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CONTRA CORRENTE para quem desafia o pensamento único Número 3 As mudanças no clima são apropriadas por corporações, instituições financeiras e governos como uma oportunidade de legitimar o capitalismo “verde” e aprofundar a exploração dos povos e a mercantilização da natureza. Uma nova roupagem para um velho modelo. • Impactos sociais severos na África e no Brasil • Os fundos verdes do BNDES ainda estão em disputa? • Rio+20: captura pelo mercado e fortalecimento da resistência CRI$E CLIMÁTICA

Revista Contra Corrente - edição nº 3

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Editada pela Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, a edição nº 3 da revista Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão qualificada deste relevante debate sobre o financiamento ao clima. Novamente, contando com a colaboração de valiosos interlocutores, reunimos artigos que, a partir da perspectiva assumida pelo conjunto da Rede, em sua VIII Assembléia Geral, realizada em junho de 2010, percebem o uso das mudanças climáticas como justificativa para um novo – e perigoso – avanço do capital, dessa vez, travestido de “verde”. Casos e depoimentos sobre a apropriação de terras em Moçambique, no Paraná e no Amazonas trazem concretude para estas análises críticas

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Índice

CONTRA CORRENTEpara quem desafia o pensamento único

Número 3

As mudanças no clima são apropriadas por corporações, instituições financeiras e governos como uma oportunidade de legitimar o capitalismo “verde” e aprofundar a exploração dos povos e a mercantilização da natureza. Uma nova roupagem para um velho modelo.

• Impactos sociais severos na África e no Brasil

• Os fundos verdes do BNDES ainda estão em disputa?

• Rio+20: captura pelo mercado e fortalecimento da resistência

CRI$E CLIMÁTICA

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Índice

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Os Bancos já entraram no clima

Monotonia conveniente: a ideologia aquecimentista

A construção social da crise climática

Rio+(ou -) 20: chancela para o capitalismo verde?

Banco Mundial Fora do Clima!... e de nosso países

REDD: financiamento para florestas ou financeirização climática

Fundo Clima: útil, mas suficiente?

De olho nos investimentos na Amazônia

Petróleo do Pré-Sal: investindo no passado

Emissões: os impactos mais renegados das hidrelétricas

África: expropriação de terrase mudanças climáticas

Raposa no galinheiro

O REDD na vida real

Alimento para a mente

Economia verde, mitigação, mercado de carbono, IPCC, PSA, REDD, MDL, UNFCCC, GEE, emissões, Anexo 1... Se o vocabulário e os conceitos utilizados pelo sistema financeiro sempre estiveram longe de ser facilmente

assimilados pela maioria da população brasileira, em se tratando do debate sobre as mudanças climáticas, a falta de compreensão de seu real significado é, também, explícita. A cobertura alarmista e superficial feita pela mídia sobre os “fenômenos climáticos” faz com que as pessoas se acostumem a ouvir alguns jargões, siglas e termos técnicos, mas não oferece subsídios para uma reflexão consistente sobre o tema. Pior ainda é que, por interesses corporativos, muita informação não é veiculada. Ou é, simplesmente, mascarada com expressões leves, como “sustentável”, “verde”, “ecológico”, “florestal”.

No entanto, apesar do vasto desconhecimento sobre o paradigma das mudanças climáticas, ele tem avançado de modo bastante rápido, tanto nos territórios, como nos gabinetes governamentais e escritórios de corporações. Prova disso é que há no Congresso, atualmente, dois projetos de lei (PL 5487/2009, que institui a Política Nacional dos Serviços Ambientais; e PL 5586/09, que regulamenta a Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação – REDD) que podem ser aprovados sem a realização de um amplo debate com a sociedade e antes mesmo das definições internacionais (nas conferências do Clima, na África do Sul, e da Biodiversidade, na Índia, além da Rio + 20).

Neste sentido, esta edição da Contra Corrente pretende contribuir para uma compreensão qualificada deste relevante debate, especificamente, no que se refere ao financiamento ao clima. Novamente, contando com a colaboração de valiosos interlocutores, reunimos artigos que, a partir da perspectiva assumida pelo conjunto da Rede, em sua VIII Assembléia Geral, realizada em junho de 2010, percebem o uso das mudanças climáticas como justificativa para um novo – e perigoso - avanço do capital, dessa vez, travestido de “verde”. Casos e depoimentos sobre a apropriação de terras em Moçambique, no Paraná e no Amazonas trazem concretude para estas análises críticas.

Interessante observar que essa financeirização da natureza é bancada politicamente pelas mesmas velhas instituições, com destaque para o Banco Mundial. Segundo maior banco de fomento do mundo e capitalizado continuamente pelo Tesouro Nacional, o BNDES tem se projetado também como um gestor dos financiamentos relacionados ao clima.

Com a proposta de abarcar a diversidade de atores e posicionamentos da Rede, esta revista apresenta também textos que vão no outro sentido: o de acreditar que mecanismos como o REDD, por exemplo, estão ainda em disputa e, portanto, podem sim apoiar a proteção das florestas e de seus povos. O aquecimentismo e a necessidade de politizar as discussões, assim como os investimentos na Amazônia, no Pré-Sal e nas polêmicas hidrelétricas, também estão contemplados nesta edição. Por último, reunimos uma extensa lista de materiais para quem quiser mergulhar no debate do clima, a partir de uma perspectiva crítica.

Esperamos que você aprecie. Boa leitura!

Editorial Índice

Compreender para resistir

Contra Corrente é uma publicação da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras MultilateraisNúmero 03, Outubro de 2011

Edição: Patrícia BonilhaRevisão: Gabriel Strautman, Lúcia Ortiz e Patrícia BonilhaProjeto Gráfico e Capa: Guilherme ResendeFoto da Contracapa: João Correia Filho

Os artigos assinados refletem a opinião de seus autores/as.E não necessariamente, são questões consensuadas na Rede Brasil.

SCS Qd 01, Bloco L, Edifício Márcia, sala 904Brasília - DF, CEP 70307-900 • t + 55 61 3321-6108www.rbrasil.org.br

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Gabriel Strautman*

A silenciosa e rápida financeirização da natureza exige que a Rede Brasilse aproprie do debate com a missão de explicitar as reais e falsas soluções

Em 2010, foram alocados aproximadamente 10 bilhões de dólares, em todo o mundo, no

financiamento de projetos de adaptação e mitigação das mudanças climáticas1. Segundo dados do Banco Mundial2, este valor deverá alcançar uma média anual de 275 bilhões de dólares antes de 2030, tendo em vista as previsões sobre a necessidade de redução das emissões de gases de efeito estufa. Para isso, novos fundos deverão ser criados ao longo das próximas décadas e, desde já, instituições como o próprio Banco Mundial – entre outros bancos de desenvolvimento multilaterais, regionais e nacionais – estão liderando a gestão destes volumosos recursos.

No entanto, a legitimidade destas instituições financeiras para administrar esses fundos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas tem sido duramente questionada. Organizações e movimentos sociais de diferentes países afirmam a existência de uma grave contradição, na medida em que são também estas mesmas instituições as responsáveis pelo financiamento do sistema capitalista e do modelo de desenvolvimento neoliberal, baseado nos combustíveis fósseis (principal causador do aquecimento global).

Em publicação recente, a organização Amigos da Terra Internacional chamou a atenção para o fato de que 56% dos financiamentos do Banco Mundial para

o setor de energia realizados entre 2008 e 2010 - ou seja, já durante a crise climática -, ainda são para fontes intensivas em carbono, como as termelétricas e o petróleo3. A organização, acompanhada de várias outras, também argumenta que as alternativas do Banco Mundial para

combater o aquecimento global, tais como o mercado de carbono, usinas hidrelétricas, produção de agrocombustíveis e o monocultivo de árvores não passam de falsas soluções para o clima.

Contradições lá e cá O mesmo tipo de análise pode ser feita em relação ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que desde 2008 administra o Fundo Amazônia4. Até agora foram contratados catorze projetos e outros cinco estão em fase de contratação, num valor aproximado de 222 milhões de reais,5 no marco deste que é considerado o maior fundo de promoção à Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) existente no mundo hoje.

Apenas para efeito de comparação, em 31 de março deste ano, o BNDES aprovou um empréstimo ponte de 3,6 bilhões de reais para o consórcio Norte Energia para alavancar o início das obras do polêmico projeto da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em plena Amazônia e que deve resultar na destruição de cerca de 50 mil hectares de floresta. Sem entrar no debate sobre os problemas, limites e riscos de tais mecanismos, parece mesmo haver uma contradição no fato de que o mesmo BNDES, que afirma financiar iniciativas de preservação da floresta com milhões de reais, contribua com bilhões para a sua destruição. O que pretendem, portanto, as instituições financeiras ao reivindicarem a gestão dos fundos para o combate ao aquecimento global?

Essa talvez seja a pergunta central neste debate sobre as possíveis soluções para o problema da mudança climática

“O papel de instituições como o Banco Mundial tem sido o de construir e dar escala a este

verdadeiro mercado de compra e venda do direito a poluir, que é o mercado

de carbono.”

Os Bancos já entraram na “farra” do clima

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e sobre o papel que os bancos devem ter. Além da limitação destas iniciativas para superar o problema estrutural por trás da mudança climática, um detalhe importante sobre a formação dos fundos para adaptação e mitigação das mudanças climáticas é que a grande maioria destes é formada a partir de doações dos países industrializados que também mantém práticas contraditórias.

O Fundo Amazônia, por exemplo, foi formado a partir de uma “doação” do governo norueguês. Embora invista nestes fundos no Brasil e também na Indonésia, a Noruega é dona de empresas petroleiras como a Statoil (que está construindo uma parceria com a Petrobrás) e a Norsk Hydro (que investe na exploração de bauxita na Amazônia, se aproveitando também da construção de Belo Monte como possível fonte de energia futura).

A existência desses fundos permite que esses países, grandes responsáveis pelo aquecimento global, continuem poluindo, já que por esta via constroem uma imagem verde apesar de seguir

seus negócios usuais, com a expectativa de que suas emissões poderão vir a ser compensadas. O papel de instituições como o Banco Mundial, historicamente controlado pelos mesmos países industrializados, tem sido o de construir e dar escala – através da canalização destes volumosos recursos – a este verdadeiro mercado de compra e venda do direito a poluir, que é o mercado de carbono.

A construção do mercado de carbono no Brasil está sendo feita de maneira silenciosa e rápida, com a liderança de instituições financeiras como o Banco Mundial e o BNDES. Para a Rede Brasil, portanto, o debate sobre o financiamento para o clima torna-se obrigatório, e passa pela produção de análises e o compartilhar de conhecimento. O propósito deve ser o de que os verdadeiros responsáveis pelo aquecimento global paguem a conta e de que falsas e perigosas soluções não nos sejam impostas, agravando ainda mais a exploração das riquezas naturais e dos povos do Sul.

A contradição de instituições e países industrializados no

financiamento ao clima: aplicam o veneno e oferecem o remédio

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* Gabriel Strautman é economista e secretário executivo

da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais –

[email protected]

1– Banco Mundial. World Development Report 2010, disponível em http://econ.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/EXTDEC/EXTRESEARCH/EXTWDRS/EXTWDR2010/0,,menuPK:5287748~pagePK:64167702~piPK:64167676~theSitePK:5287741,00.html

2– Idem

3– Friends of the Earth. World Bank: catalysing catastrophic climate change: the world bank’s role in dirty energy investment and carbon markets, disponível em http://www.foei.org/en/resources/publications/pdfs/2011/world-bank-catalysing-catastrophic-climate-change

4– Desde 2009, o BNDES também administra o Fundo Nacional sobre Mudanças Climáticas, mas que ainda se encontra na fase de definição dos seus critérios operacionais. 5– http://www.fundoamazonia.gov.br/FundoAmazonia/fam/site_pt/Esquerdo/Projetos/ e http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/BNDES_Transparente/Consulta_as_operacoes_do_BNDES/setorprivado.html

“O que pretendem, portanto, as instituições

financeiras ao reivindicarem a gestão

dos fundos para o combate ao aquecimento global?”

Nota da editora: a utilização de imagens com expressões em inglês nesta publicação sinaliza que os debates, materiais e mobilizações sobre este tema no Brasil ainda são recentes.

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Oswaldo Sevá*

Monotonia conveniente: a ideologia aquecimentistaDiscordando de uma insistência quase hegemônica, há quem problematize o debate sobre o aquecimento global a partir da política e do próprio rigor científico

E sclarecimento necessário: o autor desse artigo não é climatólogo, nem pesquisador de química ou

física atmosférica, nem geólogo. Não tem condições profissionais nem legitimidade para afirmar nem desmentir assertivas sobre a história recente ou remota do planeta Terra, nem sobre dimensões e comportamento do seu imenso volume de águas oceânicas, lacustres, fluviais e da sua imensa massa de gelos, neves, nuvens e chuvas.

Como engenheiro mecânico e velho pesquisador na área de Energia, tem plena consciência de que a atmosfera, essa estupenda casquinha de gases, poeiras, vapores e condensados que nos envolve, é uma máquina termodinâmica com dois motores: a radiação do sol que nos bate a cada segundo e em todos os recantos a cada dia e ano; e o calor interno do núcleo fundente do planeta. A longuíssimo prazo, parece que esses dois motores tendem a esfriar por causa

do decaimento radiativo - é o que dizem atualmente os estudiosos da física nuclear e da astronomia, e faz sentido.

Muita gente sabe ou intui que não fervemos nem explodimos ao fim de um dia de verão tórrido porque no outro hemisfério faz frio no mesmo dia, e a massa atmosférica se vira como pode soprando ventos e sendo sacudida pelos alíseos da rotação planetária. Também porque a casquinha de poucos quilômetros de espessura conta com um poderoso e onipresente estabilizador e dissipador dessa energia, a massa aquática bem mais espessa, em permanente circulação, em incessante troca de estados físicos: de líquido a sólido e de novo a líquido, daí a vapor e, de novo, a líquido.

De fato há consenso de que a atmosfera da Terra é única e funciona para nós como uma verdadeira estufa de criar plantas; que ela segura por aqui, por causa das sucessivas reflexões dos raios nas camadas de gases, poeiras, nuvens e gotículas, um pouco do estupendo calor que retornaria, se perdendo, ao espaço sideral. O planeta sim resfriaria se não existisse a atmosfera como ela é. Em inglês, é o “greenhouse”, na língua francesa, o “effet de serre”, na castelhana, o “efecto invernadero”. Em todas as línguas, a compreensão de que a casquinha irradiada e quase transparente é tão fundamental para a vida como o calor do útero. Eis o único consenso.Há muitos interesses , propositadamente, não explícitos no atual debate sobre o aquecimento global

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O restante da conversa é criação da linguagem, da sociedade, suas ciências e suas mídias. Quando se quer afirmar a todo custo, que “está aquecendo” e que isto resulta da nossa ação, chamada de “antrópica”, trata-se de uma ideologia refinada, uma crença monótona, conveniente para muitos lados das lutas políticas e de classes deste novo milênio. Nem todos, aliás!, como veremos aqui algumas pistas.

aquecimento global: uma impostura científicaEste é o impiedoso título de um extenso artigo publicado em 2003 pelo cientista francês Marcel Leroux, recentemente falecido. Professor de Climatologia da Universidade Jean Moulin - Lyon III e diretor do Laboratório de Climatologia do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), ele é o autor dos livros Global Warming: Myth or Reality? The Erring Ways of Climatology e La dynamique du temps et du climat. Eis alguns trechos selecionados do início do seu artigo, traduzido pelo site português Resistir.Info:

“O aquecimento global é uma hipótese fornecida por modelos teóricos. Baseia-se em relações simplistas que anunciam um aumento da temperatura, proclamado mas não demonstrado. São numerosas as contradições entre as previsões e os factos climáticos observados directamente. A ignorância destas distorções flagrantes constitui uma impostura científica. Nos anos 70 (do séc. XX) verificou-se um desvio climático (que os modelos não ‘previram’). Traduziu-se num aumento progressivo da violência e da irregularidade do tempo e foi provocado pela modificação do modo de circulação geral da atmosfera. O problema fundamental não é prever o clima em 2100. Deve-se, antes, determinar as causas daquele desvio climático recente. Isso permitiria prever a evolução do tempo no futuro próximo.”

Mais adiante, ele lembra que nos Estados Unidos, a memória do tempo

inclemente dos anos de 1930 foi reavivada pelo verão extremamente quente de 1988, e daí: “Seguiu-se-lhe a dramatização (‘greenhouse panic’). Inicialmente assunto da climatologia, o tema passou a ser tratado com emoção e irracionalidade. Depressa evoluiu para o alarmismo. Perdeu o seu conteúdo científico. Questiona-se actualmente: estaremos ainda a falar de climatologia? Com uma ‘convicção’ geralmente proporcional à ignorância dos rudimentos da disciplina, os ‘climatólogos autoproclamados’ propagam hipóteses procedentes dos modelos. Hipóteses infundadas ou mal estabelecidas e não corroboradas pelas observações.”

