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Revisões das efemérides negras nas memórias e História do Brasil Por Maria Aparecida de Oliveira Lopes (Artigo originalmente publicado na edição número 15 da revista O Menelick 2o. Ato, disponível em http://issuu.com/omenelick2ato/docs/menelick_ed15_final_baixa) Escrever para a revista O Menelick 2 o Ato é um ato político e de satisfação por saber que artistas, jornalistas, intelectuais, professores, enfim, que a equipe da revista, continuou o trabalho dos ativistas lá da antiga e promissora imprensa negra e seus movimentos sociais. O texto apresenta reflexões sobre as efemérides da História do Brasil. As efemérides se referem as datas de acontecimentos que envolvem a população negra. No livro Dicionário de Datas da História do Brasil, organizado por Circe Bittencourt encontram-se alguns textos que fazem referência as efemérides negras. No sumário é possível encontrar um texto que consagra a efeméride do Levante dos Malês em Salvador (25 de janeiro de 1835), escrito por João José Reis. Outro referente a Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro de 1980) de Jaime Almeida. Mais um sobre o Dia da Consciência Negra (20 de novembro) de Marco Antonio de Oliveira. E por fim, aquele da Revolta da Chibata (22 de novembro de 1910) de Regina Behar. Faltou neste Dicionário de Datas da História do Brasil uma análise do dia 28 de setembro de 1871, lei do Ventre Livre, para não falar ainda da Lei de Sexagenário, o dia 21 de março, entre outras. Nesta mesma obra consta o capítulo destinado a efeméride 13 de maio de 1888. Nele Antonia Terra informa que o 13 de maio estabeleceu a abolição, quando a população invadiu as ruas comemorando o fim de um sistema de trabalho de três seculos e meio. Na ocasião, quase oitocentos mil brasileiros foram libertados. Nos anos seguintes, ex escravos retomaram as comemorações. E em, 1890, o governo republicano instituiu o 13 de maio como o dia da Fraternidade entre os brasileiros. O sistema escravista foi introduzido na América pelos europeus. Envolveu populações indígenas e, a partir de 1532, africanos. Em 1758, o marques de Pombal proibiu a submissão dos índios, e a escravidão africana permaneceu lucrativa para senhores da terra, comerciantes 1

Revisões das efemérides negras nas memórias e História do Brasil

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Artigo originalmente publicado na edição número 15 da revista O Menelick 2o. Ato

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Revisões das efemérides negras nas memórias e História do Brasil

Por Maria Aparecida de Oliveira Lopes

(Artigo originalmente publicado na ediçãonúmero 15 da revista O Menelick 2o. Ato, disponível em

http://issuu.com/omenelick2ato/docs/menelick_ed15_final_baixa)

Escrever para a revista O Menelick 2oAto é um ato político e de satisfação por saber

que artistas, jornalistas, intelectuais, professores, enfim, que a equipe da revista,

continuou o trabalho dos ativistas lá da antiga e promissora imprensa negra e seus

movimentos sociais.

O texto apresenta reflexões sobre as efemérides da História do Brasil. As efemérides

se referem as datas de acontecimentos que envolvem a população negra. No livro

Dicionário de Datas da História do Brasil, organizado por Circe Bittencourt

encontram-se alguns textos que fazem referência as efemérides negras. No sumário é

possível encontrar um texto que consagra a efeméride do Levante dos Malês em

Salvador (25 de janeiro de 1835), escrito por João José Reis. Outro referente a Nossa

Senhora Aparecida (12 de outubro de 1980) de Jaime Almeida. Mais um sobre o Dia

da Consciência Negra (20 de novembro) de Marco Antonio de Oliveira. E por fim,

aquele da Revolta da Chibata (22 de novembro de 1910) de Regina Behar. Faltou

neste Dicionário de Datas da História do Brasil uma análise do dia 28 de setembro de

1871, lei do Ventre Livre, para não falar ainda da Lei de Sexagenário, o dia 21 de

março, entre outras.

Nesta mesma obra consta o capítulo destinado a efeméride 13 de maio de 1888. Nele

Antonia Terra informa que o 13 de maio estabeleceu a abolição, quando a população

invadiu as ruas comemorando o fim de um sistema de trabalho de três seculos e meio.

