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Agriculturas - v. 1 - n o 1 - novembro de 2004 1 Revalorizando nov. 2004 vol. 1 n o 1 a agrobiodiversidade

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 1

Revalorizando

nov.2004vol. 1

no 1

a agrobiodiversidade

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2 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

edito

rial

V.1, N0 1(corresponde ao v. 20, nº 1 da Revista LEISA)

Revista Agriculturas: Experiências em Agroecologia é umapublicação da AS-PTA - Assessoria e Serviços a Projetosem Agricultura Alternativa em parceria com a FundaçãoILEIA - Centre of Information on Low External Input and

Sustainable Agriculture.

AS-PTARua Candelária, n.º 9, 6ºandar.

Centro, Rio de Janeiro/RJ, Brasil 20091-020Telefone: 55(21) 2253-8317

Fax: 55(21) 2233-8363http://www.aspta.org.br

Fundação ILEIAP. O. Box 2067, 3800 CB Amersfoort, Holanda.

Telefone: +31 33 467 38 70 Fax: +31 33 463 24 10http://www.ileia.org

Conselho Editorial

Cláudia CalórioGrupo de Trabalho em Agroecologia na Amazônia - GTNA

Eugênio FerrariCentro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata, MG - CTA/ZM

Jean Marc von der WeidAS-PTA

José Antônio CostabeberAssociação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e

Extensão Rural - Emater, RS

Marcelino LimaDiaconia, PE

Maria Emília PachecoFederação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional Fase/RJ

Maria José GuazzelliCentro Ecológico, RS

Miguel Ângelo da SilveiraEmbrapa Meio Ambiente

Paulo Petersen (coordenador)AS-PTA

Sílvio Gomes de AlmeidaAS-PTA

Equipe ExecutivaEditor Paulo Petersen

Editor convidado Paula AlmeidaProdução Executiva Regina Hippolito

Pesquisa Regina Hippolito, Victor Perret, Fernanda A.Teixeira, Gustavo M. da Silva, Jurema Diniz

Base de dados de subscritores Nádia Maria Miceli de OliveiraCopidesque e tradução Rosa L. Peralta

Revisão Livia Freitas RosaFoto da capa Interfoto - Mercado Ver o Peso - Belém - PA -

Uma lição de biossegurançaProjeto gráfico e diagramação I Graficci

Impressão SRG

A AS-PTA estimula que os leitores circulem livremente os artigos aquipublicados. Sempre que for necessária a reprodução total ou parcial de

algum desses artigos, solicitamos que Agriculturas: Experiências emAgroecologia seja citada como fonte e que nos seja enviada uma cópia da

publicação com o texto reproduzido.

s avanços extraordinários no campo da bio-tecnologia têm merecido destaque quase quediário na mídia. Clonagem de animais, espé-cies vegetais e animais “engenheiradas” e ma-

peamento de genomas são anunciados como promessasde solução para os mais variados problemas. Enquanto aopinião pública é em geral tomada pelo deslumbramento,cientistas envolvidos com essas novidades se regozijamcom o alargamento das fronteiras do conhecimento e comas recentes e insondáveis possibilidades de manipulaçãoda carga genética. Uma análise mais cuidadosa da evolu-ção dos fatos, no entanto, provavelmente não lhes dariamotivo para tanto gabo.

Paradoxalmente, a tão festejada “Era da Infor-mação” talvez represente na história da humanidade ummomento inédito em que se perde mais conhecimentosdo que se adquire. Isso porque, em paralelo ao avançocientífico, e de certa forma como conseqüência de suasaplicações tecnológicas, o capital intelectual das milharesde culturas rurais dispersas pelo planeta está sendo irre-mediavelmente dilapidado a um ritmo sem precedentes.Sendo seguramente a mais elevada expressão material des-sas culturas, a imensa agrobiodiversidade mundial, desen-volvida através dos milênios, também está em franco pro-cesso de extinção. Estima-se que os recursos genéticosvegetais cultivados e que as raças animais domésticas de-sapareçam, respectivamente, a taxas anuais de 1 a 2% e5%. Diante desses números, não é sem motivo que a ViaCampesina Internacional vem desenvolvendo a campanhamundial em defesa da agrobiodiversidade, considerada“Um Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade”.

A pergunta essencial a ser colocada perante essequadro é: como assegurar o avanço científico-tecnológicoevitando contrapartidas negativas que, infelizmente, nãotêm se resumido às expostas acima? A incorporação do tãonegligenciado princípio da precaução na agenda do desen-volvimento tecnológico não deveria ser encarada como umfreio à ciência. Muito pelo contrário, deveria servir comobalizadora de rumos para o aprofundamento dos conheci-mentos científicos na busca de soluções efetivas para osproblemas com os quais a humanidade hoje se depara.

As experiências de manejo e conservação daagrobiodiversidade apresentadas neste número de Agri-culturas apontam para alguns desses caminhos. Em vezde lançarem mão de mecanismos cada vez mais artificiais egeradores de riscos incomensuráveis, elas demonstram quegraves questões como a pobreza rural, a fome e a desnutri-ção podem ser solucionadas com o uso inteligente dosrecursos genéticos domesticados e silvestres. A valoriza-ção e o desenvolvimento desse patrimônio, legado de su-cessivas gerações de agricultores e agricultoras, é um cam-po de exploração infindável para uma ciência efetivamen-te comprometida com a sociedade. E por ser promotorada biossegurança (segurança da Vida), essa ciência certa-mente não terá do que se precaver.

O editor

Um tempo de paradoxos

O

ISSN: 1807-491X

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 3

Índi

ce

Editor Convidado Paula Almeida pág. 4

Artigos

Publicações pág. 48

Páginas da internet pág. 50

Pólen pág. 51

Resgate cultural e manejo da agrobiodiversidade emroças indígenas: experiências Kaiabi e Yudja no Parque Indígena do Xingu, MT pág. 6Tuiarajup Kaiabi, Arupajup Kaiabi, Wisi’o Kaiabi,Taikapi Yudja, Mahurima Yudja, Txitxiyaha Yudja, Geraldo M. Silva e Katia Ono

Manelito de Taperoá e o resgate de raças de caprinos no semi-árido pág. 9João Macedo e Rômulo Menezes

Remando contra a corrente: Projeto Reca e a busca da pág. 12sustentabilidade na AmazôniaElder Andrade de Paula e Mauro César Rocha da Silva

Frutas nativas: de testemunhos da fome a iguarias na mesa pág. 15Guillermo Gamarra-Rojas, Adriana Galvão Freire, João Macedo Moreira e Paula Almeida

Mudança de atitude em relação a verduras e grãos básicos nativos pág. 19Guisela Chavarría e Johannes Füsso

Conservação de espécies alimentares silvestres por comunidades locais pág. 23B. Salome Yesudas

Agroextrativismo: uma alternativa sustentável para a pág. 25produção familiar na região dos babaçuaisMiguel Henrique P. Silva e Helciane Araújo

Sementes que frutificam: duas histórias de paixão pelas sementes pág. 28Paula Almeida e Adriana Galvão Freire

Casas de sementes comunitárias e o resgate da diversidade pág. 32de sementes locais no CearáMaristela Pinheiro e Letícia Peixoto

Cultivando e comercializando grãos andinos pág. 34José Luis Soto, Wilfredo Rojas e Milton Pinto

Quintais domésticos: uma responsabilidade cultural pág. 37Emily Oakley

O MST e a Campanha Sementes Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade pág. 40Ciro Eduardo Corrêa e Denis Monteiro

A semente que caiu em terra boa: a trajetória de um pág. 44movimento social em defesa da agrobiodiversidadeJosé Maria Tardin, André Emílio Jantara, Rosângela Maria Pinto Moreira e Josué Maldonado Ferreira

pág. 40

pág. 34

pág. 28

pág. 25

pág. 12

pág. 6

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4 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

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edito

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Paula Almeida*

Revalorizando aagrobiodiversidade

griculturas, esse é o nome da revista. A palavra vem do latim:“agri”, de terra, e “cultura”, termo que, em seu significadomais abrangente, expressa os padrões de comportamento e

valores produzidos e reproduzidos em uma sociedade. Assim, muito além do acervotecnológico desenvolvido para a arte de cultivar a terra, agri-cultura, em sua acepção maisplena, envolve também os padrões de convivência humana e os modelos de produção econsumo adotados. O termo aparece aqui no plural justamente para enfatizar o caráterlocal e plural da agricultura. São culturas em permanente evolução e em busca de respostasàs necessidades de produção de alimentos, remédios, energia, moradia, renda etc.

A multimilenar história das agriculturas pode ser interpretada à luz da domes-ticação e do manejo da agrobiodiversidade. Diferentes culturas desenvolveram distintasestratégias técnicas para o uso, o manejo e a conservação da agrobiodiversidade localmen-te disponível, que, nesse sentido, mantém uma relação de geração mútua com a agricultu-ra própria do lugar.

O contínuo e acelerado processo de erosão genética verificado nos dias atuaiscoloca em risco a permanência desse curso histórico co-evolutivo. Em decorrência dosefeitos da rápida e ampla disseminação do modelo técnico-científico da Revolução Verde,as agriculturas, e com elas as agrobiodiversidades (também no plural), vêm sendo padroni-zadas. Esse modelo opera em escala global sob a hegemonia das nações ricas e suas compa-nhias transnacionais que, de forma voraz, buscam o controle tecnológico e dos mercados.Por outro lado, se eximem da responsabilidade social e ambiental pela perda do patrimôniogenético desenvolvido pela humanidade no decorrer de milênios.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação(FAO), em seu informe para o Dia Mundial da Alimentação de 2004, apenas uma dúzia deespécies animais fornecem 90% das proteínas de origem animal consumidas mundialmen-te, e somente quatro espécies cultivadas são responsáveis pela metade das calorias deorigem vegetal presentes na alimentação humana. Estima-se que ao longo do século XXcerca de três quartos da diversidade genética dos cultivos agrícolas foram extintos. De6.300 raças animais, 1.350 estão sob risco de extinção ou quase extintas. A modernizaçãoda agricultura, as mudanças nos padrões de alimentação e o crescimento da população sãoapontados no documento como as causas da atual conjuntura (FAO, 2004).

Além da perda da agrobiodiversidade, as florestas tropicais estão desaparecendo a umritmo de 0,9% ao ano, ou 29 hectares por minuto, ameaçando 12,5% de toda a flora mundial.

Evoluída em estreita sintonia com os conhecimentos sobre seus usos e manejos,a agrobiodiversidade, ao ser extinta, leva com ela as culturas das populações rurais. Ouseja: há também um processo de erosão cultural em curso. As degradações genética ecultural atingem nos dias de hoje ritmos sem precedentes, que provocam mudanças brus-cas nos padrões alimentares e nas línguas faladas, duas formas de expressão marcantes dacultura de um povo. A agrobiodiversidade, como já vimos, vem sofrendo efeitos radicais de

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homogeneização em virtude do estreitamento da base genética de cultivos e criaçõesadotadas ao redor do mundo. As línguas, de forma equivalente, estão em franco processode extinção. Em 1900, havia 10 mil línguas e atualmente subsistem apenas 6.700, sendoque a maioria delas não é mais ensinada às crianças desta geração (Mooney, 2002).

Apesar desse quadro dramático, muitos movimentos, de forma silenciosa e pou-co visível para o conjunto das sociedades, constróem estratégias de resistência. São comu-nidades, aldeias e grupos, ou mesmo programas de desenvolvimento agrícola orientadospelo enfoque agroecológico, que se fundamentam na revalorização das espécies e varieda-des locais para que sejam estruturados agroecossistemas altamente diversificados e poucodependentes de insumos externos. São experiências que procuram resgatar e multiplicarsementes e raças animais ainda presentes nas áreas rurais. Revalorizam também as espéciessilvestres que cumprem múltiplas funções para as famílias e comunidades rurais e que vêmsendo paulatinamente eliminadas pela tendência à especialização dos sistemas de produ-ção e pela destruição dos remanescentes de vegetação natural.

O objetivo deste número da revista é tornar públicas essas histórias de povosextrativistas, indígenas, agricultores e agricultoras, suas organizações, que com ou sem oapoio de assessorias vêm, pelo Brasil afora e em outros países, cultivando e recriando aagrobiodiversidade, preservando e aumentando o patrimônio da humanidade. São apre-sentados 12 artigos e uma entrevista que abordam experiências brasileiras e internacionaiscujos ensinamentos e inspirações, esperamos, possam favorecer a brotação e floração deiniciativas similares.

Da Amazônia, trazemos dois relatos sobre mulheres, homens e suas associações quebeneficiam e comercializam produtos da floresta, valorizando plantas nativas; do Xingu, uma belahistória de povos indígenas que caminharam para resgatar seus tesouros: as sementes de seusancestrais. Do Nordeste, muita resistência e fé para cultivar roçados multidiversificados e valorizarestratégias de organização dos agricultores e agricultoras através dos bancos ou das casas desementes; ainda no semi-árido, ressaltamos a importância das frutas nativas para a alimentação dosertanejo e do resgate das raças animais adaptadas. O MST mostra como em todo o Brasil mer-gulha em uma empreitada para recuperar e/ou reintroduzir nos assentamentos de reforma agráriaas sementes crioulas. No sul do Brasil, um programa orientado para o resgate, a multiplicação, omelhoramento e o intercâmbio de sementes crioulas mobiliza milhares de agricultores e agricultorasorganizados.

Quatro experiências internacionais também são apresentadas. No Peru, grãoscultivados em grandes altitudes pelos aimaras e quéchuas, outrora em abundância, passa-ram por franco processo de desaparição e agora estão sendo recuperados e revalorizadosnos mercados; na Nicarágua, receitas saborosas e ricas em vitaminas estão ajudando narecuperação de alimentos tradicionais que caíram em desuso. Em Bangladesh, mulherespreservam a diversidade dos quintais em sistemas agroecológicos, e na Índia, agricultoras de-senvolvem várias estratégias para colher e usar na alimentação vegetais que promovem a saúde.

*Paula Almeida: agrônoma, assessora técnica da [email protected]

Referências:

MOONEY, Pat Roy. O século 21: erosão, transformação tecnológica e concentração do poderempresarial. São Paulo: Expressão Popular, 2002.

FAO. A Biodiversidade a Serviço da Segurança Alimentar: informe da FAO para América Latinae Caribe sobre o Dia Mundial da Alimentação de 2004.

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6 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

artig

os

s Kaiabi e osYudja, habitan-tes do Parque

do Xingu, vêm enfrentando his-toricamente mudanças culturais,em seus hábitos alimentares eem seus sistemas agrícolas. Coma intensificação do contato coma sociedade brasileira, eles desen-cadearam um movimento pró-prio de resistência e resgate cul-tural que inclui a agricultura.

A expansão de atividades econômicas no en-torno do Parque tem provocado reflexos negativos na di-nâmica sociocultural e ambiental interna. Recentemente,lavouras de soja vêm dominando a paisagem, tomandoespaço da atividade madeireira e da pecuária extensiva.Isso se traduz nas elevadas taxas de desmatamento que oestado do Mato Grosso vem exibindo. As cabeceiras dosrios formadores do Xingu, localizadas fora dos limitesdo Parque, sofrem crescente contaminação ambiental,com destaque para a poluição de rios, o que afeta dire-tamente os índios.

Os Kaiabi e os Yudja vivem no norte do Par-que, onde mantêm a prática de agricultura compolicultivos diversificados. Ambos tiveram que enfrentara transferência para o Xingu devido à ocupação de seusterritórios por não-índios (Grünberg, 2004). Os Kaiabisomam hoje cerca de mil pessoas que ocupam 12 aldeiasno Parque. Os Yudja são cerca de 250 indivíduos que

Resgate cultural e manejo daagrobiodiversidade

em roças indígenas:

Tuiarajup Kaiabi, Arupajup Kaiabi, Wisi’oKaiabi, Taikapi Yudja, Mahurima Yudja,

Txitxiyaha Yudja, Geraldo M. Silva, Katia Ono*

experiências Kaiabi e Yudja noParque Indígena do Xingu, MT.

O

habitam três aldeias, todas no Parque. A Associação Ter-ra Indígena Xingu (Atix) é uma organização pluriétnicaem que os Kaiabi têm atuação destacada. Já a AssociaçãoYarikayu foi criada para representar os interesses do povoYudja, e trabalha em estreita cooperação com a Atix.

A ocupação de terras ancestrais, a crescentedensidade demográfica, a sedentarização de aldeias devi-do à infra-estrutura instalada para prestação de serviçosaos índios e o confinamento territorial acentuam a pres-são de uso dos recursos naturais estratégicos. Por exem-plo, as capoeiras em Terras Pretas – sítios arqueológicosde distribuição esparsa na paisagem, derivados de antigaocupação indígena, onde ocorrem solos com alto teor dematéria orgânica e elevada fertilidade, e portanto aptosaos cultivos mais exigentes – vêm recebendo roças comciclos de pousio cada vez mais curtos. Em decorrência

Celebração da colheita de amendoim na aldeia KwaryjaKaiabi, junho 2003

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disso, há frustrações de safra mais freqüentes. Hábitosalimentares também vêm se modificando, com perda daimportância relativa da dieta tradicional. Assim, espéciesagrícolas são menos valorizadas, levando à diminuição dadiversidade genética nas roças.

A reação dos Kaiabi e dos Yudja às mudançashistóricas em suas roças é digna de nota. No início dadécada de 50, Jepepyri (Prepori) Kaiabi 1, originário dorio Teles Pires, pediu que pequenas amostras de cadavariedade agrícola fossem enviadas ao Xingu. O materialfoi trazido a pé e em canoas, em um percurso de cerca de500 km que levou mais de dois meses para ser feito. Maistarde, em 1966, pelo mesmo motivo de invasão de suas ter-ras, foi realizada a transferência da maior parte dos Kaiabique ainda viviam no rio Tatuy, local da origem mítica do povo.Na viagem, feita de avião, também foram trazidas sementes emudas por iniciativa do Capitão Temeoni Kaiabi, o líder da re-gião. Desde 1992 os filhos de Jepepyri, Arupajup e Tuairajup,assumiram a tarefa de zelar pelo patrimônio genético de seupovo e procuraram apoio externo para melhor desempenhá-la.Em 1997, a proposta foi apresentada ao Instituto Socioambiental(ISA), e a partir de 1998 as ações de resgate e multiplicação devariedades agrícolas passaram a ser trabalhadas em parceria en-tre a Atix e o ISA2. Em 1999 as primeiras parcelas foram planta-das na aldeia Kwaryja, um ano antes do falecimento de Jepepyri.Assim, a curadoria da coleção genética Kaiabi passou para seusfilhos, noras e genros, estabelecendo as bases para o presentetrabalho (Kaiabi e Silva, 2001; Silva, 2002). Nos debates queseguiram, os Yudja manifestaram interesse em resgatar assuas variedades, e Mahurima Yudja e os casais Txitxiyaha eTaikapi e Ikae e Isabaru, entre outras pessoas, começaram aexercer o mesmo papel de curadores.

1 No fim dos anos 40, a invasão das terras Kaiabi por seringueiros e empresas colo-nizadoras havia colocado em grave risco a sobrevivência da população que, apósdécadas de luta contra os brancos, não tinha mais condições de vencer o poderiodo adversário. Por isso, Jepepyri, um líder carismático, aceitou o apoio dos irmãosVillas Boas para realizar a transferência de seu povo para o Xingu.2 A Atix e o ISA mantêm uma parceria há nove anos. Esse acúmulo se traduz em termosde relações institucionais, bem como suporte técnico, jurídico e administrativo, inclu-indo ações de capacitação direcionadas à diretoria da associação e ao pessoal das aldeias.

O esforço de manejo de agrobiodiversidadeKaiabi está centrado na cultura do amendoim, enquanto osYudja têm focado sua atenção na mandioca. Entre 1999 e2004 foram realizados censos da disponibilidade de varieda-des de todas as culturas agrícolas nas aldeias Kwaryja Kaiabie Tuba Tuba Yudja. Os resultados explicitaram origensdistintas para as variedades presentes: aquelas considera-das tradicionais; as externas (recebidas de outros índiosou trazidas da cidade); e as recentes (selecionadas nolocal, a partir de outras variedades, e por coleta de manivaem roças velhas). Mostraram-se também diferenciaçõesentre famílias nucleares, o que permitiu identificar ho-mens e mulheres que realizam um trabalho de curadoriade coleções genéticas.

A escolha das espécies e variedades a serem plan-tadas nas roças familiares apresenta muitas motivações. NoParque do Xingu, essa decisão parece estar vinculada a umcomplexo de razões envolvendo preferências pessoais; iden-tidade étnica; a idade e conhecimento especializado do ca-sal; a consideração por tabus alimentares; os usos e caracte-rísticas organolépticas de cada variedade; aspectos agronô-micos; e oportunidade para obtenção e/ou conservação deum material particular. Desse modo, o plantio e/ou abando-no de variedades pode se dar em função da combinação derespostas para esses fatores. Por exemplo, no caso Kaiabi,pais novos deixam de comer amendoim até que o filho com-plete um ano de idade, assim como algumas variedades sãoevitadas porque são relacionadas com a incidência de doen-ças, como a artrose. Para os Yudja, algumas variedades demandioca têm importância cultural destacada, sendo cele-bradas através de canções específicas em algumas festas.Por outro lado, a curiosidade também pode fazer com quemateriais externos sejam experimentados nas roças das al-deias. Em caso de aceitação – e dispersão para outras famí-lias – a nova variedade pode vir a ser incorporada à coleçãogeral manejada pela população.

