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ÉTICA DA PESQUISA E ÉTICA PROFISSIONAL EM SOCIOLOGIA: UM COMEÇO DE CONVERSA Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS Jacob Carlos Lima* REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015 Resumo O artigo discute como o profissional da sociologia enfrenta os dilemas ético e morais em sua atividade, e como esses dilemas são resolvidos tendo como referência as orientações presentes desde a formação da disciplina. Recupero minha experiência de pesquisador, professor e orientador. A experiência nas três atividades sintetiza a atividade do sociólogo na universidade, lócus principal, embora não exclusivo, da atuação profissional. E permite uma certa generalização, pois no mercado – empresas, instituições, ONGs – o profissional enfrenta di- lemas éticos semelhantes. Além de uma explanação de questões me- todológicas que remetem aos autores clássicos da disciplina, utilizo o Código de Ética da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), como parâmetro para debater alguns dilemas enfrentados no cotidiano. Palavras chaves: Sociologia e Ética; Moral e Ética Profissional; Plágio ethical and moral dilemmas in their activity, and the ways throu- gh which these dilemmas are solved and taken care of by our own ethical guidelines. The author recalls some personal experiences as researcher, professor and student advisor. The author´s recollections allow a certain generalization, because public sociologists face simi- lar ethical dilemmas in the market comprised by private and public enterprises, academic institutions, and NGOs. In addition to an ex- planation and discussion of methodological issues, which bring back classical works by the discipline´s forefathers, a focus on the Brazi- lian Sociological Association (SBS) ethical parameters in the conduct of inquiry provides a clue to the challenges still facing the everyday life in the world of applied science. Keywords: Sociology and Ethics; Moral and Professional Ethics; Pla- giarism RESEARCH ETHICS AND PROFESSIONAL ETHICS IN SOCIOLOGY Abstract This paper discusses how the profession of sociology faces crucial *Doutor em Sociologia pela USP (1992), com pós-doutorado no De- partment of Urban Studies and Development do Massachusetts Ins- titute of Technology (EUA-2001). Professor Titular no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Pes- quisador do CNPq. Foi Coordenador da Área de Sociologia na CAPES (2011-2014). Atua em pesquisas nas áreas de Sociologia do Trabalho e Sociologia Econômica, destacando-se as seguintes temáticas: rees- truturação produtiva, reespacialização da produção, trabalho flexí- vel, trabalho informal, empreendedorismo, redes sociais e mercados de trabalho urbanos, trabalho informacional, cooperativas de traba- lho e economia solidária, culturas do trabalho e mobilidades.

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ÉTICA DA PESQUISA E ÉTICA PROFISSIONAL EM

SOCIOLOGIA: UM COMEÇO DE CONVERSA

Sociedade Brasileira de Sociologia – SBS

Jacob Carlos Lima*REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan./Jun./2015

ResumoO artigo discute como o profissional da sociologia enfrenta os dilemas ético e morais em sua atividade, e como esses dilemas são resolvidos tendo como referência as orientações presentes desde a formação da disciplina. Recupero minha experiência de pesquisador, professor e orientador. A experiência nas três atividades sintetiza a atividade do sociólogo na universidade, lócus principal, embora não exclusivo, da atuação profissional. E permite uma certa generalização, pois no mercado – empresas, instituições, ONGs – o profissional enfrenta di-lemas éticos semelhantes. Além de uma explanação de questões me-todológicas que remetem aos autores clássicos da disciplina, utilizo o Código de Ética da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), como parâmetro para debater alguns dilemas enfrentados no cotidiano.Palavras chaves: Sociologia e Ética; Moral e Ética Profissional; Plágio

ethical and moral dilemmas in their activity, and the ways throu-gh which these dilemmas are solved and taken care of by our own ethical guidelines. The author recalls some personal experiences as researcher, professor and student advisor. The author´s recollections allow a certain generalization, because public sociologists face simi-lar ethical dilemmas in the market comprised by private and public enterprises, academic institutions, and NGOs. In addition to an ex-planation and discussion of methodological issues, which bring back classical works by the discipline´s forefathers, a focus on the Brazi-lian Sociological Association (SBS) ethical parameters in the conduct of inquiry provides a clue to the challenges still facing the everyday life in the world of applied science. Keywords: Sociology and Ethics; Moral and Professional Ethics; Pla-giarism

RESEARCH ETHICS AND PROFESSIONAL ETHICS IN SOCIOLOGY

Abstract

This paper discusses how the profession of sociology faces crucial

*Doutor em Sociologia pela USP (1992), com pós-doutorado no De- partment of Urban Studies and Development do Massachusetts Ins- titute of Technology (EUA-2001). Professor Titular no Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Pes- quisador do CNPq. Foi Coordenador da Área de Sociologia na CAPES (2011-2014). Atua em pesquisas nas áreas de Sociologia do Trabalho e Sociologia Econômica, destacando-se as seguintes temáticas: rees- truturação produtiva, reespacialização da produção, trabalho flexí- vel, trabalho informal, empreendedorismo, redes sociais e mercados de trabalho urbanos, trabalho informacional, cooperativas de traba- lho e economia solidária, culturas do trabalho e mobilidades.

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http://dx.doi.org/10.20336/rbs.101
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L’ÉTHIQUE DE LA RECHERCHE ET L’ÉTHIQUE PROFESSIONNELLE EN SOCIOLOGIE

Résumé

Dans cet article, j’analyse comment le professionnel de la sociolo-gie travail avec les dilemmes éthiques et moraux dans leur activité. J’utilize la mémoire de mon expérience comme chercheur, professeur et directeur de thèse. L’expérience dans cette activités résume la pra-tique de sociologue dans l’université, principal lieu, mais non exclu-sif, de la pratique professionnelle. Et il permet une certaine générali-sation, parce que en le marché – les entreprises, les institutions, les ONG – les dilemmes professionnelles et éthiques ils sonts similaires. En plus d’une explication de problèmes méthodologiques de la dis-cipline, j’utilise le Code de déontologie de la Société de Sociologie brésilienne (SBS), en tant que paramètre pour discuter les dilemmes rencontrés dans la vie quotidienne dans le travail.

Mots-clés: Sociologie et Éthique; Moral et Étique Professional; Le Plagiat

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ÉTICA DA PESQUISA E ÉTICA PROFISSIONAL EM

SOCIOLOGIA: UM COMEÇO DE CONVERSA

Jacob Carlos Lima

A questão da ética na prática profissional dos sociólogos está presente desde a origem da disciplina, no debate sobre como estudar os fenômenos sociais, e sobre como o pesquisador lida com um objeto que, de um jeito ou de outro, não lhe é externo. No cotidiano da atividade profissional enfrentamos diversos desafios éticos e morais que nem sempre aparecem como tal, ou que às vezes atribuímos a fatores culturais difíceis de combater. Os códigos de ética buscam estabelecer critérios que norteiam a ação frente às fraudes que a acompanham. Assim como fazemos regras, construímos formas de burlá-las.