Leroux é bem precavido quanto ao fato propalado de que os relatórios do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) são preparados por “centenas de cientistas”: “O número anunciado pode iludir e esconder o monolitismo da mensagem. Na realidade, uma pequena equipa dominante impõe os seus pontos de vista a uma maioria sem competências climatológicas. O ‘I’ de IPCC significa, com efeito, ‘intergovernamental’. Significa que os pretensos cientistas são antes do mais representantes governamentais.”

Encontrar um brasileiro, especialista, que conteste a monotonia da pauta “aquecimentista” foi bem mais difícil, mas... existe um meteorologista, que aqui representa a Organização Meteorológica Mundial, com sede em Genebra, o sr. Luis Carlos Molion. Ele assim respondeu a uma pergunta do site UOL Ciência e Saúde, em dezembro de 2009, enquanto se desenrolava a badalada e fracassada Conferência COP 15, na capital da Dinamarca:“Q: O senhor, então, contesta qualquer influência do homem na mudança de temperatura da Terra? Molion: Os fluxos naturais dos oceanos, pólos, vulcões e vegetação somam 200 bilhões de toneladas de emissões por ano. A incerteza que temos desse número é de 40 bilhões para cima ou para baixo.

O homem coloca apenas 6 bilhões de toneladas, portanto as emissões humanas representam 3%. Se, nessa conferência, conseguirem reduzir a emissão pela metade, o que são 3 bilhões de toneladas em meio a 200 bilhões? Não vai mudar absolutamente nada no clima.”

a ciência do clima: observações versus modelosO site californiano Global Research.Ca acompanha com farta publicação temas tão variados como ambiente, petróleo e energia, biotecnologia, medicina, pobreza e, especialmente, os crimes contra a humanidade, a militarização e o estado policial emergente após o atentado de 11 de setembro. Nele, o articulista Richard Moore compila os resultados da análise do gelo da Groenlândia que indicam as temperaturas no hemisfério Norte no período longo de 2.000 anos AC até o ano de 1900, e organiza as medições das temperaturas da superfície terrestre em três latitudes distantes, dessa data até hoje.

Para o leitor sedento dos números e gráficos, ele registra os principais links dos relatórios do satélite NOOA, do Instituto Goddard, do Centro Marshall, bem como os trabalhos recentes de Roy Spencer, (da University of Alabama, Huntsville e do U.S. Science Team Leader for the Advanced Microwave Scanning Radiometer) que trata os dados do satélite NASA-Acqua. Ele tirou conclusões opostas às da ideologia aquecimentista, principalmente por causa do comportamento das nuvens pesadas (cirrus) e das chuvas quando ocorre aquecimento da superfície terrestre. Para não cometer erros, traduzo abaixo um trecho de Moore, comentando a pesquisa de Spencer: “O que ele encontrou, dirigindo os sensores dos satélites para os alvos apropriados, é que a resposta de retroalimentação (‘feedback response’) é mais negativa do que positiva. Em particular, ele verificou que a formação de nuvens ‘cirrus’ de tempestades é inibida quando as temperaturas da

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superfície do globo são altas. As nuvens ‘cirrus’ são elas mesmas um poderoso gás de efeito estufa, e essa diminuição na sua formação pode compensar o aumento de aquecimento causado pelo CO2”.

Os modelos climáticose a opinião pública

Cito agora trechos de Moore onde ele desvenda o restante da argumentação científica-e-política pois, nesse caso, não temos mais como separar uma da outra: “No caso dos modelos climáticos que estão sendo usados pelo IPCC, a suposição é de que o CO2 é um controlador fundamental do clima. Há uma base intuitiva para essa suposição, dado que o CO2 é um gás de efeito estufa, e tanto o CO2 como a temperatura tem-se elevado substancialmente no último século. Além disso, observou-se uma forte correlação entre os níveis de CO2 e a temperatura em registros de longo prazo revelados por amostras de gelo. Mais ainda, a queima de combustíveis fósseis continua a poluir a atmosfera (e os oceanos) com níveis cada vez mais altos de CO2. Isso levou à hipótese de que a temperatura pode se elevar abruptamente, colocando em perigo a vida no planeta. Tudo isso foi apresentado de forma bastante dramática por Al Gore em seu famoso documentário.”

Lembrando que o famoso modelo do egípcio Ptolomeu, no segundo século da era cristã, colocando a Terra no centro do sistema solar, era quase perfeito, Moore destaca que: “Assim como com o modelo ptolomaico, há vários problemas com a suposição de que o CO2 condiciona o clima, e com a predição de aquecimento perigoso. Em primeiro lugar, os registros de longo prazo mostram que primeiro a temperatura sofreu mudanças históricas, seguidas muito depois por alterações nos níveis de CO2. Outra coisa é que tem havido períodos de resfriamento significativo em anos recentes, mesmo enquanto os níveis de CO2 continuaram a se elevar dramaticamente.”

“Além disso, os registros de longo prazo mostram que a temperatura foi no passado muito mais alta que hoje – inclusive há apenas mil anos (o Período de Aquecimento Medieval) – e nenhum desastre bizarro, tal como a extinção de ursos polares ou ciclos de retroalimentação positiva (runaway feedback loops), ocorreu em consequência disso. Assim como com o modelo ptolomaico, há facções politicamente poderosas que encamparam para seus próprios propósitos a teoria do aquecimento global danoso de origem antropogênica. Por enquanto, basta dizer que generosos fundos foram fornecidos para os cientistas da CRU (Climatic Research Unit), que ficaram mais que dispostos a ‘refinar’ o modelo para lidar com a ‘verdade inconveniente’ dos problemas do modelo - mesmo que isso requeresse coisas como ‘esconder o declínio’.

Finalizo protegendo a própria imagem: criticando os “aquecimentistas”, tem gente séria e bem informada como os citados, mas também vários fundamentalistas neo-liberais, guerrilheiros do livre mercado, a indústria carbonífera, além dos senhores do petróleo e suas guerras. Quem se interessar, vá ao site Competitive Enterprise Institute, de onde se pode navegar no http://www.globalwarming.org/ e, daí, pular para outro endereço que questiona o falado filme Uma verdade inconveniente – http://www.noteviljustwrong.com/home (ou seja: ele não é o diabo, apenas está errado). Um dos mais ferinos desses “direitosos” publicou, em 2007, Os 35 erros do filme de Al Gore. Seu nome plebeu é Christopher Walter, mas trata-se do Terceiro Visconde Monckton of Brenchley, assessor político direto da ex-primeira ministra Margaret Thatcher. Espero não ser confundido com essa gente, e que eu tenha honrado o nome da revista: é hora e vez de estar na Contra Corrente!

Um contra-exemplo:No início de outubro deste ano, organizamos na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) um Fórum intitulado “Injustiça Ambiental e Saúde: os atingidos pela poluição do ar”, no qual pesquisadores universitários e lideranças de entidades não governamentais levaram o seu testemunho e experiência sobre o avanço dramático dos números medidos de poluição do ar (poeiras, fumaças, hidrocarbonetos, inclusive os aromáticos bastante patogênicos, gases de nitrogênio e de enxofre, precursores de chuvas ácidas e de ozônio respirável) e sobre a degradação das condições de vida de populações em áreas carboníferas, siderúrgicas e do agronegócio. Esses temas e assuntos cruciais para a saúde e sobrevivência do ambiente e da espécie humana vêm sendo obscurecidos, desprezados e omitidos pelos que, nas empresas, governos, universidades e ONGs, passaram a seguir a moda e o credo aquecimentista. Muito antes de aquecer, se é que aquece... a atmosfera está certamente sendo envenenada.

* Oswaldo Sevá é engenheiro mecânico, doutor em

Geografia Humana e professor da Universidade Estadual

de Campinas (Unicamp) – [email protected] e

www.fem.unicamp.br/~seva

referências bibliográficas Leroux, Marcel: Réchauffement global: une imposture scientifique foi publicado no nº 95, Março-Abril/2003 da revista Fusion. http://www.revuefusion.com/images/Art_095_36.pdf . Os trechos aqui reproduzidos na íntegra foram obtidos no site português http://resistir.info/climatologia/impostura_cientifica.html. Mais informação em português, acerca da teoria do Prof. Leroux em http://mitos-climaticos.blogspot.com

Molion, Luis Carlos, entrevista em “Não existe aquecimento global”, diz representante da OMM na América do Sul, Carlos Madeiro, 11.12.2009, no site http://noticias.uol.com.br/ultnot/cienciaesaude/

Moore, Richard Climate Sciences: Observations x Models, 08.01.2010, acessível em http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=16865, Em português em http://resistir.info

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COntra COrrenteFabrina Furtado*

a construção social da crise climáticaO reducionismo científico no trato das mudanças climáticas encobre a crise política e econômica; também leva à errônea percepção de defesa de interesses comuns

Entro nesse debate compartilhando a percepção da Rede Brasil: a necessidade premente de limitar a

busca incessante do capital pelo domínio da natureza, entendendo a crise climática como uma construção social e não como um fenômeno científico-natural. Inicio esta discussão a partir da luta por reparações da dívida ecológica e pelo fim de instituições como o Banco Mundial, que se apropriaram, reduziram e transformaram a questão climática em um meio de aprofundar a acumulação capitalista.

Desde a era colonial, a escravidão, a extração de minerais e hidrocarbonetos, as monoculturas e o roubo da biodiversidade e de conhecimentos tradicionais consolidaram o poder e a supremacia dos países do Norte (Europa, Estados Unidos, Japão, Canadá e outros que integram a lista das nações mais ricas do mundo). Este uso e abuso da natureza e dos povos do Sul originaram uma dívida ecológica que continua aumentando através de mecanismos de opressão e de controle, como a dívida financeira, o chamado mercado livre, a subjugação cultural e o uso da força.

Tendo como argumento que os países do Norte são os maiores responsáveis pela crise climática e, portanto, devem pagar pelos seus custos e consequências, em 2009, o governo boliviano apresentou uma proposta sobre dívida climática na Convenção-Quadro das

Nações Unidas sobre Mudança do Clima (CQNUMC). Esta proposta foi assinada pela Venezuela, Malásia, Paraguai, Sri Lanka, Butão, Etiópia e Micronésia (JS, 2010).

Vale destacar aqui a contradição entre o discurso internacional do governo boliviano e suas ações domésticas. Embora seja o principal defensor da filosofia do Vivir Bien - que reconhece a natureza como ser vivo, objeto de

“O IPCC reduziu a questão ambiental às mudanças climáticas, e esta às emissões de carbono”: debate alarmista e política do medo

direito, com a qual a sociedade tem uma relação indivisível, interdependente, complementar e espiritual -, este governo também promove um modelo de desenvolvimento baseado em uma matriz exportadora de hidrocarbonetos, hidroeletricidade, mineração, agroindústria e da manufatura florestal que viola o Vivir Bien. Um dos mais recentes e explícitos exemplos dessa contradição ocorreu em setembro deste

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ano, quando o governo boliviano reprimiu de modo bastante violento uma marcha pacífica contra a construção de uma estrada que pretende atravessar o Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), na Floresta Amazônica.

É importante refletir sobre o porquê de propostas como a da dívida climática serem tão facilmente negadas e ignoradas, inclusive pelos atores mais críticos. O discurso dominante gira em torno de ações mitigatórias, como tecnologia e mercado de carbono, e de adaptação. E, muitas vezes, essa lógica é reproduzida sem questionamentos mais profundos. Já estamos aceitando que o único caminho dentro do contexto de eco-alarmismo é se adaptar? Quem precisa se adaptar a quê? Precisamos é de des-adaptação ao capitalismo, isso sim. Afinal, como a crise climática ganhou tanta centralidade e como se deu a definição do problema? Como a ciência foi construída, disseminada e apropriada? O fato da questão receber mais atenção hoje está mesmo relacionado com uma análise científica-natural ou com o contexto histórico, cultural e político?

negação de interesses conflitantes Estudando o papel da ciência na definição de problemas ambientais, Wynne (1994) afirma que o debate tem se baseado no domínio das ciências naturais de forma instrumentalista, uniformizada e reducionista. Mantém-se o foco na crise ambiental quando à ela antecede uma crise política, econômica, moral e cultural. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) reduziu a questão ambiental às mudanças climáticas, e esta às emissões de carbono. Desvia-se a atenção para os chamados “interesses comuns” da humanidade, negando-se conflitos políticos entre diferentes grupos sociais com interesses distintos e, muitas vezes, conflitantes.

Boehmer-Christiansen (1999) também critica o controle político do IPCC como ilustração dos interesses governamentais

e privados a partir da institucionalização das ameaças climáticas. A autoridade científica do IPCC serviu para orientar os interesses dos países do Norte, possibilitando a criação de políticas de monetarização das mudanças físicas determinadas pelas ciências naturais e fornecendo justificativas e incentivos para investimentos nos países do Sul. Ela afirma que o IPPC foi criado pelos Estados Unidos, com o apoio da pesquisa ambiental daquele país e da Europa, como contraponto aos

grupos de pesquisa independentes que defendiam uma ação drástica frente ao colapso dos preços do petróleo em 1986 e a resultante crise energética. Isso aconteceu no momento em que as tecnologias de energia ¨alternativa¨ e nuclear precisavam de ajuda oficial para sobreviver. O caminho da pesquisa estava traçado: eficiência energética (não conservação), energia ¨alternativa¨ e nuclear e, posteriormente, geoengenharia e comércio de carbono. Muitos governos perceberam que poderiam se beneficiar desta agenda. Problemas ambientais reais, como a capacidade das sociedades de mudarem instituições, tecnologias, comportamentos, e a justiça econômica, foram negligenciados. A preocupação deixou de ser com questões ambientais, e passou a ser com a política energética, a imposição de tecnologias e a geração de renda para determinados governos. Excluiu-se qualquer avaliação sobre a ideologia por trás das projeções científicas e implicações das estratégias.

Assim, a ciência deixa de informar a política e passa a ser sua guia, jogando com a incerteza científica. Como disse o representante do Ministério de Ciência e Tecnologia, Carlos Nobre, no evento sobre mudanças climáticas organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em agosto deste ano, ¨A CQNUMC é inovadora porque a ciência tem um papel preponderante. Em outros casos sempre se buscou acordo político; a CQNUMC está baseada nos relatórios do IPCC. Foi a ciência que trouxe o debate¨. Trata-se da apropriação política de uma ciência dominante e a negação de outras. A incerteza é usada para evitar políticas de prevenção da destruição ambiental e garantir políticas de interesse econômico como a bioengenharia. Neste último caso, a incerteza aparece como algo a ser resolvido em breve pela verdade absoluta da ciência. A ciência dos especialistas escolhidos “a dedo” pelos políticos, negando o saber local, também uma ciência.

“Já estamos aceitando que o único caminho dentro do contexto de eco-alarmismo

é se adaptar? Quem precisa se adaptar a quê? Precisamos é de des-adaptação ao capitalismo”.

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COntra COrrente

* Fabrina Furtado é militante da rede Jubileu Sul e doutoranda do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbanoe Regional (Ippur), da Universidade Federal do Rio de Janeiro - [email protected]

O conhecimento científico dominante das questões ambientais naturaliza e reforça interesses econômicos, políticos e valores culturais e morais específicos. O que está sendo apontado como ¨nossos problemas comuns” e que sociedade está sendo criada em nome da proteção da natureza, do clima? Existem questões políticas por trás das construções da crise climática e é preciso cuidar para não entrar no debate alarmista e na política do medo. Definir a crise climática como uma construção social não é diminuir a sua importância ou realidade e sim estudar o processo pelo qual o fenômeno foi transformado de uma suposição para um fato aceito. Quem realmente ganha com isso?

A reparação das dívidas ecológica e climática é uma demanda de organizações do Sul

referências bibliográficas Boehmer-Christiansen, Sonja. Globalização e valor de vidas humanas: implicações políticas para os países em desenvolvimento da polêmica do IPCC. Ambiente & Sociedade. Ano II, Nos 2 e 3, 2o semestre 1998 – 1o semestre 1999.

Wynne, Brian. Scientific knowledge and the global environment. In Redclift, Michael; Benton, Ted. Social Theory and the Global Environment. Londres: Routledge, 1994. p.169 – 189.

Jubileu Sul. Dívidas, Não Mais: Rumo a uma Plataforma do Jubileu Sul sobre Mudanças Climáticas, Dívida Ecológica e Soberania Financeira. São Paulo, 2010.

