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Revista Atitude Nº10 - Faculdade Dom Bosco · 2016. 8. 3. · Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano V · Número 10 · Julho - Agosto de 2011 9 Dom Bosco e

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Pede-se Permuta

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Endereço para permuta:Rua Mal. José Inácio da Silva, 355 Passo D’Areia - Porto Alegre - RS

Tel: (51) 3361.6700 www.faculdade.dombosco.net

Porto Alegre, 2011

REVISTA ATITUDE - Construindo Oportunidades Periódico da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre Ano V - Nº 10 - Julho a Dezembro de 2011 Porto Alegre - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

ISSN 1809-5720

A REVISTA ATITUDE - Construindo Oportunidades tem por finalidade a produção e a divulga-ção do conhecimento nas áreas das ciências aplicadas produzido particularmente pelo seu cor-po docente e colaboradores de outras instituições, com vistas a abrir espaço para o intercâmbio de ideias, fomentar a produção científica e ampliar a participação acadêmica na comunidade. O Conselho Editorial reserva-se o direito de não aceitar a publicação de matérias que não estejam de acordo com esses objetivos. Os autores são responsáveis pelas matérias assinadas.

É permitida a cópia (transcrição) desde que devidamente mencionada a fonte.

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Diretor/DirectorProf. Dr. Pe. Marcos Sandrini - [email protected]

Editor/EditorProf. Dr. Silvio Javier Battello Calderon - [email protected]

Comissão Editorial/Editorial BoardProfa. Dra. Andréa Souza Castro - [email protected]

Profa. Dra. Aurélia Adriana de Melo - [email protected]. Dr. Luís Fernando Fortes Garcia - [email protected]

Prof. Dr. Silvio Javier Battello Calderon - [email protected]

Comissão Científica/Scientific CommitteeProfa. Dra. Adriana Dreyzin de Klor (UNC/Córdoba, Argentina)

Profa. Dra. Angela Beatrice Dewes Moura (FDB/Porto Alegre, RS)Prof. Dr. Bachir Hallouche (UNISC/Santa Cruz do Sul, RS)

Prof. Dr. Carlos Garulo (IUS/Roma, Itália)Prof. Dr. Erneldo Schallenberger (UNIOESTE/Cascavel, PR)Prof. Dr. Fábio José Garcia dos Reis (UNISAL/Lorena, SP)

Prof. Dr. Friedrich Wilherm Herms (UERJ/Rio de Janeiro, RJ)Prof. Dr. Geraldo Lopes Crossetti (FDB/Porto Alegre, RS)Profa. Dra. Letícia da Silva Garcia (FDB/Porto Alegre, RS)

Pesq. Dr. Manoel de Araújo Sousa Jr. (INPE-CRS/Santa Maria, RS)Profa. Dra. Marisa Tsao (UNILASALLE/Canoas, RS)

Prof. Dr. Nelson Luiz Sambaqui Gruber (UFRGS/Porto Alegre, RS)Prof. Dr. Neuri Antonio Zanchet (FDB/Porto Alegre, RS)

Prof. Dr. Osmar Gustavo Wöhl Coelho (UNISINOS/São Leopoldo, RS)Prof. Dr. Stefano Florissi (UFRGS/Porto Alegre, RS)

Pesq. Dra. Tania Maria Sausen (INPE-CRS/Santa Maria, RS)

Avaliadores ad-hoc/Ad-hoc reviewersProf. Ms. Aécio Cordeiro Neves (FDB/Porto Alegre, RS)

Prof. Dr. Bruno Nubens Barbosa Miragem (FDB/Porto Alegre, RS)Pesq. Ms. Camila Cossetin Ferreira (INPE-CRS/Santa Maria, RS)

Prof. Dr. José Néri da Silveira (FDB/Porto Alegre, RS)Prof. Ms. José Nosvitz Pereira de Souza (FDB/Porto Alegre, RS)

Profa. Ms. Luciane Teresa Salvi (FDB/Porto Alegre, RS)Prof. Dr. Luís Carlos Dalla Rosa (FDB/Porto Alegre, RS)

Prof. Ms. Luiz Dal Molin (FDB/Porto Alegre, RS)Prof. Dr. Marcelo Schenk Duque (FDB/Porto Alegre, RS)Pof. Dr. Ricardo Alvarez (UM/Buenos Aires, Argentina)

Pesq. Ms. Silvia Midori Saito (INPE-CRS/Santa Maria, RS)Profa. Ms. Viviani Lopes Bastos (UCS/Caxias do Sul, RS)

Publicação e Organização/Organization and PublicationRevista Atitude - Construindo Oportunidades

Rua Mal. José Inácio da Silva, 355 – Porto Alegre – RS – BrasilCEP: 90.520-280 – Tel.: (51) 3361 6700 – e-mail: [email protected]

Produção Gráfica/Graphics Production Arte Brasil Publicidade

R. P. Domingos Giovanini, 165 – Pq. Taquaral – Campinas – SPCEP 13087-310 – Tel: (19) 3242.7922 – Fax: (19) 3242.7077

Revisão:Cristiane Billis – MTb 26.193

Os artigos e manifestações assinados correspondem, exclusivamente, às opiniões dos respectivos autores.

Revista Atitude - Construindo Oportunidades – Revista de Divulgação Científica da FaculdadeDom Bosco de Porto Alegre

Ano V, Volume 6, número 10, jul-dez 2011 – ISSN 1809-5720

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CIÊNCIAS SOCIAIS E APLICADAS

1. Dom Bosco e os jovens: um binômio inseparável ......................................................09 Marcos Sandrini

2. As várias dimensões entre o conhecimento e o desenvolvimento de inovações: conceitos e aspectos associados à inovação ............................................................27 Neuri A. Zanchet

3. Direitos Humanos e Perdão: a Guerrilha do Araguaia, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a irreversibilidade de ação ......37 Adroaldo Junior Vidal Rodrigues, Lucas Medeiros, Rodrigo Valin e Thayse Klein

4. Os atos unilaterais no Código Civil Brasileiro – breves apontamentos .............................43 Débora Cristina Holenbach Grivot

5. Prudência e técnica jurídicas: uma breve reflexão filosófica a partir do exemplo fornecido pelo jurista do Direito Romano Clássico ....................................61 Klaus Cohen-Koplin

6. En torno a la eficacia de la ley penal en las conductas de tránsito ................................67 Ricardo Osvaldo Alvarez

7. Contagem da prescrição trabalhista na ocorrência de causas interruptivas .....................77 Cinthia Machado de Oliveira

8. Reconhecimento de sociedades estrangeiras no Brasil ...............................................89 Silvio Javier Battello Calderon e José Nosvitz Pereira de Souza

CIÊNCIAS TECNOLÓGICAS

9. Uma visão geral acerca dos Sistemas Gerenciadores de Conteúdo .............................. 103 Anderson Corbellini, William Hart Oliveira, Cristiane Vieira Chagas e Adriana Paula Zamin Scherer

10. A implementação da ETE em uma agroindústria ..................................................... 111 Sergio Eduardo Ziglia Bueno Junior, Clarice Henrique Dias, Alessandra Carla Ceolin e Alexandre de Melo Abicht

Sumário

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Ciên

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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano V · Número 10 · Julho - Agosto de 2011 9

Dom Bosco e os jovens:um binômio inseparável

Marcos Sandrini1

Resumo

Este estudo procura analisar o pensamento e a ação de Dom Bosco dentro do contex-to da restauração e do risorgimento na Península Itálica primeiro e, depois, na Itália. A unificação italiana aconteceu por anexação de todos os estados ao estado sardo piemontês. Dom Bosco, fiel à sua formação e à sua condição de sacerdote, sempre se posicionou politicamente ao lado do Papa. Por este aspecto pode-se falar de ini-migos de Dom Bosco que seriam todos os que se posicionavam do outro lado. Mesmo seus inimigos o admiravam pela sua capacidade de unir forças para a “salvação” da juventude pobre e periclitante. Esta foi a sua marca. A partir desta sua opção, o autor apresenta três opções de Dom Bosco que ainda servem de inspiração para a educação: a transformação dos jovens de destinatários em protagonistas; a pedago-gia diferencial do possível; a visão dos jovens na perspectiva da complexidade.

Palavras-chave

Dom Bosco. Contexto. Restauração-risorgimento. Complexidade. Possível. Protago-nista.

Abstract

This study seeks to analyze the thinking and the action of Don Bosco in the context of the restoration of the Risorgimento in Italy. The Italian unification took place for the annexation of all small countries of the region to the porbeagle Piedmontese state. Don Bosco, true to his training and his status as a priest, always politically positioned next to the Pope. In this terms we can speak of enemies of Don Bosco that would be all that is positioned on the other side. Even his enemies admired for his ability to join forces to “salvation” of poor boys and vulnerable. This was his trademark. From this their option, the author presents three options for Don Bosco who still serve as inspiration for education: the transformation of young people into protagonists, the new pedagogy of difference as possible, the vision of young people from the pers-pective of complexity.

Key-words

Don Bosco Context. Restoration Risorgimento. Complexity. Possible. Protagonist.

(1) Diretor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Correio eletrônico: [email protected]

Ciências Sociais e Aplicadas

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1. Contexto sociopolítico do século XIX

Quem lê um livro ou vê um filme sobre Dom Bosco está acostumado a se defrontar com a expressão “inimigos de Dom Bosco”. Na realidade, Dom Bosco viveu num século muito conturbado do ponto de vista sócio-político-econômico-cultural e religioso. Como é possível falar em inimigos de uma pessoa reconhecida como pioneira na educação das novas gerações do século XIX, sobretudo dos mais pobres e excluídos? Dom Bosco viveu durante todo o arco do século XIX (1815-1888). A Revolução Francesa (1789) provocou uma mudança radical na maneira de conceber a organização sociopolítica da sociedade. Seu ideal de igualdade, fraternidade e liberdade não se coadunava mais com determinadas visões sociais e políticas. Toda pessoa traz sua contribuição original para a história do mundo, mas, ao mesmo tempo, é moldada pelo contexto em que está inserida. Não é possível estudar e compreender uma pessoa fora de seu contexto.

Não se pode, sob o risco de incorrer no deslize do amesquinhamento interpretativo, descolar o pensador perscrutado da sociedade em que este se insere, pois é certo que o homem não prospera no isolamento, não sendo capaz de, sozinho, satisfazer a todas as necessidades impostas pela vida. Influenciar e ser influenciado, eis o que ocorre com mais frequência na vida social. (BARROS, 2010, p. 13).

Qualquer tentativa de conhecer o pensamento de Dom Bosco ficaria prejudicada sem as consi-derações necessárias sobre o período em que viveu. Não é possível compreender suas ações sem que se atente para as motivações de seus atos. Por isso, retroceder aos contornos históricos que delinearam sua vida é imperativo à medida que, não seguindo esse roteiro, as deturpações interpretativas avolu-mar-se-iam. Dom Bosco é um legítimo filho de sua época. João Melquior Bosco nasceu em 16 de agosto de 1815. Neste mesmo ano se celebrava o famo-so Congresso de Viena sob a presidência de Metternich (1773-1859), Ministro de Assuntos Exteriores da Áustria. Este Congresso reorganizou a Europa Central, inaugurando o período chamado de Restauração. Este período marca a restituição dos poderes legítimos depostos por Napoleão, voltando a seu antigo regime, o ancién régime. A Restauração, no entanto, teve vida efêmera, uma vez que não pôde deter as forças de mudança e os acontecimentos que a precederam estavam destinados a mudar para sempre a face da Europa ocidental. A península itálica, com uma população de quase 20 milhões de habitantes neste momento, era um mosaico de 10 estados regionais: Reino da Sardenha, Reino Lombardo-Vêneto, Ducado de Par-ma e Piacenza, Ducado de Lucca, Granducado de Toscana, Ducado de Módena e Reggio, Ducado de Massa e de Carrara, Estados Pontifícios, República de San Marino, Reino das Duas Sicílias. O Reino de Sardenha (Sabóia e Piemonte) era o único Estado verdadeiramente independente na Itália. Todos os demais, direta ou indiretamente, estavam sob o império dos Habsburgos da Áustria ou dos Bourbons, aliados da Áustria.

Dom Bosco pertencia ao Reino da Sardenha, uma vez que nascera no Piemonte. Aí recebeu toda sua educação e formação no período da Restauração, antes da Revolução Liberal de 1848. Teve que aceitar a realidade da Revolução Liberal (constituição, parlamento, gabinete de ministros, etc.), mas nunca se solidarizou com os movimentos liberais e o Risorgimento; sobretudo porque os liberais começaram a atacar a Igreja e o papado. Manteve-se até o fim como um piemontês da “velha ordem”, um assunto de lealdade a seu rei, cuja autoridade, assim pensava, estava erodindo pelas malvadas instituições da Revolução Liberal. (LENTI, 2010, p. 128).

O Risorgimento italiano era um movimento que tinha dois grandes objetivos. O primeiro deles era terminar com o governo absolutista e estabelecer uma ordem parlamentar constitucional. O outro era pôr fim à dominação estrangeira, como requisito prévio para a unificação nacional. Com efeito, no período da Restauração e das revoluções liberais, a Itália estava dividida em Estados regionais, domi-nados em sua maioria pela Áustria. O movimento liberal que visava a libertação da Áustria e a unifica-ção da Itália como Estado-nação recebe o nome de “Ressurgimento”, isto é, o ressurgir da nação. Não havia unanimidade em como se fazer a unificação italiana. Um dos grandes problemas era o Papa e os estados pontifícios. A unificação italiana se fez mediante a anexação voluntária ao Pie-monte dos estados regionais do norte e, em parte, pela conquista do centro e do sul da Itália. A Casa de Sabóia era considerada como o único possível líder no movimento de libertação e unificação. Depois da revolução liberal de 1848, o rei Carlos Alberto se comprometeu em lutar contra os austríacos, com

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a ajuda de levantamentos em regiões dominadas pela Áustria, no norte da Itália (Primeira Guerra da Independência). Terminou em catástrofe, é certo, mas a guerra os havia unido. Tornou-se evidente que o Piemonte sozinho não poderia consegui-lo. Daí que o governo piemontês do primeiro ministro Cavour aceitasse a ajuda da França, por mais que seu soberano, Napoleão III, tivesse seus próprios fins. Falamos acima da Revolução Liberal de 1848 no Reino da Sardenha. Um político liberal era uma pessoa que defendia a abolição do Antigo Regime Absolutista (Ancièn Régime). Os liberais se opunham à “origem divina” da realeza. Em consequência, recusavam “o princípio de legitimidade” que defendia que apenas um membro da dinastia poderia exercer legitimamente a autoridade. Uma revolução liberal era um ato de força dos liberais com o objetivo de por fim ao regime absolutista e o estabelecer uma nova ordem política. Uma constituição e o estabelecimento de um parlamento (geralmente com duas câmaras) que representasse os cidadãos foi a primeira e fundamental expressão da ordem política liberal. A nova ordem política liberal poderia ser concebida e executada de diversas maneiras. Em 1848, o Reino da Sardenha e do Piemonte se organizou como uma monarquia constitu-cional com uma constituição chamada de Estatuto. Uma monarquia constitucional mantinha o monarca como chefe de Estado. A autoridade era partilhada ou exercida por um parlamento e um gabinete presidido por um Primeiro Ministro, de acordo com os termos de uma Constituição liberal adotada por este Estado. Na realidade, o poder do monarca ficava limitado pela Constituição. A unificação da Itália se fez em 1859-1861 por anexação, significando que o rei do Piemonte se convertia em Rei da Itália e a Constituição do Piemonte era (basicamente) a Constituição da Itália. Na Itália, a monarquia dos Sabóia acabou em 1946 por referendum. A Itália se converteu numa república unitária centralizada, de estilo francês. Em relação à Igreja este projeto significava a desconfessionalização do Estado, sua laicização e secularização, que excluía qualquer compromisso com a Igreja. A situação tornara-se muito pesada no Piemonte pela intransigência radical de Dom Fransoni, arcebispo de Turim que, já em 1848, não conseguira aceitar totalmente o novo regime constitucional com as consequentes liberdades de imprensa, de consciência e de culto, e a potencial “desconfessio-nalização” do Estado sabaudo. Dom Fantini, bispo de Fossano e senador, retratava sem rodeios o drama de consciência vivido pelos bispos. “O episcopado está na alternativa entre dois males: desobedecer ao papa ou ajudar a destruir a Religião. Estamos estudando algum modo de salvar a Religião.”(MALLANO apud BRAIDO, 2008a, p. 43). Dom Bosco recebeu toda a sua formação em tempos da Restauração (1815-1848), quer dizer, depois das experiências da Revolução Francesa e da época napoleônica (1789-1815). Estas recentes ex-periências tornavam inevitável que se percebesse como perverso, ou pelo menos como suspeito, todo movimento revolucionário que visasse mudar a ordem política e social. Esta atitude emanava também de pressupostos filosóficos e teológicos sobre a origem divina do regime pré-revolucionário, quer dizer, a teoria do direito divino dos reis e o princípio da legitimidade. Era generalizada a convicção de que os princípios de liberdade e de igualdade da Revolução Francesa não apenas erodiam a ordem divina-mente estabelecida, mas que eram responsáveis também pelos excessos da Revolução e da ditadura de Napoleão. Para muita gente, termos como revolução, democracia, constituição, parlamento, repú-blica etc., significavam o intento de derrubar uma ordem divinamente constituída. A recusa da Revolução era, além disso, uma recusa do princípio básico da Ilustração, isto é, que a razão humana, por si só, pode atingir a Verdade e o Bem. A Igreja, por seu lado, sempre consi-derou que a revelação divina, componente da religião católica, era elemento central na ordenação e na preservação da sociedade. Isto, por sua vez, tinha conduzido a uma aliança do Altar e do Trono. A Igreja apoiava a monarquia porque a autoridade do Rei se considerava apenas limitada pela lei divina. E o Rei, nomeado por desígnio divino, agente da ordem na sociedade, tinha o dever de defender a Igreja e reprimir a revolução. Esta postura reacionária não permitiu que se visse valores emergentes importantes para a convivência cidadã: liberdade, igualdade, solidariedade, justiça. Em 1832, a encíclica Mirari vos de Gregório XVI condenou “as novas liberdades”, incluindo a liberdade de consciência nos assuntos que se igualava o “erro” com a “verdade”. Dom Bosco tinha esta visão e se opunha à mudança revolucionária e não apoiou o movimento para a unificação da Itália (Risorgimento) porque destronaria os legítimos governantes dos Estados da região, sendo o Papa um deles. Duas citações tiradas de suas obras podem ilustrar esta afirmação.

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A milícia e o clero são os dois grandes corpos chamados a salvar o futuro. Só no sentimento religioso e no respeito da autoridade, a sociedade desconcertada poderá encontrar força e salvação.(DOM BOSCO apud BRAIDO, 2008a, p. 285).A República de Veneza, por exemplo, ao longo dos séculos tornara-se a mais famosa república da Itália porque fora sempre governada pelos nobres e jamais caíra nas mãos do povo. (BOSCO apud BRAIDO, 2008a, p. 287).

Os liberais católicos, que também existiam tanto entre os clérigos quanto entre os leigos, eram uma pequena minoria intelectual. Ao mesmo tempo em que condenavam os excessos da Revolu-ção Francesa e o despotismo de Napoleão, reconheciam valores cristãos básicos na Revolução; acredi-tavam numa nova política e ordem social cristãs. Em relação ao Risorgimento italiano e à unificação da Itália, os liberais católicos eram “patriotas”; pensavam que a Itália poderia ser libertada da dominação estrangeira da Áustria e dos Bourbons e conquistar a unidade. Do mesmo modo acreditavam no fim do poder temporal do Papa em sua forma tradicional. O escritor-poeta Alexandre Manzoni, o músico Giu-seppe Verdi e o pensador Antonio Rosmini eram liberais católicos. Dom Bosco nunca foi um “patriota” italiano. De fato, entrou em conflito com os sacerdotes patriotas do Oratório nos tempos da Revolução liberal no Piemonte. Dom Bosco, no conjunto de sua vida, adequou-se pragmaticamente à evolução dos aconteci-mentos, embora nem sempre compartilhando seus resultados, pedindo a todos liberdade para realizar a própria missão em favor da juventude. No fundo, porém, considerava que a perda do poder temporal pudesse tornar a Igreja mais livre e sua ação pastoral mais eficaz. Ao menos numa ocasião se pronun-ciou em favor de uma Igreja desatada de alguns vínculos, ainda que prisioneira no seu chefe.

Não vos parece já um grande triunfo da Igreja – confiada em fevereiro de 1873, em Piacenza, a alguns eclesiásticos que lamentavam os males do tempo presente – poder ela, no atual estado de coisas, livrar--se de certos tratados ou concordatas com vários Governos, que pretendiam eleger, eles próprios, tanto os bispos quanto os párocos? Como se vê presentemente na Itália não vos falta nem mesmo um Bispo, e não foi também uma boa coisa o fato de eles terem ido morar, por falta de bens temporais, nos respec-tivos seminários? Pois assim eles puderam aproximar-se de seus clérigos, falar-lhes e conhecê-los mais de perto. Eis como o Senhor sabe tirar o bem do mal.(BERTO apud BRAIDO, 2008a, p. 73).

Jamais faltara na Igreja uma minoria que aceitava a estação da liberdade e não considerava uma fratura o fim do Estado Pontifício. Antes, muitos deles desejavam tal fato tanto em nome da uni-versalidade da Igreja e da liberdade evangélica, como da nacionalidade italiana. O grande movente da vida de Dom Bosco sempre foram os jovens. Por eles estava disposto a aceitar os acontecimentos e encontrar caminhos para assisti-los, promovê-los e libertá-los para torná--los “bons cristãos e honestos cidadãos”.

2. As origens de Dom Bosco e sua formação

Dom Bosco nasceu na grande região do Piemonte, norte da Itália. Sua capital, Turim, em 1790 tinha cerca de 92 mil habitantes. No período das guerras napoleônicas desceu para 81 mil. Em 1821 já eram 89 mil. Em 1841 quando Dom Bosco começou sua obra em Turim em favor dos jovens pobres, a população subira para 130 mil. Dom Bosco pertencia ao povoado de Murialdo, mas não residia nele. Sua família vivia num pequeno conjunto de casas de agricultores chamada I Becchi. No alto da colina se erguia algumas construções maiores pertencentes a um senhor de nome Jacinto Biglione. Aqui seus pais viviam e tra-balhavam como lavradores arrendatários e aqui nasceram seus filhos. Nesta região a terra estava dividida em pequenas parcelas, em sua maior parte em mãos de pequenos lavradores que viviam no município, em seus povoados e aldeias. Os Biglione eram profis-sionais residentes em Turim e contrataram um arrendatário que residia no casario com sua família. O casario oferecia múltiplas utilidades. Uma parte do edifício albergava as pessoas; noutra secção estava o estábulo, o depósito e o lagar. Um trabalhador arrendatário era parceiro meeiro, porque trabalhava as terras, partilhando a colheita. Os Bosco viviam e trabalhavam nas terras das colinas. Colheitas de produtos de primeira necessidade absorviam altas percentagens das terras de cultivo: cereais (23%), legumes (24%), vinho (22%), forragem de feno e pastos permanentes (11%) e outros (20%). Tudo isto numa propriedade de 49,5 ha, embora a terra cultivável medisse 12 ha. A terra onde nasceu Dom Bosco era e é belíssima.

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2.1. A família de Dom Bosco

Em 1805, com 21 anos, Francisco Luis Bosco casou-se em primeiras núpcias com Margarida Cagliero. Deste primeiro casamento nasceram Antonio José (1808) e Teresa Maria (1810), que morreu dois dias depois deste nascimento. Margarida Cagliero morreu em 28 de fevereiro de 1811 deixando viúvo Francisco com 27 anos e um filho de três anos, Antonio José. Neste mesmo ano, Francisco conheceu Margarida Occhiena de Capriglio com quem se casou em 6 de junho de 1812. Desse matrimônio nasceram José Luis (1813) e João Melquior (1815). O pai de Dom Bosco não tinha nenhuma propriedade. Na casa conviviam seus pais, Francisco e Margarida, a avó paterna, Margarida Zucca e os três filhos: Antonio José, José Luis e João Melquior. O pai de João Bosco, Francisco Bosco, estava procurando adquirir alguma terra para se independenti-zar. Morreu, porém, de pneumonia em 11 de maio de 1817 com 33 anos. Este fato marcou fortemente Dom Bosco. Depois da morte do marido, Margarida Occhiena herdou dívidas e o cuidado da família. Margarida recusou diversos casamentos escolhendo cuidar sozinha da propriedade e da educação dos filhos. Embora pobres, não passavam grandes dificuldades. Não tinham casa própria, os filhos nasce-ram em casa alheia, emigraram de um lado para outro, conforme encontrassem granjas para arrendar. Depois da morte do marido, a família caiu em profunda pobreza. A melhor medida da pobreza de Mar-garida está no fato de que não pôde contribuir em nada para os estudos do filho. Ele teve que pedir e conseguir ajuda de benfeitores, partilhar prêmios e servir-se de sua habilidade para sobreviver como estudante. Quando em 1883 Dom Bosco corrigia as provas de sua própria biografia escrita por Albert Du Boÿ na parte que falava de sua família: “eram camponeses de boa posição”, ele corrigiu dizendo: “eram camponeses pobres”. Esta experiência pessoal de pobreza estava destinada a ser um elemento de seu compromisso vocacional pelos pobres, assim como de sua espiritualidade.

2.2. A mãe de Dom Bosco: Margarida Occhiena

A família estabelecida na pequena casa em 1817 era formada por Margarida Bosco (29 anos de idade), sua sogra inválida Margarida Zucca (65 anos), o enteado Antonio José (9 anos) e seus dois filhos José Luis (4 anos) e João Melquior (2 anos). Viviam na mais crua pobreza que se tornou mais forte ainda com a seca e a fome de 1816-1818. Os três filhos não poderiam ser mais diferentes um do outro. João era vivo, espontâneo, imaginativo, empreendedor. Tinha enorme desejo de descobrir e aprender. Nasceu para ser líder. José era mais inclinado a deixar-se guiar. Embora caprichoso e cabeçudo às vezes, era geralmente educado e de boas maneiras, paciente e retraído. A Antônio, órfão desde os 9 anos, correspondia ser o cabeça da família quando alcançasse a maioridade. À medida que foi crescendo foi-se tornando um jovem impertinente. É descrito como desobediente e desrespeitoso para com sua madrasta, apesar de sua in-cansável amabilidade e cuidados. As disputas dentro da família se tornaram tão grandes que obrigaram Margarida a enviar João a trabalhar fora de casa, como empregado numa das granjas da redondeza. A situação se acalmou quando foi possível dividir as posses dos Bosco entre os filhos. Foi mérito de Margarida conservar a família unida sem ter que desfazer-se de Antonio.

Margarida é recordada como uma mulher santa e de caráter. Sua biografia conserva exemplo de sua espiritualidade e devoção. Era profundamente cristã, totalmente dedicada a seus filhos e ao serviço de Deus e do próximo. Uma mulher consagrada por inteiro à educação de seus filhos, aos quais ensina o catecismo, leva à Igreja, prepara para os sacramentos. Em especial, dedicou seus melhores esforços para seu desenvolvimento pessoal. Margarida queria dotar seus filhos de caráter moral e força espi-ritual interior para a vida e o compromisso com a vida. Educou-os no sentido da presença de Deus, na confiança na Divina Providência, na honestidade e integridade, no amor ao trabalho e na fidelidade aos deveres, na sensibilidade diante das necessidades dos outros, expressa em atos de serviço concreto, no otimismo cristão e numa viva esperança no prêmio final de Deus. Estes eram os valores básicos com os quais ela vivia e que transmitiu a seus filhos, especialmente a João. (Cfr. LENTI, 2010, p. 154).

Margarida educou seus filhos para enfrentar uma vida de penúria e mortificação: gastos ex-tremamente pequenos, colchões duros de palha. Esforçou-se, sobretudo, em ensinar-lhes a doutrina cristã, educá-los para a obediência e dar-lhes trabalhos que fossem compatíveis com sua idade.

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Margarida tão sábia quão poderosa é a força da educação cristã na vida de uma criança: sabia que o ensino da lei de Deus com o catecismo a cada tarde e sua recordação frequente durante o dia é o me-lhor meio de tornar as crianças obedientes a suas mães. Ela, por conseguinte, ensinava as perguntas e respostas do catecismo sempre, até que as crianças aprendessem de memória. (LEMOYNE apud LENTI, 2010, p. 155).

A educação pessoal, religiosa e moral de Margarida era estritamente tradicional. O estilo severo de relação pais-filhos, característico das famílias do Piemonte a fez ainda mais exigente após a morte do marido. Tudo ela o fazia temperado com um constante apelo à razão e à religião, com grande quantidade de gestos de afeto e cuidados. O êxito de Margarida pode ser atribuído a sua sabedoria e a um iluminado estilo educativo que neutralizava toda severidade tradicional.

Mulher equilibrada, de afetividade rica e lúcida, ela pudera e soubera exercer sobre os filhos o papel de mãe paterna que João expressaria numa missão e num estilo de ação que pode definir-se, sem jogo de palavras, paternalmente materna. (BRAIDO, 2008a, p. 317).

Margarida mudou-se para o oratório de Dom Bosco para morar com ele em 1846. Aí faleceu em 1856 aos 68 anos de idade. Duas mulheres marcaram fortemente a vida de Dom Bosco. A primeira delas foi Mamãe Margarida e a outra, Maria de Nazaré, Auxiliadora dos Cristãos.

2.3. O “Convitto Ecclesiastico”

João Bosco foi ordenado sacerdote em 5 de junho de 1841. Durante sua formação ele foi acompanhado por um santo e sábio sacerdote chamado João Cafasso. Quando se ordenou havia mui-tos sacerdotes na arquidiocese de Turim. Em 1789 era um para cada 70 habitantes. Em 1833 havia 1.651 sacerdotes seculares e 455.772 habitantes católicos na arquidiocese de Turim, uma média de um sacerdote para 276 pessoas. Só a cidade de Turim tinha 482 sacerdotes e 81.550 habitantes, um para 169 pessoas. No ano da ordenação de Dom Bosco (1841) havia 800 sacerdotes para uma população de 160.000 (1:200). Neste mesmo ano foram ordenados 47 sacerdotes na arquidiocese de Turim. Em 1861 era 01 para 335 habitantes. Durante as duas décadas em que Dom Bosco esteve em formação ou em seus primeiros anos de sacerdote, houve abundância de vocações. Obviamente que esta situação facilitava a sacerdotes zelosos e comprometidos, como Dom Bosco, poder escolher variados ministérios não diocesanos. A ocupação dos sacerdotes era de três tipos: os encarregados do ministério dentro das estru-turas pastorais diocesanas (párocos, coadjutores, curas do povo, diretores espirituais ou capelães de centros de caridade, hospitais, internatos e conventos); os professores e administradores (em escolas municipais e secundárias, em seminários e universidades, tutores privados, administradores e auxilia-res de instituições); os beneficiados, com ou sem obrigações (cônegos, capelães honorários, sacerdotes retirados e enfermos, sacerdotes que atendiam a interesses familiares). A metade do clero diocesano poderia ser catalogada na primeira categoria. Um seminarista assim escrevia ao seu arcebispo. Muitos sacerdotes encontravam trabalho por sua própria iniciativa, como tutores ou peda-gogos em casas de nobres ou de ricos, e não esperavam a destinação do Bispo. Durante muito tempo deixava-se aos sacerdotes a iniciativa no que se refere a emprego, simplesmente porque havia mui-tos sacerdotes. Devia-se competir até para um posto de coadjutor em uma paróquia. Se alguém era economicamente independente pelas circunstâncias familiares ou tinha outros meios de subsistência, seguramente vivia em sua própria casa, e empregava seu tempo como quisesse. Dom Bosco, sempre muito cioso de sua autonomia, escolheu viver seu ministério sacerdotal fora das estruturas diocesanas e paroquiais, sem expresso mandato do Arcebispo. Segundo Cafasso, um sacerdote da têmpera de Dom Bosco não poderia ser perdido pela diocese nem simplesmente integra-do nas estruturas paroquiais, pois era talhado para uma missão mais urgente e atual. Após sua ordenação sacerdotal foram-lhe oferecidas diversas possibilidades de ministério. Padre Cafasso as escutou e lhe disse simplesmente: “Tem que estudar teologia moral e pregação. Es-queça por agora estas ofertas e venha para o Convitto Ecclesiastico. Segui feliz seu conselho e no dia 3 de novembro de 1841 entrei no Convitto Ecclesiastico” (BOSCO, 2005, p. 117). Foi a primeira vez que Dom Bosco morou na cidade onde desenvolveu seu ministério sacerdotal e daí nunca mais saiu. Em suas Memórias do Oratório, ele escreve: ”em nossos seminários se estuda apenas o dogma especulativo. De moral apenas se analisam as questões controvertidas. Aqui se aprende a ser sacerdote.” O Convitto Ecclesiastico era uma pensão para sacerdotes recém-ordenados que desejassem

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aprofundar seus conhecimentos, sobretudo nas áreas da teologia moral, da retórica e do aconselha-mento pastoral. Aí Dom Bosco ficou durante três anos. Diversos sacerdotes turinenses aí trabalharam. Dentre eles sobressaem as figuras dos Padres Luis Guala, José Cafasso e João Borel. Aqui eles apren-diam a teologia moral de Santo Afonso Maria de Liguori. Além das aulas teóricas, havia também expe-riências práticas pastorais para que os novos sacerdotes pudessem responder às novas situações reais em que o povo vivia. Em 1841 havia sessenta matriculados e em 1844 os estudantes eram sessenta e quatro. O período de ouro do Convitto foi sob o reitorado do Padre José Cafasso quando alcançou grande prestígio e influência.

O padre Cafasso, meu guia havia seis anos, foi também meu diretor espiritual, e se fiz algum bem, devo-o a este digno eclesiástico, em cujas mãos coloquei minhas decisões, estudos e atividades. (BOS-CO, 2005, p. 120).

No período do reitorado de Guala e Cafasso (1817-1848 e 1848-1860), a cidade de Turim es-tava vivendo problemas sociais e econômicos nascidos de uma imigração massiva de camponeses e da incipiente industrialização. O que mais sobressaía era a questão dos jovens em situação de risco (os “pobres e abandonados”), a miséria em uma forma nova e virulenta e, em consequência, a delinquên-cia. Ambos tinham consciência do problema e da incapacidade de resposta construtiva das estruturas tradicionais da paróquia, especialmente em relação aos jovens. (LENTI, 2010, p. 332). Um dos trabalhos pastorais feitos por alguns sacerdotes do Convitto era o atendimento aos cárceres superlotados da cidade. Este trabalho lhes oferecia uma visão precisa e realista da magnitu-de do problema social, especialmente o relativo aos jovens. Os jovens viviam nos cárceres comuns. Apenas em 1845 quando foi inaugurada a prisão juvenil, chamada Generala, os menores culpáveis de crimes eram separados dos outros delinquentes. De 1831 a 1846, as estatísticas mostram que o roubo era a falta mais comum chegando a 30% dos delitos investigados pela polícia. Outros delitos eram o meretrício, a vagabundagem, a mendicância que chegavam a 20%. Seguiam os delitos de violência contra as pessoas (10%) e mais da metade destes era do tipo de ameaça e brigas como consequência de disputas. Nas Memórias do Oratório, Dom Bosco relata a lacerante degradação dos jovens nos cárceres da cidade. Esta situação motivará sua decisão de dedicar sua vida aos jovens.

Ver turmas de jovens, de 12 a 18 anos, todos eles sãos, robustos e de vivo engenho, mas sem nada fazer, picados pelos insetos, à míngua de pão espiritual e temporal, foi algo que me horrorizou. O opróbrio da pátria, a desonra das famílias, a infâmia aos próprios olhos personificavam-se naqueles infelizes. Qual não foi, porém, minha admiração e surpresa quando percebi que muitos deles saíam com o firme propósito de vida melhor e, não obstante, voltavam logo à prisão, da qual haviam saído poucos dias antes. (BOSCO, 2005, p. 121).

O encontro e a convivência com o Padre Cafasso o fez amadurecer muito. Primeiramente, nele Dom Bosco encontra o padre bom e o guia seguro que necessita para alcançar a maturidade hu-mana. Com ele alcançou paz de espírito, direção e liberdade. Foi a figura paterna que não teve em sua infância. Além disso, alcançou a maturidade teológica, no sentido de que encontrou os meios de corrigir uma carência teológica da educação do seminário, e integrá-la num âmbito total do ministério prático sacerdotal. Encontrou aí também a maturidade vocacional, porque aí fez uma opção definitiva pelos jovens e, mais especificamente, uma determinada categoria de jovens aos quais pessoalmente se sentia chamado. Encontrou também a maturidade espiritual uma vez que passou de uma espirituali-dade centrada em práticas ascéticas e de devoção ou no medo e aceitou uma espiritualidade baseada no amor de Deus e na caridade pastoral para com o próximo, a espiritualidade “salesiana”.

3. Jovens pobres e abandonados em Turim em meados do século XIX

No Convitto Ecclesiastico, Dom Bosco descobriu os jovens “pobres e abandonados” em Turim. O rápido crescimento demográfico em Turim é motivado, sobretudo, pela imigração dos camponeses empobrecidos do campo para a cidade. A propriedade familiar das terras foi diminuindo numa propor-ção alarmante, enquanto crescia a formação de grandes propriedades, com o crescente número de trabalhadores assalariados diaristas. Em 1848, a Gazeta do Agricultor ressaltava que “segundo se vai pelo campo, nas zonas afas-tadas dos centros povoados, fica-se assombrado ante o aspecto dos camponeses. Nessas zonas, todos,

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homens, mulheres e crianças, estão delgados, com escorbuto, parecem cansados, exaustos pela fome e pelo excesso de trabalho”. (LENTI, 2010, p. 364). A condição dos operários e gente simples sem trabalho na cidade não era melhor que no campo, pelo contrário, às vezes, era pior. Eis a situação: 1) nutrição inadequada e fome, crescimento irregular e deformações; 2) enorme aumento do número de indigentes, gente sem casa e mendigos; 3) crescimento do número dos cronicamente débeis, enfermos e necessitados de cuidados; 4) alto risco de enfermidade e alta mortandade entre as crianças; 5) baixa expectativa de vida (35 anos na cidade de Turim, um pouco mais alta que a média de todo o Reino); 6) falta de higiene e más condições sani-tárias, especialmente nos subúrbios dos distritos do norte; 7) frequentes epidemias, especialmente de tifo, cólera e varicela; 8) alta incidência de enfermidades tais como a tuberculose, doenças de brôn-quios e pulmão, disenteria e variedade de febres sem nome e infecções; 9) incremento da prostituição e doenças venéreas; 10) analfabetismo; 11) abandono das práticas religiosas; 12) embriaguez e outros vícios domésticos; 13) crescimento da atividade delitiva, especialmente dos furtos; 14) incremento de suicídios; 15) incremento de nascimentos ilegítimos; 16) crianças abandonadas e infanticídio.

Quem colocar os pés numa manufatura e especialmente numa fábrica de seda ficará dolorosamente surpreso vendo uma multidão de crianças, com a blasfêmia na boca, a todo momento, inconscientes, magras, maltrapilhas e sujas envolvendo-se no lodo, brigando entre si, e se encaminhando com peque-nos furtos, com pequenos roubos para o crime. Ficaria horripilado pensando no triste futuro que espera aquelas cabecinhas loiras a quem poucos cuidados bastariam para fazer voltar todas as carícias, todas as graças, todas as virtudes (também a tenra idade tem suas virtudes) da meninice. (DESRAMAUT, 2010, p. 16).

Estamos na metade do século XIX. O saneamento básico era completamente inexistente e os serviços de saúde entregues à caridade das pessoas e instituições de caridade. Quem era os jovens pobres e abandonados que Dom Bosco conheceu e para os quais dedicou toda a sua vida e seu ministério sacerdotal? Nas Memórias do Oratório ele diz que vinham ao Oratório “canteiros, pedreiros, estucadores, calceteiros, rebocadores e outros que vinham de povoados distan-tes” (BOSCO, 2005, p. 127). Eram jovens que viviam nos subúrbios dos bairros do norte de Turim, procurando sobreviver com qualquer meio que se oferecesse, ou imigrantes de temporada, empregados marginalmente no serviço da construção civil. Todos eram jovens em situação de risco. Dom Bosco ressalta que muitos deles tinham estado na prisão ou estavam em perigo de ir para lá. Estes rapazes, alguns dos quais com mais de 25 anos, se bem que a maioria oscilava entre 12 e 20 anos, apresentavam diferentes proble-mas pessoais e provinham de diferentes circunstâncias familiares, todos pertenciam à categoria que se designa na imprensa do tempo como “pobres e abandonados”. Todos os dias, mais de mil rapazes se aglomeravam na região da praça do mercado de Porta Palácio, esperando ser contratados ou, sim-plesmente, passeando. A estes se deve acrescentar rapazes mais novos, verdadeiras crianças. Para economizar, muitos proprietários de firmas contratavam um grande número de mulheres e de crianças com apenas oito anos. Seu horário de trabalho chegava a 16 horas diárias. Nesta época apenas 1 de 5 jovens trabalhadores ia ou tinha ido durante algum tempo à escola. Cerca de 40% dos jovens abaixo de 20 anos eram analfabetos. Muitos morriam por tuberculose, intoxicações e várias infecções virais. Os que sobreviviam ficavam debilitados por toda a vida. As crianças eram castigadas, frequentemente, pelas mais pequenas infrações.

Deve-se à iniciativa de homens da esquerda a primeira tímida, lei italiana sobre o trabalho infantil. Na verdade, os liberais, moderados não se tinham revelado particularmente sensíveis aos problemas sociais das classes subalternas e, em particular, ao trabalho feminino e infantil. Apesar das discussões, das sindicâncias, dos projetos, só em 31 de janeiro de 1884, Domenico Berti, ministro da Agricultura, Indústria e Comércio no quinto ministério Depretis, apresentava um projeto de lei, extremamente moderado devido à situação, de modo a mitigar a intransigência da oposição. O sucessor, Bernardino Grimaldi, que assumiu o cargo em 31 de março de 1884 no sexto ministério Depretis, conseguia que se rediscutisse o projeto de Berti, eliminando a parte relativa ao trabalho feminino. A lei sobre o trabalho infantil era promulgada em 11 de fevereiro de 1886. Vetava o trabalho das crianças com menos de 9 anos, o trabalho nas minas de quem tivesse menos de 10 e o trabalho noturno aos que tinham menos de 12 anos. Era uma solução tímida dos problemas evidenciados pelas sindicâncias de 1876 a 1879, sobretu-do em relação ao trabalho nas indústrias têxteis e aos meninos das minas de enxofre da Sicília. Apenas em 1902 haveria a primeira lei sobre o trabalho feminino. Noutra frente, em 15 de abril de 1886, era promulgada a lei sobre o reconhecimento jurídico das sociedades de mútuo socorro, largamente difun-didas. (BRAIDO, 2008, I, p. 62).

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A pobreza, às vezes extrema, era algo comum, mesmo entre os que tinham um trabalho per-manente, incluindo os empregados na construção civil que era o melhor pago. O gasto diário dos po-bres consistia nos alimentos mais baratos e menos nutrientes: pão, polenta, batata, legumes, algumas verduras e fruta do tempo. Os operários buscavam o único entretenimento barato possível: a taberna. Numerosos estabelecimentos deste tipo tinham surgido nos bairros do norte. Ali, os trabalhadores passavam suas horas livres da tarde bebendo vinho barato e jogando. A embriaguez, a obscenidade e a violência eram com frequência o resultado. Daí ser muito comum a delinquência juvenil. Muitos deles formavam bandas, agrupamentos, verdadeiras gangues. Era inevitável que muitos destes jovens “pobres e abandonados” se metessem em problemas e fossem parar na prisão. Havia quatro cárceres em Turim nos anos 40. Dois para homens e dois para mulheres. Todos situados dentro da cidade. Em 1845 se inaugurou o caro e “moderno” correcional para jovens, situado junto à praça de uma grande casa de campo chamada “Generala”, bastante fora da cidade. Esta era a situação quando Dom Bosco começou a visitar os cárceres em 1841. Visitou os dois cárceres masculinos, onde também estavam encarcerados jovens delinquentes. É muito importante acentuar, porém, que nos anos quarenta do século XIX Turim era uma cidade mais de pobres e abandonados que de delinquentes.

4. Os começos do Oratório

Dom Bosco acreditava que o Oratório era o instrumento pensado pela Providência para reunir, evangelizar, educar e cuidar destes jovens. Apenas matriculado no Convitto, Padre Cafasso pediu a Dom Bosco que visitasse os cárceres onde, pela primeira vez, se encontrou com a condição alarmante e lamentável de muitos jovens ali detidos. Na sacristia da Igreja de São Francisco de Assis, ao lado do Convitto, ele começou a reunir jovens que o procuravam e a quem ele encontrava nas ruas de Turim.

Embora minha finalidade fosse recolher somente os rapazes em maior perigo, preferencialmente os saídos das prisões, todavia, para ter uma base sob a qual construir a disciplina e a moralidade, convidei alguns de boa conduta que já tinham recebido educação religiosa. Aos sábados me deslocava aos cár-ceres com os bolsos cheios de cigarro, fruta e bolachas para granjear o afeto dos jovens que tiveram a desgraça de cair ali; para assisti-los, ganhar sua amizade e, desta maneira, animá-los a vir ao oratório, quando tivessem, a sorte de sair daquele lugar de castigo. (BOSCO, 2005, p. 126).

Conta a tradição salesiana que o primeiro jovem com o qual Dom Bosco se encontrou foi Bartolomeu Garelli. Na realidade, o órfão Garelli, que tinha recebido a primeira lição de catecismo na festa da Imaculada Conceição, representa simbólica mais que historicamente os começos do oratório.

Em 1841 Dom Bosco, trabalhando em colaboração com outros sacerdotes, começou a juntar em locais apropriados os jovens mais abandonados da cidade de Turim. O propósito destas reuniões era entretê--los com jogos e, ao mesmo tempo, repartir-lhes o pão da palavra de Deus. (DOM BOSCO apud LENTI, 2010, p. 403).

Daí para a frente esta ideia não mais abandonou Dom Bosco. Tornou-se uma obsessão. Dormin-do, sonhando ou acordado, os jovens pobres e abandonados foram, são e serão a grande paixão de Dom Bosco. Ele viveu no Convitto até outubro de 1844. Ao deixar São Francisco de Assis, o oratório andou de um lugar para outro, porém sempre na zona norte de Turim, principalmente em Valdocco até que se instalou na propriedade do Senhor Pinardi. Este período é conhecido como o do “Oratório Itineran-te”. Tal expressão é especialmente apropriada para o período que vai desde maio de 1845, quando o oratório deixou o Orfanato da Marquesa Barolo até seu assentamento definitivo em primeiro de abril de 1846 na Casa Pinardi. Só para citar, vamos enumerar os lugares em que o Oratório itinerante esteve presente: - Oratório no Refúgio da Marquesa Barolo (20 de outubro a 1º de dezembro de 1844). - Oratório no Hospital de Santa Filomena (8 de dezembro a 18 de maio de 1845). - Oratório no cemitério de Santa Cruz (São Pedro in Vinculis – 25 de março de 1845). - Oratório sem lugar para reunião (1º de junho a 6 de julho de 1845). - Oratório em São Martinho, nos moinhos do Dora (13 de julho a final de dezembro de 1845). - Oratório na casa do P. João Batista Moretta (4 de janeiro a início de março de 1846).

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- Oratório no campo dos irmãos Filippi (início de março de 1846). - Casa Permanente (1 de abril de 1846).

Assim tem início o Oratório de São Francisco de Sales. “Começou a denominar-se Oratório de São Francisco de Sales por duas razões: primeira, porque a marquesa Barolo tinha a intenção de fundar uma congregação de sacerdotes com este título, tanto assim que mandou pintar a imagem do santo; segunda, porque nosso ministério exige grande calma e mansidão, nos pusemos sob a proteção de São Francisco de Sales” (BOSCO, 2005, p. 137). Aqui está a base de seu método educativo, o Sistema Preventivo.

A prática deste sistema está toda baseada nas palavras de São Paulo que diz: “A caridade é benigna, é paciente; tudo sofre, tudo espera, tudo suporta.” Com ela, razão e religião são os instrumentos dos quais deve constantemente se servir o educador, ensiná-los, ele mesmo praticá-los, se quiser ser obe-decido e obter seu fim. (BOSCO apud BRAIDO, 2004, p. 266)

5. Originalidade do Oratório de Dom Bosco

A Obra dos Oratórios é antiga na Igreja Católica da Itália. Já no século XVI, São Felipe Neri (1515-1595) fundara a Congregação do Oratório. Dele muito Dom Bosco aprendeu, sobretudo no que diz respeito ao espírito que deve reinar no oratório. “Longe de mim, o pecado e a tristeza!” é uma frase atribuída a Felipe Neri. Contemporâneo de Dom Bosco havia o Padre Cocchi que também tinha oratório na zona norte de Turim, não longe do Oratório de Valdocco.

Estabelecido na Casa Pinardi (1846), Dom Bosco, respondendo mais uma vez a uma necessi-dade premente da juventude, abriu um abrigo ou residência juvenil, isto é, uma casa para os jovens necessitados e sem moradia (1847). Ele queria que fosse um lugar para os rapazes realmente mais pobres do Oratório. Era chamada de Casa Anexa ao Oratório.