Os Kaiabi do Kwaryja iniciaram um trabalho sis-temático de recuperação e multiplicação de variedades deamendoim em 1999. Parcelas são cultivadas em uma roça

Amostra de algumas variedades de amendoim Kaiabi Sirawan Kaiabi em parcelas de amendoim

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8 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

comunitária, já que a aldeia é pequena, formada por uma únicafamília extensa3 que ainda mantém o sistema de produção ba-seado na geração centralizada de alimentos em uma roça maior,complementada por outras menores, geridas pelas famílias nu-cleares. Na safra 2003/04, havia 31 parcelas com diferentesvariedades sendo multiplicadas. Os Yudja passaram a estudarsistematicamente suas variedades de mandioca em 2002, atra-vés de oficinas de trabalho na aldeia Tuba Tuba envolvendojovens, adultos e idosos de ambos os sexos. A partir da identifi-cação de descritores locais para a cultura, foram visitadas roças eestudadas 40 diferentes variedades. Foram encontrados poucospés plantados de duas variedades de importância cultural, e emapenas uma roça. Como decorrência desse trabalho, algumasfamílias passaram a multiplicar em roças particulares variedadesmais raras, as quais aos poucos vão sendo reintroduzidas nosistema de circulação de materiais genéticos.

Contudo, as condições objetivas para a revitalizaçãodos sistemas de manejo da agrobiodiversidade e a reproduçãofísica dos materiais propagativos encontram obstáculos. Altera-ções no processo de transmissão de conhecimentos, de circula-ção de recursos genéticos e de percepções diferenciadas de limi-tes ecológicos para o uso continuado de recursos naturais sãoalguns deles. Em um plano mais geral, os Kaiabi e os Yudja estãobuscando capacitação4, principalmente para as novas gerações,em gestão e manejo dos recursos naturais, associando reflexão eprática política a aspectos socioculturais e atividades técnicas.Essa capacitação é feita por meio de diversas modalidades detreinamentos, sempre lastreadas em atividades concretas docotidiano, de caráter participativo e com conteúdo prático eteórico. Delineado para atender demandas como essas, foi cria-do em 2000 o Programa de formação de agentes indígenas parao manejo de recursos naturais, que inclui o manejo da agro-biodiversidade. Para viabilizar o seu desenvolvimento, fórunspara definir prioridades, acompanhar, discutir e avaliar os traba-lhos em aldeias e no PI Diauarum são promovidos pela Atix, pelaAssociação Yarikayu e pela assessoria.

Talvez o principal mérito desse processo decapacitação seja o de trazer ao debate aberto a questãodo manejo da agrobiodiversidade, promovendo a valori-zação ativa, o resgate e o registro desse patrimônio. Comisso, antigos hábitos alimentares estão sendo retomados,laços de reciprocidade estão sendo fortalecidos e o siste-ma de circulação de materiais vai sendo remoldado. Aampliação deliberada de coleções de materiais genéticosadministradas no plano familiar fornece as bases mate-riais para esta mobilização.

Além disso, intensificam-se os debates sobreo uso das terras pretas e seu esgotamento, apontandopara a necessidade de se alcançar outras manchas interio-

res. Nesse contexto insere-se a experimentação com técni-cas de manejo agroflorestal para a recuperação das áreashoje comprometidas.

A gestão de recursos naturais e as adaptações naorganização sociocultural dos índios, em meio aos embatescom a ocupação do entorno, estão intimamente ligadas àpolítica de relações destes com a sociedade envolvente. Pas-sa também pelo reconhecimento de seus direitos na formade políticas públicas em diferentes níveis. Traz consigo tam-bém oportunidades para a abertura do diálogo sobre o reco-nhecimento dos direitos intelectuais coletivos dos índios,incluindo remuneração e/ou compensações pelos serviçosambientais e culturais que prestam ao conjunto da socieda-de. É evidente o esforço de lideranças para garantir a partici-pação dos índios do Xingu na formulação e gestão de políti-cas. Internamente, é crescente o debate sobre práticas emecanismos para conservação in situ de recursos naturaisem geral e da agrobiodiversidade em particular. Por essa via,os Kaiabi e os Yudja estão manejando sua agrobiodiversidadee fortalecendo sua identidade étnica.

*Tuiarajup Kaiabi, Arupajup Kaiabi e Wisi’o Kaiabi:membros da Atix. Av Mato Grosso, 688,

Canarana, MT. CEP 78.640-000.

Taikapi Yudja, Mahurima Yudja e Txitxiyaha Yudja:membros da Associação Yarikayu,

Aldeia Tuba Tuba Yudja, Parque do Xingu.

Geraldo M. Silva: pesquisador do ISA associado aoPrograma Xingu. Tropical Conservation and

Development Program, University of Florida, [email protected].

Katia Ono: técnica do Isa inserida no Programa [email protected].

3 A família extensa é formada pelos pais, filhos(as) e cônjuges, e netos (podendo incluiroutros parentes próximos) que vivem sob a liderança de uma pessoa mais velha, umhomem no caso dos Kaiabi, enquanto a família nuclear é a unidade social básica, com-posta somente pelo casal e filhos.4 O Programa Xingu, executado pelo ISA em parceria com a Atix e a Associação Yarikayu,inclui quatro componentes destinados ao fortalecimento institucional das associaçõeslocais: vigilância de fronteiras e do entorno do Parque; formação de professores indí-genas; geração de renda e manejo de recursos naturais.

Referências:

GRÜNBERG, G. Os Kaiabi do Brasil Central. História eEtnografia. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2004.

KAIABI, T.; SILVA, G.M. Experiência de manejo de re-cursos genéticos amazônicos por índios do Xingu.International workshop on local management ofagrobiodiversity. Projeto Cultivando Diversidad / GRAIN,2001. www.grain.org/cd.

LIMA, T. S. A parte do cauim. Etnografia Juruna. 1995.Tese (Doutorado) – Museu Nacional, Rio de Janeiro.

SILVA, G.M. Uso e conservação da agrobiodiversidadepelos índios Kaiabi do Xingu. In: BENSUSAN, N. (Org.)Não seria melhor mandar ladrilhar? Biodiversidade: como,por que, para quem. Brasília: Universidade de Brasília/Instituto Socioambiental, 2002.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 9

Manelito de Taperoá e o

resgate de raças decaprinos no semi-árido

João Macedo e Rômulo Menezes*

m um final detarde de um diaquente, na va-

randa da Fazenda Carnaúba, emTaperoá, no Cariri Paraibano,Manoel Dantas Vilar Filho, maisconhecido como Manelito, nosrecebeu para uma conversa so-bre seu trabalho de recuperaçãodas raças nativas de caprinos. En-tusiasmado, Manelito contacomo lançou mão de sua “lógicade engenheiro” para trabalhar emum ambiente de “águas desarru-madas” como o do sertão.

Nascido em 1937 na própria fazenda, vi-veu nela até os 11 anos de idade, quando se mudoupara o Recife a fim de dar prosseguimento aos seusestudos. Formou-se em engenharia civil em 1959 e,por vários anos, teve uma bem-sucedida carreiracomo engenheiro. Em 1971, “na contramão da rotaclássica da migração”, retornou para tocar a Fazen-da Carnaúba, dando continuidade às atividades dopai, falecido em 1969. Apesar dessa longa passa-gem pela cidade grande, sua sensação é a de quenunca saiu da fazenda.

Meu esqueleto andou aí pelo Recife eoutros locais onde morei durante 20anos, mas as coisas mais importan-tes e mais sensíveis pra mim ficarampresas aqui.

Desde o primeiro momento, desses maisde 30 anos em que se dedica exclusivamente à ativi-

E dade de criação de animais, Manelito percebeu quenão existiam tecnologias que viabilizassem a agro-pecuária na região semi-árida. Seu discurso é enfáti-co nas críticas aos sistemas oficiais que sempre tra-taram de copiar as tecnologias dos climas tempera-dos ou tentaram resolver os problemas do semi-ári-do pela via da irrigação.

A solução do semi-árido não é a águapara irrigação. Água só é imprescindívelpara que as pessoas e os animais bebam.Fora isso, a atividade agropecuária temque ser compatível com a chuva que caiaqui, diz ele.

Foi a busca dessa compatibilidade que o le-vou a trabalhar por décadas para, entre outras coisas,resgatar e valorizar a rusticidade das cabras “nativas”do semi-árido, submetidas a quatro séculos de seleçãopara a sobrevivência nesse ambiente seco, mas de vege-tação riquíssima e de grande potencial para a pecuáriade ruminantes.

Manelito, por que o senhor começou a fa-zer esse trabalho de resgate de raças decaprinos?

Do ponto de vista biológico, qualquer ani-mal nativo ou planta nativa, por definição, seja qualfor, tem maior compatibilidade com o local do queoutro que não é nativo, não é verdade? Tanto é queo nome das raças dos animais, desde a galinha até oboi, quase sempre faz uma referência ao lugar ondefoi selecionada. Então, logo de cara, as nativas sãomelhores de que as “gringas”. Tudo o que eu fiz foi umelementar exercício de lógica de engenheiro, com aassessoria ideológica de um intelectual brasileirodecente, que é Ariano Suassuna, pois nós somossócios na criação de cabras.

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Além disso, eu também tinha uma pre-ocupação específica de obter animais com dupla fun-ção. A necessidade de fazer raças especializadas épara quem tem pouca terra, pouca fotossíntese eneve durante quatro meses. No Brasil temos essepotencial enorme de poder ter animais de dupla fun-ção e, no que se refere à cabra, de tripla função: leite, pelee carne. Nesse caso, a carne é a terceira função, e por issonão tem sentido uma raça de bode especializada em car-ne. No mundo inteiro, a caprinocultura começa com lei-te, em segundo lugar vem a pele e, em terceiro, fica acarne. Para produzir carne, um carneiro é muito mais efi-ciente do que um bode.

A que o senhor atribui o desaparecimentodas raças nativas de caprinos aqui no Nor-deste?

Ao abandono do material genético superior,que a natureza do Nordeste selecionou por ela mesma,criando uma incrível compatibilidade. O que realmentedeve ser feito é um processo de seleção dentro dos agru-pamentos do mesmo tipo, da mesma raça, mesmo quenão tenha sido oficialmente reconhecida como tal. De-pois, você restabelece a função leiteira, volta ao encon-tro do potencial original dela. Só é preciso ter algumacompetência e paciência. Olhe para o ombro daquelaMoxotó (aponta para uma das cabras que vai passando).Em cima daquela cabra tem 41 anos de serviço de sele-ção. Era isso que as empresas de pesquisa deviam estarfazendo no Nordeste.

Mas veja bem: mesmo com todo o menos-prezo que as cabras receberam aqui no Brasil das maisvariadas instituições, desde o Ministério da Agricul-tura, passando pelas instituições de ensino, Secreta-rias de Agricultura, agências de fomento e até mes-

mo de nós fazendeiros do sertão, elas insistiram:“Meu lugar é aqui.” Ainda hoje, 95% das cabras doBrasil estão no Nordeste seco, entre a Bahia e o Piauí.Você quer lição maior do que essa? Nesse abandono,a seleção natural para a função leiteira foi negativa,mas, em compensação, houve o melhoramento gené-tico da rusticidade, prolificidade e qualidade da pele.

Quais as raças de cabras que já resgatou equal a história delas no semi-árido?

Bom, tenho Moxotó, Gurguéia, Marota,Canindé, Graúna, Cabra Azul e Repartida. Esta últi-ma é também conhecida como Surrão. A maior partedas raças de hoje tem orelhas curtas e são descenden-tes de animais que vieram da Península Ibérica. Já asorelhudas vieram do norte da África, mas essas sãoinferiores em termos de conciliação com o ambientedo semi-árido se as compararmos com as pirenaicas deorelha curta. Aqui na propriedade tenho uma delas demostruário.

A gente cria de forma mais extensiva aGurguéia, que é homóloga da Parda Alpina. A Moxotóé a mesma Serpentina de Portugal ou Alpina Manteladada França. O nome Moxotó foi dado porque tinha ocor-rência dela no Vale do Moxotó. Bom, tenho tambémas Graúnas, que são pretinhas e descendem dasMucianas do sul da Espanha, além de um rebanho daCabra Azul, que a gente chama Serrana Azul. A CabraAzul eu ganhei de presente de um amigo. Ela veio dePortugal, da região de Trás-os-Montes, mas agora estánativizada aqui, como nós. As de lá são iguais, mastêm uns pêlos grandes. Os quatro séculos no Nordestediminuíram o pêlo por sua desnecessidade, pois aquinão tem neve, e isso aumentou a qualidade da pele,que é mais resistente e mais qualificada. Tenho umgrupo de amostra da Canindé e também, como eu dis-se, da Marota e da Surrão.

Essa questão das raças é curiosa, poisquem as definiu foi o povo. Raça decabra, raça de animal é essencialmen-te uma convenção entre os criadores,homologada, ajudada e apoiada pelasinstituições técnicas oficiais. Aqui noBrasil, as instituições oficiais não fize-ram o inventário das cabras, assimcomo em todos os países do mundo.Apesar disso taxaram as cabras brasi-leiras como SRD (Sem Raça Definida).O povo já definiu várias raças: Moxotó,Marota, Canindé, Graúna, Repartida.Agora só falta tomar as providênciaspara homologar oficialmente.

Entrevista a Manelito na Fazenda Carnaúba em Taperoá – PBFo

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sabe de onde eles pegaram as leguminosas para fazer osconsórcios com os capins deles? Aqui em Taperoá e emCapim Grosso na Bahia, em 1903. Então você vai ver quea agronomia oficial do Nordeste é em cima de algaroba,atriplex, leucena e cunhã, e que despreza o maior manan-cial de leguminosas e ervas deste país que é a vegetaçãodo semi-árido do Nordeste. Nós temos forrageiras nativasadaptadas às condições da região semi-árida que possuemalto valor nutritivo, como a jureminha, o feijão-bravo, ofeijão-de-rolinha, o amarra-cachorro, o engorda-magro, ajurema-preta, a malva-doce, além de outras espécies.

A vegetação da caatinga responde às necessi-dades alimentares das criações no semi-árido?

Os nordestinos fizeram pecuária extensiva aolongo de quatro séculos sustentados pela caatinga e as-sim colonizaram a região. Entretanto, nos dias de hoje, acaatinga não se sustenta por si só como sistema de pro-dução de forragem animal.

Em condições normais, são necessários de 15a 30 hectares de caatinga para manter uma cabeça. Po-rém, em um ano de seca você pode ter 100 hectares porcabeça e sua vulnerabilidade é a mesma. Então precisahaver intervenções tecnicamente agendadas e adequa-das para a caatinga, o que eu chamo de processo de ra-cionalização do uso da caatinga. Na minha cabeça issose resume em multiplicar as ervas e as forrageiras nativasda caatinga. Remover os vegetais que não têm utilidadecomo forrageiros e pôr no lugar os capins do norte daÁfrica que são perenes. Na região seca, para mim, lavou-ra e pecuária têm de ser mantidas com plantas perenes. Acaatinga é rica em leguminosas, mas até hoje não se sabeda ocorrência de nenhum capim perene entre as espéciesnativas daqui. Você quer algo mais ecológico e rico doque a palma? Ela foi introduzida no Brasil há mais de umséculo e nunca a estudaram. Palma, em primeiro lugar, écomida de gente, como fruta e verdura. Além disso, éuma forrageira fantástica e uma das grandes ferramentasde combate à erosão nas terras mais secas da África. Outroexemplo semelhante é o do capim buffel. O buffel entrounos Estados Unidos não por iniciativa do departamentode pecuária, não, foi devido ao departamento de conser-vação de solos.

Aqui temos que proteger o solo com procedi-mentos vegetativos para conservar a caatinga; e aí nadacomo botar um vegetal que, além de conservar o solo seja,simultaneamente, uma forrageira adaptada que pode ga-rantir a base da economia pecuária do Nordeste.

*João Macedo: agrônomo, assessor técnico da [email protected]

Rômulo Menezes: agrônomo, doutor em ciências dosolo e professor adjunto do Departamento de Energia

Nuclear da Universidade Federal de [email protected]

Aqui temos que proteger o solocom procedimentos vegetativospara conservar a caatinga; e aínada como botar um vegetal que,além de conservar o solo seja,simultaneamente, uma forrageiraadaptada que pode garantir abase da economia pecuária doNordeste.

Por onde essas raças de caprinos têm seespalhado?

Na verdade, a ocorrência desses animais égeneralizada. O que fiz foi sair por feiras e proprieda-des catando animais com as características fenotípicasdas raças originais e os coloquei para cruzar com os dasraças análogas européias. Já tem muita gente criandoesses animais em vários locais do Nordeste, exatamen-te por terem percebido ao longo do tempo as vantagensdessas raças em termos de rusticidade e prolificidadenas condições do semi-árido. Muitos amigos já têm ca-bras e ovelhas nativas. Há também o recente interessede algumas instituições oficiais em montar programasde pesquisa com esses animais.

O senhor também tem recuperado e trabalha-do na seleção de raças de ovinos e bovinos?

Tenho quatro raças de ovinos aqui na proprie-dade: a Morada Nova, a Cara Curta ou Sabugi, a SantaInês Barriga Preta e, por último, a Cariri, que foi resultan-te de uma segregação da Barriga Preta. Raças de bovinoseu tenho a Guzerá e a Sindi, que são raças oriundas doSudeste Asiático (Índia e Paquistão) e que selecionei paraobter animais de dupla função.

A gente sabe que, além de recuperar as raças decaprinos, o senhor também tem valorizado asforragens nativas da caatinga. Como é isso?

O semi-árido do Nordeste, dentre as zonas se-cas do mundo, é onde mais chove, é a que tem a vegeta-ção natural mais rica e a que acolhe a maior densidade depopulação. Tudo isso já é uma informação fundamentalde que a região é boa. Infelizmente, o reconhecimentodisso é algo que institucionalmente ainda não aconte-ceu. Veja só, os australianos foram pegar o capim buffelno norte da África no fim do século XIX (1890), e você

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Remando contra a corrente:

Projeto Reca e a buscada sustentabilidade

na AmazôniaElder Andrade de Paula

Mauro César Rocha da Silva*

A expansão da“fronteira” agrí-cola na Ama-

zônia e os seus efeitos negativostêm sido marcados por intenso de-bate de alcance internacional. Opadrão de ocupação e uso das ter-ras adotado na segunda metadedo século XX – centrado na gran-de empresa capitalista – vem re-sultando na exploração predató-ria da natureza, no extermínio depopulações indígenas e na exclu-são social do campesinato. No de-correr dos anos 90, a profusãode experimentos comunitários debase local considerados susten-táveis em diversos pontos do ter-ritório amazônico afiançou umclima de otimismo em torno daspossibilidades de redirecio-namento das estratégias para odesenvolvimento na região.

Este artigo chama a atenção para os novosdesafios que se impõem àqueles que reconhecem a impor-tância da conservação da biodiversidade e se preocupamcom a sustentabilidade da pequena produção de base ru-

ral na Amazônia. Ele foca o Projeto de ReflorestamentoEconômico Consorciado e Adensado (Projeto Reca), de-senvolvido no estado de Rondônia, em uma faixa de fron-teira com o Acre. Considerado um dos exemplos maisbem-sucedidos em termos de adoção de alternativasustentável de desenvolvimento1, o projeto tambémfoi apontado como uma das “oito melhores experiên-cias de organização e de produção do planeta apresen-tadas aos presidentes de sete dos mais ricos países domundo reunidos em Miami” (Reca, 2003).

Breve histórico do Projeto Reca

O ano de 1984 foi marcante na trajetória doProjeto Reca. De acordo com depoimentos de diversaslideranças, naquele ano, um grande contingente demigrantes chegou à Ponta do Rio Abunã (atualmentemunicípio de Nova Califórnia), extremo oeste de Ron-dônia, na fronteira com o Acre. Atraídas pela oferta delotes de terras no antigo Seringal Santa Clara, transfor-mado em Projeto Integrado de Colonização pelo Incra,muitas famílias oriundas do Sul do país vieram se juntar aposseiros e antigos seringueiros que já viviam na área.

A exemplo do que ocorria nos demais proje-tos do Incra, esse contingente de migrantes ficou rele-gado à própria sorte. Não dispondo de boas condiçõesde moradia, de apoio à produção e submetidas aos re-

1 Por alternativa sustentável de desenvolvimento, estamos considerando aqueles ex-perimentos que articulam as dimensões socioculturais, ambientais, econômicas epolíticas, que se traduzem sinteticamente na elevação dos níveis sociais de vida e ren-da; padrão de uso da terra pautado nos princípios agroecológicos articulados com valoriza-ção da cultura; organização e participação dos agricultores no processo decisório.

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correntes surtos de malária, muitas famílias abandona-ram seus lotes. Aqueles que permaneceram em suasterras tentaram sobreviver com plantios de arroz, fei-jão, milho e café, culturas com as quais já estavam ha-bituados a lidar tradicionalmente no Centro-Sul do paíse em suas andanças pelo Mato Grosso e Rondônia.

