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Revista da ESMAFE/RS

ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA FEDERAL NO RIO GRANDE DO SUL

EDIÇÃO 01/2017

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Conselho EditorialRafaela Santos Martins Da Rosa

Maria Helena Rau de Souza

Assessoria EditorialMarcia Jaboiski

RevisãoCarolina Knack

EditoraçãoFábio A. Teixeira dos Santos

CapaRoginaldo Vieira

ImpressãoGráfica DataCerta LTDA

Revista da ESMAFE/RSPublicação oficial da ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA

FEDERAL NO RIO GRANDE DO SUL - ESMAFE/RS

As opiniões expressas nos trabalhos são de responsabilidade dos Autores.Não são devidos direitos autorais ou qualquer remuneração

pela publicação dos trabalhos nesta Revista.

(Bibliotecária responsável: Marcela Kröeff, CRB 10/2084)

Revista da ESMAFE/RS / Escola Superior daMagistratura Federal no Rio Grande do Sul. –n.1 (2017) – Porto Alegre: ESMAFE/RS, 2017-

Irregular

ISSN 2527-0109

1. Direito - Periódicos. I. Escola Superior daMagistratura Federal no Rio Grande do Sul.

CDD 340CDU 34

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ESCOLA SUPERIOR DA MAGISTRATURA FEDERAL NO RIO GRANDE DO SUL - ESMAFE/RS

Rua dos Andradas, 1001, conj. 1603CEP 90020-007 - Porto Alegre - RS

Telefone/Fax: (51) 3286-0310 | 3225-7607 | 3013-7069Email: [email protected]

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SUMÁRIO

A TRANSFERÊNCIA DA EXECUÇÃO DE SENTENÇAS COMO ALTERNATIVA À EXTRADIÇÃODouglas Fischer / Vladimir Aras .......................................................... 11

IMPOSSIBILIDADE DE ADITAMENTO DA PETIÇÃO INI-CIAL DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCALGessiel Pinheiro de Paiva .................................................................. 45

CONTROLE INDIRETO DA JURISDIÇÃO INTERNACIONAL: A “AUTORIDADE COMPETENTE” NA HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA NO BRASILMarcelo De Nardi ............................................................................. 77

A CONCILIAÇÃO NOS PROCESSOS EM FACE DO INSS COMO REALIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSOFlavia Foppa / Marcelo Schenk Duque .............................................. 95

NOVAS PERSPECTIVAS NO ENSINO DO DIREITO: MUDAN-ÇAS MUITO ALÉM DO USO DE METODOLOGIAS ATIVASTaís Schilling Ferraz ........................................................................ 125

A CRISE COMO INCENTIVO AO RECONHECIMENTO DO DANO MORAL COLETIVO AMBIENTALGrayce Kelly Bioen / Rafaela Santos Martins da Rosa .................. 145

A (IM)POSSIBILIDADE DE GOZO CONCOMITANTE DE DIREI-TOS SOCIAIS DAS SERVIDORAS PÚBLICAS EM LICENÇA--MATERNIDADE: UMA ANÁLISE DA SOBREPOSIÇÃO DOS DIREITOS A FÉRIAS E LICENÇA À GESTANTELetícia Borges Thomas ................................................................... 163

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O SISTEMA DEMOCRÁTICO BRASILEIRO E A INSATISFAÇÃO DO PLURALISMO POLÍTICO Lucas Mello Ness ............................................................................. 185

O IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRI-TORIAL URBANA (IPTU) PROGRESSIVO NO TEMPO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA URBANAMariana Hiwatashi dos Santos ......................................................... 199

O ESTADO CONSTITUCIONAL, O ESTADO QUE SE JUSTIFICA: UMA ANÁLISE DA SENTENÇA JUDICIAL JUSTA E O PRINCÍ-PIO DA MOTIVAÇÃO NO PROCESSO CIVILMônica Weston ................................................................................ 221

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APRESENTAÇÃO

Naquela tarde de julho de 1999, tive a certeza de que estávamos construindo algo efetivamente grande, que deixaríamos como legado às próximas gerações. A ESMAFE/RS, na época Associação Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, realizava o seu primeiro grande evento. Chamamos para uma palestra no auditório da Justiça Federal de Porto Alegre o Doutor Celso Antônio Bandeira de Mello, conhecido como um dos maiores administrativistas do Brasil.

Mais de trezentas pessoas entre colegas juízes, advogados, servidores e estudantes compareceram ao evento. Foi um verdadeiro sucesso. Vi naquele momento que, apesar de a Escola ter sido fundada havia menos de dois anos, contando com pouco mais do que a boa vontade de colegas abnegados que acreditaram no projeto, tínhamos algo grande nas mãos, algo que nos diferenciava dos demais cursos existentes, tínhamos a Justiça Federal no nosso DNA.

Claro que isso nos trazia, como sempre nos trouxe, uma imensa responsabilidade. Durante esses vinte anos, todas as nossas atividades foram pautadas pela busca da excelência, sempre acreditando no nosso potencial e buscando aliar o conhecimento à modernidade. Mas, naquele tempo, construir uma entidade sólida ainda era um sonho. Carregar o nome da Justiça Federal, no entanto, era uma realidade que nunca po-deríamos esquecer.

A ESMAFE/RS surgiu em uma época em que os cursos prepa-ratórios para as carreiras jurídicas começavam a se proliferar. Em 1995, a Associação dos Juízes Federais do Brasil – AJUFE começou a montar cursos rápidos para os concursos da magistratura federal, convidando alguns juízes locais para organizá-los. Os cursos faziam sucesso, sempre com salas lotadas e alunos satisfeitos. O mesmo se repetiu em Porto Alegre, quando fui um dos coordenadores do curso realizado em 1996.

Com o sucesso desses cursos preparatórios à magistratura federal da AJUFE, começamos a nos perguntar o porquê de não organizarmos um curso nosso, anual e permanente, e cuja renda revertesse para atividades e interesses dos juízes federais do Rio Grande do Sul. Assim surgiu a

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nossa Escola, que tomou a forma jurídica de uma associação sem fins lucrativos naquele dia 07 de agosto de 1997.

Nosso único patrimônio era a boa vontade dos juízes fundadores. Naquela época, recém havia sido inaugurado o prédio onde hoje a

Justiça Federal de Porto Alegre está localizada. Havia, portanto, muitas alas livres, e uma delas nos foi cedida para a instalação da secretaria e de uma sala de aula. Fizemos panfletos, anúncios nos jornais, compramos mesas, cadeiras, todo o material didático e iniciamos, em 1998, as atividades da primeira turma do que chamamos Curso de Preparação para a Magistratura Federal. Junto com as aulas regulares, começamos a organizar palestras e a apoiar eventos jurídicos de outras entidades, especialmente universidades, o que muito ajudou para divulgar o nome da escola.

Para os que, como eu, viram a ESMAFE/RS nascer e tiveram a oportunidade de presenciar o salto de qualidade dado a partir da funda-ção da nossa Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul – AJUFERGS, fazer parte das comemorações de vinte anos é motivo de grande satisfação e de um imenso orgulho.

Nada pode ser mais apropriado que festejar este aniversário com a edição da primeira Revista da ESMAFE/RS. Acima de tudo, e antes de qualquer coisa, todo o trabalho realizado nesse período buscou o aper-feiçoamento jurídico, calcado na pesquisa e na troca de ideias.

Os textos trazidos nesta edição tão especial dão conta de nossa mis-são e nosso propósito no sentido de divulgar o conhecimento jurídico, sempre pautado pela qualidade. Para tanto, a Revista oferece uma cole-tânea de artigos formulados por alguns de nossos professores e alunos.

Os alunos Mariana dos Santos, Lucas Mello Ness, Grayce Kelly Bioen em coautoria com a juíza federal Rafaela Santos Martins da Rosa – atual diretora geral da ESMAFE/RS e vice-presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (AJUFERGS) –, Mônica Weston e Letícia Borges Thomas brindam-nos com cinco textos dos mais variados assuntos, abrangendo relevantes ramos do direito.

Outros cinco artigos são apresentados por alguns dos nossos mais renomados professores.

A juíza federal Taís Schilling Ferraz apresenta as “Novas perspecti-vas no ensino do direito: mudanças muito além do uso de metodologias

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ativas”. Aproveitando a sua grande experiência no ensino jurídico, de-fende a necessidade de que os cursos voltados aos profissionais e acadê-micos do direito sejam concebidos como oportunidade para a construção conjunta do conhecimento, na busca do desenvolvimento de saberes, habilidades e comportamentos que sejam significativos ao contexto social e profissional, em um processo no qual se promovam o protagonismo e a autonomia do aprendiz, afastando-se do mero protagonismo do professor como fonte da transmissão em abstrato do conhecimento.

O “Controle Indireto da Jurisdição Internacional: a ‘autoridade competente’ na homologação de sentença estrangeira no Brasil” é o título do artigo apresentado pelo juiz federal Marcelo De Nardi. Pro-fundo conhecedor do Direito Internacional Privado, De Nardi faz uma análise do exame pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ do requisito para homologação de sentença estrangeira previsto no art. 963, I, do Código de Processo Civil, qual seja, o de ser proferido por autoridade competente. Sustenta que essa análise deveria avançar para identificar a adequada jurisdição produzida pela autoridade estrangeira, examinando quais elementos de contato relevantes levaram-na a exercitar seu poder, não se limitando a verificar se a decisão estrangeira não viola a jurisdição exclusiva brasileira.

Os Procuradores Regionais da República Douglas Fischer e Vladimir Aras apresentam artigo desenvolvido a partir da conferência proferida em 16 de abril de 2015, em Doha, Qatar, durante o Congresso Criminal das Nações Unidas, no painel “Promoting justice across borders: the transfer of execution of sentences as an alternative to extradition” ou “Promovendo justiça entre fronteiras: a transferência da execução de sen-tenças como uma alternativa à extradição”, promovido pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC. O texto apresenta uma contribuição inicial para debate sobre formas alternativas à extradição ou entrega de pessoas sujeitas à execução de sentenças penais proferidas por Estados estrangeiros ou por tribunais penais internacionais.

O professor Marcelo Schenk Duque juntamente com a especialista em Direito Público pela ESMAFE/RS Flavia Foppa trazem-nos o texto intitulado “As Conciliações nos Processos em face do INSS como re-alização de Direitos Fundamentais: À razoável duração do Processo”. Nele analisam se, nos procedimentos de conciliação junto à Autarquia,

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os segurados acabam por renunciar a um direito fundamental, de modo a afetar a garantia do mínimo essencial, ou se, na verdade, a conciliação em matéria previdenciária afirma-se como um instrumento garantidor da dignidade humana.

O Processo Civil é tema do artigo do juiz federal Gessiel Pinheiro Paiva, intitulado “Impossibilidade de Aditamento da Petição Inicial dos Embargos à Execução Fiscal”. Sustenta ser inconcebível a existência de embargos à execução fiscal tramitando, muitas vezes, há cinco, seis, ou mais anos, em torno da discussão sobre teses não veiculadas na inicial, mas levadas aos autos apenas em momento posterior, mesmo após a própria intimação do embargado e apresentação de impugnação por este.

Como se pode ver, esta primeira edição da Revista da ESMAFE/RS, comemorativa dos seus vinte anos, apresenta ao leitor uma varieda-de de assuntos jurídicos, servindo de fonte de pesquisa e conhecimento aos operadores do direito. Esta obra marca da melhor forma possível o aniversário de uma instituição que cresceu graças ao trabalho competente de juízes federais que, em todo esse período, mantiveram vivos os ideais dos seus fundadores e que hoje têm em suas mãos uma entidade sólida e respeitada em todo o Brasil.

Uma ótima leitura a todos.

Guilherme Pinho MachadoJuiz Federal

Mestre em Direito Público UFF/RJDoutorando em Ciências Jurídicas UAL/Lisboa

1º Presidente da ESMAFE/RS

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A TRANSFERÊNCIA DA EXECUÇÃO DE SENTENÇAS COMO ALTERNATIVA À

EXTRADIÇÃO1

DOUGLAS FISCHERProcurador Regional da República,

Mestre em Instituições de Direito e do Estado pela PUC/RS, Procurador Assessor na Secretaria de Cooperação Internacional da PGR,

autor e coautor de diversas obras jurídicas.

VLADIMIR ARASProcurador Regional da República,

Mestre em Direito Público pela UFPE, Professor Assistente de Processo Penal na UFBA,

membro fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) e Secretário de Cooperação Internacional da PGR.

RESUMO: O presente texto trata da transferência da execução penal como alternativa à extradição. Analisando-se as características de cada instituto, distingue-se a extradição executória da transferência de execu-ção de sentença estrangeira e também da transferência de pessoas para cumprimento de pena no exterior, mostrando-se as vantagens da adoção da transferência de execução penal.

