos sonhos e ter acesso aos aspectos mais recônditos daalma, lançou-se à tarefa suprema de descrever já não mais o sonho, mas oaparelho que produz o sonho. Era empresa sobre-humana, quase impossí-vel, já que nenhum conhecimento existia no plano científico em que pu-desse se basear. Na frustrada tentativa anterior do Projeto contara com osconhecimentos da neurologia. Para desvendar os sonhos, se valera da obrade ilustres pensadores que descreveram o fenômeno onírico sob as maisdiversas feições. Em relação ao aparelho que sonha, não podia contar comnenhum dado anterior. A esse respeito, logo após relatar tudo que desco-brira sobre os sonhos, disse:

“Deve ser entendido claramente que a parte fácil e agradável denossa jornada ficou para trás. Até aqui, a menos que eu esteja mui-to enganado, todos os caminhos ao longo dos quais viajamos con-duziam em direção à luz — à elucidação e à plena compreensão.Mas tão logo nos esforcemos por penetrar mais profundamente noprocesso mental envolvido no sonhar, cada caminho terminará naescuridão. Não há qualquer possibilidade de explicar os sonhoscomo processo psíquico, uma vez que explicar uma coisa significalevá-la de volta a algo já conhecido, e não existe no presente nenhumconhecimento psicológico estabelecido no qual possamos incluir oque o exame psicológico dos sonhos nos autoriza a inferir como umabase para sua explanação. Ao contrário, seremos obrigados a estabe-lecer diversas novas hipóteses na tentativa de tocar o aparelho psí-quico e o jogo de forças que nele operam”. (1900, pág. 511)

A partir daí, deu início ao Capítulo VII da Interpretação dos So-nhos, onde traçou a gênese e o desenvolvimento do psiquismo, estabele-cendo suas características e os princípios gerais de seu funcionamento, emsuma, criando a psicanálise como um nova doutrina científica. Era comose a genialidade se transfigurasse e transcendesse a si própria, esplendendoem algo inconcebivelmente ainda mais genial. Aliando a compreensão dosignificado dos sintomas psiconeuróticos à elucidação do processo onírico,pôde finalmente transformar a inviável linguagem neurológica do Projetoem outra adequadamente psicológica. Se antes só contava com insuficien-tes dados neurológicos para escrever uma psicologia que seria com certezarejeitada pela comunidade de neurologistas, agora dispunha de dados psi-cológicos por ele próprio levantados, suficientes para criar uma nova dou-trina científica, fazendo jus ao espírito de conquistador com que ele pró-

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prio se descreveu. Conseguiu fazê-lo sem abrir mão da convicção que oacompanhou por toda a vida: a de que a psicanálise é uma ciência natural.

Através da verificação do trajeto do pensamento onírico, com umsentido inicialmente progressivo, visando à ação, e sua mudança de rumo,tomando um sentido regressivo até atingir a percepção, estabeleceu umadas pedras angulares em que se assenta sua teoria, ou seja, o conceito deregressão. Descrita inicialmente como fenômeno topográfico, no sentidodo pólo perceptivo, a regressão foi descrita também com característicastemporais, de retorno a estruturas psíquicas mais antigas, e formais, devolta a formas primitivas de expressão. Essas três espécies de regressãoforam consideradas como sendo uma única, pois “o que é mais antigo notempo é mais primitivo na forma, e na topografia psíquica fica mais pertoda extremidade perceptiva” (1900, pág. 548).

A descoberta de que o sonho é uma realização alucinatória de dese-jo possibilitou não só o aprofundamento do conceito de regressão, mastambém a noção de desenvolvimento, que iria pouco depois tornar-secrucial, com o estudo, nos Três Ensaios, do Trieb sexual e da libido comosua energia. A verificação da finalidade última do sonho ensejou que fossetraçada a gênese do desejo, a partir de uma necessidade de preservação davida, o qual foi considerado o único motor do psiquismo. Implicitamenteligados ao conceito de desejo, surgiram simultaneamente as noções de per-cepção, registro mnêmico, representação (idéia), alucinação, inibição comoprotótipo de mecanismo de defesa, transformação de descarga aleatóriaem ação, pensamento (processo primário e processo secundário), princí-pio do prazer e princípio de realidade, enfim, todo o conteúdo da mente.

Nesse mesmo contexto, em que era delineado o núcleo germinativoda mente, o pensamento foi visto como sucedâneo da alucinação. Logo emseguida, o desenvolvimento do pensamento foi descrito, desde seusprimórdios, como fenômeno inconsciente, até sua apreensão pela consci-ência, vista como “órgão sensorial para a apreensão de qualidades psíqui-cas”. Foi mostrado que o aparelho psíquico tinha de sair da regulaçãopelo princípio do prazer por haver prazeres que ameaçam a vida. A inibi-ção da alucinação levou à saída do processo primário e à adoção do pro-cesso secundário, sendo este a princípio desprovido de consciência. Esta sósurgiu quando as representações até então desprovidas de qualidade psí-quica se ligaram a registros de palavras: os processos de pensamento setornarem conscientes graças a essa ligação (1900, Cap. VII, seções C e D).Antes de se ligarem às palavras, as representações eram concretas (repre-sentação-coisa), sendo inconscientes, apesar de constituírem o processo

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secundário. Embora não o tenha explicitado, Freud mostrou mais tardeque a fantasia inconsciente é um protótipo desse tipo de processo secundá-rio, inconsciente e pré-verbal (1915e). Essa idéia ficou, a meu ver, plena-mente esclarecida quando foi observado que o núcleo do ego é inconscien-te (1920g), sendo a maior parte dessa instância “inconsciente, no sentidoapropriado da palavra” (1923b), apesar de funcionar de acordo com oprocesso secundário.

Chama particularmente a atenção no Capítulo VII da Interpreta-ção dos Sonhos a idéia de desenvolvimento, implícita no processo regressi-vo descrito, como o ponto central da visão freudiana do psiquismo, ondeparece situar-se o alicerce de sua inabalável convicção de que a psicanáliseé uma ciência natural. Esse traço é tão marcante, que a coloca numa pers-pectiva evolucionária, de linha darwiniana. A onipresença da idéia de de-senvolvimento se traduz na conceituação de patologia como falha de de-senvolvimento geradora de ponto de fixação predisponente à regressão.Neuroses, psicoses, perversões, indicam a existência de formas primitivasde funcionamento da mente que deveriam ter sido suplantadas mas quenão o foram devidamente.

Da mesma forma, o sonho é descrito como um modo de funciona-mento mental que, apesar de ultrapassado, ressurge diariamente, mostran-do que ser suplantado como modo de funcionamento não significa a mes-ma coisa que ser eliminado. Ao contrário, permanece numa atividade clan-destina, a qual só não é percebida porque toda a atenção está voltada paraa atividade dominante de vigília. Cessada a vigília, essa atividade deixa asombra e se faz notar sob a forma de sonho. Esse processo mental primiti-vo está presente de modo semelhante em outras situações normais, comoas parapraxias, e em estados patológicos, como os sintomas neuróticos epsicóticos, fato revelador da relatividade da diferença entre a patologia e anormalidade, já que o sonho e as parapraxias ocorrem em estado de higidezpsíquica. Hughlings Jackson, citado por Freud, disse a esse respeito: “Des-cubra tudo sobre os sonhos e você terá descoberto tudo sobre a insanida-de” (Freud, 1900a, pág. 569n.). O insuspeito neurocientista J. A. Hobson,é ainda mais enfático: ‘O sonho não é um modelo de uma psicose. Ele éuma psicose. Só que é uma psicose saudável.’ (1994, pág. 44).

O sonho visto como psicose normal reforça a possibilidade de liga-ção da psicanálise com a teoria evolucionária, em que uma estrutura pri-mitiva participa da mais evoluída. Confirmando a idéia de Freud de que osonho é manifestação de estados primitivos da mente, Hobson verificou,através de experiências laboratoriais, que o fenômeno onírico se relaciona

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com uma alternância de estados de consciência em que estão implicadosprocessos bioquímicos em diferentes regiões do cérebro. Segundo esseneurocientista, a consciência de vigília resulta da ação de aminas, ao passoque a consciência onírica se deriva da predominância da atividadecolinérgica. Há apenas predominância e não inatividade, pois ambos ossistemas químicos estão permanentemente em ação, em estado de equilí-brio dinâmico, em que ora um ora outro prepondera. Desse modo, osestados de consciência estão em constante flutuação entre sonho e vigília.A ausência total de consciência ocorre quando nenhum dos dois sistemaspredomina, isto é, quando se neutralizam reciprocamente por estarem nomesmo nível — é o estado de sono sem sonhos. No cérebro, a atividadecolinérgica se concentra no tronco cerebral (ponte), estrutura situada mui-to remotamente na escala evolutiva; já a ação aminérgica se passa na re-gião cortical, surgida em estágio evolutivo mais recente.

O mesmo Hughlings Jackson citado por Freud o foi também porHobson. Segundo este, Jackson descobriu que a perda de uma função docérebro era compensada por um ganho em outra função, fato explicávelpela teoria darwiniana, segundo a qual funções superiores adquiridas poruma nova espécie suprimem funções inferiores — estas, apesar de suprimi-das, não são perdidas, ressurgindo quando as novas falharem (Hobson,1994, pág. 48).

Essa visão do sonho permite estabelecer uma ponte entre a psicaná-lise e a neurociência, aprofundando um diálogo sempre almejado por Freud.Este, ao demonstrar como o sonho exerce o papel de guardião do sono,postulou que, para executar essa função, a energia livre que impregna odesejo onírico inconsciente é vinculada pelo ego adormecido. Através des-sa vinculação, processos psíquicos inconscientes presentes em camadasprimitivas se fundem com processos situados em estratos mais recentes,tendo por resultado o mesmo fenômeno econômico-dinâmico-topográficoproduzido pela ação da psicanálise. Portanto, na visão freudiana, o sonhorealiza diariamente uma espécie de psicanálise natural, sendo esta sua fun-ção primordial.

Tendo por base experiências neurocientíficas, Hobson (1994) con-cluiu que o fenômeno onírico tem por finalidade principal a consolidaçãoe a reorganização da memória de experiências recentes. Durante o dia asexperiências são registradas e associadas por mediação de aminas, queproduzem uma memória de curto termo. Durante o sono, a mediação sefaz pela acetilcolina, responsável pela produção de memória de longo ter-mo, sendo essa consolidação da memória facilitada pelo fato de o estado

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de sono impedir a aquisição de novos registros. Além da consolidação damemória de experiências recentes, o sonho promove, através da mediaçãoda acetilcolina, a distribuição dessa memória a toda a ampla rede de circui-tos neurais do córtex cerebral, originando um processo de hiperassociaçãoformador de categorias cognitivas. Nesse processo estão incluídos progra-mas motores de que participam os arquivos preexistentes de ações progra-madas anteriormente, modificadas pela anexação da memória das novasexperiências. Esses programas de ação nunca são tão ativos quanto nossonhos, embora o sejam apenas no plano virtual, pois o acesso à realidadeexterna está interditado. Em suma, é no sonho que a experiência adquiri-da é definitivamente incorporada ao patrimônio psíquico, ao mesmo tem-po que passa a ocupar um lugar no planejamento de ações futuras, que sãotestadas virtualmente por meio de ações oníricas, que nos fazem caminhar,correr, voar etc.

Hobson declara haver crescente evidência de que dormimos paraque o cérebro processe os dados da experiência, codificando-os permanen-temente como lembranças, hipótese que, se confirmada consensualmentepelos neurocientistas, nos obrigará a inverter a afirmação de Freud de queo sonho é o guardião do sono; neste caso, pareceria mais verdadeiro quedormimos para sonhar, a fim de que o aparelho psíquico possa fazer usoda experiência adquirida.

Vê-se que, tanto do ângulo freudiano, quanto da visão neurocientíficade Hobson, há uma interação de aspectos primitivos e recentes, fato queremete mais uma vez à sintonia da psicanálise com a teoria evolucionária.Segundo esta, a evolução não ocorre de modo global, produzindo umaespécie inteiramente nova. Ao contrário, ela se passa em setor restrito doorganismo. Uma mutação ocorrida em pequena região que se mostreadaptativa pode determinar o surgimento de uma nova espécie, que abri-gará a estrutura da anterior. Por isso, após sucessivas mutações ocorridasdesde que a vida surgiu em nosso planeta há cerca de quatro bilhões deanos, em razão das quais incontáveis espécies se multiplicaram, todos osseres vivos continuaram possuindo os mesmos compostos orgânicos bási-cos, diferenciando-se apenas em relação à complexidade e ao modo deorganização desses compostos. É conseqüência disso o fato de o ser huma-no e o chimpanzé partilharem cerca de 99% do DNA, demonstração elo-qüente de sua proximidade na escala evolutiva, como descendentes de an-cestral comum.

Desse modo, o ser humano mantém em funcionamento em seu or-ganismo estruturas herdadas filogeneticamente de outras espécies, como

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as do cérebro, que são as que nos interessam aqui mais de perto. Como foivisto acima, a ponte, situada no tronco cerebral, é uma estrutura primitivaprincipal responsável pela produção da acetilcolina predominante no cé-rebro durante o sonho. Essa mesma acetilcolina, segundo a hipótese deHobson, é responsável pela fixação da memória de longo termo, sem aqual o registro das experiências teriam curta duração. Esse fato evidenciaum processo de integração da mente, onde aquisições mais recentes depen-dem de estruturas mais primitivas, herdadas filogeneticamente. Estamos,no caso, falando de processos cognitivos, ou seja, da esfera do ego, mas omesmo se passa em relação aos emocionais, originários do id. Também asemoções se iniciam em estruturas mais antigas, como a amígdala, que seassociam a outras de aquisição menos remota, como o hipocampo, atéatingir o córtex.

Em termos psicanalíticos, os sonhos e os processos psicopatológicosapenas abrem a cortina para que modos primitivos de funcionamento sur-jam no palco do psiquismo, em situações onde os modos mais evoluídosnão podem desempenhar plenamente seu papel. A existência de uma psi-cose saudável revela que os aspectos primitivos, apesar de parecereminexistentes a maior parte do tempo, têm relevância no funcionamento dopsiquismo. Esses aspectos primitivos constituem a essência do inconscien-te, a que se junta o material reprimido posteriormente. Por outro lado,Freud falou da possibilidade de ser o inconsciente fruto de herança genéti-ca, à semelhança dos instintos dos animais (1915e). Reiteraria essa possi-bilidade diversas vezes, admitindo a existência na criança de um conheci-mento instintivo parecido com o dos animais (1918b [1914]). Parecia serum defensor entusiástico da hipótese de existirem fatores psíquicos herda-dos geneticamente, tendo em um de seus últimos trabalhos atribuído tam-bém ao ego essas características, admissão que considerou não constituir‘qualquer supervalorização mística da hereditariedade” (1937c).

A hipótese de um instinto semelhante ao dos animais constituir onúcleo do inconsciente (1915e) reflete a meu ver de modo nítido a influên-cia darwiniana sobre o espírito de Freud. Já nem me refiro a sua admira-ção pelos grandes líderes, ou a algumas de suas grandiloqüentes frases, emque se pode vislumbrar uma conotação de seleção natural do mais apto naluta pela vida, como a clássica afirmação de que “Deus está do lado dosgrande batalhões” (1940a [1938]), ou “a anatomia é o destino”, esta últi-ma sendo uma paráfrase de outra por ele atribuída ao “grande [sic]Napoleão” (1912d, pág. 189). Prefiro ater-me à própria concepção damente, que surge a partir do registro mnêmico da percepção de uma ne-

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cessidade biológica e de sua satisfação, de onde se origina o núcleo dodesejo. A mente se desenvolve em torno da escolha do melhor modo derealização do desejo, iniciando-se por meio da alucinação e, a partir des-ta, desenvolvendo-se até o pensamento abstrato verbal e a consciência(1900). Mais tarde Freud fará da necessidade de preservação da vida onúcleo do conceito de Trieb, em torno de cujos representantes psíquicos– quota de afeto e representação (idéia) – desenvolverá sua metapsicologia(1915c, 1915d e 1915e).

Há nisso tudo uma espécie de projeto evolutivo em que dispositi-vos anteriores permanecem ativos, funcionando numa espécie de compen-sação dinâmica com os posteriores, havendo entre eles uma interação deforças, uma ação recíproca determinante do funcionamento total da men-te. A libido, por exemplo, passa por fases evolutivas geneticamente deter-minadas, sem que nenhuma delas fique eliminada. O ego também passapor desenvolvimento semelhante, indo da alucinação, característica doprocesso primário, até o pensamento abstrato e verbal, que constitui oprocesso secundário em sua plenitude.

Deve ser digno de registro especial o fato de Freud ter deixado deanalisar o desejo sexual nos sonhos, tendo-se esquivado até mesmo derelatar sonhos de conteúdo sexual, apesar de sua ocorrência tão corriquei-ra e abundante. Tão inusitada omissão foi atribuída à intenção de evitar aabordagem das perversões e da bissexualidade, sobre as quais não tinhaainda uma idéia clara. Mas deve-se lembrar que, ao descrever a gênese dodesejo, deu-lhe como origem a necessidade de preservação da vida. Repe-tiu isso muito tempo depois, quando fez seu estudo do Trieb (1915c), oqual foi vinculado à mesma necessidade, numa época em que já dissecaraamplamente a sexualidade e já lhe dera o lugar de maior destaque na ori-gem das neuroses.

Apesar disso, nos estudos metapsicológicos e no relato de casos clíni-cos, não conferiu qualquer função à autopreservação, dando-lhe, quandomuito, um papel de coadjuvante da sexualidade. Ao conceituar o narcisismo,notoriamente ligado à autopreservação, considerou-o originário da libidosexual, sendo o “complemento libidinal do egoísmo do Trieb deautopreservação, que pode ser justificadamente atribuído a toda criaturaviva” (1914c, pág. 73/74). Estudou o narcisismo apenas do lado da sexua-lidade, omitindo-se em relação ao “egoísmo do Trieb de autopreservação(do ego)”.

Quando abandonou o conflito anterior entre o Trieb sexual e o deautopreservação (do ego), assumindo a nova hipótese de oposição entre o

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Trieb de vida e o de morte, a sexualidade e a autopreservação perderam aautonomia anterior, passando a compor o Trieb de vida, do qual a libidopassou a ser a energia – a libido deixou, pois, de ser exclusiva da sexuali-dade (1920g). Ainda assim, só o componente sexual do Trieb de vida re-cém-conceituado prosseguiu com o privilégio de aparecer em todas as for-mulações teóricas, continuando o componente de autopreservação a serdesprezado como fator de estruturação da mente. O Trieb de vida foi de-nominado Eros, nome que, por sua conotação sexual, levou Freud até aconsiderar a autopreservação como parte da sexualidade, embora o tenhafeito de modo impreciso e bastante enigmático, dando a impressão de quenão queria abordar a autopreservação (1920g e 1923b), da mesma formaque se esquivara de estudar a sexualidade no estudo dos sonhos (1923b).Pode-se dizer que a autopreservação é a face oculta da metapsicologiafreudiana, sobre cuja importância crucial ele fez menção ao longo de todasua obra, mas sobre a qual lançou apenas uma luz bruxuleante e hesitante.

A negligência do papel das exigências da vida na estruturação dopsiquismo trouxe dificuldades de compreensão de inúmeros aspectos daobra de Freud, principalmente quando se sabe de sua convicção de que aautopreservação é uma função do ego. Tal atribuição confere importânciafundamental a essa instância, que parece não ter sido reconhecida pelamaioria dos psicanalistas, em razão da atitude de Freud. O estudo donarcisismo teve uma limitação notória, por ter sido feito apenas do ânguloda sexualidade.