Raina, Vinod. Ecological Debt: the creation of rich and poor countries. Apresentação durante Fórum Público sobre Dívida Ecológica e Mudança Climática. Bancoc, Setembro, 2009.

a (dí) vida como ela éEm 2009, uma avaliação da produção econômica dos países do G8 (Vinod, 2009), construída com base no uso insustentável de carbono per capita, com base nos preços de 1994, calculou que a dívida de carbono do G8 estava entre 13 e 15 trilhões de dólares. Um valor que excede várias vezes a dívida financeira atribuída aos países do Sul. Os países do Norte ofereceram em Copenhague, durante a 15a Conferência das Partes da CQNUMC, 30 bilhões de dólares entre 2010 e 2012 e uma promessa de mobilizar mais 100 bilhões de dólares até 2020. Esses recursos, provavelmente, serão privados, oriundos do mercado de carbono e estarão nas mãos das mesmas Instituições Financeiras Internacionais (IFIs) que têm sido grandes responsáveis pela crise ecológica. (F.F.)

Dívida climáticabaseia-se na constatação de que os países industrializados do Norte cresceram, principalmente, devido à produção e ao desenfreado consumo de combustíveis fósseis, responsáveis pela atual crise climática. Eles também se apropriaram de um ¨bem comum global¨ (a atmosfera e os oceanos) e da capacidade de absorção de carbono da biosfera. Esses países - que representam menos de 20% da população do mundo e emitiram cerca de 75% das emissões históricas - são responsáveis por mais de dez vezes as emissões históricas dos países do Sul. Atualmente, suas emissões per capita são mais de quatro vezes as do Sul. A dívida climática pressupõe determinar a partilha justa e equitativa das obrigações e responsabilidades para reduzir as emissões de carbono e pelo financiamento do clima entre os países. Ela fornece uma abordagem sistemática para classificar, quantificar e aplicar a responsabilidade histórica e exigir reparação. (F.F.)

Dívida ecológicaé um conceito que contribui para uma análise diferente das relações internacionais, o intercâmbio entre o Norte e o Sul, para além dos termos econômicos. Produz ferramentas para acabar com os danos ambientais, para garantir reparações e punir os responsáveis. Além disso, fornece novos argumentos e autoridade para exigir o cancelamento da dívida financeira, acumulada de forma ilegítima. Assim sendo, a perspectiva da dívida ecológica tem como objetivo mudar o contexto de diálogo e das relações entre os países, debater o meio ambiente para além dos argumentos da conservação e sustentabilidade e considerar o direito e a justiça. (F.F.)

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Lucia Ortiz*

rio+(ou-)20: uma chancela para o capitalismo verde?Com foco em economia verde e governança global, conferência sinaliza captura pelo mercado e pode ser consolidada como a Cúpula da Mercantilizacão da Natureza

A Rio+20, conferência mundial sobre ‘desenvolvimento sustentável’, será realizada

no Rio de Janeiro de 4 a 6 de junho de 2012, por sugestão do, então, presidente Lula, em 2007, na Assembléia Geral das Nações Unidas (ONU).

Os objetivos iniciais eram nobres: o de assegurar a renovação dos compromissos políticos para o desenvolvimento sustentável, avaliar o progresso e as lacunas (e por que não suas causas estruturais?) na implementação dos resultados das principais conferências desde a Eco92 e tratar novos e emergentes desafios. Porém, não foi criado um processo de avaliação e negociação à altura desses objetivos.

Por outro lado, estabeleceu-se como o foco da Rio+20, e com muito mais empenho e força política, os questionáveis temas da economia verde ‘no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza’, e o arranjo institucional para o desenvolvimento sustentável, ou a governança global para o meio ambiente.

No mínimo, pode se reconhecer a redução dos pilares do que foi

conceituado como desenvolvimento sustentável – social, ambiental e econômico – ao da economia global capitalista, mascarando os mecanismos de implementação e de controle global da natureza, deste novo ciclo de acumulação. Contexto que invisibiliza ainda mais a diversidade cultural, a qual deveria ser incorporada como pilar central da sustentabilidade, por trazer novas e ancestrais formas de pensar, relacionar-se e ser parte da natureza, criando e recriando outras economias em sociedades sustentáveis.

economia verde: um frágil novo consenso Este foco, no pretenso novo consenso global da economia verde e a preocupação com a governança num sistema de Nações Unidas capturado pelos interesses das corporações, explicita a resistência imposta a uma agenda de sustentabilidade e democracia global nestes últimos vinte anos, assim como os interesses que devem definir a direção dos acordos globais para o meio ambiente daqui para frente.

A agenda da Rio+20 busca legitimar o capitalismo verde. Isso, por um lado, expõe a fragilidade do sistema frente

às múltiplas crises e a necessidade de tamanho aparato e refinamento do discurso para dialogar com a apreensão da sociedade frente aos problemas ecológicos e sociais, como o sintoma do caos climático, para, então, conseguir uma aceitação social e política - apesar do poderio econômico e midiático a seu serviço.

A estratégica falta de conteúdo dada ao termo economia verde no ambiente das negociações da ONU, ainda que pretenda ser a base de um novo “acordo verde”, já tem provocado reações de diversos países. Na 19a sessão da Comissão de Desenvolvimento Sustentável (CDS), o resultado das negociações foram: a falta de acordo na agenda de implementação no tema central do ciclo da CDS, sobre Padrões de Produção e Consumo; a dúvida sobre a capacidade da ONU para lidar com o ambicioso tema do arranjo institucional para a Rio+20; e propostas de, inclusive, rever o termo economia verde para reduzir polêmicas evidentes.1

Fato de maior relevância foi a declaração dos países latino-americanos, resultante dos dois dias e meio de processo regional oficial de preparação que aconteceu no início de

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setembro no Chile, que simplesmente rechaçaram e ignoraram o termo economia verde do seu pouco ambicioso acordo final.2

Processo oficial:longe da governança inclusiva

O processo em curso, iniciado oficialmente pela resolução da ONU de 24 de dezembro de 2009,3 estabelece etapas preparatórias de negociações oficiais.

De forma autônoma e independente, já envolve uma agenda de mobilizações da sociedade civil, bem como um processo (que não se encerra com a conferência) de acompanhamento dos reflexos da sua preparação e resultados sobre as políticas nacionais e de construção e fortalecimento de um movimento global por justiça social e ambiental.

A conferência acontecerá em apenas três dias (4 a 6 de junho de 2012) e está baseada em três etapas preparatórias internacionais, sendo que as duas primeiras já aconteceram e a próxima será nos dias que antecedem imediatamente a Rio+20 (28 a 31 de maio).

O processo acordado consiste em chamar os diversos setores da sociedade civil a enviar contribuições por internet sobre os temas foco da Rio+20 durante todo o ano de 2011, para que um documento chamado “rascunho zero” seja divulgado somente em janeiro de 2011.

Antes, se trabalhava para buscar consensos globais nas negociações, para que as convenções e tratados fossem ratificados pelos países signatários, passassem a valer e se desdobrar em políticas públicas domésticas. Hoje, a lógica se inverte: já existe uma corrida pela implementação

de arcabouços legais e políticos nos países para a chamada transição para uma economia verde sem que suas bases ou metas, e mesmo seu conteúdo, tenham sido definidos.

Tendo como referência os resultados das últimas negociações mundiais para o meio ambiente, podemos prever que as estratégias de inovação dos processos de negociação aumentam os riscos de limitar a participação dos países em desenvolvimento, e da sociedade organizada de desconsiderar as desconformidades, como foi o caso da posição da Bolívia frente ao acordo de Cancun na COP16 do Clima, bem como da imposição de textos “caídos do céu” num ambiente falho de negociações para alcançar verdadeiros consensos.

Como resultado dos (ou da falta dos) processos em curso, se a Eco92 ficou conhecida como a Cúpula da

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Terra, a Rio+20 poderá significar a consolidação da Cúpula da Mercantilizacão da Natureza, com ou sem consenso.

Um acordo de livre comércio disfarçado de verde?Seguindo na linha da captura corporativa das convenções da ONU, o processo em marcha por conta da Rio+20 é o de recomendar estratégias domésticas (leia-se políticas nacionais) que os países em desenvolvimento (e não aqueles historicamente responsáveis pelas crises ecológica, financeira, alimentar, energética...) necessitam pôr em prática para alcançar os desafios da transição para a economia verde (tema sobre o qual não há consenso nem entre os países envolvidos na negociação) e mapear o andamento das iniciativas.

Nos moldes dos polêmicos empréstimos do Banco Mundial e

A financeirização da natureza revela o novo ciclo de acumulação do capitalismo - pintado de verde

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do Fundo Monetário Internacinal (FMI) para os chamados Ajustes Estruturais da economia dos países em desenvolvimento, de privatização e abertura dos serviços à fase neoliberal do capitalismo nos anos de 1990, ou das imposições dos Tratados de Livre Comércio (TLCs) às políticas nacionais para as indústrias extrativas, a economia verde vem, tal e qual, como uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). No entanto, ela vem muito mais sutil, disfarçada de verde e considerada inofensiva nas negociações mundiais para o meio ambiente.

O ajuste estrutural do meio ambiente ao capital O Brasil sancionou, em plena loucura pós Copenhague, nos últimos dias de 2009, sua Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). E mesmo após quase uma década de demandas da sociedade civil, houve o veto presidencial ao artigo que tratava da redução progressiva do uso de combustíveis fosseis e a inclusão da instituição de mercados certificados de carbono, o suprassumo da economia verde.

Hoje, os planos setoriais, outro instrumento da PNMC, estão para ser aprovados com pujantes orçamentos públicos. No entanto, eles não vão além de “mais do mesmo”: um plano chamado ABC do agronegócio, ou Agricultura (industrial) de Baixo Carbono; outro de Siderurgia Verde, para exportação de aço produzido com carvão vegetal de monoculturas de árvores; um terceiro, que é o próprio Plano Decenal de Expansão de Energia (PDEE), calcado na construção de barragens na Amazônia e na expansão do agronegócio da energia da cana e da energia

nuclear; e outros dois de combate ao desmatamento na Amazônia e no Cerrado.

Já em 2010, durante as negociações de Cancun, o Brasil lançou o Fundo Clima, para direcionar recursos da exploração do petróleo do pré-sal - de alto carbono - na forma de empréstimos num total de 200 milhões de reais para o setor privado assim promover a economia verde.4

Políticas públicas para garantir direitos ao mercado

Avançam as políticas verdes com resultados para a especulação fundiária e que fazem da reforma agrária um sonho de justiça cada vez mais distante. Há quem diga que o “Novo Código Florestal” ruralista a ser votado no Senado deixa o Brasil em flagrante contradição como país anfitrião da Rio+20. Não será o contrário? O governo poderá, a seguir, vetar algumas emendas, ou não perdoar a dívida de desmatadores. Mas tirar a proteção do Estado, reduzindo ou eliminando Áreas de Preservação Permanentes (APPs) e Reserva Legal, é uma forma de dar acesso aos mercados a essa enorme e bilionária riqueza verde que, até então, não circulava nas bolsas. Nova modalidade em debate, depois

da votação no Congresso, é que os desmatadores anistiados possam também receber incentivos e créditos de carbono por recuperar áreas que degradaram - isso não sendo válido para os pequenos agricultores, que estariam isentos do dever de reconstituir reserva legal.

Nessa linha, estão em tramitação os Projetos de Lei (PLs) de REDD nacional e estaduais e o de Serviços Ambientais, que já têm cronograma definido para “ou sim ou sim” estarem aprovados antes da Rio+20 para mostrar como o Brasil fez sua lição de casa. Antes que nos organizemos e nos atentemos para o seguimento destas políticas, uma lei dessas dá como certa a perda de soberania das comunidades sobre seus territórios ao garantir juridicamente o acesso irrestrito das corporações - ou outros pagantes dos serviços que estejam compensando a degradação ambiental de suas atividades em outro canto do mundo - para medições e verificações sobre os serviços adquiridos, sejam eles o carbono, a água ou a biodiversidade.

Entre os estados mais adiantados está o Acre, que desenvolve um projeto pioneiro de REDD, contabilizando um volume estimado, para os anos de 2006 a 2009, de 100 milhões de toneladas

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1- Ver SUMMARY OF THE NINETEENTH SESSION OF THE COMMISSION ON SUSTAINABLE DEVELOPMENT, 2-14 MAY 2011, em: http://www.iisd.ca/vol05/enb05304e.html 2- http://www.eclac.cl/noticias/paginas/5/43755/Conclusiones_reunion_prep_Rio+20-2011-esp.pdf

3- Resolução ONU A/RES/64/236

4- Ver em: http://www.ecodebate.com.br/2010/10/27/decreto-regulamenta-fundo-nacional-sobre-mudanca-do-clima-fnmc-ou-fundo-clima/

5- Em: http://www.opovo.com.br/app/opovo/economia/2011/05/30/noticiaeconomiajornal,2250488/credito-de-carbono-podera-ser-comercializado.shtml

Lucia Ortiz é coordenadora do Amigos da Terra Brasil, membro da Coordenação Nacional da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e coordenadora regional do Programa Justiça Climática e Energia do Amigos da Terra América Latina e Caribe (ATALC) – [email protected]

de dióxido de carbono (CO2), cuja comercialização será feita em leilão na BM & FBovespa no final do segundo semestre de 2011 para precificar, pela primeira vez no Brasil, os créditos de carbono das florestas.5

E chegando à capital dos megaeventos, para além da Rio+20, no Rio de Janeiro, se anuncia a Copa do Mundo verde e solar. Ela se concretiza com vultosos financiamentos públicos para o setor privado abastecer com energia renovável novos estádios e mega infraestruturas de entretenimento das elites, a serem construídas em locais de disputa com as comunidades urbanas carentes de acesso aos serviços públicos básicos. Cada vez mais a lógica da especulação imobiliária nas cidades reproduz o discurso do verde que entrou pela porta do clima. É o caso da geração de créditos e mercados de compensações no caso de projetos que pela lei sejam privados de aplicar máximos índices construtivos, ou dos eco condomínios de luxo que apropriam-se de áreas verdes anteriormente públicas e passam a vender sustentabilidade.

Movimentos sociais na contra corrente

Buscando deslegitimar desde já o pretenso novo consenso global da economia verde, os movimentos sociais no Brasil e no mundo podem ver o caminho a Rio+20 como um processo político para fortalecer e dar visibilidade às lutas de resistência no campo, nas cidades e na floresta, assim como às propostas e soluções populares por justiça social e ambiental.

Através da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, o Amigos da Terra, juntamente com a Via Campesina, a Marcha Mundial das Mulheres, o Jubileu Sul e mais dez outras redes nacionais, integra

o Comitê Facilitador da Sociedade Civil para a Rio+20. Este Comitê prepara uma série de atividades locais, nacionais e internacionais, que passam pelo fórum alternativo ao G20, na França, em novembro; pela COP17 do Clima, em Durban, no final de novembro; pelo Fórum Social Temático, em Porto Alegre, em janeiro de 2012; e pelas atividades paralelas a Rio+20, que pretendem oferecer um choque de paradigma durante a próxima semana do meio ambiente no Rio de Janeiro.

Sem ter como foco os megaeventos oficiais, estas etapas podem representar momentos de convergência e fortalecimento dos movimentos sociais e das suas propostas contra hegemônicas, necessárias ao enfrentamento de um novo e complexo ciclo de acumulação repleto de contradições e apropriações dos discursos ambientais e das demandas populares por justiça social.

O grande desafio e oportunidade que esta Conferência traz é o da mobilização daqueles setores da sociedade civil ávidos por um real choque de paradigma, por mostrar justamente que as soluções reais não têm como se dar, nem pintadas (de verde), dentro de um sistema que precisa mudar, e já.

“a economia verde

vem, tal e qual,

como uma aLCa. no

entanto, ela vem

muito mais sutil,

disfarçada de verde

e considerada

inofensiva nas

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mundiais para o

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Jubileu Sul*

Banco Mundial Fora do Clima!... e de nossos paísesCampanha internacional denuncia os novos interesses mercadológicos dessa velha instituição que, através de falsas soluções, quer assegurar a hegemonia financeira

Assim como as demais Instituições Financeiras Internacionais (IFIs), desde a sua criação, o Banco

Mundial tem servido como instrumento de defesa dos interesses do Norte global, das transnacionais e das elites financeiras e política. Ou seja, atua na defesa dos responsáveis por impulsionar e beneficiarem-se do modelo econômico que empobrece as grandes maiorias, explora a natureza, gera a mudança climática e mina a soberania dos povos.

Há décadas, o Banco Mundial é alvo de graves denúncias e mobilizações que reivindicam a sua retirada e a de suas instituições correlatas (os banco regionais de desenvolvimento, o Fundo Monetário Internacional e o Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimento – Ciadi, dentre outras) dos países do Sul e a transformação profunda do sistema financeiro.