PALAVRAS-CHAVE: Transferência da execução de sentenças. Extradi-ção. Transferência de condenados. Cooperação internacional. Assistência jurídica mútua em matéria penal.

1 IntroduçãoEste artigo é uma contribuição inicial para o debate sobre formas

alternativas à extradição ou entrega de pessoas sujeitas à execução de sentenças penais proferidas por Estados estrangeiros ou por tribunais penais internacionais.

1 Texto desenvolvido a partir da conferência proferida em 16 de abril de 2015, em Doha, Qatar, durante o Congresso Criminal das Nações Unidas, no painel “Promo-ting justice across borders: the transfer of execution of sentences as an alternative to extradition” ou “Promovendo justiça entre fronteiras: a transferência da execução de sentenças como uma alternativa à extradição”, promovido pelo UNODC.

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Não se confunde o instituto da extradição executória2 com a trans-ferência da execução de sentença estrangeira (enforcement of foreign judgement) nem com a transferência de pessoas condenadas para cum-primento de pena no exterior.

A transferência da execução de sentenças penais estrangeiras ou emitidas por cortes penais supranacionais é uma alternativa moderna para a concretização da Justiça criminal, seja nos casos em que a extradição ou a entrega de pessoas já condenadas não é possível por algum motivo, ou ainda nos casos em que apresenta como alternativa imediata a um pedido de extradição ou entrega.

Normalmente, o direito internacional da cooperação tem-se ocupado da transferência de custódia de condenados pelo Estado requerido ao Estado ou tribunal requerente, por meio de procedimentos extradicionais ou de entrega, relegando a segundo plano o instituto da transferência da execução das penas de uma jurisdição a outra.

No Brasil, tal debate ainda é incipiente porque não temos uma lei geral de cooperação internacional em matéria penal e também porque a legislação extradicional – especificamente o Decreto-lei n. 394/1938 e a Lei n. 6.851/1980 – está defasada e em descompasso com modernos instrumentos de assistência jurídica interetática.

Entre nós, o instituto é estudado como “eficácia de sentença penal estrangeira” ou como homologação de sentença penal estrangeira, estando atualmente regulado pelo art. 9º do Código Penal.

2 Cooperação internacional em matéria penalConhecida também pela sigla em inglês Mutual Legal Assistance

(MLA), a cooperação jurídica internacional em matéria penal tem base em acordos bilaterais, em convenções multilaterais e no direito interno.

A depender do ponto de vista do Estado ou ente emissor, a coopera-ção internacional será ativa ou passiva. Haverá assistência internacional

2 A extradição pode ser instrutória (durante a instrução criminal) ou executória (após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória).

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13A TRANSFERÊNCIA DA EXECUÇÃO DE SENTENÇAS COMO ALTERNATIVA À EXTRADIÇÃO

ativa quando o Brasil for o Estado requerente. A cooperação será passiva quando o Brasil for o Estado requerido.

Vários princípios inspiram e conformam a cooperação entre Estados ou entre estes e tribunais penais internacionais.3 Selecionamos três deles para nosso exame, tendo em conta que se aplicam aos institutos de que cuidamos.

2.1 O princípio da reciprocidadeO direito internacional da cooperação consagra o princípio da re-

ciprocidade, que permite a execução de pedidos de assistência jurídica internacional oriundos de um Estado estrangeiro ou de um tribunal internacional, com base no direito interno, ainda que não exista tratado entre o ente requerente e o Estado requerido.

Segundo o art. 26, §1º, do CPC (Lei n. 13.105/2015), “na ausência de tratado, a cooperação jurídica internacional poderá realizar-se com base em reciprocidade, manifestada por via diplomática”.

Normalmente, os países de tradição romano-germânica, que se filiam ao direito europeu continental, admitem a cooperação, inclusive a extradição, com fundamento em mera promessa de reciprocidade. Por oposição, nações de herança britânica (common Law) só admitem a co-operação baseada em tratado, regra que é muito perceptível em matéria extradicional, sintetizada pelo brocardo no extradiction without treaty. Tal regra limitativa, todavia, não é absoluta, e tem sido mitigada, nota-damente para a execução de pedidos de mera comunicação processual (citações, intimações etc.) ou de simples obtenção de provas (cópias de documentos, depoimentos de testemunhas etc.).

No contexto deste artigo, há de se ver que o Brasil pode extraditar pessoas, ou transferir a execução de sentenças penais com fundamento

3 Além da corte criminal permanente (o Tribunal Penal Internacional, criado pelo Esta-do de Roma de 1998), funcionam atualmente outras cortes penais supranacionais. São eles: o Tribunal Internacional para Ruanda (com sede em Arusha, Tanzânia); o Tribunal Especial para Serra Leoa (com sedes em Freetown e na Haia, Holanda); o Tribunal Especial para o Líbano (com sedes na Haia e em Beirute); o Tribunal Especial para o Camboja (com sede em Phnom Penh); e o Tribunal Internacional para a Ex-Iugoslávia (com sede na Haia).

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em promessas de reciprocidade. Quanto à transferência de condenados, atualmente o País não a admite com base em simples compromisso de reciprocidade, exigindo base convencional. No entanto, se formalizados acordos ad hoc para casos concretos, não haveria limitação também para a transferência passiva de condenados.

2.2 O princípio da dupla tipicidadeTambém chamado de dupla incriminação (double criminality), este

princípio é sempre exigível nas medidas de cooperação mais gravosas, como a extradição4 e o confisco5 , também chamadas de medidas de ter-ceiro nível, na classificação tradicional. Porém, em algumas hipóteses previstas em tratados, esse pressuposto é quase sempre dispensado. É o caso das medidas de assistência para mera comunicação processual, tidas como medidas de primeiro nível. Já para diligências constritivas diferen-tes da privação de liberdade,6 classificadas em medidas de segundo nível, os tratados permitem aos Estados, facultativamente, dispensar a presença do requisito da dupla incriminação.7 Nessa classificação em torno da maior ou menor gravidade das medidas de assistência, vê-se adensar-se outro preceito, o da gradualidade dos requisitos da cooperação penal.

4 Novos mecanismos de assistência internacional para a captura de foragidos, como a entrega, admitem a cooperação sem a presença de dupla incriminação. É o caso do mandado de detenção europeu ou European Arrest Warrant, instituído com base na De-cisão de 13 de junho de 2002 (2002/584/JHA), do Conselho da União Europeia. Desde janeiro de 2005, a ordem de captura pode ser emitida para qualquer uma das infrações penais listadas da decisão que a criou. Algumas delas dispensam a dupla tipicidade, conforme o art. 2º, §2º, da Decisão de 2002, o que inclui os delitos de terrorismo, tráfico de pessoas, corrupção, lavagem de dinheiro, cibercrimes, etc.5 A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) admite a non-convic-tion based confiscation, o que remete à possibilidade de confisco em casos de corrupção cível, sem dupla incriminação, ou ainda que o fato tenha prescrito ou o direito de ação tenha sido atingido por outra causa extintiva de punibilidade, ou em caso de fuga.6 Como quebras de sigilo bancário e fiscal, interceptações telefônicas, levantamento de sigilo de dados etc.7 É o que ocorre com o European Arrest Warrant, instituído em 2002, e com o Nordic Arrest Warrant, criado pela Convention on Surrender for Criminal Acts between Nordic Countries (Nordisk arestordre) de 2005.

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Note-se, contudo, que, como o Brasil admite a cooperação cível, inclusive por meio de auxílio direto e rogatórias, para atos de comu-nicação processual, coleta de provas, medidas judiciais de urgência e qualquer outra medida, judicial ou extrajudicial, não proibida pelo direito brasileiro (art. 27 do CPC),8 instrumentos processuais civis podem ser manejados pelo Ministério Público Federal, nos juízos federais cíveis, para prestar assistência jurídica internacional (isto é, cumprir pedidos passivos) a autoridades requerentes estrangeiras, ainda que não exista a dupla tipicidade, isto é, ainda que o fato investigado no exterior seja atípico no Brasil.9

2.3 O princípio do reconhecimento mútuoNo campo do direito internacional da cooperação há um princípio

fundamental para a eficiência do diálogo entre as nações: o princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais. Trata-se de preceito essencial para o êxito da cooperação internacional em matéria penal.

De fato, o ponto culminante do desenvolvimento da assistência penal internacional no campo convencional deu-se com a inclusão na ordem jurídica da União Europeia do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, inclusive em matéria penal. Trata-se da pedra angular de todo o sistema cooperativo da União, resultando do Conselho Europeu de Tampere (1999) e do Tratado de Lisboa (2007). Sobre tal princípio se baseiam o mandado de detenção europeu (European Arrest Warrant - EAW)10 e o mandado europeu de obtenção de prova (European Evidence Warrant - EEW).11

8 Lei n. 13.105/2015. 9 Exemplo: pedido de bloqueio cautelar de ativos no Brasil no contexto de investigação realizada no exterior sobre o delito de financiamento do terrorismo, conduta atípica em nossa jurisdição.10 Decisão-quadro 2002/584/JAI, do Conselho relativa ao mandado de detenção euro-peu e aos processos de entrega entre os Estados-membros, que foi a primeira concreti-zação do princípio do reconhecimento mútuo no direito penal. A euro-ordem dispensa o procedimento extradicional.11 Decisão-quadro 3008/978/JAI do Conselho, relativa a um mandado europeu de ob-tenção de provas destinado à obtenção de objetos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais.

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33. Um maior reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a necessária aproximação da legislação facilitariam a cooperação entre as autoridades e a protecção judicial dos direitos individuais. Por conseguinte, o Conselho Europeu subscreve o princípio do reconhecimento mútuo que, na sua opinião, se deve tornar a pedra angular da cooperação judiciária na União, tanto em matéria civil como penal. Este princípio deverá aplicar-se às sentenças e outras decisões das autoridades judiciais.

35. Em matéria penal, o Conselho Europeu insta os Estados--Membros a ratificarem rapidamente as Convenções UE, de 1995 e 1996, relativas à extradição. O Conselho Europeu considera que o procedimento formal de extradição deverá ser abolido entre os Estados-Membros no que diz respeito às pessoas julgadas à revelia cuja sentença já tenha transitado em julgado e substituído por uma simples transferência dessas pessoas, nos termos do artigo 6º do TUE. Dever-se-á também reflectir sobre a possibilidade de esta-belecer procedimentos de extradição acelerados, sem prejuízo do princípio do julgamento equitativo. O Conselho Europeu convida a Comissão a apresentar propostas sobre esta matéria à luz da Con-venção de Aplicação do Acordo de Schengen.

36. O princípio do reconhecimento mútuo deverá ainda aplicar-se aos despachos judiciais proferidos antes da realização dos julga-mentos, em especial aos que permitam às autoridades competentes recolher rapidamente as provas e apreender os bens que facilmente podem desaparecer; as provas legalmente obtidas pelas autoridades de um Estado-Membro deverão ser admissíveis perante os tribunais dos outros Estados-Membros, tendo em conta as normas neles aplicáveis. 12

Esse princípio permite, por exemplo, que prisões preventivas decretadas em um país sejam executadas em outro sem que haja necessidade de prévio processo de extradição. Como primeira ma-nifestação mais concreta desse princípio em matéria penal em nosso

12 Sobretudo as conclusões n. 33 a 36 e as de n. 43 a 50. Conclusões do Conselho Euro-peu de Tampere, de 15 e 16 de outubro de 1999. Disponíveis em: <http://www.europarl.europa.eu/summits/tam_pt.htm>.

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continente,13 foi assinado em 2010, no âmbito do Mercosul, o Acordo de Foz do Iguaçu sobre o mandado de detenção do bloco (Mandado Mercosul de Captura – MMC), ainda não implementado.

Nada obstante a relevância do princípio do reconhecimento mútuo de decisões judiciais, há dois obstáculos ainda relevantes que, na maioria das vezes, têm sido invocados para impedir sua implementação: a) a so-berania dos Estados entendida como impeditiva da execução de decisões estrangeiras no Brasil; e b) a ordem pública (ordre publique), no sentido do direito internacional.

Em boa parte das vezes, o entrechoque desses óbices tem impedido a evolução dos sistemas de cooperação internacional, no que diz respeito à plena continuidade da persecução criminal transnacional, independen-temente das realidades locais.