Como já havia acumulado maior co-nhecimento sobre a natureza e a mega-biodiversidade existente, por sua vivên-cia na floresta e pelo intercâmbio socio-cultural com antigos moradores, umgrupo pensou na possibilidade de tes-tar algumas plantas nativas da regiãocomo alternativa de produção, que fos-sem ao mesmo tempo compatíveis coma conservação do meio ambiente e maisrentáveis economicamente. Foi comessa perspectiva que no ano de 1989foi fundada a Associação de Peque-nos Agrossilvicultores do ProjetoReca, inicialmente com 80 associa-dos. Entre seus objetivos iniciais, fi-gurava a recuperação de áreas degra-dadas com a implantação de siste-mas de cultivos agroflorestais.

A partir dos anos 80, os SistemasAgroflorestais (SAFs) desenvolveram-se como um tipoespecial de manejo mais adaptado às condições peculia-res dos ecossistemas tropicais amazônicos, e como alter-nativa ao tradicional sistema de corte e queima, buscan-do dar respostas socioeconômicas e ambientais ao insus-tentável processo econômico de ocupação da Amazônia.

As principais vantagens que asseguram a via-bilidade dessas experiências dizem respeito à diversifi-cação seqüencial da produção; à diminuição dos efei-tos negativos causados pelas sazonalidades dos preçosdos produtos ou quebra de safra; à recuperação dossolos degradados; ao reaproveitamento natural doscompostos orgânicos e eliminação do uso de adubosquímicos; à recomposição da paisagem com coberturaflorestal e ao controle natural de pragas.

Os SAFs no Projeto Reca foram basea-dos na combinação produtiva de cupuaçu (Theobromagrandiflorum), pupunha (Bactris gasipaes), castanha(Bertholletia excelsa) e essências florestais. Foram im-plantados cerca de 450 hectares dessas três espécies.No início dos anos 90 começaram a aparecer os primei-ros resultados econômicos dos SAFs, com uma safrade 120 toneladas de cupuaçu. Uma agroindústria foiinstalada para o beneficiamento da polpa de cupuaçu ede palmito de pupunha, onde toda a produção passoua ser processada de forma comunitária. Dessa forma, oProjeto Reca impulsionou a criação do município NovaCalifórnia.

Em busca da sustentabilidade

A singularidade do Projeto Reca não está so-mente na construção de uma alternativa de produção fun-dada em princípios agroecológicos, mas também no seuprocesso de organização para o controle sobre a cadeiaprodutiva. No que se refere à organização, as liderançasdo Projeto afirmam sempre que as conquistas obtidas atéentão resultam da sua força coletiva, que é fruto de umintensivo processo de formação de base articulado comum tipo de gestão que envolve ampla participação no pro-cesso decisório, hoje com cerca de 360 associados.

Com a legalização a fábrica começa a funcionar

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Nova Califórnia lozaliza-se naPonta do Abunã, extremo oeste deRondônia, na fronteira com osestados do Acre e do Amazonas.Mapa produzido por Claudecir Agostini

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A singularidade do ProjetoReca não está somente naconstrução de umaalternativa de produçãofundada em princípiosagroecológicos, mas tambémno seu processo deorganização para o controlesobre a cadeia produtiva.

Respaldada nessa força coletiva e na sua capa-cidade de articulação em redes nacionais e internacionais,a coordenação do Reca deu um ousado passo ao implan-tar agroindústrias e buscar mercado para seus produtos.Comercializa polpa congelada de cupuaçu, manteiga decupuaçu, sementes e palmito de pupunha. No entanto,os desafios nessa nova fase do Projeto Reca, como o deprocessamento industrial e comercialização desses pro-dutos, ainda são enormes, seja pela instabilidade dos pre-ços, pelas flutuações de um mercado consumidor aindanão consolidado, pela falta de infra-estrutura adequada(equipamentos e instalações produtivas), mas principal-mente, pela ausência de políticas públicas voltadas paraesse segmento da produção familiar.

Mesmo diante dessas limitações, oProjeto Reca, com forte suporte co-munitário e organizacional, tem de-monstrado que o sistema produtivobaseado nos SAFs possibilitou o au-mento da renda familiar; a melhoriada alimentação; a diminuição dos ris-cos de perdas com queda de safras de-vido à diversificação da produção; e aproteção do meio ambiente com au-mento da fertilidade do solo.

Nas contas do Sr. Leonir, um dos associados,os SAFs trazem um retorno econômico, além doambiental, quatro vezes maior do que a pecuária: Trinta edois hectares de pastagens rendem por ano R$ 16 milcom a venda de bezerros. Em 5,5 hectares de SAFs, comrendimento médio, consigo R$ 10 mil por ano.

Considerações finais

A experiência do Projeto Reca demonstracom muito vigor as possibilidades de trilhar um ca-minho diverso daquele iniciado nos anos 70 e reto-

mado com nova alegoria em fins dos 90. O avançona construção de uma alternativa que combina ouso inteligente da biodiversidade com a proteção domeio ambiente e elevação dos níveis sociais de vida dospequenos produtores na Amazônia requer uma aten-ção especial por parte do governo no sentido deredirecionar as políticas públicas na região. A conti-nuidade das políticas e estratégias de desenvolvimen-to atualmente em curso na Amazônia, sobretudo aque-las centradas no incentivo ao agronegócio (soja,pecuária e madeira), tende a desestimular a ampliaçãode experimentos similares ao do Reca e aprofundar ainsustentabilidade de um estilo de desenvolvimento quese nutre da produção destrutiva e agrava o drama so-cial da maior parte da população regional. Está na hora,portanto, de retomar o senso crítico que marcou aluta de resistência na Amazônia nas décadas de 70 e80, com o intuito de manter acesas as chamas daesperança de que experiências como as do ProjetoReca possam deixar de ser exceção e constituam-seem regra no futuro.

*Elder Andrade de Paula: prof. adjunto do DFCS/UFAC, coordenador do Núcleo de Pesquisa Estado,

Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia [email protected]

Mauro César Rocha da Silva: prof. do DFCS/UFAC epesquisador do Grupo Pesacre.

[email protected]

Referências:

ANDERSON, Anthony et. al. Esverdeando a Ama-zônia: comunidades e empresas em busca de práticaspara negócios sustentáveis. Brasília: IIEB, 2002.

PAULA, Elder. Estado e desenvolvimento insusten-tável na Amazônia Ocidental: dos missionários doprogresso aos mercadores da natureza. 2003. Tese/Doutorado. CPDA/UFRRJ, Rio de Janeiro.

RECA (Brasil). Nosso jeito de caminhar: a históriado Reca contada por seus associados, parceiros eamigos. Brasília, 2003.

RODRIGUES, Ricardo L. Análise dos fatoresDeterminantes do Desflorestamento Na AmazôniaLegal. 2004. Tese/Doutorado. COPPE/UFRJ, Riode Janeiro.

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N

Frutas nativas:de testemunhos dafome a iguarias na mesa

Guillermo Gamarra-Rojas, Adriana Galvão Freire,João Macedo Moreira e Paula Almeida*

o agreste da Pa-raíba, as frutasnativas são man-

tidas e utilizadas de variadas for-mas pelas famílias de agricultores.De forma geral, se fazem presen-tes pela grande importância quetêm na dieta alimentar das comu-nidades situadas na porção terri-torial mais úmida, conhecida comoBrejo. Já nas regiões do Curima-taú e do Cariri, áreas mais secas emais à oeste do estado, essas es-pécies são, à exceção do umbu(Spondis tuberosa), culturalmentemarginalizadas. O consumo dessasfrutas é fortemente associado aoslongos períodos de estiagem, quan-do se tornam uma das poucas al-ternativas alimentares disponíveis.

São, nesse sentido, testemunhos da fome.Assim, o consumo de frutas do cardeiro (Cereus jama-caru), do xique-xique (Pilosocereus gounellei) ou dacumbeba (Opuntia inamoena) simboliza uma situaçãode extrema penúria, ainda mais pelo fato de algumasdessas plantas também serem empregadas como fon-tes de forragem.

Agravando a percepção depreciativa social-mente construída em torno do uso alimentício dessasplantas, os programas governamentais sempre atuaramem momentos de crise alimentar no semi-árido distribu-indo cestas básicas compostas por produtos vindos doSul do país. Portanto, além de não enfrentar de formaestrutural as causas que conduzem à vulnerabilidade ali-mentar na região, esses programas terminam por induziro desenvolvimento de um padrão de consumo baseadoem alimentos que não são passíveis de serem produzidoslocalmente. Todo esse processo leva a uma gradativaerosão dos conhecimentos associados à rica vegetaçãoda caatinga, em particular ao potencial alimentício desuas espécies frutíferas.

Diante desse contexto, um grupo de agri-cultores, agricultoras e lideranças do Pólo Sindical edas Organizações da Agricultura Familiar da Borbo-

O umbuzeiro e seus frutos

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rema realizou um diagnóstico a fim de resgatar e valo-rizar o conhecimento sobre o uso das frutas nativas naalimentação das famílias, bem como identificar técni-cas e estratégias de manejo, beneficiamento e comer-cialização de frutas ainda presentes no cotidiano dascomunidades.

Assessorado pela AS-PTA e pela Associaçãode Plantas do Nordeste (APNE), esse diagnóstico foirealizado em sete municípios da região, contemplandodesde as regiões mais úmidas até as mais secas.

A noção de fruta nativa

A primeira etapa do diagnóstico foi dedicadaa uma reflexão coletiva voltada para precisar o concei-to de fruta nativa. Após um amplo debate chegou-se adois conceitos: “fruta nativa-do-mato”, concepçãolocal próxima da noção de fruta nativa silvestre, ouseja, aquela espécie que “nasce pela própria natureza”no meio da vegetação local ou nos quintais e que “nãoprecisa educar, mas que pode ser educada”; e “frutanativa-naturalizada”, indicando espécies e variedadesintroduzidas que estão adaptadas às condições locais,como algumas espécies de Annona, Spondias e algu-mas variedades de banana e Citrus. As demais frutífe-ras estão contidas numa terceira categoria de frutas,as “não-nativas”. Entre estas últimas estão incluídasespécies e variedades de introdução recente, geralmente

exigentes em insumos e em cuidados fitossanitários.Elas podem ser resultado tanto de melhoramento deespécies nativas, como variedades nanicas de Anacardium,quanto de enxertos intra (p.e. Coqueiro – A occidentale) einterespecíficos (Cazajeiro – S. mombim).

Essas categorias estão diretamente re-lacionadas às percepções locais quepodem ser representadas em um gra-diente decrescente de adaptabilidadeou rusticidade, da “nativa-do-mato”para a “não-nativa”. A reflexão sobrea resistência das plantas nos agroecos-sitemas tem implicações importantesno manejo das frutas. Os agricultorese agricultoras possuem um claro enten-dimento, por exemplo, de que, apesarde as “nativas-do-mato” apresentaremvantagens adaptativas sobre as frutasintroduzidas, apenas poucas alcançamos mercados.

A fruta nativa e seus significadospara a agricultura familiar

Durante a realização do diagnóstico, o rele-vante papel que as frutas nativas cumprem e seu enormepotencial alimentar foram amplamente ressaltados pelasagricultoras e agricultores envolvidos. O grupo de estudodas frutas identificou 44 espécies diferentes, das quais 29 foramconsideradas de alta preferência devido à sua diversidade deusos e funções, corroborando o valor das espécies de propósitomúltiplo nas estratégias da agricultura familiar.

Muitas dessas frutas se encontram de formadispersa nas unidades familiares e, como nascem deforma espontânea, não requerem tratos culturais. As-sim, nas áreas mais preservadas, cumprem importantefunção ecológica como alimento e abrigo para animaissilvestres. Contudo, algumas espécies como a ubaia(Eugenia uvalha) e o jatobá (Hymenaea courbaril) es-tão se tornando raras em algumas comunidades devidoao desmatamento generalizado ocorrido durante osgrandes ciclos das monoculturas de algodão e agave.Já nas regiões mais úmidas, essa escassez ocorre porqueestão sendo substituídas por frutas comercialmente maisvalorizadas nos mercados, como a laranja e a banana.

Por outro lado, observamos que algu-mas frutíferas nativas são preservadasmesmo em áreas de maior densidadede ocupação humana, sendo o umbuna área mais seca e o cajá na área maisúmida exemplos disso. As múltiplasfunções dessas espécies são os motivos

Agricultor apresenta o fruto da cumbeba no diagnóstico

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atribuídos para que sejam mantidas nossistemas produtivos. Além das frutasque são consumidas pelas famílias oucomercializadas, essas plantas propor-cionam sombra, adubo para o solo,madeira, estacas, cercas vivas, lenha,medicamentos e alimento para abelhase criações. Apenas uma das espécies, ajabuticaba (Myrciaria cauliflora), foiclassificada como preferencial pelosagricultores exclusivamente pela voca-ção como frutífera.

Nas propriedades familiares, algumas espéciesestão presentes nos quintais domésticos, nos cercados depalma forrageira (Opuntia ficus) ou são utilizadas comocercas vivas (cajá, cumbeba). A localização das frutíferasobedece à lógica de otimizar o espaço, o esforço de traba-lho e os recursos disponíveis, como o reaproveitamentoda água de uso doméstico para a irrigação das plantas dosquintais próximos às moradias nas regiões e épocas maissecas. Embora todos os membros das famílias colham fru-tas nativas, as crianças são as mais envolvidas nessa ativida-de. Por terem sido “plantadas por Deus”, é comum a suacolheita se dar também em terra de terceiros, principalmen-te quando a fruta em questão não possui valor comercial.Caso contrário, só o dono da terra ou um vizinho, medianteacordo prévio, tem o direito de colhê-las e vendê-las.

A comercialização é limitada tanto no quese refere à quantidade do produto quanto ao númerode espécies. Apesar de o cajá, do umbu e da jabotica-beira serem bem aceitos no mercado, os agricultoresenfrentam dificuldades na venda dessas frutas em fun-ção dos baixos volumes de produção e da falta de infor-mação sobre como e onde vendê-las. São os atraves-sadores que em geral reúnem o produto da comunidade eo repassam para os mercados locais e regionais, deixandopouco benefício financeiro às famílias.

O resgate do conhecimento

O diagnóstico, sem dúvida, permitiu tra-zer para as comunidades o debate sobre a importân-cia da rica diversidade de frutas nativas existente naregião e seus inúmeros usos, dessa forma favorecen-do a realização de uma análise coletiva sobre o pa-pel potencial que essas espécies podem desempe-nhar na satisfação das necessidades alimentares eeconômicas das famílias.

A revalorização desse conhecimentoprovocou uma imediata mudança destatus das frutas no cardápio culturalde alimentos. Essa quebra dos tabus as-sociados às situações de fome levou aoaumento do consumo de frutas innatura e estimulou o teste de novasreceitas para torná-las mais apetitosas.

Ao final do diagnóstico, os agricultores eagricultoras sentiram-se altamente estimulados a da-rem continuidade ao trabalho de revalorização dasfrutas nativas. Foi então formulado um plano de for-mação no sentido de desenvolver e disseminar ino-vações de manejo produtivo, de beneficiamento ecomercialização das espécies frutíferas.

Três grupos de agricultores-experimentadoresdo Pólo Sindical se motivaram a trabalhar com o tema.Um associado à dinâmica de experimentação em saúdee alimentação, composto principalmente por mulheresque se interessaram em realizar encontros e cursos so-bre beneficiamento e comercialização das frutas;outro associado ao Coletivo Municipal da Agricul-tura Familiar de Soledade que, assessorado pelo Pro-grama de Aplicação de Tecnologias Apropriadas às

Elaboração de matriz de preferência de frutas nativas

Ao final do diagnóstico, osagricultores e agricultoras

sentiram-se altamenteestimulados a darem

continuidade ao trabalho derevalorização das frutas

nativas. Foi então formuladoum plano de formação nosentido de desenvolver edisseminar inovações de

manejo produtivo, debeneficiamento e

comercializaçãodas espécies frutíferas.

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18 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Comunidades (Patac) vem desenvolvendo e resga-tando receitas culinárias, principalmente de Cactá-ceas; e um terceiro dedicado à rearborização de pro-priedades. As agricultoras e agricultores envolvidos nes-te último grupo estruturaram viveiros comunitários e/ouindividuais e passaram a resgatar sementes e a produzir edistribuir mudas de frutas nativas.

Na região mais seca, Cariri/Curimataú, oumbuzeiro, um símbolo de convivência com o semi-árido,passou a merecer especial atenção. Foi realizado um con-junto de eventos comunitários e regionais e de visitas deintercâmbio, criando um ambiente favorável à troca deconhecimentos sobre o aproveitamento, o beneficiamento,a produção de mudas e a conservação da fruta. Um gruposignificativo de agricultores visitou experiências similaresem outros estados do Nordeste e o trabalho desenvolvidopela Embrapa Semi-árido nesse campo.

O caju, do qual antes somente se valorizava acastanha, passou a ser aproveitado integralmente. Cur-sos ministrados primeiramente por um agricultor com lar-ga experiência no processamento da fruta em passa-caju,doce de corte, doce em calda, suco, cajuína, mel e vinhopassaram, em seguida, a ser promovidos por outros agri-cultores e agricultoras. A partir daí, grupos de áreas maisúmidas, onde a espécie ocorre em grande quantidade,passaram a fazer doces e sucos para vender nas feirasmunicipais e agroecológicas, além de consumir em casanas épocas de entressafra.

Mais do que as receitas, o maior resul-tado da troca de conhecimentos foi oestímulo, o teste e a inovação dos usosdas frutas antes não aproveitadas. Re-ceitas de doces, geléias, sucos e boloscom os frutos e ramos (cladóides) dealgumas cactáceas locais começarama ser recriadas. Esse potencial inova-dor também foi motivado nas regiõesmais úmidas, onde se observou umabusca pelo melhor aproveitamento dasfrutas que antes eram consumidas ape-nas in natura, como o jenipapo (Genipaamericana).Enfim, a realização do estudo e o intercâmbio

sobre o aproveitamento e beneficiamento das frutas de-sencadearam uma reação imediata nas famílias envolvi-das, que passaram a coletar sementes, produzir e distri-buir mudas e conservar frutas nativas em suas unidadesde produção. Dessa forma, espécies que já se encontra-vam em vias de extinção em algumas localidades da re-gião foram protegidas e/ou reintroduzidas. Para a anima-ção desse processo, uma peça teatral foi organizada eencenada pelo Grupo de Teatro do Pólo Sindical parasensibilizar novas famílias que ainda não estavamengajadas nesse trabalho.

Novos temas para pesquisa

As frutas nativas ainda são negligenciadaspela pesquisa acadêmica. Pouco se sabe sobre suas pro-priedades nutricionais, suas formas de manejo e seuspotenciais de mercado. Além de estimular um intensoprocesso de mobilização social no agreste da Paraíba, odiagnóstico também foi importante para a identificaçãode demandas por conhecimentos para o aprimoramentodo uso dessas frutas nas comunidades. Na medida emque grande parte das espécies frutíferas tem curto perí-odo de colheita no ano, temas como processamento econservação pós-colheita, além da avaliação das proprie-dades nutricionais, se mostraram como prioridades emque se deve investir.

As estratégias locais de produção de mudas evenda nas feiras agroecológicas estão tornando as fru-tas nativas mais conhecidas. Contudo, estudos porme-norizados de mercado e cadeias de comercialização ain-da se fazem necessários para o desenvolvimento de prá-ticas mais circunstanciadas de valorização econômicadessas espécies.

Iguarias na mesa

De testemunhos da fome, as frutas nativas noagreste da Paraíba vêm se transformando em iguarias namesa das famílias agricultoras. Além de suprir carênciasnutricionais, esse trabalho com as frutas nativas mobili-zou conhecimentos, experiências e, sobretudo, permitiuque agricultores e agricultoras experimentassem novasreceitas de vida.

Referência:GAMARRA-ROJAS, G.; GAMARRA-ROJAS,C. F. L. Conservação e uso de frutíferas nativasde Pernambuco. In: TABARELLI, M.; SILVA,J. M. C. da (Org). Diagnóstico da biodiversidadede Pernambuco. SECTMA-PE. Recife, Brasil: Ed.Massangana, 2002.

*Guillermo Gamarra-Rojas:agrônomo, doutor em botânica, consultor autônomo.

[email protected] Galvão Freire:

bióloga, mestre em administração rural,assessora técnica da AS-PTA

[email protected]ão Macedo Moreira:

agrônomo, assessor técnico da [email protected]

Paula Almeida:agrônoma, assessora técnica da AS-PTA

[email protected]

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 19

ssim como emtoda a AméricaCentral, a Nica-

rágua tem grande variedade dealimentos nativos que caíramem desuso pela influência doprocesso de colonização e pe-los efeitos das modernas tecno-logias agrícolas.

Embora muitas pessoas que vivem no campo,em sua maioria de idade avançada, conheçam grande varie-dade de plantas alimentícias e medicinais, não existe umaentidade ou movimento específico que estimule a suarevalorização e utilização para benefício da geração pre-

sente e futura. Aliás, persiste o preconceito da populaçãode que quando são utilizadas é por serem “muito pobres”ou que se está “comendo mato”. Por outro lado, o valornutricional e cultural dessas plantas, assim como sua ca-pacidade de adaptação às condições do campo nicara-güense, não é devidamente reconhecido pelos organis-mos governamentais e entidades de desenvolvimento sóporque essas espécies não têm apelo comercial no mo-mento. Assim, os demais benefícios que essas plantas na-tivas podem oferecer são deixados de lado.