Apesar de tal relutância em penetrar na autopreservação, observa-se que ela perpassa toda a obra freudiana, impregnando até mesmo cadaum de seus recantos mais obscuros, como uma espécie de oxigênio — ape-sar de invisível, não se vive sem ele. Penso que se pode encontrar no pró-prio Freud o instrumental necessário para analisar esse oxigênio vital. NoProjeto, o tema é tão presente, que vejo naquela obra uma espécie deneuropsicologia do ego. Na Interpretação dos Sonhos, é o fio condutor dametapsicologia do desejo e de tudo que se desenrola a partir dele. Quandoo conceito de Trieb foi formulado, sua origem foi rastreada a partir deestímulos provenientes de necessidades básicas, geradoras de estímulosdentre os quais foram citados como exemplo a secura da mucosa da faringe,na sede, e a irritação da mucosa do estômago, na fome. Foi dito igualmen-te que a finalidade do sistema nervoso seria dominar o estímulo originadordo Trieb, o que só se tornaria possível através de uma ação adequadacapaz de eliminar o estímulo e satisfazer a necessidade. O próprio sujeitonão está apto no início para praticar a ação eficaz, só exeqüível através de

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um objeto (1915c). Freud mostrava aqui a essencialidade da autopreservaçãodesde o início, ao contrário da sexualidade, que só se torna essencial maistarde. Mostra que no início a sexualidade é auto-erótica, prescindindo deum objeto. Só muito mais tarde o objeto se torna indispensável para o Triebsexual, ao passo que o é desde o início para a autopreservação. Deste modo,a libido é inicialmente auto-erótica e narcísica, enquanto a autopreservaçãoé objetal.

Apesar desse luminoso insight, Freud só atribuiu característicasobjetais à sexualidade, considerando a autopreservação egoísta, apesar daimpossibilidade de o sujeito sobreviver sozinho. Neste sentido, cabe lembrarque até Robinson Cruzoé tinha um papagaio capaz de representar a voz deum objeto humano, fato que lembra bastante a descoberta de Freud de queo esquizofrênico, não suportando a retirada da libido dos objetos, dirige-a àpalavra que o nomeia (1915e). Por isso, constatou que o narcisismo total, aque se chega diariamente durante o sono, é uma postulação teórica, pois naverdade o sonho revela a existência da perpétua busca do objeto pela libido,nisto consistindo o desejo onírico (1917d [1915]).

Embora Freud não tenha levado sua idéia às últimas conseqüências,a conceituação da libido como energia do Trieb de vida, pertencendo nãosomente à sexualidade, mas também à autopreservação, permite uma visãomais ampla e integrada do psiquismo, além de coincidir com verificaçõescientíficas recentes. A neurociência atual, por exemplo, tende a considerar amente como o trabalho do cérebro, todas as atividades deste tendo porfinalidade a preservação da vida. Damásio (1994) diz haver circuitos neuraisinatos que, assistidos por processos bioquímicos no restante do corpo, res-pondem a estímulos sob a forma de emoções, sentimentos e ações com opropósito de manter (alimentação), defender (agressividade) e prosseguir(sexualidade) a vida. O desenvolvimento cognitivo se incorporaria a essesdispositivos inatos, de modo que o raciocínio lógico tem função de preser-vação da vida (1994).

Essa descrição neurocientífica está em consonância com a visãofreudiana, não obstante esta não se ter desvinculado da idéia inicial de quea sexualidade governa o psiquismo, ao invés de considerá-la como fator depreservação da vida, tanto quanto o são a agressividade e a autopreservaçãopropriamente dita. Esse exclusivismo da psicossexualidade trouxeincontáveis dificuldades teóricas, com repercussões clínicas notórias, poisforam considerados como fazendo parte dela elementos da esfera daautopreservação, em outras palavras, como pertencendo ao id o que defato é do ego. Por isso, o inconsciente do ego, entremostrado sob a forma

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de fantasia inconsciente em 1915, tornado explícito em 1920 e enfatizadoem 1923, jamais foi desenvolvido.

Em resumo, para desvendar o mistério dos sonhos Freud teve querastrear o psiquismo num processo regressivo revelador do núcleo do in-consciente, o qual transcende o indivíduo e a própria espécie. Esse mergu-lho regressivo revelou o processo de desenvolvimento a partir daquelenúcleo, sem ter sido preciso lançar mão do que fora descoberto antes, pormeio da decifração do sentido dos sintomas psiconeuróticos, onde a sexu-alidade ocupava o ponto central. Ao descrever o aparelho que sonha colo-cando as “exigências da vida” nesse ponto nuclear, deu margem a que sepossa refletir sobre o papel da autopreservação no psiquismo.

Esse papel tem sido negligenciado sistematicamente, sob a alegaçãode que não é possível detectá-lo por não ser alvo de repressão, como o éa sexualidade. No entanto, a gênese do desejo traçada por Freud respon-de a essa questão com clareza. Numa época primitiva, em que o psiquismoera regulado pelo automatismo prazer–desprazer, todo o desprazer pro-vinha de frustrações de necessidades ligadas à autopreservação, já queas satisfações auto-eróticas não tinham barreira, pois não dependiam doobjeto. Tendo em vista que nessa época estava se processando aestruturação básica do aparelho psíquico, pode-se depreender a impor-tância de frustrações nessa fase inicial. A regulação pelo automatismoprazer–desprazer fazia com que a defesa nesse estágio consistisse em umafuga das lembranças (representações) desprazerosas. Só muito mais tar-de surgiria a repressão como defesa contra o Trieb sexual, o que só setornou possível quando este deixou de ser predominantemente auto-eró-tico, passando a depender do objeto. Antes disso, a defesa não afetava oTrieb sexual, mas somente a então embrionária estrutura do ego. Pode-seimaginar a que lesões o ego está sujeito, tendo em vista incontáveismicrotraumas derivados de frustrações maiores ou menores que podemocorrer nessa fase, sem que o ambiente se dê conta do potencialpatologizante de eventos aparentemente insignificantes.

Uma vez desenvolvido o Trieb sexual, sendo superada a fase auto-erótica e atingida a objetal, a repressão pode fazer com que a libido sejaretirada do objeto externo, circunstância em que, mediante introversão,ela pode voltar-se para um objeto da fantasia, como acontece tipicamentenas psiconeuroses. Uma repressão tão drástica que fizesse a libido retirar-se completamente do objeto, mesmo o da fantasia, levá-la-ia ao estágioanterior de narcisismo primário, ou de auto-erotismo, dando origem àpsicose (1914c).

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Apesar de Freud não ter dado uma descrição completa e convin-cente da razão por que o retorno ao auto-erotismo do narcisismo primá-rio leva à psicose, penso que a explicação pode ser encontrada nasupracitada descrição da origem do desejo. O Trieb de autopreservaçãonão é passível de repressão, podendo sua satisfação ser, no máximo, adi-ada, fato gerador de frustrações traumáticas de maior ou menor intensi-dade. Processos defensivos de tipo alucinatório revelam-se de eficiênciafugaz, de modo que o aparelho psíquico terá de inibir o caminho para aalucinação e suportar certo grau de frustração até que o desejo possa serrealizado. Com o desenvolvimento do aparelho, o pensamento de proces-so secundário substituirá a regulação pelo automatismo prazer–desprazer,orientando o desejo no sentido do objeto. Entretanto, antes de isso serconseguido, a espera pela realização do desejo terá produzido frustra-ções traumáticas em maior ou menor escala, de cujos traços mnêmicos oaparelho fugirá, enquanto vigorar a regulação pelo automatismo pra-zer–desprazer. Essa fuga será um protótipo dos mecanismos de defesa dadivisão e da negação, os quais serão substituídos em estágio evolutivomais avançado pela repressão. Raciocinando com o próprio Freud, vere-mos que o retorno da libido à fase auto-erótica provocará uma volta tam-bém a um ego incipiente, que se defende por meio de mecanismos primá-rios, como divisão, negação ou até mesmo, em última instância, a aluci-nação.

Isto posto, o fator patologizante não seria apenas o acúmulo delibido narcísica no ego, como Freud fez crer em seu estudo inicial donarcisismo, quando raciocinou em termos exclusivamente econômicos epsicossexuais (1914c). Levando em conta o ego como uma estrutura, pare-ce que o fator crucial nessa patologia narcísica é a regressão a uma formaprimitiva de funcionamento de um ego incipiente, inteiramente dependen-te do objeto, que se defende dos microtraumas quotidianos por meio daevitação de registros mnêmicos, forma prototípica dos mecanismos de de-fesa de negação e divisão. Nesses casos, não é só a libido sexual que estáem jogo, através de uma regressão da fase objetal para a fase narcísicaprimária, mas também o próprio ego, que regride a um modo primitivo defuncionamento.

Embora Freud, para explicar os quadros de patologia narcísica,não tenha feito uso da derivação do desejo a partir da necessidade deautopreservação, deve ser lembrado que se referiu a regressões não só dalibido sexual, mas também do ego. Talvez não tenha sido por simples co-incidência que fez isso num trabalho em que tratou da metapsicologia dos

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sonhos: “Distinguimos duas regressões (isto é, a quantidade de recessãodo desenvolvimento) – uma afetando o desenvolvimento do ego e a outra oda libido. No estado de sono a última é levada ao ponto de restaurar oprimitivo narcisismo, enquanto o primeiro volta ao estágio de satisfaçãoalucinatória dos desejos” (1917d [1914], págs. 222/3). Em outras palavras,no sonho o ego volta a um estado de psicose em que ainda não é capazsequer de usar os mecanismos de divisão e negação.

No entanto, é uma psicose saudável. A normalidade se caracterizapor tal estado regressivo manifestar-se sem que a parte desenvolvida do egotenha sofrido distúrbio, estando apenas recolhida ao estado de sono. A pa-tologia consiste em falência da parte desenvolvida do ego, quando a parteprimitiva domina o quadro em plena vigília, sem se tratar de um processofisiológico normal, como ocorre no sono. Mais uma vez vemos a patologiacomo algo que se passa no ego. O id propriamente dito não adoece, provo-cando patologia quando invade o ego, por motivo de fragilidade deste — adoença é sempre do ego. A rigor, a única ‘patologia’ atribuível originalmenteao id seria aquela decorrente de sua força inata, mas mesmo nesse caso suaação se faz sentir sobre o ego.

Para finalizar, gostaria de reiterar que o sonho é um fenômeno re-gressivo que resgata aspectos pré-históricos do desenvolvimento psíquico,desde tempos absolutamente imemoriais. Em termos de evolução da própriapsicanálise, penso que através do processo onírico Freud preparou o terrenopara o conhecimento da intimidade do ego, instância possuidora de funçõesessenciais que não se relacionam, em grau de dependência, aos estados sexu-ais da mente: sua função precípua se radica na preservação e na melhoria dequalidade da vida, em torno da qual gravitam todas as demais funções.

Muito tempo depois da dissecação dos sonhos, deu contribuiçãodecisiva para a compreensão desse papel fundamental do ego, ao declarara existência de algo anterior ao todo poderoso princípio do prazer (1920g).Embora seja costume ver o Trieb de morte como esse algo que se situaalém do princípio do prazer, Freud deixou clara a intenção de mostrar queo prazer é secundário a um processo anterior de vinculação da energialivre, condição primária sine qua non para que o prazer sobrevenha. Afir-mou que o princípio do prazer é uma tendência que opera a serviço dafunção de dominar a energia livre, tornando-a quiescente. Nesse mesmolugar, atribuiu a manutenção da vida ao fenômeno da vinculação, pois seexistisse apenas a energia livre haveria descarga imediata, equivalente à morte.Como a ação vinculatória é da competência do ego, pode-se depreender o

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motivo por que ele foi associado à autopreservação.Freud (1916-17) vaticinou que uma compreensão melhor da psicose

levaria no futuro a tão ampla compreensão do ego, que tornaria de impor-tância secundária todo o conhecimento da libido sexual adquirido a partirdas psiconeuroses de transferência. No entanto, a semente dessa compreen-são já fora plantada no estudo do sonho. Sendo este uma psicose saudável, épossível, através da regressão do pensamento onírico à fase alucinatória,reconstituir o desenvolvimento do ego a partir dessa fase até chegar a seusucedâneo, o pensamento de processo secundário pleno. Se o material sexualreprimido se manifesta nos sintomas neuróticos, o ego, não sendo reprimível,pois é a própria instância repressora, revela na psicose sua face inconscientepresente em processos de divisão, negação, projeção, delírio e alucinação.

A hipótese neurocientífica de Hobson também me parece apontar nadireção do inconsciente do ego. Como foi visto antes, o sonho teria a funçãode fixar a memória e organizá-la associativamente, processo cognitivo de ine-quívoca competência do ego. Além disso, a memória organizadaassociativamente participaria da programação da ação num plano virtual,antes de ser executada na realidade externa pela musculatura. Tendo em vistaque a ação também é uma função do ego, temos que os movimentos virtuaisocorridos no sonho são também expressão do ego inconsciente. Apesar damultiplicidade de aspectos do psiquismo presentes no fenômeno onírico, arevelação do inconsciente do ego, no que ele representa de vinculação de ener-gia livre, me parece constituir a importância maior do sonho.

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Boletim Científico da SPRJ.

BREUER, J. - FREUD, S. (1893a) On the psychical mechanism of hysterical

phenomena: preliminary communication. S. E. 2.

_____ (1895d) Studies on hysteria. S. E. 2.

DAMÁSIO, A. (1994) Descartes’ Error – Emotion, Reason and the Human Brain.

Londres: 1996, Papermac.

FREUD, S. (1896a) Heredity and the aetiology of the neuroses. S. E. 3.

_____ (1900a) The interpretation of dreams. S. E. 4 e 5.

_____ (1905d) Three essays on the theory of sexuality. S. E. 7.

_____ (1912d) On the universal tendency to debasement in the sphere of love. S. E. 11.

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133

Psicanalítica – A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

R E G R E S S Ã O E D E S E N V O L V I M E N T O

_____ (1914c) On narcissism: an introduction. S. E. 14.

_____ (1915c) Instincts and their vicissitudes. S. E. 14.

_____ (1915d) Repression. S. E. 14.

_____ (1915e) The unconscious. S. E. 14.

_____ (196-17) Introductory lectures on psycho-analysis. S. E. 16.

_____ (1917d [1915]) A metapsychological supplement to the theory of dreams. S. E. 14

_____ (1917e) [1915]) Mourning and melancholia. S. E. 14.

_____ (1918b [1914]) From the history of na infantile neurosis. S. E. 17.

_____ (1920g) Beyond the pleasure principle. S. E. 18.

_____ (1923a) Two encyclopaedia articles. S. E. 18.

_____ (1923b) The ego and the id. S. E. 19.

_____ (1950a [1895]) Project for a scientific psychology. S. E. 1.

_____ (1985 [1887-1904] A Correspondência Completa de Sigmund Freud para

Wilhelm Fliess. Imago Editora Ltda. Rio de Janeiro, 1986

HOBSON, J. A. (1994) The Chemistry of Conscious States - How the Brain Changes

its Mind. Londres: Little, Brown.

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134 Victor Manoel Andrade

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Psicanalítica – A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

R E G R E S S Ã O E D E S E N V O L V I M E N T O

As relações da psicanálise coma Universidade: a SPRJ e o IPUB

Sérgio de Freitas*

Elie Cheniaux**

R E S U M O

Na primeira parte do artigo, os autores descrevem o históricodas complexas relações de Freud, e conseqüentemente dapsicanálise, com a Universidade. São reportadas as conhecidasresistências da Universidade à teoria psicanalítica, assim comoos receios e as dúvidas do próprio Freud quanto a essaaproximação. Na segunda parte, os autores homenageiam aantiga e produtiva relação entre a Sociedade Psicanalítica doRio de Janeiro (SPRJ) e o Instituto de Psiquiatria da UniversidadeFederal do Rio de Janeiro (IPUB).

Unitermos: História; Psicanálise; Universidade; Rio de Janeiro.

S U M M A R Y

On the first part of this article, the authors describe the historicalof the complex relations of Freud, and consequently ofpsychoanalysis, with University. The well-known resistancesfrom University against psychoanalytic theory, as well Freud’sfears and doubts about this approach are related. On the secondpart, the authors do homage to the old and productiverelationship between Psychoalytical Society of the Rio de Janeiro(SPRJ) and Institute of Psychiatry of Federal University of Riode Janeiro (IPUB).

Keyword: History; Psychoanalysis; University; Rio de Janeiro.

*Psicanalista, membro associado da SPRJ e Professor da UFRJ/IPUB.

**Psicanalista, membro associado da SPRJ, Professor da UERJ e Médico-Psiquiatra da UFRJ/IPUB.

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136 Elie Cheniaux e Sérgio de Freitas

FREUD E A UNIVERSIDADE

“Sobre o ensino da psicanálise nas universidades”, de 1919, foiescrito por Freud, segundo James Strachey, por ocasião da inclusão dapsicanálise no currículo da Universidade de Budapeste, no momento emque Ferenczi foi nomeado professor de psicanálise, o que teria causadogrande agitação entre os estudantes. O trabalho antecedeu também o VCongresso Psicanalítico Internacional, justamente em Budapeste, haven-do, portanto, expectativas quanto à possibilidade de debates a respeito danova disciplina.

Nesse artigo, após referências à reduzida presença da psicanálisenos meios acadêmicos, Freud mostra ter esperanças de que essa situaçãoviesse a se modificar. Logo no início do texto, afirma que “a inclusão dapsicanálise no currículo universitário seria sem dúvida olhada com satisfa-ção por todo psicanalista” e que a organização das sociedades psicanalíti-cas se deve justamente à ausência da psicanálise nas universidades.

Um pouco adiante, Freud revela a dimensão de suas expectativas aoimaginar de que maneira a psicanálise poderia se inserir na formação acadê-mica, apostando que ela pudesse vir a reparar falhas na formação médicaque, segundo ele, atribuía valor excessivo à anatomia, à física e à química,produzindo um certo desinteresse no aluno por questões humanísticas.O ensino da psicanálise na faculdade de medicina se processaria em duasetapas: um curso elementar a todos os estudantes de medicina e aulas espe-cíficas aos psiquiatras.

Contudo, a presença da psicanálise nos cursos universitários não seresumiria à medicina. Ao contrário, Freud imagina também que a psicaná-lise, como método de investigação, poderia e deveria ser aplicada à solu-ção dos problemas da arte, da filosofia, da religião, da mitologia e dahistória das civilizações. E para fins de pesquisa, seria necessário apenasque “os professores de psicanálise tivessem acesso a um departamentohospitalar de clientes externos, que suprisse o material necessário no quediz respeito a pacientes ‘neuróticos’”.

As aspirações de Freud com relação à Universidade não se encerramcom a inclusão da psicanálise nos currículos acadêmicos de diversos cursos,mas culminam com a possibilidade da criação de uma faculdade de psicaná-lise. Essa idéia, que ele reconhece como um tanto quanto fantástica, ao me-nos para a época, está expressa no artigo “A questão da análise leiga”, de1926. O hipotético curso de psicanálise reuniria então o ensino de discipli-nas de áreas tão diversas quanto medicina, psicologia, história, artes etc.

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Para Freud, as conhecidas resistências à psicanálise nos meios aca-dêmicos de maneira geral, e no meio médico em particular, somadas àcriação dos institutos das sociedades para a formação de psicanalistas (ondeuma certa pureza ideológica foi sendo defendida), levaram, sem dúvida, aum isolamento considerável da psicanálise, e dos psicanalistas, em relaçãoà Universidade.