Porém, esse banco encontrou, na confluência da crise sistêmica (econômica, alimentar, energética e climática, dentre outras), uma nova roupagem para suas velhas práticas. Através de um discurso repaginado, passou a incorporar e consolidar um conjunto de ações para a “transição” para um capitalismo “verde”. Para

isso, incorporou em suas normas as “preocupações ecológicas” e uma suposta prioridade para o “desenvolvimento sustentável”. Com esse pseudo “novo paradigma”, seguiu impondo suas definições sobre os problemas e suas soluções. Não se pode permitir que o Banco Mundial deturpe a defesa dos direitos dos povos e da Natureza para continuar priorizando os mesmos interesses de sempre.

A crise climática é uma realidade atual que impacta mais as populações do Sul global. Ela é consequência do próprio modelo de desenvolvimento dos países industrializados do Norte e de um modo de produção e consumo baseado na crença de que a natureza não possui limites. Com a cumplicidade dos governos e das elites do Sul, as comunidades trabalhadoras, povos originários, camponeses, pescadores e mulheres são obrigados a pagar pelos custos de uma crise que não causaram.

novo paradigma? É tudo mentira! No mesmo sentido, as respostas que vêm sendo formuladas desde os centros de poder - as corporações transnacionais e as instituições financeiras internacionais - são falsas soluções, pois ignoram as

causas dos problemas e aumentam a dívida climática dos países do Norte. Para estas instituições, as mudanças climáticas revelam-se como uma saída para a crise econômica e uma oportunidade para a criação de novos paradigmas e conceitos, como o de “economia verde”.

Assim, se reduz a crise civilizatória a uma crise ecológica e a crise ecológica a uma crise climática, e esta a uma falha do mercado. A destruição ecológica se converte em um novo impulso para o crescimento e a acumulação econômica das elites. Os problemas ambientais e sociais são caracterizados como uma questão meramente tecnológica ou da falta de clareza na atribuição dos direitos de propriedade. Frente aos quais se reivindicam soluções de mercado, como os novos produtos financeiros “verdes”, a criação e a venda de serviços ambientais e a mercantilização da natureza, de modo geral.

A estratégia do Norte, reconhecendo o já inevitável problema do aquecimento climático, busca preservar a impunidade e evitar qualquer mudança no estilo de vida e no consumo, além de tentar transferir a responsabilidade ao Sul, através da promoção e apoio a falsas soluções como o mercado de carbono,

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COntra COrrente

Banco Mundial Fora do Clima!... e de nossos países

as hidrelétricas, a energia nuclear, os agrocombustíveis e a venda de tecnologia. Desse modo, o papel que as elites buscam consolidar junto ao Banco Mundial é chave e similar ao utilizado nos anos de 1970, quando se propagou o modelo de desenvolvimento com base no endividamento externo, e nos anos de 1980 e 1990, quando utilizou-se dessa dívida para impor o ajuste estrutural, as privatizações e a abertura neoliberal.

Fundos e mais fundosPor outro lado, a criação do mercado

de carbono abriu a porta para que as IFIs e, em especial o Banco Mundial, expandissem sua área de atuação e fortalecessem sua capacidade de intervenção e condicionamento sobre os países mutuários (emprestadores). Também permitiu gerar um programa novo de financiamento para projetos integrados ao mercado de carbono através de iniciativas como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), Controle e Comércio (Cap and Trade, na versão original, em inglês) e os projetos do programa de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Este programa permite aos países do Norte, e suas transnacionais, compensar ficticiamente parte de suas emissões de gases de efeito estufa financiando projetos no Sul. Esse modelo aumenta a dívida financeira ilegítima, assim como também as dívidas ecológicas e sociais. O mercado de carbono favorece a especulação e o lucro a partir das mudanças climáticas, fomentando novos “derivados” que nada tem a ver com o impacto climático, mas sim com a possível criação de novas bolhas especulativas similares ao que ocorreu em 2007 e 2008, quando o mercado imobiliário explodiu.

Atualmente, o Banco Mundial administra 12 fundos de Unidade de Financiamento de Carbono, com um valor aproximado de 2,5 bilhões de dólares, que até agora envolveram países como China, Índia, Brasil, México

e Colômbia.Entre os fundos mais importantes

estão: - Fundo de Biocarbono: centrado em projetos florestais e do uso da terra;

- Fundo de Carbono de Desenvolvi-mento Comunitário: centrado em proje-tos em países menos desenvolvidos;

O Banco Mundial, também maneja distintos fundos de investimentos, por exemplo:

- Fundo de Tecnologia Limpa: projetos de mitigação ou redução de emissões;

- Fundo Cooperativo para o Carbono das Florestas (FCPF): para mitigação - REDD;

- Programa de Investimento em Florestas: para mitigação - REDD;

- Programa Piloto de Resistência Climática: para adaptação;

- Programa de Ampliação da Energia Renovável para os Países de Baixo Ingresso: para mitigação - geral;

- Fundo Estratégico sobre o Clima: adaptação, mitigação – REDD, mitigação – geral;

- Fundo para o Meio Ambiente Mundial (GEF, sigla em inglês): tem dois fundos fiduciários financiando projetos de adaptação e mitigação.

Nas negociações sobre clima, os governos do Norte têm buscado reforçar este papel do Banco Mundial através, por exemplo, da gestão do Fundo Verde Climático, cuja criação foi acordada na COP-16, em Cancun. Mesmo reconhecendo que o financiamento prometido é problemático pela sua lógica, destino e atores envolvidos, além de outras questões, o prometido não é aplicado. Investigações recentes assinalam que dos 30 bilhões de dólares para financiamento “rápido” que foram prometidos em dezembro de 2009 no chamado “Acordo de Copenhague”, até agora, foram aplicados efetivamente apenas 7,9 bilhões de dólares, dos quais 42% (3,3 bilhões de dólares) serão canalizados através do Banco Mundial e 47% (3,7 bilhões de dólares) serão aplicados através de empréstimos.

Campanha denuncia as falsas soluções propostas pelo Banco Mundial: a hora de agir é agora

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* O Jubileu Sul, rede composta de organizações

e movimentos da sociedade civil da América Latina

e Caribe, África e Ásia, integra a Campanha Banco

Mundial Fora do Clima – www.jubileubrasil.org.br

Mais do mesmoEnquanto isso, o Banco Mundial continua financiando um modelo de desenvolvimento que contribui para o aquecimento climático, incluindo massivo investimento em combustíveis fósseis e no agronegócio:

• Entre 1992 e 2004, aprovou mais de 11 bilhões de dólares de empréstimos para mais de 120 projetos de combustíveis fósseis, representando 20% das emissões globais atualmente.

• Somente em 2007 e 2008, o Banco Mundial financiou outros 7,3 bilhões de dólares em projetos de combustíveis fósseis – sem incluir empréstimos para as políticas e agências de financiamento intermediário do setor de combustível fósseis. O banco também financiou 5,3 bilhões de dólares para energias renováveis e eficiência energética. Como é de se esperar, a construção da “nova” Estratégia Energética do Banco Mundial para 2011 apresenta algumas mudanças. Entre outros aspectos, planeja investir no setor privado enfocando na produção de energia e não no consumo. Para o Banco Mundial, a energia limpa continua sendo a hidrelétrica, os agrocombustíveis, a energia nuclear (mesmo afirmando que não vai financiar) e o mercado de carbono.

Ao desenvolver estas políticas, o Banco Mundial continua ignorando, entre outras questões:

* a sugestão da Comissão Mundial de Barragens, que acaba de completar 10 anos de esquecimento, sobre os impactos econômicos, sociais e ecológicos negativos das represas. As hidrelétricas não são fontes de energia limpa: contribuem para o desmatamento e a expulsão das populações de seus territórios e são, ao mesmo tempo, grandes emissoras de gases de efeito estufa na atmosfera;

* as advertências da FAO (Organização da ONU para a Agricultura e Alimentação) sobre os impactos negativos dos agrocombustíveis sobre a segurança e a soberania alimentar e o desmatamento;

* a pressão, a mobilização e as críticas de milhares de organizações e pessoas que, nas últimas décadas, reivindicam o fechamento desta instituição ilegítima e injusta.

O Acordo dos Povos - realizado durante a Conferência Mundial dos Povos sobre as Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra, em abril de 2010, em Cochabamba (Bolívia), como uma resposta ao fracasso de Copenhague (COP16) - afirma que o financiamento mínimo necessário para enfrentar as mudanças climáticas deve ser de 6% do Produto Interno Bruto (PIB).

Os fundos devem ser públicos, novos, adicionais e não reembolsáveis, eliminando o mercado de carbono,

e sem nenhum envolvimento do Banco Mundial ou dos bancos de desenvolvimento regionais. O Acordo demarca ainda que, para construir o equilíbrio e a equidade climática, é indispensável reparar a dívida ecológica e climática que o Norte tem com o Sul e com todo o planeta. Os fundos não devem ser entendidos em função das mudanças climáticas, mas sim em função da busca de um caminho para uma sociedade não dependente de petróleo, pois são os combustíveis fósseis os principais causadores do problema.

Conhecemos as consequências históricas das dívidas ilegítimas que o Sul global tem sofrido há séculos. Nesse sentido, conclamamos que, em todas as partes do mundo, sejam organizadas ações que evidenciem o papel danoso do Banco Mundial e que se fortaleça a resistência da Campanha Banco Mundial Fora do Clima. É preciso fazer frente às falsas soluções que este banco promove em relação à crise climática, incluindo, sobretudo, o financiamento ao mercado de carbono em suas diversas formas, e as consequências para a aliança dos direitos dos povos e a natureza.

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COntra COrrenteAdriana Ramos*

reDD: financiamento para florestas ou financeirização climática?Em relação à compensação de emissões de carbono, o destino e funcionamento do REDD ainda não estão suficientemente claros no Brasil; a prioridade deve ser para quem protege as florestas

R EDD é a sigla para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação. É um mecanismo

que reconhece a importância das florestas na proteção do clima e propõe uma compensação aos países que estão dispostos e em condições de reduzir as emissões por desmatamento e degradação florestal. Neste sentido,

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“O REDD pode ser visto como um mecanismo que apóia financeiramente a proteção das florestas : mecanismo em disputa”

o REDD pode ser visto como um mecanismo que apóia financeiramente a proteção de florestas.

Embora ainda não haja definições específicas sobre o que será abarcado pelo mecanismo, no âmbito da Convenção de Clima ou mesmo na legislação nacional. Levando-se em conta que a proteção das

florestas pode se dar por diferentes estratégias, entre elas, a promoção de seu uso sustentável, como tem sido historicamente feito por povos indígenas e comunidades tradicionais, o REDD pode também apoiar o desenvolvimento de alternativas econômicas para esses grupos sociais.

O Fundo Amazônia foi criado

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pelo governo brasileiro a partir das reduções das emissões oriundas do desmatamento da Amazônia ocorridas entre os anos de 2005 e 2009. Não há titulação ou certificação de carbono a partir da doação ao Fundo Amazônia. O que o BNDES emite é um diploma reconhecendo a contribuição dos doadores ao Fundo Amazônia. O diploma traz a quantidade de toneladas de carbono correspondentes ao valor da contribuição financeira para o Fundo, mas não gera direitos ou créditos de nenhuma natureza. O BNDES afirma que está discutindo o desenvolvimento de uma metodologia de inventário de carbono visando permitir a compensação limitada de emissões com projetos de REDD +, embora não haja informação pública sobre essa possibilidade, e nem amparo formal nas políticas brasileiras de REDD para tal, ao menos por agora.

O Fundo Amazônia se diferencia de outros fundos voltados às florestas tropicais no âmbito das mudanças climáticas, como o Programa de Investimentos Florestais (FIP), do Banco Mundial. No caso do FIP, os investimentos não estão condicionados ao ato da comprovação da redução das emissões. Além do Fundo Amazônia, o BNDES administra outros fundos direcionados à regularização ambiental ou restauração florestal. Este é o caso do Programa ABC, de crédito para financiar ações que contribuam para a redução de emissões de gases causadores do efeito estufa geradas pela atividade agropecuária. O Fundo Mata Atlântica, como o Fundo Amazônia, é de recursos não reembolsáveis. O BNDES anunciou que utilizaria recursos do Fundo Mata Atlântica, para a neutralização de emissões de sua sede, no Rio de Janeiro. Entretanto, não há informações sobre se e como isso vem sendo feito.

Priorizar os pequenosA crescente especulação sobre as possibilidades de utilização do mecanismo REDD como compensação de emissões de carbono demonstram a fundamental relevância de se definir claramente em âmbito nacional a que se destinará o mecanismo REDD e como funcionará. Esse é o grande desafio da sociedade civil brasileira em relação ao tema REDD, assegurar que seja um instrumento de repartição de benefícios que priorize os atores sociais historicamente

comprometidos e responsáveis pela manutenção das florestas.

É essa perspectiva que tem balizado a atuação da representação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) no Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA). A redução dos desmatamentos na Amazônia foi um processo resultante de ações de governo e da sociedade e, principalmente, das comunidades que

vivem do uso sustentável da floresta na região. Por isso, esses grupos sociais devem ser priorizados na aplicação dos recursos do Fundo Amazônia.

Para viabilizar o acesso das organizações representativas das comunidades locais ao Fundo, a representação da sociedade civil no COFA tem defendido o estabelecimento de editais específicos para pequenos projetos, e o apoio a outros fundos que tenham mais experiência e agilidade para apoiar projetos menores, a exemplo do Fundo Dema, administrado pela Fase, que recentemente firmou contrato com o Fundo Amazônia.

As demais pautas prioritárias da representação do FBOMS no COFA são: ampliar a transparência do Fundo Amazônia e a coerência entre os objetivos do Fundo e os investimentos do BNDES na região.

Para ampliar a transparência do Fundo Amazônia temos cobrado do BNDES ações de comunicação mais eficientes, tanto no que diz respeito às informações necessárias ao acesso ao Fundo, quanto às relacionadas ao desenvolvimento dos projetos. Ao mesmo tempo, temos buscado promover um maior controle social sobre os recursos do Fundo Amazônia, divulgando informações sobre os projetos desenvolvidos em deolhonofundoamazonia.ning.com.

No que diz respeito à coerência entre os objetivos do Fundo Amazônia e os demais investimentos do BNDES na região, trata-se do desafio mais complexo e com menor permeabilidade dentro do próprio Banco, e a estratégia do FBOMS para enfrentá-lo é buscar articulação com outros grupos da sociedade, principalmente a Plataforma BNDES e a Rede Brasil.

“O grande desafio é

assegurar que o reDD

seja um instrumento

de repartição de

benefícios que

prioriza os atores

sociais historicamente

comprometidos e

responsáveis pela

manutenção das

florestas”.

* Adriana Ramos é secretaria executiva adjunta do Instituto

Socioambiental (ISA) [email protected]

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COntra COrrenteRubens Harry Born*

Fundo Clima: útil, mas suficiente?Considerado, por alguns, um importante instrumento da política do clima, este Fundo navega em um mar de dúvidas sobre sua real capacidade de contribuir para um Brasil de “baixo carbono”

Como parte das incipientes respostas políticas do Brasil à comunidade internacional no tocante ao

enfrentamento doméstico para o cumprimento do acordo multilateral da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre mudança de clima, o governo brasileiro fez aprovar a lei n° 12.187, de 29 de dezembro de 2009, que define a Política Nacional sobre Mudança Climática (PNMC), e a lei n° 12.114, de 09 de dezembro de 2009, que estabelece e dispõe sobre o Fundo Nacional sobre Mudança Climática (FNMC), um dos instrumentos da política nacional.

Em 2008, o governo brasileiro apresentou o PNMC para a sociedade e anunciou que até 2020, com medidas voluntárias, as emissões brasileiras seriam reduzidas em 36 a 38% em relação ao nível que poderiam chegar caso nada fosse feito. Sua implementação carece do detalhamento de alguns planos setoriais. O plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono) foi elaborado em consultas com algumas organizações. Outros planos e atividades setoriais de combate ao desmatamento, na Amazônia e no Cerrado, e de mitigação

de emissões na produção e uso de energia devem detalhar o PNMC.

Essas ações são consideradas, por alguns, um razoável avanço, uma vez que, até recentemente, o governo defendia que o Brasil, por não ter compromissos globais de redução obrigatória de emissões, não precisaria de uma política nacional. Esta percepção baseava-se na constatação de que os projetos de compensações de emissões por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), do Protocolo de Quioto, bastariam para que o País contribuísse com os esforços globais.

No entanto, o cenário nacional é, como em outros países, complexo e, por vezes, contraditório. Por um lado, temos tais instrumentos. Por outro, predomina ainda a visão de que qualquer tipo de crescimento econômico é louvável. Seguimos adiante com programas de desenvolvimento insustentável e que agravarão o aquecimento global, como: ampliar a exploração e uso de combustíveis fósseis; estimular o aumento da frota de veículos particulares; e denegar critérios de emissões para o licenciamento ambiental de atividades

modificadoras ou que usam recursos na natureza, dentre muitas outras.