Neste artigo, busco discutir como o profissional da Socio-logia enfrenta os dilemas morais em sua atividade tendo como referência a memória da minha experiência de pesquisador, professor e orientador. Cursos como metodologia da pesquisa e seminário de projetos têm sido constantes em minhas atri-buições didáticas, o que tem permitido acompanhar o deba-te metodológico-operacional do fazer a pesquisa, assim como na construção de uma moralidade própria da atividade. Como toda moralidade, não estanque ou definitiva, reflete o debate na sociedade sobre valores e regras sociais, num processo em mudança permanente. A experiência nas três atividades sinte-tiza a atividade do sociólogo na universidade, lócus principal,

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embora não exclusivo, da atuação profissional. E permite uma certa generalização, pois no mercado – empresas, instituições, ONG – o profissional enfrenta dilemas éticos semelhantes.

A Sociologia enquanto disciplina é composta de diferentes cor-rentes teórico-metodológicas que a constituem e configuram, e que sugerem, às vezes, caminhos e procedimentos diferenciados e, às vezes, opostos. Mas, na construção de seus corpus teórico--metodológico, existe uma aceitação tácita de procedimentos que preservam sua cientificidade. Isso convive com eternos debates sobre sua existência enquanto tal, natureza do objeto, formas de abordagens, interpretações, tipo de dados, etc. Não pretendo en-trar nessa discussão instigante, mas interminável, e sim utilizá-la como referência do caminho percorrido. Privilegiei alguns aspec-tos presentes tanto nos textos teórico-metodológicos, como em có-digos éticos da disciplina que refletem o debate em seus aspectos práticos, mesclando com experiências pessoais no enfrentamento dessas situações no cotidiano.

O texto está estruturado em itens selecionados do Código de Ética da Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), e está assim organizado: num primeiro momento, recupero de forma, digamos, paisagística, a discussão do objeto da Sociologia e da relação sujeito objeto a partir dos autores e escolas clássicas que constituem a disciplina: Émile Durkheim, Karl Marx, Max Weber e a Interação Simbólica. Em se-guida passo a considerações sobre a profissionalização do campo da Sociologia, o papel do sociólogo na universidade e os dilemas en-frentados no ensino. Isto remete aos desafios da pesquisa, o enfren-tamento da sociologia profissional e sociologia pública, destacando a importância da primeira para a legitimidade da segunda. Continuo exemplificando alguns problemas éticos enfrentados em situação de pesquisa. Um último item destaca a divulgação dos resultados de pes-quisa e o plágio como um desafio ético permanente.

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A relação sujeito-objeto na pesquisa sociológica

Durkheim é referência obrigatória na discussão da Sociologia como a ciência da moral, o estudo de valores e regras que garantem a coesão social. Importa a ele como os indivíduos vivem juntos, o que os leva a isso e como se mantém. A interação social e a integração são dadas pelo compartilhamento de valores tornando a sociedade viável. Normas e valores têm uma existência externa aos indivíduos e um poder de coerção que os torna fatos sociais, com regularidades possíveis de serem investigadas. Os indivíduos nascem numa so-ciedade que encontram pronta, valendo analisar como se adequam ou não a ela. Adotando uma fundamentação organicista, conside-ra que a sociedade se constitui em um todo sistêmico, com todas suas partes interligadas em funções específicas. Essa interligação se daria pela solidariedade orgânica decorrente da crescente divisão social do trabalho no capitalismo. A não adequação dos indivíduos é percebida como desvio a ser superado. A anomia, ou a incapaci-dade da sociedade integrar os indivíduos, decorre de situações de crise nas quais as regras e normas sociais deixam ser observadas. Um exemplo, na sociedade europeia do final do século XIX, é o da luta de classes, do conflito entre capital e trabalho, como uma crise de valores que, para Durkheim, deveria ser substituída pela relação harmônica corporativa entre os trabalhadores e capitalistas em suas associações. Os fatos sociais, objeto da sociologia, deveriam ser ana-lisados como coisa externa aos indivíduos, tal como nas ciências biológicas, exigindo a neutralidade do pesquisador. Essa neutrali-dade e a regularidade dos fenômenos sociais dariam cientificidade à Sociologia assim como a outras ciências. Nesse ponto, entram os conceitos de julgamento de valor e julgamento de realidade. Para ele, o julgamento de realidade é objetivo, fundado em fatos verificáveis, e o julgamento de valor é subjetivo no qual cada pessoa avalia uma situação a partir dos seus valores pessoais. O sociólogo deve se afastar dos julgamentos de valor como forma de conhecimento objetivo dos fatos sociais (DURKHEIM, 1995).

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Seguindo o receituário positivista e evolucionista do contexto francês do século XIX, Durkheim defende a Sociologia como disci-plina científica, seguindo os procedimentos das ciências naturais. Ele se contrapunha à influência do marxismo nessas lutas e combatia a ideia desse conhecimento enquanto reflexo dessas lutas. A mudança social seria resultado de um processo evolutivo, no qual a educação, o conhecimento técnico e científico teriam papel determinante.

Ao contrário de Durkheim e mesmo de Weber, preocupados com a criação da ciência da sociedade, Marx e seus seguidores estavam preocupados com a mudança social a partir do desenvolvimento de uma teoria social resultante da ação política e dos movimentos so-ciais. O indivíduo não seria passivo na sociedade. Sua agência estaria na sua organização enquanto classe e suas lutas. Longe de qualquer neutralidade, todo o conhecimento refletiria uma situação de classe, atendendo, dessa forma a interesses específicos de grupos na socie-dade. Essa percepção não implica no abandono da busca de um co-nhecimento objetivo, mas parte da premissa da impossibilidade de alcançá-lo totalmente. “O Capital”, obra da maturidade de Marx, é percebida por seus comentadores como a realização da proposta de uma teoria materialista da história, ou de uma Sociologia na qual os dados empíricos se articulam numa teoria demonstrativa do desen-volvimento da sociedade capitalista e seu caráter transitório. A mu-dança, ou a transformação social, é produto do movimento das clas-ses na sociedade em defesa de seus interesses, na luta permanente em opressores e oprimidos. Não interessa aqui como os homens se coe-sionam na vida social, mas na luta pela mudança para uma sociedade mais justa e igualitária capitaneada pela classe trabalhadora. A luta de classes como motor da história decorre desse caráter inacabado, em evolução constante a partir do desenvolvimento das forças produ-tivas. A cientificidade da proposta poderia ser provada com dados. A moral é entendida por seu aspecto ideológico da justificação de uma ordem social (MARX, 1975; 1977).