Mas as queixas de Freud com relação à modesta presença da psica-nálise na Universidade, revelam algo que está além da decepção pelo fatode não vê-la reconhecida nos meios acadêmicos. Elas expõem uma difícilrelação com a Academia ao longo de sua vida, especialmente com a Uni-versidade de Viena.

De fato, Freud era Privatdozent (Livre-Docente) desde 1885, porindicação de dois influentes colegas, Hermann Nothnagel e Richard VonKrafft-Ebing, e aspirava uma promoção ao nível de AusserordentlicherProfessor, ou seja, professor-extraordinário ou professor-assistente. Con-siderava que uma cátedra “eleva o médico em nossa sociedade a umsemideus para seus pacientes”.

Apesar da importância que atribuía a esta promoção, segundo PeterGay, relutou em pedir ajuda política, ou seja, uma indicação que a assegu-rasse. Mesmo sendo aprovado em 1897 pela comissão designada paraindicá-lo ao Conselho Docente da Faculdade de Medicina da Universida-de de Viena e de ter visto também seu nome endossado por este Conselho,só em 1902 o Imperador Francisco José assinou o decreto que deu a Freudo título de professor-extraordinário.

A desejada carreira acadêmica sofre assim um retardo de 17 anos,em razão das claras resistências enfrentadas por Freud, seja por anti-semitismo (que conheceu ainda estudante na mesma Universidade de Vie-na), seja por seus confrontos com a instituição médica, em virtude de suasrevolucionárias teorias.

As resistências às idéias de Freud o acompanharam desde a ocasiãoem que apresentou seus relatórios sobre a estada em Paris, com Charcot,na Salpetriêre. Voltando de lá, na Páscoa de 1886, ao apresentar um rela-tório à Faculdade de Medicina, de quem recebera a bolsa para a viagem,falou com grande entusiasmo sobre a experiência com Charcot. Os cole-gas foram muito pouco receptivos. Mas recepção ainda pior teve na Asso-ciação Médica de Viena, no mesmo ano, quando apresentou trabalho muitosemelhante ao relatório da viagem a Paris, tendo sido duramente atacado.

Inicia-se já nesta época o isolamento que a Academia lhe reservariapor tantos anos. Em 1896, ao apresentar uma conferência sobre a etiologia

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138 Elie Cheniaux e Sérgio de Freitas

da histeria na Associação de Psiquiatria e Neurologia, seu colega na Uni-versidade Krafft-Ebing, o mesmo que o indicara para ser Privatdozent,considerou um “conto de fadas científico” o conteúdo de suas teses.

É bem verdade que a má acolhida por parte da Academia e dainstituição médica, resultando em, como ele mesmo denominou, anos de“esplêndida solidão”, é considerada, por outro lado, como um dos moto-res da sua obstinada luta para difundir e provar suas teorias. E para isso,Freud, em aparente paradoxo, sempre contou com a própria Universida-de. Em 1909, se mostra entusiasmado com o convite de Stanley Hall, rei-tor da Universidade Clark, para uma série de cinco conferências, por oca-sião das comemorações dos vinte anos de fundação daquela instituição. E omesmo se pode dizer a respeito das “Conferências Introdutórias sobre Psica-nálise”, apresentadas na Universidade de Viena, nos invernos de 1915/16 e1916/17, e que em razão do sucesso de público, composto por médicos enão-médicos, foram publicadas posteriormente e se tornaram um dos tex-tos mais vendidos e traduzidos de Freud.

Ao mesmo tempo em que afirmava poder prescindir da Universidadepara a consolidação da psicanálise e para a formação de analistas, Freudbuscava o reconhecimento “oficial” da Academia. É o que se poderia dedu-zir, por exemplo, da sua reação, por ocasião dos primeiros sinais de interes-se, fora do círculo acadêmico, pela psicanálise na França. Vários escritoresimportantes, no início da década de vinte (a primeira sociedade de psicaná-lise na França só foi criada em 1926), faziam análise e se manifestavamfrancamente a favor das descobertas de Freud, a ponto de André Breton,representando o influente e entusiasmado grupo de escritores surrealistas,conseguir um encontro com Freud. Mas volta extremamente decepcionadocom a fria acolhida de Freud aos estudos e publicações do grupo.

A reduzida penetração que vinha tendo a psicanálise nas primeirasdécadas do século passado nos meios médico e acadêmico franceses podeter deixado Freud pouco esperançoso de que aquele criativo, porém polê-mico, grupo de jovens intelectuais – como André Breton, René Crevel,Paul Éluard, Louis Aragon, Boris Vian, entre outros – pudesse quebrar asresistências enfrentadas nestes meios pela psicanálise. Sobre essas resistên-cias e as tentativas de diminuí-las, é digno de nota que por ocasião dolançamento das “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” na Fran-ça, o tradutor, em longo prefácio, faça uma extensa e cuidadosa defesa doautor e das idéias apresentadas no livro, antes mesmo do próprio autor.Convoca a atenção especial do seu público-alvo, médicos e cientistas, e semostra insatisfeito com o fato de a doutrina e o método psicanalíticos

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estarem restritos à aplicação que vinha sendo dada por escritores e drama-turgos. Relata pedagogicamente a importância e o acerto da teoria e dosconceitos freudianos, antecipando-se a uma possível repercussão negativa.

Mas, diante de tão grandes aspirações de Freud com relação à inclu-são da psicanálise no ensino universitário, o que terá ocorrido para o afasta-mento de décadas, além das resistências às suas idéias? De que maneira oisolamento de Freud e dos psicanalistas poderia estar servindo às suas pró-prias intenções? Um possível elemento de resposta está no fato de que coabi-tavam em Freud as expectativas de um relacionamento mais profundo dapsicanálise com a Universidade e suas próprias resistências à desejada apro-ximação. O risco de que a psicanálise pudesse vir a se tornar uma especiali-dade médica não o agradava. Expressou claramente este receio no texto “Aquestão da Análise Leiga”, ao afirmar para seu interlocutor imaginário:

Não consideramos absolutamente conveniente para a psicanáliseser devorada pela medicina e encontrar seu último lugar de repou-so num livro de texto de psiquiatria sob a epígrafe ‘Métodos deTratamento’, juntamente com procedimentos tais como sugestãohipnótica, auto-sugestão e persuasão, que, nascidas de nossa igno-rância, têm de agradecer a indolência e a covardia da humanidadepor seus efeitos efêmeros. Merece melhor destino e, pode-se espe-rar, o terá. Como uma ‘psicologia profunda’, uma teoria do incons-ciente mental, pode tornar-se indispensável a todas as ciências quese interessam pela evolução da civilização humana e suas princi-pais instituições como a arte, a religião e a ordem social. Em minhaopinião ela já proporcionou a essas ciências considerável ajuda nasolução de seus problemas. Mas essas são apenas pequenas contri-buições em confronto com o que poderia ser alcançado se historia-dores da civilização, psicólogos da religião, filósofos e assim pordiante concordassem em manejar o novo instrumento de pesquisaque está a seu serviço. O emprego da análise para o tratamento dasneuroses é somente uma das suas aplicações; o futuro talvez de-monstre que não é o mais importante. Seja como for, seria errôneosacrificar todas as outras aplicações a essa única, só porque dizrespeito ao círculo de interesses médicos.

Neste sentido, parece se disseminar entre os psicanalistas, pouco apouco e com conseqüências semelhantes, os receios e reservas de Freuddiante da Academia. Em editorial recente do Journal of the AmericanPsychoanalytic Association, Steven Levy lamenta a situação de isolamento

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em que se encontra a psicanálise em relação à pesquisa e às instituiçõesuniversitárias, apesar de muitas idéias psicanalíticas terem sido absorvidaspela Academia. Ele acredita que essa atitude dos psicanalistas, que para eledenota inveja e insegurança, está profundamente enraizada e tem origemnaquele momento de “esplêndida solidão” de Freud, quando produziasua teoria sobre a vida mental inconsciente cercado de descrédito, e aindasem discípulos a apoiá-lo. Para Levy, uma aproximação em relação à pes-quisa e à Universidade seria muito enriquecedora para a psicanálise, au-mentando a qualidade da formação analítica e propiciando uma avaliaçãomais rigorosa dos resultados clínicos.

Assim, a idéia expressa reiteradas vezes de que a inclusão da psica-nálise no currículo acadêmico não deveria ficar restrita à área médica, massim presente nos diferentes campos do conhecimento, podia parecer a Freuda garantia de que ela não se diluiria, bem como não se tornaria uma sim-ples disciplina da formação médica ou ficasse restrita exclusivamente aqualquer outra área, seja da psicologia, história, filosofia ou arte.

É evidente o interesse de Freud em que a psicanálise fosse reco-nhecida e tratada como teoria e método equivalentes às demais ciências,naturais e humanas, ao mesmo tempo em que queria ver reconhecida suasingularidade, no sentido de que as leis e os fenômenos nos quais traba-lha o analista estão em “outro mundo”, como diz em 1926 (p. 279). Umcorpo teórico sólido, e por isso independente, mas interagindo recipro-camente com as diversas áreas do saber, constituindo a verdadeira e es-treita ligação de uma “universitas literarum”.

A PSICANÁLISE INVADE O HOSPÍCIO – 50 ANOS DE HISTÓRIA

Nos dias de hoje, a situação é sabidamente diversa daquela vividapor Freud e seus contemporâneos. Se a realidade atual ainda não é a que sepoderia esperar, ao menos os institutos das sociedades e as universidades,já há algumas décadas, procuram estreitar a relação existente.

Ainda que em número relativamente reduzido, a universidade for-ma profissionais que, posteriormente, procuram por uma formação nassociedades de psicanálise, assim como, por outro lado, os psicanalistasformados em seus institutos, não raro, buscam aperfeiçoamento profissio-nal especializado, como, por exemplo, na área da infância e da adolescên-cia, nos cursos de pós-graduação das universidades.

Este tipo de intercâmbio complementar constitui boa parte da his-tória de algumas das mais antigas sociedades e departamentos e institu-tos universitários.

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A Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ) e o Instituto dePsiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB) não estãopróximos apenas geograficamente. Algumas importantes personalidadesfizeram história em ambas as instituições. Vale relatar, ainda que breve-mente, no momento em que a SPRJ comemora os seus cinqüenta anos deexistência, alguns pontos desta importante relação.

Dois interessantes artigos contam um pouco dessa ligação: “Brevehistória do setor de pesquisas psicanalíticas do IPUB/UFRJ”, de José Cân-dido Bastos; e “Psicanálise e Universidade no Rio de Janeiro – a experiên-cia da UFRJ”, de Carlos Edson Duarte.

Ao assumir a cátedra de psiquiatria e a direção do IPUB, o profes-sor Leme Lopes cria o Setor de Pesquisas Psicanalíticas. Desde o seu início,já fazia parte do setor o Professor Eustáchio Portela Nunes Filho.

Segundo José Cândido, a princípio reproduzia-se no tratamentodos pacientes da instituição o modelo psicanalítico clássico. Mas, como seformou uma enorme fila de espera, pouco depois optou-se por uma técni-ca breve e focal, de acordo com os trabalhos de Balint, Malan e Fiorini.Mais tarde, visando-se atender um número ainda maior de indivíduos, osetor passou a empregar técnicas de psicoterapia de grupo, tendo servidocomo inspiração Bion, Marie Langer e Grinberg.

De fato, a maior parte da produção científica do setor tem comotema a grupoterapia. Foram publicados vários trabalhos no Jornal Brasi-leiro de Psiquiatria que descrevem a utilização dessa técnica nos pacientesdo IPUB, não só no ambulatório como também na enfermaria. Entre osautores desses artigos, e integrantes do setor, estavam diversos membrosda SPRJ, entre eles Clara Helena Portela Nunes, Wilson de Lyra Chebabi,Ernesto La Porta, Jacob David Azulay, Adolpho Hoirisch e Galina Schneider.Nos últimos anos do setor juntam-se ainda Theodor Lowenkron, CarlosEdson Duarte e Jacques Engel.

Portela Nunes sucedeu a Leme Lopes na cátedra de psiquiatria e nadireção do IPUB, na década de 70 foi diretor do IPUB, de 1974 a 1985.E Adolpho Hoirish, originário do IPUB, se tornou o primeiro catedráticoda disciplina de psicologia médica, criada quando da inauguração dohospital universitário na Ilha do Fundão. Outro psicanalista da SPRJ,Jeremias Ferraz Lima, criou e coordenou no IPUB um curso de especiali-zação em psicoterapia.

Carlos Edson Duarte foi coordenador da área de concentração depsicanálise no Programa de Pós-Graduação stricto sensu do IPUB, ondecriou uma linha de pesquisa chamada “Investigação em Psicoterapias”.

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Foram seus colaboradores alguns membros da SPRJ: Clara Helena PortelaNunes, Verônica Portela Nunes, Yasmin Andrade Almeida, entre outros.Apesar do falecimento de Carlos Edson Duarte, essa linha de pesquisacontinua ativa (com alunos de mestrado e doutorado) e está ligada a ou-tras atividades no IPUB, como a disciplina de “Introdução à psicanálise”(do Departamento de Psiquiatria, na graduação em medicina da UFRJ) e asupervisão de psicoterapia para os médicos-residentes em Psiquiatria.

É considerável o número de psiquiatras que um dia buscaram aSPRJ para a formação em psicanálise, mantendo-se nos quadros do IPUBcomo professores. Na universidade transmitem a teoria, pesquisam e apli-cam esse conhecimento nos diversos serviços assistenciais do IPUB, semque estas atividades possam se confundir com aquelas exercidas na SPRJ eem seu instituto de formação de analistas.

No entanto, uma relação desta natureza parece não ser consensual.Carlos Edson Duarte, no seu já citado artigo, fala da resistência de muitosanalistas importantes à criação de uma área de concentração em psicanáli-se no programa de pós-graduação do IPUB. Esses analistas defendem queo estudo, o ensino e a pesquisa em psicanálise deveriam ficar restritos àsinstituições psicanalíticas. Carlos Edson e muitos outros pensam o opostoe a atuação destes analistas, tanto na SPRJ como no IPUB, reflete isso hácinco décadas.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

Bastos JC (1997). Breve história do setor de pesquisas psicanalíticas do IPUB/UFRJ.

In: Cadernos IPUB no 9 – A pesquisa e o ensino da psicanálise na universida-

de. pp. 3-8.

Duarte CE (1998). Psicanálise e universidade no Rio de Janeiro – a experiência da

UFRJ. Trabalho apresentado na reunião da Comissão Psicanálise e Sociedade

da International Psychoanalytic Association, em Lima.

Freud (1916/17). Introduction à la Psychanalyse. Payot, Paris, 1926.

Freud (1919). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades. S.E. 17.

Freud (1926). A questão da análise leiga. S.E. 20.

Gay P. Freud: uma vida para o nosso tempo. Companhia das Letras, São Paulo, 1989.

Jones E. Vida e Obra de Sigmund Freud. Zahar, Rio de Janeiro, 1979.

Levy ST (2004). Splendid isolation. Journal of the American Psychoanalytic Association;

52 (4): 971-3.

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Psicanalítica - A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

Supervisões com Bion em 1974Novas lembranças e reflexões

Ana Maria Coutinho Hissa**

R E S U M O

Ao pensar na comemoração dos 50 anos da SPRJ, a autoralembrou de um período, há 30 anos, em que diversos analistasde renome, entre eles W. R. Bion, contribuíram para odesenvolvimento científico de nossa Sociedade, por meio deconferências e supervisões. Nessa ocasião, teve com Bion quatrosupervisões individuais, participando de três coletivas, umadelas focalizando um de seus pacientes. Já havia mandadotranscrever a gravação de três, para traduzir e apresentar umtrabalho contendo excertos das intervenções de Bion, de interessemais geral, teórico, ou técnico, numa Reunião Científica,publicado no Boletim Científico da SPRJ. Nesse processo, haviase dado conta, retroativamente, do quanto esses ensinamentosforam decisivos em seu trabalho como analista, tanto terapêutico,quanto de transmissão. Assim, surgiu-lhe o desejo de continuara compartilhar com os colegas a orientação de Bion, dada deforma tão generosa e encantadora, que a denominou “UmaExperiência Mágica.”

Unitermos: supervisões com Bion, intervenções de maiorinteresse geral, ensinamentos decisivos no trabalho comoanalista, terapêutico e de transmissão.

**Membro efetivo e didata da SPRJ.

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S U M M A R Y

When thinking about the commemoration of the 50 years ofSPRJ, the author remembered a period, 30 years ago, in whichseveral well-known analysts, among them W. R. Bion,contributed to the scientific development of our Society, throughconferences and supervisions. On that occasion, she had, withBion, four individual supervisions, and participated of threein a group, one of them about one of her patients. She hadalready ordered to transcribe the recording of three, to translateand present a paper with excerpts of Bion’s interventions ofmore general, theoretical or technical interest in a ScientificMeeting, published in the Scientific Bulletin of SPRJ. In thatprocess, she realised, retroactively, how those supervisions weredecisive in her work as an analyst, so much therapeutic, as oftransmission. Thus, it appeared the desire to continue to sharewith the colleagues the orientation of Bion, given in such agenerous and charming way, that she called it “A MagicExperience”.

Key words: supervisions with Bion, interventions of moregeneral interest, decisive in work as an analyst, therapeuticand of transmission

INTRODUÇÃO

Tendo em vista a comemoração, neste ano de 2005, dos cinqüentaanos da SPRJ, lembrei-me de uma época, há trinta anos, em que recebemos,no Rio, psicanalistas de renome que, por meio de conferências e supervi-sões, contribuíram para o desenvolvimento da Psicanálise em nossa cidade.Entre eles, lembro-me bem de Herbert Rosenfeld, Hans Thorner, André Green,Wilfred Bion, com os quais, ainda como candidata, tive supervisões indivi-duais, que muito me ajudaram na formação, além de assistir a conferênciase supervisões coletivas.

Em 1973, em Londres, havia levado casos para serem supervisiona-dos por Herbert Rosenfeld, Paula Heimann, Ester Bick, Hans Thorner, MasudKhan, John Padel. Foi uma experiência inesquecível de aprendizado.

Nesse mesmo ano, assisti, em São Paulo, às Conferências Brasileirasde Bion (1973), que foram de grande impacto, causando-me uma imensaadmiração. Quando Bion veio ao Rio (1974a), tive a satisfação de ter com

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Psicanalítica – A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

S U P E R V I S Õ E S C O M B I O N E M 1 9 7 4

ele quatro supervisões individuais, e de participar de três coletivas, numadas quais levando um caso.

Em agosto de 2003, mandei transcrever e traduzi cinco supervisõesque havia gravado, para selecionar as intervenções dele de interesse maisgeral, para apresentar um trabalho na Jornada da SPRJ “Um Sábado comBion” (Hissa 2003 a). Em seguida, esse trabalho foi publicado, com pe-quenas modificações, no Boletim Científico da SPRJ (Hissa 2003 b). Atéentão, só havia transcrito e traduzido um pequeno excerto, da gravaçãodo início da última supervisão (Bion 1974 b), num artigo (Hissa 1999,pág. 520).

Rever este material se tornou tão fascinante, que decidi me engajarmais profundamente. Traduzi a terceira supervisão gravada, já transcrita,porém não utilizada em 2003, e a última, que ainda não fora transcrita naocasião, para compartilhar, com os colegas, os pensamentos veiculadospelas palavras de Bion. Devido à natureza confidencial dos dados, comodei prioridade a preservar a identidade dos pacientes, omissões e modifica-ções tiveram que ser feitas que, por vezes, tornam menos claras certas falasde Bion. Ao longo desse trabalho, espero mostrar a generosidade, a dedi-cação com que ele se empenhou, em cada intervenção, em transmitir clara-mente, da forma o mais simples possível, para uma aluna, o que pensavado caso, e o que ele diria ao paciente.