O Brasil tem que lidar também com as disparidades regionais. Isso significa equacionar, de forma equitativa, as condições dos estados e municípios em lidar com as causas e os impactos das mudanças de clima, além de evitar “vazamentos” das emissões (por efeito de medidas para reduzir as emissões em uma área, as atividades econômicas que as produzem se deslocam para outras regiões). Teríamos que evitar também a ocorrência de fenômenos registrados no âmbito internacional: alguns, resistindo a mudar sua estrutura produtiva, buscam medidas compensatórias em outras regiões. Ou seja, manter uma indústria aqui e plantar uma árvore acolá, ou continuar a explorar petróleo e ampliar o uso de termoelétricas a carvão em troca de algumas usinas eólicas.

O Fundo Clima (FNMC) – como ele é mais conhecido - é um fundo de natureza contábil, regulamentado pelo Decreto n° 7.343/2010, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA). Ele tem como finalidade assegurar recursos para apoio

Investimento alto, sem garantia

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Fundo Clima pretende assegurar recursos para a mitigação e a adaptação à mudança do clima: instrumento limitado?

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a projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que visem à mitigação da mudança do clima e à adaptação à mudança do clima e aos seus efeitos.

Os recursos do Fundo Clima são constituídos por até 60% da cota parte (10%) do MMA dos recursos da participação especial aplicada sobre a receita bruta da produção de energia, deduzidos os royalties, previstos no inciso II do § 2º. do art. 50 da lei n° 9478, de 1997 (lei de política energética). Também podem constituir recursos do Fundo: as dotações consignadas na lei orçamentária anual da União e em seus créditos adicionais; recursos decorrentes de acordos, ajustes, contratos e convênios celebrados com órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital ou municipal; doações realizadas por entidades nacionais e internacionais, públicas ou privadas; empréstimos de instituições financeiras nacionais e internacionais; reversão dos saldos anuais não aplicados; e recursos oriundos de juros e amortizações de financiamentos.

Poucas definiçõesEm relação ao recorrente questionamento sobre a possibilidade do Fundo apoiar medidas que levem o Brasil a ser um país de “baixo carbono”, é preciso avaliar se a Política Nacional de Mudança de Clima, em sua forma atual, é suficiente e adequada. Também é preciso ter clareza de seu impacto no Plano Plurianual de Ações (PPA), bem como avaliar outros instrumentos regulatórios, de planejamento e investimentos do Estado brasileiro, inclusive os do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). No entanto, um caso exemplar foi o fato de que, na promulgação da lei no 12.187, houve veto presidencial ao dispositivo que definia como uma das diretrizes da política o “estímulo ao desenvolvimento e ao uso de tecnologias limpas e ao paulatino abandono do uso de fontes energéticas que utilizem combustíveis fósseis”.

Os recursos públicos do FNMC devem ser aplicados em apoio financeiro

reembolsável mediante concessão de empréstimo, por intermédio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o agente operador; e em apoio financeiro não reembolsável a projetos relativos à mitigação da mudança do clima ou à adaptação à mudança do clima e aos seus efeitos, aprovados pelo seu Comitê Gestor.

Cabe a este Comitê Gestor vinculado ao MMA, com representantes do poder Executivo federal e de setores da sociedade, definir, anualmente, a proporção de recursos a serem aplicados em cada uma das modalidades, empréstimos e doações, sendo que estas podem ser aplicadas diretamente pelo MMA ou transferidas mediante convênios, termos de parceria, acordos, ajustes ou outros instrumentos previstos em lei.

A primeira reunião do Comitê Gestor, no início de 2011, tratou de questões operacionais e institucionais e a construção do regimento interno. Na segunda reunião, em março, foi apresentada e aprovada a proposta de aplicação de recursos para este ano, sendo R$ 200 milhões na categoria de aplicação reembolsável (financiamento) e pouco mais de R$ 29 milhões na concessão (doação) de recursos. Sugeriu-se que os recursos reembolsáveis sejam aplicados em:• Financiamento das ações estabelecidas nos planos setoriais da Política Nacional sobre Mudança Climática;• Financiamento de ações de mitigação e adaptação nos estados e municípios;• Financiamento de inovação tecnológica para o desenvolvimento e consolidação de uma economia de baixo carbono;

Em julho, o MMA publicou quatro editais para recebimento de propostas de cinco das nove linhas identificadas para aplicação de recursos não reembolsáveis. Setenta projetos, com custo total de mais de R$ 52 milhões, disputaram os R$ 16 milhões disponíveis.

A reunião ordinária do Comitê, no final de agosto, tinha como pauta principal a avaliação de critérios e

procedimentos para decidir a aplicação não reembolsável. Entretanto, nada foi resolvido, pois não foi disponibilizado a tempo um conjunto de informações que permitiriam que os integrantes do Comitê tomassem decisões. Nova reunião extraordinária havia sido marcada para o final de setembro deste ano.

Muitas incertezas De que servirá um fundo que aplica algumas centenas de milhões de reais em projetos meritórios e úteis, se bilhões de reais continuarem a fluir para iniciativas que nada têm de sustentáveis e nenhuma relação com a economia de baixo carbono? Será que o Fundo Clima pode se tornar uma referência de critérios e procedimentos de investimentos públicos, inclusive em iniciativas de cunho empresarial, de tal modo que tantos outros fundos, recursos orçamentários e instrumentos financeiros, nos três níveis de governo, sejam mais consistentes com as necessidades de lidar com medidas de mitigação e de adaptação às mudanças do clima? Será que o próprio BNDES, além do Banco do Brasil, bancos regionais e os fundos constitucionais deixarão de investir em atividades e empreendimentos que, no curto, médio e longo prazo, não são consistentes com um país de baixa intensidade de produção de gases de efeito estufa?

O Fundo Clima, instrumento importante da Política Nacional de Mudança de Clima, começou a funcionar. O desafio é ter condições de fazer a diferença, instigando especialmente o poder público e o setor privado na efetiva alocação de recursos - financeiros, orçamentários e especiais - em iniciativas que contribuam para a transição para uma sociedade fundada em uma economia ambientalmente sustentável, socialmente justa e com baixa emissão de gases de efeito estufa.

Rubens Harry Born é coordenador executivo adjunto do

Vitae Civilis e representante de ONGs no Comitê Gestor do

Fundo – [email protected]

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COntra COrrenteAlessandra Cardoso*

De olho nos investimentos na amazôniaAlém de sistematizar informações sobre a dinâmica dos financiamentos na região, Observatório produzirá análises críticas sobre seus atores e os impactos

H idrelétricas, hidrovias, ferrovias, rodovias, mineração, extração de gás, concessões florestais,

aquisição de terras e projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD). Se todas estas dinâmicas de investimento estivessem visíveis em um mapa amazônico com seus atores e instrumentos propulsores – incluindo financiadores, investidores, subsídios, isenções –, o que veríamos? E se também pudéssemos ver, a partir deste olhar mais sistêmico dos investimentos, seus impactos, também sistêmicos, sobre os territórios?

Foi estimulado por perguntas como

estas que o Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc) se propôs à construção do Observatório dos Investimentos na Amazônia, uma iniciativa que pretende reunir e sistematizar informações e análises sobre a dinâmica de investimentos e financiamentos orientados à Amazônia brasileira. Evidenciar, de forma sistêmica e contínua, os bilhões de reais de recursos públicos e privados envolvidos nestes investimentos é também uma forma de contribuir à análise crítica e propositiva de atores políticos que disputam o significado e os caminhos para o “desenvolvimento” e para a “preservação” da Amazônia. Mais que

levantar e divulgar informações técnicas e financeiras, o Observatório pretende ser uma ferramenta útil na produção e difusão de análises sobre atores, arranjos institucionais, financeiros e impactos gerados por estes investimentos.

Os primeiros temasPara dar início à construção do Observatório, que será progressivamente ampliado, escolheu-se incluir projetos de REDD e hidrelétricas. Metodologicamente, este levantamento também exigiu abordagens distintas.

A opção pelo levantamento de projetos de REDD se justifica pelo fato de que a despeito da inexistência de regulamentação internacional e nacional do mecanismo ele esteja sendo rapidamente implementado - como iniciativas de governos locais, de multinacionais, de ONGs, de fundações. Isto, sem que haja uma reflexão aprofundada e consistente das suas potenciais implicações e riscos, quer seja no âmbito da Política Mundial para o Clima, quer seja como instrumento financeiro especulativo, como forma de imobilização e controle de recursos territoriais ou, ainda, como uma forma de privatização da proteção ambiental.

O levantamento dos projetos de REDD na Amazônia foi realizado entre os meses de abril e junho de 2011, por meio da aplicação de questionários às instituições e organizações do setor público, Observatório confirma riscos anunciados envolvendo o REDD: florestas preservadas podem ser destruídas

Vere

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lass

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privado e sociedade civil identificadas como responsáveis ou parceiras no desenvolvimento desses projetos.

Foram identificados sete projetos de REDD estruturados conforme parâmetros técnicos que são comumente requeridos para alçar projetos à condição de receptores de investimentos privados em mercados de carbono chamados voluntários, tais como: metodologia crível para o cálculo de emissões evitadas e/ou biomassa estocada; tempo de realização delimitado e com resultados e expectativas definidos; área de influência definida.

Percepções confirmam riscosO resultado do levantamento reforça a

posição de organizações e movimentos que alertam para os riscos e equívocos envolvendo o REDD. Entre eles está o de que florestas preservadas estejam sob o risco de serem destruídas por múltiplos vetores de desmatamento. Com seus “proprietários/detentores” – inclusive, e talvez prioritariamente, grandes propriedades hoje improdutivas - recebendo créditos por redução que ajudam a alimentar um movimento de aquisição de mais terras e expansão do próprio agronegócio. O desafio é dar continuidade neste levantamento, incluindo novos projetos que venham a ser identificados e, também, aprofundar a reflexão sobre o significado e riscos envolvendo este mecanismo.

Para o levantamento de projetos de barragem, o Observatório optou por desenvolver uma metodologia também própria, que foi pensada e testada a partir dos projetos hidrelétricos do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, em Rondônia: usinas de Jirau e Santo Antônio e linha de transmissão Rondônia-Araraquara, com uma extensão de 2.375 km.

A metodologia construída permitiu reunirmos no banco de dados informações que consideramos úteis ao propósito de ampliar e aprofundar o conhecimento sobre esses projetos, com prioridade para a investigação

dos arranjos econômico-financeiros utilizados para viabilizá-los, para o processo de licenciamento ambiental e, igualmente, para os impactos ambientais e sociais trazidos pelas obras.

Os dados trazidos pelo Observatório até aqui evidenciam uma elevada pressão, de caráter público e privado, envolvendo bancos, órgãos públicos, empresas, lobistas e gestores, para que não haja qualquer tipo de prejuízo ao cronograma das obras e de sua entrada em operação. É também sob o desígnio da viabilidade econômica das obras do Complexo Madeira que o processo de licenciamento acaba sendo marcado pelo imperativo da entrada em operação das hidrelétricas.

Sob o ponto de vista do processo de licenciamento, a metodologia desenvolvida busca trazer e reforçar elementos críticos para ampliar e fortalecer a reflexão sobre este processo altamente técnico e hermético que, se não inviabiliza, dificulta muito o acompanhamento pela sociedade do passo a passo das análises dos diferentes órgãos governamentais. Desde a autorização para a Elaboração do Estudo de Inventário de uma bacia hidrográfica

Trabalhadores da obra na usina de Jirau revoltaram-se, em março: violações dos

direitos humanos e trabalhistas para “cumprir o cronograma”

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Alessandra Cardoso é assessora do Instituto de Estudos

Sócio-Econômicos (Inesc) – [email protected]

até os programas de mitigação e compensação dos muitos e imbricados impactos ambientais e sociais trazidos pelos empreendimentos antes, durante e depois das licenças ambientais.

A prestação de contas divulgada pelos empreendedores durante o processo não passa de uma peça de marketing social e ambiental – que está muito distante de apresentar à sociedade a real dimensão dos impactos e sua efetiva mitigação e compensação. O tratamento dado pelo governo nas diversas fases do processo, da concepção ao licenciamento do projeto, também em nada contribui para dar transparência às informações. Diante disso, a proposta do Observatório é contribuir no estímulo e subsídio para a reflexão e controle social sobre todas as etapas do processo.

Trabalhadores da obra na usina de Jirau revoltaram-se, em março: violações dos direitos humanos e trabalhistas

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COntra COrrenteCélio Bermann*

Petróleo do Pré-Sal: investindo no passadoAo invés de priorizar saúde, moradia, saneamento e energia renovável, Brasil opta por investir em fonte energética sem futuro que causa graves impactos

N os últimos dois anos, o debate sobre o Pré-Sal está restrito ao destino dos royalties da sua

produção. Ainda não se conhece de que quantidade de reservas está se falando – os 9,5 a 14 bilhões de barris de óleo, até o momento confirmados nos campos de Tupi, Iara e Parque das Baleias, ou se tratam de reservas que poderão alcançar de 50 a 150 bilhões de barris.

Estima-se que a área total do Pré-Sal seja de 149 mil quilômetros quadrados. Deste total, 42 mil quilômetros quadrados já foram objeto de concessão e 107 mil quilômetros quadrados ainda não foram licitados. A previsão inicial indicava que a 1ª licitação ocorreria este ano, mas a indefinição quanto aos royalties levou ao adiamento. A nova data para a definição dos contratos com base no modelo de partilha para leiloar as novas áreas de exploração de petróleo e gás na camada pré-sal ficou para o 2º semestre de 2012.

Foi também criada uma nova empresa estatal, não operacional, que irá gerir os contratos de exploração. Os recursos obtidos pela União serão destinados ao Novo Fundo Social (NFS), também denominado de ’Fundo Soberano’.

Sem dúvida, a renda petrolífera que poderá ser extraída com a exploração desse petróleo atinge cifras gigantescas. Entretanto, para alcançar uma produção de 1,815 milhões de barris por dia, prevista para 2020, os investimentos nos próximos 10 anos nas atividades de

exploração, desenvolvimento e produção do petróleo da camada do pré-sal são da ordem de US$ 111,4 bilhões, conforme

as previsões da Petrobrás, incluindo seus parceiros.

Trata-se de cerca de R$ 200 bilhões a serem investidos numa fonte energética

que marcou o desenvolvimento econômico e o padrão civilizatório do século XX. Mas que, em função da sua exaustão, não será mais a fonte de energia do futuro do nosso planeta.

Sob o ponto vista estratégico, a existência desse petróleo assegura ao Brasil condições de enfrentar, num futuro próximo, as restrições cada vez maiores que vão caracterizar o período de transição para outras fontes energéticas. Teremos petróleo, não para nos transformarmos em “novo país exportador da OPEP” [Organização dos Países Produtores de Petróleo], como querem muitos, mas para ter à disposição reservas suficientes para atravessar este período de transição sem grandes sobressaltos. Apenas isso!

Habitação, saneamento básico e saúdeMas podemos indagar se esta é a melhor forma de investimento. Poderíamos imaginar estes montantes sendo direcionados para outras demandas como, por exemplo, a redução do déficit habitacional, ou para garantir a universalização do saneamento básico no Brasil ou, ainda, para cobrir as necessidades de financiamento à saúde.

Com efeito, com este dinheiro, o Brasil poderia reduzir pela metade o atual déficit habitacional de 5,8 milhões de domicílios, com um custo total estimado em R$ 406 bilhões.

Ou ainda, para universalizar o

“trata-se de cerca

de r$ 200 bilhões

a serem investidos

numa fonte energética

que marcou o

desenvolvimento

econômico e o padrão

civilizatório do século

XX. Mas que não

será mais a fonte de

energia do futuro do

nosso planeta.”

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saneamento em todo o país seria necessário aplicar cerca de R$ 11 bilhões por ano até atingirmos um total de R$ 220 bilhões em 2020. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2008), morrem por dia no Brasil sete crianças entre zero e cinco anos de idade, vítimas de diarréias e doenças parasitárias. Cerca de 34% das crianças dessa faixa etária se ausentam das creches e salas de aula devido às doenças relacionadas à falta de saneamento. É também constatado que 15 mil brasileiros morrem vítimas de diarréias por ano. Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2008), aproximadamente 53% dos brasileiros não tem acesso à rede geral de esgoto, e apenas 20% possuem esgoto tratado. Se investisse em saneamento, o país evitaria gastos quatro vezes maiores com tratamento médico hospitalar.

Sistema perversoO que leva o não investimento nestes setores é a lógica do mercado. Construir habitações para uma população cuja renda, para 90% dela, é inferior a três salários mínimos, vai apenas contribuir para dinamizar de forma restrita setores da construção civil e materiais de construção. Um investimento que não encontrará retorno.

O investimento em saneamento básico também não se ajusta à lógica do mercado. Trata-se de um investimento sem visibilidade política, pois são encanamentos enterrados e estações de tratamento longínquas nos centros urbanos.