Uma hortaliça: a folha da urtigabranca ou árvore de espinafre

Entre as mais valiosas hortaliças da família dasEuphorbiaceae, estão a urtiga branca (Cnidoscolus urens)

Guisela Chavarría e Johannes Füssel*

Mudança de atitudeem relação a verduras e

grãos básicos nativos

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Degustação de pratos preparados com base em hortaliças nativas

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20 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Crianças ao lado de cerca de árvores de urtigabranca de três anos

e a chaya (Cnidoscolus chayamansa). Essas espécies apre-sentam variedades com e sem espinhos e crescem na Amé-rica Central nas regiões de clima subúmido, mas podem seadaptar a climas semi-áridos e úmidos até 800 metros dealtitude. Temos experiências com cinco variedades, todasbasicamente com o mesmo sabor, embora a C. chayamansa,variedade sem espinho, seja muito mais suave do que asoutras depois de cozida. Os níveis de nutrientes das fo-lhas, no estudo de Kuti e Torres (1996), coincidem comoutros relatórios publicados (Martin e Ruberte 1978;Munsell et al., 1949; Booth et al., 1992) e são de duas atrês vezes mais altos do que os da maioria de verdurasfolhosas. O valor nutricional médio das folhas de urtigabranca [14.9] é muito superior ao de outras verduras comoo espinafre [6.4], o bredo [11.3], o repolho chinês [7.0] oua alface [5.4] (Grubben, 1978; valores nutricionais combi-nados segundo o método do autor). Enquanto algumashortaliças comerciais são boas fontes de micronutrientes(Levander, 1990), as facilmente acessíveis folhas de urti-ga branca contêm consideráveis quantidades de vários dosmicronutrientes minerais necessários para a saúde huma-na. Seu cultivo é rústico e não há pragas ou enfermidadesque a afete. Há informação sobre seus usos medicinais queainda não foram comprovados cientificamente.

Adquirimos boa experiência plantando a urtigabranca em curvas de nível (estacas de 30 ou 40cm) comométodo de manejo conservacionista de água e solo. Seucrescimento é rápido e em duas semanas já apresentarebrotes. Assim é obtida uma superprodução, a qual seaproveita de forma vantajosa ao ser usada como forragempara animais menores nos quintais (galhinhas, patos, gan-sos, porcos e cabras leiteiras) e/ou para gado em pastos.Cresce bem sob a sombra, embora tenha melhor rendi-mento em pleno sol e com água suficiente, para que possaproduzir folhas durante todo o ano. Os talos de plantasjovens também são aproveitados.

Um grão básico: O ojoche(noz de pão)

Outra valiosa espécie esquecida nos trópicos éo ojoche (Brosimum alicastrum Sw Moraceae), uma árvo-re que cresce espontaneamente em regiões quentes eúmidas, mas que já era cultivada pelos Maias nas regiõessubúmidas. Suas sementes contêm 20% de proteínas, comalto teor do aminoácido triptofano e um índice dedigestibilidade superior a 60%. Segundo Geilfus (1989),o ojoche silvestre produz normalmente de 15 a 20 kg desementes por ano. No entanto as árvores cultivadas noMéxico rendem de 50 a 75 kg. Os camponeses do departa-mento de Carazo afirmam que colhem facilmente de 75 a100 kg por árvore adulta. Essas variedades certamentesão o resultado de uma seleção humana muito antiga,considerando que o ojoche – além do milho – era um grãobásico dos Maias (Puleston, 1979).

A colheita se realiza quando o frutocai, e logo se parte para a eliminaçãoda polpa, seja comendo-a ou secando-a ao sol em um local fora do alcancedos animais domésticos. O fruto, jáseco, está pronto para ser armazena-do, com o tegumento que envolve asemente. Colocada em sacos fechadose em um lugar limpo e seco, a semen-te ou grão se conserva sem problemasdurante um ano.

Para prepará-lo, emprega-se a mesma técnicautilizada para o preparo do milho (levar o grão à fervura,agregando cinza e cal), com o que se consegue tirar amaior quantidade do tegumento. O grão adquire umacoloração de verde-claro a verde-escuro, e assim pode serlevado à geladeira, usado para preparar uma massa ou co-mido como legume.

Com o ojoche temos experimentado várias re-ceitas de pão, tortillas (metade ojoche, metade milho)etc. Segundo os camponeses, o seu uso era mais freqüen-te no passado pela tradição dos avós. Hoje em dia, é con-sumido raramente ou em períodos de crise. Seu cultivo épouco comum e, em algumas regiões do país, só é conhe-cido de nome. Além disso, pela falta de informação, suaprodução tem sido usada principalmente como forragem,pois é conhecido por seus efeitos no aumento da produ-ção do gado leiteiro. Também é utilizado na alimentaçãode cachorros, gatos, galinhas e patos.

O ojoche possui uma copa densa mas não largae atinge grande altura, permitindo que os raios solarescheguem ao solo durante o dia. Suporta bem as podas.Também é usado como moirão vivo para cercas, comoárvore para sombrear o café e como quebra-ventos. Quan-

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Inflorescência da urtiga branca

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A Eco-Tierra, uma organizaçãode assessoria, observou, através

dos trabalhos realizados emdiferentes regiões da Nicarágua

e de Honduras, dois fatoscomuns: de um lado, a pouca

diversidade na alimentação dapopulação rural e urbana, o quegera doenças, desnutrição etc.,

e, por outro, o esforço deorganismos e instituições para

tornar mais nutritiva e variada aalimentação da população

desses países.

do é plantado na pastagem, recomenda-se um espaça-mento mínimo de 12m x 12m. É provável que seja umaespécie fixadora de nitrogênio, considerando o alto aportede proteína em sua semente (20%) e folhagem (10% a14%), embora esse fato ainda não tenha sido cientifica-mente comprovado.

Outras hortaliças

As folhas da beldroega pequena (Portulacaoleracea L.) são usadas em saladas e seus talos como ce-bola. O bredo-vermelho e o bredo branco (Amarantusspinosus e A. dubius), assim como a batata-doce (Ipomoeabatatas), dão uma verdura algo mais suave e fina que afolha de urtiga branca, mas estão disponíveis somente emcertas épocas. O mil tomate (Lycopersicon lycopersicumvar. cerasiforme; antecessor do tomate cultivado) é utili-zado por seu sabor forte, como condimento, ornamentoou tomate cocktail, assim como o anis (Tagetes filifolia).

Trabalhos relacionados e depromoção

A Eco-Tierra, uma organização de assessoria,observou, através dos trabalhos realizados em diferentesregiões da Nicarágua e de Honduras, dois fatos comuns:de um lado, a pouca diversidade na alimentação da popu-lação rural e urbana, o que gera doenças, desnutrição etc.,e, por outro, o esforço de organismos e instituições paratornar mais nutritiva e variada a alimentação da popula-ção desses países. Motivada por essas experiências, a Eco-Tierra considerou a necessidade de dar uma resposta sóli-da e permanente por meio de ações que, revertendo a

situação de carências nutricionais encontradas, fossemcondizentes com as necessidades do homem e da nature-za que o rodeia. Para isso contava com um especialista emagrofloresta, conservação de solos e cultivo orgânico; umapromotora; um agricultor assalariado; e uma propriedadede meio hectare.

Em 2001, em parceria com Terre des Hommesda Itália, desenvolveu um projeto piloto de três mesesem uma comunidade do departamento de Masaya. Fo-ram ministradas palestras sobre a alimentação balancea-da a um grupo de nove mulheres. Na Nicarágua a maioriada população rural tem como dieta diária arroz, feijão,mandioca ou tortilla e café. Apresentamos a alternativade arroz, feijão, folhas de urtiga branca com ovo mexido,ou como salada com um pouco de tomate e cebola, e umsuco natural. Em seguida, foi realizado um passeio pornosso sítio com o grupo de mulheres para reconhecer asplantas e debater a respeito da pouca atenção que elasvêm merecendo. Todas as mulheres se comprometerama dedicar um pequeno espaço em seus quintais para plan-tarem as sementes e estacas que lhes foram entreguescomo material propagativo. A princípio essa novidadenão foi facilmente aceita em suas casas e na vizinhança,pois os habitantes locais consideravam as sementes eestacas dessas espécies como pragas: “É uma loucuraplantar mato ou se alimentar como cabras.” Quando sefez a primeira atividade culinária com familiares e vizi-nhos havia um clima de desconfiança, mas ao final todosficaram satisfeitos.

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22 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Referências:

BOOTH, S.; BRESSANI, R.; JOHNS, T. Nutrientcontent of selected indigenous leafy vegetableconsumed by Kekchi people of Alta Verapaz,Guatemala. Journal of Food Composition andAnalysis 5: 25-34, 1992.

GEILFUS, F. El árbol al servicio do agricultor.Santo Domingo: Enda-caribe, 1989.

GRUBBEN, G. J. H. Tropical vegetables and theirgenetic resources. Roma: Int. Board Plant GeneticResource. FAO-UM, 1978.

KUTI, J. O.; TORRES, E. S. Potential nutritionaland health benefits of tree spinach, 1996.

LEVANDER, O. A. Fruit and vegetable contributionto dietary mineral intake in human health anddisease. HortScience 25: 1486-1488, 1990.

MARTIN, F. W.; RUBERTE, R. Chaya, Cnidoscoluschayamansa includes composition and nutritionalvalue, culture in Puerto Rico. In: Vegetables of hothumid tropics. Nueva Orleans: USDA, ARS, 1978.

MUNSELL, H. E.; WILLIAMS, L. O. ; GUILD, L. P.;TROESCHER, C. B.; NIGHTINGALE, G.; HARRIS, R. S.Composition of food plants of Central America. FoodRes. 14: 144-164, 1949.

PULESTON. D. El ramón como base de la dietaalimenticia de los antiguos Mayas de Tikal. Revistade Antropología e Historia de Guatemala, Vol I. In:BECERRA, L. Copan, tierra de hombres y dioses.Tegucigalpa: Ed. Universitaria, 1989.

*Guisela Chavarría e Johannes Füssel:consultores Eco-Tierra / Instituto Tropical de Árvores

Del Monumento 2c E, 1c S; Nova Guiné; Nicará[email protected]

Durante o projeto, também se tratou de refletirsobre o conhecimento altamente desenvolvido das cultu-ras dos povos indígenas a respeito desses cultivos. Por exem-plo, o cultivo do bredo foi proibido pelos invasores simples-mente porque seu grão era de uso ritual nas cerimôniasreligiosas. O resultado dessas “Aulas de História” foi que asparticipantes começaram a se sentir orgulhosas por teremconservado e possuírem hoje essas plantas nativas.

No ano seguinte, após essa experiência, Terredes Hommes nos incorporou no programa de segurançaalimentar em seu Projeto Integral de Atenção à Infância,que se desenvolvia em outras cinco comunidades de Masaya.Com isso, o público-alvo do projeto tornou-se maior.

Os métodos se afinaram, e os mesmos aspectosforam desenvolvidos: oficinas, implantações de hortas sim-ples, aulas de história / cultura / alimentação e experi-mentação culinária. O objetivo durante as oficinas foi o derefletir sobre as qualidades nutricionais, as vantagens agrí-colas, o costume indígena e o por quê do desuso de culti-vos nativos. Não se utilizaram grandes recursos para esta-belecer as hortas, já que essas espécies geralmente nãosão atacadas por animais domésticos. Usaram-se estacasde urtiga branca para fazer ou reforçar as cercas das casase foram feitos canteiros altos para plantar as sementes.

As hortas têm sido de grande importân-cia, porque a urtiga branca, assim comoas outras plantas, estava desaparecen-do nas comunidades. Além disso, seuuso como alimento previne e cura a ane-mia por seu alto aporte de ferro.

A manutenção desses cultivos assegura a con-tinuidade do uso dos conhecimentos aprendidos. Por seruma árvore de crescimento lento, a primeira colheita doojoche é feita depois dos oito anos, o que fez necessárioque fosse realizada a identificação das árvores e sua épocade produção na região.

As atividades culinárias cumpriram seu objetivomesmo antes de sua prática, já que as participantes come-çaram a preparar seu alimento diário agregando folhascoletadas em suas comunidades. Outra experiência muitogratificante se deu com um grupo de adolescentes que co-letou beldroega pequena em um potreiro, onde costumajogar bola, e solicitou a uma das participantes que preparas-se o prato de “arroz com a erva”.

Conclusões e reflexõesOrganismos estatais e internacionais não vêem

a importância e a utilidade dos cultivos nativos e, conse-qüentemente, não demonstram interesse em sua conser-vação e cultivo. Mas, por outro lado, investem milhões dedólares para atenuar a fome e a pobreza com doações eprojetos, sem que se atinjam os louváveis objetivos. Mui-

tas vezes a população rural e urbana nos diz: “Ouvi dizerque esta planta é comestível, mas já que não tenho certe-za, não a como.” Por que não investir um desses tantosmilhões na compilação de informações para que se elabo-rem programas de segurança alimentar com as verduras egrãos básicos nativos de acordo com a região de implanta-ção dos projetos, resgatando valores e promovendo umamudança de atitude? A educação para essas transforma-ções, sobretudo entre as crianças, é fundamental paragarantir que essa tradição esquecida renasça. Não há dú-vida que, depois de provar um bom pão de ojoche ou umgostoso nacatamal, as crianças acabam sendo as maioresentusiastas por essa alternativa de alimentação baseadanas plantas subutilizadas.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 23

Conservação deespécies alimentares

silvestres porcomunidades locais

Sociedade parao Desenvolvi-mento Deccan

(Deccan Development Society –DDS), uma organização de baseque trabalha nas áreas rurais dodistrito de Medak, estado deAndhra Ptadesh, sul da Índia,vem observando com atençãoa importância das espécies ali-mentares silvestres na vida doshabitantes rurais. Desde 1989,a equipe da DDS estuda o pa-pel dessas espécies. Mais de 80delas foram catalogadas, entrelegumes, verduras e até frutasvermelhas.

A maior parte dessas espécies é planta-da pelas mulheres que são dalits1, e que estão nacamada socioeconômica mais baixa das suas res-pectivas comunidades. Elas trabalham nas lavou-ras como forma de garantir sua sobrevivência.

B. Salome Yesudas*

A diversificação do cultivo ajuda essasmulheres a superar as adversidades climáticas e aalcançar boas colheitas. Elas plantam no mínimo8 espécies simultaneamente.

Verduras, umarica fonte de nutrientes

Para os habitantes de regiões rurais, emparticular os mais pobres, as verduras nativas sãofonte importante de alimento. Muitos tipos de fo-

A

Nas creches, crianças emidade pré-escolar são

alimentadas diariamente comuma variedade de verduras,

além de cereais, grãos outubérculos. Assim, desde o

início de sua formação, têmuma alimentação

diversificada, saborosa esaudável, proveniente de

cultivos locais.1Dalits correspondem a um universo social de 240 milhões de pessoas que vivemmarginalizadas no sistema de castas que organiza a sociedade indiana.

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24 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

(artigo baseado no conhecimentodas mulheres da Sangam DDS)

*B. Salome Yesudas: Sociedade para oDesenvolvimento Deccan (DDS)

Pastapur, Zaheerabad, distrito de Medak,Andhra Pradesh, Índia.

As espécies alimentaressilvestres, através dos milênios,têm sido a fonte de vida dospobres. Constituem uma parteda dieta alimentar que elesconsomem, assim como suaprincipal fontede nutrientes

lha dessas verduras fornecem nutrientes essenciaispara a saúde, tais como cálcio, ferro, caroteno, vita-mina C e ácido fólico. São consumidas em quanti-dade adequada, especialmente por grávidas, mu-lheres anêmicas e crianças.

Nas creches, crianças em idade pré-es-colar são alimentadas diariamente com uma varie-dade de verduras, além de cereais, grãos e tubér-culos. Assim, desde o início de sua formação, têmuma alimentação diversificada, saborosa e sau-dável, proveniente de cultivos locais. Diariamen-te, colhem as verduras em campos de cultivo, cer-cas vivas e quintais. Ao se casarem, as mulherespreparam essas verduras para o almoço da festa.

Para conhecer melhor a contribuiçãodessas verduras para a saúde dos mais pobres,suas folhas verdes foram analisadas pelo Institu-to Nacional de Nutrição, Hyderabad. Os resulta-dos comprovaram a riqueza de alguns nutrientesessenciais.

A celebração dadiversidade de cultivos

A agricultura das famílias mais pobresé caracterizada pela celebração dabiodiversidade em suas terras. Elas per-cebem as plantas cultivadas tambémpor uma perspectiva espiritual. Suaspoliculturas são uma forma particularde celebrar a natureza e estabelecer

uma comunhão com ela. Nessa cele-bração, elas consideram não apenas opapel dos múltiplos cultivos, mas tam-bém a inigualável contribuição da enor-me diversidade de espécies silvestres.

Elas celebram a biodiversidade existen-te em suas propriedades de várias maneiras e, aofazerem isso, também reverenciam as verduras sil-vestres presentes em suas terras. Um exemplo dis-so é a celebração da “Shoonyan panduga”, umafesta realizada no mês de dezembro, quando amaioria das plantações de Kharif e Rabi estão ma-duras. As comunidades de agricultores cultuam amãe terra através de caminhadas pelas áreas decultivo, canções dedicadas à festa e oferendas dealimentos especialmente preparados a partir demais de 20 tipos de verduras silvestres, disponí-veis naquele período.

Um dos principais motivos para essa ce-lebração espiritual é o fato de que as espécies ali-mentares silvestres, através dos milênios, têm sidoa fonte de vida dos pobres. Constituem uma par-te da dieta alimentar que eles consomem, assimcomo sua principal fonte de nutrientes.

A experiência demonstra que plantassilvestres constituem importante par-te do sistema alimentar dessa região.A proteção da biodiversidade agrícolano ecossistema, aliada às práticas agrí-colas (cultivo misto, policultivo e não-uso de herbicidas e pesticidas), garan-tirão a continuidade da presença deespécies silvestres na culinária local.Essas espécies silvestres, a maioria ricaem micro nutrientes – como Betacaroteno, vitamina C, cálcio, ferro etc.– deveriam ser protegidas em vez de in-vestir-se em complementação nutri-cional por meios artificiais.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 25

amílias de traba-lhadores e tra-balhadoras ru-

rais, assentadas pelos governosfederal e estadual no MédioMearim, região central do esta-do do Maranhão, há 15 anosvêm desenvolvendo com suces-so sistemas agroextrativistas quecombinam agricultura, pecuáriae o extrativismo do coco de ba-baçu, uma palmeira nativa da re-gião. Seguindo os princípios daagroecologia, essas famílias, emseus cultivos orgânicos, tambémconhecidos como “roças cruas”,

Agroextrativismo:uma alternativa sustentável para a

produção familiar na região dos babaçuaisMiguel Henrique P. Silva e Helciane Araújo*

F não fazem uso da queimada, nãoderrubam palmeiras e não em-pregam agroquímicos. Ao pro-mover uma grande campanhapela preservação do meio ambi-ente e pela vida nos babaçuais,essa experiência inovadora con-quistou o Prêmio Chico Mendesde Meio Ambiente, organizadopelo Ministério do Meio Ambi-ente, e foi classificada entre as30 melhores tecnologias sociaisdo Brasil no Prêmio FundaçãoBanco do Brasil em TecnologiaSocial, instituído em conjuntocom a Unesco.

Mulheres quebradeiras de coco

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26 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Assim como os estados do Piauí, do Pará edo Tocantins, o Maranhão integra a chamada regiãodos babaçuais (18,5 milhões de hectares), sendo o maiorprodutor de babaçu, com 10,3 milhões de hectares.Em toda a região, cerca de 300 mil pessoas, denomi-nadas quebradeiras de coco de babaçu, sobrevivem doextrativismo do fruto da palmeira considerada a “mãe”,pois dela tudo se aproveita: com as palhas, as mulhe-res preparam suas moradias e utensílios de trabalho;do coco, extraem a amêndoa que lhes dá o azeite co-mestível e o óleo industrial; o mesocarpo serve comoum complemento alimentar; e o carvão produzido dacasca do coco é utilizado nos fogões domésticos. Estu-dos indicam que cerca de 68 subprodutos podem serextraídos dessa palmeira.

Na região do Médio Mearim, cerca de11 mil mulheres sustentam suas famí-lias com a extração e venda da amên-doa, do mesocarpo e da produção docarvão. Juntamente com os filhos emaridos, elas coletam e quebram ococo. As amêndoas são vendidas noscomércios locais ou trocadas por pro-dutos de primeira necessidade. Os pre-ços de venda variam bastante (entreR$0,40 e R$1,20/kg) em função doperíodo do ano e da região.

Mas o que nos dias de hoje aparece em abun-dância pode no futuro se transformar em um grandevazio. A floresta de babaçu está sendo devastada por

grandes proprietários decididos a ocupar as terras coma pecuária extensiva. Com programas de incentivo go-vernamentais e alegando a defesa de seus interesses,fazendeiros e empresas instaladas na região descon-sideram a economia do babaçu, praticada secularmentepelos diferentes grupos que vivem da produção familiar,e privatizam o coco, impedindo o acesso das mulheresaos babaçuais.