SUPERVISÕES

3a SUPERVISÃO: 4 DE ABRIL DE 1974

Ana: Paciente de quarenta anos que, antes de procurar-me, quandofazia terapia de grupo, após um incidente numa sessão, parou de freqüen-tar o grupo.

Bion: Ela lhe contou isto?A: O que ela me falou, é que a situação era só para o grupo discutir.

Em dois anos de tratamento, está melhor um pouco, já tem um entendi-mento. E, apesar de suas dificuldades mentais, trabalha e cria os filhos.Como divorciou-se, há alguns anos, e os filhos ficaram com ela, preocupa-se muito em cuidar deles. Todos estão em tratamento, porque acha quenão pode criá-los adequadamente. Penso que isto é sensato, positivo, mos-tra o quanto é sensível e busca que tenham melhores oportunidades. Po-rém, aconteceram duas situações externas que vêem tornando a análise,agora, muito difícil. Em fevereiro, antes de minhas férias, recebeu umaordem judicial, porque o marido queria diminuir o dinheiro que lhe dava,

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o que seria muito ruim para ela. Queria que eu agisse, lhe desse um papelpara o processo, que visse alguns juízes, pensando que eu os conhecia. Eramuito difícil fazê-la ver que era só análise que eu podia lhe dar, e entenderque ela queria outra coisa. Bem, quando eu consegui colocar isto, mais oumenos, ela soube que, num serviço público onde trabalhava, teria que seaposentar, após ter ficado dois anos licenciada, por causa de doença men-tal. Com isto, diz que não poderá trabalhar mais, em lugar algum. Elaacha que os psiquiatras estão contra ela. Como conhece um psiquiatraque também é analista, põe igualmente sob suspeita os analistas. Dizque perdeu a confiança em mim, assim não me contará nada de novo, sóas coisas velhas, que já sei. Quando lhe digo que não posso fazer análiseassim, fica diferente, quer que eu pense bem dela, diz que é agradecida,está enternecida. Talvez eu seja tão capaz que possa fazer o trabalhopelas duas. No momento, não pode fazer o trabalho dela na análise. Estámuito difícil estes dias.

Bion: O que me parece é que, talvez, você não está tornando sufici-entemente claro que você pensa que ela sente desse modo. Digamos, vocêpode falar que não está querendo dizer que ela está completamente longede você, esse não é o ponto. O ponto é que ela deve estar sentindo-seamigável o bastante, ou que você é suficientemente amigável, para possibi-litar a vinda dela. Caso contrário, eu desejo saber como ela conseguiriachegar até seu consultório. Porém, tanto quanto isto, não em vez disso,você pensa que ela está sentindo-se hostil em relação a você, e quer fazê-lasentir-se tão amedrontada, que não poderá pensar acuradamente, e fazer otrabalho que tem que fazer. Não é porque você estava dizendo que ela estáinamistosa, que não é isto. Ela tanto está sentindo-se amigável, quantosentindo que quer amedrontá-la, e assim por diante. Agora, de fato, vocêvê, ela também pensa isto de você. Ela também pensa que você queramedrontá-la, quer impedi-la de ser capaz de fazer um bom trabalho. Vocêé ciumenta, invejosa, hostil, em relação à profissão dela. Isto, de novo, écomo ela sente que você parece. Você não está dizendo que esta é a únicacoisa que ela sente que você é. Se ela pensasse isso, e só isso, eu queriasaber, como ou por que viria vê-la se você fosse tão má assim? Mas, aexplicação é, portanto, que ela tem duas idéias opostas, ao mesmo tempo.Uma delas, é que você é amigável e, se ela for amigável com você, vaisentir-se bem com isto. A outra, é que você é hostil com ela, você teminveja dela, não quer que ela trabalhe, está querendo amedrontá-la tanto,que ela não poderá fazer o trabalho dela. Mas, é complicado, porque elapensa, ela sente, veja, que você é assim, e ela sente como se ela fosse assim.

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O que torna isto tão complicado é que ela também sente que a mesmapessoa é amistosa.

A: Disse que aproveitou muito com a análise, mas que, agora, che-gou ao limite dela, não aproveitará mais. Além disso, todo mundo sabedo seu caso, e falarei com outros psicanalistas sobre ela. Há pessoas maisdoentes mas que, como ninguém sabe, parecem melhor que ela, com tan-tos anos que se trata. Mas, a sociedade tem um preconceito contra enfer-midade mental.

Bion: O que lhe disse? Ela lhe falou isto, e o que você disse?A: Eu disse a ela que, ao mesmo tempo, ela queria progredir, e não

queria, queria estar ao mesmo nível, ou, até mesmo, regredir.Bion: Você disse ‘regredir’?A: Não, eu não disse ‘regredir’, e sim ‘andar para trás’. Ela usou a

palavra ‘ruminação’, agora ela só estará ‘ruminando’, não indo em frente.Bion: Veja, você pode fazer uma observação assim, além do que já

está lhe dizendo, não em vez disto, mas além: “Eu quero mostrar-lhe que,além de querer vir, para análise, você está sentindo também outra coisa.Agora, este algo mais que você sente é medo de mim, como uma pessoamuito hostil, muito ciumenta, muito invejosa, e que não quer que você sejamelhor do que eu.”

Assim, há um conflito entre duas idéias diferentes nela. Sem dúvi-da, outrora, era com outra pessoa, pai ou mãe, irmão ou irmã. Mas, naatualidade, é somente ela que tem ambos os tipos de sentimentos. E temmedo de juntar os dois, porque um deles mataria o outro. Assim, ela estáamedrontada com você, e amedrontada com sua análise, ou porque nãofunciona, e não é bom desperdiçar o tempo, ou porque funciona, por ambasas razões. Se não funciona, não há nenhum motivo para vir; se funciona,também não há motivo para vir, porque a capacidade amorosa dela des-truirá sua capacidade para o ódio, a suspeita, a inveja, ou a capacidadedela para o ódio, a inveja, destruirá a sua capacidade amorosa. Assim, elasente que é importante divorciar as duas, mantê-las separadas uma da ou-tra. Em outras palavras, além das idéias corriqueiras, não em vez delas,também ficou com estes sentimentos de medo de si própria, de que umaparte quer matar a outra.

A: Um tempo atrás, costumava me contar fantasias de que eu esta-ria muito amedrontada com ela, ou de que ela tinha medo de mim, de queeu bateria nela, de que ela me bateria.

Bion: Você disse ‘fantasias’?A: Ela disse.

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Bion: Você ia dizer a ela. Claro que você está usando um termotécnico. ‘Fantasia’ tem um tipo de significado psiquiátrico, ou psicanalíti-co, que não penso que seja sentido da mesma forma que a fantasia dela.Penso que o sentimento é bastante real, e o sentimento é o sentimento realdela, de que você é tanto a pessoa que ama e é afetuosa, quanto aquelaodiosa, assassina, e isto também é pensado a respeito de si mesma. Ela éambas, a pessoa odiosa e assassina, e a que ama e é amistosa. E ela senteque precisam ser mantidas separadas. Agora, deve haver alguma razãopela qual isso não funcionou e, assim, ela está vindo a você. Porém, temmedo de que você diga, ou faça, qualquer coisa, ou de que ela diga, ou façaqualquer coisa, que leve ambas a se juntarem. Porque, então, uma tentarámatar a outra. Assim, você se tornaria tão amorosa e amigável que ela nãoperceberia os perigos da pessoa com a qual ela seria adorável, amorosa eamigável. Ou ela se tornaria tão odiosa, que não perceberia você, oupoderia ser ela, como sendo uma pessoa amistosa. Assim, realmente, aidéia dela sobre o tratamento correto seria manter estas coisas separadas.Manter os sentimentos de hostilidade dela longe dos seus sentimentos deamor ou afeto. De forma que, há um sentimento de discordância comvocê, já que ela pensa que, pelo seu modo de falar, você está fazendo comque se juntem.

A: Ela tem muitas suspeitas de que os analistas falem sobre os casos.Bion: Bem, eu diria: “Se você fosse uma criança, provavelmente,

teria medo do que você, e as outras crianças, conversariam sobre o pai e amãe. Na situação de hoje ainda há, provavelmente, um sentimento de quepoderíamos falar sobre você, e seu marido.”

Portanto, ela tem medo de você e seu marido, ou sua mulher, con-forme seja o caso (lembre-se de que você pode ser, tanto o marido quantoa mulher, você mesma). Tem medo de que você, e o outro se encontrarãoe falarão sobre ela, de que todos os seus bebês, todos os seus filhos, todosos seus outros analisados falem a respeito dela. Assim, embora estejam sóela e você, é como se fossem ela e um grupo de vocês. E, seriamente, isto ébastante diferente de tratamento de grupo, este é individual. Neste é ela,ela e você, você e eu. Na prática, ainda há um sentimento de que é ela evocê, e todos os outros analisados, todo o resto de sua família profissio-nal, e todo o resto de sua família privada. De forma que, quando ocorremférias, ou o corte de fim de semana, ou o intervalo entre duas sessões, elatem medo de que você, e o resto de vocês, se juntem, e falem sobre ela.Essas são as férias, o tempo, entre a última, e a próxima sessão dela, noqual ela está de fora do consultório.

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A: Ontem, contou-me a conversa com uma amiga. Disse à amiga queanálise individual era uma chatice e que, talvez, algum dia, faça análise degrupo novamente e que, então, não falará.

Bion: Você vê, ela não consegue decidir-se, assim eu penso, entrevê-la sozinha, ou com todos estes outros. Agora, a pergunta é, que inter-pretação vou dar-lhe. Nesta resposta, em particular, penso que você pode-ria lhe dar, aproximadamente, aquela interpretação, apenas, lembrando-se deste ponto: “Penso que, além do que já sabe, não ao invés, mas comoacréscimo, também está sentindo que não pode decidir-se entre ficar sozi-nha comigo, ser minha única paciente, minha filha única, ou relacionar-secom estes outros filhos.”

Agora, na infância, se fosse possível voltar atrás, o que não se pode,provavelmente descobriríamos que ela nunca soube se ficaria sozinha comsua mamãe ou o seu papai, ou se ficaria junto com todos os outros filhos,ou não. E ainda não decidiu essa questão. Ainda não decidiu o que é pior,só você, ou você com várias pessoas diferentes, como se houvesse um gru-po de vocês. Com o grupo, da mesma forma, não conseguiu compreenderse são várias pessoas diferentes, ou se aqueles são todos pedaços da mes-ma pessoa, que se juntam e é uma pessoa só. Quando está sozinha comvocê, não consegue se decidir se você é apenas uma pessoa, ou se você étodo um número de pessoas. Nisto, novamente, poderíamos também di-zer, eu penso, que na infância este seria um problema muito difícil. Por-que o infante não saberia o que sentir, se o seio é apenas um seio, ou se épossuído pela mãe, pelo pai, por ambos ou pelos outros filhos. Mas, oponto, a respeito disto, é que não foi só na infância, é até o tempo atual.Então, hoje, isto é muito complicado. Sente-se uma mulher crescida, bemcomo tem todos esses outros sentimentos. É por isso que é tão desagradá-vel vir até você para análise, por causa de uma razão – porque ela não sabequal delas ser. Ela não sabe se ela é o papai, e todos os outros, se ela é amamãe, e todas as outras. Se ela é os filhos, então eles são a mamãe e opapai. Assim, sempre há alguém excluído.

A: Em geral, ela quer cuidar dos filhos mas, quando está muitomal, planeja despachá-los, porque não é capaz de cuidar deles, e eles fica-rão melhor sem ela.

Bion: Eu diria que, além do que você está lhe falando, seu significa-do corriqueiro, eu não deixaria isso de fora. Eu lhe diria que você nãoestá lhe dando a interpretação em vez do seu significado usual, não é nolugar dele, de jeito nenhum. É tanto quanto o significado usual, você nãoestá se preocupando com este, porque ela sabe o significado usual. Mas,

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você não está querendo que ela esqueça o significado corriqueiro. Deforma que, você quer chamar a atenção dela para o fato de que, além dosignificado corriqueiro, ela tem estes outros sentimentos, também, dos quaisela não se lembra tão bem, que estão esquecidos, não uma vez, mas parasempre. Mas, você tem que continuar a entrar neles, você nunca vai che-gar a uma situação na qual você possa esquecer isto, achar que agora vocêterminou, porque sempre tem que ser esquecido, esquecido, esquecido,todo o tempo. E todo o tempo, você vê, é lembrado, lembrado, lembrado.Todo o tempo.

A: Penso que ela, tem vivido coisas irreais, e está sempre culpadapor isso, no que concerne ao pai, à mãe e, agora, a mim.

Bion: Você vê, eu diria: “Você está tão assustada com seus senti-mentos agressivos, assassinos, hostis, que tenta trancá-los dentro de você.Aqui, onde você quer que eu a analise, percebe que você não é um bebê,um infante, ou até mesmo uma criança. Portanto, tem medo do que fariacomigo, ao se permitir ser hostil, assassina, e assim por diante. Porqueteme que me mataria, e então, não poderia mais ter análise. Assim, vocêcoopera, ajuda, obedece, o quanto pode, às regras a respeito da hora deme ver, do que dizer, e do que fazer. Por um lado, você está tentando ser aboa menina, e manter sob um controle seguro a má.”

Assim, a boa menina está cheia de ódio assassino para com a meni-na má, e a menina má está cheia de ódio assassino para com a menina boa.Quando é amigável, ou quando é hostil, com você, tende a ser uma fraudeda outra, que ela não está sendo, na ocasião. “Assim, de certo modo,quero dizer, você deve ter sentido, em algum momento, que você conse-guiu separar você boa de você má, e mantê-las separadas. Hoje, você senteque não pode se decidir, se as mantém separadas, ou se escuta minhasinterpretações e se junta, porque você tem medo de que as duas coisas nãose juntariam de um modo bom.”

A: Ela disse, muitas vezes, que achava que os sentimentos entre osparentes eram como um vidro, que qualquer coisa poderia quebrá-los.

Bion: Veja, você poderia dizer isto: “Você tem medo até mesmo dossentimentos amistosos, de que sejam assassinos e hostis a tal ponto quequebrarão os outros, da mesma forma que os sentimentos maus e hostis,sendo tão maus e hostis, quebrarão os bons. E, num outro sentido, vocêtem medo de mim, como um tipo de vidro, através do qual pode se ver e, sevocê me esmagar, não poderá ver nenhum aspecto seu.”

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E, na análise, esta é um das dificuldades, ela não pode se decidir setorna impossível para você ir adiante com a análise, ou se a ajuda nesseprosseguimento.

A: Ela me contou um episódio, que penso ser muito significativo,na semana passada. Uma mulher foi tratar-se com ela, e queria que elausasse, no tratamento, um procedimento desnecessário, que se tornarialesivo. Ela disse à mulher que esta estava bem, que não havia nenhumarazão para o tal procedimento. Porém, a mulher reagiu mal, e disse quequeria, e que estava decidida sobre si própria. Assim, ela fez o procedi-mento e, depois, mostrou à mulher como ela estava bem, e como haviasido tola de se danificar, extraindo uma parte boa. A paciente me disse quefalou assim com a mulher para ajudá-la a não fazer aquilo mais. Naquelemomento, a mulher disse que não era aquela a parte que ela queria extraída,era outra. Quando lidou com a mulher, tentando ajudá-la, até mesmo comoanalista, a paciente quis conduzir para o que a mulher queria, mesmo quefosse contra si própria.

Bion: Veja, como você disse? Bem como contra si própria. Nãoquero dizer que sempre, mas, justamente nesse momento, parece ser im-portante que você não a deixe esquecer que você sabe o significado habitu-al do que ela diz. Assim, eu diria: “Além de não tocar em suas idéias habi-tuais, que competem a você, eu não vou tocar, nem nos eventos que meconta, nem nos seus sentimentos. Você pode pensar o que quer que pense,mas o que eu quero mostrar-lhe é que, além disso, você sente que nuncaesteve, realmente, em bons termos consigo mesma. Você sempre quis ser,tanto a boa menina, quanto a menina má e, na situação de hoje, tem medode que, ao vir, me peça para ficar do seu lado, e concordar que você estavasendo a pessoa boa, contra você, que estava sendo, ou tentando ser, a má.Porém, você também está querendo que eu fique do lado de você má, contravocê boa. É como se houvessem duas de você, como duas crianças, e vocêquer que eu seja a mãe que é a favor de uma, ou de outra, mas seja qual forque eu favoreça, se eu pareço amistosa com você estando bem-comportada,sendo amigável, então você raivosa, destrutiva fica furiosa comigo por favo-recer que seja boa. Se, e enquanto, você pensar que eu estou do seu ladosendo má, você fica novamente zangada comigo, por tomar o partido erra-do. Assim, em outras palavras, de qualquer lado que eu ficasse, você fica-ria muito brava comigo, porque você poderia sempre sentir que eu estavatomando o partido errado. Assim, embora eu não tome nenhum partido,não só você fica furiosa comigo, porque eu não tomo partido, mas tam-bém fica brava comigo por causa do sentimento de que eu favoreço, e

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tomo o partido, de uma parte sua contra outra. É semelhante a ter, nãotanto uma criança, mas uma parte do corpo como se fosse uma criança,um novo bebê que é, realmente, o favorito, que é tirado, extraído.”

Está falando sobre a parte do corpo que é extraída, mas, de fato,você vê, é, também, um modo de falar sobre uma pessoa que é extraída, ouuma personalidade, uma parte dela, ou poderia ser sobre alguma outrapessoa, você ou alguém que a tirou, a extraiu da raiz. Assim, a esse respei-to, enquanto você concorda em vê-la, você é uma pessoa má que a retiroudo grupo, como se fosse uma parte do corpo que você removeu da raiz.Agora, lá de novo, você poderia falar: “Eu não quero dizer que você senteque eu já fiz aquilo. eu me dou conta muito bem de que você está querendovir à análise e, por isso, você está aqui hoje. Mas, também quero mostrar-lhe que você está zangada comigo, porque tem um sentimento que eu nãodevia retirá-la da raiz, extraí-la de todas as outras pessoas lá, extrair sóuma parte do corpo dentre todas as partes, e esta é uma parte boa.”

Agora, há outro ponto, seguramente. Você também deve dar outrainterpretação, que é esta: “Penso que deve ter sentido que tirei seu pênis, eque é por isso que não tem pênis, foi extraído.”

Assim, há de tudo, desde um sentimento que ela pode ter tido nopróprio nascimento, e inúmeras vezes entre então e agora. Desse modo,ela está sempre com medo de você, como uma pessoa que tira dela, não sóalgo físico, como um pênis, ou outra parte do corpo, mas também umaparte da personalidade dela, seja uma parte boa ou má. De forma tal elapossa sentir-se amedrontada com você, como um tipo de mãe, pai, cirur-gião que a opere e diga: ‘Aquele pênis não é bom, eu vou tirá-lo. Aquelaoutra parte do corpo não é boa, vou ficar com ela. Aquele caráter, como ocaráter de um homem ou menino, ou pai, ou mãe, é um caráter ruim, eu oquero.’ Assim, todo o tempo, há o medo de que você seja uma analistavoraz, hostil, querendo dizer-lhe que algo, que é bom e precioso, é ruim,para tirá-lo dela. De tal modo, que ela tem medo de perder algo valioso,como uma parte boa do corpo, tendo sido dito que é ruim. Pondo isto empalavras: “Assim, embora você esteja querendo que eu tome partido e diga;sim, você é muito ruim ou você é muito boa; de fato, você tem medo de queeu diga isso. Você tem medo que eu concorde com você, remova algo, paramim, e lhe diga que era uma coisa ruim para você ter.”