Nos demos conta de que alguns (jovens) se encontram tão abandonados que, a menos que lhes propor-cione abrigo, qualquer cuidado que se espere deles seria inútil. Por isso mesmo, na medida do possível, deve-se abrir casas de acolhida nas quais, com os meios que a Divina Providência proporcionar, se lhes proporcione abrigo, alimentos e roupa. Enquanto são instruídos nas verdades da fé, deve-se iniciá-los em algum ofício ou arte de trabalho, como se faz no presente na casa anexa ao Oratório de São Fran-cisco de Sales desta cidade. (DOM BOSCO apud LENTI, 2010, p. 489)

Numa tarde chuvosa de maio de 1847, Dom Bosco e Mamãe Margarida alojaram um órfão de Valsesia de 15 anos, que não tinha moradia. Não se cita o nome. Dom Bosco acrescenta: “Logo tivemos um companheiro para ele.” Dom Bosco encontrou este segundo rapaz no Corso San Massimo, também órfão e sem moradia, chorando encostado numa árvore. “Dois jovenzinhos receberam alojamento. Eram pobres, órfãos e sem ofício, ignorantes em matéria religiosa. Assim começou a casa e nunca deixou de crescer” (DOM BOSCO apud LENTI, 2010, p. 490). E realmente nunca deixaram de crescer. Em 1847 eram dois e em 1869 já eram 375. Em 1853 eram 100 rapazes dos quais 65 eram aprendizes que trabalhavam e 35 eram estudantes. Já em 1856 eram 200 jovens acolhidos dos quais 65% eram estudantes e 35% aprendizes. “De todas as partes apareciam jovens abandonados, aos montes. Foi então que se estabeleceu a regra pela qual se admitiriam somente rapazes entre doze e dezoito anos, órfãos de ambos os pais, e que estivessem em estado de mísera pobreza e não tivessem ninguém que cuidasse deles” (DOM BOSCO apud LENTI, 2010, p. 492). Também aqui os historiadores dos inícios da obra salesiana admitem que o órfão de Valsesia é mais simbólico que histórico. O tipo de “jovem órfão em perigo, sem lugar, abandonado”, marca não apenas a origem dos inícios, mas também define o ca-ráter da obra durante seu desenvolvimento. Esta ideia foi constante em Dom Bosco em seu pensamen-to e em suas declarações, inclusive quando, por exemplo, em suas escolas do Oratório e mais adiante nas demais escolas em outras partes, chegaram jovens que tinham casa, não eram abandonados, nem órfãos, nem sequer estavam (estritamente) em perigo. Dom Bosco começou com escolas profissionais. Por que, então, aos poucos o número dos estudantes foi sobrepujando o dos aprendizes? Várias são as razões. A primeira delas é que a Itália vivia uma primavera educacional com a reforma escolar de Boncompagni (1848) e Dom Bosco se sentiu comprometido cada vez mais com a educação por meio das escolas para os pobres, com a finalidade de torná-los “bons cristãos e honestos cidadãos”. O segundo, porque a escola se tornou o melhor veículo

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para a “experiência” educativa de Dom Bosco. Em terceiro lugar, e mais importante, porque através da escola, Dom Bosco pretendia cultivar vocações para o sacerdócio e, em seu caso, para a Sociedade Salesiana, entre os rapazes (pobres) que deram mostras de boa conduta, boa vontade e inteligência. É muito importante aprofundarmos esta reflexão. O projeto de Dom Bosco não poderia ser levado para a frente sozinho. Ele sempre contou com colaboradores extraordinários. O maior deles, talvez, foi o Padre João Borel, seu professor no Convitto e seu financiador para a aquisição da Casa Pinardi junto com o Padre Cafasso. Esteve sempre disponível e trabalhou com entusiasmo e eficácia durante todo o tempo e de todas as maneiras. No entanto, ele teve grandes dificuldades com seus colaboradores por causa da situação sociopolítica na península itálica. Lembremo-nos, mais uma vez, que Dom Bosco evitava posicionar-se politicamente. Seu grande objetivo era fazer o bem aos jovens pobres e abandonados em qualquer tipo de regime, restauração ou risorgimento. Houve ocasiões em que seus colaboradores se foram ou, então, o enfrentaram fortemente. Dom Bosco resolveu ele mesmo formar seus colaboradores, ainda mais que queria fundar um grupo permanente de colaboradores, os salesianos. Por isso, os melhores rapazes foram encaminhados aos estudos. Deve-se ressaltar que na metodologia de trabalho educativo-pastoral de Dom Bosco encon-tram-se os próprios jovens. Ele sempre trabalhou no sentido de tornar os próprios jovens educadores e pastores dos outros jovens. Este era o fim das Associações fundadas por ele. Em 1847 foi fundada a Companhia de São Luis e, em 1849, a Sociedade de Mútua Ajuda, uma espécie de previdência privada.

O Oratório de São Francisco de Sales, que dirige Dom Bosco, deve ser classificado como instituição de caridade mais que como acadêmica. Os honorários que se cobram pela moradia e alojamento são modestos em extremo e a maioria de seus alunos são mantidos grátis. Talvez menos de uma centena paga a soma de 24 liras ao mês. Dos 504 estudantes da residência do instituto, 445 estão matriculados na escola secundária. No programa de estudos se matriculam jovens de boa conduta que terminaram os cursos de estudos elementares. São aceitos com gratuidade total (e estes são a maioria) ou pagam uma modesta contribuição que vai de 5 a 24 liras ao mês. Por outro lado, os aprendizes são admitidos gratuitamente. Devem ter ao menos doze anos e ser órfãos de pai e mãe e não ter ninguém que possa cuidá-los. (BARICCO apud LENTI, 2010, p. 497)

Em 1849, o Oratório de São Francisco de Sales de Dom Bosco em Valdocco era considerado o mais importante, pelo número de jovens, de atividades e porque contava com a melhor equipe e era o melhor gerido. Dom Bosco, desde o princípio, concebeu a obra do Oratório como um trabalho em colaboração, empreendido e levado a cabo por uma conjunção de forças. A primeira delas, a So-ciedade de São Francisco de Sales, os Salesianos de Dom Bosco. Depois, os cooperadores salesianos. Estes cooperadores em seus inícios faziam de tudo. Ensinavam catecismo, davam aulas, assistiam aos rapazes dentro e fora da igreja, preparavam para a recepção dos sacramentos, participavam das recreações. Parte importante realizada pelos cooperadores era a “bolsa de trabalho”. Muitos rapazes eram de fora da cidade, sozinhos, sem meios de subsistência, sem trabalho, sem ninguém que cuidasse deles. Alguns cooperadores cuidavam deles, zelavam por sua higiene, colocavam-nos com algum pa-trão digno e os preparavam para apresentar-se ao lugar de trabalho. Visitavam estes rapazes em seu lugar de trabalho. Até a mãe do arcebispo participava do mutirão de limpeza e higiene. Mais tarde, Dom Bosco funda as Filhas de Maria Auxiliadora, juntamente com Santa Maria Domingas Mazzarello, para fazer para as meninas o mesmo que fazia para os rapazes. Já em 1851 Dom Bosco tinha três oratórios em Turim: São Francisco de Sales, São Luis e Anjo da Guarda. Sobre eles uma testemunha da época assim se refere

As vantagens obtidas pelos rapazes que participam destes Oratórios são a educação de costumes e a cultura do entendimento e do coração, de forma que, em pouco tempo, adquirem trato afetuoso e humano, se afixionam ao trabalho e se convertem em bons cristãos e ótimos cidadãos. Estes frutos, que são abundantes, terminariam, certamente, por mover o Governo a tomar em consideração uma obra que ajuda grandemente a classe mais pobre da população, usufruindo o zelo que anima a muitos sacerdotes entregues a este gênero de beneficência, com a qual se pode afastar do ócio e converter em úteis para a pátria e a sociedade muitos jovens que, sem os cuidados que se lhes dá, teriam sem dúvida um mau fim. (CASALIS apud LENTI, 2010, p. 529)

Não poucas dificuldades teve que enfrentar Dom Bosco por sua persistência na autonomia e na criação de novas estruturas separadas das instituições ordinárias e comuns de sua época. Uma delas era a Paróquia. Os Oratórios de Dom Bosco transcendiam a instituição paroquial. Dom Bosco sempre concebeu seu Oratório como a paróquia dos jovens sem paróquia. Seus oratórios foram projetados para

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ser casa, igreja, escola e pátio. Além disso, os oratórios de Dom Bosco não eram apenas festivos. Ele reunia os jovens duran-te todo o dia e lhes proporcionava tudo de que necessitassem. Organizou classes diurnas e noturnas, visitou os rapazes em seu trabalho, interessou-se por suas necessidades reais. Os Oratórios de Dom Bosco não eram anexos a uma paróquia. Os locais eram importantes por serem meios para atingir os fins. Além disso, os oratórios tradicionais ocupavam-se dos melhores jovens. Dom Bosco, ao contrário, fundou seu Oratório para todos e dava preferência, até onde fosse possível, aos verdadeiramente pobres e abandonados, jovens saídos das prisões, desempregados, à deriva, em situação de risco, pertencentes às camadas mais pobres da sociedade. Dom Bosco não permitia que membros de gangues ou rapazes persistentemente opostos à religião frequentassem indiscriminadamente o Oratório. Procurou, no entanto, ganhá-los e com frequência o conseguiu.

O Oratório de Dom Bosco não é só escola da doutrina cristã nem só lugar de oração (“oratório”), mas também não é só “jardim de recreação” ou “recreador” ou “escola dominical”. É tudo isso ao mesmo tempo. (BRAIDO, 2008a, p. 305)

6. Dom Bosco escritor

É certo que a atividade mais importante de Dom Bosco não foi a editorial, mas foi uma ati-vidade notável, tanto pelo tempo empregado quanto pelos resultados obtidos. Em 1855, numa carta sobre o apostolado da imprensa, Dom Bosco escreveu: “Esta é uma das tarefas mais importantes que me pediu a Divina Providência e sabeis como trabalhei nisto dura e incansavelmente, inclusive quando me dedicava a milhares de outros trabalhos” (BOSCO apud LENTI, 2010, p. 562). Seus primeiros escritos datam de 1850. O compromisso se tornou mais forte, porém, a partir de 1853 quando fundou as Leituras Católicas. Piero Stella e Francis Desramaut dizem que Dom Bosco escreveu 170 obras grandes. Já em seu testamento de 26 de julho de 1856, Dom Bosco se declara autor de 26 obras. Algumas destas obras foram editadas várias vezes e tiveram grande popularidade e ampla difusão. Durante a vida de Dom Bosco, sua obra intitulada O Jovem Instruído chegou a 118 edições e foi traduzido para o francês, o castelhano e o português. Da mesma maneira A chave do Paraíso chegou a 44 edições. Após oito anos de Leituras Católicas foram distribuídos dois milhões de fascículos com uma média de 22 mil assinantes ou compradores por mês. Como se explica este êxito editorial de Dom Bosco? Ele foi um escritor com estilo todo especial. Sua linguagem e sua forma evoluíram ao longo dos anos. A espontaneidade, a apresentação concreta, a simplicidade linear, o esforço consciente para evitar os floreios retóricos dos escritores fizeram dele um autor popular. Em seus escritos e em seus sermões consegue ser direto de uma forma poética através do uso da metáfora, da história, e da ca-racterização. É um grande comunicador. Suas obras tinham finalidade educativa e pastoral. A leitura de suas obras nos faz perceber suas concepções filosóficas e teológicas carregadas do espírito da Restauração e do Ancién Régime.

7. Desafios educativo-pastorais para o seguimento de Dom Bosco, hoje.

Propositalmente nos detivemos nos inícios da obra de Dom Bosco num determinado contexto. Fizemos a seleção de alguns fatos e personagens dentro da grande floresta que é a sua vida. Temos a consciência de que os primeiros anos do ministério educativo-pastoral de Dom Bosco revelam sua novidade e incidência carismática. A partir do exposto, aprofundaremos alguns desafios educativo--pastorais que ficam para seus seguidores, para a Igreja e para a Sociedade Civil.

7.1. De destinatário a protagonista

Dom Bosco é de uma clareza cristalina em relação aos destinatários da sua missão: os jovens pobres e abandonados. Em relação a eles não tomou uma atitude assistencialista, mas promocional. Prático como era, ameaçava as classes abastadas dizendo-lhes que se não contribuíssem com sua obra, estes mesmos jovens viriam tirar-lhes os bens não mais pela porta da frente como ele o fazia, mas pe-las portas do fundo e com a faca na mão. O que diria Dom Bosco, hoje, para a sociedade brasileira que ainda assiste o persistir do trabalho infantil? “Apesar dos avanços registrados na década passada, mais

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de 1 milhão de crianças de 10 a 14 anos, ou 6% do total ainda trabalhavam, no Brasil, em 2010” (FSP, 28/12/2011, A4). Isto ainda pode ser muito mais porque “enfrentamos o problema do trabalho infantil invisível, onde é difícil chegar por questões de distância (nas áreas rurais) ou legais, de entrar na casa (no trabalho doméstico)” (Ibidem). O trabalho feito por crianças é deletério sob vários aspectos, a co-meçar pela privação do tempo livre da infância, importante para um desenvolvimento saudável. Além disso, interfere no aprendizado escolar, aumenta os riscos de problema de saúde e reduz as chances de um emprego melhor na vida adulta. A demografia e a estatística também ensinam a pensar e a projetar. Relatório recente da UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância) intitulado “O direito de ser adolescente” dá uma radiografia dos adolescentes brasileiros. São 21 milhões de cidadãos com idades entre 12 e 17 anos e, destes, 20% estão fora da escola. “Parece difícil acreditar, mas pelo menos um quinto de nossos adolescentes está longe do que há de mais importante nesse período da vida: educação” (FSP A2, 02/12/2011). A cada dia, 11 adolescentes são assassinados no Brasil. Ainda segundo a pesquisa, dos 4,3 milhões de brasileiros com idade entre 5 e 17 anos que exercem algum tipo de atividade laboral, 77% (ou 3,3 milhões) têm entre 14 e 17 anos. Mais: com base em dados do IBGE, o número de lares chefiados por adolescentes mais do que dobrou em uma década: são 661.000. A reflexão se torna mais premente uma vez que, se em 1841, a expectativa de vida do jovem turinense era 35 anos, hoje, no Brasil é de 73,5 anos. O comprometimento com as novas gerações passa pela análise destes dados e também, como Dom Bosco, no compromisso de enfrentá-los dignamente para que também estes jo-vens possam ter cidadania plena e não apenas sobrevivência difícil e atribulada. Muitos dos jovens de Dom Bosco continuaram destinatários, mas a muitos deles ele os trans-formou em protagonistas cidadãos no seu Oratório e na sociedade. Aliás, Dom Bosco soube muito bem trabalhar em três níveis de atuação: massa, grupos e pessoa. A escola, por exemplo, em geral pro-cura trabalhar bem com a massa. Em relação à pessoa também há algumas propostas sérias, embora em menor proporção e por motivos pedagógicos nem sempre bem enfocados. Assim, há orientadores educacionais e psicólogos para trabalhar com crianças, adolescentes e jovens difíceis. Como os maio-res problemas de aprendizagem provêm de situações emocionais difíceis, nunca deixará de ter traba-lho para estes generosos profissionais. À medida que o tempo vai passando, porém, as soluções a nível pessoal não aparecem e, então, existe a expulsão branca da escola. O ponto mais desafiador para a escola, no entanto, está no trabalho com os grupos. Entre a massa e a pessoa, há o grupo. O grupo não deve ser assumido apenas como uma metodologia para tornar os encontros mais atraentes e menos cansativos. Na realidade, o grupo responde a uma grande ânsia da pessoa humana, a de amar e ser amada. Ele é um lugar de crescimento, formação e realização pessoal e comunitária, porque cria laços profundos de dignidade e de fraternidade, onde cada um é reconhecido como pessoa e valorizado como tal. Permite partilhar critérios, valores, visões e pontos de vista. Ajuda a enfrentar os desafios de cada etapa da vida, sobretudo na infância e adolescência. Permite partilhar um novo olhar sobre a realidade para incidir sobre ela. Se a educação não ajudar a formar grupos de ação cooperativa, a educação estará falhando em uma de suas missões básicas. Há ações cidadãs que só podem ser exercidas em grupo. Trabalhar em grupo é potenciar o espírito criativo da comunidade. Os diversos saberes se complementam. En-tão, a menina que só tira nota dez, vai perceber que o menino que é mediano na escola participa de um mutirão em sua comunidade. O jovem que não tem motivação nenhuma para estudar, percebe que a menina, que é nota dez, tem que cuidar de três crianças pequenas, porque a mãe está sozinha e precisa sair cedo e voltar tarde porque trabalha. O rapaz que é bom na matemática vai perceber que sua colega bem introvertida é craque na história e na geografia. Uma educação que incentiva a aprendizagem em grupos de ação cooperativa pode ter muito trabalho na mudança de metodologia, mas, seguramente, estará projetando uma escola muito mais humana, participativa, responsável e cidadã. Todas as ditaduras se impõem porque faltam os grupos intermediários na sociedade. É muito fácil dominar uma massa. É só derramar sobre elas uma doutrinação ideológica intensa. Este é o grande objetivo da missão salesiana inspirada em Dom Bosco: transformar destina-tários em protagonistas através de associações e grupos diversos. Os grupos chamados de Companhias livraram o Oratório de Dom Bosco do perigo da massificação. Uma das coisas que mais impressiona na missão salesiana é a capacidade de inculturação nos diversos contextos e ambientes. Em todos os lugares onde os missionários salesianos chegaram, foram capazes de suscitar salesianos autóctones e um vasto movimento de pessoas para levar para a frente o carisma e a missão salesiana.

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7.2. Santo da Complexidade

Há palavras muito usadas hoje em educação: holística, transdisciplinaridade, interdiscipli-naridade, complexidade, rede, sistema. Um dos grandes avanços da ciência é o reconhecimento da complexidade de tudo e de todos. Esta palavra se refere a duas realidades. A primeira delas é a incom-pletude de toda a realidade. Não há nada completo, inclusive os conceitos. Reconhecer a incerteza, o caos e dialogar com eles é a primeira atitude de qualquer educador.

Atualmente tende a se impor a palavra “complexidade”; ela designa o estudo dos sistemas dinâmicos situados em algum ponto entre a ordem na qual nada muda, como pode ser o caso das estruturas crista-linas, e o estado de total desordem ou caos como é o caso da dispersão da fumaça. (MORIN, 2003, p. 46)

A segunda diz respeito à impossibilidade de se aproximar de qualquer realidade e de qualquer conceito apenas com uma ferramenta epistemológica. Daí brota a necessidade da interdisciplinarida-de e da transdisciplinaridade. É tempo de humildade. A soberba científica não leva a lugar nenhum, apenas multiplica os sofrimentos e as dores dos mais desvalidos. Cada vez mais as pessoas, sobretudo as novas gerações, estão se convencendo de que o grande mal do mundo é a unidimensionalidade. Olhar o mundo apenas a partir de um único ponto, de uma única disciplina, de uma única ciência, traz consequências terríveis. Alguém poderia perguntar: é possível unidimensionalidade com tantas especialidades? Aí é que reside o perigo. Um paciente, por exemplo, pode ser tratado por diversos profissionais da saúde, cada um em sua especialidade, mas sem ter uma visão de sua complexidade. Aí o estrago pode ser maior do que se estivesse sendo tratado por apenas um profissional numa visão mais holística do mundo. A palavra holística, de origem grega, significa o todo. Uma visão holística significa, então, que o todo está nas partes e a parte está no todo. Para refletir educação faz-se necessário enfrentar esta questão. Nenhuma pessoa é simples e nem complicada. Nenhuma educação tem que simplificar e nem complicar seus educandos e sua missão. A educação é complexa porque a vida é complexa. De vez em quando se escuta notícias de processos judiciais contra pais que querem educar seus filhos apenas em casa. Reportagem da Folha de São Paulo em 06/03/2010, C1, dá a seguinte man-chete: “Juiz condena pais por educar filhos em casa”. Como subtítulo afirma: “sentença prevê multa e fala em ‘abandono intelectual’ dos jovens de 15 e 16 anos, tirados da escola há quatro anos, em Minas.” A reportagem também afirma que este método chamado de homeschooling reúne cerca de 1 milhão de adeptos só nos EUA, embora organizações de aprendizado escolar domiciliar sugiram que o número real possa ser o dobro. No Brasil, até hoje, pelo que nos consta, nenhum juiz deu ganho de causa para qualquer pai que quis “escolarizar” seus filhos em casa, sem passar pela escola. Isto é compreensível porque a es-cola não é a continuação da família. Pelo contrário, ela é a ruptura com a família. As novas gerações precisam ser educadas junto a crianças numa sociedade pluralista. Ela não é um condomínio fechado. Toda criança precisa encontrar-se com crianças com outras concepções de vida de todos os tipos: polí-ticas, culturais, religiosas, éticas, econômicas, sociais. Como uma criança vai ter noção de etnia se não convive com as diferentes etnias? Como pode ter uma noção de gênero se não convive com o gênero diferente? O professor não é um computador ambulante, não é uma enciclopédia ambulante. Certa-mente que todo professor passa, transmite os assim chamados conteúdos. Uma boa escola tem que fazer isto. No entanto, todo professor é mais que isto. Ele é um mediador cultural. Toda sala de aula é um espaço de convivência com os diferentes. A escola é um ambiente de atitude e de socialização e não apenas um lugar onde se ensina conhecimentos gerais. Mesmo que os pais pudessem passar os conteúdos em casa para seus filhos, eles não conseguem possibilitar uma vivência plural da sociedade. Escola é mais que uma sala de aula, um computador e uma biblioteca. Dom Bosco em seu Sistema Preventivo no trato com os jovens pobres e abandonados fez uma educação complexa. No Oratório de Dom Bosco os jovens encontravam religião, razão e amorevolezza. Ao contrário de outros Oratórios que se preocupavam quase que exclusivamente com a religião, ele trabalhou também a razão e a emoção. O que a maioria destes jovens necessitava era de atenção, de carinho, de acolhida. Isto eles encontravam na casa de Dom Bosco. Havia toda a pedagogia do ambien-te feita à medida do jovem. Por isso, em qualquer instituição salesiana, a medida da educação não é a própria instituição, mas os jovens. A instituição está a serviço dos jovens e de acordo com sua medida. O próprio Dom Bosco encarnava em si binômios que pareciam inconciliáveis. Ele soube traba-lhá-los na graça da unidade, isto é, na capacidade de unir elementos contraditórios e de caminhar em meio a antinomias. Numa linguagem mais atual diríamos que era a tensão entre caos e ordem.

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Dom Bosco era, ao mesmo tempo, alegre e austero, franco e respeitoso, preciso e de espírito livre, humilde e magnânimo, tenaz e flexível, tradicional e moderno, otimista e previdente, diplomático e sincero, pobre e caridoso. Cultivava a amizade, mas não tinha preferências; era rápido nas ideias, mas prudente na execução; amava as coisas bem-feitas, mas não era perfeccionista. Tinha visão ampla e senso do concreto. Audaz até a temeridade, procedia com cautela. Sabia conquistar a amizade do ad-versário, mas não renunciava a seus princípios. Dinâmico sem extroversão, cheio de coragem mas não temerário, fazia convergir tudo para as suas finalidades, sem manipular as pessoas. Educava prevenindo e prevenia educando. Avançava com o mundo, mas não era do mundo. (BROCARDO, 2005, p. 44)

7.3. Pedagogia diferencial do possível

Em 1862, Dom Bosco escreveu algumas anotações que chamou de Acenos Históricos. Vive-se num tempo de grande rigidez e de uniformização sem espaços para flexibilidade e diferenciações no modo de perceber os jovens e de consequentes intervenções diversificadas e, de certo modo, indivi-dualizadas. Para Dom Bosco, no entanto, houve uma evolução. Tendo partido de elementos precários — imigrados, especialmente sazonais e ex-detentos — tinha conscientemente evoluído, interpretando em sentido sempre mais flexível e amplo as fórmulas usuais “pobres e abandonados”, “em perigo e perigosos”. Nos Acenos Históricos, Dom Bosco individuava três categorias de hóspedes do Oratório, exter-nos e internos: “rebeldes, dissipados e bons.” Os bons não criavam problemas especiais: bastava-lhes aplicar as prescrições regulamentares normais. Os rebeldes, porém, não eram somente os simpáticos “moleques”, nem os “traquinas”, levemente mais problemáticos: eram jovens sem respeito pelas nor-mas éticas e sociais, rebeldes a toda disciplina, dissolutos, sem qualquer escrúpulo; em versão mais atenuada, contudo, jovens excessivamente vivos, indisciplinados, intolerantes em relação à ordem e à disciplina, mais rebeldes, desaforados. Também os dissipados, assim como são descritos, embora sendo menos rebeldes, eram mais que traquinas ou moleques. Pois bem, em relação às distintas categorias, ele previa notáveis diferenças nos objetivos possíveis de serem alcançados, na expectativa e nas intervenções. Com os dissipados, podia-se che-gar “também a certo sucesso com a aprendizagem, a assistência, a instrução e a ocupação”: daí não resultava sem mais o perfeito cristão, mas provavelmente o bom cidadão, o trabalhador honesto, o homem moral e civilmente responsável e, talvez, um mero praticante do domingo e das grandes fes-tividades. Para os rebeldes, “isto é, aqueles já habituados a vagabundear, a pouco trabalhar”, porém, eram previstos, em parte os resultados a longo prazo, disciplinando-os “com o exercício de alguma arte, com a instrução, a ocupação, a assistência”. “Não se tornam piores” — escrevia Dom Bosco, e já era um notável horizonte minimalista; “muitos se reduzem a ter juízo, portanto, a ganhar-se o pão honestamente”, e era um notável sucesso no sentido de humanização, com a recuperação de valores temporais apreciáveis, preparação potencial para alguma adesão ao Evangelho, como ciência de vida e, talvez, também de fé em Deus. Numa palavra, os programas e os tratamentos eram graduados. De qualquer modo, havia lugar para a pedagogia da esperança: a semente lançada não ha-veria de ficar infrutífera: deixava-se espaço ao tempo e à graça; de fato “aqueles mesmos que sob a vigilância pareciam insensíveis, com o tempo dão lugar aos bons princípios adquiridos, que mais tarde chegam a produzir efeito”. A esperança era reforçada pelos resultados tangíveis alcançados: muitos puderam ser colocados “junto a bons patrões, dos quais aprenderam uma profissão”; tantos outros, que fugiram da família, a ela retornaram “mais dóceis e obedientes”; “não poucos se tornaram domés-ticos “em famílias honestas” (BOSCO apud BRAIDO, 2008a, p. 334-335). Dom Bosco não era maximalista, não esbanjava nomenclatura religiosa: radicalidade, perfei-ção, santidade. Realista apóstolo dos jovens em perigo e perigosos, ele sabia comedir fins e percursos educativos a cada disponibilidade à melhora. Já era bom resultado que um rebelde não acabasse na prisão ou que, dela saindo, ali não retornasse. Analogamente, que um moleque não se tornasse rebel-de, e um rebelde delinquente. E era sucesso mais que apreciável se pudesse em todos inculcar o amor à vida, a inserção social espontânea, o gosto de prover o sustento próprio e dos familiares. Na média dos casos, porém, poder-se-ia tentar a escalada nas alturas mais ousadas: à mais refinada moralidade e ao sentimento religioso essencial, com o esforço constante de viver em estado de graça, diligentemen-te conservada e prontamente recuperada. Ele ousava, também, propor asceses corajosas em direção à montanha das bem-aventuranças em seus diferentes patamares, incluindo o ponto mais elevado. Considerações semelhantes poderiam valer, proporcionalmente, para a classificação dos jo-vens, introduzida nos Artigos Gerais do Regulamento para as casas, em 1877. Eram prefiguradas “índo-

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les diversas: boa, ordinária, difícil, má”. Deve-se ter presente, porém, que este discurso referia-se aos jovens dos colégios estudantis e dos internatos para aprendizes, já selecionados de alguma maneira. Para eles, o tratamento diferenciado reduzia-se à assistência educativa mais ou menos vigilante. Quais eram os meninos que deveriam ser considerados em perigo, segundo Dom Bosco? Ele os dividia em quatro categorias: os imigrados na cidade à procura de trabalho, em perigo de ficarem desocupados e de entregarem-se ao roubo; os órfãos abandonados à vagabundagem e à companhia dos díscolos; os meninos descuidados pelos pais, quando não até mesmo expulsos da família; os vagabundos que caem nas mãos da segurança pública, mas que ainda não são díscolos. Para todos esses quatro tipos, em primeiro lugar é que Dom Bosco constituiu a sua obra educativo-pastoral. Atribui-se a Dom Bosco a expressão “o ótimo é inimigo do bom”. Esta expressão pode ter duas interpretações: uma maximalista e outra minimalista. A minimalista diria que se deve fazer uma edu-cação medíocre contentando-se com o pouco possível e não propondo horizontes amplos e exigentes. A maximalista afirma que cada pessoa é a medida de si mesma. Toda educação tem que viver de utopias, de horizontes, de razões para viver e para sonhar. Na consecução destes objetivos, porém, as pessoas não se distribuem da mesma maneira. O ótimo é inimigo do bom quer dizer que a medida alta é pro-posta para todos, mas é vivida de forma diferente por todos. Assim, os jovens vêm ao Oratório de Dom Bosco com objetivos e medidas diferentes e tem lugar para todos eles. O Oratório Salesiano não é para a elite, mas é para todos e respeita a caminhada de todos. Assim, alguns vêm ao Oratório para comer, outros para aprender um ofício, outros para receber uma profissão, outros para estudar, outros para encontrar-se com grupos de interesse e de compromisso, outros para o voluntariado, outros para o encontro com o evangelho, outros ainda para a santidade. A oferta é multiforme e para todos. A quem vem à casa de Dom Bosco só porque o estudo é bom e forte, oferece-se também a possibilidade do voluntariado, do alto padrão ético, da solidariedade, da santidade. Tanto é que a educação salesiana não é minimalista que já possibilitou o surgimento do único santo adolescente da Igreja Católica não mártir que é São Domingos Sávio (1842-1857). Nesta perspectiva é que se deve colocar a fundação da Sociedade de São Francisco de Sales, os salesianos. A diversos jovens Dom Bosco propôs que ficassem com ele para levar para frente em tempo integral, por amor a Deus e aos irmãos, a missão salesiana. Muitos deles ficaram com Dom Bosco. Alguns até foram para terras distantes e por amor ao seguimento de Jesus Cristo se tornaram missionários nos mais diversos rincões dos cinco continentes. Muitos jovens chegaram ao Oratório de Dom Bosco órfãos ou com suas famílias despedaçadas e, através do espírito de família que aí era vivido, conseguiram formar uma família e educar seus filhos de forma honesta, digna e justa. Assim é que a defesa, promoção e dignidade da família faz parte essencial da missão salesiana. Dom Bosco gostava de fazer as coisas bem-feitas, mas nunca foi um perfeccionista. Tolerava, com bondade e paciência, a exuberância juvenil dos seus colaboradores, satisfeito de ver neles o es-pírito de verdadeira piedade, o amor ao trabalho, a moralidade a toda prova. Ninguém mais que ele estava convencido de que as coisas não nascem perfeitas nem adultas: se tornam assim com o tempo. “As obras de Deus geralmente acontecem aos poucos” era a sua máxima. Os fatos lhe davam razão: em geral os seus empreendimentos começavam na desordem e terminavam na ordem. “O padre Bonetti desejava que no seu colégio tudo fosse perfeito. Dom Bosco lhe escreveu: ‘Buscamos o ótimo, entre-tanto em meio a muito mal, devemos nos contentar com o mediano’, acrescentou realisticamente” (BROCARDO, 2005, p. 62). Na realidade, Dom Bosco era extraordinário no ordinário da vida. Neste ponto, Dom Bosco e Padre Cafasso, seu diretor espiritual, não concordavam. Numa discussão, o P. Cafasso lhe disse que “o bem deve ser feito bem”. E Dom Bosco lhe retrucou: “o bem às vezes basta fazê-lo como se pode, em meio a muitas dificuldades”. Giuseppe Allamano, aluno de Dom Bosco e fundador dos Missionários da Consolata, afirmou em 1916:

Padre Cafasso queria mais rigor na escolha dos jovens, mais vigilância e ordem. Isso se deduz do con-selho que padre Cafasso deu à minha mãe e que me foi transmitido por ela: que os meus irmãos e eu fôssemos estudar, mas não no Oratório, pois ali havia pouca disciplina e pouca ordem. (BROCARDO, 2005, p. 62)

A mãe não seguiu o conselho do irmão santo. Allamano concluiu os estudos ginasiais na escola de Dom Bosco e hoje é um beato da Igreja Católica a caminho da canonização. Aliás, é impressionante o número de jovens que estudaram ou se formaram na escola de Dom Bosco e que hoje são figuras eminentes na Igreja Católica. Citamos apenas alguns: Beato José Allama-no, fundador do Instituto Missões Consolata; São Luis Guanella, Fundador dos Servos da Caridade e do

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Instituto das Filhas de Santa Maria da Providência; São Luis Orioni, fundador da Pequena Obra da Divina Providência; Beato Miguel Rua, Primeiro Sucessor de Dom Bosco; Beato Felipe Rinaldi, Terceiro Suces-sor de Dom Bosco, Domingos Sávio... Há, igualmente, os que são santos e tiveram alguma influência ou contato com Dom Bosco: São Daniel Comboni, São Leonardo Murialdo, São José Cafasso... É importante mencionar que, durante sua vida, Dom Bosco recebeu diversas ofertas para assumir e dirigir instituições “correcionais”. A mais famosa de todas elas foi a Escuela de reforma para jovens y asilo de corrección paternal de Madrid em 1855. Braido (2004) dá um amplo relatório das tratativas. Dom Bosco exigia que se tirasse o nome de Reformatório ou Patronato e se colocasse o nome de Instituto. Exigia, igualmente, que durante cinco anos não se admitisse jovens já passados pela justiça. Por que esta exigência? O motivo é muito interessante. Ele queria trabalhar durante cinco anos os jovens que não tinham cometido delitos graves e que não tinham sido condenados para que, depois, pudessem receber aqueles. Dom Bosco não se afastava de sua opção pelos jovens pobres e abandonados, mas não concordava em colocar juntos apenas jovens delinquentes e com problemas de conduta. Era preciso preparar um instituto aberto, com jovens bons para acolher os problemáticos e difíceis. Mesmo com a interferência do núncio de Madrid, as negociações não prosperaram e a casa de correção foi entregue a outra congregação. Atualmente a missão salesiana se tem expandido mais para a educação superior. Como estas Instituições Salesianas de Educação Superior (IUS) também acolhem a missão salesiana, muitos dos jovens que a frequentam são o primeiro da própria família a atingir a educação superior. A educação salesiana sempre tem inculcado neles a perspectiva de que o compromisso com seus estudos hoje sig-nifica generosidade e atenção para com a própria família futura. Uma ideia do que era o oratório de Valdocco naqueles inícios, temos nesta realista e tardia evocação de Dom Bosco:

Quando o meu pensamento confronta os tempos presentes com os tempos passados, fico estarrecido. O que era Valdocco há trinta e cinco ou trinta e seis anos? Nada, realmente nada. Eu corria para lá e para cá atrás dos jovens mais irrequietos e dissipados. Mas eles não queriam saber de ordem e disciplina. Riam das coisas da religião, em que eram muito ignorantes, e blasfemavam contra o nome santo de Deus, e eu não podia fazer nada. Eram meninos de rua e faziam guerras de pedra, brigando continua-mente. As coisas, naquela época, estavam mais no pensamento que nos fatos. (BROCARDO, 2005, p. 37)

Conclusão

Quando Dom Bosco morreu, um jornal afirmou que “se Dom Bosco tivesse sido ministro das finanças, a Itália seria economicamente a primeira nação do mundo” (BROCARDO, 2005, p. 159). Exa-geros à parte, somos animados por um sonhador e um grande trabalhador empreendedor. “Trabalhai, trabalhai muito! Mas fazei-o também de maneira que possais trabalhar por muito tempo” (BROCARDO, 2005, p. 189). A Itália se tornou pequena e ele se expandiu para a Europa. A Europa se tornou pequena e ele se expandiu para a América, Ásia, África. Estamos diante de um sacerdote que verdadeiramente ouviu os apelos da juventude pobre e abandonada. Estamos diante, sobretudo, de um sacerdote que assumiu a frase de Paulo ao pé da letra: “Tudo posso naquele que me fortalece” (Fl 4,13). De São Francisco de Sales aprendeu que “assim como os que estão presos por um amor humano e natural têm quase continuamente o pensamento voltado para o ser amado, o coração cheio de afeto para com ele, a boca repleta dos seus louvores, do mesmo modo os que amam a Deus não podem deixar de pensar nele (SALES apud BROCARDO, p. 221). Dom Orione, um de seus ex-alunos mais ilustres que dele aprendeu a amar dos pobres os mais pobres disse: “caminharia sobre brasas para ver Dom Bosco mais uma vez e poder lhe dizer obrigado” (BROCARDO, 2005, p. 125). Se fôssemos fazer um estudo sobre a pedagogia de Jesus Cristo a partir dos encontros com pessoas e grupos como nos narram os Evangelhos, podemos dizer que ninguém saiu destes encontros sem ser marcado profundamente. O mesmo se diz de Dom Bosco. Quem se encontrou com ele — o homem, o padre, o santo, o educador, o pastor — não saiu o mesmo. Que o digam os milhões de jovens que em sua vida encontraram com seu Pai e Mestre.

Procuremos fazer com que cada pessoa que se relacione conosco possa afastar-se satisfeito, e com que cada vez que falemos com alguém seja um amigo que conquistamos, uma vez que devemos fazer crescer o número dos amigos e diminuir o número dos inimigos, pois devemos fazer o bem a todos. (RUFFINO apud BRAIDO, 2008a, p. 455)

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Referências Bibliográficas

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BRAIDO, Pietro. Dom Bosco, padre dos jovens no século da liberdade: primeiro volume. São Paulo: Salesiana, 2008.

BRAIDO, Pietro. Dom Bosco, padre dos jovens nos séculos da liberdade: segundo volume. São Paulo: Salesiana, 2008.

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As várias dimensões entre oconhecimento e o desenvolvimentode inovações: conceitos e aspectos

associados à inovaçãoNeuri A. Zanchet1

Resumo

O objetivo deste artigo, um ensaio teórico, é contribuir para a reflexão sobre o pro-cesso de desenvolvimento de inovações: do conhecimento à difusão da inovação. As conclusões apontam que existem diversas etapas no ciclo de vida de uma inovação. As decisões e atividades ocorridas antes do início do processo de difusão exercem uma forte influência na evolução da inovação. Em geral, é necessário atuar científica e politicamente em todo o processo para que uma tecnologia gerada seja transfor-mada em inovação pelas empresas e disponibilizada para a sociedade (clientes), sen-do aceita por esta. Ainda, é imprescindível a interação entre atores, com vocações e competências complementares em relação aos desafios que caracterizam o processo de desenvolvimento de inovação como um todo.

Palavras-chave:

Conhecimento. Tecnologia. Modelos de Inovação. Difusão de Inovação.

Abstract

The aim of the present paper, a theoretical work, is to contribute to the reflection on the development process of innovations: from the knowing to the diffusion of innovations. The conclusions indicate that there are various steps in the life cycle of an innovation. Decisions and activities which occurred before the beginning of the diffusion process have a strong influence in the evolution of the innovation. In gene-ral, it is necessary to act scientifically and politically in the whole process so that a generated technology can be transformed into an innovation by the enterprises and provided to the society (costumers), being accepted by the latter. In addition, it is imperative to have interaction between actors, with complementary vocations and capacities in relation to challenges that characterize the process of development of innovation as a whole.

Key words:Knowledge. Technology. Innovation Models. Diffusion of Innovations.

1. Introdução

As inovações não são geradas espontaneamente, nem criadas ao acaso, mas representam, principalmente, resultados de interações deliberadas e geradas num ambiente propício, onde as ideias

Ciências Sociais e Aplicadas

(1) Bacharel em Administração – Habilitação: Recursos Humanos; Mestre em Ciências Sociais Aplicadas; Doutor em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC; Consultor de Empresas e Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.E-mail: [email protected]

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prosperam. Há empresas que se caracterizam por promoverem a inovação, seja de produto, de proces-so, de serviço, de negócio ou organizacional. Contudo, basicamente as inovações são divididas em dois tipos: inovações de produtos ou pro-cessos. Esses dois tipos podem ser classificados, em termos de grau de novidade, em incremental ou radical (FREEMAN, 1988; ALBERNATHY e UTTERBACK, 1978). Conforme Freeman (1988), as inovações de caráter incremental referem-se à introdução de qualquer tipo de melhoria em um produto, proces-so ou organização da produção dentro de uma empresa, sem alteração na estrutura industrial. Já as inovações de caráter radical ocorrem quando é realizada a introdução de um novo produto, processo ou forma de organização da produção inteiramente nova. Estes tipos de inovações podem representar uma ruptura estrutural como padrão tecnológico anterior, originando novas indústrias, setores, merca-dos, bem como a geração da redução de custos e o aumento de qualidade em produtos já existentes (FREEMAN, 1988). Assim, a premissa que orientou este ensaio teórico é a de que um dos maiores desafios do mundo corporativo moderno, a inovação, tem na realidade um conceito simples. Ela é uma iniciativa, modesta ou revolucionária que surge como uma novidade para a empresa e para o mercado e que, aplicada na prática, traz resultados econômicos — seja de uma empresa, um setor, uma região ou país. Sendo assim, o objetivo desse artigo é contribuir para a reflexão sobre o processo de desenvolvimento de inovações: do conhecimento à difusão da inovação. A fim de atingir o objetivo proposto, desenvolveu-se um ensaio teórico, oriundo de uma pesquisa bibliográfica, realizada como parte integrante de uma tese de doutorado1. Para maior compreensão do assunto, o presente estudo está organizado em três partes, sendo esta introdução a primeira delas. Na segunda parte, procura-se abordar a geração do conhecimento como determi-nante e condicionante da inovação. Na terceira parte, apresenta-se um panorama geral, em ordem cronológica, dos modelos mais discutidos na literatura especializada do processo de inovação. Por fim, na última parte apresentam-se as conclusões.

2. Conhecimento

O termo conhecimento é polissêmico, atraindo atenção de diferentes campos do saber. Em geral, pode-se dizer que conhecimento seja o ato de saber de algo, de tomar consciência de determi-nado fato ou objeto, experiência ou relato. Contudo, conhecimento pode também ser compreendido como a familiaridade ou estado de consciência que se obtém com a experiência. Pode ainda ser en-tendido como a soma da extensão/percurso/área que tem sido encontrada, percebida ou aprendida e, ainda, a específica informação sobre alguma coisa. Segundo Rampersad (2002, p. 2), o conhecimento pode ser expresso por “informação, cultura e habilidades”. Informação, neste contexto, compreende o sentido dos dados ou informações obtidas de acordo com certas convenções. Dependendo do interesse e das necessidades das pessoas, as infor-mações serão transformadas em conhecimento como suporte à tomada de decisão. É o que Nonaka e Takeuchi (1997) denominam como conhecimento explícito, o qual é formal e sistemático. Por este motivo, pode ser facilmente comunicado e compartilhado, seja em especificações de produto ou numa fórmula científica ou num programa de computador. A cultura é o conjunto de crenças, tradições, valores, regras escritas e não escritas que podem impulsionar, acelerar, debilitar, reatar, facilitar, comprometer, dificultar ou impedir mudanças e o desempenho das empresas (FIGUEIREDO, 2005). As habilidades estão relacionadas com a capacidade, destreza e experiências adquiridas ao longo da vida de uma pessoa. A cultura e as habilidades formam o conhecimento tácito, o qual é inerente a cada pessoa, encontra-se basicamente incorporado em qualificações e competências de indivíduos, sendo difícil de formalizar e que pode surgir como resultado dos processos de análise das informações, dos insights subjetivos e das intuições das pessoas (DOSI 1984; NELSON e WINTER, 1982). Compreende duas dimensões: a técnica frequentemente relacionada ao saber fazer que engloba a habilidade informal de pessoas ou grupos; e a dimensão cognitiva que traduz a maneira como o homem compreende o mun-do, consistindo em ideias, valores e modelos mentais (LEONARD-BARTON e SENSIPER, 1998; NONAKA e TAKEUCHI, 1997).

1 Tese de doutorado intitulada “Estratégias e Ações das Empresas do Polo Petroquímico do Sul: Implicações da Inovação no Desenvolvimento Regional”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da UNISC em março de 2011.

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Dosi (1984) e Nelson e Winter (1982), por exemplo, consolidam a perspectiva de que a ino-vação advém de ações eminentemente tácitas, não codificáveis e específicas do aprendizado dos agentes, sejam eles indivíduos ou organizações. Trata-se de movimento inovativo, no qual se originam importantes vantagens competitivas entre as empresas, permitindo-lhes coordenar estratégias de cria-ção e sustentação dessas vantagens e construir oportunidades para a expansão futura. Assim, a própria interação entre empresas pode ser entendida pelo reconhecimento do grau de heterogenia de seus processos criativos e aplicativos, que podem promover ganhos ao serem compartilhados. O reconhecimento da natureza tácita do conhecimento se deve, em grande parte, ao trabalho clássico “The tacit dimension” do cientista e filósofo Michael Polanyi. Nesta obra, Polanyi (1966) sin-tetiza a existência da parte implícita do saber humano com a frase ‘we know more than we can tell’, ratificando, dessa forma, que muito do que um ser humano conhece não pode ser expresso verbalmen-te, isto é, não pode ser explicitado. Leonard-Barton e Sensiper (1998) afirmam que os conhecimentos tácitos, inconscientes ou semiconscientes, são os responsáveis pela produção do insight e auxiliam em decisões baseadas na in-tuição. Quanto mais o conhecimento tácito é disseminado e compartilhado na organização, mais difícil é sua imitação. Assim, pode-se fazer uma analogia entre o conhecimento explícito e a ponta exposta de um iceberg (MOORADIAN, 2005; NONAKA, REINMOELLER e SENOO, 1998). Apesar de ser muito mais fácil de ser detectado e capturado, ele representa apenas uma fração de todo o conhecimento de um indivíduo ou organização. Entende-se, portanto, a existência do conhecimento tácito como uma con-dição indispensável para a existência do conhecimento explícito (MOORADIAN, 2005). Nonaka e Takeuchi (1997) apresentam uma teoria de criação e disseminação do conhecimento organizacional divergente dos métodos e filosofias ocidentais das informações e das relações humanas e empresariais. Eles afirmam que as diferenças culturais interferem radicalmente nas formas de desco-berta e uso dos conhecimentos individuais e organizacionais. A chave para a criação do conhecimento organizacional, segundo esses autores, está nos processos de conversão do conhecimento explícito e tácito. Segundo Nonaka e Takeuchi (1997, p. 5), as organizações recebem “conhecimentos e informa-ções do meio, se adaptam a eles e criam, de dentro para fora, novos conhecimentos e informações, re-criando assim seu meio”. Através do processo de captura de informações e conhecimentos do ambien-te externo, as organizações buscam identificar alguma pista ou nova ideia que incremente seu negócio. Tal processo ocorre por meio da interação organizacional com diversos agentes (as universidades, os governos e instituições de apoio ao desenvolvimento empresarial). Após a coleta de informações e conhecimentos externos, ambos são absorvidos, incorporados e adequados ao meio organizacional. Lundvall (1992) sintetiza este tipo de visão ao ressaltar que, em ambientes de rápido pro-gresso técnico, o desenvolvimento, a introdução e a difusão de inovações costumam assumir a forma de um processo interativo de aprendizado. Este processo se baseia num intercâmbio contínuo de in-formações entre produtores e usuários de inovações, que possibilita uma integração das competências desses agentes, gerando novas tecnologias para atender suas necessidades e reforçando a capacidade de geração de novos avanços. Segundo Nonaka e Takeuchi (1997), essa interatividade interna e externa permite a criação de novos conhecimentos, sustentando a inovação contínua na organização e, conse-quentemente, sua vantagem competitiva (Figura 1).

Figura 1 – O conhecimento como vantagem competitivaFonte: Adaptado de Nonaka e Takeuchi (1997, p. 5).

Vantagemcompetitiva

Inovaçãocontínua

Criação de Conhecimento

Informação

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Para Nonaka e Takeuchi (1997), o processo de criação do conhecimento organizacional com-preende duas dimensões: uma epistemológica e outra ontológica. A dimensão ontológica apresenta os níveis de entidades criadoras do conhecimento (individual, grupal, organizacional e interorgani-zacional). Já a dimensão epistemológica se distingue entre o conhecimento tácito e o conhecimento explícito. O ponto-chave para a criação de novos conhecimentos está na mobilização e conversão do conhecimento tácito, pois este tem propriedades específicas. O processo de criação de conhecimento ocorre quando a espiral do conhecimento (Figura 2) movimenta-se entre as duas dimensões, provocando a interação entre os conhecimentos (tácito e ex-plícito) e entre os níveis de conhecimento, de forma que este é sempre gerado pelos indivíduos sendo ampliado intra e interorganizacionalmente.