Em resistência a esse processo, as mulhereslutam pela implantação de leis municipais que garan-tam o livre acesso aos babaçuais, ainda que em ter-ras particulares, e que proíbam a devastação dosmesmos. O primeiro projeto de Lei Babaçu Livre foielaborado em 1997, no município de Lago do Junco,em um esforço coletivo de diversas organizações: aAssociação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Lagodo Junco e Lago dos Rodrigues (AMTR); a Associa-ção em Áreas de Assentamento no Estado doMaranhão (Assema); e o Movimento Interestadualdas Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). A par-tir de então, a luta se expandiu aos municípios deLago dos Rodrigues, São Luiz Gonzaga, Esperan-tinópolis, Capinzal do Norte e Imperatriz, noMaranhão, e Axixá, em Tocantins.

O que nos dias de hoje apareceem abundância pode no futurose transformar em um grandevazio. A floresta de babaçuestá sendo devastada porgrandes proprietários decididosa ocupar as terras com apecuária extensiva.

Trabalho de campo com grupo de mulheres

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 27

Desenvolvendo alternativasprodutivas sustentáveis

O sistema agroextrativista foi concebidodentro de um processo de organização cooperativistae associativista assumido pelas famílias em meadosdos anos 80, após uma década de luta pela posse daterra. As famílias assentadas formaram uma associa-ção que promoveu o uso de técnicas alternativas decultivo e que organizou a comercialização coletiva.

Fundada em maio de 1989, a Assema resul-tou justamente da necessidade das famílias dos municí-pios de Lago do Junco, São Luís Gonzaga do Maranhão,Esperantinópolis e Lima Campos se organizarem.

Em 1997, a Assema iniciou uma ex-periência inédita na região por meiodo plantio em “roças cruas”, no po-voado de Centro do Coroatá, municí-pio de Esperantinópolis, introduzindoduas inovações técnicas importantesnos sistemas tradicionais: o preparo daterra sem o uso da queimada e o plan-tio de “culturas brancas” em consór-cio com as palmeiras de babaçu. Es-sas práticas pioneiras foram importan-tes no sentido de demonstrar que a pal-meira não é um empecilho para o tipode agricultura tradicionalmente pra-ticado na região. Dessa forma, os re-sultados positivos dessas iniciativasestimularam a reflexão sobre a devas-tação dos babaçuais na área de abran-gência da Assema.

Com base nessa experiência, a Cooperativados Pequenos Produtores Agroextrativistas de Lagodo Junco iniciou a implantação de “roças cruas” entreseus filiados com três objetivos: erradicar o uso do fogopara preparo de áreas de cultivo no município; elimi-nar os longos períodos de pousio, visto que com o sis-tema inovador a mesma área de produção pode serutilizada seguidamente por muitos anos; e incentivar aprodução e a comercialização de produtos orgânicospelas famílias do projeto. Atualmente 32 famílias em-pregam o sistema e a cooperativa exporta óleo debabaçu in natura para a Inglaterra e para os EstadosUnidos. Em 2002 foram exportados 64.940 quilos, eem 2003, 58 mil quilos.

Outras iniciativas de apoio à produção es-timulam o desenvolvimento da consciência agroe-cológica nos filiados. No povoado de São José dosMouras, município de Lima Campos, foi construídauma unidade de desidratação de frutas, benefician-do 10 famílias que empregam sistemas agroex-trativistas. Em Esperantinópolis, as famílias inves-tem na extração e beneficiamento do mesocarpo dobabaçu. Já na comunidade de Santana, em São LuizGonzaga do Maranhão, foi criada uma unidade deprodução de geléias, compotas e licores. As mulhe-res que conduzem esse grupo procuram agregar va-lor a suas atividades pela diversificação da produ-ção e pela busca de mercados mais amplos.

Ao longo dos seus 15 anos, a Assema pro-curou gerar alternativas para dinamizar a econo-mia familiar dos seus associados e a preservação domeio ambiente por meio da inserção de novas pro-postas nas áreas de produção e de comercialização.Além disso, lutou pelos direitos sociais e econômicosdos sócios e sócias, pleiteando políticas públicas quepossam facilitar o acesso dos grupos organizados aserviços e benefícios oferecidos pelos programas go-vernamentais.

Ao longo dos seus 15 anos, aAssema procurou gerar

alternativas para dinamizar aeconomia familiar dos seus

associados e a preservação domeio ambiente por meio dainserção de novas propostasnas áreas de produção e de

comercialização.

*Miguel Henrique P. Silva:sociólogo e técnico do Programa de

Políticas Públicas da Assema.

Helciane Araújo:socióloga, jornalista e assessora

de comunicação da [email protected]

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28 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Sementes que frutificam:duas histórias de

paixão pelas sementesPaula Almeida e Adriana Galvão Freire*

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1Comerciante de gado.2Fazendeiro de quem arrenda terras.

á onze anos, or-ganizações daagricultura fami-

liar da Paraíba vêm realizando umintenso trabalho de revalorizaçãodas variedades locais tradicional-mente plantadas nos roçados, co-nhecidas localmente como as“Sementes da Paixão”. Para asmilhares de famílias atualmenteenvolvidas, resguardar essas se-mentes significa assegurar a au-tonomia técnica e o modo devida da agricultura familiar desen-volvido por gerações para a con-vivência com o semi-árido.

Conduzido pelo Pólo Sindical e das Orga-nizações da Agricultura Familiar da Borborema e as-sessorado pela AS-PTA, esse trabalho se desenvol-veu valorizando ensinamentos assimilados a partir dosaber e das práticas tradicionais dos próprios agricul-tores e agricultoras. Histórias de vida como as relatadasneste artigo municiaram grupos de agricultores-experi-mentadores de inspirações para que, juntamente com osconhecimentos científicos adquiridos em processos de for-mação, fossem desenvolvidas estratégias próprias para agarantia de ampla diversidade de sementes de boa quali-dade e em quantidades suficientes para “botar o roçadono rastro das chuvas”.

Maria de Edísio: uma apaixonadapelas sementes

Dona Maria de Lima e Seu Edísio residem nomunicípio de Solânea-PB. Desde que casaram, foi Maria

quem se ocupou de “botar” o roçado da família. Aindaem um tempo difícil, com a família pequena e o maridoora marchante1 ora trabalhando para o patrão2, ela obser-vava, escolhia e guardava as sementes que “davam cer-to”, aquelas que melhor se adaptavam ao clima seco, ofeijão mais saboroso, o milho que lhe rendia mais palha.Selecionadas as sementes, o plantio era todo consorcia-do: o algodão mocó junto com o milho, a fava, e o feijãoestendedor que subia pelo algodão.

Associações de espécies e de variedades, bemcomo rotações de culturas são práticas empregadas tra-dicionalmente pela agricultura familiar da região. Ro-çados contendo mais de sete espécies em consórciosão comuns. A variabilidade genética de espécies cul-tivadas na região também é significativa. Em um diag-nóstico realizado em 1997, foram encontradas em ape-nas seis comunidades 67 variedades de três espécies –feijão-de-arranque (Phaseolus vulgaris), feijão-macassa(Vigna unguiculata) e fava (Phaseolus lunatus). A ma-nutenção dessa ampla diversidade nos roçados do semi-árido é sem dúvida uma estratégia anti-risco que pro-porciona flexibilidade de manejo, um fator deter-minante para a estabilidade econômica e ecológica dossistemas agrícolas e para a segurança alimentar.

Maria em seu roçado e Zé Pequeno com as sementes da paixão

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 29

Maria lembra que desde 1972 passou a guar-dar as sementes que vem pesquisando de forma maissistemática. Com uma lista de critérios bastante apurada,separa as variedades mais produtivas, as mais aceitas quealcançam melhores preços no mercado e as mais saboro-sas. Todos os anos segue o mesmo ritual: separa as se-mentes, as seca ao sol, as mistura com as cinzas da foguei-ra de São João “para não dar gorgulho” e as armazena emgarrafões ou em silos metálicos feitos por seu filho.

O estoque familiar de sementes é uma estratégiafundamental para a convivência com as irregularidades cli-máticas do semi-árido, uma vez que garante a quantidade ea diversidade de espécies e variedades selecionadas para omomento exato de plantio. Em momentos de crise agudaprovocados por longos períodos de seca, os estoques po-dem atender às necessidades alimentares da família.

Nos períodos de inverno (chuvas), Maria nãotem restrições em compartilhar suas sementes com seusfilhos e vizinhos. Se eu perder, meus vizinhos podem ain-da ter. Não quero as sementes só para mim; quero paramim, para meus filhos e vizinhos, afirma. Procedendo as-sim, Maria assegura melhores condições de “guarda” desuas sementes e de todo o conhecimento a elas associado.As práticas de manejo e beneficiamento das sementes sãodessa forma transmitidas através de circuitos locais decomunicação, baseados na solidariedade e na reciprocida-de, valores tão comuns às comunidades rurais. Invisíveis aum observador desavisado, essas redes de intercâmbiomuitas vezes ultrapassam as fronteiras da comunidade eaté dos municípios.

A paixão de Maria pelo feijão macassa cariri e ocamapu, o mulatinho da vagem roxa, o carioca e o “milho60 dias” fez com que ela preservasse essas sementes poranos. Assim como ela, milhares de agricultores e agricultorasdo semi-árido, ao longo de gerações, reproduzem essas eoutras estratégias para conservar sua diversidade agrícola,para conservarem as suas sementes da paixão.

Uma paixão ameaçadaApesar de extremamente funcionais, as estra-

tégias de conservação das sementes da paixão são muito

vulneráveis face a alguns fatores de ordem estrutural quevêm colocando em risco não só a diversidade biológica dasespécies cultivadas, mas também os próprios códigossocioculturais responsáveis pela sua conservação.

No Agreste da Paraíba, o processo de minifun-dização é, seguramente, determinante na paulatinainviabilização das práticas tradicionais de manejo daagrobiodiversidade. À medida que os roçados se reduzeme os solos se depauperam com a intensificação do uso, ovolume anual de produção agrícola se torna insuficientepara atender simultaneamente às necessidades alimenta-res e à reposição dos estoques de sementes.

Nessas circunstâncias, a instabilidade climáti-ca da região é um fator agravante, já que faz os sistemasprodutivos extremamente vulneráveis ao comprometersuas capacidades de reprodução técnica. A ausência dechuvas tanto pode inviabilizar por completo a produção dosgrãos quanto pode levar as famílias a consumirem as semen-tes por necessidades prementes de alimentação. Ao final deperíodos prolongados de seca, o quadro de desabastecimentose generaliza, obrigando as famílias a lançar mão de diver-sificadas alternativas para a aquisição desse insumo, taiscomo: a compra em feiras livres ou mercados locais; os em-préstimos de sementes a juros; a sujeição a relações declientelismo, como a permuta de sementes por votos ou ou-tros favores.

As políticas governamentais também concor-rem para ameaçar o patrimônio genético mantido compaixão pela agricultura familiar. Ofertando sementes depoucas variedades desenvolvidas em centros de pesquisa –muitos dos quais situados em outros biomas brasileiros –, osprogramas oficiais de distribuição de sementes na Paraíbahistoricamente induziram os agricultores a utilizaremgenótipos pouco adaptados aos sistemas técnicos, às con-dições ambientais e às preferências socioculturais locais.Associados do Banco de Sementes de São Tomé

O estoque familiar de sementesé uma estratégia fundamental

para a convivência com asirregularidades climáticas do

semi-árido, uma vez que garantea quantidade e a diversidade de

espécies e variedadesselecionadas para o momento

exato de plantio. Em momentosde crise aguda provocados por

longos períodos de seca, osestoques podem atender às

necessidades alimentaresda família.

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30 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Banco de Sementes de São Tomé:uma história para crer

José Luna, mais conhecido como Zé Peque-no, é outro exemplo de agricultor familiar que aprendeudesde cedo a importância de guardar as sementes.

Meu pai nunca deixou de ter silos paraa família; guardava os legumes e tam-bém suas sementes. Guardava semen-tes para plantar e também abasteciaalguns vizinhos que sempre confiaramem seu feijão.

Assim, a diversidade, a fartura de legumes e asolidariedade na partilha das sementes marcaram a infân-cia do pequeno Zé.

Muito religioso, Zé Pequeno assumiu desdejovem a liderança em sua comunidade. Ainda hoje, lem-bra o ano de 1974. Após uma seca acentuada, os mora-dores de São Tomé, em Alagoa Nova-PB, ficaram semsementes para o plantio. Ao procurar o apoio da Igreja,Zé Pequeno recebeu um saco de feijão, um de milho e odesafio de fazer multiplicar essas sementes. Em uma reu-nião com a presença de representantes das dez famíliasmais necessitadas, foi criado o Banco de Sementes Co-munitário de São Tomé.

Naquele ano, cada um dos sócios fundado-res levou e plantou 10 quilos de feijão e dois de milho,

mediante o compromisso de devolver, ao final da safra,15 quilos de feijão e três de milho. Dessa forma, o Ban-co de Sementes pôde prosperar e, já no ano seguinte,possuía três sacos de feijão. Os sócios que já tivessem15 quilos armazenados retiravam apenas 13 para o plan-tio. O restante seria destinado ao empréstimo a outrasfamílias interessadas em aderir ao Banco. Após algunsanos adotando esse procedimento, 150 famílias esta-vam associadas.

A organização do Banco permitiu que a comu-nidade discutisse a importância do armazenamento do-méstico das sementes. O amadurecimento desse debateentre os associados levou a uma evolução no sistema co-munitário de seguridade de sementes que passam a com-binar o estoque coletivo com os estoques familiares.

Diante desse processo, houve uma natural di-minuição do número de sócios do Banco. Em 2003, ape-nas 51 famílias entre as mais necessitadas da comunidadeestavam associadas. Hoje muitas não dependem mais dosestoques do Banco para garantir os plantios de seus roça-dos e deixam suas sementes para as outras.

Para participar do Banco, o agricultor ouagricultora toma a semente emprestada, escolhendo asvariedades que deseja plantar.

O mais importante é o agricultor po-der plantar as sementes de sua paixão,aquelas em que ele confia, as que dese-ja possuir, afirma Zé Pequeno.

Feira de Sementes na I Festa Estadual da Semente da Paixão

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 31

*Paula Almeida: agrônoma, assessora técnica da [email protected]

Adriana Galvão Freire: bióloga, mestre emadministração rural, assessora técnica da AS-PTA.

[email protected]

Referências:

ALMEIDA, P.; CORDEIRO, A. Semente da Pai-xão: estratégia comunitária de conservação devariedades locais no semi-árido. Rio de Janeiro:AS-PTA, 2001.

ALMEIDA, P.; FREIRE, A. G. Conservando a Se-mente da Paixão: duas histórias de vida, duassementes para agricultura sustentável na Paraíba.In: CARVALHO, H. M. (org.) Sementes: patri-mônio do povo a serviço da humanidade. SãoPaulo: Ed. Expressão Popular, 2003.

SILVEIRA, L.; PETERSEN, P.; SABOURIN, E.Agricultura familiar e agroecologia no semi-ári-do. Avanços a partir do Agreste da Paraíba. Riode Janeiro: AS-PTA, 2002.

Na época de sua estruturação, em 1974, sóeram semeados dois tipos de feijão na comunidade: o ca-rioca e o ibra. Em 2003, o Banco armazenava 14 varieda-des de feijão e quatro de milho, além daquelas que sem-pre entram no estoque para serem testadas. Mais recen-temente os associados deram início ao trabalho de colhei-ta de sementes de outras espécies cultivadas, como alfa-ce, pimentão, coentro, tomate, milho d’angola, gliricídia,feijão-de-porco, guandu, mangirioba e mucunã. Tambémestão selecionando sementes de árvores frutíferas nativase aquelas exóticas adaptadas à região (ver artigo na pági-na 15 desta revista).

Aqui na nossa agricultura familiar nãotemos só semente de milho e feijão. Te-mos todos os tipos de sementes que agente traz, planta e verifica se dão certoem nosso campo. Sem contar com assementes de mamona, macaxeira, ba-tata-doce e aquelas que não existemno Banco, mas que fazem parte dosistema de troca comunitária. Divi-dimos as variedades uns com os ou-tros, conta Zé Pequeno.

E quando questionado sobre a importânciados bancos de sementes comunitários, a resposta é rá-pida e segura:

Garantir a quantidade, a qualidade, adiversidade e a disponibilidade de se-mentes como nossos pais já faziam.

Zé Pequeno também conta com orgulho queo trabalho desenvolvido pela comunidade de São Toméestá sendo reconhecido em toda a Paraíba. Com as expe-riências que possuem, já se criaram outros Bancos nomunicípio e também fora dele.

Estamos prontos para levar nossa ex-periência para onde for necessário. Nãoquero que fique só em São Tomé, masque se espalhe por toda a Paraíba e ondemais for preciso.

Um roçado de sementes da paixão

Na Paraíba, as histórias de Marias, Josés,São Tomé e outros tantos santos são encaradas como“sementes” pelas organizações da agricultura fami-liar. É assim que as “sementes da paixão” vêm germi-nando e fazendo crescer mais do que roçados: fazem flo-rescer a auto-estima de quem luta na terra e pela terra efrutificar a solidariedade e a capacidade de organização.

Foi plantando essas sementes que mais deuma centena de agricultores e agricultoras, porta-

dores de experiências, se tornaram protagonistas deum processo que tanto qualificou os antigos ban-cos de sementes e os estoques familiares, como vemampliando sistemas coletivos que assegurem o abas-tecimento e a diversidade de sementes.

Os bancos comunitários se multiplicaram,formando uma rede estadual com 205 unidades, em 60municípios. Por intermédio dela, entre 1999 e 2004,mais de sete mil famílias de agricultores tiveram acessoa aproximadamente 560 mil quilos de sementes de oitoespécies de cultivo e mais de 80 diferentes variedades.

Coordenada pela Articulação do Semi-Ári-do Paraibano – ASA-PB, a Rede Estadual de Ban-cos de Sementes foi determinante para a emergên-cia de um ambiente político-organizativo que cul-minou na formulação e na negociação de propostasalternativas às políticas de sementes do Governo doEstado da Paraíba. Desde 1998, a ASA-PB vem es-tabelecendo convênios com a Secretaria Estadualde Agricultura para o fortalecimento dos Bancoscom sementes de variedades locais. Em 2004, emparceria com a Companhia Nacional de Abastecimen-to (Conab), 161 toneladas de sementes de 45 varie-dades locais foram compradas dos próprios agricul-tores e plantadas pelos sócios dos Bancos.

Diante dessas conquistas, podemos afir-mar, com convicção, que ao valorizar as experiênciastambém plantamos roçados; roçados de cultura evalores fundamentais à convivência com o semi-ári-do, à construção da segurança alimentar e à preser-vação da biodiversidade.

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32 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

Maria Lúcia SousaCasa de Sementes de Barra Cancão

m 1987, em umevento do Pro-grama de For-

mação em Agroecologia condu-zido pelo Esplar – Centro de Pes-quisa e Assessoria, representan-tes de diferentes localidades doCeará refletiram a respeito da fal-ta de sementes para o plantioprovocada pela seca daquele ano.Foi nesse contexto que surgiu aproposta de realização de um tra-balho que garantisse o armaze-namento coletivo de sementes,e como desdobramento imedia-to foram criadas 18 Casas de Se-mentes Comunitárias1.

Com o passar dos anos houve um aumento signi-ficativo no número de comunidades interessadas em organi-zar suas próprias Casas de Sementes (ver Boxe). Diante danecessidade de articulá-las para promover o intercâmbio deexperiências, a troca de sementes e outras ações que deman-dassem uma atuação mais conjunta, em 1991 foi fundada aRede de Intercâmbio de Sementes do Ceará (RIS-CE).

Atualmente, a RIS-CE é composta por 130Casas de Sementes distribuídas em 15 municípios do esta-do, tendo aproximadamente três mil agricultores eagricultoras associados e beneficiando indiretamente14.840 pessoas. Anualmente, durante o Encontro da RIS-

Casas de sementescomunitárias

e o resgate da diversidade desementes locais no Ceará

Maristela Pinheiro e Letícia Peixoto*

CE, representantes das Casas de Sementes debatem, ava-liam e planejam as ações para o ano seguinte. Nessa mes-ma oportunidade, são realizadas Feiras de Sementes des-tinadas a favorecer o intercâmbio de variedades e conheci-mentos sobre elas.

Os processos de produção e armazenamentolocal de sementes estimulados pelas Casas de Sementestêm ampliado tanto a quantidade quanto o número dasvariedades, garantindo o plantio logo com o início da qua-dra invernosa. As Casas de Sementes integradas à RIS-CEtêm em seus estoques 25 variedades de milho, 40 de fei-jão, além de outros cultivos como gergelim, mamona,sorgo, moringa, fava, girassol, jerimum, melancia, melão,pepino, arroz, algodão, amendoim, quiabo e diversas es-pécies de plantas nativas e medicinais.

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1Também denominadas Bancos de Sementes em outras regiões.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 33

Como os períodos de estiagem são comuns mes-mo em anos de invernos regulares, as reservas estratégicasde sementes são fundamentais para garantir a possibilida-de de replantio dos roçados. Geralmente há estoques sufi-cientes para que cada sócio ou sócia plante uma área deroçado consorciado de até 2 hectares, além de um percentualde cerca de 30% correspondente à reserva estratégica.