Agora, há um ponto adicional aqui. Veja que eu a estou deixandode lado, no momento. Ela está com medo que você tire dela o quê? Destemodo, quando é questão de uma quebra, como suas férias, você está tiran-do você mesma dela, você está levando a análise para longe dela, e ela tem

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medo de você como a pessoa má, que tira coisas boas e ruins dela. Vocêé o marido ruim, que tira a esposa dela, tira a mãe dela, ou a leva paralonge da mãe. Você é a mãe má, que a tira do papai dela ou leva o papaipara longe dela. E você é a pessoa ruim que leva você mesma para longedela. Porém, ela também tem medo de que você seja alguém que fale comela que algo é ruim para ter uma desculpa para removê-lo, para extraí-lo.Veja, é como uma fala muito hostil: ‘Ah, aquele é um pedaço agradáveldo corpo, é um pedaço bom. Eu vou dizer-lhe que é um pedaço ruim, queela não o quer, e eu vou removê-lo e guardá-lo comigo.’ Mas, é claro quehoje é muito complicado, porque não sabemos o que são esses pedaços, sesão algo de você mesma, como analista, ou uma boa interpretação, ouum grupo bom, ou a boa mamãe, seja lá o que for.

A: Um problema adicional, com dinheiro, vai, talvez, acontecer.Ela diz que, se ela se aposentar, provavelmente não terá dinheiro parapagar a análise.

Bion: Sim, mas o ponto é interpretar isto. Se ela tem tanto medo deque você tome todo o dinheiro e toda a capacidade para ganhar a vidadela, dizendo-lhe que: ‘Você é uma profissional ruim, ou que você é umapessoa má’, tem medo de que você tentará tomar os meios dela de ganhara vida. Mas ela também tem medo de que ela queira fazer isso com você,tem medo de querer dizer: ‘Que grupo, mãe, pai, psicanalista ruim você é.’De forma tal, que você nunca mais conseguirá ter uma prática como ana-lista de novo, e que você poderá ir para um tipo de pai, juiz, justiça, tribu-nal que a ajudará a tirar todo o seu dinheiro para ela. Assim, das duaspessoas no consultório, ela tem medo de ambas. Ela tem medo de vocêfazer isto com ela, e ela tem medo de ela fazer isto com você, e ela temmedo de você tornar impossível para ela fazer isto, de forma que ela nuncapoderia levá-la a um tribunal, porque você poderia fazê-la gostar tanto devocê, que ela também não ia querer ir. Em resumo, realmente, não se pensaque a relação entre você e ela seja boa. Porém, a mesma coisa é verdade narelação dela consigo mesma. A vantagem de ter uma expectativa, e fazercom que seja, ela e você, é que é mais fácil do que sentir que é ela e ela.

A: Ela até me falou que, como eu não lhe daria o papel, que elaqueria, para a justiça, eu era uma analista ruim. Assim eu não teria umacarreira, não teria sucesso, ao contrário da analista antiga dela, que erauma boa analista.

Bion: Veja, você poderia dizer isto: “Você me pede que lhe dê umcertificado; mas também está sentindo que eu não deveria concordar. Seeu não concordar, dirá: ‘que analista ruim ela é’, por não fazer o que me

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pede. Se concordar, eu ainda seria uma analista ruim, porque você tem osentimento de que uma boa analista não faria isto. Em resumo, você estásentindo que seria impossível para mim estar certa, seja lá o que for quefaça. Qualquer coisa que fizesse, seria a coisa errada. Eu seria a pessoamá, que não lhe deu um certificado, eu seria a pessoa ruim, que lhe deu umcertificado que arruinou sua reputação. Na verdade, aqui, e agora, a situa-ção está mudada, porque o bom e o mau estão tão misturados, que qual-quer ação é sempre uma mistura de mau e bom. O certificado que a tira deum problema, também é o certificado que arruina sua reputação. No cer-tificado estará: ‘Você não precisa trabalhar mais.’ Porém, aquele mesmocertificado também diz a alguém que: ‘Ela não serve para emprego nestaprofissão.’ E, na verdade, não há nenhuma substância, como uma boaação, porque são todos eles uma mistura de bom e mau. E a razão é que elaprópria é uma mistura da mãe boa e do pai ruim, do pai bom e da mãe má,porque ela odeia tanto o pai e a mãe poderem se juntar, numa relaçãosexual boa.

ÚLTIMA SUPERVISÃO: 10 DE ABRIL DE 1974

Ana: Eu lhe falei sobre os meus pacientes e, hoje, gostaria de falarsobre outras coisas. Em primeiro lugar, gostaria de falar sobre religião, edizer-lhe, também, o quanto foi importante, para mim, saber do seu res-peito pela religião, porque eu sou uma pessoa religiosa, católica. Pareciaque não era possível ser, ao mesmo tempo, psicanalista e católica, e o se-nhor foi o primeiro psicanalista, do qual eu tivesse tomado conhecimento,a mostrar tanto respeito por religião.

Bion: Oh, sim, bem... Parece-me que religião é um fato, assim temsido, um fato, centenas de anos antes da Psicanálise ter existido. Assim,eu penso que é absurdo para um psicanalista não ter respeito, digamos,por experiência sexual ou, quaisquer destas coisas, você poderia dizer,não ter respeito, digamos, pela respiração, por assassinato, por amor,por ódio, todos são reais, e você poderia dizer que religião é real, ou vocêpoderia dizer, em seus próprios termos, se você sente que você é umacatólica ou não, ou pensa que outras pessoas têm a mesma perspectiva,você pode sentir, você sente, assim você sabe que há uma tal coisa. Vocêpode achar que existem outras pessoas que sentem o mesmo, outros mem-bros do que você chama a religião católica, mas, realmente, católico sóquer dizer universal.

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A: Eu penso que o problema, às vezes, é que aquela religião, comoo senhor disse, é a religião de uma criança, e as pessoas crescem, e nãopodem suportar mais uma religião infantil. Assim, desistem, aparentemen-te, porém têm muitas superstições, muitas coisas nas quais não querempensar.

Bion: Veja, é perfeitamente natural, para uma criança, ter uma reli-gião de criança, adorar um Deus satisfatório para uma criança. Assim,não queremos dizer: ‘Oh! Você é uma criança, você não acredita, você nãoé religioso, isto é tolice.’ Porque, se a criança diz: ‘Eu adoro, ou eu admiroeste jogador de futebol’, isto é perfeitamente natural, você poderia vê-locomo uma linguagem. Porém, gostaríamos, se possível, que a criança cres-cesse, e gostaríamos que, até mesmo o adulto, ainda soubesse como é osentir de uma criança. No entanto, para qualquer adulto, é fácil imaginar,ou sentir, que as outras pessoas são crescidas e, realmente, também sãocrianças. Veja, é duvidoso se alguém esteja qualificado até mesmo para sermãe ou pai. Há padrões, de alguma forma, pelos quais poder-se-ia dizer:‘Ninguém está preparado para sê-lo’. O problema é que você sempre estátendendo a ser quase como pai. Eu diria que, em toda religião, você pode-ria adorar um jogador de futebol. Mas, a perturbação acontece se aquelareligião pára seu crescimento. E ainda há o problema de nunca chegar otempo em você já esteja tão velho, que não haja, ainda, uma chance decrescimento, de tornar-se crescido. E todo esse nonsense é, sem dúvida,para mostrar como você é crescido, ou ainda é criança. E isso é tudo. Ésimples assim. De modo que, no lugar de todas estas massas de livros, eassim por diante, na realidade, é uma simples questão de bom senso. Ne-nhuma criança é só uma criança, já são adultos jovens. Você não encontranenhum adulto que seja, realmente, um adulto. São, ainda, crianças, àsvezes crianças perigosas.

A: Penso que é difícil ter coragem de pensar assim, e não se apegara ser um adulto, a tudo que aprendemos.

Bion: Isso é verdade. Não sei por que, mas é verdade. Veja, aotratar-se de uma questão de roupas, é fácil. Você pode entrar no alfaiate,ou na costureira, comprar um conjunto de roupas ou vestidos, e você podeousar comprar aquele que você quer vestir, não importa, realmente, muito.Você não pode usar os estados mentais de outras pessoas, não pode usaros códigos mentais de outras pessoas. Cedo ou tarde, veja, tem que se servocê mesma. Isso é a única coisa importante na análise, saber quem vocêé, e o que pensa. Não precisa falar disso com outras pessoas, mas tem quese conhecer. Assim, no curso de sua vida, você vê, pode estar sempre apren-

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dendo um pouco mais sobre quem você é, e um pouco mais sobre os ou-tros, para respeitar que tenham o próprio caráter. Para respeitar seus fi-lhos, respeitar seu marido, ou sua mulher, sempre há uma esperança decrescimento.

A: E também vi claramente, semana passada, o quanto este contatocom o senhor foi útil em meu trabalho.

Bion: Bom.A: Eu pude ganhar muito com isto.Bion: Bem, vale a pena lembrar que você também pode aproveitar

com seu trabalho, também pode aproveitar com sua religião, seu paciente.Sempre pode aprender um pouco mais do que aprendeu antes. De formatal que, na análise, espera-se poder ensinar algo aos pacientes, que elesaprendam algo mais. Todavia, como eles aprendem isto, eu não sei; maseles podem aprender. E você mesma pode aprender um pouco mais, podecrescer um pouco mais. Eu penso que, de fato, numa análise satisfatória,ambos estão crescendo.

A: Aprendemos muito com os pacientes. Sobre nós mesmos, também.Bion: Sim. Você continua a aprender por muito tempo depois de

sua análise ter terminado.A: Estes últimos dias, me chamou a atenção que alguns pacientes

querem respostas a perguntas. Em geral, eu não quero responder, e gosta-ria de saber sua opinião sobre isso.

Bion: Você pode me dar um exemplo? Alguma vez na qual istoaconteceu?

A: Bem, a última de que me lembro, foi sobre eu trabalhar ou nãona quinta-feira da Semana Santa. Disse que responderia, depois, à pergun-ta, pois era importante para o paciente saber a resposta, mas, antes, deve-ríamos discutir por que ele estava interessado.

Bion: O paciente quis lhe fazer uma pergunta?A: Sim. Mas há outras perguntas, mais pessoais.Bion: Sim. Veja, você pode tentar mostrar, aos pacientes, que per-

gunta eles estão fazendo. E você pode mostrar que o importante, no caso,é que eles estejam fazendo perguntas, e que tipo de pergunta estão lheperguntando. Não qual é a resposta, isso não é muito importante, isso épara eles descobrirem. De forma que você pode dizer sobre isso: “Gostariade mostrar-lhe, qual é a pergunta que está me fazendo. Se disser: “Não,mas não quero saber isto, sei que pergunta estou fazendo. Quero saber aresposta.” Você pode dizer: “Não, isso não me parece ser o problema.Penso que o problema, que o fez parar, é que você está curioso, e não

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penso que você saiba, de nenhum modo, sobre o que está curioso. Porquea curiosidade é, sempre, sobre o que você não sabe.”

Nunca fico curioso a respeito do tempo, se eu sei que horas são. Sófico curioso se não sei as horas. Então eu poderia olhar o céu, interpretaro que vejo. De forma semelhante, o que é importante para aquele pacienteé que ele tem que aprender, em primeiro lugar, que pergunta está fazendo,e, secundariamente, interpretar os fatos, que pode ver por si mesmo, quelhe proporcionarão a resposta. Não é nada bom que você faça o trabalhopara ele. Não é nada bom lhe dizer qual é a resposta. Ele tem que desco-brir, se souber qual é a pergunta.

A: Gostaria de falar um pouco mais sobre a primeira paciente. Estápara divorciar-se, e diz que o marido está querendo divorciar-se, também,e lhe falou que a odeia e às crianças. Ela tem falado sobre isso a maiorparte do tempo. Uma coisa me deixa curiosa, é que ela diz que ele a odeia,ela não sabe por quê. Tem sido tão boa para ele, tratou-o durante a ope-ração dele, ela é uma amiga dele, não sabe por que ele a odeia. Não vênenhuma razão para ele a odiar. E, todo o tempo, eu penso nas razões queele teria.

Bion: Veja, o que você pode fazer é mostrar-lhe que ela nunca, narealidade, se acostumou a viver na mesma casa, no mesmo corpo, na mes-ma mente como ela própria. Na análise, ela pensa que ainda não se acos-tumou a vir a você, mas esse, na realidade, não é o ponto. É possívelacostumar-se com você, ou com a análise, e assim por diante. Porém, elanunca se acostumou consigo mesma. Ela não quer ser lembrada nem desuas qualidades femininas, nem de suas qualidades masculinas. E nãosabemos do que mais não quer ser lembrada, de forma que o casamentopode ser muito perturbador, porque pode fazê-la lembrar-se da primeiracasa que recorde, a casa dos pais. Ela, provavelmente, pensava que a casados pais era dela, mas não era, era a casa dos pais dela.

A: Estou me lembrando, agora, de uma pergunta que ela fez ontem:“Por que chorava tanto durante as sessões? E, então, quis saber se osoutros pacientes choravam tanto quanto ela. Mostrei-lhe que, ao invés depensar na pergunta, queria falar sobre os outros pacientes, e não sobre ela.

Bion: Ela não quer ser lembrada dela, seja pelos outros pacientes,seja por você. Deste modo, você vê, o analista está, na opinião da paciente,fazendo a coisa errada, porque você está, na realidade, tentando apresentá-la a si mesma. No entanto, ela não quer ser lembrada de si mesma, sejapor você, pelos pacientes, pela família dela, ou por qualquer outra pessoa.

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A: Ela me disse, ontem, que não entendia por que tinha dificuldadeem falar comigo. Com uma amiga, pode chorar, tanto quanto chora comi-go, mas pode falar mais livremente. E pensei na separação do marido,como algo que ela pensava que eu não apreciaria. Mas, estava certa de quea amiga apreciaria, como se fosse a mãe, que a quisesse para sempre juntodela, como uma criança.

Bion: Você pode mostrar-lhe, veja, que este é um dos problemas deanálise. Que você é a pessoa a quem ela não pode falar. Eu ainda pensoque ela tem medo que você pudesse não gostar dela, não a amasse, se elapudesse falar, se ela pudesse crescer. Ou, no que diz respeito ao assunto, seela pudesse encurtar, ficar dentro da organização mental dela, que é dotipo que se poderia associar com um bebê. Em primeiro lugar, veja, há omedo de que você já esteja casada, ou já tenha uma família psicanalítica.Portanto ela não pode, sendo assim, ser seu bebê, ou sua mãe, ou seu pai.Ela não pode fazer nenhuma dessas coisas. Assim, ela tem medo, então,do que lhe é permitido fazer, porque, embora ela não possa dizê-lo, podeficar tão amedrontada de que você talvez não gostasse disto, se ela fossecapaz de falar com você. Ela pode ficar amedrontada de que você dissesse:‘Oh, bem, agora que você pode falar, adeus’ Ou, que você poderia dizer:‘Bem, você não pode falar, portanto adeus.’ De modo que, seja lá o quefor que faça, ela tem medo.

A: Ela me perguntou, muitas vezes, se eu pensava que ela era umapessoa enfadonha. Ela tinha medo de que eu pensasse que era. E, nasegunda-feira, contou-me um sonho que tivera durante o fim de semana.Estava ansiosa para vir, para entender o sonho. Durante o sonho, viu queera o enterro do marido dela. Mas, era uma festa, e ela via o marido,estava sozinho, ninguém falava com ele. Teve piedade, porque ninguémfalava com ele. Ele estava muito bonito, e tinha características de umartista de televisão, vestido para uma novela sobre um semideus. Nãoconheço o enredo. Ele usava as luvas de um corredor, Fittipaldi, e estavamuito bonito, mais do que na vida real. Ela pensou se havia tempo para sevestir mais apropriadamente para a festa, mas não havia tempo nenhum, eficou preocupada, porque ele estava vivo, e seria enterrado.

Bion: Você vê, poderia dizer-lhe, sobre isto, que, quando ela nãoestá em guarda, como fica, quando vai ver você, então, pode ver e sentircoisas que não ousa sentir, ou ver, em plena luz do dia. Não obstante, vocêpensa que ela tem medo deste sentimento muito franco, porque, cedo outarde, ela iria, ou você iria, entender o quanto ela a admira, que bonitodeus, analista, pai, mãe, filho ou filha você é. Em resumo, ela não só tem

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medo de odiá-la, e ficar chateada com a análise, chateada com a infân-cia. Está, também, amedrontada de ficar apaixonada por você e, portan-to, sentir que você é esta pessoa maravilhosa. Veja, de seu ponto de vista,é difícil acreditar que o paciente, o analisado, possa considerá-la comouma pessoa tão terrivelmente importante. Porém, se você teve um bebê,este também pode tê-la visto como um tipo de deus ou deusa, essa pessoamuito bonita e notável. E há, também, o medo de que a relação mude.Com o tempo, a mesma pessoa já não a veria como um deus ou deusa,mas como um tipo de diabo, ou uma pessoa feia e assustadora etc. Dessemodo, também há o medo da mudança. Ela está amedrontada, então, depensar muito alto a seu respeito porque, cedo ou tarde, terá uma visãomais realista. E, então, ela vai pensar ou descobrir que você é uma pessoamuito má ou, transpondo isso para termos religiosos, que a religião delavai ser minada, porque a psicanálise ou os psicanalistas são diabos, pes-soas ruins, que falam e dizem coisas más, tais como coisas sexuais etc.Mas, tudo isso, que suponho ser algo que Deus desaprove, o bonito Lúciferodiaria, se você soubesse como ela é feia e assustadora, quão enfadonhaetc. Por outro lado, veja, se você é tão enfadonha, e feia e assustadora,então, ela tem medo de não conseguir vir até você para análise. Agora,você poderia dizer sobre isto que: “Quer me procure para começar a aná-lise, ou para ter uma parceira, ou por ter nascido, e precisar de um seio oude mãe, ou se é uma questão de ter um marido, ou até mesmo por seuspróprios sentimentos de amor ou admiração, você está bastante envolvi-da.”

Porque, se ela se permite sentir o quanto a admira, então, fica commedo de que nunca queira parar de vir à análise. Vai querer estar casadacom você para sempre. Porém, termos como ‘casamento’ e ‘divórcio’ sãosó um modo de estabelecer como duas pessoas vão viver juntas. Você casasimplesmente porque o matrimônio lhe dá um tipo de licença para a qua-lificação buscada, tal como ser-lhe permitido ver pacientes, ter filhos, terum marido ou uma esposa, mas suas dificuldades começam depois disso.É o mesmo com o divórcio, porque é só um método de combinação paraconhecer o companheiro certo, a pessoa certa. Na análise, não seria casa-mento nem divórcio, seria vir à análise e deixar a análise. É uma situaçãotemporária, como a infância. A pessoa só tem pais porque tem que terpais. Você tem que ter um adulto, não sabe por que, mas tem. Embora ainfância pareça durar para sempre, isso não acontece. É só um tempo muitopequeno, se você considerar que é um ensaio para a coisa em si. Porém, acoisa em si, veja, no mundo legal, no mundo real da vida circular, você tem

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que ter instituições, como matrimônio e divórcio, no sentido de tornar aspessoas capazes de estruturar estas coisas, achando a pessoa certa. Naanálise, é mais simples, porque você pode ir a um analista, ou achar outroanalista, que pode estruturar para você, e assim sucessivamente. Assim, elapode vir a você, ou deixá-la mas, neste contexto, o que ela teme é que,admirando-a tanto, nunca possa deixá-la.