Na ocasião, quase oitocentos mil brasileiros foram libertados. Nos anos seguintes, ex

escravos retomaram as comemorações. E em, 1890, o governo republicano instituiu o

13 de maio como o dia da Fraternidade entre os brasileiros. O sistema escravista foi

introduzido na América pelos europeus. Envolveu populações indígenas e, a partir de

1532, africanos. Em 1758, o marques de Pombal proibiu a submissão dos índios, e a

escravidão africana permaneceu lucrativa para senhores da terra, comerciantes

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brasileiros e europeus por mais de 130 anos. A produção das grandes propriedades de

açúcar, da exploração do ouro, no trabalho e na produção do café, era baseada na mão

de obra escrava. Calcula-se que o Brasil tenha recebido entre quatro a seis milhões de

africanos escravizados. O país foi o último país da América a acabar com a

escravidão. (BITTENCOURT, 2007: 135)

O objetivo aqui, na revista O Menelick 2o Ato não é apenas discutir as leis de

libertação mas como, sobretudo, as vivências das populações negras instigaram

revisões pela memória e pela História desta efeméride, que logo deixou de ser

festejada de modo unânime. Parte das novas gerações passou a encarar a lei apenas

como uma conquista jurídica, já que a população negra permaneceu em uma situação

desprivilegiada e com o encargo de lutar contra a discriminação racial. Neste espaço

vislumbra-se ainda uma leitura das revisões pela memória e pela história de outras

efemérides negras, além do 13 de maio.

Na luta contra o racismo, muitas críticas recaíram sobre o 13 de maio, entendido como

uma data oficial que atribuía à princesa Isabel o papel de redentora, sem mencionar a

resistência e a luta dos próprios escravos contra o cativeiro. Como contraponto, os

movimentos sociais negros e as organizações, no século XX, criaram outras datas,

simbolizando outras lutas e outras memórias. O 13 de maio passou a ser o dia

nacional da denúncia contra o racismo no Brasil; o 20 de novembro, data do

assassinato de Zumbi, o Dia da Consciência Negra; e o 7 de julho o Dia Nacional

Contra o Racismo, o dia 21 de março, o Dia Internacional da Luta Contra o Racismo.

Antes dos anos 30 alguns setores da sociedade paulista festejava o 13 de maio de

1888. Algumas comemorações de caráter festivo foram registradas pela historiadora

Eloíza Silva, em sua dissertação sobre a história de vida das mulheres das escolas de

samba paulistanas. Ela contou que havia a necessidade de criar locais de lazer para a

população negra nos finais de semana ou em datas comemorativas como o 13 de

maio. A casa da Tia Olímpia (uma espécie de lenda feminina do samba paulistano) na

rua Anhanguera, Barra Funda, foi um dos locais de comemoração. A festa, realizada

em um terreno ao lado da sua casa, atraia parentes e amigos que realizavam rodas de

samba e batuques. O mesmo acontecia na casa do Zé Soldado, morador do bairro do

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Jabaquara (Santos), onde se registrara um populoso quilombo no período que

precedeu a abolição. Havia também a festa de Santa Cruz, realizada no dia 13 de maio

na Baixada do Glicério, que transcorria ao som de instrumentos musicais,

principalmente os de percussão como o bumbo e a zabumba. Por fim, Eloíza Silva

concluiu que, embora esses eventos tivessem contribuído diretamente para a

organização do carnaval negro da cidade, poucas foram as instituições formadas com

esta finalidade (SILVA, 2002: 343)

A ausência de cidadania não impediu que surgissem estratégias de sobrevivência em

lugares onde os negros construíram seus próprios territórios de liberdade. Estes

espaços se transformaram em lugares privilegiados de elaboração e preservação da

memória negra e, conseqüentemente, de luta pelo reconhecimento social. Em várias

regiões do país surgiram associações, entidades e clubes formados pela população

negra, como O Clube Treze de Maio de Botucatu. As comunidades dos descendentes

de africanos praticavam o congo, o jongo ou o batuque de umbigada para celebrar a

liberdade e recordar os tristes tempos dos cativeiros. Por meio dos espaços de

socialização é possível pensar a formação da identidade negra e o modo como o treze

de maio de 1888 marcou a formação identitária, sendo preservado ou reinterpretado.