Na União Europeia, esse avanço é significativo. Conforme se vê na exposição de motivos da Lei espanhola n. 23, de 20 de novembro de 2013, sobre reconhecimento mútuo de decisões judiciais no bloco:

El principio de reconocimiento mutuo, basado en la confianza mutua entre los Estados miembros y consagrado en el Consejo Europeo de Tampere como la «piedra angular» de la cooperación judicial civil y penal en la Unión Europea, ha supuesto una auténtica revolución en las relaciones de cooperación entre los Estados miembros, al permitir que aquella resolución emitida por una autoridad judicial de un Es-tado miembro sea reconocida y ejecutada en otro Estado miembro, salvo cuando concurra alguno de los motivos que permita denegar su reconocimiento. Finalmente, el Tratado de Funcionamiento de la Unión Europea ha supuesto la consagración como principio jurídico del reconocimiento mutuo, en el que, según su artículo 82, se basa la cooperación judicial en materia penal.

Este nuevo modelo de cooperación judicial conlleva un cambio radical en las relaciones entre los Estados miembros de la Unión Europea, al sustituir las antiguas comunicaciones entre las autori-dades centrales o gubernativas por la comunicación directa entre las

13 O Protocolo de Las Leñas de 1996 e o Protocolo de Buenos Aires de 2002, ambos firmados no âmbito do Mercosul, incorporaram o princípio do reconhecimento mútuo em casos não penais.

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autoridades judiciales, suprimir el principio de doble incriminación en relación con un listado predeterminado de delitos y regular como excepcional el rechazo al reconocimiento y ejecución de una resolución, a partir de un listado tasado de motivos de denegación. Además, se ha logrado simplificar y agilizar los procedimientos de transmisión de las resoluciones judiciales, mediante el empleo de un formulario o certificado que deben completar las autoridades judiciales competentes para la transmisión de una resolución a otro Estado miembro.

En el ámbito penal, según lo dispuesto en el Programa de medi-das destinado a poner en práctica el principio de reconocimiento mutuo de las resoluciones en materia penal, dicho principio ha de ser de aplicación en cada una de las fases del proceso penal, tanto antes, como durante e incluso después de dictarse la sentencia condenatoria.14

Tais regras decorrem do art. 82 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que determina que a “cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui a aproximação das disposi-ções legislativas e regulamentares dos Estados-Membros”, cabendo ao Parlamento Europeu e ao Conselho adotar medidas destinadas a definir regras e procedimentos para assegurar o reconhecimento em toda a União de todas as espécies de sentenças e decisões judiciais.

Estão sujeitas ao influxo do princípio do reconhecimento mútuo todas as ordens europeias expedidas por autoridades competentes de um Estado membro da União que sejam transmitidas a outro Estado membro para execução, sendo elas: o mandado europeu de deten-ção e entrega; o mandado europeu de proteção; a ordem europeia de bloqueio cautelar de ativos; o mandado europeu de obtenção de provas; as sentenças penais condenatórias privativas de liberdade ou pecuniárias; as decisões sobre livramento condicional e sursis; e decisões de confisco.

14 Ley 23/2014, de 20 de noviembre, de reconocimiento mutuo de resoluciones pe-nales en la Unión Europea. Disponível em: <http://www.boe.es/diario_boe/txt.php?id=BOE-A-2014-12029>.

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3 Medidas de cooperação internacional relacionadas à execu-ção penal

3.1 ExtradiçãoA extradição é o mais tradicional instrumento de cooperação internacio-

nal. Recai sobre pessoas foragidas, ou seja, o investigado, o réu ou o apenado que tente se furtar à Justiça criminal. Baseia-se em tratados bilaterais, em convenções multilaterais ou em promessa de reciprocidade, podendo ser requerida pelo Estado que proferiu julgamento (extradição executória) ou onde tramita a investigação ou a ação penal (extradição instrutória).

Presta-se a sujeitar à jurisdição do Estado requerente indivíduo lo-calizado no território do Estado requerido, que tenha cometido infração penal no exterior. A pessoa procurada pode ser extraditada para responder a processo criminal (extradição instrutória) ou para cumprir pena (ex-tradição executória). Do ponto de vista do Estado requerente será ativa; do ponto de vista do Estado requerido é dita passiva.

No Brasil, o procedimento extradicional passivo é regido pelos arts. 5º, incisos LI e LII, e 102, inciso I, da Constituição, pelos arts. 7º, 63 e 75 a 94 do Estatuto do Estrangeiro (Lei Federal n. 6.815/80) e no art. 110 do Decreto n. 86.715/1981. É medida compulsória em relação ao extraditando, não podendo ele se opor a sua entrega ao Estado requerente após o deferimento pelas autoridades competentes do Estado requerido. Já a extradição ativa tem regulamento precário no art. 20 do Decreto-lei n. 394, de 28 de abril de 1938, parcialmente revogado.

Em função do princípio da especialidade, os tratados firmados pelo Brasil em matéria extradicional sobrepõem-se às normas internas, mor-mente à Lei n. 6.815/80, devendo-se respeitar as limitações constitucionais que vedam a extradição por crimes políticos, militares e de opinião, assim como as que proíbem a extradição de nacionais, salvo do naturalizado.

Atualmente15 o Brasil é parte de 28 tratados bilaterais16 e 3 tratados multilaterais de extradição, sendo dois do Mercosul e um da Comunidade

15 4 de junho de 2015.16 Argentina – 1961 – Decreto 62.979/1968, Austrália – 1994 - Decreto 2.010/1996; Bélgica – 1953 - Decreto 41.909/1957; Bolívia – 1938 - Decreto 9.920/1942; Chile – 1935 - Decreto 1.888/1937; China - 2004 - Decreto 8.431/2015; Colômbia – 1938

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dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), dos quais citamos o Acordo de Extradição entre os Estados Partes do Mercosul de 1998 (Decreto n. 4.975/2004) e a Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, firmada na Cidade de Praia, República do Cabo Verde, em 2005 (Decreto n. 7.935/2013).

O Brasil integra o grupo minoritário de países que não extraditam seus nacionais. Grande parte das nações democráticas o faz, desde que presente a reciprocidade.

Em geral, países de sistema common law, como o Reino Unido, seguem o princípio da indispensabilidade dos tratados em matéria ex-tradicional. Vale dizer, sem tratado não se processa pedido de extradição (no extradiction without treaty).17 Já as nações que seguem o modelo de direito europeu continental (civil law) normalmente aceitam o princípio da reciprocidade para a tramitação de pedidos de extradição.18

No que diz respeito às suas espécies, a extradição pode ser instrutória ou executória. Na primeira forma, o indivíduo foragido é procurado para a fase investigatória ou processual, como suspeito ou réu. Na segunda forma, já existe sentença condenatória transitada em julgado e se busca capturar o foragido para cumprimento da pena privativa de liberdade aplicada no Estado requerente. A extradição executória pode ser subs-tituída por medida alternativa de cooperação internacional, como é a transferência da execução penal.

- Decreto 6.330/1940; Coreia do Sul – 1995 – Decreto 4.152/2002; Equador – 1937 - Decreto 2.950/1938; Espanha – 1988 - Decreto 99.340/1990; Estados Unidos – 1961 - Decreto 55.750/1965; França – 1996 - Decreto 5.258/2004; Itália – 1989 - Decreto 863/1993; Lituânia – 1937 - Decreto 4528/1939; México – 1933 - Decreto 2.535/1938; Panamá - 2007 – Decreto 8.045/2013; Paraguai – 1922 - Decreto 16.925/1925; Peru – 2003 - Decreto 5.853/2006; Portugal – 1991 - Decreto 1.325/1994 (vide art. 25 da Convenção da CPLP); Reino Unido – 1995 - Decreto 2.347/1997; República Domi-nicana - 2003 - Decreto 6.738/2009; Romênia – 2003 – Decreto 6.512/2008; Rússia – 2002 – Decreto 6056/2007; Suíça – 1932 - Decreto 23.997/1934; Suriname - 2004 - Decreto 7.902/2013; Ucrânia – 2003 – Decreto 5.938/2006; Uruguai – 1916 - Decreto 13.414/1919 (vigência: vide Extradição 991, de 27/07/2013); Venezuela –1938 - De-creto n. 5.362/1940.17 Vide o caso Ronald Biggs, entre o Brasil e o Reino Unido.18 Vide os casos Salvatore Cacciola, entre Brasil e Mônaco, e Hosmany Ramos, entre Brasil e Islândia.

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3.2 EntregaA extradição evoluiu e simplificou-se. No âmbito da União Euro-

peia, a Decisão 2002/584/JHA do Conselho da União Europeia criou o mandado de detenção europeu (European Arrest Warrant). Desde janeiro de 2004, esse procedimento substituiu a extradição dentro do bloco, permitindo a entrega direta de procurados e foragidos entre os 28 Estados-membros, inclusive de nacionais, em rito estritamente judicial, sem etapa política.

No Mercosul, o Acordo de Foz do Iguaçu de 2010, aprovado pela Decisão MERCOSUL/CMC/DEC 58/2010, instituiu mecanismo seme-lhante ao europeu ao criar o Mandado Mercosul de Captura (MMC), ainda não implementado na região.

Ferramenta similar existe na Escandinávia (Nordic Arrest Warrant), que se desenvolveu a partir da cooperação simplificada intranórdica, que permitia a extradição de nacionais naquela região desde meados do século XX, sistema amplificado pela Convention on Surrender for Criminal Acts between Nordic Countries (Nordisk arestordre), de 2005, que aboliu o princípio da dupla tipicidade para pedidos de entrega entre os cinco países escandinavos: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia.

O CARICOM Arrest Warrant, criado pelo Tratado de Antígua, de 2008, é o mandado regional de captura da Comunidade do Caribe (CARICOM), ente formado por Antígua e Barbuda, Bahamas, Barbados, Belize, Dominica, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Montserrat, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis, São Vicente e Granadinas, Suriname e Trinidad e Tobago.

A tramitação dos mandados de entrega se faz de forma direta, ou por meio de uma autoridade central, e, diferentemente da extradição, o procedimento de avaliação é inteiramente judicial, sem fase política. O cumprimento desses mandados baseia-se no princípio do reconheci-mento mútuo.

Esses mandados regionais de captura e entrega diferem do instituto da entrega, previsto no art. 89 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) de 1998 (Decreto n. 4.388, de 2002), que se destina à cooperação entre os Estados signatários do tratado e a próprio Corte.

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O TPI pode emitir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se encontre, com a fi-nalidade de permitir a instrução de processo penal de jurisdição da Corte ou sujeitá-la à execução penal. 19 Diversa da extradição, esta espécie de entrega aplica-se a cidadãos estrangeiros ou a nacionais, inclusive brasileiros natos.

3.3 Transferência de condenadosA transferência de condenados não é propriamente uma medida de

cooperação internacional. Tem cunho humanitário e é focada na ideia de recuperação do interno e de promoção de sua reinserção social. Deve ser requerida pelo próprio apenado. Pode ser ativa ou passiva. Somente estrangeiros estão sujeitos ao procedimento ativo. Quanto ao modo passivo (Brasil como estado receptor), em regra somente é admissível a transferência para cá de brasileiros ou de estrangeiros já residentes.

Difere da extradição executória por ser voluntária. Ou seja, o con-denado é quem geralmente toma a iniciativa de pedir sua remoção de uma jurisdição a outra, para o seu país de nacionalidade ou para o de sua residência habitual. É muito útil para a transferência da custódia de presos estrangeiros, em nome de sua reabilitação.

No momento de requerer sua remoção, o transcondenado estará necessariamente cumprindo pena no território de um Estado estrangeiro, ou sob a jurisdição de uma corte penal internacional. Deferida a medida, o condenado é enviado ao país de destino (receptor) juntamente com a documentação necessária à execução penal. No Brasil, a autoridade central para esse tema é o Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça.

Atualmente, de modo contrário ao que dispõe o art. 105, inciso I, alínea ‘í’, da Constituição, não se tem exigido prévia homologação da sentença estrangeira perante o Superior Tribunal de Justiça, o que viola a competência daquela corte e acaba por ampliar o escopo do art. 9º do Código Penal, que só permite a homologação de sentenças penais estrangeiras para fins civis e para cumprimento de medida de segurança.

19 Vide caso Omar Al-Bashir, Petição 4625 (República do Sudão), no STF.

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A execução penal nos casos passivos (Brasil como Estado receptor) compete excepcionalmente às Varas de Execuções Penais da Justiça dos Estados brasileiros, por aplicação subsidiária da Súmula 192 do STJ, o que ofende o art. 109, incisos IV e X, da Constituição Federal. Como em todos os temas de cooperação internacional passiva, a competência deveria ser da Justiça Federal.

Na transferência ativa, a competência será do juízo federal ou esta-dual, a depender da situação prisional do detento,20 nos termos da Lei n. 7.210/84, que dispõe sobre execuções penais, e da Lei n. 11.671/2008, que dispõe sobre a inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima.