A: É muito difícil para ela me deixar, depois da sessão. Toda vez,reclama que queria ficar. Diz que eu sou muito má, por abrir a porta, nãolhe dar tempo de enxugar o rosto com o lenço. Como ela chora tanto, todavez, todo mundo verá que chorou. Sempre reclama, queria ficar.

Bion: Você vê, se ela permitir que a análise chegue ao fim, isso éigual a admitir que você é livre, para casar, ou ver quem você quiser. E elanunca foi capaz de admitir que um pai possa casar com qualquer mulherque queira, e a mãe possa casar com qualquer homem que queira. Assim,na análise, ela realmente é vítima do fato de que você é livre. Você podeescolher analisá-la, se você quiser, e pode escolher algum outro, se quiser.Agora, ela quer que você se comporte de tal modo que nunca escolheriaoutro paciente ou bebê, filho ou filha, ou seu próprio marido ou mulher,conforme o caso. Mas, ela também não percebe o que poderia custar, sevocê concordasse em fazer isso, porque então, se você dissesse: ‘Certo, euficarei com você para o resto de sua vida.’ Então, ela também não pode-ria ficar livre de você. Parece certo, mas ela ainda não aprendeu o quecustaria. Pode, também, nunca ter aprendido o que custaria ser incapazde dizer adeus, para um pai, ou mãe, e se divorciar deles, e encontraralguém, que seria a pessoa certa. Assim, com você, veja, ela não sabequanto custaria, se tivesse que viver a vida toda vindo à análise.

A: Ela tende a ficar triste, chorar, por coisas que eram tão boas e,agora, não são. Não tem a capacidade de ver as coisas como um todo,como são, na realidade, boas e más ao mesmo tempo.

Bion: Bem, você poderia dizer: “Penso que você esqueceu como éser criança. Esqueceu de que, até mesmo na casa dos pais, na casa perten-cente a seu pai, ou à sua mãe, era bem uma mistura. Poderia ter sido tãomaravilhosa, que você nunca ia querer crescer, ou seus bebês poderiam sertão maravilhosos, que você nunca ia querer que crescessem, para seremhomens e mulheres.”

Porém, deste modo, você vê, há um fato que é muito difícil; é o desentir que, até mesmo no próprio matrimônio, o problema é se os filhos, ouo marido, ou a mulher, conseguiram ser livres. Na religião, é saber as afir-mações a serem feitas, a serviço da perfeita liberdade. A idéia, em religião,

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é bem conhecida, o objetivo não é tornar uma pessoa impossibilitada deser má. É de forma tal que as pessoas podem ser tudo que escolherem, sepagarem por isto. Podem ser tão diabólicas, sórdidas, quanto quiserem,se estiverem preparadas para pagar o custo disso. Um símbolo da análi-se, veja. Como eu disse lá: “Eu não lhe digo o que ser, tudo que estoufazendo é chamar-lhe a atenção para o que você é, e pode escolher o quequiser fazer com isto. Pode descobrir, que é uma pintora, ou uma musicista;se quiser ser uma pintora, ou uma musicista, pode ser. Ou, pode desco-brir-se como mãe, ou como pai, pode descobrir que poderia ser domesti-camente, ou profissionalmente muito capaz, até mesmo se você é um ho-mem, ou uma mulher, ou uma criança, que você poderia ser essas coisas.”

Na análise, o objetivo não é amarrar a pessoa, não é forçar umpaciente a ser um paciente para sempre. Ou, forçar o analista a ser umanalista para sempre. É construir o lugar no qual as pessoas possam sertudo que são, por natureza. Porém, ela não está querendo deixá-la livre,para se misturar com quem você quiser. Não está querendo sentir que vocêé livre, para ser casada, ou ter a família que queira. Mas isto, você vê,custa-lhe muito. Porque, se ela não lhe pode permitir fazer o que quiser,então, ela própria não pode fazer o que quiser. Ela não pode ficar casada,ou se divorciar, se isso tornasse as coisas melhores para ela.

A: Penso que teve a fantasia de pôr em ação tudo que quisesse narelação, e não vê isto como impedindo seu crescimento, mas sim, como acoisa boa para ela.

Bion: Você vê, se ela teve curiosidade sobre o que você e seu mari-do, ou sua mulher – eu coloquei assim porque você pode ser homem oumulher, são para ela. Se ela ainda está curiosa sobre o que você faz, tam-bém fica amedrontada com a possibilidade de que você lhe conte. De for-ma que, até mesmo se você não torna as coisas difíceis para ela, ela temtambém que colocar uma cortina. Talvez, isto não importe muito na aná-lise, mas importa em algo que não é infância, que não está na análise dela,mas que é o casamento, que é suposto que dure, você sabe, para sempre.Pelo menos, enquanto as duas pessoas durarem. Agora, o problema aí éque, sendo casada, com o marido dela, realmente não pode ser muito maispróxima ao que o pai e a mãe fazem do que quando é um deles. E esta éuma destas dificuldades que chegam até aí, se originalmente um problemanunca foi resolvido, um problema de confiar, que leva ao fracasso, seja láo que for que eles, de fato, possam fazer. Não é uma questão de que a mãedela não lhe permita crescer, mas de que ela não permite que sua mãecresça, que tenha os privilégios etc., que, usualmente, são permitidos aos

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adultos, porque são adultos. É como se ela sentisse: ‘Tenho que ser uma cri-ança, então minha mãe e meu pai têm também que ser crianças: Não tenhoque me sair melhor que meus filhos e filhas.’ O fato é que ainda está sentindoque a analista não deveria ser livre, para fazer tudo que queira fazer. Esco-lher se você tem ou não necessidade de tomar um homem ou uma mulher, umpaciente ou uma família própria. Assim, na situação de hoje, mostre a ela quevocê pode ver algo do preço, que ela tem que pagar, se ela sente que nuncapermitiu que o pai e a mãe dela fizessem tudo que quisessem, e se ela aindanão lhe permite, na realidade, ser livre para fazer tudo que você quiser. Mas,isso poderia querer ser uma resposta. Se ela quer análise, então ela querforçá-la a ser a analista. Então, ela fica tão ciumenta, com isso, que ela aquer como a paciente, ou quer forçá-la a sê-lo. Ou, como se a dirigisse, comopaciente, a sentir-se como um bebê não nascido, fechado dentro da mãe.

A: Disse que eu estava tão calada segunda-feira, falei tão pouco.Uma vez, disse que poderia acontecer, algum dia, eu decidir que não seriamais analista, e ficaria em casa, com os filhos e o marido. Poderiam acon-tecer estas coisas, que mostrariam que sou livre, o que é difícil para ela.

Bion: Enquanto quiser uma análise, sente-se como se fosse obriga-da, ela própria não é livre. Ela não o é porque sente-se compelida a compe-li-la a ser analista. E é difícil para ela ver que, se você pode ser uma analis-ta, é porque você quer ser. E, se ela sente que a está compelindo a seranalista, há até mesmo um pouco de bom senso nisto, porque se esperaque você esteja no consultório, ela tem que estar lá também. Esta é a parteracional disto. Enquanto vier à análise, perde a liberdade numa parte davida dela. E é difícil entender que análise não é simplesmente prender aspessoas, colocá-las em hospitais mentais mas, realmente, é torná-las livres.É isso que você está lá para fazer, ou é para isso que você lhe dá interpreta-ções. Não para que você possa dizer: ‘Assim é como você sentia-se comoum bebê, e você tem que ser um adulto.’ Esse não é o ponto. O ponto éque: ‘Hoje, embora seja uma pessoa crescida, ainda está sentindo o tipo desentimentos que poderia ter se fosse um bebê. E isto, realmente, limita sualiberdade. Porém, o objetivo da análise não é limitar sua liberdade.’

A: Os pacientes dizem, muitas vezes, que a análise custa, e que euposso escolher não ir, mas eles têm que ir. E, se estou atrasada, nada aconte-ce; se estão atrasados perdem. Sentem isto como um constrangimento.

Bion: Não é uma relação igual. Tudo que você pode dizer é: ‘En-quanto vier se analisar, e cooperar, tem uma idéia de como é sentir-se umbebê, ou até mesmo uma criança, que tem que se conformar às regras dacasa dos pais.’

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Na situação de hoje, mesmo tendo uma casa própria, ela achadifícil permitir-se ou ao marido lidar com esta como sendo a casa deles. Équase, você vê, como se fossem obrigados a tornar as crianças nos pais,que dão as regras de como a casa deve funcionar. É um preço muito sériopara pagar, é igual a perder a liberdade, e são adultos. Esta é a crise quevocê está sentindo, que ela compeliu seu pai ou mãe a obedecer às regrasdela, e eles eram adultos, e ela era só um bebê. Se ela já sentiu que queriaque eles obedecessem às ordens dela, e se eles pareciam obedecê-la ou secomportarem como se fossem obedientes, então ela se sente obrigada a serobediente hoje. Mas, para quem, ou para o quê, estes pais se curvavam àsregras, eu não sei. Ou, transpondo para uma terminologia religiosa, quemé este Deus que ela tem que adorar, nós não sabemos. Pode não ser emnada um Deus adulto.

A: E o que significa para o senhor, o que pensa da situação concretaem que o paciente diz que: ‘Não sei como eu poderia pagar, minha situa-ção mudou.’ O senhor pensa que nós pudéssemos esperar algum tempopara ver como as coisas se arranjarão?

Bion: Bem, só pode dizer que: ‘Eu sou um doutor e um psicanalista,é o único tempo em que eu posso ganhar a vida. Assim, se não pode pagara análise, não sei quem vai pagar por isto.’

CONCLUSÕES

Ao refletir sobre estas supervisões, trinta anos depois, fiquei sur-presa com o quanto esta experiência foi implantada dentro de mim. Foidecisiva em minha vida, e posso tirar proveito dela todos os dias, não sócom pacientes, mas também como analista didata, na minha própria trans-missão para os candidatos, em análise, supervisão e seminários. Assim,como ouvi de Bion, eu continuo a me tornar uma psicanalista todos osdias, em cada sessão, e espero manter o grau de abertura que ele me comu-nicou com lindas palavras. Depois de revisitar uma experiência emocionaltão plena que a denominei “mágica”, senti o desejo de compartilhar commeus colegas os conselhos desse analista iluminado, dados tão generosa-mente. Esse desejo, que já satisfiz, em parte, em 2003, na apresentação em“Um sábado com Bion,” e no Boletim Científico (1: 59 – 79), se completaagora, relatando essa experiência como contribuição ao número da revistaPsicanalítica, por ocasião dos festejos pelos 50 anos da SPRJ.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BION, W. R. (1973). Brazilian Lectures 1 São Paulo. Rio de Janeiro: Imago.

(1974a). Brazilian Lectures 2 Rio de Janeiro São Paulo. Rio de Janeiro: Imago.

1974b). Comunicação pessoal.

HISSA, A. M. C. (1999). Reflexões a propósito de uma forma peculiar de comunica-

ção. Rev. Bras. Psican., 33: 515 - 533.

(2003). Uma experiência mágica – sete supervisões com Bion em abril de 1974.

Em “Um Sábado com Bion.” Reunião Científica da SPRJ em setembro de 2003.

(2003). Uma experiência mágica – sete supervisões com Bion em abril de 1974.

Boletim científico da SPRJ, 1: 59 - 79.

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Reações psicológicasà perda de visão

Maria Cristina de Castro Barczinski*

RESUMO

A autora faz estudo sobre reações psicológicas do indivíduofrente aos transtornos oculares e cegueira.Apresenta orientação para manejo do setting com estes pacientesno processo de reabilitação, e mostra material clínico referenteà análise de dois pacientes.Conclui com proposta de prevenção e auxílio aos pacientesnas situações de maiores dificuldades oftalmológicas.

ABSTRACT

The author presents studies of the psycholgical reactions ofindividuals facing visual afflictions and blindness.She presents guidelines for handling the “setting” with thesepatients during the rehabilitation process, shows clinicalmaterial obtained from the analysis of two patients, andconcludes with a proposal of prevention and help in situationsof major ophtalmological difficulties.

INTRODUÇÃO

Este trabalho teve início no Instituto Benjamin Constant (IBC) a par-tir do meu contato com pacientes cegos e com perda parcial da visão, ondetive a oportunidade de trabalhar como psicóloga por dois anos (1983/85).

* Psicóloga voluntária / Instituto Benjamin Constant e Membro Associado da Sociedade Psicanalíticado Rio de Janeiro.

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O meu trabalho é direcionado para a prevenção da perda da vi-são, pois mesmo em casos reduzidos, o paciente tem grande participação“inconsciente” no retardo do diagnóstico e na dificuldade de reabilita-ção, contando ainda com vários outros fatores dentro do processo.

Apesar dos recursos com que se pode contar atualmente para evitara perda da visão, a cada dia muitas pessoas ficam cegas por doença, aci-dente ou velhice. Para uma pessoa com visão normal, a perda repentina deseu mais precioso sentido é muito difícil. Principalmente se considerarmosque em nosso mundo cada vez mais orientado visualmente, ninguém contacom a possibilidade de ficar cego.

Do ponto de vista psicológico, mesmo o indivíduo mais saudá-vel mentalmente utilizará mecanismos importantes para a sua adapta-ção à cegueira.

Embora a Psicanálise e a Psiquiatria estejam familiarizadas em li-dar com perdas, raramente têm a oportunidade de observar passo a passoas reações e o funcionamento da catástrofe que sofre o paciente com aperda total da visão.

A necessidade de uma profunda reorganização psicológica destespacientes requer um amparo urgente para que eles possam lidar com estaperda que influi em todos os aspectos de suas vidas.

RELIGIÃO, MITOLOGIA E CEGUEIRA

Nos templos bíblicos, a cegueira era um mal comum. Esta condiçãoera freqüentemente encarada como uma punição por algum ato malignoou como um traço do destino só podendo ser revertida por Deus. Nostempos bíblicos, os cegos estavam forçosamente condenados a uma vidade dificuldades e pobreza.

Alguns exemplos bíblicos de cegueira auto-infringida são os casosde Santa Luzia, padroeira dos cegos e doentes dos olhos, e S. Triduana eS. Medana, padroeiros da oftalmologia.

Seguem-se casos históricos, como o relatado por Marco Pólo, noséc. XIII. Ao chegar em Bagdá, soube da história de um sapateiro quedestruíra o olho direito com uma sovela, sentindo-se culpado pelos pensa-mentos pecaminosos que teve ao ver exposta uma parte da perna de umajovem mulher.

No século passado, o conhecimento da mitologia grega era essencialpara qualquer pessoa poder considerar-se educada.

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A mitologia também considera a cegueira como punição aos peca-dos. Provavelmente, os primeiros casos de cegueira auto-infligida foramrelatados nas mitologias grega e nórdica. A história de Édipo nos é bemconhecida. Na literatura nórdica, diz-se que Odin deu um de seus olhosem troca do direito de beber um único gole na fonte de Mimir, cujas águascontinham o dom da sabedoria e do entendimento.

A bela lenda de Lady Godiva nos conta que todos os habitantes dacidade esconderam-se por trás de suas venezianas fechadas a fim de tor-nar mais fácil a tarefa da senhora de cavalgar nua pelas ruas em plenodia. O único homem que espiou através das venezianas o seu belo corpodesnudo foi punido com a cegueira.

Embora alguns estigmas da cegueira mencionados acima sejam partedo passado, também na sociedade moderna as pessoas cegas são evitadas,ignoradas ou superprotegidas.

REAÇÕES À PERDA DA VISÃO

Segundo Adams(1980), um dos primeiros trabalhos da literaturapsiquiátrica que falava sobre as reações à cegueira intitula-se “The MentalState of the Blind” (1908), de autoria de William Dunton, e foi publicadono American Journal of Insanity.

Adams mostra que Luiz Cholden também contribuiu com conside-rações sobre os problemas psiquiátricos observados em seu atendimentocom reabilitação de cegos na Menninger Clinic. Segundo o autor, a primei-ra fase que aparece com o choque da cegueira é o estado de imobilidadepsicológica, descrito como “proteção emocional anestésica”. Seria impos-sível colocar um limite de tempo nesta fase, mas ele sentiu que quanto maislonga fosse a fase do choque, mais prolongado e difícil seria o processo dereabilitação.

Seguindo-se a fase do choque, surge a depressão reativa envolven-do sentimentos e desejos de autopiedade, necessidade de confidências, pen-samentos suicidas e retardamento psicomotor.

Para Cholden, a depressão seria o luto pelos dead eyes, pela perdade visão. Percebeu que o paciente tinha que morrer como pessoa que en-xerga para renascer como pessoa cega.

Observou que o choque e a depressão são necessários à progressão,para se lidar melhor com a cegueira no próximo estágio.

Observou três reações “permanentes” na cegueira, que ele conside-ra como representantes psicopatológicos. A primeira era o prolongamento

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da fase depressiva para a depressão masoquista. A segunda, o desenvolvi-mento das desordens características, que poderia ser um exagero de fatospreexistentes, como, por exemplo, uma dependência crônica. E por último,descreveu um fenômeno no qual alguns pacientes cegos formavam um gru-po representando uma minoria contra aquilo que eles consideravam “ummundo hostil, estúpido e sem consideração, das pessoas com visão normal”.

Ainda segundo Adams, em 1970 Fitzgerald estudou as reações àcegueira de forma moderna, sistemática e científica e descreve quatro fasesdistintas de reações. Primeira a descrença, quando os pacientes tendem anegar sua cegueira. Depois, a fase de protesto, quando eles vão procuraruma segunda opinião ou recusam-se a usar a bengala branca. Em terceirolugar ocorre a depressão, com os sintomas clássicos de perda de peso,mudança de apetite, idéias suicidas e ansiedades paranóides. E por fimacontece a recuperação, quando os pacientes aceitam a cegueira num está-gio em que não se percebe qualquer distúrbio psiquiátrico. Fitzgerald esti-mava um período de dez meses para que o paciente percorresse essas qua-tro etapas.

O processo de luto é visto como uma fase importante que muitasvezes nem se realiza. Nesses casos, o paciente assume o caráter de umanegação maníaca, ocasionando reações neuróticas moderadas ou severas.

As características mais freqüentemente observadas nestas reaçõessão: a) dependência acentuada em relação aos adultos ou negação da mes-ma; b) recusa à competição ou constante preocupação em comparar-se ecompetir; c) repressão da agressividade com excessiva amabilidade ou gran-de agressividade; d) hipersensibilidade a críticas; e) dificuldade de relacio-namento com outros deficientes visuais e entre eles os “videntes”; f) inse-gurança a respeito de si mesmo; g) desconfiança acentuada em relação àoutras pessoas e suas intenções; h) manifestações de ressentimentos pelasensação de não ser querido e aceito pelo mundo, pois julga que ser diferen-te é ser inferior; i) predominância de pensamento mágico e misticismo; j)sentimentos de inveja; k) descontentamento e uma crítica severa em rela-ção aos demais; l) desconfiança acentuada sobre sua capacidade sexual(cegueira = castração), m) busca de um parceiro que também seja deficien-te visual; n) isolamento, evitando situações sociais; o) acentuada necessi-dade de aprovação e afeto.

No trabalho com pacientes com perda da visão é observado umpredomínio de traços paranóides que não devem ser avaliados somentecomo fantasia, pois existe um rechaço real da sociedade em relação aodeficiente visual.

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Nos autores pesquisados, há concordância quanto as quatro fasesque acontecem quase universalmente nos primeiros estágios da cegueira.

Segundo Fitzgerald são elas: descrença, protesto, depressão e final-mente recuperação. Blank e Cholden descrevem uma fase inicial dedespersonalização, elevando a uma depressão reativa ou agitada, eventu-almente seguida da recuperação. Blank afirma ainda que o paciente ficaum pouco perturbado com a perda de visão como mau sinal, e sugerecomo conseqüência uma grave necessidade neurótica de punição.