Tal processo, segundo Nonaka e Takeuchi (1997, p.80), é operacionalizado em quatro modos diferentes de conversão do conhecimento: “socialização, externalização, combinação e interação.” A socialização é o compartilhamento do conhecimento tácito, por meio da observação, imi-tação ou prática (tácito para tácito). A externalização representa o processo de transformação do conhecimento tácito em explícito, sendo expresso na forma de metáforas, analogias, conceitos, hipó-teses ou diálogos. Já a combinação é o processo de conversão do conhecimento implícito em explícito, organizando-o em um manual ou guia de trabalho e incorporando-o a um produto. A internalização ocorre quando novos conhecimentos explícitos são compartilhados na empresa e outras pessoas co-meçam a internalizá-los e os utilizam para aumentar e reenquadrar seu próprio conhecimento tácito (explícito para tácito). A “espiral do conhecimento” é construída a partir da fluidez do conhecimento entre os quatro modos de conversão. Seu início ocorre através da socialização, pois o conhecimento só é criado pelas pessoas e deve, portanto, ser compartilhado. Contudo, somente com a externalização é que o conhe-cimento compartilhado pode ser alavancado de forma expressiva organizacionalmente. Essa etapa é fundamental para a inovação, pois quanto mais fácil a interação entre o conhecimento tácito e o ex-plícito, mais conhecimento poderá ser convertido coletivamente, visto que o conhecimento explícito é mais fácil de ser difundido. Assim, o conhecimento científico tem sua relevância à inovação crescentemente reconhecida, embora durante muito tempo tenha sido considerado exógeno ao processo inovador. Freeman (1994) dedica-se a embasar esta perspectiva, remetendo a List (1904), que defendeu não haver descoberta científica que não possa contribuir para a melhoria da indústria. No entanto, a ciência por si só não constitui inovação, precisando das empresas para transformar as descobertas científicas em bens de valor econômico e social. Estabelece-se, dessa forma, um caminho de mão dupla, no qual a interação entre a indústria e as instituições de caráter científico constitui uma relação de interdependência no

Figura 2 – A espiral do conhecimentoFonte: Adaptado de Nonaka e Takeuchi (1997, p. 80)

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processo de inovação. O conhecimento, gerado a partir da experiência prática ou de esforços sistemá-ticos de pesquisa e desenvolvimento, pode ser produzido nas empresas ou em instituições de pesquisa. Sob a perspectiva Schumpeteriana, ao parágrafo anterior cabe agregar a noção de invenção, como a concepção de novidades de diferentes ordens: produtos, processos, mercados, organizações. Segundo Rocha Neto (1996, p.27), invenção “refere-se a algo produzido pelo homem independente-mente de sua apropriação econômica ou utilidade prática”. Alguns comentários devem ser feitos ainda em relação à invenção, a qual pode ser entendida como uma contribuição original para o avanço de conhecimentos técnicos ou tecnológicos, uma ideia, uma descoberta, um esboço ou um modelo que poderá servir para a realização de um produto, processo ou sistema novo. A invenção pode ficar limita-da ao campo do conhecimento, portanto, com valor econômico apenas parcial, se não for incorporada na produção de bens e serviços para o mercado. Em sua teoria, Schumpeter (1982) demonstrou que enquanto não são levadas à prática, ou seja, enquanto não transformadas em inovação, as invenções são economicamente irrelevantes. Inovação representa, assim, um processo além da invenção; o ino-vador precisa convencer o consumidor a apropriar-se e utilizar sua invenção para que ela se converta em inovação. O conceito de tecnologia surge do contexto anterior, podendo ser compreendido como a aplicação sistemática da ciência e de todos os outros conhecimentos organizados em tarefas práticas (AUDRETSCH et al., 2002). Contudo, segundo Damásio (2007 p.23), a tecnologia pode ser entendida como sendo a “soma de um dispositivo, das suas aplicações, contextos sociais de uso e arranjos sociais e organizacionais que se constituem em seu entorno”. Dosi (1982) define tecnologia em relação a um conjunto de partes de conhecimento, tanto de natureza prática, quanto teórica, know-how, métodos, procedimentos, experiências de sucesso e de fracasso e, também, dispositivos e equipamentos físicos. Parte da tecnologia pode estar incorporada (ou corporificada) em equipamentos e dispositivos físicos e parte desincorporada (ou descorporificada), que consiste de habilidades específicas, experiência em relação a soluções tecnológicas passadas, junto com o conhecimento e avanço do estado da arte. Tal definição de tecnologia inclui a percepção de um conjunto limitado de possíveis alternativas tecnoló-gicas e de desenvolvimento futuro imaginário. Dosi (1982, p.84), observando que sua definição de tecnologia não está conceitualmente dis-tante dos atributos de ciência, conceitua o termo paradigma tecnológico, em analogia aos paradigmas científicos, como sendo “um modelo e um padrão de solução de problemas tecnológicos selecionados, baseados em princípios selecionados, derivados das ciências naturais e de tecnologias selecionadas”:

• Um paradigma tecnológico define de antemão as oportunidades a serem perseguidas e aquelas a serem negligenciadas. Isto é, um paradigma tecnológico incorpora forte pres- crição de direção de mudança técnica. • Paradigmas tecnológicos possuem poderosos efeitos de exclusão. Significa que uma or- ganização pode estar dirigindo o seu foco tecnológico para direções precisas, negligen ciando outras possibilidades tecnológicas. • Paradigmas tecnológicos definem também algumas ideias de progresso.

Segundo Tornaztky e Fleischer (1990, p.9), “tecnologia significa conhecimento sistematizado transformado em, ou manifestado por, ferramentas”, ao que Robbins (2005, p.180) complementa, dizendo que “tecnologia diz respeito ao modo como uma organização transforma seus insumos em pro-dutos”. O desenvolvimento da tecnologia “é um processo dinâmico e cumulativo”, fundamentado no elemento cultural, objetivando desenvolver habilidades ou técnicas para criar novas tecnologias (VOL-TI, 1995, p.7). Estas produzem mudanças ou rupturas nas tecnologias existentes, por meio da ciência, de maneira aplicada, visando a produção ou à melhoria de bens ou serviços. Christensen (2003), por sua vez, destaca o papel da tecnologia relacionando-a com a inova-ção. Ele considera tecnologia como processos pelos quais organizações transformam trabalho, capital, material e informações em produtos e serviços de valor agregado. Este conceito abrange todo o pro-cesso produtivo, incluindo a engenharia, a produção, o marketing e os processos de gestão. A inovação refere-se à mudança em uma destas tecnologias podendo ser disruptivas ou sustentadas. Ao discorrer sobre as inovações disruptivas no contexto empresarial, Christensen (2003) aler-tou que elas envolvem tecnologias radicalmente novas em relação à competência central da empresa, implicando, muitas vezes, o descarte de tecnologia bem-sucedidas, nas quais investiu-se volume signi-ficativo de recursos e sobre as quais se possui domínio. Questões desta natureza, objeto da discussão neste item, constituem diferença essencial entre as inovações disruptivas e as sustentadas, podendo ser apontada como justificativa para a preponderância da segunda sobre a primeira. As inovações por

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acumulação de conhecimento não implicam ruptura e, assim, não trazem em seu bojo os desafios de descontinuidade. Defensor árduo da inovação pela descontinuidade, à qual atrela o conceito de inovação dis-ruptiva, Christensen (2003) alerta ainda que a tecnologia pode progredir mais rápido que as demandas de mercado. O cerne da tese deste autor é que a maioria das empresas que cultiva a disciplina de ouvir seus melhores clientes e identificar novos produtos que prometem grande lucratividade e crescimento são raramente capazes de construir um caso de investimento em tecnologias disruptivas antes que seja tarde demais. As tecnologias disruptivas geralmente apresentam, num primeiro estágio de seu ciclo de de-senvolvimento, performance inferior à dos principais produtos já estabelecidos nos principais merca-dos. Em contrapartida, possuem outras características valorizadas por um conjunto de novos clientes. Assim, o processo de difusão deste tipo de inovação tende a ter sucesso a partir de uma estratégia de identificação e exploração de novos nichos. Como as tecnologias sustentadas sustentam as taxas de melhoramento da performance dos produtos e processos, as empresas dominantes tendem a dedicar--se a adotar e desenvolver estas tecnologias, em detrimento do avanço daquelas disruptivas. Na concepção de Kim (1993, p. 38), a capacidade tecnológica “é a habilidade de aplicar os conhecimentos tecnológicos em atividades de produção, investimentos futuros e inovações, de forma a adaptar-se ao contexto onde se vive”. Esta capacidade pode apresentar-se de modo diferenciado, desde a aptidão para assimilar e utilizar uma tecnologia, passando pela habilidade de adaptar e mo-dificar e até de gerar novas tecnologias. Neste sentido, a capacidade de modificar a tecnologia, de propor novos conceitos, de encontrar melhores soluções é fator relevante para a competitividade empresarial. Já a inovação envolve conhecimento não apenas no que diz respeito ao desenvolvimento da tecnologia, embora esta constitua um elemento-chave. Para a inovação acontecer, faz-se necessário todo um espectro de conhecimentos que ultrapassam o escopo da tecnologia. Aspectos como o finan-ciamento, a produção, a logística e a difusão mercadológica são não apenas pertinentes, mas essen-ciais para que se migre da invenção à inovação. De acordo com Walter (2000, p.46), do conhecimento à inovação propriamente dita, existem três níveis nos quais e dentre os quais ocorrem trocas relevantes ao processo inovativo como um todo: “o nível da ciência, o da tecnologia e o da utilização”. As trocas que ocorrem dentro do nível da ciência, por meio das pesquisas básicas e aplicadas, contribuem para o refinamento da própria ciência. À medida que passam para o nível da tecnologia, contribuem para o processo de inovação por meio da transferência de conhecimento, que favorece o desenvolvimento de competências. A migração direta para o nível da utilização é muito rara. Conforme descrito anteriormente, a tecnologia é a ponte de acesso da ciência à inovação. As trocas realizadas segundo o escopo da tecnologia contribuem para o refinamento de com-petências e podem ser caracterizadas como desenvolvimento. Quando levadas para o nível da utiliza-ção, as tecnologias contribuem para a solução de problemas. Esse processo é a chamada transferência de tecnologia. O movimento de tecnologias para o nível da ciência tem sua relevância nos feedbacks acerca de lacunas de competência que podem ser resolvidas por meio de pesquisa aplicada e transfe-rida novamente sob a forma de conhecimentos aprimorados para o nível da tecnologia, onde ocorre, então, o desenvolvimento das competências necessárias. No âmbito da tecnologia, trocas internas ao mercado consistem apenas no aprimoramento e difusão da própria utilização. O intercâmbio tem importância estratégica ao desenvolvimento de novas pesquisas a partir da identificação de áreas de interesse e potencialidades no mercado. São os feedbacks do mercado para a ciência. Já os intercâmbios da utilização para o nível da tecnologia visam solucionar lacunas de com-petências identificadas no mercado, para aperfeiçoamento e retorno por meio do processo de trans-ferência de tecnologia. No âmbito do exposto anteriormente, Audretsch et al. (2002) estabelecem um paralelo entre invenção e ciência e entre inovação e tecnologia. É possível atribuir à primeira dupla de conceitos (invenção e ciência) o valor da relevância científica, enquanto responsável pela geração de conhecimento fundamental. À segunda dupla de conceitos (inovação e tecnologia), atribui-se o valor da relevância tecnológica, já que a inovação e a tecnologia são responsáveis pela utilização e difusão do novo conhecimento, resultando em ganhos econômicos e sociais. Dessa forma, a ciência está intimamente ligada ao conhecimento dos fenômenos, à compro-vação de teorias etc. A tecnologia está associada a impactos socioeconômicos sobre uma comunidade, resultantes da aplicação de novos materiais, novos processos de fabricação, novos métodos e novos produtos nos meios de produção. Já a inovação era considerada, até a década de setenta, um ato isola-

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do que ocorria em estágios sucessivos e independentes de pesquisa básica, aplicada, desenvolvimento, produção, marketing e difusão. O modelo linear de inovação surgiu no período posterior à Segunda Guerra Mundial, com o relatório de Vannevar Bush, intitulado Science: the endless frontier (BUSH, 1945), constituindo a base das políticas de ciência e tecnologia norte-americana. Porém, a partir da década de setenta, a inovação passou a ser entendida como um processo descontínuo e irregular. A partir daí, de acordo com Cassiolato e Lastres (2003), a inovação passou a ser considerada um processo não linear constituído de diferentes inter-relações entre as diferentes fases, desde a pesquisa básica até a comercialização e difusão, e entre as diferentes instituições envolvidas. Comumente, os processos de inovação incluem as seguintes etapas: prospecção de ideias, seleção das ideias a serem transformadas em inovação, construção e alocação de recursos requeridos pela inovação, implementação de inovação e aprendizado a partir da inovação. No entanto, o proces-so de inovação é um processo que envolve não apenas custos elevados, como riscos, que se tornam maiores quanto maior a dimensão da inovação vislumbrada (CHRISTENSEN, 2003). Assim, essas diversas etapas devem ser abordadas sob diferentes prismas, tais como: estratégias empresariais, relaciona-mentos interinstitucionais, ambiente organizacional e instrumentos (mecanismos, ferramentas, proce-dimentos) utilizados em cada etapa, dentre outros. Neste sentido, desde os estudos desenvolvidos por Joseph Schumpeter sobre inovação, em 1911, duas abordagens de análise do processo de inovação têm se destacado: o modelo linear de ino-vação, por meio da abordagem tecnology push (ou science push); e a hipótese da demanda de mercado denominada demand pull (ou market pull); seguidos de modelos que fazem junção dessas abordagens. Esses modelos têm buscado a interação com outros fatores internos e externos à empresa, com os ob-jetivos de explicar alguns tipos de inovação, explorar situações nas quais ocorre a inovação, ou tentar ser prescritivo para sua administração.

3. Modelos de inovação

Há, na literatura, diversos modelos teóricos de inovação com naturezas distintas, pois alguns são orientados à análise da gestão da inovação, outros ao processo de inovação (etapas, agentes e in-terrelações), além daqueles mais focados na economia da inovação. A seguir, apresenta-se um panora-ma geral, em ordem cronológica, dos modelos mais discutidos na literatura especializada do processo de inovação. Os modelos technology push e demand pull representam modelos de enquadramento do pro-cesso de inovação de primeira e segunda geração, respectivamente (ROTHWELL, 1994). No modelo tecnology push, a inovação é concebida como o resultado de um processo de geração de conhecimento que vai desde a pesquisa básica, através da produção de conhecimentos científicos, até a sua apli-cação. Assim, a inovação é introduzida pela oferta do conhecimento. Rothwell (1994) considera esse modelo de oportunidade tecnológica como predominante no período de 1945 até a metade dos anos 1960, nos EUA, classificando-o como a primeira geração do processo de inovação. No modelo demand pull, a inovação é induzida pelas necessidades do mercado ou problemas operacionais observados nas unidades produtivas, de forma que o mercado passa a ser a fonte das ideias que norteiam as atividades de pesquisa e desenvolvimento. Rothwell (1994) classifica-o como modelo de segunda geração do processo de inovação, prevalecendo no período compreendido entre a metade dos anos 1960 e o início dos anos 1970. Esses dois modelos consideravam o processo de inova-ção como uma sequência linear de atividades funcionais, não havendo retroações entre essas fases. Entre o início da década de 1970 até a metade da década de 1980, junto com a necessidade de uma orientação estratégica de controle e redução de custo, a tecnologia e as necessidades de mercado nunca estiveram tão próximas. Estudos empíricos indicaram que os modelos technology push e demand pull eram exemplos extremos e atípicos de um processo mais amplo de interação que en-volvia, de um lado, as capacidades tecnológicas e, de outro, as necessidades do mercado (ROTHWELL, 1994). Surgiu o chamado coupling model, interativo de terceira geração que tenta incorporar essas duas concepções opostas, além de ter o mérito de mostrar que a inovação é um processo que articula as necessidades da sociedade e do mercado com avanços científico-tecnológicos. Embora esta con-cepção não seja estritamente linear, preconizando já alguns efeitos de retroação, permanecia, na sua essência, um processo sequencial, mas não necessariamente contínuo. No final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, surgiu também o modelo de inovação denomi-nado elo de cadeia ou chain-linked, desenvolvido por Kline e Rosenberg (1986). Neste modelo, a ino-vação é resultado do processo de interação entre oportunidade de mercado e a base de conhecimento

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e capacitação da empresa. Esta última encontra-se no centro do processo, enquanto a pesquisa é considerada uma maneira de resolver problemas surgidos nas etapas do desenvolvimento da inovação.O modelo de quarta geração foi basicamente desenvolvido pelas empresas japonesas. O modelo é ca-racterizado pela integração e desenvolvimento em paralelo, onde as empresas integram os fornecedo-res no processo de desenvolvimento de um novo produto, além de integrar as atividades dos diferentes departamentos. Assim, os departamentos trabalham simultaneamente no projeto (em paralelo), em lugar de consecutivamente (em série) (ROTHWELL, 1994). O modelo de quinta geração é uma evolução do precedente, no qual o acesso ao know-how externo e o envolvimento com usuários líderes passam a ser essenciais, na tentativa de reduzir a curva de custo de desenvolvimento versus prazo de desenvolvimento. Segundo Rothwell (1994), as empresas inovadoras estariam se deslocando para esta geração, que se baseia na integração dos sistemas e no “networking”, isto é, a formação de redes através do desenvolvimento de parcerias e alianças, e a intensificação da tecnologia de informação para aumentar a velocidade, a eficiência e a flexibilidade das atividades ao longo de todo o processo. Assim, o processo de inovação tem evoluído de uma visão estritamente sequencial para uma abordagem mais interativa, que considera as fases da inovação sobrepostas em processos paralelos, incorpora uma multiplicidade de atores e elevados níveis de integração, tanto em nível intraempresa, como interempresa, considerando as redes estabelecidas entre os atores como parte do processo de inovação (GRIZENDI, 2007). De acordo com Grizendi (2007, p. 2), no processo de inovação interativo, a relação entre em-presas “pode ocorrer casualmente e pode incidir em diversas etapas do desenvolvimento de um novo processo, produto ou serviço”. As potenciais inovações surgem da interação entre empresa, centro de pesquisa e desenvolvimento e pesquisa de mercado, com o apoio de conhecimento ou tecnologias que podem ser novos ou existentes. Neste sentido, pode-se afirmar que o desenvolvimento do processo de inovação recebe influência de diferentes fontes que interagem entre si, consolidando relações de dependência ou suporte. Essa interação se mostra determinante do sucesso do processo de inovação e da competitivi-dade que pode trazer à empresa. O futuro da inovação após a sua difusão será consequência da sua adoção ou rejeição ao longo do tempo. Dependerá, por exemplo, dos efeitos no sistema social terem sido funcionais ou disfuncio-nais; do fato de as mudanças geradas terem sido um resultado direto ou indireto da sua adoção; e também pelo seu reconhecimento com benéficas ou negativas e intencionais ou espontâneas. Por conseguinte, podemos resumir o processo de decisão para uma inovação como sendo a inicial obtenção do conhecimento sobre a inovação para um indivíduo, unidade de tomada de decisão, organização ou comunidade, seguida por sua atitude com relação a adotá-la. Segundo Rogeres (2003), o processo de inovação pode ser subdividido em dois momentos, o processo de decisão e o processo de difusão da inovação, sendo o processo de decisão composto pela fase de conhecimento, persuasão, decisão, implementação e confirmação. No conhecimento, o indiví-duo aprende sobre a existência da inovação e como ela funciona. Na persuasão, o indivíduo forma uma opinião favorável ou desfavorável com relação à inovação. Na decisão, o indivíduo executa atividades que o farão escolher entre adotar ou não adotar. Durante a implementação, o indivíduo faz o uso prá-tico da inovação. Já na confirmação, reforça-se ou não a decisão inicial de adoção (ROGERES, 2003). A difusão de inovação, de acordo com Rogers (2003, p. 12), é “o processo pelo qual uma inovação é co-municada por meio de certos canais em um determinado tempo entre um grupo de um sistema social”. Segundo o Manual de Oslo (MCT, 2011, p.24), a difusão “é o modo como as inovações se espalham, por meio de canais de mercado ou não, a partir de sua primeira implantação mundial para diversos países e regiões e para distintas indústrias/mercados e empresas”. Uma empresa inovadora é aquela que, em um certo período, implementou produto, processo ou uma combinação de ambos, tecnologicamente novo ou significativamente aprimorado no mercado.

Conclusões

A inovação é um fenômeno complexo e não linear, ocorrendo naturalmente nas empresas, mas sendo dependente de interações com outros atores relevantes para o seu desenvolvimento. Assim, a inovação não se processa unicamente no espaço geográfico ocupado pelas empresas. Relações com outros atores voltados ao apoio à inovação como motor do desenvolvimento socioeconômico de países, regiões, setores e empresas devem, por isso, considerar a complexidade dessas relações.

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Em linhas gerais, o processo de desenvolvimento de inovação se encontra dividido em fases sequenciais, sendo interativo e dependente das diferentes características de cada ator e de sua capa-cidade de aprender a gerar e absorver conhecimentos, da articulação de diferentes atores e fontes de inovação, bem como dos ambientes onde estes estão localizados e do nível de conhecimentos tácitos existentes nesses ambientes. Ao longo do tempo surgiram várias teorias com o propósito de analisar e entender a natureza da inovação e como ela acontece. Cada uma das evoluções apresenta caracterís-ticas particulares. Neste sentido, verifica-se que existem diversas etapas no ciclo de vida de uma inovação. As decisões e atividades ocorridas antes do início do processo de difusão exercem uma forte influência na evolução da inovação. Em geral, é necessário atuar científica e politicamente em todo o processo para que uma tecnologia gerada seja transformada em inovação pelas empresas e disponibilizada para a sociedade (clientes), sendo aceita por esta. Ainda, é imprescindível a interação entre atores, com vocações e competências complementares em relação aos desafios que caracterizam o processo de desenvolvimento de inovação como um todo.

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Direitos Humanos e Perdão:a Guerrilha do Araguaia, a decisão da

Corte Interamericana de DireitosHumanos e a irreversibilidade de ação

Adroaldo Junior Vidal Rodrigues,

Lucas Medeiros, Rodrigo Valin e Thayse Klein.

Se não fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fize-mos, nossa capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos recuperaríamos.

Hannah Arendt

Resumo

A “guerrilha do Araguaia” (com fim em 1975) foi uma resistência armada contra a ditadura militar brasileira (1964-1985), reprimida com claras violações aos Direitos Humanos. Neste sentido, a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (2010) ratifica a violação da Convenção Americana, pois condena o Estado brasileiro a promover uma investigação penal para esclarecer os fatos ocorridos à época e a pu-blicizar estas informações, dentre outras obrigações. Assim, o presente artigo suscita a seguinte problemática: a decisão da Corte é uma resposta adequada a estes danos? Para isso, invoca-se o aparato teórico de Hannah Arendt, que oportunamente refletiu sobre a experiência do Holocausto e paralelamente será um parâmetro de reflexão.

Palavras-chave

Guerrilha do Araguaia. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Irreversibilidade de ação. Hannah Arendt.

Abstract

The “Araguaia guerrilla” (to end in 1975) was an armed resistance against Brazilian military dictatorship (1964-1985), repressed with clear rights violations Humans. In this respect, the decision of the Inter-American Court of Human Rigths(2010) confir-ms the violation American Convention, and condemns the Brazilian State to promote a criminal investigation to clarify the events occurred at the time and to publicize these information, among other obligations. Thus, this article raises the following problematic: the Court’s decision is an appropriate response to this damage? For this, invokes the theoretical ideas of Hannah Arendt, who reflected on a timely ex-perience of the Holocaust and in parallel will be a parameter of reflection.

Keywords

Araguaia Guerrilla. Inter-American Court of Human Rights. Irreversibility of Action. Hannah Arendt.

Ciências Sociais e Aplicadas

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Considerações iniciais

Uma das marcas políticas do século XX, na América do Sul, foi a existência de regimes ditato-riais militares e, como exemplos, podemos citar a Argentina em 1976, o Chile em 1973, o Uruguai em 1972 e o Brasil em 1964. Neste último, no final da década de 60, já existiam alguns grupos determi-nados a lutar contra o regime — embora não buscassem o estabelecimento da democracia e, sim, um projeto socialista. Era o caso dos estabelecidos às margens do rio Araguaia, na região amazônica, cujo movimento recebeu o nome de “guerrilha do Araguaia”. Neste conflito, a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) foi ignorada, e, por mo-tivos de força e poder, o Estado brasileiro cometeu as maiores atrocidades. Hannah Arendt afirma que “a própria expressão ‘Direitos Humanos’ tornou-se para todos os interessados — vítimas, opressores e espectadores – uma prova de idealismo fútil ou de tonta e leviana hipocrisia.”1 A esperança de cultivar os Direitos Humanos ficou para um regime democrático. Assim, sob o ambiente de negociação do poder e preparação para a transição democrática, surge uma resposta com a edição, no Brasil, da Lei 6.683 (1979), que concedeu anistia aos crimes polí-ticos e foi aplicada não só às vítimas, como também aos violadores.2 Este entendimento durou cerca de 30 anos quando, então, houve a provocação de duas instituições jurídicas: o Supremo Tribunal Federal (Brasil) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Costa Rica). As duas decisões jurídicas tomadas por tais instituições são centrais para a compreensão da temática atualmente, pois enquanto a primei-ra decidiu pela manutenção e compatibilidade da Lei com a Constituição da República Federativa do Brasil (1988), a segunda Corte sentenciou pela revisão de diversos pontos, em especial, que a Lei de Anistia Brasileira impedia as investigações e as sanções de graves violações dos Direitos Humanos e, portanto, incompatível com a Convenção Americana. As citadas decisões expõem um conflito entre entendimentos diferentes: a posição do Su-premo Tribunal, que é de conservação da Lei de Anistia nos moldes originais e a sentença da Corte interamericana, que será tratada com mais detalhes no próximo ponto.

1. A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos

A Corte condenou o Brasil a realizar uma investigação da operação que o Exército brasileiro fez para enfrentar a “Guerrilha do Araguaia”. Nesta decisão há a determinação para que o Estado Brasileiro deixe claro os acontecimentos, ainda hoje nebulosos, apontando as respectivas responsabi-lidades e aplicando as penalidades previstas em lei, em razão da detenção arbitrária, tortura e desa-parecimento forçado de aproximadamente setenta pessoas, entre membros da guerrilha e camponeses da região, no período da ditadura militar. Esta sentença internacional possui absoluta legitimidade, pois a busca pela defesa, ainda que tardia, de direitos básicos do homem levou à produção de diversos tratados e resoluções internacionais visando a proteger esses direitos, segundo Antônio Augusto Cançado Trindade, pois ainda afirma que3:

[...] todos os Estados (inclusive os que não ratificaram os tratados gerais de Direitos Humanos) encon-tram-se hoje sujeitos à supervisão internacional no tocante ao tratamento dispensado às pessoas sob sua jurisdição.

O internacionalista Cançado Trindade afirma que os Estados-nações, quando ratificam trata-dos sobre Direitos Humanos, contraem, além de obrigações convencionais para a garantia de cada um dos direitos protegidos, obrigações gerais de extrema importância, como a de assegurar e respeitar os direitos protegidos com “medidas positivas”. Outra obrigação que se destaca é a de adequação do ordenamento jurídico interno para que este seja condizente com as normas internacionais, seja com a adoção da legislação necessária, acabando com as lacunas do direito interno, ou alterando as disposições legais do país para harmonizá-las às normas convencionais de proteção requeridas pelos tratados.4

1 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 302.2 Houve outras regras editadas como a Medida Provisória número 2.151 de 2001 e a Lei 10.559 de 2002, que não alteram esse ponto nevrálgico.3 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998, p.77.4 TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas.p.131.

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Assim, essa legítima decisão põe em evidência a divergência de interpretação em relação à aplicação da Lei de Anistia com o Estado Brasileiro, porque rediscute a necessidade de investigar e pu-nir os violadores dos Direitos Humanos que atuaram na repressão política durante o referido período. Nesse sentido, a Corte afirmou que5:

As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de Direitos Humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis. [grifo nosso]

Além de afastar a aplicação da Lei de Anistia brasileira, a Corte Interamericana reitera que6:

[...] o Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabe-lecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

Segundo a Corte, o Estado Brasileiro deve corrigir as suas ações, porque7:

[...] descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de Direitos Humanos.

Afirma, ainda, que o Estado Brasileiro viola o direito à liberdade de pensamento e de expres-são consagrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos ao impedir: “o direito a buscar e a receber informação, bem como o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido com os desaparecidos na ‘guerrilha do Araguaia’”8. Além disso, o Estado foi condenado também a fazer todos os esforços para localizar as víti-mas desaparecidas, identificar e entregar os restos mortais aos familiares, promover ato público de reconhecimento de responsabilidade a respeito dos fatos em julgamento e, por fim, criar uma lei que tipifique o crime de desaparecimento forçado. A partir destes aspectos condenatórios destacados da sentença passamos a analisar critica-mente os principais pontos no próximo tópico.

2. A irreversibilidade de ação

A decisão da Corte possui vários aspectos importantes, porém dois deles serão refletidos mais profundamente. O primeiro diz respeito à busca da verdade dos fatos e todos os seus esforços para encontrar informações sobre o que ocorreu, a necessidade de localizar as vítimas desaparecidas, a entrega dos restos mortais aos familiares e a adoção de ato público de reconhecimento. Neste último aspecto, se corrige algo que ameniza a irreversibilidade dos fatos: a sua publicização. Nesse sentido, a crítica de Glenda Mezarobba em relação à Lei de Anistia reforça a busca pela verdade9:

Conquanto se mostrasse capaz de tornar possível a convivência entre diferentes e pudesse aventar alguma possibilidade de justiça, ao prever, por exemplo, a hipótese de retorno ou reversão ao serviço ativo de servidores civis e militares afastados pelo arbítrio, de forma alguma a Lei da Anistia se dedicou ao estabelecimento da verdade.

5 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. XII Pontos Resolutivos, 3, fl. 114.6 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. XII Pontos Resolutivos, 4, fl. 114.7 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. XII Pontos Resolutivos, 5, fl. 114.8 COSTA RICA. Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Caso Gomes Lund e Outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Sentença de 24 de novembro de 2010. XII Pontos Resolutivos, 6, fl. 114.9 MEZAROBBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas conseqüências, um estudo do caso brasileiro. São Paulo: Associação Editorial Humanistas, 2006, p.147.

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Assim, é correto o entendimento da Corte Interamericana não só porque busca a verdade, como também o direito à informação. É um ato que diz respeito a todos, ou seja, às vítimas, aos obser-vadores, ao Brasil e ao mundo. Adequado está esse entendimento ao conceito de dignidade da pessoa humana construído por Ingo Wolfgang Sarlet10:

[...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existên-cia e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [grifo nosso]

O segundo aspecto importante se refere à possibilidade de aplicar o conceito de perdão, definido por Hannah Arendt como aquilo que “serve para desfazer os atos do passado, cujos ‘pecados’ pendem como espada de Dâmocles sobre cada nova geração.”11

Este conceito é importante porque não foi levado em consideração pela sentença da Corte In-teramericana de Direitos Humanos. E, neste sentido, é uma inovação para o debate – porque passadas mais de três décadas da existência da Lei de Anistia e do surgimento de novas gerações pós-conflito, não é possível que a “espada de Dâmocles” continue pendendo sob a cabeça dos brasileiros. Esta últi-ma parte é um truísmo. Existem duas alternativas para solucionar este conflito: uma é a punição (posição da CIDH) e outra é o perdão (posição defendida neste artigo). Segundo Celso Lafer “perdão e punição (sobretudo quando esta, observo eu, funciona como sanção reparadora e expiadora) tem em comum, observa Hannah Arendt, pôr fim a algo”. E, continua o raciocínio, “o perdão possui a função importantíssima nos negócios humanos: a de pôr fim a algo que sem a sua interferência prosseguiria indefinidamente”12. Cabe destacar que o perdão está sendo trabalhado aqui sob uma perspectiva jurídica e não religiosa — como a palavra designa os dois sentidos, é importante frisar a perspectiva adequada a esta temática. Celso Lafer interpreta Hannah Arendt sustentando que: “o perdão... é normalmente visto como irrealista na esfera pública devido à sua conotação religiosa”.13 Todavia o perdão é previsto in-clusive pelo Direito Positivo, por exemplo, nos casos de graça e indulto. Outro aspecto para ser pensado é o de que o perdão leva em consideração mais o respeito pelas pessoas envolvidas e menos o amor pelos acontecimentos. Novamente, o professor Lafer escla-rece o raciocínio, pois sustenta que: “Hannah Arendt aponta que a base do perdão é o respeito e não o amor — relação sem mediações que percebe o who mas não o what.”14 Respeito aqui é uma relação pública e cívica. Então, sustentando que o perdão deva ser compreendido por um viés jurídico, levando em consideração um respeito cívico às pessoas e visando pôr fim a algo, propõe-se a sua aplicação na solução do conflito da “guerrilha do Araguaia” — sem prejudicar a busca pela verdade (elemento já discutido no início deste ponto) — pois se trata de uma solução adequada à irreversibilidade de ação que o caso essencialmente possui. Ou seja, a Lei de Anistia, embora não incentive a busca pela verdade dos fatos – e isso pode ser corrigido pela sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos – deve permanecer inaltera-da, amparando a todos os envolvidos (vítimas, opressores e espectadores). Shakespeare, no livro A Tempestade, escreveu que: “a adversidade faz o homem deitar-se com estranhos.” Foi o que aconteceu com a publicação da Lei de Anistia.

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Revista Atitude - Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano V · Número 10 · Julho - Agosto de 2011 43

Os atos unilaterais noCódigo Civil Brasileiro –

breves apontamentosDébora Cristina Holenbach Grivot1

Resumo

Dentro da categoria das fontes das obrigações, os atos unilaterais reúnem a sistema-tização dos tipos não contratuais e que não são ato ilícito. O agrupamento dos tipos denominados Promessa de Recompensa, Gestão de Negócios, Pagamento do Indevido e Enriquecimento sem causa, é inovação da Lei Civil de 2002. A análise desta tipolo-gia evidencia a pertinência do sistema e a adequação da classificação.

Palavas-Chave

Atos Unilaterais. Promessa de Recompensa. Gestão de Negócios. Pagamento do Inde-vido. Enriquecimento sem causa.

Abstract:

Inside the category of sources of obligations, the unilateral acts meet the systema-tization of both non contractual and are not tort. The grouping of the types called Promise of Reward, Business Management, Improper Payment and Unjust enrich-ment, innovation is the Civil Law of 2002. The analysis highlights the relevance of this typology and the adequacy of the system and the classification.

Key-Words

Unilateral Acts. Promise of Reward. Business Management. Improper Payment. Unjust enrichment.

Lista de abreviaturas e siglas:

Art. Artigo Cf. ConformeEd. EdiçãoPg. PáginaVol. Volume

I – Introdução

Uma das mais tradicionais abordagens referente ao direito das obrigações é o estudo das suas fontes, seja pela própria natureza do tema, no sentido de perquirir a origem da relação obrigacional, seja pela necessidade de sistematização de um campo jurídico de ampla importância para a vida de relação. Este estudo é considerado especialmente pela perspectiva da sua função didática e instru-mental, como uma noção preliminar ou precedente a qualquer investigação acerca da estrutura e do

Ciências Sociais e Aplicadas

(1) Doutoranda em Direito na UFRGS. Mestre em Direito Privado pela UFRGS (2006), graduada em ciências jurídicas e sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1999). Membro associado da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano - AIDROM. Professora de Direito Romano e História do Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

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funcionamento do vínculo obrigacional. Aparentemente, esta análise é válida em si mesma pelo seu objetivo; porém, determinar e explicitar a gênese da obrigação vai mais adiante do que um simples elencar, pois é também a demonstração do que é importante na esfera jurídica e o que o sistema ju-rídico pretende tutelar. Dentro deste contexto, o estudo das fontes obrigacionais poderia ser apresentado como a forma de classificar as obrigações. Porém, este não foi exatamente o critério operado pela Lei Civil já que o Código não se preocupa em enumerar ou oferecer a sistematização das fontes1, tal como havia sido a preocupação em épocas precedentes em relação ao tema2. No Código Civil, a estrutura das fontes obrigacionais não está identificada precisamente, mas a disposição sequencial do Livro 1 da Parte Especial, qual seja: (1) dos contratos em geral – Título V, (2) das várias espécies de contrato – Título VI, (3) dos atos unilaterais – Título VII, (4) dos títulos de crédito – Título VIII e (5) da responsabilidade civil, parece apontar qual a opção sistêmica para as fon-tes do direito das obrigações. Desta forma, segundo o Código Civil brasileiro, são fontes obrigacionais o contrato, os atos unilaterais e os atos ilícitos geradores de responsabilidade civil. A proposta deste trabalho é a investigação acerca da origem da obrigação pelos atos unilate-rais, com enfoque na análise dos dispositivos legais do Código Civil, do artigo 854 ao artigo 886, que tratam do tema. Neles são tratados: a Promessa de Recompensa, a Gestão de Negócios, o Pagamento do Indevido e o Enriquecimento sem causa. O objetivo desta pesquisa é estudar e compreender a tipologia normativa dos atos unilaterais como fontes de obrigação conforme a sua disposição no Código Civil. A problemática que é suscitada e que sustenta esta pesquisa é a seguinte pergunta3: “é adequado o rol de tipos apresentados como atos unilaterais no Código Civil?” A hipótese que se conjectura com este trabalho é inadequação do enquadramento destes tipos, ou pelo menos de alguns deles, já que foram arrolados numa mesma ca-tegoria tendo características muito diferentes. Assim, a seguir serão analisados os quatro tipos de atos unilaterais4 apresentados no Código Civil e, diante de suas peculiaridades, perquirir-se-á a pertinência da sua classificação.

II – A Promessa de Recompensa

1. Natureza Jurídica do Instituto

Segundo Karl Larenz, por promessa de recompensa ou simplesmente promessa pública, en-tende a lei a fixação de uma recompensa pela realização de um ato, em especial pela obtenção de 1 Fernando Noronha apresenta uma seção própria para tratar da “inviabilidade de classificação das obrigações a partir de suas fontes”. Neste item, o autor demonstra a inadequação da proposta de classificar as obrigações pela sua origem já que são plúrimas as hipóteses. É a sua críti-ca: “Pouco adiante a afirmativa de que as obrigações podem nascer de negócios jurídicos, atos ilícitos, atos justificados, fatos jurídicos e atos jurídicos ilícitos: estão aqui, afinal, incluídas todas as categorias de fatos juridicamente relevantes e dentro de cada uma cabem fatos que geram obrigações e fatos que geram direitos de outra natureza. O contrato, por exemplo, tanto pode estar na origem de uma relação familiar (é o caso do casamento), como de um direito real (é o caso do direito do promitente comprador de imóvel, com compromisso irretratável), como ainda de uma obrigação em sentido técnico (é o caso do mesmo compromisso de compra e venda, mas com cláusula de arrependimento, que gera apenas efeitos obrigacionais. Mais ainda, de fatos do mesmo tipo podem resultar obrigações de natureza diferente, como também de fatos diversos podem surgir obrigações similares. Assim, por um lado, fatos jurídicos podem estar na origem de obrigações de indenizar em responsabilidade civil e de restituição em enriquecimento sem causa; por outro lado, tanto de fatos como de atos jurídicos podem resultar obrigações de responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa. Assim, não é possível classificar os fatos geradores de obrigações em categorias gerais, privativas do Direito das Obrigações.” NORONHA, Fernando, Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 408.2 PARÍCIO, Javier, et. al., Las Fuentes de las Obligaciones en la tradición gayano-justinianea, in: Derecho Romano de Obligaciones: Home-naje al Profesor José Luis Murga Gener. Madrid: Centro de Estúdios Ramón Areces, 1994, p. 19: “Las clasificaciones que pueden encontrarse en muchos Códigos civiles modernos son evidentemente deudoras del celebre modelo gayano-justinianeo... Asi sucede, por ejemplo, en el Código Civil español, donde el art. 1089 dice: ‘Las obligaciones nacen de la ley, de los contratos y cuasi contratos y de los actos y omissiones o en que intervenga cualquer gênero de culpa o negligencia’ ... Esta ultima formula se emplea para no utilizar los conceptos del delito e del cuasidelito.”3 “A estreita relação que aparece entre perguntar e compreender é a única que dá à experiência hermenêutica sua verdadeira dimensão. Aquele que quer compreender pode ter retrocedido desde a intenção imediata da coisa à intenção de sentido como tal, e considerar esta não como verdadeira, mas simplesmente algo com sentido, de maneira que a possibilidade de verdade fique em suspenso: esse pôr-em-suspenso é a verdadeira essência original do perguntar. Perguntar permite sempre ver as possibilidades que ficam em suspenso. Por isso é possível compreender a questionabilidade, desligando-nos de um verdadeiro perguntar, do mesmo modo que é possível compreender uma opinião à margem do próprio opinar. Compreender a questionabilidade de algo é, antes, sempre perguntar. Face ao perguntar, cabe um comportamento potencial, de simples teste, porque perguntar não é pôr, mas provar possibilidades. A partir da essência do perguntar torna-se claro o que o diálogo platônico demonstra na sua realização fática. Aquele que quer pensar tem de perguntar. Quando alguém diz ‘aqui caberia uma pergunta’, isto já é uma verdadeira pergunta, disfarçada pela prudência ou cortesia.” GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método, tradução de Flávio Paulo Meurer, Petrópolis: Vozes, 1997, pg. 551.4 “Dizem-se unilaterais os atos produzidos por uma só declaração de vontade, ou melhor, por uma declaração unitária de vontade, quer emane de uma só pessoa, quer de várias pessoas agindo unitariamente dentro de uma mesma e única direção de interesses. Sob sua forma simples e desde logo perfeita, o ato unilateral validamente se constitui e produz todos os seus efeitos jurídicos sem o concurso da vontade de outrem.” RAO, Vicente, Ato Jurídico, 4ª edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, pg. 66.

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um resultado, anunciada publicamente5. O artigo 854 do Código Civil brasileiro disciplina a regra da promessa de recompensa:

Art. 854. Aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai obrigação de cumprir o prometido.

Destarte, promessa de recompensa é modalidade de ato unilateral vinculante6 e gerador da obrigação. Esta forma é feita mediante anúncio público, pelo qual alguém se obriga a premiar quem se encontrar em certa situação ou praticar determinado ato, independentemente do consentimento do credor7. Por isso, no que diz respeito à natureza jurídica do instituto, e conforme disposto na Lei Civil, a promessa de recompensa é obrigatória por constituir aplicação resultante de declaração unilateral de vontade, compreendida pelo ordenamento jurídico como fonte de obrigação8.

2. Direito à recompensa prometida e arrependimento do promitente

Do ponto de vista do credor, ou melhor, de quem vai eventualmente cumprir a tarefa ou satis-fazer a condição avençada, terá em seu favor o direito de haver o montante prometido, independente-mente de quem seja a pessoa9. Por isso, a promessa de recompensa obriga quem produz a declaração de vontade desde o instante em que tal promessa se torna pública, independentemente de qualquer aceitação bilateral porque o compromisso se dirige a pessoa indeterminada10. O conteúdo normativo do artigo 855 revela tal circunstância:

Art. 855. Quem quer que, nos termos do artigo antecedente, fizer o serviço, ou satisfizer a condição, ainda que não pelo interesse da promessa, poderá exigir a recompensa estipulada.Assim, qualquer pessoa que reunir as condições de exigibilidade da prestação poderá exigir o adimple-mento da obrigação.

5 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones, Tomo II, versão espanhola e notas de Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1957, pg. 336.6 Sobre a vinculação da promessa sem o sentido jurídico do termo, interessante a observação de Francesco Messineo: “Il detto comune, e di contenuto non tecnico-giuridico, che ‘ogni promessa è debito’ (‘promissio boni viri est obligatio’) è regola costante nel mondo giuridico, ma in quanto la intenda come promessa accettata da colui, al quale è indirizzata; soltanto in casi eccezionali, la promessa vale e vincola Il promitente, per Il solo fatto di essere manifestata. In ogni caso, deve intendersi promessa ‘di contenuto giuridico’; anzi, patrimoniale. Quel detto vuole piuttosto esprimere l’aspetto etico del vincolo obbligatorio, ossia la fides che Il promitente deve osservare, quando abbia assunto Il vincolo obbligatorio.” MESSINEO, Francesco, Manuale di Diritto Civile e Commerciale, Vol. II, Parte Seconda, 8ª Ed., Milano: Giuffrè, 1952, pg. 23.7 Cf. Caio Mário: “Não tendo embora constituído a doutrina da promessa unilateral, ao Direito Romano não foi estranha a ideia de vincular o policitante quando dirigida ao Estado, a uma cidade, ou quando animada de pia causa, e feita a benefício da Igreja, ou da própria divindade. Ao tempo da elaboração do BGB, ainda atuou o receio de Brinz, quanto às dificuldades de distingui-la da oferta muito embora teoricamente não se lhe opusesse objeção. E escritores modernos até hoje se arrimam a este subsídio fundamentando o título no conceito da oferta dirigida a qualquer portador, a qual é reputada aceita pelos portadores sucessivos. O Código Civil brasileiro de 1916 abrigou a noção, especificamente constituindo a promessa de recompensa, que não é mera promessa do contrato, porém uma obrigação já definida pela declaração unilateral de vontade, e pode ser exigida por quem quer que preencha a condição proposta (Ruggiero e Maroi). Quando, pois, alguém, por anúncio público, oferece recompensa a quem desempenhe certa prestação, está obrigado a pagá-la, quer o candidato haja procedido com o propósito de disputá-la, quer não tenha agido pelo interesse da recompensa.” PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 350.8 Cf. Washington de Barros Monteiro: “No terreno puramente doutrinário, tem sido objeto de controvérsia a natureza jurídica da promessa de recompensa. Para primeira corrente, ela constitui simples oferta de contrato, endereçada ao público, isto é, a pessoa indeterminada; o vínculo obrigatório não se forma senão no momento em que a oferta é aceita. Para a segunda corrente, a promessa de recompensa constitui negócio jurídico unilateral, que obriga aquele que emite a declaração de vontade desde o momento em que ela se torne pública, independen-te de qualquer aceitação. A primeira teoria deve ser rejeitada; a promessa de recompensa não é, em verdade, simples proposta de contrato, ela não é o primeiro passo de um contrato em formação; o promitente vincula-se obrigacionalmente ainda que o aceitante haja executado o trabalho desinteressadamente, sem ter sido aguilhoado pelo desejo de obter a recompensa prometida.” MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 515.9 Cf. Caio Mario: “É uma declaração sui generis, porque endereçada a qualquer anônimo, determinando-se o sujeito ativo da relação obrigacio-nal no momento em que se verifica o preenchimento dos requisitos de exigibilidade da prestação.” PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 350.10 Serpa Lopes noticia, entre as suas explicações sobre o tema, curioso episódio humorístico que leu num jornal italiano: “Lemos num pe-riódico italiano o seguinte episódio humorístico, mas que tem a vantagem de pôr em destaque todos os problemas jurídicos da Promessa de Recompensa. Um cão de grande estima desapareceu da residência de certo cidadão de Roma. Este, dando pela falta do animal, correu aflito à redação de um jornal e contratou um anúncio oferecendo grande recompensa a quem quer que, encontrando o animal descrito, lho restituísse. Retornando à sua residência, menos agitado, passou a refletir do ‘quantum’ que houvera oferecido como recompensa, chegando à conclusão de que o valor do prêmio arbitrado era exagerado. Arrependido, retornou à redação do jornal com a intenção de modificar o prêmio. Em lá chegando, porém, não encontrou quem pudesse atendê-lo, pois estavam ausentes, disseram-lhe, o Diretor, o gerente, e um outro responsável, todos tinham saído à procura de um cachorro. Chegara tarde, pois a modificação já nenhum efeito poderia produzir em relação aos que já se tinham lançado na busca do animal perdido.” LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 165.

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O momento da constituição do vínculo, como regra geral, é o da publicidade da promessa. Porém, na oportunidade da ressalva da possibilidade de revogação da promessa, pode o promitente ter ilidida a declaração anterior, e este é o teor do artigo 856 do Código Civil:

Art. 856. Antes de prestado o serviço ou preenchida a condição, pode o promitente revogar a promes-sa, contanto que o faça com a mesma publicidade; se houver assinado prazo à execução da tarefa, entender-se-á que renuncia o arbítrio de retirar, durante ele, a oferta. Parágrafo único. O candidato de boa-fé, que houver feito despesas, terá direito a reembolso.

Desta forma, a previsão legal sublinha inclusive a hipótese de ressarcimento das despesas da pessoa que, de boa-fé, tiver envidado esforços para a consecução do cumprimento da tarefa revoga-da. Isto porque, segundo as explicações de Newton de Lucca, a leitura do artigo sub examen retrata a convivência harmônica entre as promessas de recompensa “com” e “sem” prazo determinado para a execução da tarefa, sendo que, na primeira delas, impediu-se a revogação (o legislador estipulou expressamente a renúncia ao direito de revogação do promitente) e na segunda hipótese, na qual não há prazo determinado, foi reconhecida a plena faculdade de revogação por parte do promitente, des-de que utilizada a mesma forma de publicidade usada quando da comunicação da oferta ao público, visando eliminar as expectativas criadas no meio social (livre revogabilidade)11. Por isso que Washington de Barros Monteiro é veemente ao frisar que não pode o promiten-te furtar-se da obrigação unilateralmente assumida sob a alegação de que se arrependeu, de que se retratou ou de que o serviço não mais lhe interessa, já que para que seja admissível semelhante retratação, é preciso que ela tenha sido igualmente feita em tempo útil e com emprego da mesma publicidade12. Quanto à possibilidade de ressarcimento das despesas feitas pelo candidato de boa-fé, inse-rida no Parágrafo Único do artigo 856, segue a linha adotada pelas novas diretrizes da Lei Civil, ampa-rada no princípio da Boa-Fé, o que para Newton de Lucca não decorre apenas de um vago sentido de equidade, deriva, antes, da ideia paralela, existente no âmbito do direito do consumidor, de que deve responder pelos danos eventualmente causados a terceiros, todo aquele que, colocando os seus bens ou serviços no mercado, assume os riscos decorrentes dessa atividade13. Ainda, por outro lado, não desaparece a obrigatoriedade com a morte do promitente; toda-via, se aos herdeiros deste não mais interessa a efetividade da promessa, devem revogá-la, veiculando a revogação pelo meio de propaganda utilizado quando da promessa14. Segundo João de Matos Antunes Varela, o traço essencial da promessa ao público, como de-claração unilateral, está menos na sua revogabilidade do que no fato de a constituição da obrigação prescindir da aceitação do credor, nascendo diretamente da declaração do promitente e não do fato ou situação que a prestação prometida se refere15. E assim, a posição adotada pela Lei Civil parece estar consoante aos ensinamentos de Karl Larenz, segundo o qual não é necessário que a promessa pública seja irrevogável16.

11 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 18. Continua a sua explicação alertando: “Nada impede, é claro, que o promitente renuncie expressamente à faculdade de revogar. Clóvis já o dissera de forma peremptória, ao comentar o art. 1514 do Código Civil de 1916. O parágrafo único, sem paralelo na legislação de 1916, abraçou a hipótese de indenização devida ao candidato de boa-fé que, sem ter tido a ciência da revogação pelo promitente, fez despesas em razão do prometido.”12 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 517: “Como se vê, é o mesmo princípio que vige em relação à obrigação da proposta, da policitação, endereçada à pessoa ausente; cessa essa obrigatoriedade se, antes da proposta, ou simultaneamente, chegar ao conhecimento da outra parte a retratação do proponente (art. 428, IV). Enquanto, pois, não executado o serviço, ou preenchida a condição, nenhum direito adquire a pessoa, determinada ou indeterminada, a quem é dirigida a promessa.”13 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 22.14 Cf. Washington de Barros Monteiro: “O mesmo sucede no caso de superveniente incapacidade do promitente; para que cesse a eficácia da promessa, é mister haja revogação expressa e pública por parte do representante do incapaz, e essa revogação deve ser divulgada pelo mesmo elemento de publicidade anteriormente utilizado para conhecimento da promessa. MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 518.15 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, Vol. 1, 7ª Ed., Coimbra: Almedina, 1991, pg. 428: “Assim é que a lei confere ao promitente, sob determinados pressupostos, a faculdade de revogar a promessa: havendo justa causa e se tiver prazo fixado para a sua validade; a todo o tempo se não houver prazo contando que a situação prevista se não haja ainda verificado ou o facto não tenha sido ainda praticado. Em qualquer dos casos, a revogação deve ser feita na mesma forma da promessa ou em forma equivalente, para garantir a mesma publicidade que teve a promessa, procurando eliminar a tempo as expectativas que esta tenha criado.”16 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones, Tomo II, versão espanhola e notas de Jaime Santos Briz, Madrid: Editorial Revista de Derecho Privado, 1957, pg. 338: “No es necesario que la promesa publica de recompensa sea irrevocable. En caso de que el promitente no haya renun-ciado al hacerla a su revocabilidad — tal renuncia puede darse en casos dudosos en la determinacion de um plazo — podrá revocar la promesa hasta la realizacion Del acto querido. La revocacion há de publicarse em igual forma que la promesa, y puede tambien efectuarse mediante comunicacion especial, surtiendo efecto en este ultimo caso solo respecto a aquel a quien se comunico.”