Weber, vinculado a uma tradição subjetivista presente na filosofia alemã, recusava a neutralidade positivista do conhecimento. As ciên-

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cias do espírito se contrapõem a uma ciência da razão resultando numa sociologia compreensiva, na qual o indivíduo, seus valores e motiva-ções, explicam a ação social. Embora parta do indivíduo, este não é per-cebido como uma somatória na composição do social como na tradição da economia clássica inglesa. Ao contrário, a sociedade é formada por indivíduos que orientam sua ação a partir de situações historicamente dadas, existindo uma multiplicidade causal na explicação e compreen-são dos fenômenos sociais, na qual sentidos e motivações impedem qualquer determinismo. Na investigação social, os valores estão sem-pre presentes, mas existe uma distinção entre julgamentos de valor e julgamento com relação a valores, o que possibilita enfrentar a questão da objetividade do conhecimento. Utiliza o conceito de neutralidade axiológica, ou com relação a valores, indicando que cabe ao pesqui-sador explicitar os valores que norteiam a escolha do objeto e impedir que estes interfiram na realização da pesquisa. Preocupado com a cres-cente racionalização da vida social, Weber destaca a importância dessa racionalidade, enquanto objetividade do conhecimento, na sociologia, na qual o pesquisador é parte do objeto desse conhecimento. A partir dessas três matrizes teórico-metodológicas, discute-se a racionalidade do conhecimento, e formas de operacionalização. A relação sujeito-ob-jeto na pesquisa assume um papel fundante, assim como tem início a profissionalização da atividade de sociólogo (WEBER,1991;1992).

É possível estabelecer uma quarta matriz, representada pela Sociologia norte-americana, por seus desdobramentos em termos de pesquisa e profissionalização. A Escola de Chicago teve um papel central nesse processo, discutindo e experimentando instrumentos de pesquisa e na formação de profissionais para atuar em sociologia. Sua proposição teórica metodológica conhecida como Interação Sim-bólica fundamenta-se na concepção de que as pessoas produzem suas ações e significações, com influência da psicologia social através de Herbert Mead e autores europeus como Georg Simmel e Gabriel de Tarde. Estabelece o que ficou conhecido como microssociologia, com o desenvolvimento de métodos qualitativos atuando conjuntamente com a antropologia, disciplina que integrava o mesmo departamento

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até 1929. Seguindo a tradição da filosofia pragmática norte-america-na, recusa o caráter ensaístico da disciplina, se caracterizando por um forte apelo empírico (COULON,1995; BECKER, 1996).

Numa vertente distinta dessa matriz, a “grande teoria” parsoniana marcará a sociologia estruturalista norte-americana com o desenvol-vimento de métodos e técnicas quantitativas através de surveys enco-mendados pelo Estado no final da 2° Guerra Mundial. É desse perío-do, também, a guinada conservadora dessa sociologia na defesa dos princípios da sociedade norte-americana e sua expansão imperialista num contexto de guerra fria.

De forma geral, essas matrizes do pensamento sociológico mos-tram, de imediato, o quão complexa é a análise da lógica e das diver-sas tradições teórico-metodológicas na Sociologia, como apontei ini-cialmente (e poderia estender a afirmação para o campo das ciências humanas e sociais), impedindo que seus pressupostos, principalmen-te no que diz respeito à relação sujeito-objeto, e a suposta neutralida-de do primeiro, sejam compreendidos de maneira generalizada como quer a discussão daqueles que defendem a extensão das normatiza-ções de ética em pesquisa do sistema CEP/Conep para todas as áreas do conhecimento. A especificidade do social e seu caráter histórico, a todo momento, é reforçada, mesmo nas abordagens que buscam aproximar a sociologia das ciências naturais.

Desde as origens da Sociologia, seus “pais fundadores”, ao deba-terem exaustivamente questões metodológicas, traziam junto com o debate princípios éticos que indicavam condutas a serem observadas nas pesquisas. Principalmente, o respeito às populações vulneráveis, desde sempre, seu foco de investigação. Como estudar as populações vulneráveis, como os trabalhadores e seus espaços de trabalho; os imigrantes em processo de reorganização social; camponeses; as for-mas de segregação social, racial, espacial; como entrar no campo e fazer um trabalho etnográfico em áreas urbanas, e outras temáticas afins. Embora a formalização dos procedimentos éticos tenha sido gradativa, acompanhando a crescente formação e profissionalização da área, ela é constituinte da própria disciplina.

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A profissionalização

Enquanto disciplina, a Sociologia, desde seu surgimento sofre um questionamento permanente com relação à especificidade de seu ob-jeto e mesmo sobre sua cientificidade. Isso repercute na profissiona-lização dos seus formados e na frágil elaboração de uma identidade profissional. A formação graduada e pós-graduada não resulta numa especialização com um corpus normativo de pressupostos que orien-tem suas atividades. Não existe uma normatização das atividades do profissional de Sociologia, com exigências com relação à entrada no campo, reserva de mercado, exigindo um conhecimento especializa-do para sua atuação (FRIEDSON, 1998). As associações nacionais e internacionais estão voltadas mais ao debate acadêmico da disciplina, ao avanço teórico e empírico, às pesquisas e seus dilemas. Várias ativi-dades desenvolvidas pelos sociólogos podem ser realizadas por outros profissionais das Ciências Sociais ou Humanas: antropólogos, políti-cólogos, historiadores, geógrafos, filósofos, economistas, não existindo exclusividade em sua atuação. Com isso, o campo por excelência da so-ciologia, no Brasil, está na academia, nos departamentos universitários onde são realizadas as pesquisas e a formação dos novos profissionais.

Os sindicatos e mesmo a Federação Nacional de Sociólogos estabe-lecem normas e códigos de conduta, mas os limites presentes na pro-fissionalização influem no alcance de sua atuação na defesa da profis-são e na consolidação dessas entidades. Os sindicatos não conseguem estabelecer uma pauta de reivindicações para uma categoria dispersa em diversas atividades no setor público e privado, com representação política enquanto categorias mais amplas como associações/sindica-tos docentes e de funcionários ou profissionais vinculados aos ramos de atividades de instituições e empresas nas quais trabalham.