O sofrimento é a reação real à perda de um objeto, enquanto aangústia é a reação ao perigo que essa perda acarreta.

Quando existe a dor física, ocorre em elevado grau aquilo que po-deria ser definido como investimento narcísico do local. A transição dador física para a dor mental corresponde a uma mudança do investimentonarcísico para o investimento do objeto. O luto ocorre sob a influência doteste da realidade, pois esta última função exige categoricamente que opaciente se separe do objeto que não mais existe.

OUTRAS PERDAS SOMAM-SE À PERDA DA VISÃO

´ Perda da integridade física (o indivíduo sente-se mutilado, estádiferente do que era anteriormente e diferente dos que o cercam).

´ Perda dos sentidos remanescentes (há uma desorientação inicialcausando diminuição do tato, olfato, memória, capacidade motora etc.

´ Perda do contato real com o meio ambiente (como se morressepara o mundo das coisas, perdendo assim um importante vínculo coma realidade).

´ Perda do “campo visual” (olha para algo que não se encontramais ali – silêncio visual).

´ Perda das habilidades básicas (capacidade de andar; estando só éobservado, e estando com outras pessoas sente-se isolado).

´ Perda das técnicas da vida diária (passa por repetidos fracassosnessas atividades que nunca o deixam esquecer que está cego. Ex.: comer,beber, funções intestinais, conservar-se limpo e arrumado, despir-se à noitee vestir-se pela manhã, barbear-se, maquiar-se, higiene pessoal, distinguir apasta de dente do creme de barbear, controlar as contas, preencher che-ques, contar dinheiro, localizar objetos que derrubava, comer em restau-rante etc.) Tais perdas obrigam o deficiente visual a depender, em maiorgrau, das outras pessoas, restringindo severamente sua autonomia.

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´ Perda na facilidade de comunicação escrita (livros, jornais, foto-grafias, não pode ler a própria correspondência, perdendo a reserva pessoal,e impossibilitado também de assinar o próprio nome).

´ Perda da facilidade da comunicação corporal (postura, gestos, mí-mica e expressões faciais, não pode ver as reações da pessoa com quem fala).

´ Perda da visão dos rostos familiares, artes etc.´ Restrições em sua recreação (que poderia ajudá-lo na superação

da crise).´ Perda da obscuridade (não passa mais despercebido na sua rua,

por isso muitas vezes rejeita a bengala e qualquer objeto que possa identificá-lo como cego).

´ Perda da profissão (perde a capacidade de produzir e de sentir-seútil). Perdendo muitas vezes sua segurança financeira, numa fase em quenecessita gastar mais com sua reabilitação.

Sendo inúmeras as limitações, uma série de frustrações acompa-nham uma desorganização na personalidade e na perda da auto-estima.

MUDANÇA DO SETTING

O trabalho com o paciente cego em um relacionamento psicote-rapêutico exige que o terapeuta se conscientize de algumas interações espe-ciais, que podem surgir durante o processo, incluindo questões de trans-ferência e contra-transferência. Antes do início da terapia, deve o psico-terapeuta tentar examinar o seu próprio setting quanto ao que ele acreditaser a sua própria atitude diante da cegueira, o que a cegueira significariapara ele, e – especialmente – que experiências ele teve com cegos no passado.

Para Adams (1980), desde o início deve o terapeuta estar dispostoa assumir um papel mais ativo. No primeiro contato, na sala de espera, oterapeuta deve anunciar a sua presença em voz alta, e deve estar prontopara tocar o paciente e permitir que este o toque, deixando que ele segureem seu braço com firmeza até ambos estarem sentados no consultório. Oterapeuta deve saber que comportamentos, como gesticular, ou expressãofacial podem estar ausentes ou destorcidos no paciente cego. Ainda: algu-mas das pistas visuais normalmente utilizadas em terapia podem ter queser sacrificadas. O terapeuta não pode esperar que o paciente cego reaja aum olhar. Portanto, ele deve aprender a traduzir em palavras estas emo-ções visuais. O paciente cego pode ter dificuldades com “contato visual” eaparentar não estar vinculado ao terapeuta (quando, na realidade, ele estáclaramente em harmonia com a sessão ). Por outro lado, alguns pacientes

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mantém um contato visual tão bom, que o terapeuta pode esquecer que opaciente não possui visão.

Uma parte necessária para a terapia com pessoas cegas é a disposi-ção de se explicar detalhadamente o ambiente. Pode ser, porém, que oterapeuta queira primeiro explorar a fantasia que o paciente tem a respeitodo mesmo.

O terapeuta deve lembrar-se que a sua própria curiosidade podelevá-lo a seguir um detalhe que seja de seu interesse, em vez de ser o focoda terapia. (Por exemplo, o paciente deprimido pode descrever como lhe édifícil vestir-se de manhã. O terapeuta pode interessar-se por outros aspec-tos, e não pela falta de energia ou interesse do paciente). Estas distraçõespodem ser informativas, mas também prolongam o curso da terapia. Deum modo geral, o terapeuta pode sofrer uma demora até estabelecer umrelacionamento terapêutico com o paciente cego, a qual pode ser reduzidamediante conhecimentos prévios sobre o comportamento dos cegos.

A importância da psicoterapia com estes pacientes torna-se aindamaior se pensarmos no tratamento que a sociedade dava aos cegos nopassado. O conhecimento de algumas reações psicológicas, bem como doprocesso de aceitação da cegueira, é fundamental para que se estabeleçauma relação de sintomas específicos associados ao problema.

O trabalho psicoterapêutico com o deficiente visual pode ser acele-rado se o terapeuta estiver disposto a explorar suas próprias reações dian-te do paciente. Assim estabelecem-se os alicerces para um processopsicoterapêutico ativo que podem facilitar e aprofundar o tratamento.

Apesar de a psicoterapia ter que focalizar principalmente os pro-blemas psicológicos do paciente, o psicoterapeuta também deve estar dis-posto a auxiliá-lo a encontrar um papel mais satisfatório na sociedade,estando atento a habilidades e interesses mencionados pelo paciente antesda perda de visão.

X PACIENTE

Conduta no Tratamento: A psicanálise em geral acha-se pouco pre-parada para encarar terapeuticamente soluções de EMERGÊNCIA. Al-guns profissionais preferem chamá-las de “Psicoterapia de Apoio”.No momento de crise, quando o paciente é levado pela família – pois difi-cilmente procura espontaneamente o consultório – é inútil para ele outraatitude que não seja encarar o fato atual como o mais importante. Algumaconduta imediata tem que ser adotada.

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O estado atual é reflexo de acontecimentos penosos vividos ou fan-tasiados na infância e que devem ser localizados pelo analista. A fase agudado momento estaria relacionada a um fato atual, um fator desencadeante degrande intensidade ou à somatização de microtraumas constantes.

Sob o ponto de vista das “instâncias psíquicas” nos encontramosem uma situação em que o id frustrado por um superego rígido, punitivoe ameaçador pressiona um ego fraco ou enfraquecido cheio de culpabili-dade e masoquismo que poderá reagir pondo a agressividade para foracontra o outro ou contra si mesmo até a destruição do self.

Em situações comuns, as “falas” dessas instâncias podem ser en-contradas nas emergências, apresentando as tempestades de afetos, com opaciente gritando e amedrontando ao mesmo tempo em que se apresentacomo vítima. Ou então o paciente fala ponderadamente, apresentando-secomo frio e vazio de afeto, pois está isolado.

A reação do paciente à urgência é imprevisível, e as repressões mui-to profundas indicam risco de suicídio.

O psicanalista está acostumado a interpretar, mostrar, compreen-der etc. Mas, no momento da crise, o que pode ser interpretado? O “como”,o “porquê”, o “para quê” ou “o quê”? Mostrar compreensão sem com-preender? Ser dadivoso?

Na verdade há pouco a ser feito, mas também não podemos ficarsem fazer nada. Podemos tentar alguma coisa. Uma delas seria entrar emcontato com algum resíduo de Ego sadio mostrando que há finalidadenaquela conduta.

Outra possibilidade seria procurar descobrir a situação desencadeanteou frustradora – ou ambas combinadas – e procurar substituir o superegoperseguidor por um menos rígido, assumindo conscientemente o papel deum superego auxiliar, mais compreensivo e menos perseguidor.

Dados que devem ser vistos como importantes:a) é mais fácil entrar em relacionamento com o cliente que pede

ajuda espontaneamente;b) o setting hospitalar pode ser favorecedor.Já o atendimento em residência ou o fornecimento de dados pela

família são fatores muito negativos. Se o cliente não quer falar ele temalguma razão para isto, e é melhor que ele não fale do que ouvirmos o quea família tem a dizer sobre ele. Pois o doente pode ser depositório dosaspectos doentes da família que o mantém cronicamente doente.

Há também o sentimento de culpa deslocado e a família pode rece-ber o analista com hostilidade, acusando-o de não ter feito nada.

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Basicamente, a intuição é o elemento fundamental da ajuda que oterapeuta pode oferecer na emergência.

Teoricamente. 1. Abrir sua sensibilidade, intuição, identificar-se como cliente, e se tornar um corpo de ressonância para o inconsciente dele.

2. Usar a inteligência para entender conscientemente o que o in-consciente sentiu; sentir o que liga e o que separa; analisar e sintetizar;diferenciar o essencial do secundário; e tentar compreender e sentir a pes-soa dentro da doença.

O terapeuta deve oscilar entre o esquecer e lembrar, a reação intui-tiva e o discriminar intelectual, ser um instrumento passivo/ativo sensível eao mesmo tempo um ouvinte crítico e racional.

Estas condições não podem ser ensinadas. Elas são inerentes a cer-tos tipos de pessoas, e ainda assim, podem não funcionar em determina-dos momentos.

A personalidade do psicanalista, junto com o conhecimento que eleadquiriu em sua formação, aumenta sua possibilidade de empatia e identi-ficação com o cliente.

Existe emergência e o bom manejo dela depende principalmente deuma capacidade especial do terapeuta que intui a gravidade da situação,tendo apenas como conhecimento que, via de regra, o elemento predomi-nante da emergência é o ódio, a destruição e a vingança.

No início do tratamento, as interpretações são irrelevantes ou po-dem até mesmo se transformar num INSULTO. Talvez mais importante doque o conteúdo em todo caso sejam os processos dinâmicos que ocorre-ram tanto em níveis conscientes quanto inconscientes.

Freud, em Psicanálise Silvestre, fala da idéia de que o paciente sofrede uma espécie de ignorância, e que se alguém consegue tirá-lo desse estadodando-lhe informação (sobre a conexão causal da doença com a sua vidaetc.) ele deve recuperar-se. O fator patológico não é esse ignorar propria-mente, mas está no fundamento dessa ignorância, em suas resistências inter-nas; foram elas que primeiro produziram o ignorar, e são elas que ainda oconservam. A tarefa do tratamento está no combate a essas resistências.

Informar ao paciente aquilo que ele não sabe porque reprimiu éapenas uma das preliminares necessárias ao tratamento. Se o conhecimen-to acerca do inconsciente fosse tão importante para o paciente como aspessoas sem experiência em psicanálise imaginam, ouvir conferências ouler livros seria suficiente para curá-los.

Uma vez que a psicanálise não pode abster-se de dar essa informa-ção, Freud prescreve que isto não poderá ser feito antes que duas condições

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tenham sido satisfeitas: “Primeiro, o paciente deve, através de preparação,ter alcançado ele próprio a proximidade daquilo que ele reprimiu; e, segun-do, ele deve ter formado uma ligação (transferência) com o analista para queo seu relacionamento emocional com este possibilite uma nova fuga.

Somente quando essas condições são satisfeitas toma-se possível re-conhecer e dominar as resistências que conduziram à repressão e à ignorân-cia. A intervenção psicanalítica, portanto, requer de maneira absoluta umperíodo bastante longo de contato com o paciente.

Destaca também o valor da ignorância, ainda que não sejamos igno-rantes. Uma “ignorância cultivada” é a necessidade de se lançar um olharnovo para a situação, de se deixar de lado modos habituais de olhar para ascoisas, de cegar-se para o óbvio e de pensar mais uma vez.

É importante convidar o paciente a falar livremente de seu sentimen-to, de seu sofrimento, enfim, convidá-lo à associação livre.

A importância de um apoio central, a família, a presença de alguémque possa dar força e suporte para continuar o processo de desenvolvimentona ajuda não das mudanças sonhadas, desejadas, mas possíveis.

Uma atenção cuidadosa à contratransferência também é necessária.Nosso envolvimento pode tornar mais difícil a observação cuidadosa.

A supervisão pode ser muito útil na ajuda de interferências no relacionamento.

ESTUDO DE CASO

De um modo geral, em psicanálise, só recebemos encaminhamen-to para tratar de pessoas que de alguma forma não conseguiram se adap-tar às tensões em suas vidas. Não pretendo apresentar estudo detalhadode casos, mas uma interação entre a teoria e a observação de dois casosbem distintos.

Diferentemente dos casos que estudei, onde o acompanhamentopsicológico ocorre simultaneamente ao clínico (como medida preventiva),recebi os pacientes encaminhados pelo Instituto Benjamin Constant (IBC)somente após terem se esgotado outras alternativas de ajuda.

Como medida de proteção aos pacientes, pouparei dados pessoaisque poderiam identificá-los.

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CASO I: TRATAMENTO: TRÊS ANOS.

Beatriz, 59 anos, desquitada, vivendo com companheiro há váriosanos, foi encaminhada ao IBC para aprendizado de trabalhos manuais.Só depois de várias faltas às consultas marcadas, convidei-a ao consultó-rio. Então ela pôde comparecer, deixando clara a rejeição ao contato comoutros deficientes visuais.

Durante a fase inicial do tratamento, confesso que passei por con-flitos, questionando o que eu teria para oferecer àquela paciente que seencontrava em estado de desamparo, desesperança e depressão, com todasas perdas por que passam os pacientes que ficaram cegos.

Penso que o fundamental para mim foi perceber que ela estava noconsultório, falando, escutando e pensando; logo, havia socorro para ela.

A cada frase Beatriz chorava, tossia, se engasgava, sufocava. Eu mevia diante de um bebê.

A primeira providência foi a mudança de setting e de horário. Co-loquei-a num horário em que me sentisse mais livre se precisasse ultrapas-sar o tempo da sessão.

Um copo de água mineral fez parte do setting durante aproximada-mente dois meses, até que minha colega de consultório observou que apaciente não bebia mais a água.

Aos poucos fui localizando-a no setting, e ela se movimentava nasala de espera, no banheiro, e ia buscar água. Mas para entrar para a minhasala ela apoiava-se em meu braço, alegando que “a passagem tinha muitasportas que ela não sabia abrir sozinha e tinha medo de se machucar”.

A esta altura, o tratamento começou a funcionar, pois a paciente jáse encontrava em nível superior de auto-afirmação de suas atividades diá-rias. A depressão estava controlada com medicação, o que se recusara ausar até então, e também podia se alimentar sozinha.

Durante a depressão, Beatriz passava os dias na cama “embaixo docobertor”, completamente isolada. Percebi que a depressão estava não sóligada à perda de visão somada a outras perdas, mas também servia paraconter a cólera no estreito foco da dificuldade conjugal. Havia o desejo demanter o atual “marido” aposentado como seu enfermeiro, pois dessa for-ma estaria punindo-o e controlando-o ao mesmo tempo. Sua relação com omarido diferenciava-se das demais (filho, nora, netos) por uma gratificaçãomasoquista. Beatriz estava convencida de que a relação com o marido esta-ria garantida se continuasse no comando mesmo “embaixo do cobertor”.

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Ao entrar em contato com as perdas, enfrentando o que poderia eo que não poderia ser modificado, passou a funcionar num nível de esco-lha até então desconhecido. Já podia escolher o caminho para o consultó-rio, quando antes achava que não fazia diferença vir pelo túnel ou pelapraia já que “não enxergava nada mesmo”. Também começou a freqüen-tar o supermercado com uma auxiliar e a escolher a marca dos produtosque queria usar.

Foram muitos momentos difíceis, pois a paciente vivia a esperan-ça de voltar a enxergar. Sem mais possibilidades no Brasil, surge umaesperança nos Estados Unidos. Confesso que nesse momento entrei emestado de mania com a paciente, pois era muito agradável sonhar.

A paciente voltou de viagem sem enxergar. O transplante foi man-tido, pois até então havia sempre rejeição, mas o nervo ótico estava com-pletamente lesado.

A tarefa era ajudar no insight, auxiliando a paciente a livrar-se demétodos inúteis de conduta, facilitando a evolução de idéias no sentido demudança e ajudando-a a suportar a ansiedade e a incerteza do processo demudanças, não das sonhadas e desejadas, e sim das possíveis.

Sua capacidade de reconhecer um sentido na vida, considerando asatuais limitações, veio através dos netos.

As perdas não foram preenchidas, e a depressão não podia ter de-saparecido. Mas acredito que ela tenha encontrado uma forma de “convi-ver” com elas. Neste caso, “trabalhos manuais” são importantes paraquem se interessou por eles em algum momento mas não teve a oportuni-dade de realizá-los. Não deve ser uma tarefa imposta, algo que tenhasobrado ao paciente. Hoje, no IBC, há várias opções de informática ofe-recidas à marcenaria, mas a escolha é respeitada.

Muitos foram os momentos difíceis que enfrentei, onde ficava claraa angústia. Eu a identificava, mas a interpretação seria de pouco ganho.

São inúmeras as situações de regressão às quais os pacientes graveschegam, onde o analista tem que ter criatividade, pois não cabe, nestahora, interpretação. Acredito que o meu trabalho com crianças portado-ras de necessidades especiais muito me ajudou nestas situações.

A situação edípica da paciente era bastante comprometida. Expres-sava um ódio mortal pela mãe, pois dizia que esta só foi mulher para o pai,nunca se importou com os filhos, e acreditava que ela não queria filhamulher. O pai, apesar de ter sua admiração na infância, era sentido por elacomo fraco.

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Beatriz acabou sofrendo sucessivas cirurgias durante períodos quese prolongaram até 20 meses, sem resultados satisfatórios.

Bem mais tarde esta paciente me foi encaminhada, para desenvolvertrabalhos manuais no Instituto Benjamin Constant. Diminuindo as defesas,ela toma conhecimento de quanto contribuiu para o agravamento da doen-ça, e quão pouco cooperou com o tratamento e a equipe médica:

1. Continuou usando as lentes.2. Misturava ou esquecia a medicação por estar muito ocupada,

trabalhando.3. Não voltou ao médico na data marcada, e fazia peregrinação

para confirmar diagnóstico e medicação.(Este foi o único ponto de igualdade com o caso que apresentarei a

seguir, obviamente com diagnóstico diferente)Em 1978 a paciente havia sofrido cirurgia para retirada dos ovários

(seu primeiro órgão de choque), chegando a fazer quimioterapia. Alegouter resistido muito bem, pois o câncer não a impediu de trabalhar, e a suapresença era disfarçada. A perda da visão, por outro lado, lhe era impeditiva,imobilizando-a em vários aspectos conforme descrito anteriormente (ver“Reações à perda de visão”).

A paciente segue seu caminho com ajuda, um nível razoável de in-dependência, os ganhos obtidos em relação ao comportamento inicial aotratamento foram muitos, não resolvendo a perda de visão mas uma me-lhor forma para visualizar soluções de seus problemas na reabilitação.

CASO II: TRATAMENTO: APROXIMADAMENTE SEIS MESES.

Fernando, 43 anos, casado, chegou ao consultório, acompanhadoda esposa, porém com boa mobilidade e perfeito domínio da bengala. Ele játinha passado pelo IBC e veio encaminhado por profissional da Instituição.