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3. Pluralidade de Candidatos e Concurso Público

No caso de concurso de candidatos, a lei prevê que o primeiro que executou seja o beneficia-do da recompensa17. Mas sendo simultânea a efetivação, haverá divisão do prêmio e na impossibilidade desta, será procedido sorteio e indenização, conforme os artigos 857 e 858 do Código Civil18:

Art. 857. Se o ato contemplado na promessa for praticado por mais de um indivíduo, terá direito à recompensa o que primeiro o executou.

Art. 858. Sendo simultânea a execução, a cada um tocará quinhão igual na recompensa; se esta não for divisível, conferir-se-á por sorteio, e o que obtiver a coisa dará ao outro o valor de seu quinhão.

Segundo a explicação de Washington de Barros Monteiro, essa solução confirma a teoria não contratual desta fonte, já que é dada ênfase à formação estranha à conjunção de vontades, peculiar dos contratos19. O critério de prioridade não é inovação da atual Lei Civil, já que o Código de 1916 tinha disposição semelhante20. Em todo caso, aquele que primeiro executou a tarefa terá direito à recompensa, independentemente de aviso ou comunicação ao promitente: a simples execução já é o suficiente para que se possa exigir o prêmio21. Em se tratando de realização simultânea da tarefa, cabe divisão dos quinhões pelo concurso de concorrentes22. Existe ainda um terceiro caso, no qual há coexecução da tarefa. Segundo aponta Newton de Lucca, tal circunstância está disciplinada no direito alemão (BGB, § 669), na qual a unidade de ação e pluralidade de participantes ou coexecutantes. Neste caso, adota-se o princípio da divisão (Teilungsprinzip), atribuindo-se quotas aos participantes, de acordo com a elaboração de cada um23. No que diz respeito à promessa formulada em concurso público, a disciplina do Código Civil é a da estipulação de prazo24, bem como a vinculação dos concorrentes ao juiz

17 Cf. Carlos Roberto Gonçalves: “O dispositivo atende à precedência na execução de serviço, sem qualquer consideração de ordem pessoal. Esta somente ocorrerá se a situação ou estado das pessoas foi imposta nos anúncios em que a recompensa foi prometida (como nos concursos de beleza ou de robustez, por exemplo). GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, Vol. 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 600.18 Fazendo uma comparação destes dispositivos com a pertinência do Código anterior, Newton de Lucca discorre: “Esses dois artigos acham--se, na verdade, tão substancialmente interligados que pareceu-nos preferível o seu comentário conjunto. Não cremos existir, salvo melhor juízo, uma razão ponderável para que o legislador de 2002 desmembrasse a matéria em dois diferentes artigos, quando o legislador de 1916 fizera tudo num mesmo artigo desdobrado em dois parágrafos... A expressão adicional ‘e o que obtiver a coisa dará ao outro o valor de seu quinhão’, constante do art. 858, in fine, por si só, não serviria para justificar tal desmembramento, porquanto ela poderia vir, sem nenhuma possibilidade de obnubilar a clareza do texto ou mesmo de sacrificar a elegância do estilo, no final do próprio parágrafo segundo, se mantida fosse a mesma solução do Código de 1916.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 25.19 MONTEIRO, Washington, de Barros et al. Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 519: “Se essa con-fluência de vontades entrasse em linha de conta, o preferido para embolsar a recompensa deveria ser não o que teve prioridade na execução do serviço, mas o que primeiro comunicou ao promitente sua efetivação.”20 E da mesma forma no direito alemão conforme a doutrina de Pontes de Miranda: “Evidentemente, o art. 1515 do Código Civil brasileiro proveio do § 583 do I Projeto alemão: ‘Praticada a ação por muitos, tem pretensão (Anspruch) à recompensa aquele que primeiro a executou. Em caso de execução ao mesmo tempo, todos, quanto à recompensa, são autorizados por partes iguais ou quotas. Excluída uma tal atribui-ção de direitos (Berechtigung) pela natureza da recompensa, se implica a promessa de recompensa que somente um deva receber o prêmio (Belohnung), decide, entre todos, o sorteio. Nota-se a diferença entre o I Projeto alemão e o Projeto primitivo brasileiro: aquele falava de natureza, qualidade (Beschaffenheit) da recompensa; e esse alude a ‘se não for divisível’.” PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tra-tado de Direito Privado, Tomo XXXI, 3ª Ed., 2ª Reimp., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, pg. 340.21 A disciplina operada pelo ordenamento pode não ser exatamente justa ou coerente, pelo menos no exemplo citado por Newton de Lucca: “quando as condições da promessa não implicam a ideia de tempo. Se o promitente se ofereceu a dar certa cifra a quem escrevesse a bio-grafia de determinada pessoa, dentro de certo prazo, todos que o fizerem terão direito ao prêmio, ou por fração, ou por sorteio. A primazia no tempo não deve dar direito à recompensa, com exclusão do outro concorrente, quando ambos apresentarem o trabalho dentro do prazo. Acho que, conforme a hipótese, não deve o juiz ficar inteiramente jungido à regra legal, principalmente quando estiver convencido de ter sido outra a intenção de quem prometeu.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 26.22 Segundo ensina Washington de Barros Monteiro, a prova da prioridade ou simultaneidade na execução do ato caberá aos interessados. Vale ressaltar, a propósito, que a indivisibilidade do objeto não é apenas de caráter objetivo, podendo revestir-se também de razões de ordem subjetiva, alicerçadas na intenção do promitente. MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 520.23 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 27: “Faz-se necessário realçar que nem sempre a solução ideal será a divisão do prêmio em partes iguais, pois deverão ser conside-radas as parcelas de contribuição de cada participante e o momento em que cada um agiu para a consecução do resultado. Somente quando inviável essa solução, em razão da indivisibilidade do objeto, é que se deve optar pelo sorteio, segundo decisão a ser tomada pelo promitente, caso não haja outra alternativa a ser adotada, prevista na própria promessa pública de recompensa.”24 Cf. Paulo Nader: “A validade do concurso exige, entre outros requisitos, a fixação de prazo determinado. Inexistindo este, o concurso se torna inexequível. De fato, sem o termo final, o concurso poderia ficar indefinidamente em aberto e ser objeto de manobras. A razão funda-mental do prazo, expõe Clovis Beviláqua, é a de impedir a revogação da promessa, prejudicando quem estiver desenvolvendo o seu trabalho. A revogação durante o prazo será possível, todavia, quando o promitente fez reserva desta faculdade, segundo entende Carvalho Santos. A Lei Civil não estipula qualquer prazo, apenas exige a sua definição quando da promessa pública. Manda o bom senso, todavia, que o prazo seja razoável — o suficiente para que o concurso alcance os seus objetivos. Destarte, inconcebível que, para a escolha do nome de um edifício em construção, se fixasse o prazo absurdo de dez anos.” NADER, Paulo, Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 610.

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nomeado25 e suas decisões e na falta deste ao próprio promitente. Refere o artigo:

Art. 859. Nos concursos que se abrirem com promessa pública de recompensa, é condição essencial, para valerem, a fixação de um prazo, observadas também as disposições dos parágrafos seguintes.§ 1º A decisão da pessoa nomeada, nos anúncios, como juiz, obriga os interessados.§ 2º Em falta de pessoa designada para julgar o mérito dos trabalhos que se apresentarem, entender--se-á que o promitente se reservou essa função.§ 3º Se os trabalhos tiverem mérito igual, proceder-se-á de acordo com os arts. 857 e 858.

Como geralmente a veiculação deste tipo de declaração unilateral está ligada a concurso cultural, ou apresentação de trabalhos artísticos e científicos, parece justificada a vinculação do con-corrente às regras proferidas pelo declarante e a vinculação do declarante na própria promessa que, fixado o prazo para seu cumprimento, é irrevogável26. Neste sentido, todo concurso implica a presença de um julgador, sendo que, ordinariamente, o nome deste é indicado na declaração unilateral da vontade, e no caso de omissão, cabe ao promitente tal posição. Segundo refere Paulo Nader, havendo motivo de força maior, poderá ocorrer a substituição do julgador, e tal conclusão se impõe, porque não seria plausível se, ocorrendo a morte do julgador no decorrer do prazo de inscrição, o concurso devesse ser desfeito27. Interessantes são os questionamentos levantados por Newton de Lucca: “pode o promitente participar do concurso que ele lançou?” Ou então: “Pode a comissão julgadora entender que não há vencedor mesmo havendo candidatos?” Para ambos os casos, o autor refere que sim, é possível, tanto o próprio promitente participar do concurso como não haver vencedores. No primeiro caso, não há nenhum impedimento, mas deve haver declaração expressa da intenção do promitente de participar do certame e, obviamente, a decorrente impossibilidade de o mesmo ser o julgador. Já no caso de nenhum dos candidatos serem premiados, aventa a explicação de Silvio Rodrigues, segundo o qual, tal procedimento depende de disposição expressa no edital do concurso, caso contrário, será obrigatória a premiação de um deles, ainda que não tenha sido atingido o nível qualitativo desejado28. Por fim, no que diz respeito à propriedade intelectual derivada do concurso, dispôs o legisla-dor a necessidade de avença expressa para que tal seja do promitente. Refere o artigo 860 do Código Civil:

Art. 860. As obras premiadas, nos concursos de que trata o artigo antecedente, só ficarão pertencendo ao promitente, se assim for estipulado na publicação da promessa.

Segundo Caio Mário, a obra literária, científica ou artística pertence ao seu autor, que lhe é proprietário, por isso, quem a leva a concurso não abre mão dos seus direitos pelo fato de vê-la pre-miada. Presume-se no promovente um estímulo desinteressado ao artista, cientista, escritor, a não ser que conste da promessa que ficará ela pertencendo ao promitente, o qual, em tal caso, adquire direito à sua edição ou reprodução29.

25 Cf. Caio Mário: “A escolha do beneficiado depende muitas vezes do juízo de um especialista; se já tiver designado no anúncio, os candidatos são obrigados a acatar-lhe a decisão, se que se possam insurgir contra o resultado, quer sob a alegação da insuficiência dos seus conhecimen-tos, quer sob a de seu critério; ninguém é obrigado a concorrer, mas se o faz, é no pressuposto de submeter-se às condições do promitente. A esse, no silêncio a respeito, entende-se reservada a função decisória, a ser desempenhada pessoalmente, ou por intermédio de árbitros à sua escolha. No caso de empate, decide-se pela partilha do prêmio, ou por sorteio se este for indivisível.” PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 350.26 Cf. Carlos Roberto Gonçalves: “Justifica-se a solução pelo fato de tais concursos exigirem uma grande concentração de espírito por parte dos concorrentes, pesquisas, estudos, esforço incomum, dispêndio de energias, tempo e dinheiro. Nesses casos, com razão estabeleceu o legislador que o promitente não pode retirar ad libitum, arbitrariamente, a promessa, impondo-lhe a fixação de prazo. Enquanto este não se escoa, a promessa é irrevogável. Esse prazo é, portanto, condição essencial nos concursos públicos.” GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 601.27 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 610: “Os participantes devem acatar a decisão do juiz singular ou do júri, mas podem pleitear a anulação do julgamento havendo grave irregularidade, como na comprovação, a posteriori, de plagio ou corrupção.”28 DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 32.29 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 351. No mesmo sentido, afirma Paulo Nader: “Quanto às obras apresentadas no concurso, como quadros de pintura, esculturas, textos, devem ser devolvidas aos respectivos participantes, após a finalização de todos os trabalhos de julgamento e premiação, relativamente às obras premiadas, a sua destinação depen-derá dos termos da publicidade da promessa. Se previsto que o prêmio será o preço da obra, esta pertencerá ao promitente.” NADER, Paulo, Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 611. Já Newton de Lucca aventa o entendimento de Clóvis Beviláqua: “A observação assinalada por Clóvis, relativamente ao diploma de 1916, foi no sentido de que não havendo no anúncio, por parte do promitente, estipulação ‘de que o prêmio prometido será o preço da obra, entender-se-á que é simplesmente um estímulo desinteressado às ciências ou às artes, ou compensação do esforço despendido’, arrematando não ser correta a presunção de ‘alienação da propriedade de obras, que têm um duplo valor: o econômico e o espiritual’. Como as obras premiadas em concursos geralmente atribuem direitos autorais, o legislador

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III – A Gestão de Negócios

1. Natureza Jurídica do Instituto

O instituto jurídico da gestão de negócios baseia-se na ingerência não autorizada de uma pes-soa na administração do patrimônio alheio, para evitar a sobrevinda de um prejuízo, atitude da qual deriva a obrigação. O texto legal assim preceitua:

Art. 861. Aquele que, sem autorização do interessado, intervém na gestão de negócio alheio, dirigi-lo-á segundo o interesse e a vontade presumível de seu dono, ficando responsável a este e às pessoas com que tratar.

Como não há prévio acordo de vontades entre o gestor e o dono do negócio30, não está evidenciada a natureza contratual31. Muito embora o instituto seja semelhante ao contrato de manda-to, do tipo mandato tácito, não pode a gestão de negócios ser confundida com aquele porque não há previa avença. Assim, tratando-se de gestão de negócios, a intenção do gestor deve ser espontânea32. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, é a espontaneidade do gestor que caracteriza a relação jurídica, já que é uma atitude espontânea e improvisada, propondo-se o gestor a proceder como faria o próprio dono do negócio, se tivesse presente33. Conforme a lição de Caio Mário da Silva Pereira, para que uma atuação possa conceituar-se como gestão de negócios, é necessária a verificação de certos pressupostos de fato, como (1) tratar-se de negócio alheio, pois que, se for próprio, é pura administração; (2) proceder o gestor no interesse do dominus, ou segundo a sua vontade real ou presumida; (3) trazer a intenção de agir proveitosamente para o dono; (4) agir oficiosamente, pois que, se tiver havido uma delegação, é mandato; (5) limitar--se a ação do gestor a atos de natureza patrimonial (negócios) uma vez que os de natureza diferente exigem sempre a outorga de poderes34. Assim, pelas explicações de Serpa Lopes, trata-se de um instituto jurídico destinado a reger aquelas situações jurídicas de caráter obrigacional surgidas quando uma pessoa, por livre vontade e com espírito de solidariedade, intervém em negócio alheio, sem ter recebido qualquer autorização para fazê-lo e tão só para evitar um prejuízo ao dono do negócio35. Segundo o autor referido, é possí-vel vislumbrar na natureza jurídica do instituto dois princípios diversos: pelo primeiro, um considera culpado o que intervém no negócio alheio sem autorização do dono (culpa est immiscete se rei as se

resolveu manter a redação do art. 1517 da Lei Civil, afastando qualquer presunção de alienação de obras intelectuais. Mas deve-se esclarecer que a designação ‘obras’ possui caráter genérico, referindo-se a qualquer tipo de prestação: objetos, serviços, informações, etc.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 33.30 A gestão de negócios nem sempre foi considerada como categoria autônoma do contrato. Caio Mario da Silva Pereira faz uma breve refe-rência, anunciado a sua teoria segundo a qual este instituto deve tomar posição diversa da contratual: “Às vezes, uma pessoa realiza atos no interesse de outra, como se fosse seu representante, embora não investido dos poderes respectivos, arrogando-se assim, a qualidade de gestor de negócios alheios. Diz-se, então, que a gestão de negócios é a administração oficiosa de interesses alheios. Não é uma figura con-tratual, por faltar à sua etiologia o acordo prévio de vontades. Em alguns sistemas, se intitula expressamente um quase-contrato, categoria que doutrinariamente se lhe conhece, mesmo quando a sistemática não cogita explicitamente de tal fonte obrigacional. No Código de 1916, recebe tratamento como contrato, não somente pelo paralelismo com as situações jurídicas contratuais, como ainda porque a ratificação ulterior a equipara ao mandato: ‘rati enim habitio mandato comparatur. Mas no meu Projeto de Código das Obrigações foi deslocada, como Título autônomo, para fora do campo contratual.” PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 269.31 A posição de Clóvis Beviláqua direciona ao valor da vontade presumida, já que o gestor busca fazer o que o dono teria feito caso conhecesse as circunstâncias e a necessidade das providências a serem tomadas, chegando a ter natureza contratual. BEVILAQUA, Clóvis, Código Civil comentado, 4º vol., 10ª ed., Rio de Janeiro: Editor Francisco Alves, 1955, pg. 80.32 Cf. Caio Mario: “O que caracteriza a negotiorum gestio é a espontaneidade da interferência, porque se tiver havido entendimento, ou en-cargo, proveniente do interessado, ter-se-á mandato ou locação de serviços, conforme exista, ou não, representação.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 270.33 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 603.34 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 270. Washington de Barros Monteiro elenca as principais características da gestão de negócios: “(a) o gestor não se acha oficialmente autorizado a tratar do negócio, nem tem obrigação de fazê-lo. Ele não foi credenciado pelo dominus para tratar do negócio deste, como no mandato. Como diz Espindola, é a espontaneidade do gestor que caracteriza a relação jurídica. É um mandato espontâneo e improvisado, propondo-se o gestor a proceder, como faria o próprio dono do negócio, se estivesse presente, (b) o negócio deve ser alheio, mas não desaparece o caráter de gestão posto exista algum interesse comum entre o gestor e o dono do negócio, desde que esse interesse comum não crie obrigação de tratar do negócio alheio. Aplicam-se os preceitos da negotiorum gestio, ainda que o gestor trate do negócio alheio, pensando que era dele próprio, ou mesmo imaginando que era de uma pessoa, quando na realidade, era de outra, (c) o gestor age segundo o interesse e a vontade presumida do dono do negócio (utiliter gestum), procurando fazer precisamente o que este desejaria, não fosse sua ausência. Se ele não segue essa trilha, se o negócio não é bem administrado, arrisca-se a não ver ratificados os seus atos, ficando então por eles pessoalmente responsável, (d) a gestão deve ser motivada por necessidade imperiosa do momento, ou pela utilidade da intervenção do gestor, necessidade ou utilidade que é a pró-pria razão de ser do instituto jurídico, estimulando assim a lei e a prestação de serviços a quem deles necessita e fomentando a solidariedade social.” MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 522.35 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 20.

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non pertinenti); o outro, contendo uma concepção mais alta de solidariedade social, justifica a inter-venção do indivíduo no negócio pertinente a outrem, quando se trata de poupar a este um prejuízo36.

2. Das Obrigações do Gestor

A norma descrita no artigo 862 do Código Civil preceitua que não pode haver a proibição ou oposição por parte do dono do negócio sob pena de responsabilidade do gestor37:

Art. 862. Se a gestão foi iniciada contra a vontade manifesta ou presumível do interessado, responderá o gestor até pelos casos fortuitos, não provando que teriam sobrevindo, ainda quando se houvesse abstido.

A regra geral é a da existência de uma vontade presumida38, que pode ter sentido amplo já que o sentido de “presumida” pode variar de acordo com a circunstância do sujeito e da sua opera-bilidade39. Mas de toda sorte, vontade presumida é o oposto da vontade contrária, e tanto é assim que o artigo subsequente à previsão legal de tal contrariedade imputa a responsabilização ao gestor, inclusive com a restauração do status quo ante:

Art. 863. No caso do artigo antecedente, se os prejuízos da gestão excederem o seu proveito, poderá o dono do negócio exigir que o gestor restitua as coisas ao estado anterior, ou o indenize da diferença.

Assim, no caso de contrariedade ao desejo do dono do negócio, considera-se abusiva a gestão e somente o êxito do empreendimento poderá isentar o gestor da prevista responsabilidade e, no caso de insucesso, deverá suportar os prejuízos40. Caio Mário entende que a contrariedade à manifesta vontade do dono do negócio não é um simples ato contrário, mas um ato ilícito e, devendo ser tratado como tal, segundo os seus critérios e regimes41. Por outro lado, uma das obrigações do gestor de negócios é a comunicação das suas atitudes e intenções ao dono do negócio, devendo inclusive aguardar a resposta da comunicação, caso assim seja possível42. É o teor do artigo 864:

Art. 864. Tanto que se possa, comunicará o gestor ao dono do negócio a gestão que assumiu, aguardan-do-lhe a resposta, se da espera não resultar perigo.

36 Prossegue a explicação: “Inspirados nessas ideias, os juristas definem a Gestão de Negócios como sendo a intervenção de uma pessoa (gestor de negócios) num negócio alheio, para realizar um ato ou uma série de atos no interesse e por conta de outrem (o dono), sem para tanto ter sido solicitado, ou ainda, como o disse H. de Page, quando uma pessoa sem para tanto está obrigada contratual ou legalmente, se imiscui nos negócios de uma outra pessoa, e realiza por ela, e no seu interesse, um ato material ou jurídico que lhe é útil.” LOPES, Miguel Maria de Serpa.Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 20.37 Cf. Newton de Lucca: “Da mesma forma que o artigo antecedente, esse dispositivo reproduz fielmente o já revogado art. 1332 do Código Civil de 1916, cuja fonte de inspiração foi o artigo 678 do Código Civil alemão.” DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 42.38 Cf. Caio Mário: “Há uma ingerência na esfera jurídica alheia, que deixa de ser ilícita porque inspirada no propósito de bem servir ao dono, e porque realizada segundo a vontade presumível deste. Se iniciar o gestor contra a vontade presumível do dono do negócio, responderá pelo fortuito a não ser que prove que o dano adviria ainda que se tivesse abstido, e se o proveito for inferior aos prejuízos, poderá o dono exigir que o gestor restitua as coisas ao estado anterior, ou o indenize da diferença.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 270.39 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contrato em espécie. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, pg. 229.40 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 603. Ainda, comenta Newton de Lucca: “Não se pode negar que, com a evolução dos tempos, cresceram as restrições ao arbítrio do dono do negócio, sendo que o Código alemão é o que menos relevância atribui à vontade do dominus, deixando expresso que nas hipóteses de obrigação legal ou daquela cujo cumprimento é de interesse público, a vontade oposta do dominus não será considerada (§ 679, BGB). Pode-se dizer que está implícita a ideia de que a vontade manifesta ou presumível do dominus — orientadora dos atos o gestor — deve apresentar-se de forma consentânea à lei, à ordem pública e aos bons costumes. Talvez, porém, o legislador brasileiro pudesse ter sido mais ousado por ocasião da reforma, deixando, de forma expressa, quando a vontade do dominus poderá ser ignorada, sem agravar as responsabilidades do gestor.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 48.41 Cf. Caio Mário: “Mas se tiver havido intervenção contra a vontade manifesta do dono já não há mais gestão, porém ato ilícito, com aplicação dos preceitos a estes atinentes. Aqui não se há de cogitar se o gestor se conduziu com diligência, porém que houve uma gestão autorizada e danosa.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pg. 270.42 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 49: “Caso não seja possível aguardar uma resposta do dono do negócio, o gestor oficioso deverá agir imediatamente a fim de res-guardar os interesses envolvidos, sem que sua responsabilidade aumente, dadas as necessidades do momento. Sua atuação deve, entretanto, limitar-se ao essencial e indispensável, lançando Mão apenas dos atos de natureza conservatória. O silêncio do dono do negócio pode significar consentimento quando, podendo desautorizar a gestão, mantém-se inerte. Apesar da analogia entre a gestão de negócios e o mandato tácito, não se pode assimilá-los ontologicamente — embora em ambos o silêncio exerça papel de relevo —, consideradas as diferenças entre esses institutos, notadamente quanto aos efeitos produzidos. De toda sorte, a ciência do dono do negócio, nos termos do art. 864, sem nenhuma oposição de sua parte, em regra, transforma a gestão em mandato, de acordo com o art. 873 da Lei Civil. Esta conclusão, porém, não pode ser extraída nas hipóteses em que o interessado não teve possibilidade de manifestar ao gestor a sua vontade contrária.”

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Washington de Barros Monteiro elenca uma série de consequências decorrentes da comuni-cação do gestor ao dono do negócio, que pode (a) desaprovar a gestão, caso em que a situação se regerá pelo artigo 874 do Código Civil; (b) aprová-la expressa ou tacitamente, caso em que a gestão se converterá em mandato expresso ou tácito; (c) aprová-la na parte já realizada, desaprovando-a, porém, para o futuro; (d) constituir um procurador, que assumirá o negócio no pé em que se achar, extinguindo-se a gestão; (e) assumir pessoalmente o negócio, cessando igualmente a gestão, como no caso da letra anterior43. Assim, pelo artigo em exame, há expressa obrigação do gestor de perseverar na conduta solidária para evitar prejuízo decorrente da intermitência da gestão44. Outra característica da obrigação do gestor perante o negócio gerido é a diligência prevista no artigo 866:

Art. 866. O gestor envidará toda sua diligência habitual na administração do negócio, ressarcindo ao dono o prejuízo resultante de qualquer culpa na gestão.

Deste modo, deve o gestor agir com a prudência de um negócio próprio, já que se trata de ato de liberalidade, que gera consequências jurídicas. Estas devem ser previstas como seriam se se tratasse de negócio próprio e não alheio. Combina este preceito com aquele previsto no artigo 868:

Art. 868. O gestor responde pelo caso fortuito quando fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse fazê-las, ou quando preterir interesse deste em proveito de interesses seus.Parágrafo único. Querendo o dono aproveitar-se da gestão, será obrigado a indenizar o gestor das des-pesas necessárias, que tiver feito, e dos prejuízos, que, por motivo da gestão, houver sofrido.

A previsão legislativa é pujante, já que a responsabilidade do gestor passa a ser inclusive por casos fortuitos. Porém, na opinião de Caio Mario, apesar do rigor demasiado para quem procede oficio-samente, o princípio subjacente é correto, já que o gestor não era obrigado a iniciar a gestão, mas se inteirar em negócio alheio e tem de agir com o máximo de diligência, para que não advenha prejuízo causado pela sua intromissão45. Assim, responde o gestor caso tenha iniciado a gestão contra a vontade do dono, se fizer operações arriscadas, ainda que o dono costumasse a fazê-las, ou se preterir interesse deste em pro-veito de seus interesses, mas pela sistemática do Código Civil, sempre que tiver agido com culpa. Este requisito é muito bem observado por Fernando Noronha, quando afirma que não há responsabilidade objetiva derivada da gestão de negócio46. No que diz respeito à responsabilidade derivada da gestão do negócio, pelo teor do artigo 867, o gestor responde pelas faltas de eventual substituto, caso se tenha feito substituir, e ainda com outras previsões:

Art. 867. Se o gestor se fizer substituir por outrem, responderá pelas faltas do substituto, ainda que seja pessoa idônea, sem prejuízo da ação que a ele, ou ao dono do negócio, contra ela possa caber.Parágrafo único. Havendo mais de um gestor, solidária será a sua responsabilidade.

A vinculação do gestor com os seus eventuais substitutos é solidária, e o objetivo é sempre dar ao dono do negócio maior garantia, já que, havendo pluralidade de gestores vinculados solidaria-mente, é da escolha do dono do negócio a escolha do polo passivo da ação judicial que busca a inde-nização do dano sofrido. Este dispositivo legal é de extrema importância já que a solidariedade não se presume, resulta da lei ou da vontade das partes. A previsão da solidariedade dos gestores é expressa no texto do Código Civil, não podendo nenhum deles isentar-se da responsabilidade47.

43 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 525: “Efetuada a comunicação, cumpre ao gestor aguardar a resposta antes de tomar novas providências; só deverá agir, sem resposta, se da espera puder advir algum prejuízo para o negócio.”44 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em Geral, Vol. 1, 7ª Ed., Coimbra: Almedina, 1991, pg. 444: “Uma vez iniciada, porém, essa intervenção, o agente já não é mais inteiramente livre de interrompê-la, quer pelas compreensíveis expectativas que a sua atuação é capaz de ter criado, quer pelo obstáculo que ela pode ter constituído para a intervenção de outras pessoas dispostas a levar a gestão a bom termo (cfr. D.3.5.14).”45 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pg. 271.46 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 404: “Considerada como fato, a gestão de negócios também poderia ser aproximada (mas sempre forçadamente) dos atos justificados. Nela, também temos uma intervenção não autorizada na esfera alheia, só que com uma finalidade bem diversa: na gestão de negócios, o agente é movido por um propósito altruísta, pelo desejo de ajudar outrem, mesmo que algumas vezes a sua atuação venha a ser danosa. Por isso, na gestão de negócios não há responsabilidade objetiva, isto é, o agente só será obrigado a reparar danos eventualmente causados, quando houver procedido com culpa.”47 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 55: “A responsabilidade do gestor é regulada de forma muito mais severa do que a do mandatário. Tal severidade tem como propó-

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3. Das obrigações do dono do negócio

Outro tema muito importante é a delimitação da extensão da atividade de gestão. A atividade do gestor pode ser constituída de apenas um ou de vários atos48 praticados e deles serão determinadas a sua responsabilidade, a própria obrigação do gestor e do dono do negócio. Assim, em que pese a ges-tão ter sido constituída unilateralmente, pode gerar obrigação para além da pessoa do gestor. Assim, se o resultado da gestão tiver sido útil, o dono do negócio deverá proceder a indenização, segundo o disposto no artigo a seguir transcrito:

Art. 869. Se o negócio for utilmente administrado, cumprirá ao dono as obrigações contraídas em seu nome, reembolsando ao gestor as despesas necessárias ou úteis que houver feito, com os juros legais, desde o desembolso, respondendo ainda pelos prejuízos que este houver sofrido por causa da gestão.§ 1º A utilidade, ou necessidade, da despesa, apreciar-se-á não pelo resultado obtido, mas segundo as circunstâncias da ocasião em que se fizerem.§ 2º Vigora o disposto neste artigo, ainda quando o gestor, em erro quanto ao dono do negócio, der a outra pessoa as contas da gestão.

Assim, se o negócio tiver sido proveitoso e, conforme a expressão da lei, tiver sido “utilmente administrado”, o seu dono deverá indenizar o gestor das despesas necessárias e úteis que e também os prejuízos que tiver sofrido49. E, de forma complementar, o artigo subsequente disciplina a matéria em relação ao limite e a extensão da indenização50.

Art. 870. Aplica-se a disposição do artigo antecedente quando a gestão se proponha a acudir a prejuízos iminentes, ou redunde em proveito do dono do negócio ou da coisa; mas a indenização ao gestor não excederá, em importância, as vantagens obtidas com a gestão.

Trata-se da gestão necessária, aquela que se propõe a acudir prejuízos iminentes, e da gestão proveitosa, aquela que resulta em evidente benefício para o dono do negócio. E, então, em ambas as situações, embora o dominus fique vinculado e deva ressarcir o gestor, o resultado da indenização não pode exceder em importância às vantagens obtidas com a gestão51. Em duas ocasiões específicas, a lei prevê a gestão de negócios: no caso de obrigação de ali-mentos e no caso de despesas de funeral. Em se tratando de gestão de negócios por dívida de alimen-tos, o artigo 871 disciplina que:

sito evitar excessos eventualmente praticados por aquele, dando maiores garantias ao dono do negócio, na esteira do Código Civil espanhol. Nele o caput do art. 1890 estabelece: ‘si el gestor delegar em outra persona todos o algunos de los deberes de su cargo, responderá de los actos Del delegado, sin prejuicio de la obligacion directa de este para com el propietario Del negocio.’ O caput do art. 867 do novo código de 2002, na mesma linha, trata da substituição do gestor por terceiro, agravando-se, nessa situação, a sua responsabilidade perante o dominus. Essa exasperação imposta pela lei deriva do já art. 865: é obrigação do gestor levar a cabo, pessoalmente, a administração dos negócios do dominus, salvo naquelas hipóteses retro referidas. A inobservância da regra é sancionada pela lei que agrava, então, as suas responsabilida-des. O dominus poderá acionar diretamente o gestor, ao qual caberá direito de regresso contra o seu substituto. “48 Segundo os exemplos de Fernando Noronha: “Estes umas vezes são atos materiais (como quando o próprio gestor repara o telhado da casa do vizinho, danificado por um vendaval), podem também ser atos quase-negociais (como quando o gestor interpela o construtor para reparar o telhado mal colocado), mas na maioria das vezes traduzir-se-ão em verdadeiros negócios jurídicos (como no caso de o gestor contratar alguém para reparar o telhado).” NORONHA, Fernando, Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 402.49 Cf. Caio Mário: “Se o negócio for utilmente administrado (gestão útil), cumprirá o dono as obrigações contraídas em seu nome, reembolsan-do as despesas necessárias ou úteis que houver feito o gestor, com os juros legais desde o desembolso, ainda quando, por erro quanto ao dono do negócio, tenham sido as contas da gestão dadas a outra pessoa. O princípio que concede ação àquele que gerir utilmente é mais que velho e já o proclamava Ulpiano: “is enim negotiorum gestorum habet actionem qui utiliter negotia gessit.” Delicado é apreciar a utilidade da gestão, a qual decorrerá da apuração de fatores vários, como sejam a vontade presumível do dono, o interesse deste, bem como as circunstâncias da ocasião em que se fizeram. Não pode ser adotado como critério o resultado obtido, embora este não seja despiciendo na graduação das obrigações do dono. O momento a considerar é o da realização do ato, pouco importando que a utilidade desapareça depois.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pg. 272.50 Cf. Caio Mário: “Não tem, contudo, o dominus, a faculdade de arbitrariamente condenar a gestão, uma vez que objetivamente fique demonstrada a sua utilidade. O mesmo efeito produz a gestão que se proponha a acudir prejuízos iminentes (gestão necessária) ou redunde em proveito do dono da obra, limitada porém a indenização ao montante das vantagens obtidas com a gestão, para que se não locuplete o dominus à custa alheia. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 272.51 Cf. Caio Mário: “O bom estudo dos seus efeitos aconselha a atentar em que a negotiorum gestio apresenta duas faces distintas: anterior e posterior à aprovação, e gera obrigações para um e outro. No plano da doutrina pura, explicações várias são procuradas para a gestão. Na primeira delas: a) a teoria da proposta, com a conversão em contrato pela confirmação; b) teoria de representação sem mandato; c) teoria do ato anulável, em que a gestão equivale a um negócio suscetível de desfazimento, que convalesce pela aprovação; d) teoria do ato condicional, em que o negócio jurídico fica na dependência do implemento da condição suspensiva que é a confirmação do dominus negotii, e) teoria do ato incompleto, que a ratificação aperfeiçoa, como se se tratasse de mandato, f) teoria da estipulação em favor de terceiro, em que o dono figura como o beneficiário em cujo proveito vão repercutir os efeitos do contrato celebrado pelo gestor. Mas, como se tem assinalado, trata--se de discussão bizantina, uma vez que a lei se cinge a considerar uma situação de fato, e atribuir-se efeitos jurídicos, as mais das vezes dependentes da ratificação, mas nem sempre, pois há casos de gestão necessária que obrigam o dono, mesmo que recuse a sua aprovação.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pg. 271.

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Art. 871. Quando alguém, na ausência do indivíduo obrigado a alimentos, por ele os prestar a quem se devem, poder-lhes-á reaver do devedor a importância, ainda que este não ratifique o ato.Já na gestão decorrente de despesas de funeral, a lei determina:

Art. 872. Nas despesas do enterro, proporcionadas aos usos locais e à condição do falecido, feitas por terceiro, podem ser cobradas da pessoa que teria a obrigação de alimentar a que veio a falecer, ainda mesmo que esta não tenha deixado bens.Parágrafo único. Cessa o disposto neste artigo e no antecedente, em se provando que o gestor fez essas despesas com o simples intento de bem-fazer.

Assim, pode ser considerada como uma obrigação do dono do negócio o reembolsar o gestor pela administração de alimentos que seja obrigado legalmente a prover52. Tal como as despesas de enterro feitas pelo gestor e cobradas daquele que seria obrigado a alimentos com a pessoa falecida. Já o parágrafo único deste artigo é pertinente porque prevê a generosidade do agente, o que segundo Washington de Barros é muito interessante, já que quem age com a intenção de fazer uma liberalidade plena, ou movido pelo espírito de benemerência não pode depois reclamar reembolso do que despen-deu, pois a virtude não exige pagamento53. Já no que diz respeito à ratificação da gestão de negócios, sendo este o ato pelo qual o dono do negócio, ciente da gestão, aprova o comportamento do gestor, pode esta aprovação ser expressa ou tácita, e nesta última modalidade pode ser enquadrado o caso em que o dono do negócio, ciente da gestão e podendo desautorizá-la, não o faz.54 O dispositivo legal que regulamente esta matéria é o artigo 873:

Art. 873. A ratificação pura e simples do dono do negócio retroage ao dia do começo da gestão, e produz todos os efeitos do mandato.

Pelo teor do artigo, baseado no brocardo omnis ratihabitio prorsus retrotrahitur55, passa a ser caracterizada como mandato a gestão de negócios e segundo Carlos Roberto Gonçalves cessam as responsabilidades especiais que vinculam o gestor e não mais se cogitará de saber se foi útil ou não a gestão, de forma a ser considerado ficticiamente, como se não tivesse havido gestão de negócios, mas apenas mandato56. Assim, se a gestão não for aprovada, por ser contrária aos interesses do dono do negócio, pode este exigir que o gestor restitua e indenize, conforme o teor do artigo 874 do Código Civil57. Por fim, no que tange ao tratamento da gestão de negócios no Código Civil, cumpre observar a possibilidade da consideração da sociedade entre o gestor e o dono do negócio. É o teor do artigo 875:

Art. 875. Se os negócios alheios forem conexos ao do gestor, de tal arte que se não possam gerir se-paradamente, haver-se-á o gestor por sócio daquele cujos interesses agenciar de envolta com os seus.Parágrafo único. No caso deste artigo, aquele em cujo benefício interveio o gestor só é obrigado na razão das vantagens que lograr.

Neste dispositivo legal a previsão é de sociedade no caso em que não se possam gerir sepa-

52 Cf. Carlos Roberto Gonçalves: “A obrigação de prestar alimentos decorre de laços de parentesco, do casamento e da união estável. Configu-ra-se a hipótese em apreço quando, não fosse a intervenção do gestor, a obrigação alimentar não seria satisfeita. Assim, se os pais abandonam os filhos e desaparecem, e estes recebem de terceiro os meios de subsistência, ficam aqueles responsáveis perante o gestor pelo pagamento realizado.” GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro. vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 607.53 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 529.54 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 608.55 Cf. Caio Mario: “A ratificação pura e simples do dono do negócio constitui aprovação plena da gestão, que se equipara assim ao mandato, e retroage à data do seu início: “omnis ratihabitio prorsus retrotrahitur”. Para isto, é comunicada ao gestor e ao terceiro, sem que tal ciência seja essencial à sua validade, podendo inferir-se das circunstâncias.” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 3.10ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pg. 426.56 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 608.57 DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 73: “O dispositivo remete-nos aos já comentados arts. 862, 863, 869 e 870, estabelecendo as responsabilidades do gestor na hi-pótese de ter agido contrariamente à vontade expressa ou presumível do dono do negócio, bem como as obrigações deste último quando a administração tiver sido utilmente realizada, ainda que contra a sua vontade. Um dos casos em que o gestor responde até mesmo por caso fortuito é justamente este: agir contra a vontade do dominus. Há mais duas hipóteses contempladas na lei, quais sejam: quando fizer opera-ções arriscadas e quando preterir interesses do dono do negócio em proveito próprio. O dono do negócio, por sua vez, também pode ver-se obrigado — ainda que contra a sua vontade — quando houver um benefício resultante da ingerência na sua esfera de interesses.”

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radamente os negócios tanto do gestor como do dono do negócio gerido, sendo que só é obrigado na razão das vantagens que lograr, isto é, no saldo positivo da sua conduta58.

IV – O pagamento do indevido

1. Natureza Jurídica do Instituto

No direito civil brasileiro, na esteira da história do direito civil fundada no direito romano59, o pagamento do indevido é figura típica de obrigação de restituir em razão do princípio segundo o qual ninguém pode enriquecer à custa alheia, sem uma causa justificável60, bem como o caso de recebido o pagamento antes de cumprida a condição que lhe pressuponha. Assim, pela sua própria natureza, o pagamento do indevido é modalidade peculiar do enriquecimento sem causa que em particular tem ação específica que lhe protege: a ação de repetição de indébito61. Sendo assim, o dispositivo legal informa:

Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.

Desta forma, há duas perspectivas para observar a natureza jurídica do pagamento do inde-vido: a primeira, de cunho objetivo, basta o simples fato de um pagamento sem causa; a segunda, de cunho subjetivo, pressupõe um erro do solvens (aquele que paga)62. No que diz respeito à causa, este instituto encontra no Código Civil a consagração do princípio segundo o qual todo o empobrecimento desprovido de causa produz, em benefício de quem sofre o empobrecimento, direito de exigir repetição63. No que tange ao erro, pode ser de fato ou de direito, conforme os ensinamentos de Washington de Barros Monteiro, já que, sempre ligada à doutrina roma-na, a lei civil pátria sujeita à repetição, nos pagamentos efetuados voluntariamente, à prova da exis-tência do erro em que incidiu o solvens64. Por isso que, para a configuração da repetição do indébito, segundo o artigo 877 do Código Civil, é preciso que o sujeito demonstre que fez o pagamento por erro, isto é, o ônus da prova é de quem pagou o indevido.

58 Cf. Serpa Lopes: “Pode suceder que os negócios nos quais o gestor tenha intervido não sejam inteiramente alheios, mas estejam em conexão com os do próprio gestor e de tal modo que a intervenção não pode se dar parcialmente, como, v.g., um condômino que se ausenta, surgindo uma situação em que imperativamente ele terá que atingir, com a sua atividade, o interesse do ausente.” LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 59. Já Newton de Luccacita Mario Julio de Almeida Costa: “Interessante questão foi debatida pelo professor Mario Julio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, p. 410) ao discorrer sobre o tema. Indagou o referido professor se essa conexão só existiria na hipótese de não se verificar a impossibilidade de gerir um negócio sem o outro, esclarecendo que ‘parece preferível a solução negativa, admitindo-se, ainda, nessas situações, a gestão de negócios no que respeita ao inte-resse alheio. Represente-se o exemplo de A, vizinho de B, fazer obras na casa deste a fim de evitar que ela, ruindo, danifique a sua própria casa. Assim, não existirá ou existirá gestão de negócios, evidentemente na parte relativa ao interesse de B, conforme A efectue as reparações apenas para a defesa do seu interesse ou no interesse de ambos. Reconhece-se que, do ponto de vista prático, pode ser algumas vezes difícil a averiguação, quando a actividade do agente satisfaça simultaneamente o seu interesse e o de terceiro, mas aquele a realizasse mesmo que procurasse tão-só a protecção do seu interesse. Na dúvida, afigura-se razoável concluir pela gestão, que, as mais das vezes, corresponde às intenções do agente.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 74.59 PEREIRA Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 2. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pg. 293: “O Código Civil brasileiro, a exemplo do austríaco e do português, cogitou em particular do pagamento indevido, aliás considerado já no Direito Romano a mais típica hipótese entre os diversos meios do prover a restituição fundada em justificação deficiente.”60 PANTALEAO, Leonardo, Teoria Geral das Obrigações: Parte Geral, Barueri: Manole, 2005, pg. 175: “O pagamento do indevido é o que se faz voluntariamente, por erro. Convencido de que deve, o solvens paga. Uma vez que o accipiens verdadeiramente não é credor, terá recebido indevidamente, ainda que de boa-fé. É natural que não deve ficar com o que não lhe pertence. Caso não pretenda devolver espontaneamente o que auferiu, pode ser compelido a fazê-lo, e para obrigá-lo à restituição, aquele que indevidamente pagou tem ação de repetição.”61 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Vol. 2. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, pg. 293: “Muito embora o Código brasileiro de 1916 o haja tratado sem rigor técnico, como solução, entre os efeitos das obrigações, o pagamento do indevido é tido, na mo-derna dogmática, como modalidade peculiar de enriquecimento sem causa, admitindo-se, todavia que caiba a ação de repetição específica, e só na sua falta caiba a de in rem verso genérica. A crítica que o nosso Código merece, por ter mal situado o instituto da repetitio indebiti, encontra eco nos nossos modernos obrigacionistas, dentre os quais destacamos Orisombo Nonato.”62 DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 79: “O cumprimento de obrigação inexistente (indébito ex re) pode dar-se quando ocorre uma das seguintes hipóteses: o solves paga dívida inexistente (indébito absoluto); ou paga dívida que deixou de existir; ou paga aquela pendente de condição suspensiva; ou ainda, quando se engana quanto ao objeto da obrigação (entrega ao accipiens uma coisa no lugar de outra) ou quanto à quantidade da prestação (paga $100, quando na realidade o débito era de $30). Nestes dois últimos casos, a devolução da coisa entregue erradamente ou a restituição do excesso da prestação mantém íntegra a obrigação.” 63 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 536: “Essa obriga-ção de restituir funda-se no preceito de ordem moral de que ninguém pode locupletar-se com o alheio (nemo potest locupletari detrimento alterius ou nemo debet ex aliena jactura lucrum facere).64 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 537: “Sem a prova desse erro, leve ou grosseiro, a produzir-se por quem paga, não se restitui pagamento. Aquele que deliberadamente satisfaz o que sabe não

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Art. 877. Àquele que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.

Assim, conforme o comentário de Newton de Lucca, a Lei adota a teoria subjetiva no que tange ao pagamento do indevido e a prova do erro só se faz necessária no tocante ao pagamento sub-jetivamente indevido, sendo o erro caracterizado pelo descompasso entre a vontade íntima do agente e a sua manifestação exterior, ocasionado por um engano ou falsa ideia da realidade65. Um dos mais vigorosos princípios que permeiam a teoria do pagamento do indevido é o da boa-fé, já que até mesmo os acessórios como frutos e benfeitorias advindos do pagamento do indevido são regulados conforme as regras aplicáveis ao possuidor de boa-fé ou de má-fé, inclusive no que diz respeito à alienação de imóveis, conforme é possível depreender dos artigos 878 e 879 do Código Civil:

Art. 878. Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto neste Código sobre o possuidor de boa-fé ou de má-fé, conforme o caso.

Art. 879. Se aquele que indevidamente recebeu um imóvel o tiver alienado em boa-fé, por título onero-so, responde somente pela quantia recebida; mas, se agiu de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.Parágrafo único. Se o imóvel foi alienado por título gratuito, ou se, alienado por título oneroso, o ter-ceiro adquirente agiu de má-fé, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação.

Assim, apenas o acréscimo patrimonial deverá ser devolvido66. Parece que a intenção do legislador foi a de desprestigiar o comportamento do possuidor de má-fé, aquele que age consciente-mente de forma ilícita, impedindo qualquer forma de enriquecimento sem causa67. Porém, conforme explicita Paulo Nader, deve ser observado que em se tratando de alienação a título gratuito, a solução independe do animus do accipiens. Já se a alienação operou-se a título oneroso, estando de má-fé tanto o accipiens quanto o adquirente, o solvens terá a alternativa de exigir do accipiens o valor cor-respondente ao negócio, além de perdas e danos, ou reivindicar a coisa do adquirente, sem prejuízo do direito de pleitear perdas e danos em face do accipiens68.

2. Exceções Legais

Existem casos excepcionais que o sistema jurídico exclui a possibilidade de repetição do indé-bito. O Código Civil começa tratando da exceção de casos lícitos, como aquele presente no artigo 880:

Art. 880. Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o como parte de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a pretensão ou abriu mão das garantias que assegu-ravam seu direito; mas aquele que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador.

É o caso do recebimento de boa-fé, de dívida, verdadeira, paga por alguém que logo descobre que não era devedor. Aquele que recebeu o pagamento não é obrigado a restituir a parte paga caso

devido efetua apenas uma liberalidade. Realizando-a, não pode ser admitido a reconsiderar sua decisão, tomada livremente e com pleno conhecimento de causa. Inexistindo assim o erro, mas ato, refletido e consciente, eliminado fica o direito à repetição.”65 DE LUCCA, Newton. Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 83: “Verificar-se a real intenção do solvens é essencial. Poderemos nos deparar com três diferentes situações: (a) a do que pagou voluntariamente — por erro — o indevido; (b) a do que pagou involuntariamente o indevido; (c) a do que pagou voluntariamente o que não sabia não ser devido. No primeiro caso, autoriza-se a repetição do indébito invocando-se a ocorrência do erro, seja ele de fato ou de direito, escusável ou não. Se o pagamento foi involuntário — realizado sob coação, por exemplo — estaremos no campo dos vícios do consentimento que autorizam a anulação do ato jurídico. Se o pagamento foi voluntário, porém efetuado ad cautelam, não poderemos qualificar esse ato de coação stricto sensu. Identificável será o constrangimento, impelindo o solvens a pagar com o intuito de resguardar-se de eventual cons-trição patrimonial ou penal. Em situações como essa, afastada fica a voluntariedade do pagamento. No último caso, inexiste erro ou coação. Ao contrário, há pagamento consciente da ausência de causa jurídica, o que revela o animus donandi do agente e não o animus solvendi.”66 LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 117: “A própria discrimina-ção dos deveres e dos direitos, que podem assistir ao accipiens, mostra, desde logo, quais são as obrigações que, a seu turno, pesam sobre o solvens. Elas são maiores no caso do accipiens de boa-fé porquanto este direito de haver do solvens uma indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis feitas na coisa recebida em pagamento e a levantar as voluptuárias, cabendo-lhe mesmo o direito de retenção, estando o accipiens de má-fé, ainda assim tem o direito a ser ressarcido das benfeitorias necessárias, embora sem o direito de retenção.67 “Muito embora o legislador não aprove a posse de má-fé, reprimindo-a, a sua repulsa ao enriquecimento sem causa também é patente quando determina o reembolso das desposas com a produção e o custeio. Já as deteriorizações sobrevindas à coisa — desde que não causadas pelo possuidor de boa-fé — não são de sua responsabilidade.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 85.68 NADER, Paulo, Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 632.