No Brasil, o ensino da Sociologia teve início em 1933 e se bene-ficiou da vinda de professores franceses e norte-americanos que aju-daram a construir o campo neste país. A fundação da revista Socio-logia, da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, em 1939, tornou-se instrumento privilegiado da divulgação das pesquisas so-

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ciológicas e antropológicas nas décadas seguintes, e que se tornaram referência na constituição da disciplina – inquéritos sobre famílias de trabalhadores, estudos de comunidades, preconceito racial e imi-gração – influenciados pela tradição da Escola de Chicago, e marca-dos pelo rigor metodológico e pela ética na condução das pesquisas (KANTOR; MACIEL; SIMÕES, 2009). Se a década de 1930 marcou a formalização do campo acadêmico da Sociologia no Brasil, deve--se lembrar que, anteriormente, a disciplina era ministrada no ensi-no secundário e pesquisas de cunho sociológico e antropológico já eram desenvolvidas no país. A discussão sobre raça e imigração, tema candente desde então entre nossos “médicos sociais” (higienistas e sanitaristas), nunca se traduziu em uma apologia de experimentos em humanos, tais como os conduzidos pela medicina da Alemanha nazista. O exemplo de Edgard Roquette-Pinto, médico e antropólogo, revelava, em suas pesquisas e publicações nos “Archivos” do Museu Nacional, a recusa da antropologia médica brasileira a adotar ética e cosmovisões inspiradas em princípios racistas e eugenistas.

Em 1937, foi fundada a Sociedade Paulista de Sociologia e, em 1950, a Sociedade Brasileira de Sociologia. Podemos citar a criação de associações profissionais no Rio Grande do Sul e São Paulo na década de 1960 e 1970 e a existência de projetos visando a regulamentação da profissão, que ocorreu efetivamente apenas em 1980. A ampliação do debate sobre a profissionalização do sociólogo se dá, efetivamen-te, com a expansão do ensino superior na década de 1970. Mas será com a democratização do país, a partir de 1985, que o mercado abrirá novas possibilidades de trabalho geralmente vinculadas à atuação no Estado, em vários níveis de governo, ONG, institutos de pesquisa, consultorias, etc. (http://www.fns-brasil.org.). Ora, em nenhum des-ses momentos de institucionalização os sociólogos abriram mão da preocupação pelo respeito ao participante de suas investigações. O exemplo dos estudos de Oracy Nogueira sobre os tuberculosos em Campos do Jordão – por meio de observação participante – revelava uma conduta ética, além da atenção aos aspectos metodológicos. (Ve-ja-se seu livro hoje clássico, em recente reedição, NOGUEIRA, 2009).

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A ciência síntese

Sem entrar no embate epistemológico e político da constitui-ção de campos de conhecimento e tradições disciplinares, assim como de suas fronteiras, estamos frente a uma discussão sobre identidade profissional e reserva de mercado que caracterizam as profissões e explicam as lutas do campo. Talvez pela característi-ca interdisciplinar constituinte da disciplina que Auguste Comte (1978) chamou de ciência síntese de todas as outras, e mesmo com o debate posterior na qual a sociologia se insere como uma das ci-ências sociais, ainda permanece, pelo menos no Brasil, a utilização como sinônimos dos termos sociólogo e cientista social. Na pró-pria regulamentação da profissão, o formado em Ciências Sociais é considerado sociólogo.

A estruturação da formação em Sociologia entre nós, seja como Sociologia e Política, seja como Ciências Sociais, garantiu uma forma-ção conjunta das três disciplinas – Sociologia, Política e Antropologia – na graduação, com a especialização na pós-graduação. Em muitos casos, na pós-graduação, a formação continua sendo em Ciências So-ciais, sendo que a pesquisa desenvolvida pelo pós-graduando termina indicando uma especialização disciplinar. A expansão da formação graduada e pós-graduada em Antropologia e Ciência Política, assim como a expansão de um mercado de trabalho voltados a essas disci-plinas, tem explicitado a diferenciação das atividades profissionais no âmbito das Ciências Sociais, tal como uma busca por especificidades e pela construção de identidades próprias. Essa busca não significou o abandono de objetivos comuns no tocante à ética na pesquisa, como a Anpocs veio a sinalizar, através da indicação de fóruns e grupos ad--hoc, para a formalização de princípios de conduta ética para todas os campos da Ciência Social no Brasil. Novos desafios éticos se colocam na expansão do ensino de pós-graduação pela organização de cursos interdisciplinares que extrapolam as fronteiras das Ciências Sociais “strictu-sensu”, com a incorporação da Economia, Comunicação So-cial, Literatura, História, Direito e outras.

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Não só a sociologia, mas todas essas áreas de conhecimento/forma-ção citadas possuem seus códigos de ética e comissões, instâncias de avaliação diversas que, se não são necessariamente suficientes para uma boa formação profissional, não devem ser desprezadas na dis-cussão. Isto porque possibilitam que a própria comunidade acadêmi-ca/profissional estabeleça seus parâmetros de acompanhamento das atividades desenvolvidas e aprimorem seus instrumentos.

Praticando Sociologia

Os códigos de ética da Sociologia, normatizados a partir do pro-duzido pela Internacional Sociological Association (http://www.isa--sociology.org/about/isa_code_of_ethics.htm), aprovado em 2001, e utilizado como referência na elaboração do código da Sociedade Brasileira de Sociologia (http://www.sbsociologia.com.br/portal/ima-ges/docs/codigoetica.pdf), destacam a pluralidade das perspectivas científicas que deveriam estar presentes nas atividades profissionais e no ensino da sociologia, assim, como na inexistência de verdades absolutas em seus pressupostos.

Em “ciência como vocação”, Weber já destacava a diferença entre a tribuna e a cátedra. Insistia que a cátedra deveria indicar as diversas correntes do pensamento, sem dirigi-lo. A defesa de ideias e os emba-tes políticos tem na tribuna o seu espaço fora da sala de aula (1992). Pierre Bourdieu (1999, p.37) retomou essa discussão enfatizando que o sociólogo, mais do que os outros especialistas, está exposto ao ve-redito dos não especialistas quando identificado em sua sociologia espontânea. A afinidade entre os conceitos mais apurados e os esque-mas comuns no discurso possibilitam mal-entendidos e a absorção profética de falas imbuídas de cientificidade. Para ele, o sociólogo deveria combater o profeta social, que se vê obrigado a encarnar, para atender um público ávido de profecias sociais.

O profetismo destacado por Weber para atender a um público não acadêmico em sua atividade cotidiana, que tem como substrato o senso comum, poderia constituir um “risco”, dadas as peculiaridades

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do objeto da sociologia e o envolvimento dos profissionais no debate político. Tanto Weber como Bourdieu têm como referência o cenário europeu e uma sociologia construída no debate das grandes questões sociais e políticas do continente.