Está também presente no debate atual o uso dos royalties do Pré-Sal para o financiamento à saúde. Estima-se a necessidade de R$ 30 bilhões anuais, que poderiam ser cobertos sem a criação de um novo tributo. A emenda 29, de 2000,

não estabelece o percentual da União para a saúde. Os estados devem reservar pelo menos 12% do seu orçamento para a saúde, enquanto que para os municípios o piso é de 15% do orçamento.

Fontes energéticas do futuroPoderíamos também pensar nestes US$ 111,4 bilhões sendo investidos de forma diversificada nas fontes energéticas renováveis.

Poderíamos assistir a um formidável avanço das usinas eólicas ou da energia solar fotovoltaica. Uma parte deste montante poderia ser utilizada para a construção de duas ou três fábricas de painéis fotovoltaicos, uma vez que, atualmente, importamos estes equipamentos, nos restringindo ao papel de um grande mercado para as empresas fabricantes estrangeiras.

Com investimentos em tecnologia de ponta poderíamos participar do desenvolvimento em grande escala dos veículos elétricos. Apesar dos esforços na substituição dos combustíveis derivados

de petróleo pelas biomassas (etanol e biodiesel), serão os veículos elétricos que irão substituir a atual tecnologia dos motores à combustão interna. Para superar os atuais desafios da autonomia (distância percorrida sem necessidade de recarga), tempo de recarga e custos, poderíamos investir em conjunto com a Bolívia no aproveitamento das reservas de lítio, localizadas na província de sal de Uyuni, com reservas estimadas de 300.000 a 5,5 milhões de toneladas, conforme dados da Corporación Minera de Bolívia (Comibol). Trata-se do desenvolvimento de baterias de lítio de alto desempenho, que serão capazes de superar os atuais desafios aos veículos elétricos.

São estes alguns exemplos de possibilidades de investimento no futuro. Olhar para o petróleo da camada do pré-sal é olhar para o passado.

O uso irrestrito do combustível fóssil é considerado uma das principais causas do aquecimento global: energia sem futuro

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Célio Bermann é professor Livre-Docente do Programa de

Pós-Graduação em Energia da Universidade de São Paulo (USP)

[email protected]

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COntra COrrentePhilip M. Fearnside*

emissões: os impactos mais renegados das hidrelétricasIndústria, governo e financiadores, como o BNDES, não querem admitir que as barragens, na Amazônia, são mais prejudiciais que a queima de combustível fóssil

As emissões de gases de efeito estufa representam um grave impacto que precisa ser

avaliado tanto no licenciamento pelas autoridades ambientais brasileiras como pelas instituições que finaciam a construção de barragens. A atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é particularmente definidora nesse cenário, uma vez que, além de financiar a construção de barragens no Brasil, ele também financia uma série de projetos na Bolívia e no Peru, onde o licenciamento é ainda menos rigoroso que no Brasil.

Represas hidrelétricas não produzem “energia limpa”, ao contrário das afirmações da indústria hidrelétrica, porta-vozes governamentais e os bancos que financiam a construção das barragens. Infelizmente, represas liberam gases de efeito estufa, contribuindo, dessa forma, com o aquecimento global. Na Amazônia, frequentemente, as barragens são mais prejudiciais do que a queima de combustível fóssil para a geração de energia, por várias décadas. A própria Floresta Amazônica se encontra sob ameaça de mudanças climáticas nessa

escala de tempo, fazendo com que barragens como essas jamais poderiam ser consideradas mitigadoras do aquecimento global.

Nas barragens amazônicas, gases de efeito estufa são liberados de diferentes

Ao financiar barragens na Amazônia, o BNDES pode ser (co) responsabilizado pelos seus graves impactos, inclusive pelas emissões de gases de efeito estufa

formas. Primeiro, as árvores mortas pela inundação da florestas se projetam acima da superfície da água e se deterioram ao ar livre, liberando gás carbônico (CO2). Esse gás se constitui em uma contribuição líquida ao efeito

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estufa, diferente do gás carbônico que será liberado da água do reservatório, resultante da decomposição subaquática de plantas que crescem no reservatório ou na área circunvizinha, depois da construção da represa.

A quantidade de gás carbônico que essas plantas absorvem da atmosfera enquanto elas crescem é a mesma que será liberada após a morte delas, durante o processo de decomposição. Porém, muito da matéria vegetal que se decompõe no reservatório não libera seu carbono na forma de gás carbônico, mas sim como metano (CH4). Isto ocorre porque a água do fundo do reservatório praticamente não tem oxigênio e, portanto, o oxigênio necessário para formar gás carbônico não é disponível.

Um impacto muito superiorA metade do peso seco da vegetação é carbono, e o impacto sobre o efeito estufa é maior quando a vegetação que se decompõe debaixo d’água libera este carbono na forma de metano em vez de gás carbônico. Isso ocorre porque, de acordo com o relatório de 2007 do Painel Intergovernamental sobre Mudança de Clima (IPCC), uma tonelada de gás metano, ao longo de 100 anos, equivale a 25 toneladas de gás carbônico. Entretanto, análises mais recentes, que incluem efeitos indiretos sobre poeira e outros aerossóis indicam que o impacto de metano é 34 vezes maior que o de gás carbônico, para o mesmo período.

Os reservatórios hidrelétricos são muito diferentes de lagos naturais, na medida em que a água de um reservatório sai pelas turbinas, localizadas perto do fundo ou, então, pelos vertedouros, onde a água passa por uma fenda que se abre quando uma porta de aço é levantada, também a uma profundidade considerável na coluna d’água. Em um lago natural, a água deixaria o lago através de um córrego de saída. Dessa forma, a água viria da superfície, onde ela

estaria em contato com o ar. A água de um reservatório se separa em duas camadas, uma superfícial – de 2 a 10m de profundidade, aproximadamente -, onde a água é relativamente quente e contém oxigênio dissolvido oriundo do contato com a atmosfera; e uma camada mais profunda, onde é água fria. A camada profunda, e onde o oxigênio é praticamente ausente, não se mistura com a camada superficial. No sedimento no fundo do reservatório,

a decomposição produz metano, que permanece em concentração elevada na água na camada profunda. Parte deste metano é liberada para a superfície na forma de bolhas ou, por meio de difusão - essa última, especialmente em um reservatório recém-formado.

A maior parte da emissão, no entanto, ocorre quando a água passa pelos vertedouros e turbinas. Essa água está sob alta pressão e, quando é lançada abaixo da barragem, a pressão cai subitamente. Os gases dissolvidos na

água repentinamente tornam-se menos solúveis (Lei de Henry, na química), e a maior parte é liberada durante um curto espaço de tempo. Esse é o mesmo processo que ocorre quando uma garrafa de refrigerante é aberta e surgem bolhas de CO2, exceto que, no caso de um refrigerante, a diferença de pressão é muito menor do que em uma barragem hidrelétrica.

Quando um reservatório hidrelétrico é inundado pela primeira vez ocorre um grande pulso de emissões de gases de efeito estufa, que permanece durante os primeiros anos. Isso inclui o lançamento do CO2 oriundo da decomposição das árvores mortas, acima da superfície da água, e a liberação de CO2 e CH4 oriundos de outros estoques de carbono existentes antes do enchimento do reservatório, tais como carbono do solo e das folhas que caem, quando as árvores morrem. Este impulso inicial diminui à medida que se esgotam os estoques de carbono em formas que são facilmente degradáveis.

Após o pico inicial das emissões a partir de estoques pré-existentes de carbono, haverá uma emissão sustentada em um nível inferior, oriunda de carbono que é produzido por fotossíntese no reservatório, na zona de deplecionamento e das folhas de árvores presentes na área de captação. Essas folhas caem e, posteriormente, são levadas para o rio e seus afluentes pelas chuvas torrenciais e os eventos de inundação associados. A emissão sustentada de metano pela decomposição de biomassa com essa origem representa uma fonte permanente de emissões de gases de efeito estufa.

Conspiração? Só se for a corporativaA sugestão de que os reservatórios de hidrelétricas liberam gases de efeito estufa foi feita pela primeira vez em 1993 por um grupo de canadenses com base em dados de reservatórios

“Para chegar

a uma decisão

racional sobre

qualquer projeto

energético, a

primeira pergunta

a ser respondida

é a questão sobre

o que irá ser feito

com a energia.”

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COntra COrrente

naquele país. Minha publicação, em 1995, provocou a fúria da indústria de hidroenergia por ter revelado que a represa de Balbina, na Amazônia brasileira, teria um impacto maior do que os combustíveis fósseis. Porta-vozes da Associação Americana de Hidrelétricas (dos EUA) e da Associação Internacional de Hidrelétricas (do Reino Unido) alegaram que a noção que barragens produzem metano seria uma “asneira” e que reservatórios representavam “um jogo de soma zero” porque as emissões provenientes dos ecossistemas pré-reservatórios seriam eliminadas. No entanto, os ajustes para essas emissões são incluídos nos meus cálculos, e os cálculos indicam um grande impacto líquido de barragens. A Eletronorte atribuiu a idéia a uma conspiração internacional que queria falar mal do Brasil (ver ambos os lados do debate na seção “Controvérsias Amazônicas” no site http://philip.inpa.gov.br).

Nos anos seguintes, uma quantidade significativa de pesquisas comprovou as emissões de gases de efeito estufa, e a indústria hidrelétrica foi forçada a reconhecer que as barragens liberam esses gases. No entanto, passou a sustentar que as emissões são poucas e muito menores do que as emitidas a partir de combustíveis fósseis para gerar a mesma energia. Esta posição, geralmente, tem sido sustentada por simplesmente ignorar as fontes principais de emissões das barragens, tais como o metano liberado das turbinas e vertedouros, bem como o CO2 da decomposição de árvores, acima da superfície da água. As únicas emissões incluídas na maioria dos estudos financiados pela indústria hidrelétrica são as bolhas e a difusão através da superfície dos próprios reservatórios.

Camuflagem governamentalO primeiro inventário brasileiro de emissões de gases de efeito estufa, lançado em Buenos Aires, em 2004,

na Conferência das Partes (COP), da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudaças do Clima, incluía uma seção sobre as emissões de hidrelétricas. No entanto, as emissões provenientes desta fonte não foram

incluídas no total da contribuição do País para o aquecimento global. Além disso, a seção sobre emissões hidrelétricas, mais uma vez, só incluiu as emissões da superfície do

reservatório. Minhas estimativas, por exemplo, são mais do que 10 vezes maiores do que os números oficiais para as duas barragens na Amazônia, incluídas no relatório (Tucuruí e Samuel). Essa diferença é resultante, principalmente, da inclusão das emissões provenientes das turbinas, vertedouros e da decomposição de árvores mortas, acima da superfície da água (ver trabalhos sobre cada barragem disponíveis em http://philip.inpa.gov.br). Nada mudou no Plano Nacional de Mudanças Climáticas (PNMC), apresentado na COP, em Copenhague, em 2009. Nele, as barragens são descritas como energia limpa e as emissões das turbinas e vertedouros não são mencionadas.

Neste momento, o exemplo mais flagrante de que essas emissões são ignoradas é o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima) para a barragem de Belo Monte, proposta para o Rio Xingu. O EIA discute as emissões de gases de efeito estufa, mas não chega a nenhuma quantificação do impacto do projeto e restringe a discussão às emissões da superfície do reservatório. Há quinze anos atrás, isso poderia ser desculpável mas, atualmente, fingir que emissões das turbinas e vertedouros não ocorrem é indefensável (consulte a revisão sobre o EIA/Rima de Belo Monte em http://colunas.globoamazonia.com/philipfearnside/). O EIA/Rima de Belo Monte ignora completamente a literatura, hoje substancial, mostrando a liberação de quantidades significativas de metano das turbinas e vertedouros. Estas emissões não são meros “cálculos”, pois têm sido medidas diretamente em Balbina, no Brasil, e em Petit Saut, na Guiana Francesa.

Outra tragédia anunciadaNo caso de Belo Monte, a controvérsia vai muito além das emissões das principais fontes de metano da represa

“esses impactos

[das emissões]

precisam ser

considerados não

apenas no sistema

de licenciamento

ambiental mas

também no

planejamento de

desenvolvimento

nacional e nas

decisões sobre

financiamento

dos bancos que

constroem as

barragens.”

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em si. A maior controvérsia envolve o retrato da barragem na versão atual do EIA/Rima como sendo a única planejada no Rio Xingu. A maioria dos observadores que não trabalha para a indústria hidrelétrica ou que não é financiada por ela (inclusive este autor) considera este cenário fictício (veja evidência citada nos trabalhos sobre Belo Monte, disponíveis em http://philip.inpa.gov.br). O plano original incluía a construção de cinco represas, à montante de Belo Monte. Três dessas represas (embora em locais ligeiramente diferentes) foram incluídas no último plano, antes do anúncio do cenário de uma única represa, em 17 de julho de 2008. O Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), que instituiu a política de uma única barragem, é livre para reverter esta decisão a qualquer hora.

A sequência mais provável de eventos é que, após a conclusão de Belo Monte, ou quando ela ainda estiver em construção, haveria uma “descoberta surpresa” de que Belo Monte seria economicamente inviável sem a água armazenada em represas à montante e, com isso, apareceriam as justificativas necessárias para a aprovação das represas adicionais. A represa mais conhecida como “Babaquara” (oficialmente renomeada como “Altamira”) seria a primeira prioridade. No projeto original, esta represa teria um reservatório com 6.140 km2 de área, o dobro da área da notória represa de Balbina. A Babaquara teria uma zona de 3.580 km2 exposta na época da água baixa (i.e., maior que toda a área de Balbina) que seria re-inundada todos os anos. A emissão potencial de uma represa como esta é enorme. Parte da emissão ocorreria no próprio reservatório de Babaquara e parte com a passagem da água carregada de metano para o reservatório de Belo Monte, localizado imediatamente abaixo dela. O “Complexo Altamira” (Belo Monte/Babaquara) não teria um

saldo positivo em termos de impacto sobre o aquecimento global durante 41 anos (veja http://www.periodicos.ufpa.br/index.php/ncn/article/view/315/501).

Planejamento fechado e irracionalO problema fundamental quando se trata de barragens e de emissões de gases de efeito estufa é a forma como as decisões são tomadas. Para chegar a uma decisão racional sobre qualquer projeto energético, a primeira pergunta a ser respondida é a questão sobre o que irá ser feito com a energia. Isto é particularmente importante no caso da barragem de Belo Monte, onde o fator dominante é a exportação de materiais eletro-intensivos, especialmente o alumínio. Esta é uma das utilizações de eletricidade que gera menos emprego no Brasil por GWh de energia consumida. Uma discussão nacional sobre quais seriam as melhores formas de utilização de energia (em oposição à produção de energia) para o País nem sequer começou. A questão está totalmente ausente do atual Plano Decenal de Expansão de Energia (PDEE), para 2011-2020.

Uma vez decidida a questão do uso de energia, as várias opções devem ser comparadas, incluindo investimentos em eficiência energética e a geração de energia a partir de uma ampla variedade de fontes potenciais além de combustíveis fósseis

Philip Fearnside é pesquisador do Instituto Nacional de

Pesquisas da Amazônia (INPA) - [email protected]

e hidrelétricas. Essas comparações exigem uma contabilidade aberta e abrangente, tanto dos impactos como dos benefícios, de cada opção. As emissões de gases de efeito estufa representam apenas um dos muitos impactos das barragens hidrelétricas que devem ser considerados em tais comparações. As estimativas dos impactos das emissões devem incluir as emissões de metano pelas turbinas e pelos vertedouros que têm sido ignoradas, de forma sistemática, nas posições oficiais brasileiras sobre o assunto. Esses impactos precisam ser considerados não apenas no sistema de licenciamento ambiental, mas também no planejamento de desenvolvimento nacional e nas decisões sobre financiamento dos bancos que constroem as barragens. Nesse cenário, o BNDES é o ator mais importante e, por isso, a sociedade civil demanda que ele seja (co) responsabilizado pelos impactos das obras em que investe. Ainda mais considerando que o seu alcance ultrapassa as fronteiras do Brasil. Em países como a Bolívia e o Peru, pelo menos uma dúzia de barragens estão prestes a receber financiamento do BNDES e serem construídas por empreiteiras brasileiras,visando a exportação de eletricidade para o Brasil.