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o título tenha sido inutilizado, e a razão disso parece ser a impossibilidade do credor de cobrar do verdadeiro devedor sem o título que foi inutilizado69. Segundo Carlos Roberto Gonçalves, contra o sol-vens que não deve ser prejudicado, dirigirá a ação regressiva, para evitar o enriquecimento indevido do réu, Assim também ocorrerá se o accipiens de boa-fé deixou prescrever a pretensão que poderia deduzir contra o verdadeiro devedor, ou se abriu mão das garantias de seu crédito70. Em se tratando de dívida oriunda de obrigação de fazer ou de não fazer, o pagamento do indevido se converte em indenização, conforme propõe o artigo 881 do Código Civil:

Art. 881. Se o pagamento indevido tiver consistido no desempenho de obrigação de fazer ou para eximir-se da obrigação de não fazer, aquele que recebeu a prestação fica na obrigação de indenizar o que a cumpriu, na medida do lucro obtido.

3. Pagamento do indevido e as obrigações naturais

Quanto às obrigações naturais, ou ainda que tenha um fim ilícito, parece evidente, dentro de um sistema de direito, que não são passíveis de cobrança de pagamento do indevido71. Os dispositivos legais 882 e 883 tomam este sentido:

Art. 882. Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judi-cialmente inexigível.

Art. 883. Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei.Parágrafo único. No caso deste artigo, o que se deu reverterá em favor de estabelecimento local de beneficência, a critério do juiz.

O tratamento da obrigação natural é de exigibilidade de regra puramente moral, já que a sua execução não pode constranger o devedor, mas o seu cumprimento voluntário é pagamento verdadei-ro72. Quem paga obrigação natural, que seria juridicamente inexigível, como por exemplo, uma dívida de jogo, não pode afirmar que pagou indevidamente, nem que o accipiens recebeu vantagem indevida diante do seu pagamento, já que, embora inexigível, a dívida paga voluntariamente existia, o que não ocorre com a dívida prescrita73. Já no que se refere ao caso de se tratar de objeto ilícito, imoral ou proibido por lei, como previsto no artigo 883, não cabe qualquer devolução do pagamento indevido. Segundo o exemplo dado por Carlos Roberto Gonçalves, se alguém contrata uma pessoa pagando-lhe certa importância para que cometa um crime, não terá direito de repetir se esta embolsar o dinheiro e não cumprir o prometido74.

69 “Este dispositivo trata do pagamento subjetivamente indevido. ‘A’, entendendo ser o devedor da obrigação, entrega a prestação a ‘B’, credor, que inutiliza o título pela simples razão de já ter recebido o que lhe era devido. Ocorre, porém, que ‘A’ houvera se enganado quanto a sua condição de solvens. O verdadeiro devedor é ‘C’ que, a partir do adimplemento da obrigação por ‘A’, passou a experimentar um acréscimo patrimonial efetivo. Muito embora o accipiens tenha recebido o indevido — porque quem lhe pagou nada lhe devia — preferiu o legislador, nessa situação, proteger o credor que, justificadamente, retirou a tutela do seu direito, isentando-o de devolver o pagamento recebido. Aquele que pagou, porém, terá ação regressiva em face do verdadeiro devedor ou de seu fiador, quando presentes os três requisitos legais: inutilização do título, perda da garantia, ou prescrição, e boa-fé do credor.” DE LUCCA, Newton, Comentários ao Novo Código Civil, volume XII: dos atos unilaterais, dos títulos de crédito, Rio de Janeiro: Forense, 2003, pg. 90.70 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 616.71 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 536: “Insista-se, porém, o que atribui direito à repetição vem a ser a falta de causa; havendo obrigação, conquanto inexigível, desaparece o direito. Assim, quem satisfaz dívida prescrita não tem direito à restituição, porque anteriormente existia uma relação obrigacional. Satisfazendo dívida prescrita, presume-se júris et de jure que o solvens renuncia à prescrição. Não lhe assiste destarte o direito de repetir a importância paga.”72 “A obrigação natural, tenha ela uma causa lícita ou ilícita, baseia-se nas exigências de regra moral. Em que pese o direito positivo ter legi-timado uma determinada situação jurídica em benefício do devedor, este pode, a despeito disso, encontrar-se em conflito com a sua própria consciência, e nada obsta que realize a prestação a que se sente moralmente obrigado.” PANTALEAO, Leonardo, Teoria Geral das Obrigações: Parte Geral, Barueri: Manole, 2005, pg. 64.73 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 617.74 GONÇALVES, Carlos Roberto, Direito Civil Brasileiro, vol 3., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 617: “Mesmo que, neste caso, possa haver um enriquecimento ilícito do criminoso, que embolsou o pagamento, não assiste ao solvens direito à repetição, pois o legislador deu prevalência no princípio de que ninguém pode valer-se da própria torpeza (Nemo auditor própria turpitudinem alleganz).”

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V – O enriquecimento sem causa

1. Natureza Jurídica do Instituto

O enriquecimento sem causa é modalidade de fonte obrigacional, derivada de ato unilateral, que se caracteriza por ser um acréscimo patrimonial desprovido de título jurídico que se sustenta na redução do patrimônio de outra pessoa75. Por isso, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, quem enriqueceu indevidamente fica obrigado a restituir aquele que empobreceu sem motivo76. Tal é a dis-posição legal:

Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

A tipologia do enriquecimento sem causa abrange não só a inexistência primeira da causa como também o caso de a causa ter existido e acabar, como descreve o artigo 885:

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

O assunto é de grande relevância para o estudo das fontes das obrigações, primeiramente porque a legislação atual inova na localização sistemática do instituto, causando inclusive algumas inquietações por parte de juristas contrários à inserção do enriquecimento sem causa como ato unila-teral. É o caso de Fernando Noronha, que já há muito propõe a tripartição das fontes contratuais em negociais, de responsabilidade civil e de enriquecimento sem causa77.

2. A tese do empobrecimento alheio

Existe grande preocupação por parte de alguns autores, como Serpa Lopes, por exemplo, com a noção de ‘empobrecimento’, que na Lei está referida mediante a expressão ‘a custa de outrem’. Este autor refere que a noção de empobrecimento é antípoda da de enriquecimento, e por isso trata--se de um conceito muito largo78. Assim, de forma correlata, a enriquecimento de alguém se dá o empobrecimento de outrem, e isso se caracteriza pela perda de bens ou pelo não acréscimo devido ao patrimônio, podendo corres-ponder a qualquer desvantagem monetária ou capaz de ser convertida em dinheiro79. Porém, segundo explica Paulo Nader, não seria correta a afirmação de que o empobrecimento decorra do locupletamento, nem o contrário, pois em realidade ambos dimanam do fato jurídico80.

75 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 545: “O princípio que proíbe o enriquecimento sem causa, fundado na equidade, já era conhecido e aplicado no direito romano, tendo sido consolidado por Justiniano no Digesto, que dizia: ‘Naturae aequum est, neminem cum alterius detrimento et iniuria fieri locupletionen’.”76 Cf. Paulo Nader: “O conceito de enriquecimento sem causa, para alcançar um número indeterminado de situações, há de ser abstrato sem, todavia, ser vago. O Código Civil de 2002, sob este aspecto, não é censurável, pois corretamente deixou a cargo da doutrina a definição do instituto. No se poderia esperar mais do legislado. Ao longo do Codex, há o tratamento individualizado para diversas situações em que se condena, concretamente, o enriquecimento sem causa. As hipóteses se acham suficientemente definidas, bem como as disposições corres-pondentes, como é o caso das acessões imobiliárias ou benfeitorias edificadas em terreno alheio. Nos artigos 884 a 886 o legislador houve por bem apenas fixar alguns parâmetros, a fim de alcançar as situações não cogitadas especificamente.” NADER, Paulo, Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 641.77 NORONHA, Fernando, Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 418: “O interesse do credor que é tutelado em cada obrigação é suscetível de variações infinitas. Todavia, ele poderá ser sempre classificado em uma das seguintes categorias: (a) interesse na realização das expectativas nascidas de compromissos assumidos por outra pessoa (devedor), em negócio jurídico; (b) interesse na reparação dos danos antijuridicamente causados por outra pessoa (devedor) ou como também se poderá dizer, dos danos resultantes da violação de deveres gerais de não lesar a pessoa nem o patrimônio alheio; (c) interesse na reversão para o patrimônio de uma pessoa (credor) dos acréscimos verifica-dos no patrimônio de outrem (devedor), quando juridicamente eles estiverem destinados àquele. O ordenamento estabelece regulamentos diferentes para as obrigações que visam tutelar estas três categorias e interesses, precisamente porque elas têm finalidades diversas ou, por outras palavras, desempenham diferentes funções econômico-sociais.”78 LOPES, Miguel Maria de Serpa, Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 83: “O empobrecimento pode se dar ou por um fato positivo ou por uma razão negativa. Do ponto de vista positivo, o empobrecimento se caracteriza quando se perde um determinado elemento patrimonial; do ponto de vista negativo, quando se deixa de recebê-lo, como no caso de alguém haver prestado um serviço sem a correspectiva remuneração.”79 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 638.80 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil, Vol. 3, Rio de Janeiro: Forense, 2005, pg. 639: “Dá-se o fenômeno que alguns autores denominam por indivisibilidade de origem.”

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Isso porque entre o enriquecimento de um e o empobrecimento de outro deve existir uma relação de causa e efeito, que não pode derivar nem da lei, nem de um contrato feito entre as partes81.

3. Ação de Enriquecimento sem causa

Quanto à ação possível de ser proposta contra o enriquecimento sem causa, também chamada de ação in rem verso, prevê o artigo 886 o seu cabimento sempre que não houver outra modalidade própria de agir:

Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.

Assim, segundo orienta Washington de Barros Monteiro, a ação de in rem verso é cabível quando ocorre: (a) o enriquecimento do accipiens, (b) o empobrecimento do solvens, (c) uma relação de causalidade entre os dois fatos, (d) a ausência de causa jurídica que os justifique, (e) a inexistência de qualquer outra ação que possa socorrer a vítima82. Portanto, o princípio do enriquecimento sem causa não se confunde com a ação que dele se origina, já que somente será possível tal procedimento, também chamado de ação de locupletamento, no caso de não existir outros meios para ressarcir o prejuízo sofrido83. Porém, uma vez reunidos os elementos caracterizadores do enriquecimento sem causa, jus-tificado está o exercício da ação chamada in re verso que, segundo aponta Serpa Lopes, tem eviden-temente natureza pessoal e não real. Segundo observa este autor, esta ação pode muitas vezes ter como objetivo a restituição in natura mas, para que se revista de caráter real, é preciso ser dotada de uma força de sequela da qual tal ação é desprovida por não ser exercitada senão diretamente contra o enriquecido. Além disso, o seu caráter acentuadamente ressarcitório demonstra a típica ação de indenização protegida pelo ordenamento jurídico84.

VI – Conclusão

O objetivo deste estudo foi mapear os de tipos de obrigações classificadas como atos unila-terais, quais sejam: a promessa de recompensa, a gestão de negócios, o pagamento do indevido e o enriquecimento sem causa, apontadas como fontes das obrigações, sendo que como ‘pergunta’ foi indagada a adequação desta classificação. Deste estudo, pela análise dos componentes examinados, como a natureza jurídica dos insti-tutos e seus elementos principais, algumas conclusões podem ser extraídas. A primeira delas é a falta de uniformidade dos tipos. São quatro tipos diferentes tratados sob o mesmo título de ‘atos unilate-rais’, quando na verdade apresentam natureza jurídica muito diversa. Assim, é forçoso concordar com a teoria de Fernando Noronha, segundo o qual, sob o título que porta a epígrafe “Dos Atos Unilaterais”, dá-se em realidade a reunião de fatos de natureza mais

81 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 545: “O enriqueci-mento não é só o aumento patrimonial, mas também pode verificar-se pela diminuição do passivo de outra pessoa, ou mesmo por qualquer vantagem, como por exemplo a decorrente da omissão de uma despesa.”82 MONTEIRO, Washington, de Barros et al., Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª parte, 37ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2010, pg. 549.83 O exemplo é de Cesar Fiuza: “Álvaro emite um cheque ao portador para realizar um pagamento a Rafael. Este, dez meses depois, paga uma conta de Sílvio com o cheque de Álvaro. Em consequência deste pagamento, opera-se a novação da obrigação que Sílvio tinha com o seu credor, Daniel. Seu objeto passa a ser o cheque, o devedor, seu emitente, ou seja, Álvaro. Se o cheque estiver sem fundos, qual a ação de Daniel, ex-credor de Sílvio, para se ressarcir? Executar o cheque não é mais possível, uma vez que quando o recebeu, já estava prescrita a ação cambial. Agir contra Sílvio tampouco é possível, por não ser ele devedor de Daniel, por força da novação. Intentar ação de cobrança contra Álvaro não será possível por não haver relação causal entre Álvaro e Daniel. O mesmo se diga de eventual ação de cobrança contra Rafael. Tampouco será viável uma ação indenizatória contra Álvaro, pelo simples fato de que o dano não foi causado diretamente por ele. Afinal, Álvaro emitiu o cheque para pagar a Rafael. Além disso, a falta de fundos pode não ter sido culpável, eliminando, por conseguinte, a caracterização do ilícito. Pode ser também que houvesse provisão de fundos, na época em que o cheque foi emitido. Neste caso, tampouco se configurará ilícito indenizável, descabendo ação indenizatória. Diante disto, resta a Daniel apenas a ação de enriquecimento sem causa ou de locupletamento (actio in rem verso), que poderá propor contra Álvaro.” FIUZA, César, Direito Civil: curso completo. 11ª edição, Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2008, pg. 258.84 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil, Vol. 5, 2ª Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1962, pg. 96: “Para a sua propositura, pouco importa a boa-fé ou má-fé do enriquecido. Sob este ponto de vista, o seu aspecto é neutro, isto é, esteja ou não enriquecido de boa-fé, as consequências são sempre as mesmas: o restabelecimento do equilíbrio patrimonial decorrente do deslocamento de um valor de patrimônio a outro, sem uma justificativa para tanto.”

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variada e que produzem obrigações bem diversas.85 Para este autor, a promessa de recompensa é típico negócio jurídico unilateral; a gestão de negócios é exemplo de atividade cujos efeitos dependem de ser ou não ratificada e na segunda hipótese, de ser ou não útil86; o pagamento do indevido é, como o pagamento geral, um ato quase-negocial, ou ato jurídico lícito, com a especificidade de gerar uma obrigação de restituição por enriquecimento sem causa; o enriquecimento sem causa é pura e simples-mente uma das três grandes categorias em que podem ser repartidas todas as obrigações87. Em segundo lugar, a pretensão de classificação das obrigações pela sua fonte parece já não ser mais a adequada, como foi em tempos passados, porque a multiplicidade de fontes somente pode acarretar uma classificação destorcida. Não pode o amor pela sistematização sacrificar os institutos colocando-os sob rótulos que não lhe são adequados, e assim é quando o objetivo é classificar as obri-gações partindo das suas fontes. Por isso que mais uma vez é pertinente apontar o entendimento de Fernando Noronha, quando afirma que o mais importante é tentar agrupar as diversas obrigações da vida real de acordo com a sua natureza, porque na vida real existem diversas categorias de obrigações segundo as funções que elas desempenham, sendo que a especificidade de regime de cada categoria é consequência da correlata diversidade de funções que elas desempenham88. Por fim, pode haver coerência à afirmação segundo a qual estes tipos de fontes obrigacionais, uma vez dispostos no texto legal, retiram da lei a sua força e então este é o critério para a análise da origem da obrigação. Mas se esta é a opção do jurista, então a classificação já não é mais segundo a fonte da obrigação propriamente dita, mas da força normativa, geral e abstrata. Sendo assim, pode não causar estranheza a opção do legislador de ter agrupado atos que não são contratos nem ilícitos numa única expressão “unilateral” pela sua proximidade de sentido, como forma melhor de sistema-tizar a matéria. Neste caso, respondendo à “pergunta”, sim, é coerente alcançar e retirar do ordena-mento jurídico a força obrigatória da relação obrigacional que não é tradicionalmente categorizada nem como contrato, nem como ato ilícito.

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85 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 409.86 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 409: “A gestão de negócios ratificada tem consequências simi-lares ao contrato de mandato, a não ratificada, mas útil, gera obrigação de restituição por enriquecimento sem causa, a não ratificada e tida como não útil gera responsabilidade civil.” 87 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 40988 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações, São Paulo: Saraiva, 2003, pg. 410.

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Prudência e técnica jurídicas:uma breve reflexão filosófica

a partir do exemplo fornecido pelojurista do Direito Romano Clássico

Klaus Cohen-Koplin1

Resumo

O presente artigo tem como objetivo a análise da relação entre o saber ético (cuja excelência, na linguagem da filosofia clássica aristotélico-tomista, chama-se “pru-dência”) e o saber técnico na atuação do jurista. O texto procura demonstrar, par-tindo do exemplo histórico dos juristas do direito romano clássico, que a prudência jurídica exige, para se realizar plenamente, o domínio da técnica. Nesse contexto, procura-se demonstrar, a partir de exemplos concretos, que os juristas romanos se destacaram não apenas como homens prudentes, mas também como grandes técni-cos do direito.

Palavras-chaves

Prudência juridica. Técnica juridica. Juristas romanos

Abstract

The present paper aims to analyze the relation between practical wisdom (who-se virtue, in the classical philosophy of Aristotle and S. Thomas Aquinas, is called “phrónesis”, “prudentia” or simply “prudence”) and legal skill in the practice of the jurist. The text intends to show, on the basis of the historical example of the classical Roman jurists, that the practical wisdom demands, to become fulfilled, the dominion of the legal skill. In this context, it is looked to demonstrate, from concre-te examples, that the Roman jurists have stood out not only as practically wise men (“prudentes”), but also as masters of the legal technique.

Key-words

Practical wisdom. Legal technique. Classical Roman jurists.

1. Em razão do importante texto produzido pelo Professor Luis Fernando Barzotto, da

Universidade Federal do Rio Grande do Sul1, a imagem do jurista romano que se tem no sul do Brasil é a do iurisprudens, ou seja, o prudente, o homem que detém a virtude (areté) prática, ou seja, a habilidade de bem deliberar a respeito dos assuntos humanos. Parece que, mesmo pres-cindindo da visão especificamente jusnaturalista subjacente ao ensaio de Barzotto, esse enfoque

Ciências Sociais e Aplicadas

(1) Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Professor de direito processual civil na Faculdade de Direito da UFRGS, no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter), e na Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre/RS. Membro aderente da Asociación Argentina de Filosofía del Derecho (AAFD). Advogado em Porto Alegre/RS. E-mail: [email protected] BARZOTTO, Luis Fernando. Prudência e Jurisprudência. Uma reflexão epistemológica sobre a jurisprudência romana a partir de Aristóteles, in: IDEM, Anuário do Programa de Pós-graduação em Direito (UNISINOS), 1999:163-192. Também disponível em IDEM, Filosofia do direito: os conceitos fundamentais e a tradição jusnaturalista, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pp. 157-178 (versão citada e utilizada neste texto).

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não é incompatível com as teorias da argumentação contemporâneas, quando põem relevo no papel da razão prática na fundamentação do discurso jurídico. O presente ensaio se propõe a complementar tal perspectiva, a partir de exemplos extraídos do próprio direito romano clássico e aplicáveis analogicamente ao contexto do jurista sul-americano atual. Além disso, desenvolve--se a constatação, feita pela filosofia aristotélico-tomista, no sentido de que o domínio da técnica do direito constitui um elemento indissociável da prudência jurídica. Para tanto, partir-se-á do exame do jurista do período clássico do direito romano como consultor jurídico, aplicando-lhe, em seguida, as características da prudência evidenciadas na Ética a Nicômaco. Depois, procurar-se-á demonstrar que os maiores juristas romanos estiveram preocupados com a técnica jurídica e que essa preocupação revela a necessária conexão, desde o plano jusfilosófico, entre saber prático (neste ensaio tomado como sinônimo de prudência) e saber técnico. Concluir-se-á destacando que a dimensão técnica do direito constitui elemento necessário e indissociável do conhecimento jurídico, juntamente com a sua dimensão prudencial.

2. Inicialmente, cumpre definir com exatidão o que se entende pelo termo “jurista” nos séculos finais da República e no Principado (período clássico do direito romano). Em verdade, o jurista romano não se confunde com o advocatus (advogado), simples espe-cialista em retórica e dialética, figura que floresceu no final da República graças ao contato com a filosofia grega.2 É necessário ressaltar que esses oradores forenses, como verdadeiros “artistas do discurso”, de um modo geral, possuíam conhecimentos jurídicos muito superficiais, de modo que seus argumentos necessitariam ser complementados por outra figura, especialmente no que se refere ao conteúdo propriamente jurídico dessas teses. Tampouco se deve identificar o jurisconsulto com o praetor (pretor), que era, naquele con-texto, o magistrado (ou seja, um político eleito pelo povo) encarregado da administração da jus-tiça na Cidade de Roma. Também não se poderia confundi-lo com o iudex, quer dizer, com o juiz — simples árbitro privado a quem era confiada, no sistema do ordo iudiciorum privatorum (quer dizer, no período em que vigorou a separação do procedimento civil em duas fases, a primeira das quais se desenvolvia perante o pretor), a decisão da causa. Efetivamente, os juristas (da mesma forma que haviam feito os pontifices do período mais antigo) atuavam como verdadeiros conselheiros jurídicos, buscando solucionar da maneira mais razoável os casos práticos que lhes fossem submetidos (respondere de iure). Essa tarefa era concretizada, sobretudo, no perecer do jurista a respeito do caso (responsum). Ademais, como recordam Wolfgang Kunkel e Fritz Schulz, entre os que costumavam solicitar seus conselhos não apenas se encontravam os particulares (quando se deparavam com relevantes a serem tomadas na vida social), com também e, sobretudo, os próprios magistrados (em parti-cular o pretor) e os juízes.3 Em realidade, era comum até mesmo que as duas últimas figuras se fizessem acompanhar por seus próprios corpos de assessores jurídicos, integrantes de um corpo chamado consilia, aos quais competia prestar-lhes auxílio nas questões especificamente jurídi-cas. Não se pode esquecer, no sentido antes indicado, o papel desempenhado pelos juristas como provedores de “munição” para os advogados (na expressão de Cícero), ou seja, como instrutores dos oradores em matéria jurídica. O parecer fornecido a propósito do caso constituía uma proposta de solução que fosse a mais razoável do ponto de vista prático e que considerasse todas as circunstâncias relevantes apresen-tadas pelo problema. Como destacou Max Kaser, o jurisconsulto romano não considerava somente as peculiaridades do caso, mas também, à luz da dialética grega, a analogia com situações seme-lhantes e a comparação com casos opostos (argumento a contrario), chegando mesmo a exageros impensáveis (argumento ab absurdo), com o objetivo de demonstrar que outra solução para o problema não seria plausível.4

3. A primeira conexão que se poderia identificar entre a ciência jurídica romana e a prudên-cia aristotélica encontra-se no próprio nome geralmente atribuído pelas fontes romanas a essa ciência: iurisprudentia. Com efeito, o termo prudentia nada mais é a tradução latina do termo filosófico grego phrónesis. Ou seja, mesmo do ponto de vista estritamente terminológico, já seria

2 Essa a visão defendida pelos romanistas do séc. XX. Cf. WOLFGANG KUNKEL, Historia del derecho romano, trad. de Juan Miquel, Barcelona: Ariel, 2. ed., 1970, p. 95.3 KUNKEL. Historia del derecho romano, cit., p. 94; FRITZ SCHULZ, History of roman legal science, Oxford: Clarendon Press, London: Oxford, [1967], p. 52.4 MAX KASER. Sur la méthode des jurisconsultes romains, Romanitas, vol. 5, 1962, p. 121.

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possível identificar na ciência jurídica romana uma manifestação do ideal prudencial desenvolvi-do pela filosofia grega. Conforme ensina Luis Fernando Barzotto, ainda seria possível identificar pelo menos cinco aspectos fundamentais que evidenciariam o caráter prudencial da iurisprudentia romana.5 Inicialmente, seria viável qualificar a ciência jurídica romana no período clássico como saber realista, pois constitui, antes de tudo, descrição da realidade existente. Isso em virtude de que o que o jurista faz é propriamente descobrir a solução que já se apresenta nos dados do caso (res litigiosa). Assim, como explicitam as fontes romanas6, não é o direito que se deduz da regra, senão que esta é que é extraída do direito existente. Em outros termos, o saber do jurista não está dirigido à descrição abstrata de regras, mas à percepção daquilo que se poderia identificar com a “verdade prática” de Aristóteles. Em segundo lugar, a ciência jurídica consistia em um saber prático, pois se constitui a partir da experiência cotidiana, sendo aprendida de forma pragmática, por meio da resolução de casos práticos. Barzotto ressalta, assim, que o conhecimento jurídico não se adquiria de forma teórica, acadêmica, mas a partir da observação do trabalho de algum jurista mais experimente, sendo aperfeiçoado depois pela vivência, por parte da pessoa, nos assuntos políticos ou militares. Em terceiro lugar, tratava-se de um saber ético, pois seu objeto — a descoberta do ius, ou seja, o justo no caso concreto — pressupõe o conhecimento da justiça, segundo se lê na compi-lação de Justiniano: o direito é chamado dessa maneira (ius) porque deriva da justiça (iustitia).7

Em quarto lugar, era um saber casuísta, visto que o jurista desenvolvia seu raciocínio dentro dos limites do caso concreto, buscando a solução nas circunstâncias mesmas do problema ou em casos próximos. Assim, percebe-se que o jurista romano não estava fundamentalmente inte-ressado na aplicação da regra legal, a qual se convertia apenas em um dos argumentos a serem ponderados para a solução do problema. Particularmente, pelo menos no que se refere à prática do direito, o jurista não estava preocupado com a formulação de regras generais. Em suma, a justiça, dentro dessa perspectiva, é algo que se descobre a partir da análise dos elementos inte-grantes do caso concreto. Em quinto lugar, a iurisprudentia romana era tradicionalista, pois soube manter o respeito ao passado, especialmente aos mores maiorum (costumes dos antepassados). Como afirma Barzotto, o caso se insere em uma cadeia de precedentes, de soluções, que se expande devagar, mas com segurança. Seria possível identificar também nesse aspecto uma conexão com a prudência, que somente seria encontrada nas pessoas mais experientes (normalmente, as de mais idade).8 Por todas essas razões, conclui-se, segundo a expressão de Tércio Sampaio Ferraz Jr., que o modo de pensamento desenvolvido pelo jurisconsulto romano constitui exemplo daquilo que se poderia denominar um pensamento “prudencial”.9 Compreende-se, então, a razão pela qual Ulpiano qualificava os juristas como “sacerdotes da justiça” e “perseguidores de uma filosofia verdadeira, não simulada”10: não eram praticantes de um pensamento meramente especulativo, teorético, mas detentores do conhecimento das coisas concretas, possuidores da excelência em matéria de deliberação prática, revelando-se capazes de orientar não apenas suas próprias deliberações morais, mas também as dos demais.

4. Apesar de tudo isso, não seria correto imaginar os juristas romanos clássicos somente como

geniais filósofos práticos, como sugerido na passagem do Digesto recém-mencionada. Além disso, percebe-se uma clara preocupação do jurista em indicar ao consulente (especialmente ao cida-dão comum) não apenas a solução correta, quer dizer, o que fazer diante do caso prático, como também apresentar os meios eletivos de sua realização, ou seja, como fazer.

Em verdade, a atividade do jurisconsulto não se limitava — nem sequer na época arcaica — simplesmente às consultas jurídicas (respondere). O papel do jurista compreendia, ademais, a orientação específica para a redação dos atos jurídicos (designada pelo termo cavere), espe-cialmente contratos e testamentos, originando a chamada jurisprudência cautelar, criada pelos pontífices e conservada pelos juristas laicos até o final da República.11

5 BARZOTTO. Filosofia do Direito, cit., pp. 170-175.6 Digesto, 50,17,1. Edição consultada: CORPUS IURIS CIVILIS, Volumen primum : Institutiones (recognovi Paulus Krueger); Digesta (recognovit Theodorus Mommsen; retractavit Paulus Krueger), Berolini, apud Weidmannos, editio decimasexta, MCMLIV.7 Digesto 1,1,1, pr.8 BARZOTTO. Filosofia do Direito, cit., p. 175.9 TÉRCIO, SAMPAIO FERRAZ JR.. Introdução ao estudo do direito, São Paulo : Atlas, 1994, p. 5710 Digesto, 1,1,1,111 SCHULZ, History of roman legal science, cit., pp. 49-50 e 111.

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A tarefa do iuris prudens estendia-se, também, no contexto do formalismo rigoroso de cará-ter mágico-religioso próprio do antigo sistema das ações da lei (legis actiones), à indicação da actio (“ação”) aplicável, ou seja, dos gestos e palavras solenes que deveriam ser executados em juízo pelo demandante a fim de obter a tutela de um interesse juridicamente protegido (agere). Conforme sugere Michel Villey, a contribuição dos juristas se estendeu até a fase posterior da história do processo civil romano (procedimento per formulas), pois eles chegaram a orientar o pretor na composição das novas fórmulas destinadas a contemplar os casos não previstos pelo esquema rígido e exageradamente formalista das legis actiones.12 Nesse contexto, segundo adverte o romanista italiano Mario Bretone, não se pode esquecer o fato de que “o jurista é, por vocação, guardião, artífice e manipulador de fórmulas”, pois lhe compete não somente sugeri-las, senão também adaptá-las às novas realidades sociais a até mesmo criar novas, havendo necessidade.13 Em realidade, o conselho fornecido pelo jurista não era uma recomendação política ou simplesmente prática, de caráter pessoal, mas um conselho técnico, pois fundamentado em um conhecimento especializado. Nesse sentido, seria compará-vel, talvez, à orientação prescrita por um médico ao seu paciente. Além disso, o esforço dos juristas em aperfeiçoar tecnicamente o direito é perceptível no incessante trabalho de criação de conceitos jurídicos e nos primeiros experimentos rudimentares de sistematização do material jurídico (tarefas que se fazem possíveis em razão da recepção do método dialético e das categorias herdadas da filosofia grega, no período republicano, como re-corda Kunkel14). Tal tarefa, que já se observa na obra de Q. Mucius Scaevola, jurista falecido em 82 a.C., atinge seu ápice no final do período clássico (Principado), resultando na sistematização proposta pelo jurista Gaio (a qual foi retomada nas instituições de Justiniano e desenvolvida na Pandectística alemã do séc. XX): todo o direito concerne às pessoas, às coisas ou às ações.15 Finalmente, observa-se ainda formação de uma literatura especificamente jurídica, compos-ta não somente por coleções de casos (responsa, quaestiones, digesta), mas também por obras destinadas a facilitar a aprendizagem do direito (institutiones). Desse último grupo de texto, destaca-se o conhecido trabalho didático atribuído ao já mencionado Gaio (Gai Comentarii), posteriormente atualizado na compilação de Justiniano.

5. Todas essas constatações revelam, a partir do exemplo fornecido pelo jurista romano, a

natureza complexa do conhecimento jurídico. Em realidade, conforme recorda Carlos Ignacio Massini-Correas, ao distinguir os dois tipos de realidades às quais se referem os atos humanos, “existem realidades operáveis que se revestem, a uma só vez, das características do atuável e do factível”, a exemplo da política e do direito.16 Efetivamente, na ótica de Aristóteles, sabe-se que a prudência (phrónesis) consiste na vir-tude própria do campo da ação moral, da qual o exemplo mais perfeito constitui a deliberação política. No campo próprio da produção criativa, ou seja, o saber peculiar ao artesão, a virtude correspondente é identificada por Aristóteles com a técnica (tékhne, termo específico da filosofia grega, correspondente a ars, na língua latina). Enquanto a prudência dirige a atuação moral do sujeito e, consequentemente, sua própria perfeição, a técnica orienta a atividade transitiva do homem, quer dizer, a que se projeta para fora do sujeito e realiza a perfeição do objeto produzi-do. Assim, conclui o Estagirita que “a disposição moral apropriada para a ação é coisa distinta da disposição racional para a produção”17, do que resulta, em uma leitura superficial da passagem em questão, a diferença essencial entre essas duas formas de atuação humana. Apesar disso, segundo a interpretação mais autorizada do texto aristotélico, a técnica não constitui virtude (areté) por si mesma, pois está subordinada à prudência, que lhe fornece sua direção moral.18

Assim, se a prudência, ao invés da técnica, constitui a virtude relativa à ordem prática, qual seria, então, a relação entre esses dois conceitos? Parece que a chave para solucionar dito problema encontra em uma passagem da obra do

12 VILLEY, Michel. Le droit romain, Paris : PUF, 9. ed., 1993, p. 28.13 BRETONE, Mario. Historia do direito romano, trad. Isabel Teresa Santos, Lisboa : Estampa, 1990, cap. VI.14 KUNKEL, Historia del derecho romano, cit., p. 95.15 Gai, IV, 8: “Omne autem ius quo utimur, uel ad personas pertinet uel ad res uel ad actiones”. Edição citada S. RICCOBONO ET ALII, Fontes iuris Romani antejustiniani, Florentiae, apud S. A. G. Barbèra, editio altera, pars altera : auctores, p. 10.16 MASSINI, Carlos Ignacio. La prudencia jurídica, Buenos Aires : Abeledo-Perrot, 1983, p. 160.17 ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco, VI, 1140 a 4-5. Edição consultada: IDEM, Etica Nicomachea, introduzione, traduzione, note e apparati di Claudio Mazzarelli, Milano : Bompiani (testi a fronte), 3. ed., 2003, p. 235.18 GAUTHIER, R.; JOLIF, J., L’Éthique a Nicomaque, Louvain : Publications universitaires de Louvain, 1959, tome II, deuxième partie, p. 473.

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filósofo jusnaturalista contemporâneo Martin Rhonheimer.19 Conforme esclarece esse autor, a competência específica (Fachkompetenz) é necessária para que o homem realize o bem moral na ação concreta. Consequentemente, dado que o prudente também se esforça para colocar sua competência específica a serviço do bem humano percebido pela razão prática, não és possível que uma pessoa seja considerada verdadeiramente prudente se não possua a técnica necessária (isto é, os meios) para efetivar a ação moralmente correta. Assim, Rhonheimer conclui que o prudente também é a pessoa competente desde o ponto de vista técnico. Por outro lado, não é menos verdade, sublinha Rhonheimer, que a prudência, entendida ainda como virtude moral, é a condição para o emprego correto de todas as competências técnicas.

6. Em conclusão, constata-se a importância da dimensão técnica para o discurso verdadeira-mente jurídico. O fato é que o saber jurídico não é somente filosofia aplicada ou ética aplicada a algumas questões sociais específicas. Isso porque sua realização efetiva não prescinde dos ele-mentos técnicos, os quais atuam como verdadeiros meios que permitam à justiça expressar-se no dia a dia.

De outra parte, também é verdade que o conhecimento jurídico tampouco pode ser degrada-do à condição de mera técnica, visto necessitar, segundo a perspectiva clássica das virtudes, da direção conferida pela percepção prática do justo, subministrada pela prudência.

Tal percepção tem encontrado eco além dos limites estritos da filosofia jurídica, como se pode ver na doutrina processual civil contemporânea produzida no Rio Grande do Sul, capitaneada por Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Professor Titular de Direito Processual Civil na UFRGS, segundo o método denominado formalismo-valorativo. Segundo ensina esse jurista, as normas do processo civil não possuem uma natureza simplesmente técnica, estando embebidas de valores que devem ser percebidos pelo jurista e pelo juiz e realizados no caso concreto.20

Referências Bibliográficas

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ARISTÓTELES. Etica Nicomachea. Introduzione, traduzione, note e apparati di Claudio Mazzarelli. Milano: Bompiani (testi a fronte), 3. ed., 2003.

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BRETONE, Mario. História do Direito Romano. Trad. Isabel Teresa Santos. Lisboa: Estampa, 1990.

CORPUS IURIS CIVILIS. Volumen primum: Institutiones (recognovi Paulus Krueger); Digesta (recognovit Theodorus Mommsen; retractavit Paulus Krueger). Berolini, apud Weidmannos, editio decimasexta, MCMLIV.

FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. São Paulo: Atlas, 1994.

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KASER, Max. Sur la méthode des jurisconsultes romains. Romanitas, vol. 5, 1962.

KUNKEL, Wolfgang. Historia del derecho romano. Trad. de Juan Miquel. Barcelona: Ariel, 2. ed., 1970.

MASSINI, Carlos Ignacio. La prudencia juridica. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1983.

19 MARTIN RHONHEIMER, Die Perspektive der Moral : Philosophische Grundlage der Tugendethik, Berlin : Akademie Verlag, 2001 pp. 328-329.20 CARLOS ALBERTO ALVARO DE OLIVEIRA, Do formalismo no processo civil, São Paulo : Saraiva, 4. ed., 2010, pp. 94-97.

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En torno a la eficaciade la ley penal en lasconductas de tránsito

Ricardo Osvaldo Alvarez1

“La lectura reciente de dos narraciones harto disímiles me ha sugerido una teoría que, como es de uso, tal vez no hace otra cosa que exagerar una verdad parcial, pero que en el principio entreví con la radiante certidumbre indistinta de una revelación”1

Resumen

El reiterado fracaso de las últimas reformas al Código Penal Argentino, tendientes a incidir en la problemática del tránsito nos permite reflexionar en términos amplios, acerca de la función y eficacia contemporánea del derecho penal. Se puede enten-der al proceso de globalización como una decisiva transformación de los estados nacionales. En efecto, el estado se ha debilitado como institución capaz de orientar la vida social y de inscribir su ley en sus habitantes. La nueva figura del consumidor resulta desinstituyente de la ciudadanía. Su lógica no es nacional ni legal. El mercado impera en el tránsito viario. Existe escasa o nula inscripción de la ley en este ámbito. Cualquier reforma legislativa que insista exclusivamente en crear nuevos delitos o en subir las penas, sufrirá nuevos fracasos a la hora de modificar las conductas de tránsito.

Palabras claves

Eficacia. Ley penal. Estado. Globalización.

Abstact

The relativity failure of the last changes to the argentine penal code, tending to orientate the problem of traffic allow us think in ample terms about the functions and contemporany efficiency of penal law. We may understand the process of globalization as a decissive transformation of national states. Being so, the state is weaken as an institution able to command the social life and write for its citizens. The new figure of the consumer is not instituted for the citizens. The logic is not national nor legal. The market orders the vehicular traffic conduct. There is few or there is nothing writen in this forum. Any legislative change only about new faults or new punishments wil have new failures at the time of changing the traffic conducts. Key-words

Efficiency. Penal Law. State. Globalization.

Ciências Sociais e Aplicadas

(1) Abogado (UBA), Profesor de Historia (UBA), Doctor en Ciencias Jurídicas (UCLM – España), Profesor Titular de Derecho Privado (Universidad Maimónides). Ex capacitador del INCAP (Ministerio del Interior). Ex Consultor Naciones Unidas para la reforma del Sector Público. Director de Carrera de Abogacía (Universidad Maimónides). 1 Borges, Jorge Luis; El círculo secreto. Prólogos y notas; Prólogo al libro Tres Domingos de Susana Bombal, Biblioteca Jorge Luis Borges; Emecé, Bs. As., 2003, Pág. 11.

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Introducción

El reiterado fracaso de las últimas reformas al Código Penal Argentino, ten-dientes a incidir en la problemática del tránsito, nos ha llevado a reflexionar sobre la eficacia contemporánea del derecho penal en la vida social.2 Una posibilidad, que suele ser planteada por la doctrina, indica que las sucesivas reformas normativas fracasaron por su deficiente técnica legislativa y su adopción a una “filosofía” fundada meramente en la inflación punitiva. Sin duda, estas afirmaciones pueden sostenerse con diversos y reales fundamentos. Sin em-bargo, si se argumenta coherentemente a partir de esta postura, se puede llegar a una conclusión tranquilizadora: bastará sancionar un “buena y correcta” ley, con una técnica legislativa mejor y fundada en una filosofía jurídica de avanzada, para incidir favorablemente en la materia que nos ocupa. Sin embargo, pareciera que la cuestión analizada es más compleja y menos permeable. Existen cuestiones extra normativas fundamentales que escapan al de-recho positivo y que impiden soluciones mágicas por parte del derecho en general y del derecho penal en particular. Asimismo, se puede percibir un cambio decisivo en el lugar de la ley penal dentro del sistema jurídico. En efecto, la transformación de su función de “ultima ratio” a “primera ratio” o “sola ratio” dentro del sistema no puede pasar desaperci-bida y exige al menos cierta lectura crítica y algún esfuerzo de interpretación. Sabemos que no se trata de un problema exclusivamente local y que esta transformación se encuentra dentro de un proceso a nivel mundial y al que la doctri-na ha bautizado como “expansión del derecho penal” o “moderno derecho penal”. Sin embargo, la lectura que sigue, solo puede tener como referente a la situación argentina dado que exclusivamente ella es objeto de análisis en estas reflexiones. Por lo dicho, en la línea adoptada y para el caso argentino, se puede propo-ner una interpretación posible para explicar a partir de la transformación del estado, una correlativa pérdida de capacidad para inscribir la ley en sus habitantes. En efecto, en las últimas décadas, el estado se ha debilitado como institu-ción capaz de orientar la vida social y existe consenso en marcar su escasa capacidad de inscribir y hacer respetar la ley. Curiosamente, la evolución legislativa de los últi-mos años se ha inclinado por la permanente y continua criminalización de conductas como último recurso por dotar de eficacia a una ley que ya no la produce. En esta misma lógica aparece el aumento continuo de las penas y el “endurecimiento” de los institutos procesales.3

Lo que sigue entonces, serán interpretaciones cuya pertinencia se justifica-rá exclusivamente, si aportan cierta utilidad para explicar los fenómenos estudiados y si brindan elementos que ayuden a la caracterización del escenario social en el que se dictan y aplican las normas en cuestión.

I. Técnica legislativa y sujetos normativos.

Socialmente se le ha asignado al derecho penal la criminalización de ciertas conductas que la sociedad no tolera como aceptables y cuya gravedad justifica la máxima intervención punitiva. Como se ha explicitado en el caso argentino, demasiado habitualmente en los último tiempos, se aprueban verdaderos “parches” al Código Penal y se varía notablemente en criterios jurisprudenciales. En términos estatales, se puede pensar que cada algún tiempo se reactualiza el mito moderno del poder de la ley y de su capacidad transformadora de la conducta humana. Es preciso referirse también, a cierta concepción “mágica” que circula socialmente, respecto del poder efectivo del derecho penal para eliminar conductas disvaliosas con solo tipificarlas.

2 Nos referimos aquí a las reformas introducidas en el Código Penal Argentino por las leyes 25.189 del año 1999 y 26.362 del 2008.3 Díez Ripollés nota que “El reproche de que el legislador se sirve ilegítimamente del derecho penal para producir efectos simbólicos en la sociedad se ha convertido en un argumento frecuente en el debate político criminal (…) y la potenciación del denostado derecho penal sim-bólico está en directa relación con ciertas transformaciones sociales recientes a las que no puede cerrar los ojos la política criminal” Diez Ripollés, Jose Luis. “El derecho Penal simbólico y los efectos de la pena” Boletín Mexicano de Derecho Comparado, nueva serie, año XXXV, num. 103, enero-abril de 2002, pp. 63-97.

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Sin embargo, lo cierto es que lejos de solucionarse, el problema del tránsito como lugar de violación de bienes jurídicos tutelados, se agudiza en forma continua y, pareciera, inexorable. Como anticipamos, la reflexión normativa nos obliga a otras preguntas: ¿Se trata de equivocaciones del le-gislador? ¿Son incorrectas las normas sancionadas? ¿Han fracasado? ¿Son necesarias otras leyes? ¿Hay una incapacidad permanente (o mala fe) del personal que ocupa el estado o el Poder Legislativo para solucionar el problema? Sin duda las leyes son perfectibles y la actuación de muchos funcionarios, dista de ser la más adecuada. Pero también, se pueden advertir otras dificultades. Quizás más radicales o más obvias, o más radicales por su obviedad, que las mantiene al margen de las discusiones técnicas: el escaso cum-plimiento de las normas de tránsito por los sujetos normativos. El problema puede ser enunciado de esta forma: si el incumplimiento normativo no depende del contenido de la ley, entonces, el problema no podrá ser solucionado con otras leyes o con reformas a las vigentes. En este sentido, ha explicado lúcidamente – y para la materia que nos ocupa- el profesor José Cerezo Mir que “La lucha contra los accidentes no ha de centrarse, por ello, en las mejoras técnicas por importantes que éstas sean, sino en la elevación de la moral del tráfico”4 La eficacia de las normas, será entonces un problema decisivo en la problemática que nos ocupa.

II. Eficacia de las normas en el tránsito vial.

Esta es una preocupación compartida en el derecho comparado: encontrar mecanismos que posibiliten el cumplimiento de las normas. Estamos frente a otra de las particularidades más relevan-tes de la materia que nos ocupa. En efecto, en otros ámbitos del derecho, la cuestión de la eficacia normativa o bien ni si-quiera se plantea, o bien su reflexión es desplazada hacia otros campos, como el de la filosofía del derecho o el de la política criminal. Todo pareciera indicar que los conductores viales son sujetos, en términos normativos, espe-cialmente conflictivos. También nos podemos preguntar: ¿Por qué sujetos que se comportan de acuerdo a derecho en todos los ámbitos de su vida no se comportan de igual manera en el tránsito vehicular? Intuimos que las respuestas, si las hay con las características semánticas que nos exige el concepto, son múltiples y de muy diversa índole. Por supuesto, la filosofía del derecho y la sociología jurídica entre otras disciplinas han discutido frecuentemente -y agregamos desde antiguo- el problema de la obediencia a la ley, poniendo énfasis en la complejidad de la cuestión, el carácter multicausal del fenómeno y la relevancia de cuestiones, sociales históricas, políticas y culturales en general, de la población en cuestión.

III. Consideración de la situación argentina.

Para el caso argentino, es correcto enumerar una serie de cuestiones comúnmente aceptadas por todos los sectores que intervienen en el análisis del fenómeno: la ausencia casi absoluta de educa-ción vial en los establecimientos educativos, la permisividad para la obtención del carnet habilitante y la falta de controles pertinentes y permanentes por parte del estado.5 Es bien cierto que el ciudadano medio debería interesarse por la cuestión en su mismo carác-ter de ciudadano. Sin embargo, como es bien sabido, este es otro ámbito de lo público donde existe nulo interés por parte de la mayoría de la ciudadanía en aprender a actuar debidamente y conforme al derecho. En consecuencia, el estado debe ser lo suficientemente capaz para, en principio, educar. Se ha repetido hasta el cansancio que la tarea preventiva es más efectiva que la represiva y sobre todo en el tema que nos compete. Solo se quiere señalar aquí que en la actualidad existe un consenso generalizado acerca de la

4 Cerezo Mir, José; Temas Fundamentales del Derecho Penal; Rubinzal Culzoni; Santa Fe; 2001; Pág. 359.5 Edwards; op. cit.; Pág. 4 y ss.

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poca eficacia estatal en la prevención.6 Como se anticipó, la ausencia -o escasísima presencia- de contenidos de educación vial en las currículas y la inexistencia de campañas permanentes en el tiempo, son alguna de las causas de la escasa concientización en materia de seguridad vial.

IV. La inscripción de la ley.

A modo de hipótesis de interpretación, que no se buscará corroborar en este trabajo y es-peremos pueda ser materia de otras investigaciones, sostenemos que en el caso argentino y desde hace algún tiempo, no hay instancias de inscripción de la ley vial en los conductores. En efecto, la psicología ha explicado suficientemente que saber la norma no es lo mismo que estar atravesado por ella o internalizarla. En este sentido, Pierre Legendre ha propuesto que el verdadero nacimiento social se produce cuando la función dogmática del derecho inscribe en la subjetividad, lo prohibido; el destacado jurista francés lo ha denominado a este fundamental acontecimiento: “segundo nacimiento o nacimiento social”.7 Al analizar las reformas a la ley penal en materia vial se observa claramente que no basta con dictar la ley, sino que es necesario inscribirla en los habitantes de la situación. Es sabido que la ley no transforma lo real con su sola existencia, por lo que no puede modificarse la situación vial con la sola existencia normativa. Si es bien sabido que la ley no transforma mágicamente el mundo, debe ser nuevamente repe-tido que el derecho penal no hace desaparecer (también en forma mágica) las conductas consideradas disvaliosas. Esto nos conduce a un problema realmente complejo: ¿Cómo se genera obediencia a la ley? Sin duda, la respuesta habitual es haciéndola cumplir, es decir, realizando campañas de educación, prevención y luego y esencialmente, controlando y sancionando efectivamente el incumplimiento a la norma. De lo que se deduce que para hacer cumplir la ley, el estado debe primero inscribirla como ley en la subjetividad de sus habitantes.8

Se debe reconocer que no es tarea sencilla en épocas como las actuales, caracterizadas en término de crisis de todo el tejido social y de todas las instituciones sociales. Estimamos que uno de los problemas decisivos en la materia es que no existen instancias de inscripción de la ley vial en la población. Si reconocemos que no alcanza con saber la norma, sino que para que se obedezca, es preciso que esa norma se encuentre internalizada en el sujeto efectivamente como norma, se puede concluir que toda campaña que se centre en “publicidad normativa” tendrá pocas posibilidades de ser eficaz.

V. Las transformaciones del estado.

Un posible punto de partida de esta explicación radica en el cambio en el funcionamiento del estado en los últimos treinta años. La perspectiva adoptada sostiene como hipótesis que en tiempos nacionales, es decir durante buena parte de los siglos XIX y XX, la ficción legal operaba de manera efectiva a través de las prácti-cas familiares y escolares (y estatales en general) produciendo la inscripción de la norma jurídica en la subjetividad ciudadana, transformándose la normativa jurídica en ley a cumplir y respetar. En el mismo sentido, el estado tenía el poder suficiente para inscribir y sostener su ley, la ley nacional, en

6 Edwards; op. cit. Pág. 6,7 y 8. En idéntico sentido, Gussoni; op. cit. Pág. 169 y ss.7 Legendre identifica aquí el lugar del poder en tanto productor de sentidos : “se trata de, al significar razones para vivir y de morir, de sostener la causa humana mediante las instituciones ... en otras palabras las instituciones tienen como funcion producir a los humanos y encaminarlos hacia la muerte”. Legendre, P. L`Empire de la Vérité. Pág. 45 citado por Kozicki; E. “Discurso Jurídico y Discurso Psicoanalítico” en El discurso Jurídico; Hachette; Bs. As.; 1982. y también puede verse en Legendre, P. El inestimable objeto de la transmisión; Siglo XXI; México; 1997.8 “La inscripción de la ley delimita el contorno de lo prohibido y hace posible la conformación de la sociedad y las formas de la subjetividad. Por un lado hace posible el sostenimiento del lazo social en tanto regula ese lazo, pero como nada es gratuito, el don que otorga la ley deja como lastre una deuda y una tentación. Una deuda simbólica que es preciso pagar respetando la ley y de la cual el sujeto es responsable, pero también una tentación a trasponer los límites de lo prohibido, conformada como oscura culpa, oscuro goce.” Gerez Ambertín, Marta “Ley, Prohibición y culpabilidad” en Gerez Ambertín, Marta (Compiladora) Culpa, Responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y psico-analítico.; Letra Viva; Bs. As. ; 2006. Pág. 38.