Nesta direção, outra obra instigante é a dissertação de Ana Rita Araujo Machado, que

analisa a construção da memória social sobre as comemorações do 13 de maio. A

autora estudou a Festa do Bembé do Largo do Mercado, que acontece na cidade de

Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano ao problematizar as lembranças da

comunidade que realiza a festa, os adeptos dos candomblés, capoeiristas e

participantes de maculelê. (MACHADO, 2009: 10)

Bembé é uma festa realizada pelas comunidades de terreiro e começou em 1889,

quando João de Obá – “pai de terreiro” – reuniu filhos e filhas de santo e armou um

barracão de pindoba, enfeitando-o com bandeirolas para comemorar o aniversário da

abolição. Esta atitude de João de Obá refletia os costumes dos pescadores em

ofertarem flores e perfumes para a Mãe D'água. Eles iam de canoas e saveiros

enfeitados até São Bento das Lajes para levar presentes para as“águas”. Esse ritual era

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acompanhado por toques de atabaques. Chegando ao encontro entre o rio e o mar, um

pescador experiente mergulhava para entregar as oferendas.

Os adeptos dos terreiros de candomblés continuaram realizando os festejos do Bembé.

Nas décadas de 1920 e 1930, alguns assumiram as realizações dos preceitos, a

exemplo do Ogã Mininho. Neste período, os preceitos e rituais eram mantidos em

sigilo e somente as pessoas ligadas ao culto, a exemplo de Toninho do peixe, sabiam

dos fundamentos que caracterizavam o Bembé. Em razão da repressão pela qual

passavam os candomblés baianos, na década de 1950, era necessário pedir autorização

policial para a realização da festa, que sempre era concedida. Entretanto, em 1956, um

delegado da cidade proibiu a realização dos festejos do 13 de maio. Segundo

depoimento dos moradores da cidade, ele e sua família sofreram um acidente

automobilístico, sendo este episódio atribuído ao ato de proibição da festa. Em 1958,

aconteceu a explosão de duas barracas de fogos no largo do mercado, na véspera de

São João, fato que também foi associado pelos adeptos ao ato de "proibição”.

Para Ana Rita Araujo o Bembé não carrega a lógica do catolicismo popular, a

exemplo da festa de nossa Senhora da Purificação que acontece no dia 2 de fevereiro,

com procissão, missa e cortejo da santa até a Igreja da Matriz. O Bembé caracteriza-se

pelos diversos rituais que compreendem o universo do culto aos orixás, sendo que o

calendário da festa coincide com o da semana do dia 13 de maio. Nos primeiros dias

que antecedem essa data, começam as cerimônias de preparação do Bembé. Os ritos

destinados aos ancestrais e a Exu são realizados nas vias que dão acesso à cidade. O

objetivo desse ritual é evitar complicações, propiciar bons acontecimentos e “abrir

caminhos”. Essa cerimônia é restrita, pois as pessoas que dela participam são ligadas

aos terreiros e se responsabilizam pela organização da festa. Há uma seqüência na

realização desses ritos e o de Iemanjá é um dos mais significativos, uma vez que a

festa é em sua homenagem, mas também ocorrem oferendas para Oxum.

Iemanjá é uma divindade que concretiza, segundo a lógica cosmológica, um dos

princípios geradores da vida, o princípio simbolizado pela água que é um dos aspectos

de manifestação do poder vital. Logo, se relaciona a Iemanjá, a gestação existencial da

fertilidade. No Brasil, seu culto está associado às águas salgadas e é visto como

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princípio feminino que dá origem às diferentes formas de existência, bem como é

associado à maternidade.

O evento histórico como o 13 de maio é importante para a compreensão da cultura

negra brasileira, porque demonstra que os orixás, voduns ou inquices não são

entidades apenas religiosas, mas principalmente suportes simbólicos, isto é,

condutores de regras de trocas sociais. Em outras palavras, festejar o 13 de maio, nos

termos da tradição das comunidades de terreiro, implica aderir a uma lógica de

pensamento, um sistema capaz de responder aos sentidos da existência do grupo e

assegurar a identidade étnicocultural.

Existe uma infinidade de práticas e reflexões sobre o 13 de maio. Tais reflexões sobre

o 13 de maio podem ser aprofundadas no capítulo “Narrativas e significados das

efemérides para a História do Brasil”, presente no livro O movimento negro, sob os

significados da justiça social organizado por Amauri Pereira e Joselina da Silva.