Outra dimensão importante da organização dasCasas de Sementes refere-se ao incentivo à participaçãodas mulheres como sócias. Nos primeiros anos de funcio-namento, as Casas eram uma sociedade entre famílias enão entre pessoas. Procedendo dessa forma, a atuaçãodas mulheres se tornava invisível, porque em geral eram oshomens que representavam suas famílias. Reconhecendoque esse modelo reforçava a divisão sexual do trabalhotradicionalmente estabelecida na agricultura familiar, al-gumas alterações organizativas foram implementadas.Hoje, por exemplo, a mobilização para os eventos se fazpor meio de convites individuais para as pessoas associa-das e não mais para a família indiferenciadamente. A pro-gramação é feita de forma a compatibilizar a agenda doevento com os horários das atividades realizadas pelasmulheres. Além disso, garante-se sempre um espaço ade-quado para que elas possam levar seus filhos e filhas.

O reconhecimento do papel fundamental dasmulheres como detentoras de conhecimentos sobre varie-dades tradicionais, além da sua contribuição para uma mai-or e mais diversificada oferta de alimentos, é uma condi-ção para o sucesso das Casas de Sementes. Partimos dopressuposto de que a garantia da segurança alimentar enutricional está condicionada ao controle por parte dascomunidades locais de suas sementes. Portanto, é essen-cial que mulheres e homens igualitariamente tenham opoder de tomar decisões relativas à produção, à distribui-ção e ao consumo de alimentos culturalmente apropria-dos, nutritivos e seguros.

*Maristela Pinheiro: agrônoma e técnica do Esplar.Letícia Peixoto: assistente social e técnica do Esplar.

[email protected]

A Casa de Sementes é agarantia da nossa

independência. Temossementes para o plantio e

replantio do nosso roçado.Quando chove não

precisamos ficar esperando asemente do governo, que

nunca chega na hora e muitasvezes não nasce bem.

A Casa de Sementes de Barra Cancão, mu-nicípio de Canindé-CE, foi fundada em 1998. Paradar início ao trabalho, sócios e sócias estabelece-ram quais as necessidades do grupo, levando emconta a quantidade e a diversidade de sementesdisponíveis. A partir daí, estipularam a quantia quecada um(a) poderia tomar emprestado para o plan-tio do seu roçado, bem como o percentual de acrés-cimo que seria cobrado na devolução.

Todos os anos, no início do período chuvo-so, agricultores e agricultoras da Comunidade deBarra Cancão já sabem onde tomar sementes em-prestadas para plantar. Segundo o agricultorRaimundo Borges: A Casa de Sementes é a garan-tia da nossa independência. Temos sementes parao plantio e replantio do nosso roçado. Quandochove não precisamos ficar esperando a sementedo governo, que nunca chega na hora e muitasvezes não nasce bem.

Após a colheita, as sementes são selecio-nadas e devolvidas à Casa. O armazenamento éfeito em silos e/ou garrafas de plástico tipo PET, eo estoque é controlado pela coordenação local,composta por homens e mulheres. Para tanto, sãoutilizadas fichas de entrada e saída de sementes,cadastro de sócios(as) e recibos comprovantes deempréstimo e devolução.

O sucesso do trabalho tem sido responsá-vel pelo aumento do número de pessoas da comu-nidade querendo se associar. Aqui não temos tidoproblema do sócio pegar a semente emprestada enão devolver, afirma Maria Lúcia Sousa, uma dascoordenadoras.

Em sua fundação, a Casa de Sementes conta-va com 23 pessoas associadas, das quais apenas 30%eram mulheres. Atualmente o número de sócios au-mentou para 52, sendo 25 mulheres e 27 homens.

Barra Cancão: umaCasa de Sementes no

sertão cearense

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34 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

quinoa (Cheno-podium quinoa)e a cañahua

(Chenopodium pallidicaule) sãocultivos tradicionais no altiplanodos Andes e crescem em altitu-des entre três mil e quatro milmetros. Foram a maior fonte denutrição das comunidades aimarase quéchuas, mas durante os últi-mos séculos a área plantada comesses cultivos diminuiu dramatica-mente. Mesmo assim, esses grãosandinos têm ainda um valor es-tratégico para os povos do Peru eda Bolívia devido ao seu valor nu-

Cultivando ecomercializando

grãos andinosJosé Luis Soto, Wilfredo Rojas e Milton Pinto*

tritivo. Seu aporte de proteínas,por exemplo, é 12 a 21% maisalto do que o do trigo. Recente-mente a indústria de alimentos fi-cou interessada nesses grãos de-vido a uma crescente demanda deprodutos deles derivados.A Bolívia é o principal produtor de quinoa,

com uma área de cultivo estimada em 35.700 hecta-res. Aproximadamente 65% dela é cultivada paraautoconsumo e 35% para a venda no mercado nacio-nal e internacional. A área de cultivo da cañahua émuito menor: de mil a 1.500 hectares, dos quais 85%são destinados ao autoconsumo.

A fundação boliviana Proinpa é uma insti-tuição de pesquisa que promove o cultivo de grãos

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Agricultores avaliando as variedades de quinoa nas parcelas de cultivo

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 35

andinos. Seu objetivo é contribuir para a garantia dasegurança alimentar, promovendo a conservação e ouso das diferentes variedades desses cultivos. A Proinpaassessora os agricultores para a produção da quinoa eda cañahua tanto para o consumo doméstico quantopara o mercado.

Variedades promissoras

Atualmente, poucas variedades são cultiva-das pelos agricultores, mas há muitas outras que estãoarmazenadas no Banco Nacional de Grãos Andinos àdisposição deles. Além disso, a Proinpa tem seu pró-prio programa de melhoramento genético. É impor-tante que os agricultores estejam a par das diferentesvariedades disponíveis para que possam escolher as maisapropriadas a sua situação.

No ano de 2002, a Proinpa levou a caboum exercício de avaliação participativade variedades existentes na coleção doBanco Nacional de Germoplasma, as-sim como das variedades promissorasdo seu programa de cultivos. O propó-sito foi o de que os pesquisadores ti-vessem conhecimento dos critérios deseleção empregados pelos agricultores,e que esses últimos tomassem conhe-cimento das variedades disponíveis.

No distrito de La Paz, Bolívia, foram selecio-nadas comunidades com base em seu interesse em cul-tivar quinoa e cañahua e na sua capacidade de produ-ção. Cinco comunidades participaram da avaliação dasvariedades de quinoa e quatro das de cañahua. Foraminstaladas Escolas de Campo para Agricultores, e seestabeleceram parcelas de demonstração com diferen-tes variedades. Alguns participantes das Escolas deCampo, homens e mulheres, foram designados pararealizar as avaliações. Três características foram con-sideradas: as plantas em estado de floração, os grãoscolhidos e as propriedades culinárias.

Comercialização

Atualmente, os grãos de quinoa e cañahuasão vendidos nos mercados locais. Neles, o produto éhabitualmente comprado a um baixo preço pelos inter-mediários informais que os tornam a vender com algum

acréscimo. De qualquer forma, há uma demanda cres-cente dos produtos derivados da quinoa e da cañahua.A pequena agroindústria demanda grandes volumes doproduto, mas em geral não há suficiente quantidade equalidade para atendê-la. Freqüentemente, a quinoa ea cañahua oferecidas pelos agricultores apresentam 12a 15% de seu peso em impurezas, e as entregas sãolimitadas e irregulares. Segundo um fabricante de pro-dutos alimentícios: Com um material assim, é difícil ob-ter uma boa produção devido ao alto teor de impure-zas, como as pedras que estragam as máquinas. Issosignifica que dificilmente podemos tirar proveito pelo altocusto do processamento.

A Proinpa busca vincular os produtores como ainda pequeno, mas emergente setor agroindustrialda região, de forma a consolidar a cadeia produtiva eassim aumentar os benefícios para ambos. Um projetoorientado para a valorização das espécies subutilizadasna segurança alimentar e na geração de renda dascomunidades rurais pobres está sendo implementadocom o apoio do Instituto Internacional de RecursosFitogenéticos (IPGRI) e do Fundo Internacional parao Desenvolvimento Agrícola (Fida).

Indústria alimentar

Para conseguir estabelecer um vínculo dire-to entre a pequena indústria e os produtores, a Proinpaorganizou em 2003 uma visita dos agricultores da co-munidade de Jalsuri a uma empresa boliviana que pro-cessa grãos andinos, a Processadora de Cereais Andina.Posteriormente, o gerente da companhia visitou acomunidade e viu como as diferentes variedades – cadauma com suas próprias características – cresciam nos

A Proinpa busca vincular osprodutores com o ainda

pequeno, mas emergentesetor agroindustrial da

região, de forma aconsolidar a cadeia

produtiva e assim aumentaros benefícios para ambos.

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36 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

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*José Luis Soto, Wilfredo Rojas e Milton Pinto:membros da Proinpa - Regional Altiplano.

[email protected];[email protected]; [email protected]

Até agora, 27 famílias membrosda Cooperativa têm vendido

quinoa de alta qualidade apreços que excedem os preços

do mercado local em até 25%, ea companhia está satisfeita com

o abastecimento, pois atendesuas necessidades de matéria-

prima para a produçãode lascas de quinoa.

Avaliação de pratos preparados com quinoa

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campos. Durante as duas visitas houve intercâmbio deinformação sobre o cultivo e o processamento da quinoa.Um debate foi organizado entre as partes interessadaspara definir o preço de venda da quinoa; o lugar e ascondições de entrega; sua freqüência e a forma de pa-gamento. Isso permitiu a assinatura de um contrato entrea cooperativa de agricultores Jalsuri Irpa Chico e aProcessadora de Cereais Andina, no qual os agriculto-res se comprometeram a incrementar a área de quinoae melhorar a qualidade do produto. A empresa, por suavez, se comprometeu a comprar toda a produção queos agricultores pudessem oferecer, a um preço maior doque eles conseguiriam no mercado local. A Proinpa con-tinua envolvida nesse acordo, já que oferece assistênciatécnica aos agricultores para ajudá-los a obter um pro-duto final de boa qualidade.

Até agora, 27 famílias membros da Coope-rativa têm vendido quinoa de alta qualidade a preçosque excedem os preços do mercado local em até 25%,e a companhia está satisfeita com o abastecimento,pois atende suas necessidades de matéria-prima paraa produção de lascas de quinoa. Essa experiência pilo-to foi implementada com a ativa participação dos agri-cultores e processadores. As futuras atividades podemser direcionadas para envolver também outros atoresda cadeia de produção.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 37

uintais domésti-cos são reserva-tórios de agro-

biodiversidade em comunidadesrurais mundo afora. Em muitasculturas, as mulheres são as res-ponsáveis pela manutenção des-sa prática. Essa tarefa cotidianaconstitui-se em uma importan-te atividade doméstica, garantin-do o acesso das famílias a umadieta saudável e adequada aogosto e às tradições locais. Asmulheres preservam a agrobio-diversidade através de planta-ções em alta densidade de espé-cies subutilizadas de forma queseus quintais se transformam emum laboratório de experiênciaspara a adaptação de variedadeslocais e não-domesticadas.

Essa rica diversidade é importante não somen-te para a segurança alimentar e estabilidade econômicadaquele lar em particular, mas também para a saúde dosistema agroecológico como um todo. Diversos estudosprovenientes da Ásia, África e América Latina concluemque os quintais “contêm espécies de ciclo curto contribu-indo para alimentar a família durante o período da fome,até a colheita dos cultivos principais, são reservas estraté-gicas de material genético, funcionam como espaços deconservação de variedades especiais ou preferenciais, ecomo locais de experimentação de novas variedades”.

Legado culturalO quintal doméstico é um elemento proemi-

nente na paisagem rural de Bangladesh e pode ser encon-trado na maioria dos lares das comunidades. Eles são cul-tivados e cuidados exclusivamente pelas mulheres. Locali-zam-se no interior da propriedade familiar e funcionamcomo despensas naturais às quais as mulheres recorrem

para o preparo das refeições diárias. Elas demonstram for-te preferência pelo uso de variedades locais tradicionaisem detrimento das comerciais de rápido crescimento. Con-sideram que as variedades locais são as únicas capazes dese adaptar com perfeição às especificidades do contextoagroecológico local. Além disso, consideram que essasvariedades locais representam um importante legado cul-tural. Ao guardar as sementes produzidas em seus quin-tais e trocá-las com vizinhos, amigos e parentes, conser-vam a agrobiodiversidade.

Em 2002, um estudo realizado em duas vilas deBangladesh procurou a melhor maneira de promover ocultivo e a conservação das espécies encontradas nos quin-tais. Estudos anteriores concluíram que as mulheres deBangladesh preferiam as variedades locais porque essascozinhavam mais rápido e eram uma fonte importante devitaminas. Elas também apresentam uma forte preferên-cia pelas variedades nativas de árvores frutíferas.

Quintais domésticos:uma responsabilidade cultural

Emily Oakley*

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Variedade de sementes para quintais domésticosFo

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38 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

O papel das mulheresAs comunidades estudadas – Bishnapur e

Baushid – localizam-se nas áreas inundadas da planíciedo Centro-Oeste de Bangladesh, a aproximadamente duashoras da capital Dhaka. Embora Bishnapur seja menosisolada e mais independente em termos de agricultura doque Baushid, ambas as comunidades apresentam o mes-mo nível de produção oriunda dos quintais domésticos.

Setenta e cinco mulheres adultas foram entre-vistadas pelo estudo, cujo objetivo era descobrir comosuas preferências e escolhas influenciavam o cultivo deuma série de espécies nos quintais. A média de idade dasentrevistadas era de 35 anos e a maioria possuía nível deeducação formal limitado. Praticamente todas as mulhe-res que participaram do estudo eram economicamente vul-neráveis e suas famílias passavam por períodos regularesde restrição alimentar.

Os quintais domésticos em Bangladesh são nor-malmente considerados como importante fonte de alimen-tos. De fato, constituem exemplos de sucesso de comovariedades adaptadas localmente podem contribuir paramaior segurança alimentar. Ademais, desempenham im-portantes funções econômica, cultural e agroecológica.Representam também um papel relevante na seguridadefinanceira de lares rurais e ajudam a reduzir a dependênciacom relação a frutas e verduras oriundas dos mercadoslocais. Mais da metade das mulheres entrevistadas relatoutambém vender uma parte da colheita quando há excessona produção, de forma a incrementar a renda doméstica.Várias se especializaram na venda de sementes de variedadeslocais de frutas e verduras a fim de arrecadar renda extra.

Alta densidade da diversidadeEm Bishnapur e Baushid, os quintais domésti-

cos, espaços surpreendentemente pequenos, mantêm altaconcentração de grande diversidade de espécies e varieda-des. Quintais são estabelecidos em qualquer espaço dis-ponível ao redor da casa e, em geral, não passam de algunsmetros quadrados. Cerca de 60% das mulheres relataramque seus quintais têm menos que 50m², mas que plantamem média 16 cultivos agrícolas diferentes, além de umnúmero surpreendente de espécies frutíferas, olerícolas econdimentares.

Relatam também que semeiam um grande nú-mero de cultivos de forma a minimizar os riscos de perda emaximizar a produção global do quintal. Ao total, são 25tipos de frutas, 29 de legumes e verduras, e 12 de condi-mentos cultivados nas duas comunidades. Em geral, abo-brinhas, abóboras e verduras nativas são as espécies maiscultivadas, e variedades locais de manga, jaca, mamãopapaia, goiaba, banana, grapefruit, também são comuns.

As plantações requerem pouco espaço. Abri-gos e cercas são construídos com treliças com o objetivode maximizar o espaço vertical e horizontal. Os legumes everduras anuais de pequeno porte ocupam o estrato maisbaixo do quintal. No nível imediatamente acima estão as

espécies bianuais de porte superior, como o inhame. Es-truturas de bambu sustentam as plantas trepadeiras comoa abobrinha, as vagens e abóboras. Uma mistura de árvo-res frutíferas compõe o estrato superior. As variedadeslocais foram selecionadas com base na habilidade desen-volvida desde criança com o convívio com esse sistemaintensivo de cultivo. Embora os quintais sejam cultivadosem terras marginais, as variedades locais são altamenteprodutivas, requerem poucos insumos externos e são ca-pazes de sobreviver às freqüentes inundações típicas deBangladesh.

As mulheres de Bishnapur e Baushid têm umconhecimento muito sofisticado do seu próprio sistemaagrícola e possuem critérios precisos para determinar asvariedades a serem cultivadas. Quando solicitadas a enu-merar as características desejáveis para o cultivo dos quin-tais domésticos, suas respostas revelaram não apenas umcomplexo processo de tomada de decisão, como tambémos múltiplos usos e manejos das variedades empregadas.Uma vez que o destino da produção é, antes de tudo, oconsumo da família e não o mercado, as mulheres dãodestaque ao sabor, à adaptação agroecológica, aos usosculinários e ao valor nutritivo dos alimentos cultivados.Todavia, elas também levam em consideração a produtivi-dade e consideram que as variedades locais desenvolvem-se bem nas condições dos quintais.

As variedades locais de legumes e verduras têmgrande significado, pois são consideradas parte da culturae das tradições alimentares. As de abóboras, por exemplo,apresentam um amplo período de desenvolvimento, vege-tam em telhados, cozinham rapidamente, além de teremfrutos e folhas que são úteis para uma série de propósitos.

As variedades locais também são preferidasporque se adaptam melhor ao clima, ao solo e às pragaslocais, além de crescerem sem o uso de fertilizantes eagrotóxicos utilizados nas variedades comerciais. Tantoem Bishnapur, quanto em Baushid, não há praticamentenenhuma família que faça uso de agrotóxicos nos quintaise somente 17% delas empregam fertilizantes químicos.As mulheres descobriram que as variedades locais respon-dem melhor às práticas alternativas de controle de pragas,como cinzas, pó de semente de juta e água de arroz fer-mentado. Ademais, essas variedades se desenvolvem bemcom fertilizantes orgânicos como esterco, compostos, cin-zas e folhas dos quintais.

Normalmente se diz que a razão da quase ausên-cia de variedades de alto rendimento em quintais domésti-cos é que as mulheres ainda não as teriam experimentado.No entanto, em Bishnapur e Baushid essa explicação não éverdadeira. As sementes das variedades de alto rendimentoestão disponíveis e, entretanto, as mulheres preferem man-ter a confiança em sua rede local de sementes. Em ambas ascomunidades, apenas 10% das mulheres afirmam usar umaou mais variedades de alto rendimento em seus quintais,embora muitas delas já as tenham experimentado. Os moti-vos de não continuarem a cultivar esse tipo de variedadesão: o fato de não apreciarem o gosto nem a textura dasvariedades comerciais de frutas e verduras; suas reduzidas

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 39

qualidades culinárias; grande quantidade de tempo e deenergia para cozinhar; e, em alguns casos, o fato de que ociclo curto impede o plantio escalonado de acordo com asnecessidades domésticas.

A autoridade das mulheresAs mulheres são responsáveis por todas as tare-

fas ligadas ao desenvolvimento e manutenção dos quin-tais domésticos, incluindo a preparação da terra, sua lim-peza, a colheita e o armazenamento de sementes. Seutrabalho é visto como uma extensão das suas tarefas do-mésticas e está integrado à rotina diária. Uma mulher deBishnapur descreveu seu trabalho no quintal da seguintemaneira:

“Eu decido o que plantar no quintal.Seleciono as verduras que tiveram umbom desempenho no ano anterior e asplanto de novo.Vou ao quintal e vejose há condições do solo para plantio.Manejo as frutas para seu amadureci-mento, tomo conta diariamente doprogresso de cada fruta e me certificode que não está faltando nenhuma.Quando planto, preciso me assegurarque as plantas vão germinar. Cuido dassementeiras. Colho e cozinho as frutase verduras. Se plantas morrem, as subs-tituo. Retiro as plantas espontâneaspara dar mais espaço para a plantação.Preparo o solo, arejo-o, e me certificode que está bem drenado. Quando osolo está seco, semeio de novo.”

Mulheres de todas as faixas de instrução, idadee renda cultivam seus quintais domésticos. Essa arte vempassando de geração em geração através da tradição oral,observação e experiência prática. Em todos os períodosde suas vidas, as mulheres estão, em alguma medida, en-volvidas com o cultivo nos quintais; o fato de que as mu-lheres fiquem reclusas em casa, segundo as tradições cul-turais de Bangladesh, faz com que elas cooperem entre sinas tarefas ligadas aos quintais. Isto incentiva o fluxo deinformação sobre seleção de espécies para plantio, os mé-todos de plantio e seu manejo. Além disso, mulheres jo-vens têm acesso às variedades locais através da herançamaterna ou de suas sogras. Noivas freqüentemente tra-zem consigo sementes de sua comunidade natal quandose casam, promovendo, dessa forma, uma difusão das varie-dades. O alto fluxo de intercâmbio de sementes no interiore entre comunidades vizinhas contribui para a diversidadegenética dos cultivos.