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sus habitantes interpelados (y constituidos subjetivamente) como ciudadanos. Lo decisivo es que, bajo esta línea de análisis, la ley de los estados nacionales era estructurante de la subjetividad humana. En términos de Pierre Legendre, como anticipamos, el orden jurídico operaba eficazmente como instancia destinada a instituir lo vivo y a producir el segundo nacimiento, el verdadero nacimien-to en términos sociales.9

Ahora bien, los tiempos han cambiado bastante. Si hay algo característico de este proceso co-nocido mundialmente como globalización es la seria mutación de los estados nacionales y su creciente pérdida de poder en términos sociales.10

Desde el problema que nos ocupa, la lectura más rápida indica una caída (o gran dificultad) de la ley como ordenadora del lazo social.11 Sin ánimo de postular una respuesta a la cuestión planteada, o de agotar un debate que puede ya considerarse como tradicional en la filosofía política, se ensaya aquí una perspectiva de análisis, cuya única justificación, insistimos, se fundamenta en la utilidad que puede adquirir a la hora de ana-lizar en forma totalizadora el problema planteado, y a su turno, en señalar cuestiones que intervienen en la recepción social de las normas.

VI. La desinstitución de la ley nacional.

Puede plantearse como hipótesis que transitamos una crisis de la ley jurídica como instaura-dora de la subjetividad instituida.12 O en otros términos, notamos en variados ámbitos que la ley está dejando de cumplir su atribución básica de donar humanidad. De hacer humano al cuerpo de la especie “homo sapiens”. El humano instituido socialmente es cada vez menos un “homo jurídicus”.13 Pareciera cada vez más, que otras prácticas sociales son determinantes a la hora de constituir humanidad.14 Para al menos fundamentar históricamente estos postulados debemos situarnos luego de las grandes revoluciones15 y fundamentalmente a partir de los siglos XIX y XX cuando el estado nacional logra erigirse como forma natural de organización de los pueblos. A partir del estado, un conjunto extenso de prácticas humanas toma un sentido articulado.16

Para el problema de la inscripción de la ley, lo decisivo es que en los siglos XIX y XX, el esta-do aparece como el ordenador simbólico por excelencia, dado que el conjunto de las instituciones recibe su lugar y su función a partir de su relación con el estado. En las épocas hegemonizada por los estados nacionales, la vida del un individuo se desar-rollaba en el interior de sus instituciones y en el paso de una institución a otra. Puede definirse como ciudadano al individuo interpelado y constituído por los estados nacionales.17

En efecto, puede afirmarse que el ciudadano es aquel que se forma, vive y transita por las instituciones del estado nacional: la familia, la escuela, la fábrica, el hospital, la prisión, el hospicio, etc.18 Escribe Deleuze que “Foucault situó las sociedades disciplinarias en los siglos XVIII y XIX: estas sociedades alcanzan su apogeo a principios del XX y proceden a la organización de los grandes espacios de encierro. El individuo no deja de pasar de un espacio cerrado a otro, cada uno con sus leyes: primero la familia, después la escuela (“acá ya no estas en tu casa”), después el cuartel (“acá ya no estas en la escuela”), después la fábrica, de tanto en tanto, el hospital, y eventualmente la prisión, que es el lugar de encierro por excelencia.” 19

9 Legendre, P. El inestimable…op. cit. 10 García Delgado, Daniel; Estado-Nación y globalización. Fortalezas y debilidades en el umbral del tercer milenio; Ariel; Bs.As.; 2000. Pág. 15 y ss.11 García Delgado, Daniel; op. Cit., pp. 161 y ss.12 Nuevamente, se trata de una hipótesis que no se buscará demostrar, dado el particular objeto de estudio de esta investigación. Su inclusión solo se justifica en la utilidad de la hipótesis para el análisis de los fenómenos contemporáneos. 13 Se puede consultar la importante obra de Alain Supiot Homo juridicus.Ensayo sobre la función antropológica del derecho; Siglo XXI; Bs. As.; 2007. Pág. 214 y ss. 14 Bauman sugiere que en la “modernidad líquida”, tal como caracteriza a nuestra época contemporánea, el consumo es la práctica funda-mental donadora de humanidad e identidad. Sus desarrollos pueden leerse en Modernidad Líquida; FCE; Bs. As. 2006. Pág. 59 y ss. Y también en El arte de la vida; Paidos; Bs. As.; 2009 Pág. 24 y ss. 15 Nos referimos a la revolución francesa, industrial y americana.16 Para la articulación de estas prácticas puede seguirse la obra de Ignacio Lewkowicz en Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006.Pág. 91 y del Grupo 12 Del Fragmento a la situación. Notas sobre la subjetividad contemporánea; Gráfica Mexico; Bs. As.; 2001. 19 y ss. 17 Grupo 12: Del Fragmento a la situación. Notas sobre la subjetividad contemporánea; Gráfica México; Bs. As.; 2001. 38 y ss. 18 Foucault ha descripto delicadamente el funcionamiento de las que bautizó “instituciones de encierro” y el resultado que en términos de subjetividad producen dichas instituciones. Foucault, Michel; Saber y Verdad; La Piqueta; Madrid; 1991. Vigilar y castigar; Siglo XXI; Bs, As.; 1994. La arqueología del Saber; Siglo XXI; México; 1996. Tecnologías del yo; Paidós Ibérica; Barcelona; 1996.19 Deleuze, Gilles; “Posdata sobre las sociedades de control” en Ferrer Christian (Compilador) El lenguaje libertario 2; Edinor; Montevideo; 1991. Pág. 17.

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A su vez, estas instituciones a través de sus prácticas, forjan la subjetividad capaz de habitar estas instituciones y transitar por ellas. En síntesis, podemos concluir que se forja una subjetividad característica, la moderna, que podemos llamar, para mayor precisión “subjetividad ciudadana”

VII. El ocaso del ciudadano.

En esta línea, podemos pensar que el ciudadano es el tipo subjetivo forjado por los estados nacionales y sus instituciones.20

Para el problema que nos importa pensar en este trabajo, lo fundamental es que puede pos-tularse al ciudadano como el tipo subjetivo que se forja en torno de la ley, o más precisamente, el tipo de hombre instituido, resultante del principio moderno de igualdad ante la ley.21

Los estados nacionales interpelan a sus individuos como ciudadanos a partir de dos instancias primor-diales: la familia nuclear y la escuela. La escuela y la familia, entre otras instituciones producen ciudadanos en y para los estados nacionales.22

Se puede argumentar que el ciudadano es un tipo subjetivo organizado por la creencia básica de que la ley es la misma para todos. En este sentido alguien puede lo que puede y no puede lo que no puede, porque todos pueden eso o nadie puede eso. El ciudadano, como subjetividad, es reacio a la noción de privilegio o de ley privada. La ley es homogénea, prohíbe y permite a todos por igual.23 El ciudadano es un individuo que se define por esta relación con la ley. La igualdad jurídica es el corazón mismo de la condición del ciudadano.24 La ley es la dimensión fundante de la subjetividad ciudadana. Hay ciudadanos porque hay ley; hay ley porque hay estado capaz de inscribirla, significarla y sostenerla. Este es una hipótesis para poder pensar la eficacia de las leyes contemporáneas: la ley jurídica, la ley instituida durante la modernidad, necesita de las instituciones nacionales para inscribirse.

VIII. La desrealización de los estados nacionales.

En esta línea de análisis, lo fundamental del proceso bautizado como globalización,25 es el efecto que produce sobre los estados nacionales y consecuentemente sobre su capacidad efectiva de ejercer la soberanía a partir de la imposición de su ley.26 En efecto, para pensar la dificultad de la inscripción de la ley en sus habitantes, un somero examen de las transformaciones del estado (a nivel mundial pero muy marcadamente en el caso ar-gentino) no resulta del todo ocioso.27

20 Ignacio Lewkowicz en Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006.Pág. 19 y ss. Grupo 12 Del Fragmento a la situación. Notas sobre la subjetividad contemporánea; Gráfica México; Bs. As.; 2001. 38 y ss. 21 Un estudio sobre la relación de la ley con el individuo, desde una perspectiva psicoanalítica, y coincidente con lo aquí planteado puede leerse en Gerez Ambertín, Marta “Ley, Prohibición y culpabilidad” en Gerez Ambertín, Marta (Compiladora) Culpa, Responsabilidad y castigo en el discurso jurídico y psicoanalítico.; Letra Viva; Bs. As. ; 2006. Pág. 37 y ss. 22 Un análisis lúcido de las transformaciones de estas instituciones en la coyuntura de tránsito del estado al mercado puede leerse en Corea, Cristina y Lewcowicz I. Pedagogía del aburrido. Escuelas destituidas. Familias perplejas. Bs. As. ; 2004. Corea Cristina y Lewkowicz I. ¿Se acabó la infancia? Ensayos sobre la destitución de la niñez. ; Lumen Hvmanitas; Bs. As. 1999. 23 La inmensa variación en la forma de entender la humanidad en la historia de los hombres, reflejada también en una no menos variable historia del derecho, nos enseña que no existe una naturaleza humana inmutable y eterna, al menos si definimos naturaleza humana como aquello que hace “ser hombre” al “hombre”. Recordamos que considerar hombres a todos aquellos cuerpos pertenecientes a la categoría “homo sapiens” es una decisión reciente en términos de la historia de la humanidad y tal vez no definitivamente establecida a juzgar por la xenofobia y el odio racial del siglo XX. En definitiva, sabemos que no se es hombre por la sola pertenencia genérica a la especie, sino que resultan necesarias ciertas prácticas que conviertan a un “cuerpo” en un “hombre”. El discurso jurídico ha sido, en los últimos siglos, el privilegiado en tanto discurso socialmente hegemónico, para producir la diferencia específica entre humanidad y no humanidad.24 Y no menos importante, la ley se convierte en sentido común para quien se forma con ella. En palabras de Aldo Schiavone “Un saber sin encantos, duro y difícil, en toda época accesible de manera directa sólo a un círculo restringido de especialistas, ha logrado determinar nuestro sentido común” Schiavone, Aldo; IUS, La invención del derecho en occidente; Adriana Hidalgo Editora; Bs. As. ; 2009; Pág. 25. Para Foucault, el derecho también determina las prácticas de producción de verdad, tal como lo explicó claramente en La verdad y las formas jurídicas; Gedisa; México; 1990.25 Un desarrollo específico de la cuestión se puede seguir en Ferrer, Aldo; Historia de la globalización; FCE; Bs.As.; 1996. 26 Seguimos el planteo de Ignacio Lewkowicz en Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006.Pág. 19 y ss. Con similares características para el punto que se quiere resaltar puede seguirse a Kenichi Ohmae, El fin del estado-nación; Editorial Andrés Bello; Santiago; 1997. Pág. 15 y ss.27 Alain Supiot se refiere al mismo proceso como la “decadencia de la soberanía” cuyas nota es la transformación del estado y la separación entre el poder y la autoridad. Homo juridicus.Ensayo sobre la función antropológica del derecho; Siglo XXI; Bs. As.; 2007. Pág. 214 y ss.

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En gran medida, nuestro presente se caracteriza por el debilitamiento progresivo del estado nacional. La institución estatal cae como espacio soberano de autonomía y como institución privile-giada capaz de orientar el curso del devenir, tal como sucedió, masivamente, en el siglo XX. Si algo caracteriza a nuestro estado es que ha perdido el arraigo efectivo que les daba potencia soberana.28 El proceso de globalización puede pensarse entonces como un cambio fundamental a la hora de reflexionar sobre las capacidades del estado. Es decir que puede pensarse a la globalización como un proceso que genera cierta unificación general de los estímulos económicos y que produce una gran diversidad local de las respuestas político--sociales. Se ha destacado suficientemente esta configuración que vía flujos de información y de capi-tal, se dio en llamar “aldea global”. Lo característico de esta “aldea” es que su conectividad atraviesa permanentemente las fronteras políticas. O mejor, más que atravesarlas, las desrealiza. Porque atra-vesar las fronteras significa que hay una marca con existencia delimitable, y que entonces es posible situarse a un lado u otro. Pero desrealizarlas significa destituir el carácter fronterizo de la frontera.29 Desde hace tiempo, notamos que dejó existir este espacio interior al que nos habíamos acos-tumbrado a llamar mercado interno, estado-nación o espacio soberano. Entonces, el mundo o la parte del mundo que se haya llamar con ese nombre, queda conectado a partir de los flujos de capitales, de imágenes, de información, de transacciones.30 Que se agoten los estados nacionales significa que ha caído la institución principal en la ins-tauración de la subjetividad humana, al menos de los últimos dos siglos. Es necesario reconocer que la transformación del estado no significa su desaparición, muy por el contrario, la complejidad reside en vislumbrar una institución que permanece en las formas pero que se altera en sus potencialidades. En efecto, señalar la caída de los estados nacionales no significa señalar la desaparición de la institución sino solo un decisivo efecto: la pérdida de la potencia hege-mónica en instaurar subjetividad, en el caso que nos interesa, la ley, propia de los siglos XIX y XX. No es tampoco que, dentro de un proceso irremediable, estén desapareciendo, sino más bien que carecen actualmente de esa potencia que los hacía capaces de orientar el curso del devenir y el modo de ser de los hombres.31 La transformación del estado significa una alteración básica en la subjetividad, y específica-mente en los procesos de inscripción normativa.32

IX. Globalización y ley.

En tiempos nacionales, el estado fue capaz de articular simbólicamente las situaciones, esto es, produjo un sentido general para la serie de instituciones nacionales, en rigor, no solo produjo un sentido general, sino un sentido general articulado. Mientras las instituciones modernas estaban ins-criptas en la totalidad estatal las instituciones actuales funcionan cada una como un mundo aparte. Cada vez menos, las instituciones producen sujetos para otras instituciones. En efecto, el habitante contemporáneo durante el transcurso de su vida no va pasando, como en el estado nación, de una institución a otra; en las que, a su turno, se va instituyendo la ley a partir de diferentes y coordinadas prácticas. Actualmente, los habitantes van “padeciendo” situaciones cada una con su propia lógica.33 Lo importante en este desarrollo apresurado de interpretaciones posibles, es que estas trans-formaciones, también transforman a sus habitantes. El paso de la primacía del estado al mercado puede describirse también como el paso del ciudadano al consumidor.34

28 El argumento se fundamenta en Lewkowicz I; Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006.Pág. 19 y ss. También Ohmae,K. El fin del estado-nación; Editorial Andrés Bello; Santiago; 1997. Pág. 15 y ss.29 La experiencia de la Comunidad Europea, es quizás el mejor ejemplo de estas características contemporáneas, como experiencia altamente eficaz de un novedoso contorno plurinacional.30 García Delgado, Daniel; Estado-Nación y globalización. Fortalezas y debilidades en el umbral del tercer milenio; Ariel; Bs. As. ; 2000. Pág. 15 y ss.31 Grupo 12 Del Fragmento a la situación. Notas sobre la subjetividad contemporánea; Gráfica México; Bs. As.; 2001. pp. 28 y ss. Se compara aquí la “muerte de Dios” postulada por Zarathustra (Nietzsche, Así habló Zarathustra) con la “muerte del estado”, en el sentido que, al igual que con Dios, lidiaremos con sus sombras un par de siglos.32 De suma utilidad, el armado de conceptos teóricos en Corea Cristina y Lewkowicz I. ¿Se acabó la infancia? Ensayos sobre la destitución de la niñez.; Lumen Hvmanitas; Bs. As. 1999. Pág. 159 y ss.33 El Grupo 12 habla del tránsito de instituciones (ordenadas según una regla) a “galpones” donde no existen reglas preestablecidas y deben organizarse para poder producir un sentido. Grupo 12 Del Fragmento a la situación. Notas sobre la subjetividad contemporánea; Pág. 38 y ss.34 O en términos de Zigmut Bauman mediante la metáfora del paso de lo sólido a lo líquido, que permite explicar las principales transfor-maciones sociales en los albores del siglo XXI. Nos remitimos a su obra, para la fundamentación de todo el desarrollo que sigue. Se puede

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Así como los estados nacionales, a través de la ley, producía ciudadanos, los estados globali-zados, a partir del mercado, producen consumidores.35 La figura del consumidor es reconocida en términos sociales. Para este desarrollo, puede pensarse como una figura concomitante con el proceso de “desrealización de los estados nacionales”.36 En este sentido, lo decisivo es un cambio en la percepción social del hombre que ha comenzado a re-conocerse más como consumidor que como ciudadano.37 Esta nueva subjetividad se produce por una serie de prácticas que instituyen al consumidor como un sujeto que varía sistemáticamente de objeto de consumo sin alterar su posición subjetiva.38 El consumidor habita en la lógica de la moda, de la vertiginosa sustitución de objetos, donde el último término de la serie siempre “es mejor”, sólo porque es nuevo. El objeto anterior cae sin tramarse en una historia, no hay continuación, uno sustituye al otro. El consumidor habita la lógica del zaping televisivo, la renovación permanente del mercado, la innovación tecnológica, etc.39 Sin duda, se trata de una posibilidad de lectura y una tendencia solo reconocible en grandes urbes. Según esta lógica, será placentero todo aquello que confirme y satisfaga sus gustos y prefe-rencias. Esta concepción del placer imagina que cualquier otro tipo de acción se reduce a la renuncia. El consumidor parte de las promesas del mercado. Esta promesa es la de un objeto capaz de proporcionar satisfacción integral.40 Si en los estados-nación un ciudadano se definía por su relación con la ley,41 en los estados globaliza-dos, el consumidor se define por sus actos de consumo, teniendo en cuenta que el consumo es, entre otras cosas, producción de signos.42 El acto de consumir es un signo para el reconocimiento del otro y una necesidad para con-formar una imagen que está continuamente amenazada, porque no es una propiedad que se puede adquirir definitivamente sino que hay que adquirirla todo el tiempo. La lógica de la moda hace caer los signos válidos rápidamente; lo que ayer era un signo, hoy puede dejar de serlo sin aviso previo.43

Volviendo al punto que pretendemos destacar, en los estados nacionales el universo de los derechos del ciudadano se produce a partir de la instancia decisiva de la ley. La teoría jurídica mo-derna estableció que para que exista un derecho debe existir una obligación. Porque en rigor, un in-dividuo tendrá un derecho sólo si otro tiene una obligación. El derecho no es sino la contracara de la obligación.44 En cambio, el consumidor se proclama como un sujeto con infinidad de derechos. Sin embar-go, al habitar en el mercado, los derechos efectivos se logran solo mediante la fuerza que se pueda

consultar fundamentalmente Modernidad Líquida; FCE, Bs. As., 2006 y también Vidas Desperdiciadas; Paidós, Bs. As. 2005.35 Se puede ver en la reforma constitucional Argentina de 1994 un indicador de estas transformaciones. En el nuevo el artículo 42 aparece la figura del consumidor con rango constitucional. En nuestra Norma Fundamental, además de ciudadanos, hay consumidores. ¿Y qué tiene el consumidor? Derechos. Pareciera que desde el punto de vista subjetivo la relación con la ley es bien distinta en ciudadanos y consumidores.Art. 42 de la CNA: Los consumidores y usuarios de bienes y servicios tienen derecho, en la relación de consumo, a la protección de su salud, seguridad e intereses económicos; a una información adecuada y veraz; a la libertad de elección, y a condiciones de trato equitativo y digno.Las autoridades proveerán a la protección de esos derechos, a la educación para el consumo, a la defensa de la competencia contra toda forma de distorsión de los mercados, al control de los monopolios naturales y legales, al de la calidad y eficiencia de los servicios públicos, y a la constitución de asociaciones de consumidores y de usuarios.La legislación establecerá procedimientos eficaces para la prevención y solución de conflictos, y los marcos regulatorios de los servicios públicos de competencia nacional, previendo la necesaria participación de las asociaciones de consumidores y usuarios y de las provincias interesadas, en los organismos de control.36 Una mayor fundamentación de este proceso puede verse en el trabajo de de Ignacio Lewkowicz en Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006.Pág. 19 y ss. Con similares características para el punto que se quiere resaltar puede seguirse también el planteo de Kenichi Ohmae, El fin del estado-nación; Editorial Andrés Bello; Santiago; 1997.37 “…la sociedad posmoderna considera a sus miembros primordialmente en calidad de consumidores, no de productores. Esa diferencia es esencial.” Bauman, Z. Modernidad Líquida; FCE; Bs. As.; 2006; Pág. 82. También es compatible la visión de Néstor García Canclini en Consu-midores y Ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización;Grijalbo; México; 1995.38 Se puede ver para un desarrollo de esta tesis el trabajo de Ignacio Lewkowicz I. “Subjetividad adictiva: un tipo psico-social instituido” en Dobon, J. Y Hurtado G. (Comp.) Las drogas en el siglo....¿Qué viene? FAC, La plata, 1999.39 “En sociedades anteriores, las cosas eran portadoras de continuidad y estabilidad, principio este que resulta diametralmente opuesto al de la moda. En efecto, el principio de la moda no es otro que crear un ritmo de aceleración creciente y constante, y así convertir un objeto en prescindible con la mayor celeridad posible para poder pasar a otro nuevo” y también “La época posmoderna ha erigido la moda como uno de sus principios. La moda es, como bien nos recuerda Benjamin “el eterno retorno de lo nuevo” Svendsen, Lars; Filosofía del Tedio; Tusquets, Barcelona; 2006; Pág. 56. 40 “Dada la profusión de ofertas tentadoras, la potencial capacidad generadora de placer de cualquier producto tiene a agotarse con rapi-dez. Afortunadamente para los clientes con recursos, esos recursos los protegen de las desagradables consecuencias del consumo: pueden desechar las pertenencias que ya no desean y conseguir las que desean ; están protegidos contra el rápido envejecimiento y la obsolencia de los deseos y contra su efímera satisfacción”.; Bauman; Modernidad…; op. cit.: Pág. 96.41 De acuerdo a lo señalado por Pierre Legendre el sujeto humano esta creado por las leyes de su polis. Estas lo producen, lo incorporan en su tejido legal, lo inscriben civilmente con su nombre. Legendre P. El inestimable objeto de la transmisión ; Siglo XXI; México; 1996, Pág. 19 y ss.42 Baudrillard, Jean; Crítica de la economía política del signo; Siglo XXI; México; 1997; Pág. 54.43 Bauman, Modernidad; op. cit.; Pág. 91.44 Lewkowicz I. en Pensar sin estado; Paidos; Bs. As. Bs. As.; 2006. Pág. 62 y ss.

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realizar en el mercado. En efecto, el mercado es el lugar privilegiado en que cada consumidor actua-liza sus derechos. No tenemos con las llamadas “leyes del mercado” un establecimiento permanente de las pautas que determinan lo incorrecto y lo correcto.45 La proclamada igualdad del ciudadano ante la ley ha sido sustituida por los poderes específi-cos de los consumidores ante el mercado. El mercado es, desde largo, el ámbito de la diferencia y de la desigualdad; en el mercado cada uno puede lo que puede y todos pueden distintos. Esta hipótesis de transformación subjetiva de los ciudadanos nos indica la posibilidad de con-cebir sus acciones como derivadas, no de la lógica de la ley, sino de la del consumo. En gran medida puede explicarse la conducta de muchos conductores, a partir de entenderlas como derivadas de otra lógica de la esperada. No es la ley lo que motiva o regula su conducta sino una idea de maximización de beneficios. El “consumidor al volante” no quiere “perder” tiempo, sabe que su vehículo puede ir más rápido, se reconoce como desigual del resto, no acepta la norma por el solo hecho de ser norma. Estar o circular delante de otro, pareciera ser un valor, como lo es, estar “adelante” en el mercado. Los vehículos se eligen cada vez más como objetos de consumo. No es descabellado pensar que su uso también seguirá estas pautas. Nuevamente, aclaramos que se trata solo de interpretaciones posibles de un fenómeno social, cuya complejidad es el único término aceptado por todos aquellos que pretenden estudiarlo. Sin per-juicio de ello, justificamos mencionar estas hipótesis que han surgido en la investigación, como derivas de la misma y que entonces, forman parte de ella. Si algunas cuestiones de la perspectiva adoptada son ciertas, ninguna reforma normativa podrá solucionar, por sí misma, el problema del crecimiento de la lesiones y muertes resultantes del tráfico vial. En efecto, los procedimientos efectivos en una dinámica social simbólicamente articulada, no lo serán en otra lógica, ya no guiada por la primacía de la ley.

45 Lewkowicz, op. cit.; Pág. 24 y ss.

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Contagem da prescriçãotrabalhista na ocorrência

de causas interruptivasCinthia Machado de Oliveira1

Resumo

A prescrição, ao iniciar sua contagem, pode deparar-se com situações que influen-ciem no andamento do seu prazo, como a ocorrência de causas impeditivas, suspen-sivas e interruptivas. As hipóteses interruptivas fazem com que a contagem do prazo prescricional cesse, operando a inutilidade do tempo que passou antes de sua mani-festação. A interrupção tem o efeito de apagar o tempo vivido, de inutilizá-lo. Nas situações em que ocorre a interrupção da prescrição, cumpre verificar como resta a contagem do prazo, tanto o bienal quanto o quinquenal, posto que a solução não é idêntica para ambos. Sobre esta temática versa o presente estudo.

Palavras-chave

Prescrição. Causas Interruptivas da Prescrição. Causas Suspensivas da Prescrição. Cômputo da Prescrição.

Abstract

When the prescription period initiates it may encounter situations that can influence its term as the occurrence of impeditive, suspensive and interruptive causes. The interruptive hypotheses make the prescription period cease which operates the futility of the time passed before its manifestation. The interruption has the effect of deleting the period passed, making it futile. In situations where the interruption of prescription occurs, it is necessary to check the biennial and quinquennial prescription period left, since the solution is not identical for both.

Keywords

Prescription. Prescription Impeditive Causes. Prescription Suspensives Causes. Interruptive Prescription Causes. Prescription Estimation.

1. Conceito de prescrição

O tempo não passa incólume para os seres humanos: nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos. Para o direito, o tempo também não passa despercebido, ele exerce influência sobre as relações e situações jurídicas. Vários fenômenos jurídicos ocorrem pela passagem do tempo ou são sua consequência. Quando um indivíduo adquire a maioridade civil, nada mais é do que a consequência de terem se passado 18 anos de sua vida; quando um proprietário de um imóvel está autorizado a pedir a saída do locatário após três anos de contrato; ou quando ocorre uma aposentadoria por idade; todos

Ciências Sociais e Aplicadas

(1) Mestre em Direito do Trabalho pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Direito do Trabalho. Advogada trabalhista. Consultora da área trabalhista da Secretaria da Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça, e Relatora na Comissão de Alto Nível para aprimoramento e modernização da legislação material e processual do trabalho. Professora de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho em cursos de graduação e Pós-Graduação em Direito. Coordenadora do curso de Pós-graduação em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho da Escola Superior Verbo Jurídico.

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estes são exemplos da influência que o tempo pode exercer nas relações jurídicas. A situação que ora se estuda é especial: a influência do tempo nas relações jurídicas sob a forma da prescrição. A importância deste instituto é imensa e se espraia por diversos ramos jurídicos: trabalhista, penal, tributário, previdenciário e outros. A prescrição é fundamentalmente disciplinada na parte geral do Código Civil, sendo que cada setor do direito que a utiliza apresenta disposições especiais a seu respeito. Prescrição é tema polêmico desde a sua conceituação, que não encontra uma convergência doutrinária, e sim multiplicidade de opiniões. A dificuldade em conceituar prescrição pode ser demonstrada pelo tratamento dado a ela no Código Civil de 1916, no qual foi disciplinada juntamente com a decadência, sendo que a doutrina e a jurisprudência tiveram que se esforçar para conceituá-la. O direito comparado também contribui para a multiplicidade de conceitos, posto que nele não há uma uniformidade quanto ao tema. No direito romano, a ideia de prescrição esteve sempre ligada ao direito processual, à ação. O direito alemão e o suíço evoluíram seus conceitos e chegaram à noção de perecimento da pretensão pela prescrição. Já o direito italiano é expresso ao indicar em sua legislação que o que falece é o direito1. Buscarei o conceito de prescrição sob o enfoque do objeto que ela atinge, que pode basica-mente ser apresentado em duas linhas de pensamento: 1) a prescrição representa a perda do direito e 2) a prescrição extingue a pretensão. A segunda corrente, que indica o perecimento da pretensão (ou ação, se ainda restar o ranço da confusão entre direito material e direito de ação), foi seguida pelos direitos alemão e suíço. A pri-meira corrente é a que defende o chamado “efeito forte da prescrição”, seguida pelo direito italiano, na qual o direito é que falece perante a prescrição. A morte do direito ocorreria por via indireta, em decorrência da morte da pretensão, posto que este não sobrevive sem a possibilidade de ser exigido coercitivamente. Veja-se cada uma das correntes quanto ao conceito de prescrição:

1.1. Prescrição representa a perda do direito

Esta corrente busca atribuir à prescrição a “força dupla de extinguir não só a ação como o direito por ela visado”2. Pugliese3 é um dos defensores desta tese, juntamente com Carvalho Santos4, Roberto de Ruggiero5 e Sérgio Pinto Martins6. A corrente, que segue a linha ítalo-francesa, defende a teoria do “efeito forte” da prescrição. A prescrição, fulminando inicialmente a pretensão, termina por retirar qualquer forma de exigência coercitiva do direito, o que, para os adeptos desta diretriz, faz aquele falecer. A prescrição de forma direta ataca a pretensão, mas acaba atingindo de forma indireta o direito. Sustentam que o direito só existe em sua plenitude quando armado da possibilidade de ser exigido judicialmente, pois a tutela é de sua essencialidade e, ao ser retirada, o desnatura. O direito pereceria pela impossibilidade de se fazer valer. Observe-se que esta corrente não nega que o objeto da prescrição é a pretensão. Ocorre que seus defensores sustentam que o direito não existe sem a pretensão (sendo esta a condição de exigên-cia coercitiva daquele), restando assim exterminado, pela inutilidade que terá daí em diante, posto que poderá ser violado, ameaçado, sem qualquer tipo de punição. O seu titular não pode mais exercê--lo, se o obrigado a ele se opuser, alegando que está prescrito. Assim, o objeto imediato da prescrição é a pretensão, e o objeto mediato é o direito. Seus adeptos não negam também que a obrigação continua existindo, mas agora apenas sob a forma de obrigação natural (naturalis obligatio), que se traduz em obrigação judicialmente inexigível. A continuidade da existência da obrigação não é entendida como suficiente para justificar a manuten-ção do direito. De forma nítida, Sergio Pinto Martins aduz que à parte obrigada, após ver a pretensão

1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil: Dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da decadên-cia. Da prova. Arts. 185 a 232. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. III. Tomo II. p. 149.2 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 9. ed. Revista e atualizada pelo prof. José Serpa Santa Maria. Rio de Ja-neiro: Freitas Bastos, 2000. v. I. p. 560.3 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de Direito Civil. 9. ed. Revista e atualizada pelo prof. José Serpa Santa4 apud PRUNES, José Luiz Ferreira. Tratado sobre a Prescrição e a Decadência no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1998. p. 11.5 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de Direito Civil. Trad. 6. ed. por Paulo Capitanio. atual. por Paulo Roberto Berrasse. Campi-nas: Bookseller, 1999. v. I. p. 416.6 MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários à CLT. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 57.

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que possuía prescrita, resta apenas uma obrigação moral de satisfação da obrigação, que não está dentro das linhas do Direito. “O direito nada tem que ver com o fato de a pessoa desejar prestar uma obrigação por dever de consciência.”7

1.2. A Prescrição extingue a pretensão

Esta corrente se compactua com a atual redação do Código Civil, que em seu artigo 189 esta-belece: “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”8

Entre os defensores desta corrente encontram-se Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho9, Délio Maranhão10, Lopes da Costa11, Roberto Senise Lisboa12, Ari Pedro Lorenzetti13, José Joa-quim Calmon de Passos14, Alice Monteiro de Barros15, Gustavo Filipe Barbosa Garcia16, entre diversos outros autores. Pretensão é a possibilidade de exigir coercitivamente o cumprimento do direito que foi viola-do. Corresponde, assim, ao poder que a parte possui de levar sua demanda ao Poder Judiciário e exigir o adimplemento da obrigação de que é titular. Conforme Carnelutti, “pretensão (pretesa) consiste na exigência da subordinação do interesse alheio ao interesse próprio”17; para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, pretensão é “o poder de exigir a submissão de um interesse subordinado (do devedor da prestação) a um interesse subordinante (do credor da prestação) amparado pelo ordena-mento jurídico”18. Durante longo período no ordenamento jurídico brasileiro havia um conceito de prescrição como exterminadora do direito de ação que era, sem dúvida, o mais difundido. Hoje não se justifica mais esta ideia, tendo em vista a evolução trilhada pela teoria desenvolvida em torno do direito de ação. Hoje deve-se falar que a prescrição atinge a pretensão. A ideia de que a ação falecia perante a prescrição tinha razão de ser na época em que a auto-nomia da ação não era apregoada pela escola imanestista (também denominada clássica ou civilista), que via a ação como “uma qualidade de todo direito ou o próprio direito reagindo a uma violação”19. Esta ideia foi substituída pela noção de ação como o “direito ao exercício da atividade jurisdicional” (ou o poder de exigir esse exercício)20. O direito de ação, absolutamente desvinculado do direito material, é irrestrito e não se sub-mete às regras prescricionais. Isto pode ser facilmente comprovado através de um exemplo. Emprega-do, três anos após a extinção de seu contrato de trabalho, ingressa judicialmente postulando diversas verbas decorrentes desta relação de emprego. Não estando este obreiro sob a égide de nenhuma causa imunizadora, sua demanda será extinta com resolução do mérito em decorrência da pronúncia da pres-crição. Se a prescrição atacasse o direito de ação, sequer poderia ter ido o trabalhador às portas do Poder Judiciário. Não obstante estarem prescritas suas pretensões em face de seu ex-empregador, ele pode ajuizar sua ação, vê-la tramitar, até obter a sentença final. Isto claramente comprova que não é a ação o objeto da prescrição. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho descrevem com precisão o equívoco em se pensar a ação como o objeto da prescrição:

7 MARTINS, Sérgio Pinto. Comentários à CLT. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 58.8 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 182.9 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: (abrangendo o código de 1916 e o novo código civil) parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I. p. 476.10 SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 1996. p. 1386.11 COSTA, Lopes. apud SÜSSEKIND, Arnaldo et al. Instituições de Direito do Trabalho. 16. ed. São Paulo: LTr, 1996. p. 1386.12 LISBOA, Roberto Senise. Manual elementar de direito civil. 2. ed. rev. e atual. em conformidade com o novo Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. v. I. p. 414.13 LORENZETTI, Ari Pedro. A prescrição no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999. p. 18.14 PASSOS, José Joaquim Calmon. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 270 a 331. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. v. III. p.226.15 BARROS, Alice Monteiro de. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 2005. p. 970.16 GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Novidades sobre a prescrição trabalhista. São Paulo: Método, 2006. p. 1517 BATALHA, Wilson de Souza Campos. Tratado de Direito Judiciário do Trabalho. São Paulo: LTr, v. I, 1995. p. 108.18 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: (abrangendo o código de 1916 e o novo código civil) parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I. p. 478.19 NTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 9.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 209-210.20 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 9.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 209.

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O direito constitucional de ação, ou seja, o direito de pedir ao Estado um provimento jurisdicional que ponha fim ao litígio, é sempre público, abstrato, de natureza essencialmente processual e indisponível.Não importando se o autor possui ou não razão, isto é, se detém ou não o direito subjetivo que alega ter, a ordem jurídica sempre lhe conferirá o legítimo direito de ação, e terá, à luz do princípio da ina-fastabilidade, inviolável direito a uma sentença.Por isso, não se pode dizer que a prescrição ataca a ação!Ocorre que, na época da elaboração do Código Civil de 1916, e mesmo antes, considerava-se, ainda com fulcro na superada teoria imanestista do Direito Romano, que a ação judicial nada mais era do que o próprio direito subjetivo, lesado, em movimento. Por essa razão, incrementada pelo pouco desenvolvi-mento do Direito Processual Civil, não se visualizava a nítida distinção entre o direito de ação em si (de pedir ao Estado o provimento jurisdicional) e o próprio direito material violado.Ora, se a ação e o direito material eram faces na mesma moeda, explicava-se porque a prescrição ex-tintiva atacava o direito de ação e, indiretamente, o próprio direito material violado, que permanecia inerte, despojado de sua capacidade defensiva21.

Alguns autores falam de prescrição da ação, mas lendo-se a explicação de seus conceitos, verifica-se que em verdade desejavam referir-se a pretensão. Tal confusão ocorria, pois o Código Civil de 1916 levava a esta imprecisão vocabular. Ari Pedro Lorenzetti também adverte: “embora alguns doutrinadores continuem falando de prescrição da ‘ação’, nem por isso estão modificando o objeto do instituto que ora nos ocupa. Trata-se apenas de uma impropriedade vocabular, autorizada pelo art. 75 de nosso diploma civil vigente.”22

Considero a corrente que identifica como objeto da prescrição a pretensão a mais acertada e partirei desta premissa para o desenvolvimento das ideias esboçadas neste estudo. Não consigo concordar com a teoria do “efeito forte” da prescrição. A exigibilidade não é da essência do direito; se o fosse, ele não poderia existir sem ela. Mesmo com a prescrição pronunciada, o direito continua existindo, como obrigação natural, mas continua existindo.

2. A prescrição e o Direito do Trabalho

A estreia do instituto da prescrição regulando relações de trabalho no Brasil ocorreu no Códi-go Comercial de 1850, quase um século antes da edição da Consolidação das Leis do Trabalho. Há um histórico de ausência de regras trabalhistas sobre este tema. O Direito do Trabalho apresenta parca regulamentação específica acerca da prescrição, tendo que se valer da aplicação subsidiária de normas do direito comum (conforme autorização concedida pelo artigo 8º da Consolidação das Leis do Traba-lho). Antes da Constituição de 1988, a primeira a elevar ao patamar constitucional a prescrição trabalhista, havia, além das regras celetistas, o Código Civil tratando do tema. Neste período, a ordem de aplicação das normas era a seguinte: inicialmente, era utilizada a Consolidação das Leis do Traba-lho, por ser a norma especializada, e posteriormente o Código Civil, através do permissivo do artigo 8º, parágrafo único, da norma celetista. Com o advento da Constituição de 1988, houve uma alteração nesta sequência. A Constituição, pelo patamar que ocupa, deve ser a primeira a ser aplicada; depois, retorna-se à ordem antiga: Consolidação das Leis do Trabalho e, posteriormente, o Código Civil. Como regra fundamental da prescrição trabalhista, encontra-se o artigo 7º, XXIX, da Consti-tuição:

Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:[...]XXIX – ação, quanto aos créditos resultantes da relação de trabalho, com prazo prescricional de cinco anos para os trabalhadores urbanos e rurais, até o limite de dois anos após a extinção do contrato.23

Como já explanado, existem poucas normas na Consolidação das Leis do Trabalho a respeito. O artigo 11 da Consolidação é a norma que trata sobre o prazo prescricional, mas está sem aplicação 21 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: (abrangendo o código de 1916 e o novo código civil) parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I. p. 476-478. Neste mesmo sentido, aponta Ari Pedro Lorenzetti. A prescrição no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999. p. 18-24.22 LORENZETTI, Ari Pedro. A prescrição no Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1999. p. 19 - 22. O autor está se referindo ao Código Civil de 1916, que na época em que escreveu a obra citada, era a norma vigente.23 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 28.

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desde a edição da Emenda Constitucional 28, de 2000, que alterou a imprescritibilidade das preten-sões dos trabalhadores rurais durante a vigência dos seus contratos de trabalho. A Consolidação das Leis do Trabalho não foi revisada e ficou com o seu texto em descompasso com o da Constituição desde então. Na Consolidação, existem outras regras que tratam sobre prescrição, como a que determina a não fluência de nenhuma prescrição aos trabalhadores menores de 18 anos (artigo 440), a estipulação do prazo prescricional aplicado às férias (artigo 149), a suspensão do prazo por provocação da Comis-são de Conciliação Prévia (artigo 625-G). A Consolidação das Leis do Trabalho termina por tratar apenas de questões peculiares às rela-ções de trabalho, pois as normas fundamentais sobre prescrição estão nos artigos 189 a 204 do Código Civil.

2.1. Os prazos de prescrição no Direito do Trabalho

Analisando o artigo 7º, XXIX, da Constituição, podem-se distinguir dois tipos diversos de pres-crição: 1) a bienal e 2) a quinquenal. A prescrição bienal aplica-se somente quando o contrato de trabalho cessou, indicando que os trabalhadores possuem dois anos após o término da relação de emprego para ajuizarem suas deman-das. Se decorrido o biênio sem o ingresso na justiça, o obreiro terá perdido qualquer pretensão oriunda deste contrato (salvo se tiver ocorrido alguma das causas que influem na contagem da prescrição). Esta característica de fulminar todas as pretensões lhe confere a denominação de prescrição total. A prescrição quinquenal surgiu com a Constituição de 1988, e representa o período de tempo em que é possível postular créditos não adimplidos. Assim, o empregado possui dois anos para postular suas pretensões, podendo pleitear os direitos exigíveis até cinco anos antes do ajuizamento da ação. Tendo em vista que algumas pretensões podem estar prescritas e outras não, o prazo quinquenal, di-ferentemente do bienal, pode ser pronunciado em um processo de forma parcial, fulminando apenas parte das pretensões, podendo deixar outras intactas. Daí surge a denominação de prescrição parcial.

3. Causas que influem na contagem do prazo prescricional

Desde que as ações deixaram de ser perpétuas, iniciaram as alegações dos titulares dos direitos lesados, de dificuldades em exigir sua reparação no prazo legal, e, consequentemente, os pedidos de não contagem do prazo prescricional em decorrência destas adversidades. Muitas eram as justificativas apresentadas: batalhas, doenças, força maior, carência financeira, incapacidade mental, dificuldades de deslocamento e mesmo situações de alta condição social, no que tais pessoas alegavam que devido a sua posição, não podiam estar sujeitas ao prazo prescricional, como estavam os demais indivíduos, etc. Tantas eram as causas e os pedidos de não pronúncia da prescrição, que no lugar de serem a exceção, tornaram-se a maioria, levando a um descrédito do instituto24. Ciente do problema e tentando resolvê-lo, o legislador, a partir das grandes codificações no início do século XIX, passou a elencar taxativamente as hipóteses em que a prescrição deixa de correr,25 e as codificações até hoje seguem este caminho. Assim, excluídas as situações expressamente descritas pela lei, a prescrição corre desde o nascimento da pretensão, sem nenhum obstáculo. A legislação de nosso país estipula que a prescrição está sujeita a causas que influem no cômputo de seu prazo. Estas causas podem ser de três naturezas: impeditivas (também chamadas de impedientes), suspensivas ou interruptivas26. Podem ser aplicadas às pessoas jurídicas ou físicas. Boa parte das legislações espalhadas pelo mundo contempla situações nas quais o prazo prescricional não é computado27.

24 CARPENTER, Luiz F. Da prescrição: artigos 161 a 179 do Código Civil. 3. ed. atual. notas por Arnold Wald. Rio de Janeiro: Na-cional de Direito, 1958. v. I. p. 306 - 08, e SILVA, Homero Mateus da. Estudo crítico da prescrição trabalhista. São Paulo: LTr, 2004. p. 172.25 CARPENTER, Luiz F. Da prescrição: artigos 161 a 179 do Código Civil. 3. ed. atual. notas por Arnold Wald. Rio de Janeiro: Na-cional de Direito, 1958. v. I. p. 306 - 308.26 Vilson Rodrigues Alves usa a expressão “imunidade à prescrição” ao se referir às causas que influenciam no seu cômputo, posto que a prescrição não estará operando seus efeitos na constância destas circunstâncias, deixando “imunizada” a pessoa que dela se beneficia. ALVES, Vilson Rodrigues. Da prescrição e da decadência no novo Código Civil. 2 ed. rev. Campinas: Bookseller, 2004. p. 543.27 Vilson Rodrigues Alves estudou várias leis em torno do mundo sobre o tema e faz interessante apanhado em sua obra: Da pre-scrição e da decadência no novo Código Civil. 2. ed. Revisada. Campinas: Bookseller, 2004. p. 543 et seq.

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Alguns doutrinadores usam o termo causas suspensivas para fazer referência tanto às impe-ditivas como às suspensivas28. Neste estudo, será usada a divisão tradicional do Código Civil nas três espécies descritas. A técnica utilizada pelo legislador separou as causas interruptivas das impeditivas e suspensi-vas, mantendo estas duas últimas dispostas nos mesmos artigos, aliás, mantendo a mesma divisão do Código Civil de 1916.

3.1. Causas impeditivas

Causa impeditiva é aquela que sequer permite que o cômputo do prazo prescricional inicie. A pretensão já existe, apenas não está correndo o prazo para seu exercício, que só iniciará após de-saparecida a situação que paralisava seu curso. Mas observe-se, a parte pode desde já exercitar seus direitos. Não há óbice nisto, o que existe é um privilégio de não contar o prazo na duração da causa. Exemplifico com a hipótese do absolutamente incapaz que prestou trabalho subordinado. Esta contratação é nula, mas o trabalhador possui o direito de haver todas as parcelas trabalhistas devidas pela lei. É dado a ele o privilégio da contagem do prazo prescricional iniciar somente com o seu in-gresso na maioridade. Todavia, nada impede que antes de completar 18 anos este indivíduo promova a reclamação trabalhista para receber seus direitos suprimidos, através de seus representantes legais. Resumindo, nas causas impeditivas, a pretensão já existe, o direito já é exigível, o que ocorre é uma imunidade à prescrição, destinada a alguns indivíduos em situações especiais. Se estes desejarem, podem postular seus direitos em juízo mesmo com a prescrição sequer tendo iniciado seu caminho.

3.2. Causas suspensivas

Causa suspensiva é a circunstância que suspende o cálculo do prazo prescricional, fazendo com que este pare de fluir enquanto aquela perdurar e recomece a contar ao seu cessamento. O re-começo da trajetória da prescrição não desprezará o tempo já transcorrido antes de suceder a causa suspensiva, ou seja, o tempo que já havia fluído será também computado no prazo prescricional. Relembro que o Código Civil disciplina que as causas suspensivas e as impeditivas são as mes-mas, mas seus conceitos não se confundem. Nas impeditivas, o prazo sequer inicia sua contagem en-quanto não desaparecer o motivo que as originou; nas suspensivas, o motivo é superveniente ao início da contagem da prescrição. Nas causas impeditivas, a prescrição não inicia a correr; nas suspensivas, a contagem, já iniciada, fica paralisada. Isto significa que quando a causa é suspensiva, a pretensão nasce antes do motivo ensejador da paralisação, enquanto nas causas impeditivas a pretensão nasce depois da manifestação da impediência. A diferenciação entre as hipóteses suspensivas e impeditivas pode ser visualizada através de um exemplo envolvendo uma circunstância que pode se travestir de qualquer uma das causas: a vigên-cia da sociedade conjugal. Será ocorrência de impedimento se as partes, que já vivem em sociedade conjugal, passam a ter entre si uma relação de emprego, como o marido dentista que torna sua esposa a recepcionista de seu consultório particular. A prescrição que em qualquer outra relação de emprego correria do início do contrato de trabalho, não iniciará, pois há algo impedindo seu curso. Quando as pretensões oriundas da relação de emprego nascerem, já existirá uma causa impedindo que a prescri-ção siga seu rumo. Ou seja, a pretensão é posterior à existência da impediência. Será suspensão da prescrição se as partes já possuírem uma relação de emprego entre elas, como a hipótese de uma celebridade e seu guarda-costas, e vêm a contrair matrimônio. A prescrição que vinha correndo desde o início da relação de emprego será suspensa. Ou seja, as pretensões oriun-das da relação de emprego são pretéritas à suspensão, já existiam antes mesmo da sociedade conjugal ser constituída.

3.3. Hipóteses de causas impeditivas e suspensivas

Como ambas as causas são tratadas conjuntamente pelo legislador, desta forma serão elen-cadas. As hipóteses impeditivas e suspensivas podem ser encontradas tanto na legislação trabalhista, quanto na legislação civil. Devido ao fato deste trabalho se debruçar sobre a prescrição trabalhista,

28 CARPENTER, Luiz F. Da prescrição: artigos 161 a 179 do Código Civil. 3. ed. atual. notas por Arnold Wald. Rio de Janeiro: Nacion-al de Direito, 1958. v. I. p. 302.; SILVA, Homero Mateus da. Estudo crítico da prescrição trabalhista. São Paulo: LTr, 2004. p. 170.

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observarei primeiro a legislação laboral. A Consolidação das Leis do Trabalho traz em seu artigo 440 a menoridade como causa impeditiva do cômputo do prazo prescricional:

Art. 440. Contra os menores de 18 anos não corre nenhum prazo de prescrição29.

A Consolidação das Leis do Trabalho ainda traz em seu texto uma hipótese de causa suspensi-va, presente em seu artigo 625-G:

Art. 625-G. O prazo prescricional será suspenso a partir da provocação da Comissão de Conciliação Prévia, recomeçando a fluir, pelo que lhe resta, a partir da tentativa frustrada de conciliação ou do esgotamento do prazo previsto no art. 625-F30.

A legislação trabalhista não é exaustiva da matéria, e o artigo 8º, parágrafo único, da Conso-lidação das Leis do Trabalho traz a possibilidade de aplicação do direito civil:

Art. 8º. [...] Parágrafo único. O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho, naquilo em que não for incompatível com os princípios fundamentais deste31.