Do outro lado do Atlântico, Wright Mills (1975), no contexto nor-te-americano, observa criticamente o sociólogo da pesquisa social aplicada e excessivamente voltada a clientes, a exemplo dos parti-dos políticos, e na qual a objetividade entendida como isenção fica comprometida. Mills foi um combatente incansável. Criticava, nesses casos, o mercado vir a estabelecer o sucesso de escolas sociológicas frente às outras na carreira acadêmica, criando hegemonias teórico--metodológicas. Era a ciência social burocrática, fundada em mé-todos objetivos, e na criação de “estadistas acadêmicos”, destacados menos pela sua produção efetiva e mais como suporte dessa burocra-cia. Isto colocava em xeque qualquer perspectiva da neutralidade do conhecimento científico e a própria ética profissional, mas alertava, também, para um lado complicado da disciplina: em nome da inexis-tência dessa neutralidade, caía-se em um vale tudo no qual preferên-cias teórico-metodológicas-ideológicas determinavam como a pesqui-sa seria realizada, ou como a disciplina seria ministrada.

No Brasil, houve prontas reações, que ainda hoje se sustentam. Discutindo a aceitação da obra de Weber pela Sociologia brasileira historicamente, Glaucia Vilas Boas (2014) destaca a resistência à “neutralidade axiológica” num contexto no qual a nascente Sociolo-gia procurava discutir e intervir no debate sobre o “atraso” e a entrada do país na “modernidade”; a passagem de uma sociedade agrário-ex-portadora, para uma sociedade industrial; os dois brasis que repre-sentavam esses polos; das saídas do subdesenvolvimento para o de-senvolvimento econômico e social. Contexto que exigia do sociólogo uma atuação proativa no debate político, o que não se coadunava com a perspectiva vocacional e ascética weberiana. Com isso, a Sociologia brasileira se forma e se consolida com a permanente intervenção pú-blica e conduta ético-política de seus profissionais frente às questões nacionais, com suas obras refletindo os debates em curso.

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A relação “tribuna” e “sala de aula” é retomada por Michael Bu-rawoy (2006) em sua discussão sobre sociologia pública. Para ele, a divisão do trabalho sociológico está vinculada a tipos de audiências, a acadêmica e não acadêmica; e de conhecimento, reflexivo e instru-mental. Essa relação entre audiências e tipo de conhecimento leva a sociologias específicas: uma sociologia profissional voltada a uma audiência acadêmica e a um conhecimento instrumental dentro dos parâmetros do profissionalismo, marcado pela avaliação entre pares, domínio das normas científicas, relação entre teoria e empiria; uma sociologia crítica, também voltada a uma audiência acadêmica, de cunho reflexivo, moral e normativo. Os aspectos moral e normati-vo devem ser salientados. Para a audiência extra acadêmica, existiria uma sociologia voltada às políticas públicas de caráter instrumental, voltada à intervenção prática e por vezes subordinada a clientes; e a sociologia pública, aberta aos debates públicos, e orientada por uma perspectiva de um conhecimento mais reflexivo. Embora estes tipos ideais baseiem-se na experiência norte-americana, Burawoy indica que o esquema pode ser estendido a outros contextos nacionais. Con-sidera que, nessa divisão do trabalho, a cientificidade da sociologia profissional é o substrato para as demais ciências, garantindo a legiti-midade do discurso e da atuação pública do sociólogo.

No dia a dia do trabalho acadêmico, o debate sobre as várias teo-rias, assim como a necessidade de os estudantes conhecê-las, deverá sempre aparecer como problema ou mesmo como dilema moral. Mo-dismos teóricos tendem a funcionar como inibidores de discussões e leituras de textos e autores clássicos ou contemporâneos tidos como ultrapassados, ou relegados a uma história da disciplina. Quando são redescobertos a partir de questões sociais que se impõem, as coisas mudam e às vezes passam a ser superavaliados.

O debate ético e as questões morais devem estar presentes e sem-pre rediscutidas. Analisei diversos projetos de pesquisa de estudan-tes, os quais, ao caracterizarem os problemas de pesquisas, traziam prontas as respostas. A pergunta que se impunha era, então: para que pesquisar? Para que estudar os trabalhadores da empresa X, se

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já conheço, de antemão, que a relação capital versus trabalho é de exploração e tudo é responsabilidade da reestruturação produtiva? Nenhuma indicação que a pesquisa junto a esses trabalhadores poderia recuperar as nuances de um processo, a existência ou não de resistências, os consensos construídos, as diversas formas de conflito e outros achados que poderia encontrar. A Sociologia não tem o caráter normativo do “deve ser”, ou fórmulas mágicas para criar uma boa sociedade. Mas pode fornecer instrumental para seu conhecimento e intervenção em sua direção, afinal, está longe de ser neutra e, para Bourdieu, é um “esporte de combate” (CAR-LES, 2001 - http://www.homme-moderne.org/images/films/pcarles/socio/cyran.html).

Ainda na docência, a disciplina sofre com simplificações na dis-cussão de autores e escolas, principalmente no ensino de graduação, com justificativas variadas, mas que destacam a precariedade per-manente do ensino e da atividade do professor, como se fosse uma sina e uma condenação. Numa direção similar em seus resultados, a secundarização da docência na graduação é justificada pela atividade de pesquisador ter mais prestígio no meio acadêmico. Assim, a for-mação é considerada desde que pós-graduada, somada a publicações que colorem o Lattes. Não é um problema específico da área, mas de toda a universidade que também a atinge.

Considerando que os pressupostos transmitidos pela sociologia têm poder de difusão e de formação de ideias, a manutenção de pre-conceitos disfarçados em um “saber crítico”, que muitas vezes expõe posições ideológicas nem sempre explicitadas, compromete a discipli-na. Isto porque, muitas vezes, reflete generalizações e simplificações pouco ou nada fundamentadas em pesquisas concretas. Entretanto, a crítica é (e deverá sempre ser) parte da própria disciplina, e o debate constante de seus métodos, pressupostos teóricos, balizamentos éti-cos e resultados constituem o saber sociológico. São nossas conquis-tas e desafios. Nesse sentido, também o debate crítico sobre ética em pesquisa é (ou deveria ser) realizado nas várias instâncias acadêmicas de avaliação de projetos: comissões de pesquisa dos departamentos,

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dos centros; pareceres externos que compõem o cotidiano da ativida-de do sociólogo, do pesquisador, do professor.

Na pesquisa, algumas questões parecem tratar, sobretudo, de bom senso acadêmico, mais do que de ética, na acepção da palavra. A pesquisa, no caso brasileiro, majoritariamente com financiamento público, a avaliação dos projetos e da produção pelos pares é um dos elementos básicos da aferição da qualidade ou exequibilidade. Entidades como Capes, CNPq e as diversas FAP, possuem seus co-mitês disciplinares formados e geridos pela comunidade acadêmica, e que são constituídos pelos seus representantes, estabelecendo ou, pelo menos, discutindo, a norma ética. O mesmo acontece nas re-vistas, praticamente todas com peer e blind review. A ética, presente nas normas das entidades e das revistas, estabelece um pressuposto que é o do parecerista, ou consultor, não avaliar projetos ou artigos de autores com os quais mantém relações de amizade próximas ou mesmo de inimizade, não participar de projetos conjuntos ou mesmo outras atividades que comprometam uma avaliação objetiva. Ou seja, em tese, os pareceres não devem se basear em posições pessoais ou políticas, sendo a atitude esperada que o parecerista devolva o texto quando não concordar com a proposta apresentada, evitando conflito de interesses que comprometa seu resultado.