Mulheres mantêm a diversidade

Embora o aumento do cultivo de variedades dearroz de alto rendimento em Bangladesh tenha conduzi-

do a uma diminuição geral do cultivo de variedades tradi-cionais, como as de arroz, oleaginosas em geral, e milheto,os quintais continuam a ser santuários de agrobio-diversidade. Tanto em Bishnapur, quanto em Baushid, asmulheres expressaram um compromisso de conservar asvariedades locais, pois as consideram parte da tradiçãocultural e de sua responsabilidade. As variedades locaissão uma parte importante da dieta diária e fornecem osingredientes necessários para os pratos servidos em fes-tas. De acordo com uma mulher de Baushid, “se eu pararde cultivar as espécies locais alimentares, quem dará con-tinuidade à tradição?”

Lições para praticantesResponder à questão – Como a preferência das

mulheres por variedades locais pode ser valorizada em estra-tégias de conservação da agrobiodiversidade? – pode suge-rir que Organizações Não-Governamentais (ONGs) devemencorajar redes informais de aprendizado através das quaismulheres mais velhas possam promover o treinamento dasmais jovens nas técnicas próprias do cultivo de quintaisdomésticos. Podem também iniciar campanhas educacio-nais para encorajar o uso de variedades locais e, conseqüen-temente, reforçar o entendimento de que variedades dealto rendimento não são a única opção.

*Emily Oakley: [email protected]

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40 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

defesa do direitode todos os cam-poneses e dos

povos tradicionais de terem livreacesso ao uso da biodiversidade e,em especial, de cultivarem suas se-mentes é a premissa da Campa-nha Sementes Patrimônio dos Po-vos a Serviço da Humanidade, pro-movida pela Via Campesina Inter-nacional. Lançada em 2003 porocasião do Fórum Social Mundialem Porto Alegre, a Campanha pre-tende ser um instrumento de uni-ficação das pautas e agendas dosmovimentos sociais camponeses e

de diversas entidades apoiadoras.Seu objetivo é mobilizar a socie-dade contra a privatização da vidae dos meios de reprodução bioló-gica tal como defendem empresastransnacionais dos ramos agrícolae farmacêutico.

Um conjunto de proposições defendidas pelaVia Campesina associa-se à Campanha e dá consistênciaàs lutas contra o modelo convencional de agricultura e asregulações do comércio internacional exercidas pela Or-ganização Mundial do Comércio (OMC). Entre essas pro-posições estão a promoção da soberania alimentar dospovos; a agroecologia como estratégia produtiva campo-nesa; a luta pela defesa dos territórios; a valorização dasculturas e dos conhecimentos locais; e a eqüidade de gê-neros e gerações. Essas diretrizes garantem a identidade

O MST e a Campanha Sementes Patrimôniodos Povos a Serviço da Humanidade

Ciro Eduardo CorrêaDenis Monteiro*

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Diagnóstico da agrobiodiversidade no assentamento Primeiro de Junho, Tumiritinga – MG

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: MST

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 41

política da Campanha entre os movimentos sociais vincu-lados à Via Campesina que pautam o tema de acordo comas realidades específicas dos mais de 80 países nos quaisestão presentes.

No Brasil, a Via Campesina é constituída peloMovimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Movimen-to dos Atingidos por Barragens (MAB), Comissão Pasto-ral da Terra (CPT), Movimento de Mulheres Camponesas(MMC), Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil(Feab) e Pastoral da Juventude Rural (PJR).

As iniciativas do MST

Para o MST, a Campanha vem se constituindoem uma importante “porta de entrada” para a introduçãodo debate sobre o modelo tecnológico junto as suas ins-tâncias deliberativas e setores, bem como junto a sua basesocial, presente em 23 estados com aproximadamente 300mil famílias assentadas e 150 mil acampadas. Além disso,vem permitindo implementar ações práticas voltadas paraa promoção da agroecologia nos assentamentos e acam-pamentos.

Ao favorecer a incorporação de uma nova pers-pectiva crítica quanto ao modelo tecnológico no MST, aCampanha deverá paulatinamente extrapolar as temáticasdo resgate, da multiplicação e do uso de sementes, e evo-luir para um Programa Ambiental mais abrangente queintegrará novas dimensões relacionadas ao desenvolvimen-to do campesinato no Brasil.

Levar adiante esse desafio é uma tare-fa que deve ser assumida pelo conjun-to do Movimento, cabendo a todos ossetores e coletivos pautarem o tema eelaborarem iniciativas, promovendo amassificação dos conceitos e das pro-posições estratégicas. As ações tam-bém devem ser articuladas com diver-sas parcerias, principalmente com osdemais movimentos da Via Campesinae outros simpatizantes e apoiadores doMovimento.

Estando profundamente atrelada à luta contra atransgenia, a Campanha também terá de incentivar deba-tes e apresentar alternativas concretas a esta tecnologiaque chega para reiterar e aprofundar o modelo de agricultu-ra socialmente excludente e ambientalmente predatório quedeita suas raízes nos primórdios da história brasileira. Nessesentido, ela deverá ser um símbolo de resistência e supera-ção ao agronegócio de monoculturas para exportação, de-marcando a disputa de projetos de sociedade. Devemosinseri-la nas mobilizações de massa, nas negociações comgovernos e no dia-a-dia da nossa base social.

A Rede Nacional Bionatur deSementes Agroecológicas

A Bionatur é uma das principais iniciativas doMST na área do resgate, melhoramento, multiplicação edistribuição de sementes agroecológicas. Proposta por doisgrandes amigos do MST, João Rockett e Sebastião Pinheiro,como alternativa ao oligopólio na produção de sementesde hortaliças constituído no Brasil, ela foi criada em 1997pela Cooperativa Regional dos Agricultores Assentados daReforma Agrária (Coperal). Aceito o desafio, a Bionatur seestruturou como a primeira empresa social da América Lati-na dedicada à produção e à comercialização de sementesagroecológicas de hortaliças.

A Bionatur não trabalha com híbridos. Produzexclusivamente sementes de variedades possibilitando,caso seja viável pelas condições naturais, que os agriculto-res que as utilizam possam multiplicá-las, não necessitan-do comprá-las anualmente. Além disso, as sementes são

Estando profundamente atreladaà luta contra a transgenia, aCampanha também terá de

incentivar debates e apresentaralternativas concretas a esta

tecnologia que chega para reiterare aprofundar o modelo de

agricultura socialmente excludentee ambientalmente predatório que

deita suas raízes nos primórdiosda história brasileira.

Sementes Agroecológicas Bionatur

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: MST

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produzidas por famílias camponesas que empregam pro-cessos agroecológicos. O objetivo é que a produção desementes agroecológicas passe a ser um componente in-tegrado aos sistemas de produção de um grande númerode famílias e de assentamentos, criando novas possibilida-des econômicas. A comercialização das sementes Bionaturé realizada por intermédio de organizações populares esindicais simpatizantes da reforma agrária e da agriculturacamponesa e comprometidas com a agroecologia. Os pre-ços de suas sementes, em média, são iguais ou inferioresaos praticados pelas empresas no mercado convencional.

Em seu desenvolvimento, a Bionaturdeve potencializar a condição orga-nizativa que o MST oferece. Deve, por-tanto, estabelecer os cultivos e a dis-tribuição de sementes de forma descen-tralizada, buscando a regionalização egarantindo sementes com maior capa-cidade de adaptação local e com me-nor gasto energético. Nesse sentido, aCampanha Sementes Patrimônio dosPovos a Serviço da Humanidade per-mite o fortalecimento da Bionatur.

Além da produção em sua sede em Hulha Ne-gra-RS, atualmente a empresa tem campos de cultivo emdiversos municípios da metade sul do Rio Grande do Sul,no oeste Catarinense e no norte de Minas, este últimoem parceria com o Centro de Agricultura Alternativa(CAA). Na continuidade desse seu processo de expan-são, está se organizando para implantar os primeiros cul-tivos no Paraná, em Goiás, no Distrito Federal e no ser-tão nordestino, onde, no início de 2004, alguns camposde produção foram perdidos em função das enchentesocorridas. Em 2005, planeja-se produzir 10 toneladas de

sementes de mais de 75 espécies e variedades de hortali-ças, constituindo a Rede Nacional Bionatur SementesAgroecológicas.

Os DiagnósticosParticipativos da Biodiversidade

Com o apoio de diversas pessoas e instituições,o MST traçou e está executando em 2004 uma série deiniciativas para dar encaminhamentos práticos à Campa-nha. Foi constituído um coletivo nacional que coordena aimplementação das ações nas diferentes regiões e estadose que atua no sentido de nivelar conceitos, princípios,objetivos e metodologias. Um conjunto de seminários re-gionais, envolvendo lideranças e técnicos do Movimento,foi realizado com o objetivo de planejar como serão leva-dos a cabo os Diagnósticos Rápidos Participativos daBiodiversidade (DRPBIO) em cada um dos estados. Esseseventos tiveram inicialmente um caráter piloto em assen-tamentos priorizados pela sua organicidade interna e ca-pacidade de irradiação da proposta nos respectivos esta-dos onde foram realizados (ver Boxe).

Além de diagnosticar a realidade do uso e domanejo da biodiversidade local, os DRPBIOs vêm exer-cendo a função de mobilizar as famílias dos assentamen-

Além de diagnosticar arealidade do uso e do manejoda biodiversidade local, osDRPBIOs vêm exercendo afunção de mobilizar as famíliasdos assentamentos para aimplementação das açõesestratégicas da Campanha.

Coordenação político-pedagógica do DRPBIO do Assenta-mento Primeiro de Junho, Tumiritinga-MG

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: MST

Assembléia do DRPBIO, assentamento Chico Mendes, Icó – CE

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: MST

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 43

Entre os dias 13 e 18 de julho de 2004, noassentamento Primeiro de Junho, localizado nomunicípio de Tumiritinga-MG, no Vale do RioDoce, realizou-se o DRPBIO piloto da regiãoSudeste. Sessenta técnicos(as) e agricultores(as)estiveram juntos estudando a realidade da co-munidade e discutindo propostas de ação. Pormeio da realização de mapas falantes, de cami-nhadas por alguns pontos-chave da área, e daelaboração de calendários sazonais e diversos dia-gramas sobre os sistemas de produção, as famí-lias puderam debater sobre a agricultura no as-sentamento. Ao final, organizou-se uma assem-bléia na qual as principais conclusões do diagnós-tico foram apresentadas e debatidas.

O diagnóstico evidenciou a grande quan-tidade de espécies e variedades mantidas e ma-nejadas nos sistemas produtivos do assentamen-to e chamou a atenção para a existência de gran-de consciência coletiva sobre a necessidade deenfrentar os problemas ambientais da comuni-dade. Foram identificadas várias práticas agro-ecológicas já adotadas por famílias. A pergun-ta que se colocou de imediato para o grupo en-volvido foi: Ccmo valorizar e dar seqüência àsiniciativas já existentes no assentamento e, aomesmo tempo, responder aos problemas identi-ficados no diagnóstico? Um conjunto de pro-postas foi elaborado para ser encaminhado ain-da no ano de 2004. Entre elas destacam-se: fa-zer com que o próximo plantio do milho “depaiol” seja consorciado com leguminosas; darinício a um processo de transição agroecológicana criação de frangos para corte e galinhas depostura, a partir da substituição das raças co-merciais por outras mais adaptadas ao local, eda mudança da ração convencional para pro-dutos encontrados na própria comunidade.

tos para a implementação das ações estratégicas da Cam-panha. Até setembro de 2004 já haviam sido concluídos17 diagnósticos, nos quais técnicos e lideranças foramcapacitados para replicar a metodologia nos demais as-sentamentos, organizando a base da Campanha.

A continuidade do processo deverá ser bastan-te variável de estado para estado. No entanto, a constitui-ção de bancos de sementes comunitários é uma propostapresente em quase todos os assentamentos. A imple-mentação de quintais diversificados, de sistemas agro-florestais, de sistemas Voisin de manejo de pastagens, derepovoamento de florestas nativas, de eventos de capaci-tação e a organização de grupos para trabalhar com arte-sanato estão entre as propostas surgidas nos debates en-tre as famílias envolvidas nos diagnósticos.

A realização de concursos de redação e de de-senho em todas as escolas do MST e de olimpíadasparticipativas para identificar famílias e assentamentos quepossuem maior diversidade preservada são outras iniciati-vas da Campanha que merecem destaque. Através dessesprocessos, busca-se mobilizar a comunidade escolar nosassentamentos e acampamentos bem como provocar odebate e estimular ações práticas da base social do Movi-mento em torno das propostas da Campanha.

Embora estejamos contando com assessoriasde técnicos com amplo acúmulo de trabalho nesse campoe com subsídios teóricos sistematizados em livros e cartilhaspublicadas pelo Movimento e por instituições parceiras,todas as ações implementadas se pautam na valorizaçãodo conhecimento dos camponeses que no dia-a-dia mane-jam a agrobiodiversidade como seus grandes guardiões. Osegredo de todo esse processo está na forte mística quealimentamos em relação à força e à coragem do povo orga-nizado que luta por uma vida melhor e com mais dignida-de e que não se deixa massacrar.

O segredo de todo esseprocesso está na fortemística que alimentamos emrelação à força e à coragem dopovo organizado que luta poruma vida melhor e commais dignidade e que não sedeixa massacrar.

O Diagnóstico RápidoParticipativo da Biodiversidadedo assentamento Primeiro de

Junho – Tumiritinga – MG

*Ciro Eduardo Corrêa e Denis Monteiro: membros dosetor de produçaõ, cooperação e meio ambiente e do

coletivo nacional da Frente de Meio Ambiente do [email protected]

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44 Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004

cir Tullio, agricul-tor familiar doFaxinal Marme-

leiro de Baixo, município de Re-bouças-PR, deposita na terra aprimeira semente no primeiro en-saio de avaliação de variedadescrioulas de milho realizado no Cen-tro-Sul do Paraná. No segundo se-mestre de 1993, esse gesto de-marcou o início de um movimen-to de resgate cultural que susten-ta o amplo processo social que des-de então vem se consolidando naregião com vistas à reconstruçãoecológica da agricultura.

A semente que caiuem terra boa:

José Maria Tardin, André Emílio Jantara,Rosângela Maria Pinto Moreira, Josué Maldonado Ferreira*

Palco da exuberante floresta de araucária, oCentro-Sul do Paraná foi um dos primeiros espaços ocu-pados pelos neo-europeus, em uma longa e dolorosa su-cessão de conflitos com os povos botocudos, kaingáng eguaranis. Já no início do século passado uma nova levade imigrantes europeus chega para se somar aos cabo-clos, promovendo um verdadeiro amálgama de referên-cias e práticas agriculturais. Tão extensa e complexa foia reunião desses elementos, que a rigor se torna impra-ticável identificar sistemas técnicos puramente caboclosou puramente europeus empregados nas unidades fami-liares na região. Talvez seja no plano do manejo daagrobiodiversidade onde melhor se percebam essa mis-cigenação e diversificação cultural. A assimilação pau-latina dessas diferentes influências, sobretudo no quese refere aos hábitos alimentares e às condutas técni-

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a trajetória de um movimento socialem defesa da agrobiodiversidade

Dia do Campo - avaliação de variedades crioulas. Cruz Machado/PR

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 45

cas, estimulou práticas de manutenção e de intercâm-bio dos recursos genéticos entre as famílias, moldandoa estrutura e a composição dos agroecossistemas(Petersen et al, 2002).

No calor do processo de reação política dasociedade brasileira, no início dos anos 80, por iniciati-va da Comissão Pastoral da Terra (CPT), as prega-ções renovadoras da fé cristã no Deus da Vida, formu-ladas pela teologia da libertação, encontram “terra boa”nos corações e mentes de agricultores e agricultoras daregião. Assim, o trabalho da CPT promoveu a emer-gência de um vigoroso movimento social, que culmi-nou na fundação dos sindicatos de trabalhadores ru-rais, das associações comunitárias, e de variadas orga-nizações informais.

Os esforços políticos das organizações sevoltaram naquele momento para a con-quista de direitos previdenciários, a lutapela reforma agrária, a socialização doacesso ao crédito rural, a comercializaçãoda produção agrícola e a compra coleti-va de insumos modernos. Naquela con-juntura, ao apostarem na democratiza-ção do modelo produtivo da RevoluçãoVerde, as organizações da agriculturafamiliar tinham como expectativa amelhoria das suas condições de vida e derenda. Em que pese os muitos avançosalcançados, o saldo histórico verificadono início dos anos 90 mostrou a prepon-derância do empobrecimento, do endivi-damento, da depauperação dos recursosnaturais e do intensivo êxodo de jovens ede famílias inteiras para o mundo incer-to das cidades.

Em 1993, um novo ciclo de discussão é aber-to na região com a proposição da AS-PTA de darinício a um programa voltado para a promoção dasustentabilidade da agricultura familiar. Nesse momen-to foi criada a oportunidade para a realização de umarevisão crítica da trajetória do movimento social localque incorporou análises relacionadas ao modelo deagricultura dominante. Desde então, as organizações,que em 1995 se congregaram no Fórum das Organi-zações de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais doCentro-Sul do Paraná, vêm defendendo e promoven-do um projeto de desenvolvimento rural fundamenta-do nos princípios da agroecologia.

A exemplo dos preceitos da teologia da li-bertação, o ideário agroecológico também encontrou“terra boa” para germinar e se multiplicar na região.Ao revalorizar as referências socioculturais campone-sas, os processos de inovação agroecológica que se dis-seminaram em meio às comunidades rurais favorece-ram a reorganização política das famílias do campo.Ao mesmo tempo, ao associar a sabedoria popular aosaber científico, o enfoque agroecológico vem permi-tindo a crescente interação dos grupos de agricultorese agricultoras com pesquisadores de diversas institui-ções acadêmicas.

Por meio de abordagens participativasvoltadas para a dinamização de pro-cessos sociais de inovação técnica esócio-organizativa, se concretizou umamplo programa regional orientadopara gerar e disseminar referênciasagroecológicas para o manejo dosagroecossistemas da região. Articula-do pelo Fórum, o programa mobilizaagricultoras e agricultores, adultos e jo-vens, inseridos em dinâmicas permanen-tes de experimentação e de formação.

O manejo sustentado da agrobiodiversidadeé um dos eixos temáticos que o programa estabelece.Um grupo regional de 120 agricultores-experimen-tadores dedicados a esse tema se reúne duas vezes aoano para intercambiar suas experiências, aprofundarseus conhecimentos e avaliar e planejar as ações nosmunicípios. Com base na ação desse grupo, o progra-ma está atualmente enraizado nos 22 municípios daregião e mobiliza diretamente quatro mil famílias.

Ao revalorizar as referênciassocioculturais camponesas,

os processos de inovaçãoagroecológica que se

disseminaram em meio àscomunidades rurais

favoreceram a reorganizaçãopolítica das famílias

do campo.

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Após alguns anos, o resultado mais visível éa mudança de percepção das próprias famíliasagricultoras a respeito de suas variedades crioulas, quedeixaram de ser semeadas apenas nas grotas, barro-cas e roças de toco para assumirem um papel centralna composição dos sistemas produtivos. Essarevalorização do patrimônio genético repassado atra-vés das gerações de agricultores da região resultou noresgate de 138 variedades de milho, 141 de feijão, 26de arroz, 25 de mandioca e 12 de batatinha. Somam-se a estas, ampla diversidade de espécies de cereais deinverno, hortaliças, condimentos, frutíferas, plantasmedicinais e ornamentais, além de raças crioulas desuínos e galinhas.

Além da multiplicação de sementescrioulas, que se faz de forma descentra-lizada pelas famílias e organizações co-munitárias informais, os grupos deexperimentadores articulados peloFórum implantam campos que produ-zem em média 300 toneladas por ano.

Muitas das variedades resgatadas vêm sen-do pesquisadas sistematicamente por esses grupos atra-vés da caracterização fenotípica e de ensaios de ava-liação agronômica e degustativa. Uma parceriaestabelecida em 1999 entre o Fórum, a AS-PTA e aUniversidade Estadual de Londrina (UEL) possibilitoua incorporação de novos e fundamentais temas de pes-quisa. Desde então, está em andamento um complexoprograma de melhoramento participativo de varieda-des de milho crioulo, que inclui: a conservação das va-

riedades em campos de cultivos isolados e aplicação daseleção massal estratificada; o estabelecimento de cam-pos de seleção recorrente de progênies de meios-irmãoscom 24 variedades; a formação de novas variedades apartir de seis compostos; cruzamentos dialélicos; e es-tudos citogenéticos. Em 2003, por meio dessa parce-ria, foi inaugurado o Banco de Germoplasma CriouloPaulo Rochinski, estrutura responsável pelo arma-zenamento de amostras das variedades visando asse-gurar o trabalho de conservação e de melhoramento(Tardin et al, 2004).

Em um encontro municipal de mulhe-res agricultoras, realizado em 1999 nacomunidade Pinhalão, União da Vitó-ria, foi concebida a idéia de criar umaFeira de Sementes Crioulas para favo-recer o livre intercâmbio das varieda-des entre as famílias e comunidades.Desde então, as feiras municipais e re-gionais são realizadas anualmente,totalizando uma participação média de12 mil pessoas. Frente ao seu grandepotencial mobilizador, a metodologiadas feiras de biodiversidade foi incor-porada por movimentos e organizaçõesatuantes em várias regiões do país.