Nesse instituto, ocorre a transferência simultânea da execução penal e do próprio condenado – não só deste, não só daquela. Sua im-plementação tem dependido da existência tratado bilateral. Por motivos práticos, o Brasil não coopera neste campo com base em mera promessa de reciprocidade, devido às dificuldades de equalização das penas e regi-mes prisionais por essa via simplificada. Note-se que o transcondenado deve ser também expulso do território nacional (arts. 67 e 68 da Lei n. 6.815/80).

Atualmente,21 estão em vigor para o Brasil doze tratados bilaterais de transferência de condenados, firmados com Argentina (Decreto n. 3.875/2001), Angola (Decreto n. 8.316/2014), Bolívia (Decreto n. 6.128/2007), Canadá (Decreto n. 2.547/1998), Chile (Decreto n. 3.002/1999), Espanha (Decreto n. 2.576/1998), Panamá (Decreto n. 8.050/2013), Paraguai (Decreto n. 4.443/2002), Peru (Decreto n.

20 Respeitada a Súmula 192 do STJ: “Compete ao Juízo das Execuções Penais do Estado a execução das penas impostas a sentenciados pela Justiça Federal, Militar ou Eleitoral, quando recolhidos a estabelecimentos sujeitos à administração estadual.”21 Dados de 4 de junho de 2015. O Ministério da Justiça tem optado pela negocia-ção de tratados bilaterais, um procedimento moroso e custoso. O ingresso do País em convenções multilaterais, como a europeia, seria mais adequada ao interesse público. Referência é feita à Convenção relativa à transferência de pessoas condenadas do Con-selho da Europa, de 21 de março de 1983 (CETS 112), cujo art. 19 admite a adesão de terceiros Estados. Atualmente, 46 Estados europeus são partes, salvo Mônaco. Outros 18 países não europeus são membros, inclusive os Estados Unidos, Canadá, Austrália, Japão, Coréia do Sul, Israel e várias nações latino-americanas.

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5.931/2006), Países Baixos (Decreto n. 7.906/2013), Portugal (Decreto n. 5.767/2006) e Reino Unido (Decreto n. 4.107/2002).

No plano multilateral, podem ser invocados: a Convenção Intera-mericana sobre o Cumprimento de Sentenças Penais no Exterior, conhe-cida como Convenção de Manágua de 1993 (Decreto n. 5.919/2006); a Convenção sobre a Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, ou Convenção da Praia, de 2005 (Decreto n. 8.049/2013); e o Acordo sobre Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Partes do Mercosul, ou Convenção de Belo Horizonte, de 2012 (Decreto n. 8.315/2014).

A Convenção de Manágua estabelece um direito fundamental à transferência no espaço jurídico da Organização dos Estados Ame-ricanos (OEA). A transferência depende da existência de sentença firme,22 da existência de consentimento do sentenciado e da presença do requisito da dupla incriminação. É necessário: que a pessoa a ser transferida seja nacional do Estado receptor; que a pena a ser cumprida não seja pena de morte; que a pena ainda a ser cumprida tenha duração superior a seis meses; e que a sentença não contrarie a ordem pública do Estado receptor.

Com o nome de “transferência de pessoas condenadas”, o instituto também é objeto do art. 17 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo); do art. 45 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), ali com o nomen iuris de “traslado de pessoas condenadas”; e do art. 6º, §12, da Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena, em 20 de dezembro de 1988:

22 O art. 1º, §3º, da Convenção de Manágua define sentença como “a decisão judicial definitiva mediante a qual se imponha a uma pessoa, como pena pela prática de um delito, a privação da liberdade ou a restrição da mesma, em regime de liberdade vi-giada, pena de execução condicional ou outras formas de supervisão sem detenção. Entende-se que uma sentença é definitiva se não estiver pendente apelação ordinária contra a condenação ou sentença no Estado sentenciador, e o prazo previsto para a apelação estiver expirado”.

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12. As Partes poderão considerar a possibilidade de celebrar acordos bilaterais ou multilaterais, especiais ou gerais, que visem à transfe-rência de pessoas condenadas a prisão ou a outra forma de privação de liberdade pelos delitos cometidos, aos quais se aplica este Artigo, a fim de que possam terminar de cumprir sua pena em seu país.

Na União Europeia, a Decisão Quadro 2008/909/JAI, de 27 de no-vembro de 2008, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo a sentenças impositivas de penas ou outras medidas privativas de liberdade, ampliou a incidência do princípio do reconhecimento mútuo no que concerne à execução de sentenças penais privativas de liberdade, para fins de transferência de condenados.

Resultante do art. 82 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, a decisão de 2008 permite reconhecer e executar em um Estado membro as sentenças privativas de liberdade emitidas noutro, sempre que o Estado sentenciante se convença de que a execução da pena no Estado receptor contribuirá para facilitar a reinserção social do condenado. A transmissão da sentença pelo Estado emissor ao Estado de execução se faz diretamente entre as autoridades competentes.

A Decisão Quadro 2008/909/JAI lista várias infrações penais que estão sujeitas à execução penal noutro Estado membro da União, inde-pendentemente da presença da dupla incriminação, desde que a pena máxima no Estado de emissão não seja inferior a três anos de prisão. Caso a pena a ser executada no exterior, por sua duração ou natureza, seja incompatível com a legislação do Estado de execução, deve-se adequar a sentença ao direito penal local, sem possibilidade de agravar a sanção.23

3.4 Transferência de execução penalAinda pouco aplicada em países de modernização tardia, a trans-

ferência de execução da pena permite que um Estado ou um tribunal internacional solicite a outro Estado que submeta uma pessoa que já está em seu território ao cumprimento de pena privativa de liberdade, ou a outra espécie de sanção.

23 Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri= CELEX:-32008F0909&from=ES>.

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A homologação de sentença estrangeira tem por fim dar eficácia no território do Estado requerido a uma decisão com força de defini-tiva proferida pelas autoridades judiciárias do Estado ou do tribunal internacional requerente. A homologação pode ser total ou parcial. O pedido pode ser ativo ou passivo, e seu pressuposto é a existência de dupla incriminação.

No Brasil, a transferência de execução penal de sentença es-trangeira exige prévia homologação perante o Superior Tribunal de Justiça, e, ainda assim, é limitada pelo art. 9º do Código Penal a duas finalidades: cumprimento dos efeitos civis de decisão condenatória (execução civil ex delicto) e sujeição de inimputável a medida de segurança.

Art. 9º - A sentença estrangeira, quando a aplicação da lei brasileira produz na espécie as mesmas consequências, pode ser homologada no Brasil para:

I - obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis;

II - sujeitá-lo a medida de segurança

Parágrafo único - A homologação depende:

a) para os efeitos previstos no inciso I, de pedido da parte interes-sada;

b) para os outros efeitos, da existência de tratado de extradição com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, de requisição do Ministro da Justiça.

Assim, no âmbito criminal (passivo), a finalidade da homologação de sentença estrangeira é restrita à reparação do dano, à restituição da coisa, ao cumprimento de obrigações não-penais de dar, fazer e não fazer, ao pagamento de custas e despesas processuais e a outros efei-tos civis (perda do poder parental, por exemplo), assim como para a execução de medidas de segurança em casos de inimputabilidade (art. 26 do CP).

Para que produzam os efeitos do art. 9º do Código Penal, as sentenças estrangeiras deverão ser previamente homologadas pelo Superior Tribu-

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nal de Justiça.24 Portanto, a sentença estrangeira tem eficácia condicional, servindo a homologação para aferir a adequação da decisão estrangeira à legalidade interna e à ordem pública nacional.25

Porém, no campo cível, o Protocolo de Las Leñas (Decreto n. 2.067/1996)26 e o Protocolo de Buenos Aires (Decreto n. 6.891/2009),27 do Mercosul, conforme o princípio do reconhecimento mútuo, dispensam o procedimento de homologação e estabelecem rito simplificado, por meio de rogatórias, para o cumprimento das sentenças não penais emitidas por países do bloco.28 Eis os arts. 18 e 19 do Protocolo de Buenos Aires:

Art. 18

As disposições do presente Capítulo serão aplicáveis ao reconheci-mento e à execução das sentenças e dos laudos arbitrais pronuncia-dos nas jurisdições dos Estados Partes em matéria civil, comercial, trabalhista e administrativa, e serão igualmente aplicáveis às sentenças em matéria de reparação de danos e restituição de bens pronunciadas em jurisdição penal.

24 Art. 787 do CPP lido à luz da Emenda Constitucional n. 45/2004.25 É de se lembrar que o Código Penal brasileiro prevê algumas hipóteses de eficácia incondicional da decisão proferida no exterior. É o caso da reincidência em razão de sentença condenatória prolatada no estrangeiro (art. 63 do CP); e da detração, em que se permite o cômputo do tempo de prisão cumprido fora do Brasil (art. 42 do CP).26 Protocolo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa foi assinado pelo Brasil em Las Leñas, em 27 de junho de 1992.27 Acordo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Tra-balhista e Administrativa entre os Estados Partes do Mercosul, a República da Bolívia e a República do Chile, assinado em Buenos Aires, em 5 de julho de 2002.28 O art. 475-N, inciso VI, do CPC de 1973 considera títulos executivos extrajudiciais as sentenças estrangeiras homologadas pelo STJ. Os referidos tratados, como leis es-peciais, derrogam essa norma, que encontra símile no art. 515, inciso VIII, do CPP de 2015 (Lei n. 13.105). A propósito, o arts. 960 e 961 do novo CPC diz expressamente que “a homologação de decisão estrangeira será requerida por ação de homologação de decisão estrangeira, salvo disposição especial em sentido contrário prevista em tratado” e que “a decisão estrangeira somente terá eficácia no Brasil após a homologação de sentença estrangeira ou a concessão do exequatur às cartas rogatórias, salvo disposição em sentido contrário de lei ou tratado”.

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Art. 19

O reconhecimento e execução de sentenças e de laudos arbitrais solicitado pelas autoridades jurisdicionais poderá tramitar-se por via de cartas rogatórias e transmitir-se por intermédio da Autoridade Central, ou por via diplomática ou consular, em conformidade com o direito interno.

Não obstante o assinalado no parágrafo anterior, a parte interessada poderá tramitar diretamente o pedido de reconhecimento ou execu-ção de sentença. Em tal caso, a sentença deverá estar devidamente legalizada de acordo com a legislação do Estado em que se pretenda sua eficácia, salvo se entre o Estado de origem da sentença e o Estado onde é invocado, se houver suprimido o requisito da legalização ou substituído por outra formalidade.

Isso significa que, no âmbito do Mercosul, a execução civil ex delicto de sentenças penais estrangeiras, nos termos do art. 9º do CP, não depende de homologação do STJ. Para a outra finalidade – sujei-ção a medida de segurança – a homologação continua sendo exigível, mesmo no bloco.

A transferência pode ser ativa ou passiva. No seu aspecto passivo, a homologação de sentenças penais estrangeiras tem curso perante o Superior Tribunal de Justiça, nos termos do art. 105, inciso I, alínea ‘i’, da Constituição e do Regimento Interno do STJ.29 É procedimento de cunho processual penal e, no plano passivo, a iniciativa é do Procurador--Geral da República, conforme o art. 789 do CPP, quando se trate de cumprimento de medida de segurança.

Desse modo, para o cumprimento de medida de segurança de inter-nação ou de tratamento ambulatorial em solo brasileiro (art. 96, incisos I e II, do CP), por crime ocorrido no exterior, o STJ só homologará a sentença se o Brasil e o Estado requerente tiverem tratado de extradi-ção, ou se, não existindo tratado entre as partes, houver requisição do Ministro da Justiça do Brasil, fundada em promessa de reciprocidade. A decisão estrangeira a ser homologada será aqui recebida e executada como absolutória imprópria.

29 Alterado pela Emenda Regimental 18/2014.

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Em se tratando de imposição de execução civil ex delicto, o inte-ressado na execução de sentença penal estrangeira, para a reparação do dano, restituição e outros efeitos civis, poderá requerer ao STJ a sua homologação, observando-se o art. 109, inciso X, da Constituição, o art. 516, inciso III, e o art. 965 do Código de Processo Civil (Lei n. 13.105/2015).

Assim, a ação será promovida pela parte interessada, isto é, a vítima, o terceiro de boa-fé, seus representantes legais ou seus sucessores. Se a vítima for o Estado estrangeiro, a Procuradoria-Geral da República será o requerente perante o STJ. Aqui, a execução permitirá a imposição do efeito previsto no art. 91, inciso I, do Código Penal (“São efeitos da condenação tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime”), muito útil para confisco de ativos relacionados à corrupção e à lavagem de dinheiro, e do art. 63 do CPP, conforme às regras da exe-cução civil ex delicto.