Entretanto, a própria importância conferida pela profissão a tais procedimentos gera um espírito crítico e ações de defesa. Mesmo ob-servados esses procedimentos, são comuns as reclamações e recursos de avaliados contra a denegação de seus projetos por colegas, com a alegação ora de perseguição ideológica, ora de perseguição pessoal. A humildade não é um dos valores dominantes na academia, em qual-quer dos múltiplos ramos da ciência. Aparecem recusas de artigos ou de projetos em pareceres que alegam a ausência de citação da obra do próprio parecerista. Sem dúvida, quando o trabalho é bom, o reco-nhecimento chega, mas é um processo que varia de velocidade. Não se trata aqui nem de ética, mas de bom senso.

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A ética na pesquisa

O debate sobre a utilização da ciência para fins políticos e econô-micos em nome de um conhecimento “desinteressado” é conhecido pelas mais difundidas discussões éticas há várias décadas. A utili-zação de sociólogos, na política externa norte-americana, como no projeto Camelot na década de 1960 (HOROWITZ, 1967); a polêmica sobre as pesquisas do antropólogo Napoleon Chagnon e do geneti-cista James Neel junto aos Ianomâmis do norte do Brasil e fronteira com a Venezuela, nos anos 1970, na busca do gene que explicaria a violência, com a propagação do sarampo e a morte de milhares de índios (DINIZ, 2007); as acusações contra a Associação Americana de Psicologia sobre a colaboração na justificação de torturas entre prisioneiros no pós 11 de setembro, em prisões como Guantánamo (O Globo, 01/05/2015) são alguns dos eventos trazidos ao público, para ficarmos nas ciências humanas e sociais. Se extrapolarmos para as áreas médicas, esses exemplos se multiplicam exponencialmente, com implicações sérias na utilização de seres humanos como cobaias, entre outros exemplos que ficaram marcados na história.

Um artigo clássico sobre a ética de pesquisa na sociologia é “A tran-sação da Sala de Chá” (Tearoom Trade) de Laud Humphreys (1975). O autor, sociólogo americano, sofreu um processo ético por colocar em risco os atores pesquisados ao não lhes informar sobre a pesquisa que realizava. Estudou homens americanos em situações de sexo impes-soal homoerótico, presentes num banheiro público num parque da cidade. Além da observação etnográfica, realizou entrevistas com eles em suas casas, a partir de anotação das placas dos carros estacionados no parque, identificação dos proprietários e localização de seus ende-reços. A ética não foi observada no caráter voluntário da participação da pesquisa, uma vez que os participantes não foram informados de sua realização e não autorizaram; na identificação de seus nomes e endereços, tornando-os vulneráveis, uma vez que a confidencialida-de dos dados ficou por conta do pesquisador. O autor foi processado por questões éticas e quase perdeu seu doutorado. Entretanto, a pes-

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quisa foi considerada precursora de estudos sobre identidades e a observação do comportamento sexual.

Eu descobri o texto num manual de metodologia publicado numa coletânea na década de 1970. Aproveitei para utilizá-lo em sala de aula como forma de dinamizar a disciplina metodologia, pois o tema de certa forma atrairia (sexualidade sempre atrai) os estudantes e possibilitaria uma discussão sobre ética, o que efetivamente acon-teceu. Isto possibilitou uma ampla discussão sobre o caráter da par-ticipação, consentimento, informação, confidencialidade, para que seus resultados não prejudiquem os informantes. A especificidade da investigação sociológica, por outro lado, fica evidente em relação aos temas abordados na pesquisa, que uma burocratização excessiva inviabiliza.

Em outra tentativa de discutir procedimentos de pesquisa e éti-ca, num determinado semestre, convidei colegas para exporem suas experiências na utilização de instrumentos de investigação, formas de entrada no campo e os problemas enfrentados no cotidiano da pesquisa. Dentre as incontáveis pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais que mostram a maturidade dos pesquisadores para encontrar formas éticas e respeitosas de entrar em contato com os participantes da pesquisa e com eles negociar permanentemente a relação pesqui-sador-pesquisado, selecionarei dois casos de minha experiência que demonstram, entretanto, contraexemplos da ética em pesquisa e que foram levados para sala de aula para estimular o debate crítico entre os estudantes sobre o que não fazer. Dois casos emblemáticos que provocaram grande discussão entre os alunos. O primeiro deles pes-quisava uma reserva indígena numa região próxima à universidade. Contando suas formas de aproximação com a população indígena, revelou que levava “alguns presentes” para eles ficarem mais acessí-veis e poder então fazer sua observação participante. Os “presentes” chamaram a atenção dos estudantes que questionaram a ética ausente nesse procedimento, uma vez que a utilização de incentivos termina por coagir os participantes a colaborar, colocando em questão a con-fiabilidade das informações obtidas. O pesquisador justificou ainda

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tratar-se de população que não se encontrava em isolamento, com muito tempo de contato com a sociedade nacional e, inclusive, com bebidas destiladas, como a cachaça, e que os incentivos não tinham comprometido os resultados, até então, obtidos. Sustentou ainda que tais procedimentos tinham sido a única forma de obter colaboração, mas que foi proibido de entrar na reserva pela Funai, o que inviabili-zou a continuidade de suas pesquisas.

Numa aula posterior convidei uma colega, que tinha realizado uma pesquisa-ação num assentamento rural. De forma expansiva e divertida, ela descreveu seus procedimentos, a opção política pela pesquisa-ação e o envolvimento com os trabalhadores rurais. Contou como tinha acompanhado a ocupação e a organização do assentamen-to, além de ajudar nas atividades do dia a dia. Destacou também suas dificuldades, principalmente quanto à objetividade frente ao que es-tava sendo estudado, dado o grau de envolvimento com os assenta-dos. Para evitar maiores problemas, encerrou a pesquisa-ação. Esse detalhe final revelador do backstage da pesquisa aponta para alguns limites da objetividade e a necessidade de se dar conta de quando a pesquisa não está funcionando, ou que os procedimentos não estão adequados. Quando isso não acontece, o pesquisador sujeita-se a ter seu trabalho de campo encerrado.