Sociedade civil brasileira e internacional demandam que o BNDES não financie a usina de Belo Monte

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COntra COrrenteJeremias Vunjanhe*

África: expropriação de terras e mudanças climáticasContinente vulnerável às mudanças climáticas tem suas terras “tomadas” por estrangeiros para produção de agrocombustíveis e mercado de carbono, dentre outras atividades neo-colonizadoras

Nos últimos 30 anos, o desenvolvimento de Moçambique - e de toda África - tem,

simultaneamente, registado progressos assinaláveis e percorrido caminhos diversos e não menos controversos. A partir do final do século XX, surgiram novas formas de pensar e repensar o desenvolvimento, suas esferas e seus sujeitos e o centro deslocou-se violentamente do Estado para os setores privados, favorecendo a entrada maciça de investimentos diretos estrangeiros. Galvanizados pela relativa estabilidade política e o sucesso na pacificação do continente, novos atores - nacionais e estrangeiros - disputam e reivindicam o protagonismo pelo controle da África, muitas vezes sob o prisma propagandístico de investimento e de promoção de desenvolvimento sustentável.

Os processos de transição política de ditaduras para a democracia e para a economia neoliberal e a necessidade urgente de desenvolvimento, fundado na lei de mercado e de lucro, converteram a maioria dos países africanos em verdadeiros campos de batalha e de disputa de políticas externas de países do “centro do mundo” para a realização de interesses

João

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Entre 51 e 63 milhões de hectares de terra – área equivalente à França – foram negociados na África nos últimos 10 anos: impactos devastadores nas comunidades

capitalistas, das elites corruptas nacionais e de Financiamento e Investimento Direto Estrangeiros (FIDE). A partir do modelo dos mega projetos, o FIDE tem elevado o custo social e ambiental dos povos africanos.

Cada vez mais pobres e expostos aos impactos nefastos da crise mundial e das mudanças climáticas, os povos

africanos enfrentam a nova corrida pela aquisição, controle e partilha das suas terras, de seus recursos e do seu continente pelos interesses estrangeiros. A expropriação1 de terras constitui a mais recente estratégia seguida pelos governos ocidentais e poderosos grupos empresariais estrangeiros para estrangular a África,

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capitulá-la e colocá-la a serviço de seus interesses econômicos e imperialistas, em prejuízo de mais de 900 milhões de almas africanas.

Colonização pós moderna?A magnitude do comércio de terras é bastante devastadora e ocorre quase em toda a África. Estudos publicados em 2010 concluem que entre 51 e 63 milhões de hectares de terra, uma área equivalente à França, fazem parte de lucrativos negócios de terras africanas na primeira década deste milênio. De acordo com a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), nos últimos três anos, 20 milhões de hectares de terras foram adquiridos por interesses estrangeiros no continente, a maior parte deles envolvendo mais de 10.000 e 500.000 hectares por concessão. Etiópia, Moçambique, Madagascar, Sudão, Mali e República Democrática do Congo constam na lista dos países com grandes transações de terra.

Para justificar a concessão de vastas extensões de terras, os governos africanos muitas vezes socorrem-se de expressões como “terra disponível” e “terra marginal”, além de usarem a necessidade do aproveitamento dos recursos naturais nelas existentes como justificativa. Eventualmente, a maioria da população é retirada e tem sua situação de extrema pobreza ainda mais agravada. Paradoxalmente, o período de concessão - que pode chegar até a 100 anos renováveis - e o envolvimento direto de governantes e políticos mostram que os respectivos dividendos são partilhados entre si e com as empresas estrangeiras.

as mesmas e velhas práticasA nova saga expansionista dos países ricos e emergentes, na sua maioria ocidentais, caracterizada pela corrida desenfreada na aquisição, controle, transação e partilha de terras e recursos africanos, intensificou-se

a partir do final de 2008, com a eclosão da violenta crise mundial alimentar, energética, ambiental, financeira e econômica que se abateu sobre os grandes centros capitalistas. A ocorrência do fenômeno de expropriação de terras e de recursos naturais em muitos países africanos tem sido facilitada pelas políticas de desregulamentação, de acordos comerciais com a União Européia, de políticas nacionais de atração de investimentos diretos estrangeiros, de sistemas e governos corruptos e de reformas de governança voltadas para o mercado adotadas no início da década de 1990 pelos governos africanos e patrocinadas pelo Banco Mundial (BM) e pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Na verdade, as reformas estruturais facilitadas por estas duas instituições financeiras constituem importantes instrumentos de viabilização do atual processo de aquisição, transação e partilha de terras, em clara confrontação com os direitos e liberdades dos povos, conquistados nas lutas pela independência da África.

Em Moçambique, de acordo com o estudo da União Nacional de Camponeses (UNAC) e da Justiça Ambiental (JA!), publicado em agosto de 2011, sobre o fenômeno de usurpação de terras naquele país, “os investimentos analisados têm vindo a criar cada vez mais conflitos e a agravar a situação de pobreza, carência e vulnerabilidade das comunidades rurais. Os investidores dos países nórdicos, apesar de nos seus países de origem cumprirem com os mais elevados padrões de respeito pelos direitos humanos e por todos os processos de participação pública em qualquer empreendimento que apresente potenciais impactos sociais e ambientais, em Moçambique, o seu comportamento e padrões a seguir são completamente distintos. As suas práticas alimentam um sistema

corrupto, beneficiando-se das falhas existentes na implementação das leis em vigor no país e agravando, deste modo, as condições de vida já precárias da maioria da população africana”. E acrescenta ainda que “o Fenômeno de Usurpação de Terra ocorre em Moçambique e é facilitado pelas inúmeras falhas em todo o processo de atribuição do Direito de Uso e Aproveitamento de Terra (DUAT), beneficiando os investidores em detrimento das comunidades rurais”.

Brasil, explorando o continente “irmão” Neste processo de apropriação de terras, o Brasil desempenha um papel crucial na chamada África lusófona, com particular presença forte em Angola e Moçambique. As grandes empresas com capitais brasileiros, tais como a Vale, Camargo Correia e Odebrecht, dentre outras, financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), estão entre os protagonistas do processo de aquisição, controle e partilha das terras africanas. O projeto de exploração do carvão mineral da Vale, em Moatize, no Moçambique, constitui um exemplo emblemático ao expropriar a terra de mais de 1.300 famílias, violando seus direitos e colocando-as em situações de riscos diversos.

No último mês de agosto, o Ministro da Agricultura moçambicano, José Pacheco, anunciou a transação de cerca de 6 milhões de hectares de terra a agricultores brasileiros num projeto a ser desenvolvido nas regiões Centro e Norte de Moçambique. Denominado Pró Savana e implementado no âmbito do programa de Cooperação Triangular para o Desenvolvimento da Agricultura das Savanas Tropicais em Moçambique (uma Cooperação Trilateral Brasil, Japão e Moçambique), o projeto envolve o governos brasileiro através da Agência Brasileira de Cooperação (ABC), Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Empresa

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COntra COrrente

de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) e do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar). O Japão está presente através da Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA).

Impactos relacionados ao climaDe um lado, governos e investidores financeiros estão empenhados na compra e aquisição de terras para a plantação de agrocombustíveis, sequestro de carbono e exploração de recursos naturais – de modo a garantir a posse de ativos, com grandes valores e rendimentos a médio e longo prazo, em prejuízo da maioria da população africana. De outro lado, os impactos do fenômeno de apropriação de terra são devastadores para as comunidade locais e têm causado mais conflitos de terras, aumento da pobreza, degradação florestal, deslocamento de populações locais, insegurança alimentar, piora das condições de vida e aumento da vulnerabilidade das comunidades rurais, diante da crescente ameaça das mudanças climáticas.

A disponibilidade e acesso à terra e água pelas comunidades locais têm sido fortemente prejudicados pelas transações de terras, dado que a maior parte delas são em áreas férteis e próximas dos rios e fontes de água naturais, frequentemente usadas pelas comunidades. Desse modo, a comercialização da terra afeta as

populações que têm na agricultura e na pecuária suas principais atividades de sustentação. Nesse sentido, muitos governos africanos estão privilegiando um esquema de inserção na economia global assentado na alienação dos seus territórios, na sistemática violação dos direitos de seus povos e na crescente exposição a riscos imprevisíveis e de dimensão catastrófica.

Cabe ressaltar que esta situação será agravada pelo impacto das mudanças climáticas que estão a afetar significativamente o modo de vida das populações africanas. Estima-se que a África seja o continente a ser particularmente mais afetado pelas mudanças climáticas devido à sua fraca capacidade de adaptação. Os seus grandes deltas estarão em perigo por se tratar de regiões muito populares e bastante expostas ao aumento de níveis do mar, às marés de tempestade e ao aumento fluvial. Neste particular, Moçambique é considerado um dos países de África mais vulneráveis às alterações climáticas ao longo das suas costas. Com um litoral de cerca de 2.700 km, 60% da sua população (estimada em 20,5 milhões) vive nas áreas costeiras, consideradas baixas com praias arenosas, estuários e mangais, e cuja sobrevivência depende, em grande medida, dos recursos naturais. Em 2011, Moçambique registrou as temperaturas mais baixas dos últimos 50

anos, de acordo com dados do Instituto Nacional de Meteorologia. O rigoroso frio do inverno impossibilitou a produção agrícola de milhares de famílias.

resistência e equilíbrioAinda assim, nos últimos dez anos, a organização e mobilização da sociedade civil africana e das comunidades locais para assuntos relacionados com a invasão e expropriação das suas terras e dos recursos naturais têm se revelado uma alternativa viável diante da incapacidade e incompetência das instituições dos Estados africanos em cumprir com os preceitos da governança ambiental e na promoção de um desenvolvimento sustentado nas necessidades humanas atuais e futuras. Para além disso, é urgente repensar e redefinir a matriz de desenvolvimento e de governança, estabelecendo um equilíbrio entre as dimensões econômica, social e ambiental. Caso contrário, estaremos a assinar prematura e criminosamente a nossa certidão de extinção e a das futuras gerações.

* Jeremias Vunjanhe é jornalista e coordenador de

imprensa da Justiça Ambiental – Amigos da Terra

Moçambique e da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento

das Comunidades Rurais (Adecru) - [email protected]

karmo

1- Nota da editora: o termo expropriação é equivalente à palavra acarapamento utilizada no texto original e bastante comum tanto na África como na América Latina

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Winnie Overbeek*

raposa no galinheiroPara garantir a continuidade de emissões de três empresas nos EUA, organização brasileira prejudica severamente o “bem viver” de comunidades tradicionais

Em 1999, anos antes do lançamento do mecanismo de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), um dos primeiros projetos de carbono em

áreas de floresta no mundo já havia iniciado. Trata-se de um projeto da ONG brasileira Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS), em parceria com a ONG estadunidense TNC (The Nature Conservancy). O projeto está sendo desenvolvido no litoral do estado do Paraná, na região Sul do Brasil, mais especificamente, nos municípios de Antonina e Guaraqueçaba.

Com recursos de três empresas americanas, a General Motors, a American Eletric Power e a Chevron, a SPVS adquiriu áreas que, juntas, abrangem 18,6 mil hectares. Com atividades de preservação e restauração de áreas degradadas, a entidade afirma já ter removido 860 mil toneladas de carbono da atmosfera1. Na lógica dos projetos REDD, os créditos advindos do carbono seriam aproveitados pelas três empresas dos Estados Unidos, que financiam a SPVS, para compensar uma parcela das suas emissões de poluentes. No entanto, não foram encontradas muitas informações no site da SPVS, nem no site das empresas, sobre os valores repassados por essas empresas à SPVS. As comunidades locais visitadas tampouco têm informação a respeito, o que já mostra uma falta de informação e transparência nesse aspecto.

O site da SPVS2 divulga que, segundo o Serviço Florestal Brasileiro, o projeto está na categoria de “ações de REDD que têm gerado bons resultados”. No entanto, o projeto tem causado um impacto devastador sobre as comunidades locais residentes em torno das reservas da SPVS.

A imposição de regras “externas” e a utilização da força bruta não combinam com o histórico da comunidade

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COntra COrrente

Um histórico de “bem viver”Desde o processo de colonização da região, o litoral paranaense tem sido habitado por comunidades chamadas de ‘caiçaras’3, além de comunidades indígenas e quilombolas. As comunidades se caracterizam por serem agricultoras e extrativistas. Historicamente, elas convivem de modo respeitoso com a mata, onde produzem seus alimentos de subsistência pelo sistema de pousio (descanso), com destaque para a produção da farinha de mandioca. Tiram da Mata Atlântica o palmito para se alimentar, cipó para fazer artesanato e madeira para a construção de moradias, cercas e canoas para a pesca. Praticam a caça e a pesca para a alimentação de suas famílias.

Portanto, percebe-se que essas comunidades dependem totalmente da floresta, com a qual construíram uma convivência harmoniosa. Prova disso é o fato de que essa região situa-se entre as mais preservadas do bioma Mata Atlântica, o mais devastado do País.

As comunidades nunca se preocuparam em registrar ou cercar as terras onde moram, já que consideravam esse território como uma área de uso comum, de usufruto de todos. As terras são, na sua maioria, devolutas e sobre as quais as famílias sempre tiveram suas posses, repassadas de geração em geração. Trabalhavam no território, às vezes de forma individual, por família, e às vezes coletivamente, nas roças itinerantes.

Chegada dos fazendeiros = grilagemA primeira grande mudança na região ocorreu a partir dos anos de 1960, com a chegada de madeireiras

e, sobretudo, de fazendeiros. Estes começaram a registrar e se apropriar das terras, muitas vezes utilizando-se da grilagem (prática comum nas áreas rurais no Brasil). Em consequência disso, as famílias das comunidades foram ameaçadas e, muitas, expulsas de suas áreas. Os fazendeiros usavam ‘jagunços’ e até mesmo búfalos para invadir e tomar as propriedades dos pequenos agricultores. A utilização da criação de búfalos nessa região, em vez do gado bovino, deve-se ao fato

pela ação dessa organização. Segundo os moradores, inicialmente, a SPVS empregou 47 pessoas da comunidade, pagando pouco mais de um salário mínimo. Três dos funcionários eram mulheres com salários ainda menores que os dos homens. A SPVS prometeu que os empregos durariam cerca de 40 anos, o mesmo tempo de existência previsto para o projeto. A maioria dos funcionários foi empregada como guarda florestal. Além do emprego, a SPVS prometeu melhorias na renda e na vida das famílias.

Impactos sobre a comunidadeNo entanto, a chegada da SPVS constituiu um verdadeiro golpe para as comunidades. Foi a partir da compra das terras pela SPVS que as comunidades nessas áreas e no entorno começaram a perder o acesso à floresta abundante na região e aos rios - ou seja, começaram a perder liberdade, autonomia, o direito de ir e vir e de exercer o seu modo de vida. Perderam até mesmo o direito de cortar árvores nativas de suas próprias propriedades, como foi o caso de um morador que plantou, para sua sobrevivência, uma área com palmito-juçara, uma árvore nativa. Hoje, ele não pode mais cortar essas árvores, mesmo que elas estejam em sua própria terra.

Para amedrontar as comunidades, a SPVS começou, junto com a polícia ambiental do estado do Paraná, chamada de Força Verde, a perseguir as comunidades. Essa violência continua até hoje, pois a Força Verde invade até mesmo as casas das pessoas, sem que possua a devida autorização para isso:

“as comunidades

buscam resistir à

pressão da SPVS,

que só pode ter como

objetivo a expulsão

de todas elas.”

de este ser um animal mais rústico e, portanto, mais adequado para conviver com o ambiente local nas áreas desmatadas, constantemente alagadas e, em geral, de difícil acesso e locomoção.

Chegada da SPVS = promessasnão cumpridasNo final dos anos de 1990, a SPVS chegou à região e começou a comprar grandes áreas dos fazendeiros. Ela também conseguiu comprar algumas áreas de posseiros, sobretudo daqueles que se sentiram mais pressionados

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Um morador de uma das comunidades conta que:

“Queriam fazer parceria com nós ali. Nós até aceitemos de fazer uma parceria (...) mas aí, de repente, eles começaram a mandar as guardas também. Passou mais ou menos uns três dias aí, começaram a mandar os guardas lá em casa. Entravam dentro da casa dizendo que tinha coisas escondido ali, tanta coisa errada. E se tivesse fechada a porta, entrava para dentro. Batiam na porta, eles falaram que era ordem de juiz, não estavam nem ligando, mas entravam assim mesmo. (...) a Força Verde entrava ali, isso várias vezes, não era uma nem duas vezes, muitas vezes. (...) Nossa casa ali, se tiver algum tipo de arma aí, que prendesse tudo, levasse (...). Não podia ter um facão que eles queriam levar, queriam tudo. (...) Não apresentavam nada, só chegavam e estavam dentro de casa lá. Nessa hora, não estava em casa quando eles chegaram, com revólver em punho. Meu cunhado estava deitado na cama, a porta estava encostada assim, meu pai estava lá fora. Eles entraram para dentro, empurraram a porta, bateram até na porta até sair a trancazinha da porta. Ainda o meu cunhado estava meio adoentado

com gripe e dor de cabeça. Já levou o revólver em punho, meu cunhado disse: “O que é isso rapaz, estou adoentado aqui, você entra desse jeito aí”. (...) É dessa maneira que eles chegaram várias vezes em casa. E a parceria? Desse jeito não adianta parceria; parceria para te incomodar. Então, não adianta, melhor suspender. E eles queriam enganar muita gente desse jeito.”