O art. 26, §2º, do CPC (Lei n. 13.105/2015) determina que não se exigirá a reciprocidade para homologação de sentença estrangeira no Brasil, o que significa dizer que uma sentença estrangeira (mesmo penal condenatória) poderá ser executada no Brasil para fins civis, ainda que não tenha havido prévia promessa de reciprocidade.

Mas a questão não se limita a isso. A transferência da execução penal no direito comparado é muito mais ampla e pode levar de fato ao cumprimento, no Estado requerido, de pena privativa de liberdade aplicada por jurisdição estrangeira ou supranacional.

Diferentemente da extradição executória, na transferência da execu-ção penal não é a pessoa que é “movimentada” ou removida de um país a outro; é a decisão judicial condenatória que é transferida. Ou seja, uma sentença firme é remetida para execução noutro Estado soberano, sempre que não seja juridicamente possível ou viável ou oportuna a extradição desse mesmo condenado.

A transferência da execução penal tampouco se confunde com a transferência de pessoas condenadas. Esta é feita no interesse do apenado e é voluntária; aquela ocorre no interesse do Estado onde se proferiu a sentença condenatória e, uma vez deferida, é compul-sória. Numa (transferência de condenados), a pessoa transferida já

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está cumprindo a pena no território do Estado requerente. Noutra, a pessoa encontra-se no território do Estado requerido e ainda não está encarcerada.

Para a transferência da execução penal, é conveniente a existência de tratado bilateral ou acordo ad hoc, não sendo suficiente a simples promessa de reciprocidade, pois é indispensável a harmonização das regras de execução penal, notadamente pela diversidade dos limites penais (mínimo e máximo) e das espécies sancionatórias, que nem sempre são compatíveis com o ordenamento jurídico do Estado re-ceptor, como a prisão perpétua. De fato, segundo o art. 781 do CPP, as sentenças estrangeiras não serão homologadas, se contrárias à ordem pública.

Essa maior abrangência do instituto sob exame pode ser mais facil-mente percebida no plano ativo. Neste caso, a iniciativa de requerer a Estado estrangeiro a execução de sentença criminal proferida no Brasil é do juízo competente ou do promotor natural, estadual ou federal, por intermédio da autoridade central, não se limitando às hipóteses previstas no art. 9º do CP. O princípio da reciprocidade pode ser um obstáculo, mas, se a legislação do Estado requerido não a exigir, a sentença penal proferida no Brasil poderá ser executada no exterior, cabendo ao Ministério Público requerer sua remessa ao país receptor por meio da autoridade central.

A transferência da execução penal a outro Estado é útil em três situações:

a) quando houver um sentenciado foragido e este for inextradi-tável (por ser nacional do país requerido ou por motivo diverso da extinção da punibilidade), ou ainda quando a extradição houver sido negada; ou

b) quando não for conveniente nem oportuno requerer a extradição de um condenado foragido; ou

c) quando se trate de executar uma pena não privativa de liberdade para a qual nem em tese caiba extradição.

Em qualquer dos casos, podem-se invocar dispositivos dos tratados bilaterais ou multilaterais aplicáveis, como o art. 6º, §10, da Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotópicas,

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conhecida por Convenção de Viena de 1988 (Decreto n. 154/1991);30 ou o art. 44, §13, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrup-ção,31 conhecida por Convenção de Mérida ou UNCAC32 (Decreto n. 5.687/2006); ou o art. 16, §12, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, conhecida por Convenção de Palermo ou UNTOC33 (Decreto n. 5.015/ 2004),34 sendo indispensável a indicação de regras de direito interno do Estado requerido que admitam esse tipo de cooperação para execução penal.

Observe-se que esses tratados são normas complementares ou subsidiárias e têm por foco facilitar a cooperação internacional relativa à persecução de tráfico de drogas, corrupção, peculato, criminalidade organizada, lavagem de dinheiro e os delitos antecedentes.

Quando existe tratado vinculante para o Brasil, a autoridade cen-tral para a tramitação de pedidos de homologação de sentenças penais estrangeiras no Brasil é o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça. Para Portugal e Canadá, a autoridade central é a Secretaria de Cooperação Internacional da Procuradoria-Geral da República. Na União Europeia, a

30 “10. Se a extradição solicitada com o propósito de fazer cumprir uma condenação, for denegada, porque o indivíduo objeto da solicitação é nacional da Parte requerida, esta, se sua legislação assim o permitir, e de acordo com as determinações da legislação em questão, e a pedido da parte requerente, considerará a possibilidade de fazer cumprir a pena imposta, ou o que resta da pena ainda a cumprir, de acordo com a legislação da Parte requerente.”31“13. Se a extradição solicitada com o propósito de que se cumpra uma pena é ne-gada pelo fato de que a pessoa procurada é cidadã do Estado Parte requerido, este, se sua legislação interna autoriza e em conformidade com os requisitos da mencionada legislação, considerará, ante solicitação do Estado Parte requerente, a possibilidade de fazer cumprir a pena imposta ou o resto pendente de tal pena de acordo com a legislação interna do Estado Parte requerente.”32 United Nations Convention Against Corruption.33 United Nations Convention against Transnational Organized Crime.34 “12. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa que é objeto deste pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir, em conformidade com as prescrições deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao que dessa pena faltar cumprir.”

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tramitação dos pedidos de transferência de execução penal é direta entre as autoridades competentes.

A Convenção Europeia sobre a Validade Internacional de Julgamen-tos Criminais de 1970 (CETS 70) admite o cumprimento no exterior de decisões condenatórias emitidas por outros Estados europeus, se pre-sente um ou mais motivos listados no seu art. 5º: a) a pessoa condenada reside no Estado requerido ou é nacional dele; b) a execução penal no outro Estado facilitará a reabilitação do condenado; c) a pena privativa de liberdade aplicada no Estado requerente pode ser unificada a outra sanção de igual natureza já em execução no Estado requerido; ou d) se o Estado requerente entende que não pode executar a sanção em seu território, mesmo que apresente pedido de extradição.

3.5 Quadro comparativo das diferenças entre os institutosQUADRO 1: QUADRO COMPARATIVO ENTRE OS QUATRO INSTITUTOS

ESPÉCIE DE PEDIDO EXTRADIÇÃO ENTREGA TRANSFERÊNCIA

DE EXECUÇÃOTRANSFERÊNCIA DE CONDENADOS

A MEDIDA RECAI SOBRE

Qualquer pessoa, salvo o nato

Qualquer pessoa, inclusive nato

Sentença firme proferida no

exterior

Pessoa nacional ou residente e sobre a

sentença

QUANTO À VOLUNTARIEDADE Compulsória Compulsória Compulsória Voluntária

QUANTO À EXE-CUÇÃO PENAL

Não iniciada ou Interrompida por

fuga

Não iniciada ou Interrompida por

fuga

Não iniciada ou Interrompida por

fugaJá iniciada

QUANTO À LO-CALICAÇÃO DO SENTENCIADO

Pessoa foragida ou residente no

exterior

Pessoa foragida ou residente no

exterior

Pessoa foragida ou residente no

exterior

Pessoa já cumpre pena no Estado

requerente

LEGITIMIDADE ATIVA

Estado estrangeiro

Estado estrang. ou tribunal

internacional

Estado estrangeiro ou tribunal

internacional

Apenado ou seu representante legal

QUANTO À NATUREZA

Cooperação internacional

Cooperação internacional

Cooperação internacional

Cunho humanitário e reinserção social

QUANTO À TRAMITAÇÃO

Via diplomática ou autoridade

central

Via direta, ou au-toridade central

Via diplomática ou autoridade central

Via diplomática ou autoridade central

COMPETÊNCIA NO MODO PASSIVO STF STF STJ STJ

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3.6 Transferência da execução penal como alternativa à ex-tradição

A extradição é o método tradicional de persecução transnacional de foragidos. Contudo, não são raros os óbices que se apresentam em algu-mas jurisdições. É que, por disposição constitucional ou legal, o Estado requerido pode estar impedido de extraditar seus nacionais ou nacionais de outros Estados com os quais mantenham convenções protetivas.

Nesses casos, questiona-se qual seria a solução para impedir a impunidade do foragido. Se não se pode obter a extradição de alguém já condenado no Estado que exerceu a jurisdição, só há duas opções: a) propositura de nova ação penal no país de destino (onde está o con-denado), como consequência do princípio aut dedere aut iudicare); ou b) a execução da sentença penal condenatória no território desse outro Estado.

Noutras palavras, quando a extradição não é deferida pelo fato de o extraditando ser nacional do Estado requerido, aplica-se a regra conhecida como aut dedere aut iudicare: extradite ou julgue. Cabe ao Estado requerido extraditar ou processar a pessoa procurada pela prática de crime no exterior. Essa solução é adequada sobretudo para aquelas situações nas quais o foragido ainda não foi condenado no Estado que detém a jurisdição. Se recusada a extradição, o processo penal terá curso no Estado de abrigo do procurado.

Porém, se o foragido já houver sido condenado, a melhor solução é a transferência da execução penal, conforme o princípio do reconhe-cimento mútuo de decisões judiciais. Afronta a economia processual e a segurança jurídica realizar um novo julgamento sobre o mesmo fato.

Não importa se o apenado fugiu antes de ter início ou após haver sido iniciada a execução da pena; a transferência da execução penal poderá ocorrer. Noutros casos, o sentenciado estará sujeito a esse procedimento mesmo que não seja foragido, pois um réu pode cometer um crime de jurisdição do Estado X sem jamais ter estado em seu território.

Nos casos de negativa de extradição (especialmente a executória) em função da inextraditabilidade de nacionais, a transferência da execução da sentença penal estrangeira é a melhor alternativa para permitir a res-ponsabilização de pessoa condenada noutra jurisdição numa ação penal.

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Se o Estado requerente e o Estado requerido forem signatários da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Trans-nacional, conhecida por Convenção de Palermo ou UNTOC (Decreto n. 5.015/2004), pode-se invocar a regra do art. 16, §12, segundo o qual:

Art. 16. Extradição

1. O presente Artigo aplica-se às infrações abrangidas pela presente Convenção ou nos casos em que um grupo criminoso organizado esteja implicado numa infração prevista nas alíneas a) ou b) do parágrafo 1 do Artigo 3 e em que a pessoa que é objeto do pedido de extradição se encontre no Estado Parte requerido, desde que a infração pela qual é pedida a extradição seja punível pelo direito interno do Estado Parte requerente e do Estado Parte requerido. [...]

12. Se a extradição, pedida para efeitos de execução de uma pena, for recusada porque a pessoa que é objeto deste pedido é um cidadão do Estado Parte requerido, este, se o seu direito interno o permitir, em conformidade com as prescrições deste direito e a pedido do Estado Parte requerente, considerará a possibilidade de dar execução à pena que foi aplicada em conformidade com o direito do Estado Parte requerente ou ao que dessa pena faltar cumprir.

Regra semelhante está no §13 do art. 44 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, apelidada de Convenção de Mérida ou UNCAC (Decreto n. 5.687/2006). Se não deferida a extradição de na-cional, mais eficaz e rápido é transmitir a sentença penal condenatória definitiva para o Estado requerido para que lá seja executada a pena.

Art. 44. Extradição

13. Se a extradição solicitada com o propósito de que se cumpra uma pena é negada pelo fato de que a pessoa procurada é cidadã do Estado Parte requerido, este, se sua legislação interna autoriza e em conformidade com os requisitos da mencionada legislação, considerará, ante solicitação do Estado Parte requerente, a pos-sibilidade de fazer cumprir a pena imposta ou o resto pendente de tal pena de acordo com a legislação interna do Estado Parte requerente.

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No que concerne ao Tribunal Penal Internacional, criado pelo Es-tatuto de Roma de 1998 (Decreto n. 4.388/2002), o procedimento de transferência da execução penal é diferenciado, estando regulado nos arts. 103 e 104. Em regra, as penas privativas de liberdade serão cumpridas num Estado indicado pelo Tribunal a partir de uma lista de Estados que tenham manifestado a sua disponibilidade para receber pessoas conde-nadas. Se nenhum Estado for designado pela Corte, a pena privativa de liberdade será cumprida num estabelecimento prisional designado pelo Estado anfitrião (a Holanda). Caso seja necessário, o Tribunal poderá transferir um condenado para prisão de um outro Estado.

A Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, de 19 de junho de 1990, cuida da transmissão da execução de sentenças penais (trans-fer of the enforcement of criminal judgements), procedimento que não depende do consentimento do apenado. Os arts. 67 a 69 desse tratado complementam a Convenção do Conselho da Europa, de 21 de Março de 1983, sobre a transferência de pessoas condenadas entre as partes contratantes que também sejam partes na referida convenção. Conforme o art. 68:

[...] a Parte Contratante em cujo território foi decretada uma pena privativa de liberdade ou uma medida de segurança restritiva da liberdade por uma sentença passada em julgado, relativamente a um nacional de uma outra Parte Contratante que se subtraiu, evadindo-se para o seu país, ao cumprimento desta pena ou medida de segurança, pode solicitar a esta última Parte Contratante, caso a pessoa evadida aí for encontrada, que retome a execução da pena ou medida de segurança.

O primeiro tratado internacional – não regional – a possibilitar a transferência de sentenças penais estrangeiras no interesse do Estado sentenciante foi a Convenção contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (Convenção de Viena de 1988), promulgada no Brasil por meio do Decreto n. 154/1991. Conforme o art. 7º, §10, desse tratado:

10. Se a extradição solicitada com o propósito de fazer cumprir uma condenação, for denegada, porque o indivíduo objeto da solicitação é nacional da Parte requerida, esta, se sua legislação assim o per-

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mitir, de acordo com as determinações da legislação em questão, e a pedido da Parte requerente, considerará a possibilidade de fazer cumprir a pena imposta, ou o que resta da pena ainda a cumprir, de acordo com a legislação da parte requerente.

Como se observa, os três dispositivos convencionais tomam a im-possibilidade de extradição de nacionais como premissa para viabilizar a transferência da execução de sentenças criminais proferidas no exte-rior. Mas em todas as três regras há que se observar o direito interno. A legislação nacional deve permitir a execução de uma sentença penal estrangeira, o que, no contexto do art. 9º do Código Penal brasileiro, é juridicamente impossível.35

A decisão penal firme – isto é, transitada em julgado – proferida no Estado requerente ou pelo tribunal internacional competente36 deverá ser adequada à realidade jurídico-penal do Estado requerido. Em algumas jurisdições a esse procedimento complexo se dá o nome de homologa-ção de sentença penal estrangeira. Noutras, chama-se exequatur. Onde o princípio do reconhecimento mútuo não é devidamente aplicado, tal chancela é sempre um passo necessário para viabilizar a execução da pena proferida no exterior.

Em países como o Brasil ainda há sérias limitações ao reconhecimen-to de sentenças penais estrangeiras para execução. É que, segundo o art. 9º do Código Penal brasileiro, a sentença penal estrangeira só pode ser homologada para obrigar o condenado à reparação do dano, a restituições e a outros efeitos civis, e para sujeitar o inimputável ao cumprimento de medida de segurança. E isso só ocorrerá após a homologação da decisão originária pelo Superior Tribunal de Justiça.

35 O art. 10 do PLS 236/2012, que institui o novo Código Penal brasileiro, procura solucionar esta questão, passando a admitir a homologação de qualquer tipo de sentença penal.36 Na forma do art. 87, §1º, alínea `a`, do Estatuto de Roma de 1998, “o Tribunal es-tará habilitado a dirigir pedidos de cooperação aos Estados Partes. Estes pedidos serão transmitidos pela via diplomática ou por qualquer outra via apropriada escolhida pelo Estado Parte no momento de ratificação, aceitação, aprovação ou adesão ao presente Estatuto”.

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No atual marco normativo do Brasil, não é possível dar força a sentenças penais estrangeiras para seus fins intrínsecos, isto é, para o cumprimento de pena, a pedido do Estado ou tribunal sentenciante. De fato, atualmente não é possível executar em solo brasileiro uma sentença penal proferida por uma corte estrangeira ou um tribunal supranacional.

Como visto, os textos convencionais determinam que, para a trans-ferência de sentenças penais, haja previsão expressa do direito local. Em se tratando de regras de índole penal, é fundamental a observância do princípio da legalidade, o que torna necessária a existência de lei penal em sentido estrito (lex populi) para dar-se eficácia imediata aos tratados internacionais neste ponto.

Note-se, porém, como vimos, que este instituto é diverso da trans-ferência de condenados, que se faz com base em tratados bilaterais ou convenções multilaterais. Tal instituto tem cariz humanitário e sempre é manejado no interesse do condenado.37 Ademais, na transferência de condenados, a pessoa a ser transferida está no território do Estado sen-tenciante e sujeito a sua jurisdição ou sob custódia. Ao revés, na trans-ferência da execução penal, o condenado não está ao alcance imediato do Estado sentenciante.

Devemos abandonar a ideia de que a transferência da execução da pena (com ou sem homologação) seria uma alternativa à extradição apenas no caso de seu indeferimento ou impossibilidade jurídica. Em verdade, apesar das limitações ínsitas aos dispositivos convencionais da Convenção de Mérida de 2003 (UNCAC), da Convenção de Palermo de 2000 (UNTOC) e da Convenção de Viena de 1988, a sentença penal deveria poder ser transferida ao Estado requerido desde logo, indepen-dentemente de ter sido requerida e negada a extradição do condenado,

37 Quanto a este instituto, no cenário brasileiro, há inúmeros casos. Atualmente (junho de 2015), o Brasil é Parte da Convenção Interamericana sobre o Cumprimento de Sen-tenças Penais no Exterior (Convenção de Manágua de 1993), do Acordo sobre Trans-ferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (Convenção de Praia, de 2005), do Acordo sobre Transferência de Pessoas Condenadas entre os Estados Partes do Mercosul (Convenção de Belo Ho-rizonte, de 2012) e signatário de doze tratados de transferência de pessoas condenadas com países da América Latina, África e Europa.

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sempre que se trate de criminalidade organizada, corrupção, narcotráfico e lavagem de dinheiro e seus delitos antecedentes.

Assim, a transferência da execução penal terá lugar quando o réu for condenado tendo respondido ao processo penal noutra jurisdição (isto é, o acusado foi notificado para a ação penal e defendeu-se no exterior, tendo sido em seguida condenado); ou, quando o acusado fugiu para outro país durante a investigação ou a ação penal e sobreveio sentença condenatória; ou quando a pessoa condenada se evadiu do Estado sen-tenciante antes de iniciada a execução penal ou durante o cumprimento da pena privativa de liberdade.

Além da regra de reconhecimento mútuo e do preceito aut dedere aut iudicare, outro princípio deve ser levado em conta quando conside-ramos a execução de pena noutra jurisdição. A transferência da execução penal tem uma vantagem evidente sobre a regra aut dedere aut iudicare, na medida que, em observância ao princípio do ne bis in idem, evita a propositura de novo processo criminal pelo mesmo fato, ainda que noutra jurisdição. Isto é, se o Estado requerido nega a extradição (por exem-plo, por motivo de nacionalidade), fica obrigado a iniciar a persecução criminal em seu território, conforme a diretriz “extradite ou processe.” Um novo processo penal no Estado requerido ofende as ideias de eco-nomia processual e celeridade, além de permitir a prolação de decisão contraditória em relação à condenação já proferida no Estado requerente.

Por outro lado, ainda que em jurisdições distintas, essa nova decisão (que pode ser absolutória) poderá ofender outro princípio, o da coisa julgada (res iudicata) na medida em que uma pessoa condenada no país “A” poderá ser novamente processada, pelo mesmo fato, no país “B” e vir a ser absolvida ou obter declaração de extinção de punibilidade, pela prescrição, por exemplo. Muito mais lógico e adequado à princi-piologia que rege o processo penal e a cooperação internacional em matéria criminal que uma sentença condenatória prolatada ao final de um processo penal legítimo seja de logo executável no Estado requerido, independentemente da propositura de outra ação penal nesse território.

Todavia, como já deixamos claro, o princípio da legalidade penal estrita deve ser levado em conta. Em certas jurisdições, as regras da UNTOC, da UNCAC ou da Convenção de Viena de 1988 não serão ime-diatamente ou diretamente aplicáveis. Para alguns seria necessária inter-

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mediação normativa, no nível do direito interno, para que a transferência da execução efetivamente ocorra, a não ser que um tratado multilateral ou bilateral ou ainda um compromisso de reciprocidade ad hoc entre os Estados em questão contenha regras suficientes de adequação das penas e dos regimes de execução penal.

Diga-se, aliás, que, independentemente da existência de um tratado, o direito interno pode permitir o reconhecimento direto de condenação penal estrangeira, sem necessidade de reprocessamento da causa. O Esta-do requerido verifica se a sentença judicial estrangeira reúne os requisitos legais para ser reconhecida ou homologada e então a implementa.

Como já assinalado, tal alternativa não está à disposição do Mi-nistério Público no direito brasileiro. O atual art. 9º do CP só admite o reconhecimento de sentenças penais estrangeiras para fins muito restritos, afastando a possibilidade de cumprimento de pena privativa de liberdade. Por essa razão, no projeto de Lei do Senado n. 236/2012, que institui o novo Código Penal brasileiro, pretende-se prever no art. 10 regra de admissibilidade do reconhecimento de sentenças penais estrangeiras para execução de pena privativa de liberdade, a saber:

Sentença estrangeira

Art. 10. A sentença estrangeira pode ser homologada no Brasil para produzir os mesmos efeitos de condenação previstos pela lei brasileira, inclusive para a sujeição à pena, medida de segurança ou medida socioeducativa e para a reparação do dano.

§ 1º A homologação depende:

I – de pedido da parte interessada;

II -- da existência de tratado de extradição com o país de cuja autoridade judiciária emanou a sentença, ou, na falta de tratado, de requisição do Ministro da Justiça ou da Mesa do Congresso Nacional.

§ 2º Não dependem de homologação as decisões de corte interna-cional cuja jurisdição foi admitida pelo Brasil, bem como a transfe-rência de brasileiro, condenado no estrangeiro, para o cumprimento de pena no País.

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O caput do art. 10 do PLS 236/2012 amplia as hipóteses de reconhe-cimento de sentença estrangeira, para abarcar as decisões condenatórias que impõem penas privativas de liberdade; as absolutórias impróprias, que sujeitam o acusado a medidas de segurança, em caso de inimputa-bilidade; e as de procedência de representações e que aplicam medidas socioeducativas a adolescentes infratores.

Inovando a matéria, o §2º do art. 10 do projeto de Lei dispensa de homologação as sentenças proferidas por corte internacional penal, tal como o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado pelo Estatuto de Roma de 1998; e também, dado o seu cunho humanitário, aquelas decisões con-denatórias prolatadas no exterior contra brasileiros que peçam remoção ao Brasil para aqui cumprirem suas penas.38

Essa possibilidade ainda não existe no Brasil. No entanto, o di-reito interno de outros países permite a execução de penas proferidas no exterior. Tomemos a Itália como exemplo. Os arts. 730 a 741 do Código de Processo Penal italiano admitem o reconhecimento de sen-tença penal estrangeira, de forma unilateral ou com base num tratado, para várias finalidades, inclusive o cumprimento de pena privativa de liberdade, fiscalização de sursis ou de livramento condicional, confisco penal, restituição de bens e para fins civis. O procedimento depende do Ministério da Justiça, que recebe o pedido, e do Ministério Público, que o executa perante uma corte de apelação, com recurso à Corte de Cassação.

Em regra, os sistemas jurídicos nacionais que admitem a execução de condenações penais estrangeiras estabelecem requisitos para sua homologação ou exequatur. Tais requisitos serão mais singelos quando houver regime convencional de reconhecimento mútuo, tal como se dá na União Europeia, no contexto da Decisão Quadro 2008/909/JAI, de 27

38 O projeto trata no mesmo artigo de dois institutos distintos. No entanto, é interes-sante notar que, no âmbito europeu, a disciplina legal do enforcement de julgamentos criminais e a da transferência de sentenciados vão se aproximando. Apesar desse avan-ço, continua exigindo como condição para a homologação a existência de tratado de extradição com o Estado emissor (requerente), ou, na falta deste, requisição do Ministro da Justiça “ou da Mesa do Congresso Nacional”. Obviamente, essa questão deveria ser deixada a critério da Procuradoria-Geral da República, à luz do art. 129, I, CF.

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de novembro de 2008,39 relativa à aplicação do princípio do reconheci-mento mútuo a sentenças impositivas de penas privativas de liberdade.

Obviamente, a sentença penal estrangeira deve ter transitado em julgado, conforme a lei do Estado sentenciante; não pode conter dispo-sições contrárias aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico do Estado requerido (ou de execução); e devem ter sido respeitados os direitos processuais do acusado. Além disso, a condenação não pode ter ocorrido por motivos relativos a raça, etnia, religião, sexo, naciona-lidade, idioma, opinião política ou condição pessoal, e, salvo exceções devidamente apontadas, deve-se observar o princípio da dupla tipicida-de (dupla incriminação). Do mesmo modo, a sentença estrangeira não será executável se contra a mesma pessoa e sobre o mesmo fato houver ação penal em curso ou houver sido proferida decisão firme no Estado requerido (de execução).