Esses dois exemplos recuperam as interpretações dadas pelos pes-quisadores sobre como abordar seus temas de pesquisa, os sujeitos neles envolvidos, as dificuldades encontradas, e estratégias estabe-lecidas. Em outros termos, na hora da escolha de uma questão de pesquisa e sua entrada em campo, vários fatores subjetivos intervêm fugindo às prescrições metodológicas estritas, e ficando em muitos casos, nos limites, ou mesmo extrapolam o que se considera ético. Longe de qualquer relativismo, vale lembrar que os códigos de éti-ca profissionais, em geral, terminam por tecer considerações gerais, aceitas pela comunidade, evitando particularizar ou especificar situa-ções. Essas regulamentações não podem ser rígidas e generalizantes para todas as ciências, desconsiderando especificidades, como a das Ciências Humanas e Sociais, por exemplo. Seria uma ingenuidade su-

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por que os princípios e normatizações da bioética pudessem regular e evitar todos os problemas éticos envolvidos em todas as pesquisas de todos os campos O bom senso é um bom conselheiro, e não pode ser tolhido por restrições burocráticas externas ao campo.

Tais foram as situações nas quais a autonomia científica ficou compro-metida, preconceitos foram reiterados, e resultados políticos conflitantes com a ética científica foram produzidos. Tais dificuldades evidentes, exis-tentes em todas as áreas do conhecimento – o exemplo citado, da “co-laboração” entre o geneticista e um antropólogo suscitou questões éticas sérias – não devem invalidar, não podem desconsiderar, como pretendem alguns, vindos de campos da biomedicina – os instrumentos desenvol-vidos pelas ciências humanas e sociais para a avaliação crítica e para os esforços de controle das questões éticas envolvidas nas pesquisas.

Uma erva daninha: o plágio

Outra questão fundamental que exige discussão e enfrentamento no campo geral da ética em pesquisa, a rigor, da ética em obter títulos acadêmicos e publicar, é o do plágio, generalizado em todas as áreas de pesquisa. Se o plágio acadêmico sempre esteve presente, as novas tecnologias digitais facilitaram a cópia sem a devida referência, assim como a sua detecção. Novos softwares são criados como forma de inibir essa prática, e a partir deles, situações são evidenciadas, o que antes era mais difícil.

O plágio acadêmico tem acompanhando a massificação da educação superior globalmente. Ministros, filhos de ditadores, presidentes e outras celebridades do mundo político têm sido objeto de escânda-los públicos envolvendo universidades de prestígio pelas quais obti-veram seus títulos de doutorado. Parte das universidades europeias e norte-americanas obrigam seus estudantes a assinar protocolos de boas práticas acadêmicas, chamando atenção para a questão ética da cópia nos exames e nas publicações. No Brasil, entidades como Ca-pes, CNPq e Fundações de Amparo à Pesquisa têm discutido essas práticas para evitar tais situações.

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Se retornarmos à formação escolar básica, mas não apenas a ela, veremos que os problemas começam bem cedo, na infância acadê-mica do estudante. Estudei em escola pública e me lembro das ten-tativas de cola que fazíamos e disputávamos para ver quem conseguia lograr êxito. Às vezes, fórmulas e fatos históricos distribuíam-se pelas carteiras em pequenos papéis escritos em letras minúsculas, destina-dos ao desaparecimento súbito com a aproximação dos professores. Escritos que se tornavam ilegíveis na pele, papéis que eram engolidos ao primeiro sinal de perigo. Ou cadernos que caiam da carteira no meio da prova. Poucos êxitos. A maioria dos resultados era desastrosas. Uma vez, a professora de História, ao pegar um desses papeizinhos, elogiou o trabalho realizado. Afinal, para fazer aquela coleção de informações habilmente manufaturada foi necessário estudar bastante; logo, para que arriscar a cola, ser pego, e perder todo o trabalho? Essa fala fun-cionou como uma espécie de iluminação. De um jeito meio torto eu estava estudando, não para aprender, mas para colar, e terminava por aprender, uma função latente no dizer de Robert Merton (1970). Foi um aprendizado entender que não era uma atitude ética fazer isso e o que era honestidade intelectual, embora a cola e os papeizinhos apareces-sem como uma espécie de burla sem maiores consequências além de um zero na prova e, no extremo, uma reprovação.

Depois, como professor do ensino básico e médio, foi a minha vez de pegar muitas colas, distribuir zeros, e reproduzir a fala da minha professora de História: era mais fácil estudar, além de trazer menores riscos. Como professor de universidade, minhas provas, na maioria das vezes, são com consulta, logo os alunos têm o material liberado, precisando demonstrar certa capacidade analítica e interpretativa. Colas eventuais aparecem e são, em certa medida, detectáveis. Afinal, todo aluno tem um estilo de escrita e a passagem de um estilo para outro, com maior ou menor habilidade do aluno, torna-se perceptível, com a utilização de uma linguagem mais sofisticada. A cola na uni-versidade assume uma gravidade maior, considerando que o aluno além de mais maduro, é informado da prática de plágio que ocorre quando um autor não é devidamente citado. E da mesma forma que

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copia textos para uma prova, pode fazer o mesmo em monografias, dissertações e teses.

A cópia de trabalhos acadêmicos tem virado um negócio e, recor-demos, isso afeta todos os campos do saber, das matemáticas às ciên-cias biomédicas, da enfermagem às ciências sociais – ninguém esca-pa. Há algumas décadas recebo propostas de empresas especializadas em realizar pesquisas, escrever monografias, dissertações e teses que, atualmente, chegam por e-mail. Uma vez um de seus representantes solicitou espaço para divulgar seu trabalho em uma sala de aula! Outra vez, num curso de especialização, um aluno entregou uma monografia, com trechos inteiros de um artigo meu, sem qualquer referência e, possivelmente sem noção do significado da cópia sem autoria. Pensou, talvez que estivesse me homenageando.

Muitas vezes, detectei trechos de cópias em monografias de cursos de graduação e entre orientandos da pós-graduação. Os estudantes usualmente “esquecem” de citar os autores de referência, ou mesmo de abrir aspas. Inserem no próprio texto os trechos de outros autores como se fossem deles. Atualmente, a profusão de textos na internet impede o professor de identificar a cola pela impossibilidade de atua-lização com o mar de palavras no oceano digital. Os instrumentos de busca ajudam a identificar a cola, mas, ao mesmo tempo, exigem que o professor processe todos os textos dos alunos, o que é inviável. Os atuais instrumentos de busca permitem detectar, mas nem sempre isso acontece a tempo. Na graduação a prática pode ser atribuída à falta de formação para a escrita acadêmica e também ao início da formação do aluno, embora existam disciplinas de métodos e técni-cas de pesquisa, além das demais disciplinas nas quais os alunos são alertados sobre a prática. Na pós-graduação, o plágio continua. Qual a justificativa?