No âmbito estadual, duas outras iniciativasforam fundamentais na expansão desse movimentosocial de revalorização da agrobiodiversidade: as Ro-marias da Terra e a Jornada de Agroecologia. As pri-meiras mobilizam multidões em torno de momentosde celebração, mística, festividade, troca de experiên-cias e manifestação política. Três romarias foram or-ganizadas pela CPT em conjunto com o Fórum e a

No âmbito estadual, duasoutras iniciativas foramfundamentais na expansãodesse movimento social derevalorização daagrobiodiversidade: asRomarias da Terra e aJornada de Agroecologia.

Plenário da Jornada de Agroecologia - Ponta Grossa/PR

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 47

*José Maria Tardin e André Emílio Jantara:técnicos da AS-PTA

[email protected]

Rosângela Maria Pinto Moreira eJosué Maldonado Ferreira:

professores doutores do Departamento de BiologiaGeral, CCB, Universidade Estadual de Londrina.

[email protected] e [email protected]

Referências:

PETERSEN, P.; TARDIN, J. M.; MAROCHI, F. M.Tradição (agri)cultural e inovação agroecológica– facetas complementares do desenvolvimento agrí-cola socialmente sustentado na região Centro-Suldo Paraná. União da Vitória: AS-PTA, 2002.

TARDIN, J. M; JANTARA, A. M.; MOREIRA, R. M. P;FERREIRA, J. M. A organização social dos agri-cultores da região Centro-Sul do Paraná em buscada autonomia, sustentabilidade e desenvolvimen-to da agricultura familiar. União da Vitória - PR:AS-PTA, 2004.

AS-PTA. A primeira, em 1999, teve o tema Produziro alimento sagrado e viver em comunhão e contou com30 mil participantes. A segunda, em 2002, cujo temafoi Juventude da roça: resistindo, semeando e recrian-do a vida, envolveu 25 mil pessoas. Finalmente, em2004, com o tema Creio na semente, promessa de Deuspatrimônio da gente, 20 mil participantes celebraramas sementes crioulas. Feiras regionais de sementes criou-las também foram organizadas de forma integrada aessas duas últimas romarias.

Já a Jornada de Agroecologia é o resultadode ampla articulação de organizações do estado queatuam na luta pela terra e pela agroecologia. Iniciadaem 2001, a Jornada passou a se responsabilizar pelasfeiras estaduais. Em 2003, em área ocupada por famí-lias sem-terra onde a empresa norte-americanaMonsanto desenvolvia experimentos ilegais com soja emilho transgênicos, as organizações da Jornada im-plantaram o Centro Chico Mendes de Agroecologia.Esse espaço passou a reforçar a conservação e a mul-tiplicação de variedades crioulas e, já em 2004, produ-ziu 10 toneladas de sementes que foram distribuídasno ato de encerramento de um evento estadual reali-zado pela Jornada.

Desde o gesto fundador de Acir Tullio, em1993, esse movimento social se disseminou e vem es-palhando suas sementes pelo Centro-Sul do Paraná.Ao mesmo tempo interage com numerosas organiza-

ções da agricultura familiar e de assessoria nos âmbi-tos estadual, nacional e internacional, associando-se àcampanha mundial Sementes: patrimônio dos povos aserviço da humanidade, encampada pela Via CampesinaInternacional.

A semente caiu em terra boa!

Família Rochinski - Inauguração do Banco de Genoplasma Crioulo “Paulo Rochinsk”, UEL, Londrina/PR

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Publicações

Lost crops of the Incas.POPENOE, Hugh, et al. Washington, D.C.: NationalAcademy Press, 1989. 415p., il. Bibliografia.

Contém informações detalhadas sobre plantas andinascultivadas pelos Incas antes da conquista espanhola. Coma colonização, introduziu-se espécies exóticas, extinguin-do-se muitas das variedades nativas. No entanto, umaparte da tradição agrícola Inca permanece viva, como é ocaso dos cultivos de tomate, pimentas e vagens. Apresen-ta estudo detalhado com indicações para o cultivo e difu-são sobre algumas raízes e tuberosas, grãos, leguminosas,hortaliças, frutas e nogueiras dos Incas.

Recursos genéticos, nossotesouro esquecido.QUEROL, Daniel. Rio de Janeiro: AS-PTA, 1993. 206p.,il., tab., graf.. Bibliografia.

Apresenta os conceitos básicos de germoplasma, evolu-ção e variabilidade das espécies, centros de origem, tiposde recursos e importância, melhoramento da qualidadedos produtos convencionais e espécies silvestres. Dentreos diversos assuntos abordados, merecem destaque as in-dicações práticas sobre coleta, manejo e conservação deespécies e variedades.

Semente da paixão: es-tratégia comunitáriade conservação de va-riedades locais no semi-árido.ALMEIDA, Paula. CORDEIRO,Ângela. Esperança (PB): AS-PTA, 2002. 72p., il., fotos, qua-dros, tab. Bibliografia.

Trabalho desenvolvido com agricultores familiares noAgreste da Paraíba com intuito de fortalecer estratégiastradicionais de conservação de sementes, preservando tam-bém toda a carga cultural embutida nas “sementes dapaixão”. Aponta mecanismos eficientes e sustentáveis parao estabelecimento de sistemas de seguridade de sementesdescentralizados nas comunidades rurais, dando especialdestaque às redes de bancos de sementes comunitários.

Cultivando a diversidade: recursosgenéticos e segurança alimentar local.GAIFAMI, Andrea; CORDEIRO, Ângela (orgs). Rio de Ja-neiro: AS-PTA, 1994. 205p., il., tab., graf.. Bibliografia.

Edição brasileira revista e ampliada do livro Growingdiversity, no qual são sistematizadas e difundidas expe-riências que demonstram a possibilidade de conservar osrecursos genéticos de forma dinâmica e integrada aos siste-mas de produção agrícola nos países do Terceiro Mundo.

Cultivos Marginados: otra perspectivade 1492.BERMEJO, J. E. H; LEÓN, J. (eds.) Roma: FAO, 1992.339p., il. (Producción y protección Vegetal, 26)

Estudo de 65 cultivares, em sua maior parte de origemamericana que, por razões diversas, perderam a importân-cia ao longo dos últimos 500 anos. São espécies vegetaisque, em outros momentos e sob outras condições, tive-ram um papel fundamental na alimentação dos povos in-dígenas e comunidades locais. Apresenta também um apa-nhado mais amplo dos recursos fitogenéticos da Américae dos processos que determinaram a marginalização decertos cultivos.

Milho crioulo: conser-vação e uso da biodi-versidade.SOARES, Adriano Campolina etal. (orgs). Rio de Janeiro: AS-PTA, 1998. 185 p., tab., qua-dros. Bibliografia.

Aborda experiências geradas e de-senvolvidas por ONGs vinculadasà Rede Projeto Tecnologias Al-

ternativas nas áreas do resgate, conservação e melhora-mento da diversidade genética do milho. Demonstra avantagem para a agricultura familiar de produzir suas pró-prias sementes e utilizar variedades locais, também cha-madas de crioulas ou tradicionais. Discute a problemáticada erosão genética e os riscos do patenteamento da vida.Analisa as políticas da biodiversidade e suas implicaçõespara a agricultura familiar.

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Agriculturas - v. 1 - no 1 - novembro de 2004 49

Sementes. Patrimônio do povo a servi-ço da humanidade.CARVALHO, Horácio Martins de (org.). São Paulo:Expressão Popular, 2003. 352 p.

Coletânea de artigos em defesa das sementes “varietais”como patrimônio da humanidade. Apresenta informaçõessobre o amplo processo de erosão genética em curso, e daenorme concentração e centralização oligopolistas dosprocessos de geração e comercialização de sementes. Traztambém artigos que descrevem experiências de resgate econservação da agrobiodiversidade.

The Hidden Harvest: Wild Foods andagricultural systems – a literature reviewand annotated bibliography.SCOONES, Ian; MELNYK, Mary; PRETTY, Jules N.London: IIED/Sustainable Agriculture Programme, 1992.256p., foto.

Bibliografia comentada de cerca de 1.000 publicações re-lacionadas ao tema das espécies alimentares silvestres emsistemas agrícolas. Organizada em seções temáticas queabordam, entre outras questões, segurança alimentar enutricional, valorização econômica das espécies subutili-zadas, conservação in situ.

“Opportunities for sustainable foodsecurity” WRI Issues and Ideas.THRUPP, Lori Ann. Washington, DC: WRI, 1997. 19p.,il., mapas, quadros, tab. Bibliografia.

Aborda as relações entre biodiversidade e agricultura,realçando princípios e práticas que conservam os recursosgenéticos em agroecossistemas para se atingir a seguran-ça alimentar. Enfoca criticamente as tendências do de-senvolvimento agrícola e suas implicações sobre a bio-diversidade e o uso de enfoques participativos para a valo-rização do saber tradicional voltados para o desenvolvi-mento sustentável.

*Todas as publicações estão disponíveis para consultano Centro de Informação da AS-PTA.

Biodiversity and agricultural intensi-fication: partners for development andconservation.SRIVASTAVA, Jitendra P.; SMITH, Nigel J. H.; FOR-NO, Douglas A. (orgs.) Washington, DC: Banco Mundi-al, 1996. 128p., il., graf., tab., quadros. Bibliografia.

Coletânea de artigos sobre biodiversidade e desenvolvi-mento agrícola. Aponta a necessidade de abertura de no-vos mercados para a sobrevivência de espécies vegetais eanimais subutilizados. Numerosos exemplos sobre o usoda biodiversidade na produção agrícola sustentável sãoapresentados. Enfatiza a importância do desenvolvimen-to de pesquisas alternativas e de políticas que incentivemo uso racional e a conservação da agrobiodiversidade, atu-ando em parceria com bancos de desenvolvimento multi-laterais, fundações e organizações não-governamentais.

Human Nature: agricultural biodiversityand farm-based food securitySHAND, Hope. Pittsboro/EUA: RAFI, 1997. 94p., il., fotos.

Discute a importância da conservação da biodiversidadeagrícola e sua relevância para a segurança alimentar, abor-dando assuntos relacionados a erosão da diversidade cul-tural, uso dos recursos genéticos de plantas e animais,biodiversidade da biota do solo. Apresenta uma agendade políticas necessárias para a conservação da biodiver-sidade agrícola.

Women & Plants:gender relation in bio-diversity managementand conservation.HOWARD, Patrícia L., (ed.)London: Zed Books Ltd., 2003.298 p., tab., graf. Bibliografia.

Enfoca a importância da mulheragricultora na preservação dabiodiversidade vegetal e no ma-

nejo e conservação de recursos genéticos, tanto ao nívelfamiliar, quanto comunitário. Enfatiza que o acesso con-tínuo a biodiversidade é vital para a posição e o bem-estardas mulheres rurais, e sua motivação é a principal forçapara conter os processos de erosão genética. Embora exer-çam grande influência como guardiãs da agrobiodiver-sidade, historicamente a participação das mulheres temsido pouco considerada pelos programas de desenvolvi-mento agrícola.

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Páginas na internet

Projeto que reúne a Natura e a TV Cultura na criação deum espaço público de debate, reflexão e produção de co-nhecimento sobre a biodiversidade brasileira e seu uso sus-tentável. Divulga informações sobre eventos e programasde televisão, artigos, referências e links sobre o tema.

www.biodiversidadebrasil.com.br

O Grupo de Ação em Erosão, Tecnologia e Concentração(Action Group on Erosion, Technology and ConcentrationETC-Group) é dedicado à conservação e ao avanço dasustentabilidade da diversidade cultural, ecológica e dosdireitos humanos. Incentiva o desenvolvimento social detecnologias úteis à população mais pobre e marginalizada.Trabalha em parceria com organismos da sociedade civilfornecendo informações sobre tecnologias alternativas. Apágina possui artigos sobre agrobiodiversidade e bio-tecnologias, disponíveis em inglês, francês e espanhol.

www.etcgroup.org

O projeto Cultivando a Diversidade apóia propostas demanutenção da biodiversidade agrícola. Tem por objetivooferecer um foro de discussão e intercâmbio de experiên-cias para aumentar a consciência sobre a importância cen-tral da biodiversidade dentro de um amplo contexto dedesenvolvimento e políticas agrícolas. A página está dis-ponível em espanhol, inglês e francês.

www.grain.org/gd

O Instituto Internacional de Recursos Genéticos de Plan-tas (International Plant Genetic Resouces Institute - IPGRI)visa fomentar a conservação e uso da diversidade genética.A página possui uma série de publicações sobre diferentesespécies agrícolas ordenadas de forma sistemática.

www.ipgri.cgiar.org/institute/about.htm

A página da Unidade Global de Facilitação para EspéciesSubutilizadas (Global Facilitation Unit for UnderutilizedSpecies) é importante para a troca e obtenção de conheci-mentos sobre espécies subutilizadas e esquecidas. As infor-mações desse portal abrangem detalhes sobre espécies, even-tos, tópicos relacionados e publicações relevantes sobre otema. Anuncia para breve a incorporação de um banco dedados sobre experiências e atividades envolvendo espéciessubutilizadas.

www.underutilized-species.org

O Instituto Socioambiental (ISA) é uma associação semfins lucrativos que tem como objetivo defender bens edireitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambien-te, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos. Contéminformações sobre projetos, canais temáticos, campanhas,notícias. Disponibiliza mapas, artigos e documentos rela-cionados à conservação da diversidade biológica.

www.socioambiental.org

O Fundo Brasileiro para a Biodiversidade é uma associaçãocivil sem fins lucrativos cujo objetivo é complementar as açõesgovernamentais para a conservação e o uso sustentável dadiversidade biológica do país. Contém informações sobre pro-gramas, publicações, links e notícias referentes à biodiversidade.

www.funbio.org.br

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Fórum Mundial pela reforma agráriaData: 5 a 8 de dezembro de 2004Local: Valencia, EspanhaInformações: www.fmra.orgCom o tema “Os novos desafios para a gestão do espaço e acesso aos recursos naturais no século XXI”, oevento abordará aspectos como a soberania alimentar, os movimentos sociais, as políticas de acesso aterra, as tensões sociais no campo e a gestão de recursos naturais. Tem como objetivo contribuir para aelaboração de um novo enfoque de reforma agrária e promover a questão da terra a um lugar de centralidadena agenda dos movimentos sociais, favorecendo a construção de alianças estratégicas entre eles.

Eventos

AGRONAT 2004 Evento Internacional de agricultura urbanaData: 11 a 16 de dezembro de 2004Local: Cinfuegos, CubaInformações: www.ruaf.org/events/2004/12cuba.htmlSerá realizado pelas Universidades de Cinfuegos(Cuba) e da Costa Rica, com objetivo de promover ointercâmbio internacional entre instituições e organizações promotoras de agroecologia, agriculturaorgânica, tecnologias alternativas e projetos agrícolas sustentáveis. Abordará temas sobre a gestão dosrecursos genéticos para a produção de alimentos na agricultura urbana.

Fórum Social MundialData: 26 a 31 de janeiro de 2005Local: Porto Alegre, BrasilInformações: www.forumsocialmundial.org.brO evento tem como característica o debate de propostas alternativas à globalização neoliberal. Teráespaços privilegiados para o debate de questões pertinentes para a agricultura no século XXI. Promoveráencontros para a articulação de organizações e iniciativas que visem reafirmar o modelo da agroecologia nofortalecimento da agricultura familiar e alternativas eficazes no combate à pobreza no campo.

II Congresso Brasileiro de AgroecologiaTema: Agrobiodiversidade: Base para Sociedades Sustentáveis

Porto Alegre-RS • 22 a 25 de novembro de 2004O evento é uma realização da Emater/RS-Ascar (Associação Riograndense de Empreendimentos de AssistênciaTécnica e Extensão Rural e Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural) e Embrapa (Empresa Brasileira dePesquisa Agropecuária). É promovido por um conjunto de instituições de Ensino, Pesquisa e Extensão Ruralcontando também com o apoio de diversas organizações da esfera governamental e não-governamental. Três

grandes eixos temáticos orientarão seus debates: I) Ética socioambiental; II) Estética, paisagem ebiodiversidade; III) Sociedade, conhecimento e sustentabilidade. Para o evento foram selecionados 556 resumosexpandidos de trabalhos científicos, dos quais 125 serão apresentados em forma oral e 322 em forma de pôsteres.

Para mais informações veja a página da EMATER/RS: http://www.emater.tche.br

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Revistas LEISAAgriculturas: Experiências em Agroecologia corres-

ponde à edição brasileira da Revista LEISA – Low External Inputand Sustainable Agriculture. Esse conceituado periódico trimes-tral é publicado desde o início dos anos 1980 pela Fundação ILEIA(www.ileia.org) e tem por objetivo dar visibilidade a experiênciasem Agroecologia desenvolvidas em diferentes países, através deartigos curtos, objetivos e de linguagem simples. Atualmente élido de forma regular por cerca de 100 mil pessoas em 173 naçõese é publicado em sete edições, sendo seis delas regionais (AméricaLatina, África Ocidental, África Sub-saariana, Brasil, Índia eIndonésia) e uma global (editada na Holanda).

Cada número da revista é dedicado a um tema particu-lar que vem mobilizando as dinâmicas sociais de inovação agro-ecológica em nível mundial. Os temas e os cronogramas de produ-ção são definidos anualmente por um Conselho composto peloseditores das revistas regionais e global. Esse procedimento permitea sincronização dos processos de produção entre as diferentes edi-ções da revista e, com isso, a captação de artigos sobre os mesmostemas de forma simultânea em diferentes regiões do mundo.

Com a ampla difusão de valores associados àmodernização da agricultura nas instituições da sociedade,verdadeiros processos de erosão cultural vão se disseminan-do no mundo rural. Disto tem resultado rupturas nas for-mas tradicionais de produção e disseminação de conheci-mentos para o manejo dos ecossistemas e nos mecanismosde sociabilidade em comunidades de produtores familiares.De tão avassaladora, a força ideológica dos mitos da moder-nidade influencia o imaginário dos próprios produtores fa-miliares que, em muitas situações, passam a assumir umapercepção negativa de si mesmos e de seus modos de vida.Embora esse processo ocorra de forma generalizada nascomunidades rurais influenciadas pelo avanço das formasprodutivas da Revolução Verde, é sobretudo sobre as novasgerações que ele exerce seu papel mais insidioso. Meios decomunicação de massa e sistemas educacionais inadequa-dos difundem valores relacionados a um mundo cujas rela-ções sociais são cada vez mais reguladas pelos mecanismosdo mercado e cujo meio natural é percebido sobretudo porsua dimensão instrumental/utilitária. Com isso, padrões deprodução e de consumo insustentáveis ganham prestígioentre jovens e crianças rurais. Na contracorrente, culturasrurais vêm sendo revalorizadas por um número crescente demovimentos sociais e por experiências práticas no campodo ensino e do desenvolvimento, nas quais as novas gera-ções de agricultores e agricultoras procuram restaurar suaidentidade, resituando-a em um novo contexto de relaçõesentre o rural e o urbano. Muitos desses movimentos e expe-riências encontram nas dinâmicas de inovação agroecológicaestímulos para o exercício de práticas e vivências que bus-cam incorporar as tradições culturais e atribuir um sentidonovo à noção de modernidade. O próximo número de Agri-culturas: Experiências em Agroecologia enfocará sob esteprisma o tema da infância e da juventude no mundo rural.Convidamos pessoas e/ou instituições envolvidas com ex-periências nesse campo a enviarem artigos conforme as orien-

tações indicadas ao lado.

Data limite para o envio dos artigos:28 de fevereiro de 2005

Chamada de artigospara o v.2, n.1Tema: Infância e juventude nomundo rural

Instruções para a elaboração dos artigos

1. Os artigos deverão descrever e analisar experiências concre-tas, procurando extrair delas ensinamentos que possam servirde inspiração para outros grupos envolvidos com a promoçãoda Agroecologia. Solicita-se que os artigos não sejam elabo-rados em formato de relatório institucional, nem em padrãode texto científico.

2. Os artigos devem ter uma extensão de 1, 2 ou 3 laudas de2.100 toques (30 linhas x 70 toques por linha). Artigos queextrapolem essas dimensões não serão analisados.

3. Os artigos deverão vir acompanhados de duas ou três ilustra-ções (fotos, desenhos, gráficos) com indicação dos seus auto-res (fotógrafo, artista gráfico etc) e com as respectivas legen-das. Todo material gráfico será devolvido aos autores(as) apósa edição da Revista. Se o material gráfico for enviado emformato digital, solicitamos que os arquivos estejam com ex-tensão JPEG de no mínimo 350 DPI para uma ilustraçãoescaneada e uma dimensão lateral de no mínimo 15 cm.

4. A citação de nomes comuns de plantas e/ou animais deve viracompanhada do respectivo nome científico. Siglas devem viracompanhadas de seu significado.

5. Caso julgue necessário, o editor da revista poderá propor umaedição do artigo ou uma solicitação de informações comple-mentares aos autores(as). Quaisquer alterações propostas serãosubmetidas à aprovação dos autores(as) antes da publicação.

6. Os autores(as) deverão informar seu endereço (postal e/oueletrônico) de forma a facilitar eventuais contatos diretos deleitores interessados em conhecer mais a respeito das experiên-cias apresentadas.

7. As citações bibliográficas não deverão exceder o número de 4(quatro).

8. Os editores se reservam o direito de decidir pela publicaçãoou não do artigo enviado.