Sendo assim, deve ser buscada a regra civil sobre o tema. As causas impeditivas e suspensivas da prescrição estão presentes nos artigos 197 a 201 do Código Civil e são as seguintes:

Art. 197. Não corre a prescrição:I - entre os cônjuges, na constância da sociedade conjugal;II - entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;III - entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela ou curatela.Art. 198. Também não corre a prescrição:I - contra os incapazes de que trata o art. 3º;II - contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios;III - contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.Art. 199. Não corre igualmente a prescrição:I - pendendo condição suspensiva;II - não estando vencido o prazo;III - pendendo ação de evicção.Art. 200. Quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a pres-crição antes da respectiva sentença definitiva.Art. 201. Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só aproveitam os outros se a obrigação for indivisível.32

As causas impeditivas e suspensivas podem ser divididas em dois grandes grupos: 1) que en-foca a natureza da relação que liga entre si duas pessoas; 2) que enfoca a condição da pessoa em si, considerada independentemente da relação que tenha com outras33. O primeiro grupo de causas engloba as hipóteses previstas no artigo 197 do Código Civil e podem ser denominadas de causas subjetivas bilaterais. A prescrição não corre, nestes casos, exclusi-vamente para as pretensões que envolvam relações jurídicas nas quais as pessoas descritas nos incisos do dispositivo legal citado constem como credor e devedor uma da outra. Assim, a prescrição não correrá em uma pretensão que o tutor tenha contra seu tutelado, mas correrá em qualquer outra pre-tensão que o tutor tenha contra terceiros. Neste conjunto, as pessoas beneficiadas não se enquadram na máxima contra non valentem agere non currit praescriptio. Não se trata de indivíduos que não podem agir. Trata-se, isto sim, de priorizar algumas relações em detrimento momentâneo do instituto da prescrição. Preferiu-se estatuir que a prescrição não corre entre os cônjuges na constância da so-ciedade conjugal, colocando em relevo a importância da paz familiar e consequentemente deixando

29 BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007 p. 445.30 BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 763.31 BRASIL. Decreto-Lei n. 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 712.32 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 182 – 183. 33 CARPENTER, Luiz F. Da prescrição: artigos 161 a 179 do Código Civil. 3. ed. atual. notas por Arnold Wald. Rio de Janeiro: Na-cional de Direito, 1958. v. I. p. 304 - 305.

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em segunda mão a contagem do prazo. Com certeza, a harmonia ficaria abalada se um dos parceiros litigasse contra o outro. São razões de ordem moral as que sustentam a existência de tais causas. As causas do segundo grupo (causas subjetivas unilaterais), descritas no artigo 198 do diploma civil (podemos incluir nesta categoria também o artigo 440 da Consolidação das Leis do Trabalho), di-zem respeito à pessoa propriamente dita, ao indivíduo contemplado pela norma. Dirigem-se a proteger os absolutamente incapazes descritos no artigo 3º do Código Civil, o trabalhador menor de 18 anos, os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos Municípios e os que se acharem ser-vindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra. Procura a lei protegê-los, não havendo relevância em quem ocupa o outro polo da relação jurídica. Assim, o incapaz não terá o prazo de prescrição correndo em nenhuma pretensão que possua, seja dirigida a quem quer que seja. São causas que operam erga omnes, fazendo com que a prescrição não corra contra qualquer um dos beneficiados, podendo, isto sim, correr a favor deles. Significa dizer que se um trabalhador está ausente do país em decorrência de prestação de serviço público e pretende postular direitos oriundos deste trabalho que está reali-zando, a prescrição quanto a eles só começará a correr quando retornar ao país. Se um terceiro possui contra o obreiro uma pretensão de indenização por danos materiais, a prescrição correrá normalmente durante o tempo em que estiver fora do país. A existência desta categoria de causas se justifica pela expressão contra non valentem agere non currit praescriptio, pois os beneficiados são indivíduos que, pela peculiar situação que se encontram, não possuem condições plenas de exercer seus direitos. Não se trata de valorizar um vínculo entre indivíduos, como fazem as causas subjetivas bilaterais, que consideram, não a pessoa, mas a relação em que estão envolvidas. Nas causas subjetivas bilaterais, o que breca a prescrição é a sociedade conjugal, o poder familiar, a tutela e a curatela. Nas causas subjetivas unilaterais, o objeto que está sendo resguardado não é uma relação entre indivíduos, mas os direitos de pessoas individualmente consideradas, em qualquer relação que se encontrem. Todas estas causas representam um privilégio, e não uma vedação ao exercício do direito de ação, o que, aliás, seria absolutamente inconstitucional. Representam um benefício que freia a marcha prescricional. Mas se as partes, mesmo contempladas com o instrumento que paralisou a pres-crição, desejarem ingressar em juízo, nenhum óbice há nesta atitude.

3.4. Causas interruptivas

A causa interruptiva faz com que a contagem do prazo prescricional cesse, nisto se asseme-lhando à causa suspensiva. A diferença entre elas reside na utilidade que se dará ao tempo que passou antes de suas manifestações. Enquanto na causa suspensiva o recomeço da contagem do prazo não desprezará o que sucedeu antes de sua apresentação, na causa impeditiva o lapso transcorrido não será contado por ocasião do recomeço do prazo, que reinicia do zero. Enquanto nas causas impeditivas e suspensivas preserva-se o prazo prescricional por se en-tender que existem situações particulares que realmente dificultam à parte fazer valer seus direitos, nas causas interruptivas é exatamente o contrário. Nestas, o indivíduo que poderá usufruir de seus benefícios não se mostrou inerte, indo em busca de seus direitos. Justamente esta luta pelo direito é que faz, dentro das hipóteses previstas em lei, a interrupção do prazo prescricional. As descrições acima realizadas formam as três distinções apontadas por Câmara Leal para di-ferenciar a interrupção da suspensão34. Sendo que este estudo analisa agora o último tipo de hipótese que interfere no curso da prescrição, utilizo a distinção de Câmara Leal, mas completo-a, englobando as três espécies: impeditivas, suspensivas e interruptivas. As diferenças entre elas seriam:

1) quanto ao fundamento; a impediência e a suspensão se baseiam na impossibilidade de agir, enquanto a interrupção se pauta justamente no contrário, no fato de a parte ter demonstrado ação;

2) quanto ao curso da prescrição; a impediência impede que ele flua, a suspensão o paralisa, e a interrupção faz com que o tempo transcorrido seja totalmente desprezado;

3) quanto à vontade das partes para sua ocorrência; a impediência e a suspensão ocorrem indepen-dente da vontade das partes, bastando que se encontrem no estado descrito pela lei; já a inter-rupção depende da vontade concreta da parte, que precisa agir para interromper a prescrição.

34 LEAL, Antônio Luiz da Câmara. Da prescrição e da decadência: Teoria geral do direito civil. 4. ed. atual. por José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1982. p. 172 - 173, repetido por THEODORO JÚNIOR, Humberto. Comentários ao Novo Código Civil: Dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da decadência. Da prova. Arts. 185 a 232. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. III. Tomo II. p. 250.

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Sendo que a interrupção depende da vontade da parte, que pratica ato inequívoco que corta a inércia, este ato pode ser classificado através de quem o produz, podendo ser tanto originário do credor (incisos I a V do artigo 202 do Código Civil), quanto do obrigado (inciso VI do artigo 202 do Có-digo Civil)35, ou também oriundo de terceiros interessados. A prescrição, pela sistemática do atual Código Civil, pode ser interrompida apenas uma vez, daí advindo a característica da unicidade, enquanto no diploma de 1916 não havia nenhum limite le-gal. Não importa a forma pela qual a prescrição se interrompeu, uma vez determinada a recon-tagem do prazo, nenhuma outra das causas previstas, mesmo que diversa da anteriormente utilizada, será capaz de produzir o mesmo efeito. Vale dizer, se a parte utilizou um protesto judicial, se poste-riormente intentar ação judicial, a citação realizada nesta não terá o poder de interromper a prescri-ção. Uma questão peculiar quanto ao Direito do Trabalho deve ser observada quando se trata da possibilidade única de interrupção da prescrição. A relação de emprego, sendo típico contrato a trato sucessivo, está sujeita a constantes violações de direitos, que fazem surgir pretensões quanto a eles. Pode ocorrer e ser válida mais de uma vez a utilização de instrumentos de interrupção da prescrição durante a relação de emprego, inclusive repetindo-se os meios de interrupção. Justifico. Defendo que as entidades sindicais podem efetuar protestos interruptivos da prescrição durante a vigência da rela-ção de emprego. Errado se pensar que só poderia ser efetuado um protesto relativo a cada empregado. Pode ser efetuada uma interrupção relativamente a cada pretensão, pois como em um contrato de trato sucessivo as pretensões vão se renovando, podem ser renovadas as interrupções. Observe-se que não se está descumprindo a regra da unicidade da interrupção, pois cada pretensão terá somente uma vez seu prazo prescricional interrompido. A situação de ocorrência de protesto durante a relação de emprego e posterior ação judicial promovida pelo empregado merece observação. Se o sindicato promoveu a medida do artigo 202, II, do Código Civil durante o contrato de trabalho (falo em relação à iniciativa sindical, pois o empregado, isoladamente, não fará isto, pois perderá seu emprego), houve interrupção da prescrição. Se o obrei-ro, vindo a deixar o posto de trabalho que possuía, ingressar na justiça, a citação nesta ação não terá mais o condão de interromper o prazo (ao menos quanto às pretensões que já sofreram interrupção da prescrição, novas pretensões deduzidas poderão receber a benesse legal). A prescrição que foi inter-rompida no protesto não poderá mais sofrer este tipo de óbice, e seguirá seu rumo, até que a parte ajuíze a ação judicial, e finalmente busque o cumprimento do direito que lhe foi negado; ou que a parte não ajuíze a ação, e a prescrição se consume em definitivo.

3.5. Hipóteses de causas interruptivas

A legislação trabalhista não descreve hipóteses de causas interruptivas, no que se devem utilizar subsidiariamente as disposições do Código Civil, desde, é claro, que sejam compatíveis com o Direito do Trabalho. O diploma civil trata da questão nos artigos 202 a 204:

Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez, dar-se-á:I - por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;II - por protesto, nas condições do inciso antecedente;III - por protesto cambial;IV - pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores;V - por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;VI - por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.Art. 203. A prescrição pode ser interrompida por qualquer interessado.Art. 204. A interrupção da prescrição por um credor não aproveita aos outros; semelhantemente, a interrupção operada contra o codevedor, ou seu herdeiro, não prejudica aos demais coobrigados.§ 1º A interrupção por um dos credores solidários aproveita aos outros; assim como a interrupção efe-tuada contra o devedor solidário envolve os demais e seus herdeiros.

35 Utilizando mesma classificação: ANDRADE, Manuel A. Domingues de. Teoria geral da relação jurídica. Coimbra: Almedina, 1998. v. 2. p. 459; THEODORO JUNIOR., Humberto. Comentários ao Novo Código Civil: Dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e da decadência. Da prova. Rio de Janeiro: Forense, 2003. v. III. Tomo II. p. 251.

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§ 2º A interrupção operada contra um dos herdeiros do devedor solidário não prejudica os outros her-deiros ou devedores, senão quando se trate de obrigações e direitos indivisíveis.§ 3º A interrupção produzida contra o principal devedor prejudica o fiador.36

Os atos que possuem o condão de interromper a prescrição podem ser momentâneos ou du-radouros. Momentâneos como os protestos, em que a prescrição interrompida volta a fluir a partir da meia-noite do dia em que este ocorreu. Duradouros com o processo no qual houve citação válida, pois durante todo o transcurso da ação o prazo não estará correndo, somente voltando a fluir do último ato desta. Quanto ao protesto judicial o TST editou a OJ 392 da SDI-1, que dispõe:

PRESCRIÇÃO. INTERRUPÇÃO. AJUIZAMENTO DE PROTESTO JUDICIAL. MARCO INICIAL. O protesto judicial é medida aplicável no processo do trabalho, por força do art. 769 da CLT, sendo que o seu ajuizamento, por si só, interrompe o prazo prescricional, em razão da inaplicabilidade do § 2º do art. 219 do CPC, que impõe ao autor da ação o ônus de promover a citação do réu, por ser ele incompatível com o disposto no art. 841 da CLT.

4. Contagem da prescrição nos casos de interrupção

Nas hipóteses em que ocorre a interrupção da prescrição, cumpre verificar como resta a con-tagem do prazo, tanto o bienal quanto o quinquenal, posto que a solução não é idêntica para ambos. O prazo de dois anos para se ajuizar a demanda após o fim do contrato de trabalho tem solução facílima. Sendo interrompida a prescrição, a contar do último ato do processo, o autor terá integralmente devolvidos os dois anos para intentar a ação. Exemplificando: se o empregado tem como data final de seu contrato de trabalho o dia 2.2.2007, possuirá dois anos para ajuizar sua ação. Se o obreiro ajuizou reclamatória em 2.2.2008, nesta data foi interrompida a prescrição. No momento da primeira audiência, marcada para 2.2.2009, o empregado não pôde comparecer, não mandando substituto com poderes para evitar o arquivamento. Nesta mesma ocasião, o juiz ordenou a extinção do processo sem resolução do mérito, sendo este o último ato da ação. Sendo que a prescrição foi interrompida, nesta data recomeçará o seu cômputo, sem ser incluído o tempo já transcorrido. Desta forma, a parte poderá intentar sua ação até o mês de fevereiro do ano de 2011. Quanto à prescrição quinquenal, a questão também é simples, mas estranhamente não tem sido bem compreendida nos tribunais. Deve ser lembrado que a natureza das prescrições é distinta. Enquanto a prescrição bienal tem a característica de ser total, de quando pronunciada fulminar todas as pretensões do autor, a quinquenal é parcial. Ela pode parcialmente exterminar certas pretensões, deixando outras intocadas. Por esta característica, ela vai gradualmente atuando, diferentemente da bienal, que se apresenta por meio de uma atuação única. Com esta explicação, posso analisar o caso concreto, nas mesmas bases do exemplo fornecido para a prescrição bienal. O empregado que tem o início do seu contrato de trabalho em 2.2.2001, e o final em 2.2.2007, se ajuizar reclamatória em 2.2.2008, nesta data será interrompida a prescrição. Observe-se, porém, que a prescrição quinquenal já está operando. Ingressando com a ação em feverei-ro de 2008, o autor não está sujeito à pronúncia da prescrição apenas das verbas vencidas e exigíveis a partir de 2.2.2003. No restante, a prescrição já está consumada. Continuando o exemplo, na primeira audiência, marcada para 2.2.2009, se o empregado não comparecer, o juiz ordenará o arquivamento do processo, recomeçando nesta data o cômputo da prescrição, desconsiderando o tempo já transcorrido. O prazo recomeçará a contar do zero para as pretensões ainda vivas, inclusive no que tange ao cômputo quinquenal. Não estarão prescritas as mesmas pretensões que assim não estavam no momento do ajuizamento da ação. Tal resultado dá-se porque não é possível “ressuscitar” pretensões que já foram fulminadas pelo tempo37. Observe-se que o entendimento contrário levaria a injustiças. Exemplifico. Empregado traba-lhou durante dez anos em uma empresa e levou um ano a contar do final do contrato de trabalho para ingressar com sua ação. Este empregado possui não prescritas as pretensões dos últimos quatro anos de labor (o outro ano, que completaria o quinquênio, é o que ele esperou para ingressar em juízo, posto

36 BRASIL. Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Vade Mecum, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 183.37 Com o mesmo entendimento: PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Prescrição trabalhista: questões controvertidas. São Paulo: LTr, 1996. p. 29 - 31.

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que a prescrição quinquenal salvaguarda os cinco anos anteriores ao ajuizamento da ação, e não os cinco últimos anos do contrato). Se o reclamante deixasse arquivar o processo, e isso devolvesse a ele todo o prazo prescricional, ele teria de volta os cinco anos anteriores ao final do contrato. Isto seria uma aberração, pois teria ele as mesmas verbas a serem pleiteadas de quando o contrato se extinguiu. Seria como se o empregado não tivesse esperado nem um dia para ingressar com a ação desde que foi rompido o vínculo de emprego. O arquivamento do processo passaria a ser vantajoso, pois “ressuscita-ria” pretensões que estavam prescritas. Seria estimulante deixar arquivar demandas que teriam como intuito apenas a interrupção da prescrição, gerando ainda mais volume de processos para a Justiça do Trabalho. Como se vê, impossível concordar com esta ideia, como também impossível raciocinar que nada aconteceria com a prescrição quinquenal em decorrência do ajuizamento da ação. Entender que ela continua a correr, sem ser interrompida, é além de negar a lei, atitude de imensa injustiça com o trabalhador que demonstrou inequivocamente que está na busca de seus direitos. Assim, reafirmo que a prescrição quinquenal é, sim, passível de ser interrompida, mas só voltarão a ter o prazo computado do zero as pretensões que ainda não estavam prescritas. Afinal, só pode ser interrompido o que está em pleno curso. Para as pretensões que já se encontravam prescritas, não há o que se questionar de interrupção. O mesmo entendimento que acima foi exemplificado através do ajuizamento da reclamatória trabalhista deve ser aplicado para as ações cautelares de protesto interruptivo da prescrição. Quando em uma pretensão ocorrer interrupção do cômputo através de protesto judicial, voltará o prazo a cor-rer, logo após o ajuizamento do protesto (nos termos da OJ 392 SDI-1 do TST), sendo devolvido à parte o prazo de cinco anos relativamente àquela pretensão.

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Reconhecimento desociedades estrangeiras

no BrasilSilvio Javier Battello Calderon1

José Nosvitz Pereira de Souza2

Resumo

O presente trabalho está dedicado ao estudo das sociedades estrangeiras.Primeiramente analisa o direito aplicável às sociedades estrangeiras, isto é, os diversos critérios jurídicos existentes para atribuir nacionalidade às pessoas jurídicas de direito privado. Seguidamente o texto informa sobre as formas jurídicas que as empresas estrangeiras podem utilizar para dar cumprimento a seu objeto social no Brasil.

Palavras-chave

Sociedades Estrangeiras. Nacionalidade. Atividades no Brasil.

Abstract

This paper is dedicated to the study of foreign companies. First examine the law applicable to foreign companies. Then the text informs the legal forms that foreign companies can use to conduct economic activities in Brazil.

Keywords

Foreign Companies. Nationality. Activities in Brazil.

INTRODUÇÃO

A participação de empresas fora do país em que se registraram inicialmente é habitual. Os avanços tecnológicos nas telecomunicações, transporte, pagamentos eletrônicos etc., assim como o crescimento global da economia, fizeram com que as fronteiras ficassem dia a dia mais próximas. Atualmente, não é estranho que as notícias informem sobre empresas estrangeiras realizando investimentos no Brasil, seja inaugurando planta industrial, seja abrindo estabelecimento comercial. Para que a empresa estrangeira consiga realizar atividades econômicas em outro país, é necessário um marco jurídico interno do Estado receptor da sociedade estrangeira. Este marco jurídico encontra-se nas normas de Direito Internacional Privado (em diante DIPr) que tratam da sociedade estrangeira. Sobre o tema, independente do ordenamento jurídico sob análise, é necessário fazer referência ao princípio geral, expresso ou tácito, do reconhecimento da sociedade estrangeira como pessoa jurídica. A presença de um princípio positivo dedicado ao reconhecimento da sociedade estrangeira compreende duas possibilidades: I) analisar o direito aplicável ou a individualização da lei que

(1) Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Especialista em Direito Empresarial pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; Advogado na Argentina e no Brasil; Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.(2) Bacharel em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Coordenador e professor do curso de Direito da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.

Ciências Sociais e Aplicadas

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regulamenta a sociedade; II) a determinação das condições que a sociedade empresarial estrangeira deve cumprir para realizar suas atividades em um estado diferente do qual originariamente pertencia, isto é, o tratamento da sociedade estrangeira pela lei societária local. Estes são dois problemas bem diferentes, mas que estão relacionados. A seguir, a análise de ambos.

I. DIREITO APLICÁVEL

A determinação do direito aplicável às sociedades estrangeiras é o meio pelo qual se consegue dar resposta ao primeiro objeto de nosso estudo, isto é, a determinação e individualização da “lex societatis”. Esta lei determinará a capacidade que é reconhecida à sociedade na ordem interna e por sua vez permite seu reconhecimento universal. Trata-se de um problema próprio do DIPr, e consiste em reconhecer uma situação jurídica concreta — a lei pela qual se rege a sociedade — dentro de um ordenamento jurídico específico, mas, posta validamente em essência dentro de um outro ordenamento. Este efeito é alcançado através do instrumento técnico do sistema jurídico que pretende fazer aplicar a norma estrangeira reconhecida como competente para disciplinar certa área jurídica, neste caso, a lei societária. Geralmente, estas normas estrangeiras são reconhecidas nos ordenamentos receptores, desde que não sejam contrárias a princípios de ordem pública dos mesmos. Sobre o tema, os doutrinadores franceses afirmavam que as sociedades dependem da sua lei nacional, daí ser necessário determinar a sua nacionalidade para descobrir a lei que rege seu estatuto jurídico. Esta não é a única posição existente, muitos autores preferem referir-se ao domicílio societário em vez da nacionalidade. Assim, a nacionalidade como fator de conexão indicativo da lei pessoal das sociedades é repudiado, principalmente, pela doutrina e normas de DIPr da Argentina, Uruguai e Paraguai, que se mostram a favor da conexão do domicílio, indispensável para atividade societária. Esta posição desenvolveu-se na Argentina com a “Doutrina Irigoyen”, que surge a partir de uma reclamação do governo inglês derivada de um incidente ocorrido com a sucursal do Banco de Londres y Del Rio de la Plata, constituída na Argentina como sociedade anônima com estabelecimento e domicílio principal em Buenos Aires; a matriz era uma joint stock company constituída em Londres, com domicílio em Inglaterra. O Ministro de Relações Exteriores da Argentina, na época Bernardo Yrigoyen, afirmou que as pessoas jurídicas carecem de nacionalidade, e “devem exclusivamente sua existência à lei do país que as autoriza”, que isto é assim “mesmo que elas sejam exclusivamente formadas por cidadãos estrangeiros”, e que “não tem direito à proteção diplomática”1. A utilização do conceito nacionalidade para as sociedades gera várias dificuldades no plano jurídico, entre outras coisas, porque a noção clássica de nacionalidade foi concebida para pessoas físicas e resulta bastante difícil trasladá-la para as pessoas jurídicas sem uma adaptação prévia. O nascimento das pessoas físicas, que constitui um fato jurídico, determina o reconhecimento da personalidade humana, reconhecimento este de âmbito universal. Aplica-se aos indivíduos, de forma geral, a lei da sua nacionalidade ou de seu domicílio conforme seja o entendimento das normas de DIPr do foro. Diferente é a situação das sociedades empresariais e das pessoas jurídicas em geral, que nascem de um ato jurídico, como é o contrato que lhe dá origem. O reconhecimento de sua personalidade jurídica depende do cumprimento de uma série de requisitos legais que variam de um país a outro. Lembremos, ainda, que a nacionalidade, em sentido estrito, constitui um vínculo político entre o indivíduo e o Estado, e resulta difícil imaginar esta situação entre um Estado e uma pessoa jurídica. Isto levou vários juristas a reagir contra a nacionalidade das sociedades e aportarem vigorosos argumentos em defesa de suas teses2. A diversas posturas existentes sobre a matéria ficaram mais evidentes após o julgamento do caso Barcelona Traction pelo Tribunal Internacional de Justiça, em 1970, que demonstrou serem os critérios aplicáveis em matéria da nacionalidade múltiplos e mal hierarquizados3. O tema também é complexo devido à suas profundas implicações políticas e econômicas, não só no âmbito interno dos

1 Cf: ARROYO, Diego Fernandez. Derecho internacional privado de los estados del Mercosur. Buenos Aires: Zavalia, 2003, págs. 1310-1311.2 Para uma análise detalhada dos argumentos doutrinários de defensores e críticos da nacionalidade, veja-se:LOUSSOUARN, Yvon. La condition des personnes morales em droit international prive. In: Academie de Droit International, Recuil des Cours, tome 96, 1959, p.447-552. 3 Barcelona Traction, Light and Power Limited era uma holding constituída no Canadá, controlada por investidores Belgas e que tinhaseu centro de exploração na Espanha. Os conflitos apareceram com a declaração de falência na Espanha, em 1948, e na posterior venda a um grupo privado espanhol de uma parte significativa do patrimônio societário, que era constituído por filias de capitais

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estados, mas também no âmbito das relações internacionais, devido à importância atual das empresas multinacionais e grupos societários4. Aceitando ou não a nacionalidade das sociedades, é inegável a necessidade de um conceito — independente da sua denominação — que sintetize a ligação entre uma sociedade e um Estado, o pertencimento daquele a este. O professor António Márquez dos Santos5 resume a importância prática da nacionalidade em três fundamentos: a) O direito dos estrangeiros, porque em todos os sistemas jurídicos certos direitos são reservados aos nacionais e de seu gozo são excluídos os estrangeiros; b) aplicação de tratados internacionais, pois geralmente os tratados e convenções internacionais criam situações mais favoráveis no que se refere ao gozo de direitos em favor dos nacionais dos estados contratantes em comparação com os demais estrangeiros, e principalmente; c) a proteção diplomática, já que é aqui que a nacionalidade das sociedades revela todo o seu interesse prático e a sua indisponibilidade. Veremos, a seguir, de que forma podem ser agrupados os diversos critérios de atribuição de nacionalidade para as sociedades:

A) Critérios de Regulamentação

1. Critério Fundado na Noção de Contrato Os critérios baseados na noção do contrato social inspiram-se na teoria da autonomia da vontade e manifestam-se: no reconhecimento da liberdade dos sócios de eleger pura e simplesmente a nacionalidade que desejarem na utilização do lugar de constituição e seu homólogo anglo-saxônico, o sistema da incorporação, ou bem; na sede social estatutária. O primeiro critério se fundamenta no direito de livre contratação, sujeita a certas restrições impostas pela ordem pública, que faculta aos sócios, ou diretório, atribuir uma nacionalidade à sociedade. Tal solução oferece sérios perigos em razão dos interesses econômicos comprometidos, especialmente tratando-se das sociedades de capital; e também é criticado por estimular a fraude. Neste sentido, o Código Bustamante estabelece:

Art. 18 – Às sociedades civis, mercantis ou industriais, que não sejam anônimas, terão a nacionalidade estipulada na escritura social e, em sua falta, a do lugar onde tenha sede habitualmente a sua gerência ou direção principal. Art. 19 – A nacionalidade das sociedades anônimas será determinada pelo contrato social e, eventualmente, pela lei do lugar em que normalmente se reúna a junta geral de acionistas ou, em sua falta, pelo contrato de onde funcione o seu principal Conselho administrativo ou Junta diretiva. (sem destaque no original)

Em razão de que estes artigos não agradavam à totalidade dos membros da Sexta Conferência Internacional Americana, agregou-se:

Art. 21 – As disposições do art. 9º, no que se referem a pessoas jurídicas, e as dos arts. 10 ao 20 não serão aplicadas nos Estados contratantes, que não atribuam nacionalidade às ditas pessoas jurídicas.

O segundo e mais importante critério contratual é o da incorporação (incorporation), onde o lugar de constituição, ou incorporação, das sociedades é o que determina sua nacionalidade. Teoria surgida na Inglaterra, foi aplicada pela primeira vez no caso Dutch West Indian Co. and Henriques Van Moses (1724)6. Atualmente é admitida nos demais países da Common law. Na incorporation atribui-se às sociedades a nacionalidade do país em cujo território tenham sido cumpridas as formalidades de constituição, ou seja, onde foram incorporadas ou registradas7. Dicey and Morris afirmam que “a existência de uma companhia estrangeira regularmente criada ou dissolvida, de acordo com a lei

canadenses e espanhóis. O caso pode ser consultado em: http://www.icj-cij.org/docket/index.php?p1=3&p2=3&code=bt2&case=50&k=1a . Acessado em: 10-03-2011.4 Sobre o tema, veja-se: ANGELO, Homer G. Multinational corporate enterprises (some legal and policy aspect of a modern social-economic phenomenon). Academie de Droit International, Recuil des Cours, tome 125, 1968, p.447-607.5 Cf. MÁRQUEZ DOS SANTOS, Antonio. Estudos de Direito da Nacionalidade. Coimbra: Livraria Almeida, 1998, p.87-91.6 Cf.: MÁRQUEZ DOS SANTOS, Antonio. Op.cit, p.54-57. 7 Lord Wright afirmou: “English courts have long since recognized as juristic persons, corporations established by foreing law in virtue of the fact of their creation and continuance under and by that law...But if the creation depends on the act of a foreingn State wich created them, the annulment of the act of creation by the same power will involved the dissolution and non-existence of the corpora-tion in the eye of English law. The will of the sovereign power wich created it can also destroy it.” (Lazard Brothers & Co. vs. Midland

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de um país estrangeiro, é reconhecida pelo tribunal [inglês]”8; o liberalismo deste sistema garante, por uma parte, aos terceiros, um mínimo de segurança, já que o país de registro é conhecido, mas, na verdade, tem os mesmos inconvenientes que o sistema baseado exclusivamente na autonomia da vontade e não protege contra possíveis fraudes9. Pode mencionar-se um terceiro critério, que facilmente pode ser inserido dentro do primeiro, e que utiliza como ponto de conexão para determinar a nacionalidade a sede social estatutária, isto é, a sede que é designada nos estatutos ou no pacto social, sistema adotado anteriormente nos Países Baixos10. Na prática, identifica-se com os precedentes, pois deixa à livre escolha dos sócios a eleição da sede social estatutária e implicitamente a atribuição de uma nacionalidade à sociedade.

2. Critério Fundado na Sede Social Real

Segundo este critério, uma sociedade terá a nacionalidade do estado onde tiver a sede social. Não se desconhece o fato de que a sociedade tem sempre na sua base um acordo de vontade, um contrato, o qual origina uma entidade dotada de personalidade jurídica, mas, o que determina sua nacionalidade e a sede ou assento social. Sobre o que deve entender-se por sede social existem duas correntes. Uma primeira corrente, já superada, considerava como sede o país onde se encontra o centro de trabalho, a principal exploração do objeto social. Este sistema foi o utilizado na França no século XIX, tendo sido abandonado no começo do século XX11. Este critério não é apto para dar respostas definitivas naqueles casos em que as sociedades realizam simultaneamente vários trabalhos de similar importância em diversos paises, ou nos casos de sociedades que realizam sucessivamente trabalhos em território de vários Estados e transladam, por conseguinte, seu centro de trabalho de um país a outro12. A segunda corrente, a dominante, considera que a sociedade tem nacionalidade no país onde funciona a direção ou administração principal, desde onde parte o impulso diretor da empresa. Exemplo disto é o art. L210-3 do Código de Comercio Francês, de 28 de novembro de 2001, que dispõe: Les sociétés dont le siège social est situé en territoire français sont soumises à la loi française13. Para uma correta interpretação sobre qual é, geograficamente, o local da sede social, a jurisprudência francesa exige que a sede social deva ser real (siège effectif) e sincera (não deve existir fraude)14. A característica real da sede social determina-se de acordo com circunstâncias de fato que são objeto de apreciação judicial. Assim, por exemplo, a existência de um simples escritório, onde cumpre funções empregado subalterno, não pode constituir um elemento válido para a determinação da nacionalidade da sociedade. O conceito real procura desbaratar a simulação. Quando a sede social é constituída no estrangeiro com o escopo de evitar normas imperativas, a exemplo da legislação francesa, a conexão fraudulenta tem-se como não realizada. Este é o critério que predomina, além da França, na maioria dos países da Europa continental e em alguns países latino-americano.

3. Critérios Fundados na Nacionalidade dos Sócios

Os representantes deste critério alegam que atrás da máscara da sociedade encontram-se as pessoas físicas dos sócios e acionistas, cuja nacionalidade é a que deve decidir a do ente coletivo que eles formaram. Tratando-se de sociedades de pessoas, bastará saber a nacionalidade dos sócios para decidir a da sociedade, por simples maioria. Este critério começou a ser utilizado na primeira guerra

Bank Ltd. 1933, A.C. 289, pag. 297) citado por: BOGGIANO, Antonio. Curso de derecho internacional privado. 3 ed.. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, pág. 689.8 Citado por: DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 7ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p.486. 9 Sobre o critério da incorporação e a fraude, veja-se a polêmica sentença “Centros” do TJCE, de 9 de março de 1999. Dentro do âmbito comunitário europeu, se uma sociedade é constituída validamente conforme as normas de um Estado comunitário, nada pode opor-se ao desempenho de sua atividade em outro Estado comunitário; a sentença autoriza, no obstante, ao Estado afetado a adotar medidas para prevenir ou sancionar fraudes nos casos em que fosse demonstrado que se pretende evadir as obrigações para com os credores privados ou públicos estabelecidos no território do estado membro afetado. Para mais detalhes do caso, veja-se: ARROYO, Diego Fernandez. Op.cit., p.1312-1313. 10 Cf.:MÁRQUEZ DOS SANTOS, Antonio. Op.cit., p.57. 11 O centro da exploração como critério para determinar a nacionalidade não desapareceu totalmente da França, existe jurisprudência que faz referência ao centro de exploração cumulativamente com outro critério.Cf.: MARQUEZ DOS SANTOS, Antonio. Op.cit., p.61, nota 190.12 Neste sentido, veja-se: ARROYO, Diego Fernandez. Op.cit, p.1310.13 Disponível em: http://www.legifrance.gouv.fr/affichCodeArticle.do;jsessionid=C5ED052D92D2C0559C222FF670BED2B9.tpdjo16v_2?idArticle=LEGIARTI000006222350&cidTexte=LEGITEXT000005634379&dateTexte=20120513; Acessado: 07-03-2011. 14 Sobre a jurisprudência francesa: http://www.legifrance.gouv.fr/initRechJuriJudi.do. Acessado: 07-03-2011.

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mundial, basicamente por franceses, ingleses e italianos para identificar as sociedades controladas por potências inimigas. Tratando-se de sociedades de capital, deverá atribuir-se à sociedade a nacionalidade dos acionistas que possuam a maioria das ações, mediante a intervenção da teoria do controle15. Este sistema tem o inconveniente de que a cada alteração da maioria abrigaria a sociedade a reconstituir-se para obedecer às prescrições da nova lei. Por outro lado, a teoria do controle é um instrumento de difícil manuseio e que exige por parte do juiz investigações em algumas situações delicadas: como determinar a nacionalidade do acionista, quando as ações são ao portador, ou quando o capital tinha sido subscrito em vários países? Pode fazer-se uma aplicação cumulativa das diferentes formas de controle? Por estas incertezas jurídicas, o controle não pode ser analisado como critério base de atribuição da nacionalidade às sociedades (como são os da incorporation ou da sede social). Porém, há duas aplicações práticas importantes: a) como ferramenta para os tribunais, quando pretendem levantar o véu da personalidade jurídica (to lift the corporate veil), para assim descobrir os verdadeiros interesses econômicos que se ocultam por detrás do ente coletivo16, e também como; b) técnica legislativa, quando o legislador nacional entende que determinados setores da economia — navegação, imprensa, energia etc. — devem estar em mãos de acionistas locais ou controlada por administradores nacionais.

B) Solução Nacional

As primeiras normas que tratavam do estatuto aplicável às sociedades estrangeiras no Brasil apareceram na Introdução ao Código Civil de 1916, Lei 3.071 de 01 de janeiro de 1916, que estabeleciam:

Art. 19. “São reconhecidas as pessoas jurídicas estrangeiras” Art. 21. “A lei nacional das pessoas jurídicas determina-lhe a capacidade”

Estes artigos não deixavam claro qual era o sistema adotado, o que permitia confusões conceituais. As dúvidas foram dissipadas com o advento da nova Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, hoje Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro (em diante LINDB), que acolheu como critério determinador da nacionalidade o país onde foi constituída a sociedade17, ou seja, o sistema da incorporação, similar ao Inglês. Este sistema, que é o vigente, tem uma aparente contradição com o art. 1.126 do Novo Código Civil (em diante CC), Lei 10.406, de 10 de janeiro de 200218, que por sua vez reproduz, com quase idêntica redação, a normativa da Lei das Sociedades por Ações19 (em diante Lei das S.A.), estabelece um critério diferente em relação à nacionalidade das sociedades. O dispositivo reclama o atendimento de duas condições para que se verifique a nacionalidade brasileira da empresa: a) constituição da sociedade conforme a lei brasileira; b) a fixação de sua sede no Brasil. O não cumprimento de qualquer destes requisitos faz com que a sociedade seja considerada estrangeira. Esta contradição é só aparente, porque a Lei de Introdução cuidou de um problema de natureza internacional, indicando a solução para as hipóteses em que existam dúvidas sobre a nacionalidade de uma determinada pessoa jurídica, com vínculos de subordinação a mais de um país. Isso ocorrendo, prevalecerá o critério do país da constituição. Entretanto, a regulamentação do CC, idêntica à Lei das S.A., tem uma finalidade muito diferente. São normas de direito interno que visam a determinar quando se está ante uma sociedade

15 Sobre a teoria do controle no direito brasileiro, veja-se: COMPARATO, Fabio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. 16 Para um estudo aprofundado do tema, veja-se: DOBSON, Juan Malcom. El abuso de la personalidad jurídica. Buenos Aires: De-palma, 1985; e “Lifting the Veil” In: Four Countries: the Law of Argentina, England, Frence and the United States. In: The International and Comparative Law Quarterly, v. 35. Oxford, 1986, p. 839-863. 17 Art. 11 – As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.18 Art. 1.126 - É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua adminis-tração.19 Os art. 59 a 73 da Lei das Sociedades por Ações, Decreto-lei 2.627 de 26 de setembro de 1940, foram mantidos vigentes peloart. 300 da nova Lei das Sociedades por Ações, Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Com a entrada em vigor dos art. 1.123 a 1.141 do Novo Código Civil, o 11 de janeiro de 2003, as normas da Lei das S.A. sobre sociedades estrangeiras sofreram uma revogação tácita, só tendo na atualidade aplicação complementária

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brasileira, motivo pelo qual exige mais que a LINDB, requerendo-se, além da constituição, que as empresas tenham suas sedes no Brasil. Trata-se do sistema da incorporação mais sede social no Brasil. Assim, para o reconhecimento de sociedades estrangeiras como sujeito de direito, aplica-se a regra da LINDB. A aceitação da personalidade jurídica das empresas estrangeiras permite que as mesmas possam comprar imóveis, manter contas-correntes bancárias, iniciar demandas judiciais e, em geral, realizar todos aqueles atos permitidos pela legislação brasileira às pessoas jurídicas, sempre que estas sociedades estrangeiras não estejam dando cumprimento a seu objetivo social.

II. FUNCIONAMENTO NO BRASIL

O segundo problema do reconhecimento de sociedade estrangeira trata dos casos em que empresas domiciliadas em certo país pretendem estender suas atividades a outro. Não se trata do simples reconhecimento da sociedade estrangeira como ente jurídico. O que se indaga aqui é a possibilidade da empresa estrangeira realizar negócios de forma habitual em outro país e, sendo viável esta possibilidade, determinar quais são os requisitos que as mesmas devam cumprir. Claro está que, como requisito primário para o funcionamento destas sociedades estrangeiras em território nacional, deverá respeitar-se alguns dos critérios atributivos da nacionalidade antes analisados: contratuais, de sede real e de nacionalidade dos sócios. Reconhecida a existência de empresa estrangeira por algum destes sistemas, podemos afirmar que os países, em geral, aceitam que sociedades sediadas no exterior realizem operações em território nacional. O que varia é a forma em que essas operações são realizadas e o grau de permeabilidade que as normas do território nacional possuem em tais circunstâncias. Como estes requisitos variam de país a país, analisaram-se somente os do direito brasileiro. Enquanto o reconhecimento da personalidade jurídica das sociedades estrangeiras, para o exercício isolado de direitos, é pleno e automático, nos termos do art. 11 da LINDB, a solução não é a mesma para o estabelecimento ou funcionamento de tais empresas em um país diferente, neste caso o Brasil, daquele onde foram constituídas. Este segundo problema é consequência e deriva do primeiro, já que a realização do objeto social de sociedade estrangeira em território nacional só é possível após reconhecida a personalidade jurídica. No direito brasileiro, o funcionamento de sociedade estrangeira pode ser feito por duas vias diferentes: a) constituindo uma nova sociedade, juridicamente independente e com personalidade própria, sob o controle da matriz estrangeira, denominada sociedade subsidiária20, ou; b) mediante prévia autorização governamental para exercer diretamente, em seu próprio nome, o objeto social característico, que se conhece com o nome de filial21.

A) Filiais

Reconhecida a personalidade jurídica da empresa estrangeira, nos termos do art. 11 da LINDB, sua atuação direta dentro do Brasil, conforme os art. 1.134 do C.C.22, só é possível mediante prévia autorização governamental. A autorização é outorgada pelo Presidente da República que, através do Decreto nº 3.444, de 26 de abril de 2000, delegou a competência ao Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior para autorizar o funcionamento, no Brasil, de sociedades estrangeiras. O pedido deve ser acompanhado dos documentos a que aludem o § 1º do art. 1.134 do C.C., e os demais requisitos determinados na Instrução Normativa nº 81, de 05 de junho de 1999, do Departamento Nacional de Registro do Comércio (DNRC)23.

20 A subsidiária brasileira identifica-se nos países de língua castelhana com a palavra filial, enquanto que o termo espanhol sucursal designa o que no Brasil se conhece como filial. A expressão filial corresponde à branch do direito anglo-saxônico e pode ser utilizado como sinônimo de sucursal e agência. 21 No direito comparado podem apreciar-se soluções diferentes. Por exemplo, o direito Argentino permite o funcionamento de empre-sas estrangeiras para a realização de negócios “eventuais” sem necessidade de solicitar autorização legal. Para mais informação, veja-se: ORCHANSKY, Berta Kaller. Manual de derecho internacional privado. Buenos Aires: Plus Ulltra, 1991, p. 425-427; BOG-GIANO, Antonio. Curso de derecho internacional privado. 3.ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2001, p.730-733.22 Art. 1.134 do Código Civil: “A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Execu-tivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira.”23 Também é importante a Instrução Normativa nº 76, de 18 de dezembro de 1998, que dispõe sobre o arquivamento dos atos de

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O funcionamento de empresa estrangeira no Brasil começa a partir do momento em que a sociedade exerce seu objeto social no país, fabricando, vendendo, ou prestando serviço no território nacional24. As filiais, estabelecimentos, agências, sucursais, todos os termos equivalentes25, ficam sujeitos, em virtude do 1.137 do CC26, a duas regulamentações distintas: 1) à lei da Nacionalidade, que é a lei do estado onde foram constituídos, e que determinara a competência e responsabilidade de seus órgãos e; 2) A lei do lugar do exercício de sua atividade, ou seja, a lei brasileira, no que respeita aos atos ou operações que pratique no Brasil. A dupla regulamentação se deve a que as filiais não têm personalidade jurídica própria. Sobre o tema, e comparando as filiais com as empresas subordinadas, Trajano de Miranda Valverde diz: “A diferença essencial está em que as sociedades filhas gozam de autonomia jurídica, de pessoalidade, enquanto as agências sucursais ou filiais são extensões da organização, sociedade ou empresa principal. O laço de subordinação existe juridicamente nas segundas e publicamente, mesmo quando o sistema adotado na sua economia interna lhes atribua vida própria”27. Não sendo pessoas jurídicas, as sucursais, agências, ou filiais são em verdade simples estabelecimentos comerciais, como o determina o art. 1.142 do CC28. A regulamentação dada pelo CC, art. 1.134 a 1.141, que copia as regras da antiga Lei de S.A. (Dec-lei 2.627), reflete a falta de personalidade distinta da matriz, especialmente em relação ao domicílio, capital, contabilidade, denominação, nacionalização e representante legal. Sobre estes, tratar-se-á continuação. Tendo a sociedade estrangeira várias filiais ou sucursais no Brasil, são considerados como domicílios independentes, aplicando-se os arts. 75, §§ 1º e 2º do CC29, e art. 88, parágrafo único, do Código De Processo Civil30 (em diante CPC), sem que isto prejudique o domicílio da matriz, que continua no exterior. Em relação ao capital destinado à filial brasileira, o art. 1.136 § 1º do CC31 exige o registro dos investimentos feitos no Brasil em nome da empresa autorizada a funcionar, mas, sem outorgar personalidade jurídica. Sem dúvida, esta é uma maneira inteligente do legislador nacional para proteger os credores locais pelas dívidas contraídas no país. Da mesma forma, o art. 1.140 do CC32 requisita a contabilidade separada das sucursais, filiais e agências, exigindo a publicação no Brasil do balanço global da sociedade estrangeira, sem que isso tampouco implique o reconhecimento de entidades jurídicas autônomas. A unidade de denominação e o regime da nacionalização também demonstram a falta de personalidade. O art. 1.137, parágrafo único, do CC33 permite que a sociedade estrangeira funcione com o mesmo nome que tem no seu país de origem, podendo, facultativamente, acrescentar as palavras “do Brasil” ou “para o Brasil”. O art. 1.141 do CC34 permite que a mesma se torne nacional,

empresas mercantis em que participem estrangeiros. Todas as instruções normativas, assim como modelos de requerimento de au-torização e pareceres do DNRC, podem ser consultados em: http://www.dnrc.gov.br/. Acessado: 07-03-2011. 24 A atuação social sem a abertura de um estabelecimento representa uma atuação clandestina e ilícita, inclusive um mero escritório de representação. Destinado a contatos e à obtenção de negócios, estaria, de alguma forma, atuando no Brasil, com vista ao exer-cício de seu objeto social. O art. 1.134 se refere expressamente a qualquer estabelecimento subordinado, como categoria genérica, da qual as agências, lojas ou escritórios são espécies. Cf.: BORDA, Tavares. Direito societário. 8 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, pág. 178.25 Todas estas denominações são utilizadas como sinônimos, e as distinções apenas denotam uma diferença de prestígio e importân-cia que elas têm na vida interna da empresa. Cf.: VALVERDE, Trajano de Miranda. Sociedades por ações. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 80.26 Art. 1.137. “A sociedade estrangeira autorizada a funcionar ficará sujeita tanto às leis e aos tribunais brasileiros, quanto aos atos ou operações praticadas no Brasil”. De forma similar dispõe o art. 75, § 2 também do CC (ver nota 31).27 Cf.: VALVERDE, Trajano de Miranda. Ob. cit., pág. 80.28 Sobre os estabelecimentos comerciais no direito brasileiro, veja-se: COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol.1, 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 96-102.29 Art. 75. § 1º Tendo a pessoa jurídica diversos estabelecimentos em lugares diferentes, cada um deles será considerado domicílio para os atos nele praticados. § 2º Se a administração, ou diretoria, tiver a sede no estrangeiro, haver-se-á por domicílio da pessoa jurídica, no tocante às obrigações contraídas por cada uma das suas agências, o lugar do estabelecimento, sito no Brasil, a que ela corresponder.30 Art. 88. Parágrafo único. Reputa-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que aqui tiver agência, filial ou sucursal.31 Art. 1.136 § 1º O requerimento de inscrição será instruído com exemplar da publicação exigida no parágrafo único do artigo an-tecedente, acompanhado de documento do depósito em dinheiro, em estabelecimento bancário oficial, do capital ali mencionado.32 Art. 1.140. A sociedade estrangeira deve, sob pena de lhe ser cassada a autorização, reproduzir no órgão oficial da União, e do Estado, se for o caso, as publicações que, segundo a sua lei nacional, seja obrigada a fazer relativamente ao balanço patrimonial e ao de resultado econômico, bem como aos atos de sua administração. Parágrafo único. Sob pena, também, de lhe ser cassada a autorização, a sociedade estrangeira deverá publicar o balanço patrimonial e o de resultado econômico das sucursais, filiais ou agências existentes no País.33 Art. 1.137. Parágrafo único. A sociedade estrangeira funcionará no território nacional com o nome que tiver em seu país de origem, podendo acrescentar as palavras “do Brasil” ou “para o Brasil”.34 Art. 1.141. Mediante autorização do Poder Executivo, a sociedade estrangeira admitida a funcionar no País pode nacionalizar-se,

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mediante prévia autorização do governo, transferindo sua sede para o Brasil e cumprindo com os outros requisitos legais exigidos. A consequência mais importante da falta de personalidade jurídica se reflete nas relações internas e externas das filias. As primeiras são os vínculos existentes com a própria matriz, enquanto as segundas derivam de negócios feitos com terceiros. Nas relações externas, as filiais não são partes dos contratos realizados com terceiros, inexistindo sujeito por carência de personalidade, como é o caso das filiais. Não pode falar-se em partes de um contrato. Nestes casos, o único sujeito de direito efetivo é a matriz. Ainda naqueles casos em que as negociações são feitas em exclusivo interesse da filial, como são os contratos de arrendamento ou de prestações de serviço de limpeza ou segurança, deve distinguir-se em nome de quem são celebrados os contratos e as pessoas que têm competência para os celebrar35. Desta forma, os contratos referentes às filiais são sempre realizados em nome da matriz — único sujeito de direito —, porém celebrados pelos representantes que têm poderes específicos no que respeita o estabelecimento em que a matriz se traduz. Essas distinções são de extrema importância, já que se a filial figurasse como parte de um contrato, correr-se-ia o risco de ter-se decretada a nulidade absoluta, pela invocação de inexistência do sujeito dotado de personalidade e capacidade jurídica. É por isso que o art. 1.138 do CC36 e o art. 12, alínea VIII, e § 3 do CPC37, exigem para estas sociedades a presença de representante legal com poderes para resolver quaisquer questões, inclusive no âmbito judicial. De natureza muito diferente são as relações entre filial e matriz. Essas relações não podem considerar-se como jurídicas, porque inexiste a pluralidade de sujeitos de direito indispensável para a negociação: neste caso existe apenas um. Este tipo de vinculações ou negociações, que de fato existem, são, em verdade, figuras não contratuais e sem relevância jurídica na medida em que não afetem terceiros. As transferências internas de mercadorias, mútuos, contratos de depósitos e, em geral, as diferentes formas de vinculação possíveis entre matriz e filial apenas têm a aparência de tais negócios e surgem da necessidade econômica das organizações, motivo pelo qual são disciplinadas por regras internas próprias38. Como os requisitos para o funcionamento de empresas estrangeiras mediante filiais podem ser bastante burocráticos e sujeitos a uma série de demoras, em geral, as empresas estrangeiras que desejam atuar no Brasil preferem constituir uma empresa subsidiária, com personalidade jurídica própria, muito mais simples e fácil de constituir.