Num mesmo ano recebi duas denúncias sobre trabalhos que te-riam sido plagiados por orientandos meus. No primeiro caso, um alu-no estrangeiro que voltou a seu país para fazer a pesquisa e enviou, posteriormente, um copião da sua dissertação. Comentei com ele que tinha gostado do material e pedi que me enviasse um exemplar do

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livro, bastante citado em suas análises, e que era uma referência sobre o tema, embora com outro recorte empírico. Nunca recebi o livro. Um tempo mais tarde, recebi a versão final da dissertação e marcamos a defesa. A dissertação foi defendida e aprovada e o trabalho conside-rado de certa forma original, dado o recorte empírico escolhido. Pas-sados aproximadamente seis meses da defesa, fui surpreendido com um e-mail denunciando a dissertação como plágio de uma pesquisa de doutorado, publicada em livro. A maior parte do texto da disser-tação era copiada, embora houvesse referências ao texto original em algumas análises. Entendi, então, de onde vinha a originalidade do aluno. Ele nunca tinha feito pesquisa alguma, apenas copiou o que estava pronto.

O segundo caso, mais grave caso seja possível graduar esse tipo de fraude, foi em uma tese de doutorado, nesse mesmo fatídico ano. A doutoranda, uma colega de outra universidade, com mais de 20 anos de academia, depois de certo atraso, apresentou um copião de sua pesquisa de doutorado. Antes disso tinha se comunicado algumas vezes, relatando o andamento de sua pesquisa. Considerei a versão final adequada ao que tinha se proposto fazer como tese. Os protoco-los da defesa de doutorado foram cumpridos, o texto foi para a ban-ca. Repetiu-se a situação anterior. Entre seis e dez meses depois da defesa, recebi a denúncia de uma pesquisadora que me informava a cópia de extensos trechos de sua dissertação, sem qualquer referên-cia. Para comprovar a denúncia enviava-me o seu texto. A comissão organizada pela Universidade, entretanto, encontrou perto de outras 60 páginas de vários autores transcritas sem qualquer referência, con-firmando o que eram apenas indícios.

Nos dois casos, assim que recebi as denúncias, entrei em conta-tos com os alunos perguntando por que tinham copiado. O primeiro respondeu simplesmente que não sabia que não podia copiar. Co-mentando essa frase posteriormente com colegas, vários deles me res-ponderam que tinham ouvido a mesma resposta de alunos flagrados com textos copiados em suas monografias e dissertações. A segunda afirmou que não tinha feito nada demais (sic), e que o procedimento

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de utilizar trechos de outros autores era usual. Faltou, entretanto, di-zer que desde que devidamente referenciados...

Os alunos tiveram seus títulos cancelados. Essas situações estão previstas no código de ética da Sociologia e das demais disciplinas de humanidades. Pelo Código de Ética da Sociedade Brasileira de So-ciologia (SBS), “sociólogos (as) explicitamente fornecem créditos e referências autorais quando eles (as) utilizam dados ou materiais de trabalhos escritos por outras pessoas, tenham estes sido publicados ou não, estejam impressos ou em meios eletrônicos” (http://www.sb-sociologia.com.br/portal/images/docs/codigoetica.pdf). Embora não seja um problema da Sociologia, mas de toda a academia, cada área possui e deve possuir os instrumentos necessários para coibir a prá-tica. Não cabe a quaisquer áreas, isoladamente, exercer em nome de outras a tarefa de escrutínio e defesa de procedimentos éticos para a obtenção de títulos acadêmicos e publicações.

Escolado pelas duas experiências desalentadoras, para dizer o mínimo, qualquer semelhança suspeita em um texto de aluno leva--me à busca de alguma similaridade com outros textos. A suspeição estendeu-se para os trabalhos de todos os alunos, indistintamente. Passei a perguntar-me se, além de professor e pesquisador, teria de ser um detetive. A confiança, substrato de nossas relações pessoais, e fundamental na relação professor-aluno, ficou profundamente abala-da. Não se trata apenas de uma moral ou ética acadêmicas, mas uma moral generalizada numa sociedade marcada por um individualismo exacerbado, pelo “se dar bem a qualquer custo”, tornando isso um valor. E isso aparece em todas as dimensões da vida social e política, e a universidade não escapa disso.

Finalizando

Se retornamos a Durkheim, poderíamos nos referir a uma situa-ção de anomia, na qual as normas sociais perderam valor e precisam ser reconstruídas. Não que estas vigorassem plenamente na nossa ou em qualquer outra sociedade, mas no geral funcionam como

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orientação de condutas com instituições com legitimidade suficien-te para impô-las, ideologicamente ou coercitivamente. Não basta es-tabelecermos parâmetros de uma ética profissional, ou de uma ética na condução de pesquisas, se na formação acadêmica, e na socieda-de em geral, esses parâmetros valem pouco, são desconhecidos ou simplesmente ignorados.

Sem dúvida, a resolução de questões de ordem moral e ética re-quer o permanente debate de nossa atuação profissional e de cida-dãos na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Mas temos que considerar que isto não pode ficar apenas na declara-ção de intenções, quando no nosso dia a dia dos departamentos e da pesquisa, e nas relações com nossos pares, o que vale são fins abstratos, nos quais os meios nem sempre importam. Precisamos definir tais meios no interior de nossas próprias instituições e asso-ciações científicas, nos perguntar que aluno e profissional estamos formando, pois estes reproduzem, em grande medida, o que encon-tram fora e dentro da própria universidade. Vale insistir que cabe às nossas Associações definir os parâmetros éticos da área, assim como formas de inibir os maus procedimentos de pesquisa. Não é possí-vel, entretanto, aceitar a imposição de modelos como o do Conselho Nacional de Saúde, que desconsidera as especificidades dos campos de conhecimento.

Para encerrar, apenas uma citação presente no código da SBS: não apenas o exposto refere-se à ética, mas “cada sociólogo (a) deve suple-mentar o presente código de ética com base em seus próprios valores e experiência, complementando, sem violar, as normas do Código de Ética”. Essa suplementação, nos diria o velho e bom Hans-Georg Ga-damer, deve ser buscada não apenas em nossos próprios valores e ex-periência, mas na tradição mais funda, naquilo que nos vem de nos-sos pioneiros, na tradição “como força vital” (LAWN, 2011, p. 11-30).

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ÉTICA DA PESQUISA E ÉTICA PROFISSIONAL EM SOCIOLOGIA | Jacob Carlos Lima

REVISTA BRASILEIRA DE SOCIOLOGIA | Vol 03, No. 05 | Jan/Jun/2015

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