Uma outra moradora conta que o marido foi algemado em casa pela Força Verde, que disse que era o “serviço” deles. Em outra ocasião, quando ele cortou uma árvore para fazer uma canoa, ficou preso por 11 dias. Para sair, teve que pagar fiança. Hoje vivem com dificuldades e medo: se ficar em casa, não tem como sobreviver. Mas se o marido sai para conseguir algum trabalho fora, a esposa e as crianças ficam numa situação de medo e insegurança, o que mostra também que os impactos da perseguição e do projeto da SPVS afetam as mulheres e as famílias como um todo.

Hoje, muitas famílias vivem traumatizadas e a situação é de tamanha gravidade que várias acabaram desistindo de continuar

vivendo no local onde moravam há gerações. Famílias que produziam e vendiam farinha, atualmente, compram tudo para comer, inclusive a farinha. Com isso, mudou a qualidade da alimentação - um dos motivos pelos quais a saúde das pessoas não é mais a mesma, segundo relatos dos moradores. Hoje, parte da população local tem hipertensão arterial, estresse, entre outros problemas de saúde. Além disso, como há um esvaziamento das comunidades, a classe média de Curitiba tem comprado casas e áreas na região para passar seus finais de semana e feriados.

As promessas de melhoria das condições de vida e geração de renda resultaram em algumas iniciativas, que foram se esvaziando ao longo dos anos. Um trabalho de organização de um grupo de mulheres em torno do propósito de gerar renda através de corte-costura funcionou algum tempo, mas hoje está parado, segundo os depoimentos de várias mulheres das comunidades. E a promessa de emprego por parte da SPVS tampouco foi cumprida. Ex-empregados das comunidades contam que a grande maioria foi demitida, restando apenas sete funcionárias. Apenas um trabalho de produção

karmo

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COntra COrrente

1- http://www.revistavisaoambiental.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=643:projeto-de-carbono-colabora-com-o-desenvolvimento-sustentavel-de-comunidades-no-parana&catid=5:noticias&Itemid=5

2 - http://www.spvs.org.br/download/boletins/bol_jan10.html :

3 - Comunidades que surgiram da miscigenação genética e cultural entre os primeiros colonizadores portugueses e indígenas que viviam no litoral. Vivem de forma isolada, praticando diferentes atividades para sua sobrevivência. (fonte: http://www.ilhabela.com.br/CULTURA/index.html)

4 - http://www.hsbc.com.br/1/2/portal/pt/sobre-o-hsbc/sustentabilidade/meio-ambiente/hsbc-climate-partnership

Winnie Overbeek é coordenador internacional do

Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais (WRM, sigla

em inglês) e membro da Coordenação Nacional da Rede

Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais, pela Rede

Alerta Contra o Deserto Verde - [email protected]

de mel parece ter dado certo, porém não envolve diretamente as comunidades mais impactadas.

Árdua luta pela própria terraNo entanto, as comunidades ainda resistem à pressão da SPVS, que só pode ter como objetivo a expulsão de todas elas. Uma delas organizou-se de forma especial. No início da década passada, em uma das localidades no município de Antonina, um fazendeiro queria vender sua área para SPVS, o que poderia levar à expulsão de todas as famílias que viviam no local. Elas se organizaram e com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), realizaram, em 2003, uma ocupação. Atualmente, há 20 famílias no local lutando pela oficialização do acampamento, que tem o nome do ambientalista José Lutzenberger, para que seja um assentamento da reforma agrária.

Ao longo da luta árdua dessa comunidade contra as pressões do fazendeiro, da SPVS e de órgãos ambientais, foram denunciados crimes ambientais cometidos pelo próprio fazendeiro, como o desvio de um rio e o uso indiscriminado de agrotóxicos, os quais não receberam atenção dos órgãos ambientais. Por outro lado, a comunidade realizou pequenos trabalhos de reflorestamento e, a partir da opção pela agroecologia, escolheu a proposta de trabalhar coletivamente através do sistema agroflorestal, como proposta principal para futuramente gerar renda para as famílias. Além disso, cada uma das famílias terá sua área individual para sua subsistência básica.

A área do acampamento faz limite

com a área da SPVS mas, segundo os moradores, as áreas de florestas sob controle das comunidades estão em melhores condições, se comparadas com as áreas da SPVS.

Futuro ameaçadoPerto de uma das comunidades encontra-se uma casa no meio da floresta onde a SPVS faz pesquisas das espécies da Mata Atlântica, graças à parceria com o banco privado HSBC, através da Parceria de Clima da HSBC (HSBC climate partnership, no original, em inglês). Segundo o site da HSBC, trata-se de um ‘programa ambiental inovador’ para ‘dar continuidade à preservação do planeta’.4

Enquanto isso, o futuro das comunidades está extremamente ameaçado se a proposta de preservação das áreas florestais da SPVS, que conta com todo o apoio do aparelho estatal, principalmente da área ambiental e da área policial, continuar dominando na região. É absolutamente urgente que parem o abuso e a perseguição das comunidades. O que ocorre nessa região, conforme testemunham os moradores, são violações graves dos direitos humanos, inclusive sociais, culturais e ambientais.

Uma moradora conta que: “Sim, a gente sempre manteve a

floresta. Só que, às vezes, a gente precisa derrubar alguma coisa também, às vezes a gente precisa construir uma casa, precisa tirar uma madeira. No caso, não pode e, aí, fica difícil. (...) Antes a gente fazia para plantar roça onde hoje você não pode mais. Quando a SPVS entrou, acabou tudo. Onde meu pai morava, hoje não

pode mais. Antes não comprava feijão, não comprava milho, muitas verduras plantava, que podia desmatar um pouco, não mata alta, mais baixa, ele roçava, plantava, ele colhia a maioria das coisas da terra. E hoje não pode plantar, tudo tem que comprar. (...) Antes, a gente não via enfermidade. Hoje, a maioria vive até doente, muitos. (...) Eles falaram, prometeram, que iam ajudar meu pai mas, até hoje, a gente nunca viu nenhuma ajuda, sempre piorou porque, no caso, eles falaram que iam ajudar e depois veio a Força Verde e ainda queriam levar meu pai preso. Essa é a ajuda deles.”

Para “atacar” o aquecimento global, é urgente também que as empresas estrangeiras envolvidas no projeto da SPVS comecem imediatamente a reduzir suas emissões de carbono, em vez de compensar emissões por meio de compra de créditos de carbono vindos de uma área onde o povo é castigado por algo que deveria ser motivo de respeito: sua prática de conservação da floresta.

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O reDD na vida realNo Amazonas, a flexibilização da legislação, o ajuste estrutural das políticas ambientais e a privatização das unidades de conservação estaduais estão umbilicalmente relacionados à

implantação dos mecanismos de “economia verde”. Para piorar, comunidades que preservama floresta, de fato, são impedidas de viverem de modo tradicional

“Éinteressante, nessa discussão do REDD e de tudo o que está por trás, observar que a primeira lei de mudanças climáticas do Brasil foi feita aqui no Amazonas, antes até da lei

federal. E houve toda uma preparação sobre a criação de unidades de conservação, que a gente percebe hoje que foi feita exatamente para vender mesmo os créditos de carbono.

Temos mais de 60 unidades de conservação no estado, entre reserva de desenvolvimento sustentável, reserva extrativista, floresta estadual e parque estadual. Estes tipos de unidades foram criadas no estado; e, hoje, estão negociando um mercado de carbono em Chicago.

Foi criado também a FAS, Fundação Amazonas Sustentável. Quem investiu nela foi o Bradesco, a Coca Cola... Várias empresas transnacionais investiram muitos recursos. E em cima deste fundo, elas têm dado R$ 50 reais por família por mês. O que é ruim é que as famílias não podem mais fazer nada na terra. Toda aquela forma de lidar com a terra - que sempre tiveram porque são comunidades tradicionais, ribeirinhos... Hoje não podem mais fazer nem uma roça pra plantar a mandioca pra fazer farinha. Isso, pra nós, é um absurdo muito grande porque se eles sempre fizeram e sempre preservaram, por que o estado hoje está reprimindo?

Outro agravante é que a FAS, apesar de receber todos estes recursos do estado, é uma entidade privada. E ninguém sabe quanto ela recebe, de que forma ela presta conta, porque ela não presta conta. É uma caixa preta, que ninguém abre, ninguém sabe. Tudo isso é bastante complicado. O ex-governador Eduardo Braga continua ganhando prêmios internacionais porque ele se diz como defensor da floresta. E, na prática, a gente tem visto que o estado tem ganho muito dinheiro com a preservação, enquanto as famílias continuam pobres, exploradas, e os conflitos agrários que existiam nessas áreas onde foram construídas unidades de conservação não foram resolvidos. Então, este é um complicador muito grande porque nós lutamos pela demarcação das unidades de conservação, mas para garantir a vida que as comunidades tradicionais sempre viveram. E a gente tem visto que as unidades do estado não têm respondido a isso.

A gente também percebe que, juntamente com o REDD, foi feito nos últimos anos, a flexibilização das leis ambientais, exatamente para garantir o REDD. Você faz uma lei - que é a concessão de florestas públicas; depois faz uma outra lei - que é a de regularização fundiária na Amazônia, a 11.952; depois, faz a mudança do Código Florestal. Ou seja, três leis super importantes que vão atingir diretamente a Amazônia. Por que tudo isso? A legislação ambiental era muito rígida com a Amazônia, na forma de preservar, de utilizar os recursos e com essa flexibilização agora, você vai poder desmatar, vai poder fazer várias coisas, desde que depois pague com compensações ou mitigações ambientais. Então, na verdade, você percebe um REDD, mas um REDD estadual. A gente vê isso claramente na forma como foi construído para chegar neste ponto em que chegou. Para nós, é uma preocupação muito grande.

Seria legal se a gente pudesse fazer um levantamento, um acompanhamento de todas as unidades de conservação e ver como as unidades mais antigas não modificaram e não melhoraram a qualidade de vida dessas comunidades. É o contrário. E muitas delas pioraram porque agora elas não podem nem mais plantar a mandioca que antes se fazia a farinha, um dos meios de vida deles.

Hoje, a gestão dessas unidades de conservação estaduais é feita pela FAS. A gente não consegue entender isso porque, pela lei do estado, [isso] seria inconstitucional. Porque se é uma unidade de conservação do estado, eu não posso passar aquilo para uma entidade privada. E em todas as unidades de conservação do estado, a gestão é da FAS. Já era da FAS, quando a FAS foi criada... Criaram vários institutos para administrar, para fazer a gestão das unidades de conservação. Hoje, elas estão todas dentro da FAS. A gestão não é do governo do estado, apesar dessas unidades de conservação serem do estado. A gestão é da FAS e todo recurso que vem para o governo do estado, vai também para a FAS. E quem é que administra a FAS? Dentre outras pessoas, o Virgílio Viana, ex-secretário de Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas, que era a Secretaria de Meio Ambiente. Tudo é coligado para arrecadar dinheiro e não repassar para quem, de fato e de direito preserva, que são as comunidades tradicionais.”

Depoimento de Marta Valéria, Comissão Pastoral da Terra (CPT), regional Amazonas, participante do Seminário Regional sobre Mudanças Climáticas na Amazônia, recolhido por Lucia Ortiz, em agosto de 2011 (link para o vídeo-testemunho: www.youtube.com/watch?v=1M5bq1l-E1Y)

karmo

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Índice

Alimento pArA A mente

Pagamento por Serviços Ambientais (TEEB) e flexibilização do Código Florestal para um capitalismo “verde”, Terra de Direitos, agosto de 2011, em português: http://terradedireitos.org.br/biblioteca/pagamento-por-servicos-ambientais-e-flexibilizacao-do-codigo-florestal-para-um-capitalismo-verde/

Projetado para fracassar? Os conceitos, práticas e controvérsias por trás do comércio de carbono. Fern, junho de 2011, em português: http://www.fern.org/projetadoparafracassar

Banco Mundial: catalizador da devastadora mudança climática, Amigos da Terra Internacional, junho de 2011, em espanhol: http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2011/banco-mundial-catalizador-del-cambio-clima301tico-devastador/view

O REED+ e os mercados de carbono: dez mitos explodidos, Fern, Amigos da Terra Internacional, Greenpeace e Fundação Floresta Tropical, junho de 2011, em português: http://www.fern.org/REDDdezmitosdetonados

Boletim Desenreddando REDD, já com quatro edições, Censat Amigos da Terra Colômbia, 2011, em espanhol:http://www.censat.org/articulos/10062-desenreddando/

Reflexões estruturais sobre o mecanismo de REDD, edição 146 do Cadernos IHU Idéias, entrevista com Camila Moreno, 2011, em português:http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/1303995179.8012pdf.pdf

Justiça Climática, Proposta - Revista Trimestral de Debate da Fase, no 122, 2011, em português: http://www.fase.org.br/vitrine/lojinha/produto.php?id=148 REDD, Uma Leitura Crítica, coletânea de artigos, dezembro de 2010, em espanhol:http://www.carbontradewatch.org/articles/redd-una-lectura-cr-tica.html

Declaração de Cancun: mudar o sistema, única forma de superar a crise climática, dezembro de 2010, em espanhol: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/declaracao-de-cancun-mudar-o-sistema-unica-forma-de-superar-a-crise-climatica/

Declaração Cumbre Sul-Sul sobre Justiça Climática e Financiamento para o Clima, dezembro de 2010, em espanhol: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/declaracao-cumbre-sul-sul-sobre-justica-climatica-e-financiamento-para-o-clima/ REDD: realidades em branco e preto, Amigos da Terra Internacional, novembro de 2010, em português:http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2010/redd-as-realidades-em-branco-e-preto

Para contribuir na compreensão deste tema complexo e ainda tão obscuro, a Contra Corrente preparou uma relação de materiais, disponíveis na internet, sobre os principais instrumentos do capitalismo “verde”,

como REDD, pagamento por serviços ambientais e mercado de carbono, dentre outros. Aproveite!

Basta de dívidas: pelos direitos humanos e os direitos da natureza, Jubileu Sul, agosto de 2010, em português: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/Cartilha%20basta%20de%20debitos%20final.pdf REDD na Colômbia, Censat Amigos da Terra Colômbia, agosto de 2010, em espanhol:http://www.censat.org/component/content/article/1021 O REDD e a destruição dos povos indígenas do planeta, artigo da Organização Fraternal Negra Hondurenha, Ofraneh, agosto de 2010, em espanhol:http://www.censat.org/component/content/article/1027 REDD e o futuro das florestas: uma opção pelo ambientalismo de mercado?, Amigos da Terra Brasil, abril de 2010, em espanhol:http://www.natbrasil.org.br/Docs/publicacoes/cartilhareddweb.pdf

Documento final sobre Dívida Climática da Conferência dos Povos, em Cochabamba, Bolívia, abril de 2010, em espanhol: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/divida-climatica-resultado-da-conferencia-de-cochabamba-abril-2010/ Declaração sobre REDD do Grupo de Trabalho Floresta da Conferência dos Povos, em Cochabamba, Bolívia, abril de 2010, em espanhol: http://cmpcc.org/2010/04/28/conclusiones-finales-grupo-de-trabajo-14-bosques/#more-1860

Carta de Belém, resultante do Seminário Clima e Floresta - REDD e mecanismos de mercado como solução para a Amazônia?, em Belém, outubro de 2009, em português: http://www.jubileubrasil.org.br/somos-credores/divida-ambiental/carta-de-belem-sobre-o-clima-e-a-floresta/

REDD Não! Guia para Povos Indígenas, IEN, Rede Ambientalista Indigena, 2009, em espanhol:http://noredd.makenoise.org/no-redd-guia-para-pueblos-indigenas.html Mitos sobre o REDD, Amigos da Terra Internacional, 2008, em espanhol:http://www.foei.org/es/recursos/publicaciones/pdfs-por-ano/2008/redd-myths/view Vozes das Comunidades Afetadas pelas Mudanças Climáticas, Amigos da Terra Internacional, novembro de 2007, em português: http://www.natbrasil.org.br/Docs/publicacoes/mudancas_climaticas_portugues_NAT.pdf

A História do Mercado de Emissões, Free Range Studios (mesmo gurpo que produziu a História das Coisas), Animação, 20 min, em inglês, legendado: http://www.youtube.com/watch?v=IPS5jTwo1Tk

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“A humanidade está diante de uma grande encruzilhada: continuar pelo caminho do capitalismo, da depredação e da morte, ou empreender um caminho de harmonia com a natureza e o respeito à vida”. (Acordo dos Povos, abril 2010, Cochabamba, Bolívia)

A pifeira Zabé da Loca é um símbolo de resistência e comunhão com o ambiente em que vive, o cariri paraibano.