3.7 O caso PizzolatoExplicitada a utilidade do instituto da transferência da execução de

sentença penal condenatória – que será compulsória, sem a necessidade de concordância do apenado –, como alternativa à extradição, parece importante examinar esse mecanismo de efetivação da Justiça criminal, no plano transnacional, à luz de um caso concreto.

Na ação penal 470, o Sr. Henrique Pizzolato foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal a 12 anos e 7 meses de prisão por corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro.

Como o Sr. Pizzolato tem dupla nacionalidade (brasileira e italiana), valeu-se de documentos falsos (de seu irmão, que já era morto) para fugir do Brasil rumo à Itália.

Descoberto o seu paradeiro, o foragido foi preso pela Interpol em solo italiano, e o Brasil pediu à Itália sua extradição executória, para cumprimento da pena em território nacional. Conforme o art. 26 da Constituição da Itália, havendo tratado, este país extradita seus cidadãos.

39 Na regulamentação da União Europeia, são similares as características da transfe-rência de execução penal (medida de cooperação internacional no interesse do Estado) e da transferência de condenados (medida de reinserção social).

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Pois bem. Se for negada a entrega de um extraditando em semelhante situação, indaga-se o que poderia fazer o Estado brasileiro para fazer cumprir a decisão condenatória proferida contra tal pessoa.

A primeira alternativa será pedir a transferência para a Itália da sen-tença condenatória proferida no Brasil, para que naquele país europeu esse suposto condenado cumpra a pena determinada pela Justiça brasileira. Tal solução tem fundamento no art. 44, §13, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção ou Convenção de Mérida (UNCAC),40 da qual os dois países são partes. Tem base ainda nos arts. 731 e 735 do Código de Processo Penal italiano; e no art. 12 do Código Penal do mesmo país.

De fato, em relação aos efeitos da sentença penal estrangeira, o CPP italiano admite seu reconhecimento com base em acordos internacionais, mediante requisição do Ministro da Justiça ao Procurador-Geral da corte de apelação competente. Cabe ao Ministério Público requerer o reconhe-cimento da decisão condenatória proferida no exterior, inclusive para os fins do art. 12, §§1º, 2º e 3º do Código Penal italiano,41 quando cabível. A Corte de Apelação define a pena a ser cumprida na Itália, amoldando--a a uma das previstas na legislação local, respeitado o limite máximo estabelecido para o mesmo fato pela lei italiana.

Segundo o art. 12 do CP da Itália, uma sentença estrangeira pode ser homologada e executada em seu território, desde que tenha sido emitida por autoridade judiciária de um Estado com o qual exista tratado de ex-tradição. Caso não exista tratado deste tipo, o reconhecimento depende de requisição do Ministro da Justiça.

Assim, não sendo cabível a extradição ou a entrega de um senten-ciado ou não tendo sido estas requeridas, o Estado sentenciante poderá pedir ao Estado onde se encontra a pessoa condenada que ordene sua

40 “Art. 44. Extradição. [...] 13. Se a extradição solicitada com o propósito de que se cumpra uma pena é negada pelo fato de que a pessoa procurada é cidadã do Estado Parte requerido, este, se sua legislação interna autoriza e em conformidade com os requisitos da mencionada legislação, considerará, ante solicitação do Estado Parte re-querente, a possibilidade de fazer cumprir a pena imposta ou o resto pendente de tal pena de acordo com a legislação interna do Estado Parte requerente.”. A UNCAC seria aplicável tendo em mira os crimes reconhecidos na sentença ou acórdão.41 Trata do “riconoscimento delle sentenze penali straniere”.

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prisão e o início da execução penal, com base na decisão condenatória baixada pelo Estado emissor, observado o direito interno do Estado receptor.

4 ConclusãoDevem os Estados buscar alternativas ao tradicional instituto da ex-

tradição, cujos requisitos são muito rígidos, com a finalidade de promover efetiva Justiça criminal para além das fronteiras nacionais. Essa opção é válida em várias hipóteses, mas principalmente quando a extradição for juridicamente impossível, dada à inextraditabilidade de nacionais, motivo de recusa ainda existente em alguns países, como o Brasil.

Contudo, o Estado emissor da sentença condenatória não precisa passar pelo procedimento extradicional para só então transmitir a decisão penal para execução no exterior. Essa saída pode ser adotada desde o primeiro instante pelas autoridades competentes do Estado interessado na execução da pena, em lugar da extradição.

No plano ativo, não haveria grandes problemas para implementar essas alternativas. Ou se pede a extradição do condenado foragido, ou se transfere a sentença penal ao estrangeiro, para sua execução.

A questão mais intrincada está na cooperação passiva. É que nossa legislação penal não permite a extradição de brasileiros natos (art. 5º, inciso LI, da Constituição); tampouco autoriza a homologação de sen-tença penal estrangeira para cumprimento de pena privativa de liberdade (art. 9º do Código Penal), o que cria um paradoxo, em detrimento da eficiência dos mecanismos de cooperação internacional.

Como se viu, a solução passa pela adoção, de forma mais ampla, do princípio do reconhecimento mútuo das decisões judiciais estrangeiras, notadamente quando proferidas por autoridades judiciárias de Estados Democráticos de Direito, nos quais prevalece o rule of law.

Se, de um lado, há o dever de proteger o condenado e lhe garantir o devido processo legal durante a instrução criminal e na execução penal, de outro, existe igual dever, de mesma hierarquia, que impõe aos Estados a obrigação de agir e evitar que lesões a direitos individuais ou coletivos ou a outros bens jurídicos fundamentais da sociedade fiquem impunes.

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Naturalmente, os Estados devem respeitar o devido processo legal e observar os direitos fundamentais do réu ou do condenado. Não menos importante, como forma de proteção à coletividade e aos interesses das vítimas, é o dever dos Estados de realizar a persecução criminal de de-litos (especialmente os graves) e promover a execução da pena que vier a ser imposta, ainda que o condenado não esteja ao alcance imediato da jurisdição criminal do Estado interessado.

Assim, não podemos falar apenas em direitos fundamentais do condenado, mas também em correspondentes direitos da sociedade em ver a responsabilização dos criminosos, maximizando-se o dever de proteção, sob pena de violação do princípio da proibição de proteção deficiente. No particular, podem ser invocadas aqui as palavras de Adolfo Gelsi Bidart: 42

[...] la mera formulación de los derechos humanos con el alcance indicado revela la necesidad de su complementación con los deberes humanos, que tienen igual significación y trascendencia que aquellos con los que mutuamente se deslindan y garantizan en su ejercicio o realización. Los derechos humanos en cada hombre requieren, para su efectiva existencia, igual fundamento o base, de deberes de igual jerarquía e significación.

Esses deveres são impostos aos Estados também como forma de assegurar proteção ativa à sociedade, pela maximização da Justiça efetiva e redução da impunidade. Os instrumentos tradicionais de cooperação internacional (como a extradição) e as novas ferramentas cooperativas (como a transferência de execução penal) têm um importante papel a desempenhar para este fim. Não deve haver lugar de ocultação, valha-couto ou homizio para criminosos foragidos em nenhuma parte do globo.

ReferênciasGELSI BIDART, Adolfo. De Derechos, deberes y garantías del hombre común. Buenos Aires: Ed. B de F, 2006.

42 GELSI BIDART, Adolfo. De Derechos, deberes y garantías del hombre común. Buenos Aires: Ed. B de F, 2006.

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IMPOSSIBILIDADE DE ADITAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL DOS EMBARGOS À

EXECUÇÃO FISCAL

GESSIEL PINHEIRO DE PAIVAJuiz Federal Substituto.

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande – FURG/RS. Pós-graduado em Direito Constitucional, do Trabalho e Previdenciário pela Faculdade

Atlântico Sul/Anhanguera Educacional de Pelotas/RS. Atuou na 2ª Vara Federal de Campos dos Goytacazes/RJ, na 1ª Vara Federal de Santana do Livramento/RS e atualmente atua na 2ª Vara

Federal do Rio Grande/RS.

RESUMO: O presente artigo busca analisar a possibilidade ou não de aditamento da petição inicial dos embargos à execução fiscal, mediante o estudo de institutos processuais relativos aos prazos, bem como de princípios processuais, como a concentração, a eventualidade e a pre-clusão, além de identificar a natureza jurídica dos embargos à execução fiscal e do prazo para sua oposição, a fim de demonstrar a diferença entre aditamento à inicial e emenda à inicial. Como resultado, demonstra-se a incompatibilidade do aditamento à inicial com a natureza jurídica dos embargos à execução fiscal, tecendo-se algumas críticas fundamentadas às decisões que tratam aditamento e emenda como o mesmo instituto, além de se identificar uma hipótese legal de aditamento. Conclui-se que a aplicação, com base em suas efetivas naturezas jurídicas, dos princípios e institutos processuais estudados, contribui para que seja observado o devido processo legal no seu aspecto substancial no uso dos embargos à execução fiscal.

PALAVRAS-CHAVE: Embargos. Execução fiscal. Petição inicial. Aditamento. Emenda.

IntroduçãoO processo civil como instrumento para garantia do amplo acesso

ao Poder Judiciário, para que atenda aos ditames constitucionais, obe-decendo aos princípios que lhes são inerentes (devido processo legal, ampla defesa, contraditório, razoável duração, etc.), deve possuir uma forma específica prevista em lei, isto é, a lei deve estabelecer o rito processual, ou seja, o procedimento a ser adotado conforme a espécie de ação.

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Esse rito ou procedimento processual deve ter um início definido e caminhar para um fim, é dizer, não deve haver atos desnecessários ou a repetição de atos. É o que decorre do chamado “princípio lógico” do processo.

Para que o processo tenha um caminho certo a ser seguido de co-nhecimento prévio dos envolvidos (pois previsto em lei), e para que, de um lado, garanta os direitos das partes a produzirem as provas de suas alegações (contraditório e ampla defesa), mas, de outro, atenda aos princípios da efetividade e da razoável duração, sem paradas ou desvios desnecessários, existem alguns institutos de natureza processual que lhe são inerentes.

Como exemplo desses institutos, temos os prazos para a prática de determinados atos, os quais podem ser de natureza dilatória (que podem ser modificados pelas partes ou pelo juiz) ou de natureza peremptória (prazos previstos na lei e que nem o juiz nem as partes podem modificar, salvo casos excepcionais previstos na própria lei).

Outro instituto destinado às finalidades acima é a preclusão, que tem a finalidade de evitar a reiteração de atos no processo, seja por decurso de prazo, seja por já terem sido praticados, seja, ainda, para evitar conduta processual contraditória.

Na seara executiva, mais especificamente nas execuções fiscais, as garantias de efetividade e celeridade para a cobrança dos créditos públicos, objeto de tais execuções, ensejou a elaboração pelo legislador de um rito especial de execução, previsto na Lei n. 6.830/1980 (Lei de Execuções Fiscais).

Na exposição de motivos da referida Lei, encaminhada pelo então Ministro da Justiça ao Congresso Nacional, constou que “[...] nenhum outro crédito deve ter, em sua execução judicial, preferência, garantia ou rito processual que supere os do crédito público, à exceção de alguns créditos trabalhistas”.

A mesma Lei estabeleceu que a defesa do devedor deve ser feita através dos chamados Embargos à Execução Fiscal, a serem propostos no prazo de 30 (trinta) dias a partir da intimação da penhora, da realização do depósito ou da juntada aos autos da carta de fiança, ou seja, após a chamada “garantia do juízo”.

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Tais embargos, conforme prevê o § 2º do art. 16 da Lei de Execu-ções Fiscais, devem trazer na sua inicial toda matéria útil à defesa, com o requerimento especificado das provas que o embargante pretende produzir, juntadas desde já a prova documental que possuir e arroladas as testemunhas.

O parágrafo terceiro do mesmo artigo afirma, ainda, que não serão admitidos nos embargos a reconvenção e nem a alegação de compensa-ção, e salvo as exceções de suspeição, impedimento e incompetência, as demais devem ser alegadas como matéria preliminar e serão processadas e julgadas com os embargos.

Neste breve artigo, pretendemos demonstrar, através do estudo de alguns princípios e institutos processuais que decorrem do regramento aplicável, que os Embargos à Execução Fiscal possuem especificidades que impõem a obediência estrita ao que prevê a Lei de Execuções Fiscais e, subsidiariamente, ao Código de Processo Civil, de modo que, de um lado, garanta-se a defesa do devedor, mas, de outro, garanta-se também a celeridade do processo de execução, evitando atos procrastinatórios e em desacordo com os princípios que inspiraram o legislador.