B) Subsidiárias

Além de constituir um estabelecimento dependente de uma matriz situada no exterior, as empresas estrangeiras podem, para atuar no mercado brasileiro, criar uma nova pessoa jurídica, denominada subsidiária. A empresa instituída, tendo sede no Brasil, desfruta da condição de sociedade brasileira, embora sob controle de capital externo39. O art. 1.134 do CC possibilita à sociedade estrangeira “ser acionistas de sociedade anônima brasileira”. A interpretação da norma deve ser extensiva, como já era, para compreender a condição de sócio de qualquer sociedade brasileira: anônima, limitada etc. Não poderia ser de outra forma, já que a maioria das empresas estrangeiras registradas no Brasil atuam na forma de sociedades limitadas. Para que uma sociedade possa ser considerada brasileira, o art. 1.226 do CC exige que40: 1)

transferindo sua sede para o Brasil35 Cf.: XAVIER, Alberto. Problemas jurídicos das filias de sociedades estrangeiras, no Brasil e de sociedades brasileiras no exterior. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 39, 1980, p.81.36 Art. 1.138. A sociedade estrangeira autorizada a funcionar é obrigada a ter, permanentemente, representante no Brasil, com po-deres para resolver quaisquer questões e receber citação judicial pela sociedade. Parágrafo único: O representante somente pode agir perante terceiros depois de arquivado e averbado o instrumento de sua nomeação.37 Art. 12, VIII. A pessoa jurídica estrangeira (será representada) pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil. § 3º O gerente da filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira, a receber citação inicial para processo de conhecimento, de execução, cautelar e especial.38 Vários são os exemplos que podem citar-se e que demonstram como as filiais não podem funcionar, nas suas relações com a matriz, como sujeito diverso desta. Para mais detalhes, veja-se: XAVIER, Alberto. Problemas Jurídicos das Filiais de Sociedades Estrangeiras, no Brasil e de Sociedades Brasileiras no Exterior. Revista de Direito Mercantil, São Paulo, v. 39, 1980, p.82-83. 39 José Tavares Borda dá como exemplo o Banco Chase S.A., controlado pelo Chase Manhatan Bank, dos Estados Unidos da América. O mesmo autor afirma que várias áreas da atividade econômica brasileira, inclusive quase toda a indústria automobilística, encontram-se nessa situação; In: Direito societário. 8.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.181. 40 Ar. 1.226 - É nacional a sociedade organizada de conformidade com a lei brasileira e que tenha no País a sede de sua adminis-tração.

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seja organizada de conformidade com a lei brasileira; e 2) mantenha a sede de sua administração no Brasil. Em sintonia com este artigo, a Constituição Federal, art. 170, alínea IX, dentre os princípios da ordem econômica, estabelece “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país”41. Aquelas sociedades legalmente constituídas no Brasil, em que outra sociedade possui quase 100% do capital social, em que se ressalva apenas o número necessário de quotas ou ações sem o qual não seria possível sua estruturação, são caracterizadas por Olavo Baptista como “filiais disfarçadas”42. Esta afirmação é válida porque, embora constituídas segundo as leis brasileiras, guardam a mesma relação de dependência que se verifica entre a matriz estrangeira e a filial nacional. Existe aqui — na subsidiária — uma atuação direta da controladora estrangeira. Isto não significa que a práxis seja ilegal. Muito pelo contrário, a opção pela melhor forma jurídica para constituir uma empresa ou desenvolver uma determinada atividade, sempre no âmbito da legalidade, é completamente válido. Mas, se essas sociedades nacionais são constituídas ou realizam atividades em prejuízo de terceiros — consumidores, fornecedores, fisco, meio ambiente etc. — não existem dúvidas, nem doutrinárias nem jurisprudenciais, de que a personalidade da sociedade como sujeito autônomo deve ser desconsiderada. No Brasil a tese aparece reforçada por uma abundante legislação, tratam da desconsideração: o Código de Defesa do Consumidor (art. 28, §5); a Lei Antitruste (art. 18); a Lei do Meio Ambiente (art. 4) e o Novo Código Civil (art. 50)43. A nacionalidade dos acionistas não determina a nacionalidade da sociedade. Mesmo que todos os acionistas sejam estrangeiros, trazendo recursos do exterior e constituindo uma sociedade empresarial com sede de administração no território nacional, segundo os preceitos da ordem jurídica aqui vigentes, essa sociedade será considerada brasileira para todos os efeitos jurídicos44. Entretanto, a Constituição brasileira, por questões de interesse ou segurança nacional, estipula que determinadas atividades econômicas devem ser realizadas por empresas constituídas por uma parte ou o total do capital em poder de brasileiros. Este é o caso da lei 10.610 de 20 de dezembro de 2002, que disciplina a participação de capital estrangeiro nas empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens de que trata o §4º do art. 222 da Constituição Federal45. A lei estabelece no art. 2º: “A participação de estrangeiros ou de brasileiros naturalizados há menos de dez anos no capital social de empresas jornalísticas e de radiodifusão não poderá exceder a trinta por cento do capital total e do capital votante dessas empresas e somente se dará de forma indireta, por intermédio de pessoa jurídica constituída sob as leis brasileiras e que tenha sede no País”. E no §1º, “As empresas efetivamente controladas, mediante encadeamento de outras empresas ou por qualquer outro meio indireto, por estrangeiros ou por brasileiros naturalizados há menos de dez anos não poderão ter participação total superior a trinta por cento no capital social, total e votante, das empresas jornalísticas e de radiodifusão.” Uma disposição semelhante é a do §3º, do art. 199 da Constituição Federal, que afirma: “É vedada participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.” No entanto, este caso é mais complexo, já que a própria constituição, no caput do mesmo art. 199, afirma: “A assistência à saúde e livre à iniciativa privada.”

41 A redação do artigo 170, alínea IX, da Constituição federal, foi dada pela EC nº 6, de 15 de agosto de 1995, que também revogou o art. 171, que dispunha uma divisão entre empresa brasileira (a constituída sob leis brasileiras e que tinham sua sede e administração no País) e empresas brasileiras de capital nacional (aquelas cujo controle efetivo estivesse nas mãos de pessoas ou entidades esta-belecidas em caráter permanente no Brasil). 42 Citado por: BASSO, Maristela. Joint Venture. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.65-66.43 Sobre a desconsideração da pessoalidade jurídica no direito brasileiro, veja-se, entre outros: COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial. Vol. 2. ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, págs. 31 a 56; XAVIER, Jose Tadeu Neves. A Desconsideração da personali-dade jurídica das sociedades comerciais. Tese de Mestrado, UFRGS, 2000.44 A desconsideração da nacionalidade dos sócios e da origem do capital, na identificação da nacionalidade da sociedade empresária, encontra-se em outros direitos, como o italiano, português e espanhol, cf.: COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial. 2.ed.. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 29. 45 “Art. 222. A propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País. § 1º Em qualquer caso, pelo menos setenta por cento do capital total e do capital votante das empresas jornalísticas e de radiodifusão sonora e de sons e imagens deverá pertencer, direta ou indiretamente, a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, que exercerão obrigatoriamente a gestão das atividades e estabelecerão o conteúdo da programação. § 2º A responsabilidade editorial e as atividades de seleção e direção da programação veiculada são privativas de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, em qualquer meio de comunicação social. § 3º Os meios de comunicação social eletrônica, independentemente da tecnologia utilizada para a prestação do serviço, deverão observar os princípios enunciados no art. 221, na forma de lei específica, que também garantirá a prioridade de profissionais brasileiros na execução de produções nacionais. § 4º A lei disciplinará a participação de capital estrangeiro nas empresas de que trata o § 1º. § 5º As alterações de controle societário das empresas de que trata o § 1º serão co-municadas ao Congresso Nacional.”

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Estas exceções já foram mais abrangentes. Antigamente também era restringida a participação de empresas estrangeiras em atividades de mineração (art. 176, §1), e em empresas de navegação (art. 178, § 2), exceções revogadas pela EC nº 6, de 15 de agosto de 1995. Sobre o tema, Carmen Tiburcio afirma:

(...) a regra geral da igualdade (dos estrangeiros) não se aplica aos chamados direitos econômicos — que, de resto, não são considerados fundamentais, por boa parte dos operadores jurídicos. Segundo o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em vigor no Brasil, os países em desenvolvimento, levando em consideração os Direitos Humanos e a situação econômica nacional, poderão determinar em que medida garantirão os direitos econômicos reconhecidos no Pacto àqueles que não sejam seus nacionais. Isto é: nessa área específica, o estrangeiro pode receber tratamento distinto do nacional, mesmo que não haja uma razão expressa para isto, e o Estado não precisa justificar tal atitude na esfera internacional.46

De qualquer forma, e salvo os casos de exceção antes mencionados, e por tais muito discutíveis, a empresa estrangeira que cria, para sua atuação no Brasil, uma subsidiária com personalidade jurídica própria não oferece maiores dificuldades, pois, tratando-se de sociedades juridicamente independentes da controladora, a elas se aplicam na íntegra o regime geral das sociedades nacionais.

CONCLUSÃO

O reconhecimento das sociedades estrangeiras é tema complexo. Desde a perspectiva do direito aplicável, as soluções no DIPr variam de país a país e de acordo com o tempo. O direito brasileiro vigente inclinou-se pela utilização do sistema da incorporação (art. 11 da LINDB), que, sem lugar a dúvidas, é o sistema mais conveniente para a economia nacional, já que com ele se reconhece, de forma rápida e efetiva, a capacidade jurídica das empresas estrangeiras para realizar atos jurídicos válidos em território nacional. A situação torna-se mais complicada com referência ao funcionamento de sociedade estrangeira em território nacional. Isso ocorre porque, em relação ao funcionamento, entram em cena novos atores que representam papéis importantes no momento de determinar a regulamentação legal. Podem destacar-se, entre outros, os fatores econômicos e as políticas nacionais que protegem as empresas locais. As leis que regulamentam o funcionamento das sociedades estrangeiras sempre ficam a mercê deste tipo de fatores. Pelo sistema legal vigente, existem duas possibilidades para as empresas que permitem estender suas atividades dentro do território nacional: primeiramente, pedir autorização para seu funcionamento, em segundo lugar, criar uma nova empresa no Brasil que seja considerada como nacional. Estas duas formas possíveis de exercer atividades no Brasil geram dificuldades e custos adicionais para a prática comercial. Isso ocorre porque a primeira possibilidade, de pedir autorização para funcionar, não é muito utilizada na prática, e, no caso de criar uma nova empresa, as exigências da participação de novos sócios podem não ser bem vistas pelo investidor estrangeiro. Entretanto, o direito tem evoluído muito na matéria, destacando-se, entre outros avanços, os produzidos pela EC nº 6, de 15 agosto de 1995, que modificou a redação do art. 170 da CF, eliminando a distinção entre empresas brasileiras e empresas brasileiras de capital nacional, e pelo Novo Código Civil, que aplica às empresas estrangeiras em geral as diretivas da Lei das Sociedades Anônimas. Cabe afirmar que estes avanços devem considerar-se como a fase inicial de outras modificações que também poderiam incrementar as atividades econômicas no país, em especial no setor de serviços. Por exemplo, flexibilizando as regras para capitais estrangeiros que participam nos meios de comunicação nacional ou nas empresas dedicadas à assistência da saúde no país.

46 Citada por: DOLINGER, Jacob. Op.cit., p. 510-512.

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Uma visão geral acerca dosSistemas Gerenciadores de Conteúdo

Anderson Corbellini1, William Hart Oliveira2,Cristiane Vieira Chagas3 e Adriana Paula Zamin Scherer4

Resumo

Com o constante crescimento da Internet, surge a necessidade de facilitar o desen-volvimento e a manutenção de web sites. Os Sistemas Gerenciadores de Conteúdos surgiram com o intuito de facilitar essa criação, administração, distribuição, publi-cação e disponibilidade da informação. A grande questão é escolher o SGC mais ade-quado à situação e ao problema para o qual vai ser proposto o desenvolvimento do sistema. Este artigo pretende elucidar o funcionamento dos SGC e relacionar alguns que estão disponíveis no mercado.

Palavras-chave

CMS. SGC. Joomla.

Abstract

The constant growth of the Internet, the need arises to facilitate development and maintenance of websites. The Content Management Systems appeared to facilitate the creation, administration, distribution, publication and availability of informa-tion. The great question is choosing the CMS more appropriate to the situation, to problem of which will be proposed the development of the system. This article aims to elucidate the operation of CMS and to relate some that are available on the market.

Keywords

CMS. Joomla.

1. Introdução

Os Sistemas Gerenciadores de Conteúdo (SGC) ou Content Management Systems (CMS) foram desenvolvidos inicialmente como sistemas internos por organizações que trabalhavam na edição, pu-blicação e criação de conteúdos em tempo real e em grandes quantidades, tais como revistas, jornais, portais e e-mails corporativos. Cada empresa possuía seu próprio SGC e não havia um gerenciador de conteúdo genérico para ser adquirido, o que seria possível apenas contratando uma empresa para desenvolvê-lo. Por volta de 1995, a Networks Incorporated (CNET), uma empresa de mídia de São Fran-cisco, Califórnia, cofundada em 1993 por Halsey Minor e Shelby Bonnie, e que atualmente é uma em-presa da CBS Corporation, decidiu comercializar seu próprio SGC. A comercialização se deu através da

(1) Acadêmico do curso de Sistemas de Informação da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.(2) Acadêmico do curso de Sistemas de Informação da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre.(3) Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.(4) Mestre em Ciências da Computação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre, RS – Brasil.

Ciências Tecnológicas

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empresa Vignette, atualmente sediada em Austin, no Texas, e que provém um conjunto de softwares para gerenciamento de conteúdo, portais corporativos, colaboração, gerenciamento de documentos e registros (ALMEIDA, 2010). O objetivo deste artigo é prover uma visão geral sobre os Sistemas Gerenciadores de Conteúdos, com maior ênfase no Joomla. Para tanto, além desta introdução, o texto está distribuído da seguinte forma: na seção 2 serão abordados conceitos sobre SGC; na seção 3 serão apresentados alguns SGC dis-poníveis no mercado, destacando algumas características gerais, dando maior visibilidade ao Joomla. Na seção 4 será tratado o futuro dos SGC bem como o desafio do gerenciamento de conteúdo na Web. Por fim, na seção 5 serão apresentadas as considerações finais deste artigo.

2. Sistema Gerenciador de Conteúdo (SGC)

Um SGC é um sistema gestor de websites e Intranets que integra as ferramentas necessárias para criar, editar e gerir conteúdos em tempo real sem a necessidade de desenvolvimento de código fonte próprio. Com seu uso é possível estruturar e facilitar a edição, criação, administração, distribui-ção, publicação e a disponibilidade da informação. O maior benefício de usá-lo é que pode ser agrega-da a ele uma grande quantidade de funções através de complementos (plugins), tais como galerias de fotos, gerenciadores de enquetes, formulários, entre outras funcionalidades. Pode-se afirmar que um SGC é semelhante a um framework de website pré-estruturado, com recursos básicos de usabilidade, visualização e administração já prontamente disponíveis. Além disso, permite a criação, o armazenamento e a administração de conteúdos dinamicamente, por meio de uma interface de acesso via Internet (KAMPFFMEYER, 2006). O CMS permite que a empresa ou usuário comum tenha total autonomia sobre o conteúdo do site na Internet e não necessite de assistência de terceiros ou empresas especializadas para manuten-ções de rotina. Não há necessidade de um funcionário dedicado, como um webmaster, por exemplo, pois cada membro da equipe poderá gerir seu próprio conteúdo, reduzindo os custos com recursos humanos e ajudando a superar barreiras potenciais à divulgação Web, reduzindo o custo da criação, contribuição e manutenção de conteúdo. Além disso, a habilidade necessária para trabalhar com um CMS não exige de um usuário nada além de conhecimentos básicos de um editor de texto. A aparência de um website criado com um SGC é personalizável, por meio da utilização de temas que podem ser facilmente mudados. Isto é possível através da definição de diferentes templates, isto é, modelos de documentos ou, ainda, um documento sem conteúdo, com apenas a apresentação visual e instruções sobre onde e qual tipo de conteúdo deve entrar a cada parcela da apresentação, tornando a modifica-ção do website uma intervenção relativamente simples (LEMES, 2010). Atualmente, há uma série de SGC disponíveis no mercado e um exemplo é o Wordpress. Ele é um sistema de código aberto desenvolvido na linguagem PHP e com o objetivo de gerir blogs ou portais cada vez mais completos. Há também outros exemplos de SGC, que são o Liferay e o Joomla, onde é facilmente realizada a edição de conteúdos a partir do próprio site, podendo também ser usado para o gerenciamento de conteúdo Intranet. Na próxima seção, serão descritos alguns dos SGC que estão disponíveis atualmente.

3. Alguns SGC disponíveis no Mercado

Com o crescimento dos conteúdos de informações que atingem as organizações, que na maio-ria das vezes possuem, ou não, recursos para divulgação, aliados a fluxos de trabalho pouco definidos, surge a ineficiência. Os custos de publicação das informações que as empresas precisam disponibilizar sobem expressivamente e os clientes internos e externos ficam insatisfeitos. A partir deste grande volume de informações e das diversas possibilidades de SGC atualmente disponíveis, cabe à empresa optar pelo SGC que mais se adapte às suas necessidades, pois cada um deles é indicado para categorias específicas de uso. São alguns dos principais SGC encontrados:

a) phpBB: O phpBB é um SGC para criação de fóruns, desenvolvido através de scripts em PHP, possui suporte a vários bancos de dados como MySQL, PostgreSQL, SQL Server, Microsoft Access e com algu-mas modificações, Oracle. É um software totalmente gratuito, sob a licença General Public License

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(GPL) e possui a possibilidade de serem realizadas alterações no código sem que seja necessário obter a autorização do Grupo phpBB (PHPBB – ABOUT PHPBB, 2011).

b) MediaWiki: O MediaWiki é um software para criação de Wiki escrito em PHP e com uso do banco de dados MySQL, licenciado sob a GPL. É desenvolvido através de Subversion (SVN) da SourceForge, e é um dos projetos da Wikimedia Foundation, organização sem fins lucrativos que congrega o Wikipédia, Wikcionário, Wikiquote, Wikilivros, Wikisource, Wikimedia Commons, Wikispecies, Wikinotícias e Wikiversidade. Originalmente escrito para a Wikipédia pelo estudante e programador alemão Mag-nus Manske, o website inicialmente utilizava Perl, mas em seguida foi migrado para PHP. O site mais famoso a usar o MediaWiki tem sido o Wikipédia (PROJECT:ABOUT – MEDIAWIKI, 2011).

c) WordPress: Foi criado a partir do b2/cafelog, uma plataforma de blogs iniciada em 2001. Hoje, é uma ferramenta de criação de blog e plataforma de publicação e a maioria das suas versões possui co-dinomes de cantores de jazz desde a versão 1.0. O WordPress é open source, escrito em PHP com banco de dados em MySQL e possui vários recursos, tais como alternação de templates, múltiplas categorias para artigos, suporte para marcação de lugares e objetos, filtros automáticos, motor de busca integrado, arquitetura de plugin que permite aos usuários e desenvolvedores estender funcio-nalidades além das características que vêm como parte da instalação básica. (WORDPRESS>ABOUT, 2011).

d) Drupal: O seu criador, Dries Buytaert, pensou no cair da chuva e, por isso, o nome Drupal, derivado da palavra druppel, do holandês, que significa gota. É um framework modular e um SGC muito utilizado para criação de sites, escrito totalmente em PHP. Permite criar e organizar conteúdos, manipular a aparência, automatizar tarefas administrativas e definir permissões e papéis para usuários e cola-boradores. O Drupal é independente de qualquer sistema operacional, mas requer um servidor HTTP compatível com PHP, como por exemplo o Apache, e um banco de dados como o MySQL (ABOUT DRUPAL|DRUPAL.ORG, 2011).

e) Xoops: Xoops é um acrônimo de eXtensible Object Oriented Portal System e é uma plataforma de aplicações web escritas em PHP para banco de dados MySQL. Embora tenha começado como um sis-tema de portal vem ganhando mercado no caminho de SGC e pode servir como um framework web para uso de sites de pequeno, médio e grande porte. Algumas de suas características que podem ser destacadas: banco de dados MySQL, totalmente modularizado, personalização de temas, perfis, uploads de avatares, gerenciamento de usuários, suporte mundial com mais de doze comunidades (ALL ABOUT XOOPS:: XOOPS WEB APLICATION SYSTEM, 2011).

f) Mambo: Com o SGC Mambo podem ser criados vários tipos de sistemas para Internet, desde pequenos fotologs, blogs ou páginas pessoais, até grandes portais de comércio eletrônico, como lojas virtuais ou de serviço. No entanto, ele é mais utilizado para criação de sites. Possui o Mambo Server que trabalha tanto em plataforma Linux/Unix quanto em Windows e utiliza apenas uma interface web baseada em navegadores de Internet para sua instalação e administração. As aplicações são basea-das no conjunto LAMP (Linux, Apache, MySQL, PHP), possui versão totalmente em português, criada pela comunidade brasileira, editor de conteúdo WYSIWYG (What You See Is What You Get – O que você vê é o que você tem), que significa a capacidade de permitir que um documento, enquanto manipulado, tenha a mesma aparência (MAMBO OPEN SOURCE CMS KNOWLEDGEBASE/WHAT IS THE MAMBO CMS, 2011). O Mambo foi desenvolvido para ser um dos melhores SGC para web e também desmistificar que grandes produtos não podem ser realizados sob a bandeira do FLOSS (Free/Live Open Source Software). A separação dos desenvolvedores ocorreu quando a Miro International transferiu o con-trole total do Mambo para uma fundação chamada Mambo Foundation, onde os desenvolvedores teriam apenas uma participação passiva e pouco representativa. Estes desenvolvedores, preocupa-dos com a integridade do projeto e com o futuro dos usuários, não aceitaram a transferência e, em 2005, criaram o Joomla 1.0, a partir do código-fonte do Mambo 4.5.2 (SILVA, 2008).

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g) Joomla: Joomla é um projeto de código aberto com licença GPL, desenvolvido na linguagem PHP, pode ser executado nos servidores web Apache ou Internet Information Server (IIS) e utiliza o banco de dados MySQL. O Joomla é uma ferramenta de CMS muito poderosa, tendo recebido o prêmio Linux Award reconhecido como o Melhor Projeto Open Source, já na sua primeira versão (SILVA, 2008). Este artigo foi elaborado baseado nos aspectos da última versão estável disponibilizada em 21 de fevereiro de 2011, a 1.6.1. Com o crescimento acelerado da publicação de informações na Internet e a necessidade dessa divulgação, os SGC surgem como alternativa de trabalho. Dentre os SGC disponíveis no mercado, o Joomla é um dos mais utilizados, conforme se pode verificar na Figura 1 que foi obtida com o supor-te da ferramenta Google Insights para pesquisa, com os filtros: pesquisa na web do Google, todo o mundo, ano de 2010 e todas as categorias, por exemplo, Internet, jogos, lazer, compras, viagens, com os interesses dos usuários nas ferramentas Joomla, Drupal, Chilli, Mambo e Xoops. Pode-se verificar que a maior quantidade de pesquisas feitas por um termo específico em relação ao número total de pesquisas feitas foi o Joomla.

Figura 1. Pesquisa na web do Google Interesse: joomla, drupal, chilli, mambo, xoops – Todo o mundo do ano de 2010Fonte: Google Insights para pesquisa (2011)

As principais vantagens do Joomla são os componentes, que são uma forma de gerenciar conteúdos ou agregar funcionalidades muito específicas que não seriam possíveis com as funções padrões do Joomla. Existem inúmeros componentes, como galerias de fotos (zOOm Gallery), siste-mas de tradução (JoomFISH), gerenciadores de formulários e outros. O componente weblinks, por exemplo, permite gerenciar a área de links do site, já no Banners é possível gerenciar publicidade na forma de banners, podendo alternar aleatoriamente o conteúdo e contando o número de cliques dos usuários. A maioria dos componentes é gratuita e/ou livre, sob a licença GPL, porém existem alguns comerciais e, destes, muitos são de baixo custo. Há, também, a possibilidade de se adaptar um componente existente ou então criar um componente específico (SILVA, 2008). As vantagens do Joomla começam na instalação do programa que requer apenas conhecimen-tos básicos de informática. Além disso, há a necessidade de um servidor de Internet e de uma base de dados e, com isso, já é possível obter um site completo. Algumas características que destacam o Joomla como um dos mais utilizados (ALMEIDA, 2010):

• Software livre e de código aberto com licença GPL (General Public Licence).• Possui vários módulos e componentes disponíveis.• Comunidade atuante com alto crescimento, principalmente na língua portuguesa.• Comunidade de programadores e especialistas vem crescendo cada vez mais, facilitando a ajuda mútua.• Gerenciamento de usuários, com possibilidade de hierarquia para grupos.• Frontend já traduzido em várias línguas.• Facilidade de instalação para novos templates, módulos e componentes.• Sistema de publicação para o conteúdo.• Sumário de conteúdo no formato RSS (Really Simple Syndication).• Busca otimizada.• Sistema simples de fluxo de aprovação.• Arquivamento para conteúdo não utilizado.• Sistema de enquete simples, acompanhamento de resultado em tempo real.• Sistemas de índices de avaliação.

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• Estatísticas básicas de visitantes.• Editor de conteúdo WYSIWYG (What You See Is What You Get).• Compatibilidade com versões anteriores.

Com a grande popularidade do Joomla surgiram diversos mitos que podem levar os profissio-nais a terem certo receio na adoção deste SGC para o desenvolvimento de sites. Na Tabela 1, esses mitos estão apresentados, assim como algumas de suas respectivas verdades.

Tabela 1: Mitos X Verdades JoomlaFonte: Okabe (2011)

Mitos Verdades

Não é flexível e, por isto, é impossível criar sites com design diferenciado.

Flexibilidade para design, o desenvolvedor que tem bons conhecimentos de Cascading Style Sheets (CSS), linguagem de estilo utilizada para definir apresentação de documentos es-critos em uma linguagem de marcação, como HTML ou XML, pode criar sites com design bastante diferenciado.

Complicado para criar o site e o administrati-vo não possui boa usabilidade, com utilização confusa.

Com poucas horas de treinamento já é possível aprender a estruturar o conteúdo.

Programadores e web designers não serão mais necessários no projeto.

É altamente recomendável ter o suporte de alguém com experiência para usar os melhores componentes e módulos para o Joomla.

Não é bom para o SEO (Search Engine Optimi-zation).

Existem várias extensões para gerenciar com facilidade Titles e URLs, com foco no SEO.

Os sites ficarão atrelados à tecnologia do Joomla.

É possível trocar de fornecedor, podendo assu-mir o projeto sem a necessidade de jogar fora a programação feita anteriormente.

O Joomla não elimina totalmente a necessidade de usuários técnicos. Conforme pode ser visto na Tabela 1, é necessário um profissional com experiência para utilizar de maneira correta e eficiente os componentes e módulos. Para fazer sua instalação e manutenção do site pode ser apenas uma pessoa que esteja disposta a estudar sobre o assunto, não é necessário entender de pro-gramação porque existem muitos templates que podem ser comprados ou encomendados a alguém, além dos gratuitos (ALMEIDA, 2010). Para a criação de conteúdos não é necessário conhecimento nenhum, somente algum trei-namento na utilização do frontend, e, desta forma, pessoas leigas poderão criar, editar e publicar materiais sem que entendam HTML ou qualquer outra linguagem de programação. Com o Joomla, ou com outros SGC é possível ter o dinamismo na atualização de qualquer tipo de website, sendo acadêmico ou empresarial.

4. Futuro dos SGC

Na ânsia das empresas para colocar seus negócios na Web, há um ponto visivelmente claro: é necessário ter uma grande quantidade de conteúdo para atrair de forma repetitiva os clientes e visi-tantes para o website. A Internet alterou a relação do negócio, já que os clientes buscam fornecedores capazes de prover serviços de compra, suporte à tomada de decisões e um conteúdo novo e utilizável para ajudá-los a administrar os negócios (KAMPFFMEYER, 2006). Conforme se eleva a riqueza de conteúdo, entre eles o conteúdo personalizado principalmente, aumenta-se também o custo de gerenciar esse material e a probabilidade de surgirem problemas. As empresas têm a possibilidade de prevenir dificuldades planejando e adequando o seu conteúdo e suas operações, bem como implantando sistemas para gerenciar o fluxo de informações.

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O gerenciamento de conteúdo é uma forte realidade e com tendências de crescimento em larga escala. Pode ser descrito como uma combinação de funções bem detalhadas, processos documentados e arquitetura de sistemas de suporte que, em conjunto, auxiliam uma organização a contribuir com informações, colaborar com elas e controlá-las do início ao fim. O cuidado adequado com o gerencia-mento de conteúdo permite que uma empresa forneça informações de qualidade, processos dinâmicos e evite erros que impliquem custos adicionais. E é justamente nestes aspectos que os SGC podem colaborar com as instituições (LEMES, 2010).

5. Considerações Finais

Os SGC são uma realidade no mercado, como oportunidade não só para a criação, mas tam-bém para manutenabilidade de sites ou portais, de baixa ou alta complexidade, que terminam por liberar profissionais liberais e as organizações do domínio das empresas de design, que, por deterem o monopólio da expertise anteriormente, cobravam valores que extrapolavam a realidade de alguns pequenos negócios, inviabilizando-os. A partir do nascimento dos SGC, os indivíduos sem conhecimento de desenvolvimento de software ou design passam a gerenciar diretamente suas páginas sem a necessidade de pessoal es-pecializado. As opções de software SGC open source são completas no sentido de funcionalidades e especializadas no sentido do uso, cada uma tendendo mais a determinados tipos de sites. Dentre os mais completos e eficientes está o Joomla, que tem conseguido superar os SGC restantes e se conso-lidar como o melhor e mais completo SGC, pois tende a ser a melhor relação custo x benefício para a grande maioria dos requerimentos, principalmente pela facilidade de personalização, recursos visuais e pela qualidade e quantidade de componentes e plugins disponíveis, o que resulta em produtos mais baratos, com mais recursos e desenvolvidos e implantados com menor tempo.

Referências Bibliográficas

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A implementação da ETEem uma agroindústria

Sergio Eduardo Ziglia Bueno Junior – FAPASClarice Henrique Dias – UNISINOS

Alessandra Carla Ceolin – NESPRO/UFRGS

Alexandre de Melo Abicht – FDB – UNISC

Resumo

Este artigo teve como principal objetivo verificar as principais dificuldades e benefí-cios gerados pela implementação da Estação de Tratamento de Efluentes (ETE) na fá-brica de tratores da AGCO, na cidade de Canoas/RS. A revisão da literatura apresenta questões de sustentabilidade e gestão ambiental, além da operacionalização da ETE como Sistema de Gestão Ambiental. Trata-se de um estudo de caso que contou com pesquisas bibliográficas e exploratórias e de um questionário com perguntas abertas respondidas pela profissional responsável pela implementação da ETE. Este instru-mento de coleta de dados permitiu visualizar na prática a implantação da ETE e seus efeitos e desdobramentos no decorrer dos anos de atividade da empresa.

Palavras-chave

Tratamento de Efluentes. Gestão Ambiental. Sistemas de Gestão Ambiental. Implan-tação de ETE.

Abstract

This article aims to verify the main difficulties and benefits created by the imple-mentation of the Effluent Treatment Station (ETS) in the factory of tractors of AGCO in Canoas/RS. The literature review presents some issues of sustainability and envi-ronmental management, besides the operationalization of ETS as an Environmental Management System. It is a case study that has relied on bibliographical and explo-ratory research, as well as on a questionnaire with open questions answered by the professional in charge of the ETS’ implementation. This data collection instrument has allowed a practical preview of the ETS’ implementation, as well as its effects and developments throughout the years of company activity.

Key words

Effluent. Environmental Management. Environmental Management Systems. Imple-mentation of ETE.

1. INTRODUÇÃO

Em nossa sociedade percebe-se uma crescente preocupação com as questões relacionadas ao meio ambiente. Cada vez mais as pessoas de um modo geral vêm dedicando maior atenção e espaço a discussões relacionadas à interação humana com o ambiente natural e suas consequências. Por sua vez, esta atenção acaba por gerar uma maior atuação dos órgãos públicos neste setor, sendo criada uma série de normas e padrões para o uso dos recursos ambientais e naturais pela sociedade como um todo e principalmente as indústrias e empresas em geral.

Ciências Tecnológicas

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Como se observa nos dias atuais, a sociedade civil também já começou a criar suas próprias ferramentas e mecanismos de controle e preocupação ambiental, através de diversas Organizações Não Governamentais (ONGs) e associações que se dedicam a pesquisar e monitorar a utilização de diversos recursos naturais em todas as atividades econômicas. Este fenômeno, como se podia imaginar, não passou despercebido pelas indústrias ao redor do mundo, que já há um bom tempo começaram a se preocupar com a gestão ambiental em sua cadeia produtiva. Não se pode deixar de considerar o interesse econômico existente nesta iniciativa das em-presas em utilizar conscientemente os recursos naturais, uma vez que a implantação de tais projetos sempre passa primeiro por uma minuciosa análise de impacto financeiro e, muitas vezes, se inclui o retorno de imagem, antes de ser posto em prática. O importante a ser observado é que apesar das intenções existentes ou não, algo está muito claro: a necessidade de se observar os impactos gerados na natureza pela atividade produtiva é de certa forma questão de sobrevivência, afinal esgotando-se os recursos naturais, esgota-se também a fonte da vida e, portanto, não existirá mais a necessidade de se produzir, afinal não existirá mais con-sumidores e o preço a se pagar por tal situação possivelmente será a extinção da vida humana como a conhecemos. Este trabalho tem o intuito de analisar especificamente a implantação da estação de trata-mento de efluentes (ETE), da fábrica de tratores da AGCO Corporation em Canoas, no estado do Rio Grande do Sul. O principal objetivo é verificar as dificuldades de sua implementação e quais os resul-tados práticos que este sistema trouxe para a empresa e meio ambiente. Além da introdução, este estudo apresenta mais quatro seções, sequencialmente dispostas: revisão de literatura destinada à contextualização do tema; metodologia, descrevendo os métodos utilizados para desenvolvimento deste trabalho; análise e descrição de resultados, destacando as prin-cipais observações provenientes da coleta de dados; finalizando com as conclusões, que visam elucidar os resultados atingidos com o estudo.

2. REVISÃO DE LITERATURA

A satisfação das necessidades sociais é a maior finalidade do desenvolvimento humano e industrial. Na busca desta satisfação, a sociedade acaba por interferir de maneira inconsequente no ambiente, fazendo uso indiscriminado de todo e qualquer recurso disponível, sem se preocupar com as consequências geradas por este processo, conforme descrito por Guimarães (1997, p. 32), que acre-dita ser a problemática ambiental consequência da inadequação ou insustentabilidade dos padrões de consumo que, na verdade, é o responsável pela criação do modelo de desenvolvimento. No momento em que entende que a problemática ambiental provém da interação social con-duzida pelo homem, através de seus padrões de produção e consumo, fica mais simples de se entender que existe a necessidade de intervenção nestas atividades. Tais ingerências podem advir tanto de nor-mas e regulamentações legais, quanto da inclusão de técnicas de gestão ambiental na cadeia produtiva das empresas. Segundo Almeida apud Martins; Aligleri e Aligleri, L. (2007, p. 02), as transformações sociais, ambientais, econômicas e políticas, advindas nas últimas décadas, aumentaram a pressão da sociedade como um todo em cima da atividade produtiva das empresas em geral, sendo útil a criação de estratégias empresariais mais engajadas com questões sociais e ambientais sustentáveis e com viabilidade econômica. A preocupação básica da gestão ambiental é claramente a solução de problemas ambientais, na maioria das vezes relacionados primordialmente ao uso racional dos recursos naturais. Tradicio-nalmente esta é a visão mais comum deste tema, como pode ser visto na definição de Selden (1973, p. 37) para gestão ambiental, que afirma ser a condução, o direcionamento e o controle do uso dos recursos naturais, por uso de certos instrumentos, incluindo-se medidas econômicas, regulamentos e normatizações, investimentos públicos, requisitos institucionais e judiciais. Este uso racional de tais recursos nos remete ao conceito de sustentabilidade ambiental, que é no fim o objetivo maior deste tipo de gestão. A escolha de um modelo de desenvolvimento pautado pela sustentabilidade ambiental exige o conhecimento prévio de todas as potencialidades e fragilidades ambientais inerentes à atividade produtiva como um todo, ou seja, uma empresa que deseja produzir com sustentabilidade ambiental e precisa conhecer todos os impactos gerados por suas atividades. Além da análise interna, nunca deve se esquecer de seus fornecedores e possíveis distribuidores, ou seja, deve ser considerada toda a cadeia produtiva. Para Sachs (2007, p. 182), a busca da sustentabilidade dos processos é induzida pelo

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padrão da produção e consumo, as condições e potencialidades territoriais e as tecnologias compatí-veis com a sustentabilidade estabelecida. O autor ainda afirma serem estes fatores determinantes e inter-relacionados. A perspectiva da sustentabilidade ambiental traz novas concepções de atuação das institui-ções produtivas e participantes da sociedade como um todo, e isso exige a atenção e superação de algumas concepções existentes e, acima de tudo, remete tais instituições a observarem alguns fatores críticos com relação ao ambiente. Cerqueira (1992) cita como fatores críticos a gestão dos elementos básicos como água, ar, florestas, dentre outros, na busca da satisfação das variadas demandas com o menor custo de recursos naturais possíveis. Existem dois modelos básicos de ações relativas aos problemas ambientais existentes e na busca da sustentabilidade ambiental é fundamental conhecê-los. As ações, que são reativas ou proati-vas, têm suas diferenciações resumidas e destacadas na Figura 1.

Concepção Reativa

• Gestão cotidiana dos elementos do ambiente (água, ar, floresta, etc.).• Busca satisfazer os diversos tipos de demanda com o menor custo e limitando os efeitos negativos, considerando os interesses organizados da sociedade.• Ações adotadas após as definições sobre as opções de desenvolvimento.• Atuação centrada na adaptação da oferta à demanda.

Concepção Proativa

• A abrangência se estenderia às inter-relações entre sistemas socioeconômicos e sistemas naturais.• Participação nas definições sobre as opções de desenvolvimento.• Planejamento inscrito num contexto mais amplo de gestão permanente de re cursos, espaço e da qualidade do ambiente natural e construído.• Estratégias buscando modular as demandas.• Inserção no processo de desenvolvimento sustentável.• Adoção do enfoque sistêmico como alternativa de interação e integração dos diferentes enfoques de gestão e das ações dos diferentes níveis de governo.• Incorporação da dimensão ambiental nos processos decisórios.• Responsabilidade setorial (gestão corresponsável).• Materialização da participação pública.• Participação na formulação das políticas públicas.• Conhecimento e dimensionamento da realidade ambiental (diagnóstico integrado).

Figura 1 – Concepções dos Modelos de Gestão AmbientalFonte: Baseado em Cerqueira (1992).

2.1. Operacionalização da ETE como Sistema de Gestão Ambiental (SGA)

Segundo Reis (1996, p. 32), a implementação bem-sucedida de um SGA exige comprometi-mento de todos os empregados da organização. As responsabilidades ambientais, portanto, não en-globam somente as funções ambientais, ou seja, incluem também as demais áreas, como a gerência operacional e outras funções administrativas. O comprometimento deverá começar nos níveis gerenciais mais elevados da organização, que deverão estabelecer a política ambiental da empresa e garantir a implantação do SGA. Como parte deste comprometimento, a alta administração deverá designar seus representantes específicos, com responsabilidade definida e autoridade para implantação do SGA. Deverá também garantir o suprimen-to de recursos apropriados à implantação e manutenção do SGA. É também importante que as princi-pais responsabilidades do SGA sejam comunicadas ao pessoal relevante. A organização deve identificar as necessidades de treinamento. Ela deve garantir que todo o pessoal, cujas tarefas possam criar um impacto significativo sobre o meio ambiente, receba treinamento adequado.

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Segundo Harrington (2001, p. 29), também deve estabelecer e manter procedimentos que façam com que seus funcionários ou membros, em cada nível e cargo pertinente, estejam conscientes sobre a importância da conformidade com a política ambiental, procedimentos e requisitos dos siste-mas de gestão ambiental, os impactos ambientais significativos, reais ou potenciais, de suas ativida-des e dos benefícios ao meio ambiente resultantes da melhoria de seu desempenho pessoal. Devem atentar para suas funções e responsabilidades em atingir a conformidade com a política ambiental, procedimentos e requisitos do sistema de gestão ambiental, inclusive os de preparação e atendimento a emergências e as consequências potenciais do não cumprimento de procedimentos operacionais especificados. O treinamento se destina a garantir a conscientização das necessidades de proteção ao am-biente, mas, também, a competência necessária à realização das tarefas do SGA. No entendimento de Harrington (2001, p. 31), a norma requer que a organização tenha procedimentos em uso para identi-ficar qual o treinamento necessário, para oferecê-lo e para avaliar e oferecer segurança para que todo o pessoal que executa tarefas que podem causar impactos ambientais significativos seja competente e tenha educação, treinamento e/ou experiência apropriados. De acordo com Montgomery (2004, p. 09), as organizações deverão implantar um procedi-mento para receber, documentar e responder os pedidos de informações relevantes solicitados pelas partes interessadas, tanto internas como externas à organização. Este procedimento poderá incluir um diálogo com partes interessadas e a consideração de suas principais preocupações. Em algumas circunstâncias, Reis (1996, p.35) acredita que as respostas às preocupações po-derão incluir informações relevantes sobre os impactos ambientais associados às operações da organi-zação. Estes procedimentos deverão também abordar as comunicações necessárias com as autoridades públicas com vistas ao planejamento de emergências e outras questões relevantes. Segundo Harrington (2001, p. 51), as comunicações são a vida do sistema, já que possuir um sistema operando é o que há de melhor para fazer funcionar, em conjunto, as várias partes de uma organização para estabelecer e atingir os objetivos comuns. A norma refere-se a dois tipos de comu-nicações: interna e externa. Internamente, os procedimentos de comunicação devem garantir que as pessoas que necessitam de informação para realizar seus trabalhos consigam esta informação quando precisarem dela. Isso implica muita comunicação de mão dupla – em outras palavras, não somente dizer às pessoas o que elas devem fazer, como fazer, e quando, mas também assegurar que os meca-nismos de feedback estejam funcionando para que os responsáveis pela melhoria do desempenho do sistema tenham informações boas e confiáveis sobre seu funcionamento. No que diz respeito à comunicação externa, a organização deve decidir sobre seus aspectos ambientais significativos e documentar sua decisão. Se a decisão for por comunicar, a organização deve estabelecer métodos para esta comunicação externa.

3. METODOLOGIA

Para a realização deste trabalho foi usado inicialmente o método da pesquisa qualitativa que, conforme Malhotra (2001), se caracteriza por uma metodologia de pesquisa não estruturada, explo-ratória, baseada em pequenas amostras, que proporcionam insights e compreensão do contexto do problema. Envolveu a revisão de literatura como referencial teórico, utilizado como ponto de partida para entendimento da importância do tema abordado. Seguindo o entendimento de Malhotra (2001), a pesquisa exploratória é comumente usada em casos onde se necessita definir com maior precisão o problema, identificar possíveis cursos de ação ou obter dados adicionais antes de se desenvolver uma abordagem. A principal fonte de dados usados para a revisão de literatura foram livros e artigos sobre gestão ambiental. Para Santos (2000), um estudo de caso é a seleção de um objeto de pesquisa restrito, com o objetivo de aprofundar os aspectos característicos desse, cujo objeto pode ser qualquer fato ou fenô-meno individual, ou um de seus aspectos. A empresa investigada foi a AGCO do Brasil Comércio e Indústria Ltda., descrita neste traba-lho simplesmente como AGCO. A AGCO é uma organização multinacional que fabrica e distribui equi-pamentos agrícolas para o mundo inteiro, que iniciou suas atividades em 1990 e no Brasil, na cidade de Canoas, em 1996. Possui um conglomerado de marcas, e tem como sua marca principal a Massey Ferguson e está inserida em mais de 140 (cento e quarenta) países, que efetuam a comercialização de seus produtos. Conforme AGCO (2010), a missão da companhia é: “crescimento sustentável através do atendimento ao cliente, inovação, qualidade e comprometimento superiores”, consolidando, assim,

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sua constante preocupação com o aperfeiçoamento da qualidade. O estudo de caso contou com um questionário composto por perguntas abertas, que foram respondidas, por e-mail, pela profissional responsável pela implementação e condução da ETE na em-presa estudada.

4. ANÁLISE E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

Conforme respostas do questionário, foi possível identificar que a implementação da ETE da fábrica ocorreu inicialmente há trinta anos, com iniciativa própria, vendo-se que na época não exis-tiam leis rigorosas a este respeito, muito menos obrigando tais iniciativas. A empresa ao fazer isto deu uma demonstração de sua preocupação com a sustentabilidade do meio ambiente, e o principal moti-vador da implementação da ETE foi a alta concentração de óleos e graxas nos dejetos pós-produção, o que se tornava uma grande agressão à natureza quando despejados diretamente no rio que corta a região de Canoas. A própria empresa considera que descartar tais dejetos diretamente na natureza seria uma calamidade e acima de tudo um crime ambiental. A principal dificuldade da implantação do tratamento dos efluentes em escala industrial foi a variação dos dejetos, que quando analisados no programa piloto não apresentaram tanta variação quanto na implementação total do sistema. Os principais setores envolvidos neste desenvolvimento da estação foram a manufatura e manutenção, que são os principais geradores dos dejetos, o setor de meio ambiente, segurança e saúde ocupacional, todos com relevante importância e participação igualmente necessária no desenvolvimento e colocação em prática do sistema. A participação dos colaboradores da empresa no processo foi fundamental e o seu treinamen-to para disposição dos dejetos ao longo da ETE foi destacado pela empresa como principal colaboração dos mesmos. Depende muito da maneira como os colaboradores lidam com os dejetos, na linha de produção industrial, o seu aproveitamento e reutilização ao longo de todas as etapas do tratamento da estação. A respondente do questionário afirma que a ETE não gerou nenhum tipo de ganho financeiro ou mesmo de economia destes recursos no processo produtivo da empresa, ou seja, a estação não trouxe ganho monetário para a AGCO, porém, a mesma não afirmou ter tido aumento de custos pela utilização deste tipo de tratamento na linha de produção. Outro ponto de relativa importância na implementação de sistemas de gestão ambiental por parte das empresas é o ganho de imagem que elas supostamente obtêm ao se inserir em tais progra-mas, porém, a empresa analisada afirma não ter tido tal tipo de retorno ao implementar o seu sistema de gestão ambiental. Não ficou esclarecido em sua resposta qual motivo ocasionou este não aprovei-tamento de imagem externa, bem como o método de exploração da mesma. A empresa não apontou nenhum benefício de utilidade própria gerado pela ETE, tanto finan-ceiro quanto produtivo, muito em função de atualmente existirem leis que obrigam empresas desta natureza a possuírem este tipo de tratamento, diferentemente de quando o sistema foi implantado há trinta anos. Portanto, a principal colaboração que a estação traz diretamente à empresa é o cum-primento de uma obrigação legal, o que foi menos traumático para a organização em função de sua implementação ter sido feita antes do advento da obrigatoriedade. A água gerada ao final do processo é reutilizada na linha de produção, limpeza e banheiros internos, porém seu custo final não traz bene-fícios relativos ao custo da água potável encanada. Atualmente, a empresa possui como objetivo principal de sua área de gestão ambiental di-minuir a geração de efluentes em sua linha de produção, através do uso de técnicas e máquinas mais modernas de produção, aumentar as redes de reuso dos dejetos tratados ampliando suas redes inter-nas de distribuição e diminuir os custos de tratamento desses efluentes, buscando assim uma redução do impacto financeiro gerado pela ETE. A organização demonstrou estar empenhada na melhoria e desenvolvimento não só de sua es-tação de tratamento de efluentes, mas de seu setor de gestão ambiental como um todo, que é formado por diversos projetos.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo principal deste artigo foi verificar as principais dificuldades e benefícios gerados pela imple-

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mentação da ETE na fábrica de tratores da AGCO, na cidade de Canoas. A importância de tal intenção se justifica através da posição de destaque que os sistemas de gestão ambiental vêm ganhando atual-mente no mundo. A sustentabilidade da natureza tem sido frequentemente tema de acalorados debates e dis-cussões ao redor do globo. Soma-se a isso a constante criação de normas, regulamentos e leis impondo maior cuidado com os recursos naturais por parte das empresas em geral. É fundamental que se procu-re estudar e entender tal tema como fonte de conhecimento ímpar necessário à atividade de qualquer administrador de empresas nos dias atuais. O objetivo, como descrito neste trabalho, foi alcançado e suas intenções esclarecidas. Este estudo possibilitou entender o projeto inserido em um contexto de sustentabilidade do meio ambien-te. A importância de se cuidar dos recursos naturais, bem como o respeito na utilização dos mesmos, foi algo que ficou evidente ao longo de todo o desenvolvimento e utilização da estação de tratamento de efluentes da organização estudada. Pôde-se verificar também, com clareza, as principais dificulda-des de implementação e os principais benefícios gerados pelo programa para a empresa. Como limitações é possível destacar o fato do instrumento de coleta de dados ter sido um questionário enviado por e-mail, em função da distância e disponibilidade de tempo por parte da res-pondente para se realizar uma entrevista pessoal. Provavelmente uma visita à fábrica e a utilização de uma entrevista semiestruturada proporcionaria uma maior quantidade de informações para análise. Como sugestão de pesquisa futura fica a possibilidade de se aprofundar mais a questão re-ferente a não geração de ganho em imagem pública por parte da empresa através de suas ações de gestão ambiental. Uma investigação das causas e possíveis sugestões de mudança desta realidade seria pertinente e de utilidade, tanto para a empresa quanto para estudo acadêmico.

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ções em cores são aceitas, mas o custo de impressão é de responsabilidade do autor.• As citações no interior do texto devem obedecer as seguintes normas: um autor (Linsen, 1988);

dois autores (Vergara e Vermonth, 1960); três ou mais autores (Larrousse et al., 1988). Trabalhos com mesmo(s) autor(es) e mesma data devem ser distinguidos por sucessivas letras minúsculas (Exemplo: Scouth 2000a,b), o mesmo ocorrendo com trabalhos de múltiplos autores que tenham em comum o primeiro deles. Não utilizar op. cit. nem apud. Devem ser evitadas citações a in-formações pessoais e de trabalhos em andamento.

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