O paciente perdeu a visão num desastre de automóvel em que diri-gia completamente alcoolizado, já tendo sofrido outros acidentes pelomesmo motivo. Tinha consciência de seu alcoolismo e freqüentava o AA,contando com a participação da família nas reuniões.

Longe da depressão e da perda, encontrava-se em quadro que con-sidero “maníaco”, juntamente com todos os que se propuseram a ajudá-lo, pois havia uma total negação por parte do paciente e da família.

A ajuda que recebia da família era comovente em muitas situações,mas em outras era desastrosa, pois o mantinha em grande dependência.

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O paciente tinha boa situação financeira, prestígio e era responsá-vel pelo sustento da família, mas após o acidente de carro foi despedidopela empresa. A esposa, que não trabalhava fora, passou a ter o controledas despesas, e o paciente assumiu a função “materna” com os filhos.

As oportunidades de trabalho eram de pouca eficácia e o coloca-vam sempre em situações que o expunham.

Fernando não falava de suas perdas, limitando as sessões ao desejode vencer a barreira financeira. Entendia a dificuldade que sentia na perdado seu papel de provedor ativo para passivo, e a competição com a esposa.No nosso contrato combinamos que não o receberia alcoolizado, pois elepouco poderia aproveitar do tratamento, respeitava, mas bebia e usava a se-cretária eletrônica ou telefonava para a minha casa em horários impróprios.

Eu nunca soube detalhes do acidente, pois ele começava a contarvárias vezes mas mudava de assunto. Tentei mostrar que a situação deveriater sido muito difícil, pois parecia que ele tinha medo de falar, como sefosse vivê-la novamente.

O paciente ficou pouco tempo e não senti nenhuma mudança. In-terrompeu o tratamento alegando que as filhas e a mulher estavam preci-sando de tratamento dentário, que ortodontia era muito caro mas que elasprecisavam da correção.

Tentei mostrar que ele acreditava que para as filhas havia correção,mas era como se ele imaginasse que eu não poderia fazer mais nada paramelhorar o seu estado. A esposa também veio falar sobre o pagamento,não podendo experimentar uma nova visão da vida, pois havia uma difi-culdade maior de ele se tratar. Entretanto, para esses casos eu tinha umadisposição para o pagamento simbólico.

Nos dois casos apresentados, acredito que se esses pacientes tives-sem sido encaminhados para tratamento psicológico, quando o quadroclínico começou a complicar, talvez pudessem ter se conscientizado parauma maior cooperação no diagnóstico e no tratamento.

Assim como Beatriz, Fernando não perdeu a visão de imediato;havia um quadro de tratamento. Imagino que estas perdas devem aconte-cer não só com a visão mas com outros órgãos, com grande participaçãodo paciente. Sempre existe uma outra ocorrência grave como pano-de-fundo, onde a doença sempre traz um ganho, ainda que secundário.

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FATORES IMPORTANTES PARA A REABILITAÇÃO

Os autores pesquisados falam que uma boa reabilitação do pacientee a ausência de maiores distúrbios afetivos podem ser atribuídos ao cuidadorecebido no início da ocorrência e no hospital, ao apoio da família, à suapersonalidade saudável e, principalmente, à sua visão otimista da vida.

Pacientes abertos a mudanças e envolvimentos e que encaram amudança como um desafio e não como uma ameaça também apresentamboa recuperação.

A pessoa ajustada é adaptada à “verdade” segundo as necessidadesda situação, enquanto o desajustado mantém-se no “erro” inicial mesmoquando este já não lhe oferece nenhum ganho.

A capacidade de reconhecer um sentido na vida considerando asatuais limitações ajuda na reabilitação e a obter uma satisfação internaque é impossível diante de um questionamento intelectual.

A reabilitação dependerá de vários fatores:

´ Da estrutura do ego.´ Do nível de frustração que o paciente é capaz de suportar.´ Da quantidade de limitações que a cegueira lhe impõe (ex. grau

de necessidade de visão em sua vida profissional).´ Da reação do grupo familiar.´ Do tipo predominante de caráter: marcado pela dependência ou

sado-masoquista, que se satisfaz com a cegueira.´ Das realizações do paciente em sua vida até o momento da perda;´ Da sua estabilidade emocional.´ Das responsabilidades antes da perda de visão.´ Da faixa etária do paciente.

Pontos negativos para a reabilitação:

´ Sabe-se que a falsa esperança não só atrasa como impede a reabi-litação.

´ A ajuda da família com relacionamento “excessivo” e “desmedi-do” provoca um comportamento regressivo, permanecendo a dependên-cia do paciente.

CONCLUSÃO

Embora a psicanálise esteja hoje bem difundida na mídia e no âm-bito cultural, encontra-se ainda muito isolada e distante do trabalho da

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equipe médica. Este trabalho reflete minha convicção de que muito podeser feito na área oftalmológica, e o meu desejo por uma psicanálise dinâ-mica, aplicada, que se aventure ou que volte (como o fez Freud em 1885,quando ao pesquisar perturbações histéricas da visão, estagiou durante trêsmeses em oftalmologia em Viena) para a área institucional numa atuaçãomultidisciplinar. São vários os níveis em que a psicanálise pode atuar: pre-ventivo, terapêutico, de reabilitação e profissionalizante, sempre auxilian-do o indivíduo e a instituição a funcionarem melhor.

Não pretendo esgotar o tema, pois estou apenas iniciando o estudoe pretendo continuar refletindo, já que sinto que ele é muito rico e não seaplica apenas a pacientes com perda de visão.

Concluo o trabalho consciente da minha “cegueira” para muitosaspectos desconhecidos da teoria e da prática. Espero, no entanto, conti-nuar com o desejo e a curiosidade para sempre considerar um ângulo novonas coisas que não conheço, aprofundar minha intuição em busca da com-preensão e fugir da tentação e do perigo de aprender a ver, ficando assimimpossibilitada de ver o novo.

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E N S A I O S

O telefonema

Oswaldo José de Freitas Milward*

A noite corria de encontro à madrugada e o homem via os baresfechando. As ruas estavam ficando vazias e desertas de pessoas. Carrospassavam, alguns buzinando para avançar o sinal. Resolvera telefonar paraum amigo. Como não tinha celular, buscou um orelhão e, aconchegando-se como num ninho, discou o número que guardava na cabeça. O amigoatendeu. Alô de um lado, alô do outro, o contato estava feito, mas o baru-lho na rua dificultava uma melhor escuta. Tentava falar alto, colocar ofone mais próximo do ouvido e da boca para poder ouvir e falar melhor,no entanto a dificuldade persistia. Desligou, avisando antes que iria ligarnovamente. Colocou o fone no gancho e efetuou a ligação pela segundavez. O amigo atendeu. Tudo indicava que agora poderia comunicar seusproblemas mas ora um chiado ora o barulho da rua não permitiam a con-versa que ansiosamente queria. Desta vez não desistiu, tentou permanecerna escuta, sem desligar o telefone. Falou mais alto, pedia para que o amigotambém o fizesse. Alguém se aproximou do orelhão, queria também falarao telefone, ficou a uma certa distância para não invadir a privacidadedaquele que estava tentando a ligação e que instantes depois resolveu pro-curar outro telefone público. O homem puxava o fio, dava tapas no apa-relho telefônico, mas de nada adiantava, a ligação continuava obliterada,não conseguia escutar o amigo e o amigo não conseguia por sua vez escutá-lo. Desistir não queria mas não sabia mais o que fazer para melhorar,possibilitar aquela ligação. Olhava ao redor e não avistava outro telefone.Estava frio e começava a garoar. Apesar de protegido, abrigando-se noorelhão, o que queria não estava conseguindo: falar, falar com quem que-ria, falar com quem estava tentando falar, falar, simplesmente falar. Falavamas não era ouvido, queria ser ouvido, receber respostas, perguntar e serrespondido, escutar e ser escutado. Tentava mas não conseguia. Chegou

* Membro associado da SPRJ.

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por um momento a gritar, um grito que, se não fora ouvido por quemmorava próximo, ecoou em sua cabeça pois, como um escafandro ou as-tronauta, o capacete-orelhão o cobria, cobria sua cabeça. Não se sentiapior porque sabia que estava tentando e sabia que do outro lado da linhao amigo estava atendendo. O simples atender de um certo modo o tran-qüilizava. Já se conformava em saber que a conversa teve que ser deixadapara talvez o dia seguinte. O leve, fugaz e rápido atender realmente otranqüilizara. O diálogo, inexistente, deu lugar a um atender apenas. Oatender se fez diálogo. Um quase nada foi muito ou o suficiente para queo homem pudesse desligar o telefone, abrir o guarda-chuva e ir para casapois já era tarde, a noite corria de encontro à madrugada e o homem viaos bares fechando.

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Psicanalítica - A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

R E S E N H A

Pesquisando com o método psicanalíticoVários autores. Hermann, Fábio,

Lowenkron, Theodor (org.). São Paulo:Casa do Psicólogo; 2004

Simone C. Piragibe Magalhães1

Terezinha de Souza Agra Belmonte2

O livro Pesquisando com o método psicanalítico é o produto deum encontro de cento e vinte profissionais da área e candidatos da SBPSP,na “II Jornada de Psicanálise e Pesquisa da Associação Brasileira de Psica-nálise”, realizada em 10 de maio de 2003, com o objetivo de identificar ecompreender o perfil das pesquisas naquela Sociedade.

A coletânea, dividida em duas partes, é constituída dos trabalhosapresentados no evento, cada um com as suas especificidades. A primeiraconta com a participação de Theodor Lowenkron, único psicanalista doRio de Janeiro (SBPRJ), que no artigo O objeto da investigação psicanalí-tica, além de discorrer sobre o objeto da pesquisa, interroga mais explici-tamente as definições de método; de João Augusto Frayse-Pereira que, emO paciente como obra de arte: uma questão teórico-clínica, pensa no mé-todo como trabalho de reflexão promovendo o sentido da experiência eFabio Hermann, o qual, de maneira bastante técnica, propõe questões so-bre “pesquisas teóricas, empíricas e clínicas”. Esses textos questionam oconceito de método de pesquisa no campo da Psicanálise. Da segundaparte constam investigações de quarenta e três autores e colaboradores.

Devido à exigüidade do tempo que coube a cada pesquisador, osautores tiveram de revisitar seus textos e, sem perder de vista os critérios

Por

1 Curso de Especialização em Psiquiatria pela UERJ,Título de Especialista pela ABP, Psiquiatra ePsicoterapeuta.2 Curso de Especialização e Mestrado em Endocrinologia pelo Carlos Chagas e pela UERJ, Título deEspecialista pela ABP, Psiquiatra e Psicanalista pela SPRJ, Prof. Adjunto na UNIRIO.

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exigidos para configurar um trabalho científico, puseram-se a examinarseus trabalhos de um outro ângulo, ou seja, através de visões pessoais,descrevendo brevemente os caminhos percorridos na experiência de pes-quisa, priorizando a metodologia utilizada na investigação, bem como asdificuldades encontradas nesse percurso.

Respeitando-se as diferenças, os diversos trabalhos deixam claroque os principais objetos de pesquisa são a clínica, a teoria e as vivênciasdo pesquisador relacionadas ao processo analítico, singularidade essa quepermite observar a transformação no desenvolvimento da pesquisa psica-nalítica, em que o objetivo principal não é o resultado, mas o processo.

Em Psicanálise, a pesquisa vai além do processo dedutivo e indutivo.Freud foi um pesquisador incansável: fez e refez as suas teorias e os seusmétodos várias vezes. Posteriormente outros autores com seus conceitos einterpretações contribuíram para a pesquisa em Psicanálise. Na coletâneaem apreço, Bernardo Tanis, no artigo Solidão: clinica e cultura, resultadode sua tese de doutorado, revela que os conceitos de diferentes escolaspsicanalíticas são reordenados para se compreender melhor a problemáti-ca da solidão na modernidade. Este autor recorre à literatura e ao cinema,o que enriqueceu a sua exposição.

O modelo positivista de Ciência é questionado em todos os traba-lhos. Outras áreas do conhecimento são focalizadas. Ou seja, evidenciam-se os diversos conceitos metodológicos e também as verdades intrínsecas eextrínsecas ao método de investigação, como se observa nos trabalhos deMarilsa Taffarel: Perdas e recuperações do método psicanalítico na histó-ria da Psicanálise, e de Ana Clara Gavião: A passagem do tempo e suasressonâncias íntimas.

A palavra e a escrita assumiram um lugar especial, como revelamos artigos de Leda Barone: Narrativa e cura: a função terapêutica da pala-vra e de Maria Inês Baccarin: Método da auto-organização: uma possibili-dade de pesquisa em Psicanálise, e ainda o de Marion Minerbo: Estratégiasde investigação em Psicanálise. Neste último, ficou claro que o processo depensar se confunde com o da escrita.

Em seu trabalho Alice quebra-vidros: uma experiência psicanalíti-ca na universidade, Julieta Freitas Ramalho da Silva verifica a mudançaparadigmática na atual clínica psicanalítica – a técnica analítica empregan-do o método em pacientes borderline, integrando na metodologia elemen-tos da intimidade da sala de análise e da instituição psiquiátrica.

Em Estudo psicanalítico da interconsulta psiquiátrica: uma pesquisa,Carlos Fernando B. Neumann e Eva Maria Migliavacca ressaltam os be-

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nefícios clínicos desse tipo de abordagem, observando o ambiente huma-no interpessoal de uma instituição hospitalar.

A descrição do percurso de cada autor e a metodologia utilizadaproporcionam aos leitores a oportunidade de conhecer o modus operandide cada participante, seus processos criativos por excelência – quase innatura –, porém compreensíveis por meio da escrita. É a livre associação deidéias, método privilegiado da Psicanálise. Na pesquisa não é diferente, osujeito é também seu próprio objeto de estudo, e a Psicanálise, também.O arcabouço teórico, clínico e metodológico é alvo de si mesmo; no entan-to, em momento nenhum se destrói. Ao contrário, instaura novos concei-tos e interpretações, à medida que é posto frente a frente, numa imagemespecular, sujeito (pesquisador)–objeto. Como em um jogo de quebra-ca-beça, cada autor forma uma imagem, um desenho próprio. Os pesquisado-res destacaram que o diferencial nas propostas dos trabalhos seria a pes-quisa enquanto manifestação qualitativa, uma análise singular dos objetosem pauta.

O livro Pesquisando com o método psicanalítico estimula o leitor aconhecer, a aprofundar e a posicionar-se criticamente diante das contribui-ções dos diferentes autores. Os diversos artigos da presente coletânea secomplementam, formando um conjunto em que o conceito de observaçãoe o de método estão presentes de uma forma ou de outra em todos ostrabalhos, com coerência de idéias e organização contextual. Ainda que aquise tenham mencionado apenas alguns artigos3 , é preciso deixar claro quetodos são bastante significativos e colaboraram para o tema de maneirainovadora e criativa.

3 Esta coletânea será objeto de apreciação dos demais membros do grupo Geipp - Ipubb, cujos trabalhosserão publicados em outras revistas.

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D E P O I M E N T O S

E N D E R E Ç O S E E - M A I L S D O S C O L A B O R A D O R E S

ANA MARIA COUTINHO HISSA

Rua Jerônimo Monteiro, 73/202 – LeblonTel.: 21 2274-7011e-mail: [email protected]

ALEXANDRE KAHTALIAN

Rua Jardim Botânico, 700/520 – Jardim BotânicoTel.: 21 2294-5192e-mal: [email protected]

CLARA HELENA PORTELA NUNES

Praia de Botafogo, 210/405 – BotafogoTel. 21 2551-8149e-mail: [email protected]

EDNA PEREIRA VILETE

Av. Ataulfo de Paiva, 135/505 – LeblonTel.: 21 2511-5893e-mail: [email protected]

ELIE CHENIAUX JÚNIOR

Rua Santa Clara, 50/1.213 – CopacabanaTel.: 21 2547-7396e-mail: [email protected]

ELIANE MAC CORD

Av. Princesa Isabel, 323/1.007 – CopacabanaTel.: 21 2542-6799e-mail: [email protected]

EUSTÁCHIO PORTELLA NUNES

Praia de Botafogo, 210/405, BotafogoTel.: 25518149e-mail: [email protected]

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190 D E P O I M E N T O S

FRIDA HOIRISCH

Praça Demétrio Ribeiro, 17/1003 – CopacabanaTel.: 21 2541-7243

IDÉSIO MILANI TAVARES

Rua Jardim Botânico, 700/303 – Jardim BotânicoTel.: 21 2529-8082e-mail: [email protected]

JAQUES VIEIRA ENGEL

Rua Visconde de Pirajá, 330/1.212 – IpanemaTel.: 21 2513-8893e-mail: [email protected]

JOSÉ OSVALDO F. DE MORAES

Rua Visconde de Carandaí, 20 – Jardim BotânicoTel.: 21 2511-2697e-mail [email protected]

MARIA APARECIDA D. BARBOSA

Rua Visconde de Pirajá, 303/1.210 – IpanemaTel.: 21 2267-7740e-mail: [email protected]

MARIA ELIANA HELSINGER

Rua Custódio Serrão, 58/201 – LagoaTel.: 2538-2523e-mail: [email protected]

MARIA PEREIRA MANHÃES

Rua Anchieta, 211/1.101 – LemeTel.: 21 2295-8809

MARIA INÊS P. MAC CULLOCH

Rua Conde de Bonfim, 370/909 – TijucaTel.: 21 2569-2987e-mail: [email protected]

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Psicanalítica - A revista da SPRJ, v. VI, n. 1

D E P O I M E N T O S

MÁRCIA ERLICH

Rua Visconde de Pirajá, 407/506 – IpanemaTel.: 21 2267-0804e-mail: [email protected]

MARIA CRISTINA DE C. BARCZINSKI

Av. Ataulfo de Paiva, 1.079/705 – LeblonTel.: 21 2274-6395e-mail: [email protected]

MIGUEL CHALUB

Rua Francisco Sá, 23/604 – CopacabanaTel.: 21 2523-0390e-mail: [email protected]

OSWALDO JOSÉ F. MILWORD

Av. Princesa Isabel, 323/1.008 – CopacabanaTel.: 21 2543-2636

ONDINA LÚCIA CEPPAS RESENDE

Rua Siqueira Campos, 43/823 – CopacabanaTel.: 21 2549-4665

RÉJANE SABBAGH ARMONY

Av. N. S. Copacabana, 542/705Tel.: 21 2235-2268e-mail: [email protected]

ROSA SENDER LANG

Rua Afrânio de Mello Franco, 141/204 – LeblonTel.: 21 2294-8947e-mail: [email protected]

ROSANA IGOR REHFELD

Rua Santa Clara, 50/817Tel.: 23 683-0046e-mail: crehfeld@zipmail

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192 D E P O I M E N T O S

SÉRGIO DE FREITAS CUNHA

Rua Visconde de Pirajá, 330/1.208 – IpanemaTel.: 21 2513-3320e-mail: [email protected]

TEREZINHA DE SOUZA AGRA BELMONTE

Av. Brás de Pina, 38/207 – PenhaTel.: 21 2290-3841e-mail: [email protected]

VICTOR MANOEL DE ANDRADE

Av. Princesa Isabel, 150/1.201 – CopacabanaTel.: 21 2541-2639e-mail: [email protected]

VERA MÁRCIA RAMOS

Av. N. S. de Copacabana, 749/1.006 – CopacabanaTel.: 21 2236-0187e-mail: [email protected]

VERA LÚCIA DE FAVIA BENCHIMOL

Rua Francisco Sá, 32/202 – CopacabanaTel.: 21 2521-7795e-mail: [email protected]