Para finalizar, interessa dizer que a data que mais se contrapõe ao treze de maio é o 20

de novembro. Este debate esteve e está presente nas comemorações das organizações

negras, na mídia e nos discurso de outros setores da sociedade. Destaco aqui as ideias

de Oliveira Silveira - referentes ao 20 de novembro - pela importância do seu

pensamento e atuação política. No livro, Histórias do Movimento Negro no Brasil, há

uma passagem em que Oliveira Silveira narra que a ideia de sobrepor o dia 20 de

novembro ao 13 de maio surgiu na efervescência das organizações negras no Rio

Grande do Sul. Houve algumas apresentações de teatro na década de 1960, como a

peça Orfeu da Conceição, uma montagem feita por dois grupos negros: a Sociedade

Aurora, chamado Teatro Novo Floresta Aurora, e o GTM, Grupo de Teatro

Marciliense. Estes grupos se uniram e fizeram uma peça, que foi apresentada no

Teatro São Pedro de Porto Alegre. A partir do contato com estas pessoas, como

Antonio Carlos Cortes, Oliveira Silveira passou a participar de uma associação

informal que se encontrava na rua da Praia e ali conversaram sobre questões da

negritude. Para Oliveira Silveria, Jorge Antonio dos Santos, outro ativista la do sul,

era um dos principais críticos do 13 de maio. (ALBERTI; PEREIRA, 2007: 134).

Conforme explicou Silveira a reivindicação pelo 20 de novembro foi

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anunciada em jornal, rádio e televisão. Considerou que a partir deste período as

manifestações do 20 de novembro começaram a ganhar visibilidade nacional.

Percebe-se, então, que uma parte dos ativistas negros transformou zumbi em um

símbolo da cultura negra e ainda em um personagem síntese da escravidão. Numa

versão histórica engajada, evocar zumbi como símbolo significava pensar o negro

como agente da sua própria história, como responsável pela conquista da sua própria

liberdade. Como apontou Décio Freitas, no livro Palmares, a guerra dos escravos,

essa revolta ocupa um lugar especial na história. A conquista desse lugar se deve ao

fato desta revolta ter sido a primeira e a de maior invergadura. A rebelião projetou-se

como o acontecimento dominante da história pernambucana e como um dos mais

sérios problemas que a administração colonial lusitana teve que enfrentar no Brasil.

Inúmeras vezes a extinção de Palmares assumiu importância considerável a da

expulsão dos holandeses, tanto que mais de 30 expedições marcharam contra o

quilombo. Este pesquisador admite que, na história da América, esta rebelião só

perdeu em importância para a revolta escrava do Haiti (FREITAS, 1984: 1972)

Maria Aparecida de Oliveira Lopes. Mestre e Doutora em História. Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia, campus de Porto Seguro. Escreveu a tese História e Memória do negro em São Paulo: efemérides, símbolos e identidade (1945-1978). E a dissertação Beleza e ascensão social na imprensa negra paulistana, 1920-1940.

IMPRENSA NEGRA. Tratam-se de pequenas publicações das associações dançantes, culturais, recreativas e políticas que surgiram em 1904 no meio negro. As associações congregavam os membros dos clubes de negros, que se reuniam normalmente aos finais de semana e serviam de convívio para as famílias negras. Elas promoviam bailes, cursos de música, literatura, culinária, beleza, alfabetização, jogos, palestras sobre cultura negra, etc. Essa imprensa teve por objetivo dar voz e espaço aos negros, o que era raro nos círculos das elites e da cultura letrada da cidade. Nestas folhas os ativistas negros apresentavam seus interesses, projetos e concepções.

PARA LER

BITTENCOURT, Circe. Dicionário de datas da História do Brasil. São Paulo: Contexto: 2007.

LOPES, Maria Aparecida de Oliveira. História e memória do negro: efemérides,

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símbolos e identidade. Tese do programa de História da Unesp, 2007.

-----------------------------. Narrativas e significados das efemérides para a História do Brasil.In: MENDES, Amauri e SILVA, Joselina. O movimento negro, significados da justiça social. Belo Horizonte; Nandyala, 2009.

MACHADO, Ana Rita Araújo. Bembe do Largo do Mercado: Memória sobre o 13 de maio. Salvador: Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos, UFBA, 2009.

ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araujo. Histórias do movimento negro no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas; CPDOC: FGV, 2007.

PRICE, Richard. Como palmares deveria ter sido.In: REIS, João J.; GOMES, Flávio

S. Liberdade por um fio, história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das

Letras, 1996.

QUEIROZ, Elizangela Mendes. Negros e batuques, áureos festejos. O 13 de maio nas comunidades negras paulistas (1888-1910). São Paulo: USP, Iniciação Científica, 2009.

SILVA, Eloíza Maria M. História de vida das mulheres negras: estudo elaborado a

partir das escolas de samba paulistanas. 2002. Dissertação (Mestrado em História

Social) — Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São

Paulo, São Paulo.

FREITAS, Décio. Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984.

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