1 Prazos dilatórios e peremptóriosO processo, enquanto procedimento, é composto por uma sucessão

concatenada de atos iniciados com a petição inicial e desenvolve-se com o intuito de chegar a um fim, que é a solução da lide.

Cada um desses atos praticados no processo está sujeito a um prazo definido na lei processual, de modo a evitar que se prolongue dema-siadamente no tempo, o que pode, inclusive, tornar inútil o direito ao final reconhecido, pela impossibilidade de que venha a ser efetivamente atendido.

Os prazos podem estar definidos na própria lei processual (prazos legais) ou esta pode atribuir sua fixação ao juiz (prazos judiciais). Esses prazos existem no processo tanto para as partes quanto para o juiz, sendo, entretanto, diversos seus efeitos para cada um deles.

Em regra, os prazos que a lei atribui ao juiz fixar para as partes, ou aqueles que a lei permite que as partes acordem entre si são prazos

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“dilatórios”, ou seja, prazos que podem ser alterados pela vontade das partes ou pelo juiz.

Humberto Theodoro Júnior1 define prazo dilatório como o “que, embora fixado na lei, admite ampliação pelo juiz ou que, por convenção das partes, pode ser reduzido ou ampliado”.

Exemplo de prazo dilatório, segundo Luiz Rodrigues Wambier,2 era o prazo a ser definido pelo juiz na forma do § 3º do art. 454 do Código de Processo Civil de 1973, para que as partes apresentassem memoriais. Outro exemplo dado pelo mesmo autor era o prazo de suspensão do processo por deliberação conjunta das partes, na forma do artigo 265, inciso II, do Código de Processo Civil de 1973 (art. 313, inciso II, do atual Código de Processo Civil).

Já os prazos que a lei fixa de forma definitiva, ou seja, que não ad-mitem redução ou dilação, seja pelo juiz (salvo exceções expressamente previstas na lei), seja por convenção das partes, são chamados prazos “peremptórios”.

Conforme Humberto Theodoro Junior, o Código de Processo Civil não definiu um critério específico para identificar os prazos dilatórios ou peremptórios, havendo, todavia, alguns prazos cuja natureza já foi assentada dentro de um consenso mais ou menos uniforme da doutrina processualística.3

Pode-se afirmar que, em regra, são peremptórios os prazos que as partes têm para apresentar defesa, exceções e reconvenção, para recorrer de decisões ou sentença, ou para apresentar defesa em sede de execução (impugnação ao cumprimento de sentença e embargos à execução), dentre outros.

Ainda acerca dos prazos peremptórios, o art. 223 do atual Código de Processo Civil reforça e melhora a explicação da regra antes prevista no art. 183 do código de 1973. Segundo o atual Código, “decorrido o

1 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 50. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1. p. 244.2 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v.1, p. 199.3 THEODORO JUNIOR, Humberto. Op. Cit., p. 244.

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prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de declaração judicial, ficando assegurado, porém, à parte provar que não o realizou por justa causa”.

Assim, salvo se comprovada a justa causa, o decurso do prazo extin-gue o direito da parte de praticar ou mesmo de emendar o ato processual para o qual a lei prevê prazo peremptório.

Os prazos peremptórios estão diretamente ligados ao outro instituto processual que será adiante analisado e que é fundamental para a ideia tratada no presente artigo: a preclusão.

2 Concentração, eventualidade e preclusão Guilherme Teixeira e Junior Alexandre Pinto4 ensinam que “o pro-

cesso é formado por uma série de atos sucessivos, ordenados de forma que possa chegar ao ato final”. Para os mesmos autores, “justamente por assumirem um papel fundamental no desenvolvimento do processo, os atos processuais carecem de regulação pelo próprio legislador, a fim de evitar inconvenientes que poderiam surgir caso ficasse ao arbítrio do juiz a escolha do modo, do lugar e do tempo para a prática dos atos processuais”.

Essa sucessão de atos deve obedecer a uma lógica operacional, pois o processo deve ser considerado como um conjunto de atos que visam a um pronunciamento jurisdicional que resolva a demanda, com ou sem apreciação de seu mérito. Essa sequência de atos estabelecida na lei é a formulação do chamado “princípio lógico do processo”.5

Nessa linha de raciocínio, Luiz Rodrigues Wambier afirma ser a preclusão fenômeno processual vinculado à ideia de que os atos pro-cessuais vão acontecendo subsequentemente no processo, realizando o modelo de procedimento que o legislador elegeu para cada caso. Assim, “o instituto da preclusão está umbilicalmente ligado à questão do anda-mento processual, e de seu destino inexorável, que é o de extinguir-se,

4 TEIXEIRA, Guilherme Freire de Barros; PINTO, Júnior Alexandre Moreira. Direito Processual Civil – Institutos Fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008. p. 223.5 DUARTE, Bento Herculano; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Princípios do Processo Civil – Noções Fundamentais. São Paulo: Método, 2012. p. 28.

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para dar lugar à solução concreta decorrente da prestação da tutela jurisdicional do Estado”.6

Adailson Lima e Silva7 conceitua preclusão como “o instituto de direito processual que disciplina a prática de atos processuais pelas partes e pelo juiz, a decisão de questões e a marcha do rito processual, de sorte a não permitir retrocessos de rito, repetição de atos e nova decisão de questões já resolvidas”.

Segundo Goldschmidt,8 o “conceito de preclusão surge da fusão dos princípios da concentração e da eventualidade de forma que a atuação de provocação e de defesa das partes ativa e passiva da relação jurídica--processual deverá ser uma.”

Luiz Rodrigues Wambier9 trata o princípio da concentração como um dos sub-princípios decorrentes do princípio da oralidade, ao afirmar que ele “contém a ideia de que todos os atos do processo, inclusive a sentença, devem realizar-se o mais proximamente possível uns dos outros, para que se possa proferir decisão justa”.

Por outro lado, concentração também pode significar que determi-nados atos devem ser praticados em um determinado momento no pro-cesso, de modo que, decorrido o prazo para sua prática, a parte perdeu a oportunidade processual, ou se o praticou, deverá alegar tudo o que podia, sob pena de preclusão em ambos os casos.

Dessa concentração decorre o princípio da eventualidade, mais ligado ao momento da defesa do réu no processo, segundo o qual, por ocasião da defesa, deve o defendente deduzir, de forma sucessiva, todas as alegações que poderia trazer aos autos, ainda que incompatíveis, pois em não o fazendo naquele momento, não mais poderá alegá-las.

Já Humberto Theodoro Junior trata eventualidade e concentração como sinônimos, ao mencionar que o réu tem “o ônus de arguir na contes-

6 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v.1. p. 207.7 SILVA, Adailson Lima e. Preclusão e coisa julgada. São Paulo: Editora Pillares, 2008. p. 74.8 GOLDSCHMIDT apud SILVA, Adailson Lima e. Preclusão e coisa julgada. São Paulo: Editora Pillares, 2008. p. 72-73.9 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v.1. p. 72

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tação ‘toda a matéria de defesa’”, e, caso não o faça, ocorre a preclusão do direito de invocar em fases posteriores do processo matéria de defesa que não tenha ventilado naquele momento processual.10

Outro princípio que pode ser relacionado à preclusão é o da segu-rança jurídica, o qual, por ter ligação com o disciplinamento processual, assegura a previsibilidade de seu desdobramento, no iter a ser seguido em todo e qualquer processo.11

Para Bento Duarte e Oliveira Junior,12 “a segurança jurídica, ca-talisada pelo princípio da proteção à confiança, protege a justa expec-tativa do cidadão na irrestrita observância do ordenamento jurídico processual.”.

Na classificação mais aceita na doutrina processual pátria, a preclu-são pode ser dividida em três espécies:

Segundo a clássica definição de Chiovenda, a “preclusão” con-siste na perda, na extinção ou na consumação de uma faculdade processual. Isso pode ocorrer: a) se a parte não observar a ordem assinalada pela lei ao exercício da faculdade; b) se a parte realizar atividade incompatível com o exercício da faculdade; c) se a parte já tiver exercitado validamente a faculdade (CHIOVENDA, 1993, v. 3, p. 233). Diante dessa definição, pode-se concluir pela exis-tência de três modalidades de preclusão: a) temporal; b) lógica; e c) consumativa.

Nesse sentido, ocorre o “trânsito em julgado” da decisão se a parte deixar de opor impugnação à decisão dentro do prazo estabeleci-do em lei para tal ato (preclusão temporal); se opuser à decisão impugnação não prevista em lei (preclusão lógica); ou se opuser impugnação prevista em lei e dentro do prazo, mas sem aduzir todos os fatos e fundamentos jurídicos necessários, não podendo mais completá-la (preclusão consumativa). 13

10 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 50. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1. p. 375.11 DUARTE, Bento Herculano; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Princípios do Processo Civil – Noções Fundamentais. São Paulo: Método, 2012. p. 28.12 DUARTE, Bento Herculano; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Op. Cit. p. 40.13 SOARES, Carlos Henrique. Novo conceito de trânsito em julgado. Revista CEJ - v. 14 n. 51 out./dez. 2010, Brasília: CJF, 2010, p. 85-88.

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Do teor do § 2º do art. 16 da Lei de Execuções Fiscais pode-se ex-trair a incidência dos princípios da concentração e da eventualidade no prazo de oposição de embargos à execução fiscal. Veja-se: “No prazo dos embargos, o executado deverá alegar toda matéria útil à defesa, requerer provas e juntar aos autos os documentos e rol de testemunhas, até três, ou a critério do juiz, até o dobro desse limite”.

Como visto, ocorre a concentração de diversos atos processuais em um só momento (a inicial dos embargos), que deverá conter não somente as razões de defesa do devedor, mas também o pedido fundamentado das provas aptas a comprovar suas alegações, a juntada das provas do-cumentais e o arrolamento de testemunhas, tudo a demonstrar que não há momento posterior para fazê-lo.

Constata-se também a expressa previsão do princípio da eventua-lidade, diante da previsão que deverá constar na inicial “toda matéria útil à defesa”.

Diante de tais constatações, depreende-se que, uma vez praticado o ato de interposição dos embargos à execução fiscal, ocorrerá a preclusão (consumativa) para novamente praticá-lo, em seu todo ou com relação a qualquer das questões que já poderiam e deveriam ter acompanhado a inicial, e uma vez decorrido o prazo para oposição, sem que o devedor o faça, ocorrerá também a preclusão, porém, na modalidade temporal.

A espécie de preclusão que mais nos interessa para o desenvolvi-mento do tema em questão neste artigo acerca da impossibilidade de “aditamento” da petição inicial dos embargos é a preclusão consumativa, pois, para que se possa falar em “aditamento”, é necessária a existência de uma petição inicial, o que pressupõe a oposição dos embargos, ou seja, que o executado tenha praticado o ato.

Porém, antes de passar propriamente à análise dessa questão, é ne-cessária uma breve incursão acerca da natureza jurídica dos embargos à execução fiscal e do prazo para sua oposição.

3. Natureza dos embargos do devedor e do prazo para sua oposição

É majoritário na doutrina processual que os embargos do devedor em sentido amplo, nesse gênero incluídos os embargos à execução fiscal,

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tratam-se de ação autônoma com natureza constitutiva negativa, pois visam desconstituir a presunção de certeza e liquidez de que gozam os créditos regularmente inscritos em dívida ativa.

Nesse sentido, Miriam Câmera14 menciona que a doutrina atribui aos embargos do executado a natureza jurídica de ação autônoma, des-constitutiva – total ou parcialmente – do título executivo configurado na Certidão de Dívida Ativa.

Nesse mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior,15 valendo-se de ensinamentos de José Alberto dos Reis, Sérgio Costa, Chiovenda, Moacyr Amaral Santos e Enrico Túlio Liebman, sustenta:

[...] Para que o direito à ação executiva se extinga, é necessário anular o título, fazê-lo cair, e para conseguir tal fim, tem o executado de mover uma verdadeira ação declarativa, ou de cognição, que são os embargos do devedor.

Sua natureza jurídica é de uma ação de cognição incidental de ca-ráter constitutivo, conexa à execução por estabelecer, como ensina Chiovenda, uma “relação de causalidade entre a solução do incidente e o êxito da execução”.

Não são os embargos uma simples resistência passiva como é a contestação no processo de conhecimento. Só aparentemente podem ser tidos como resposta do devedor ao pedido do credor. Na verdade, o embargante toma uma posição ativa ou de ataque, exercitando contra o credor o direito de ação à procura de uma sentença que possa extinguir o processo ou desconstituir a eficácia do título executivo.

Por visar a desconstituição da relação jurídica líquida e certa retratada no título é que se diz que os embargos são uma ação constitutiva, uma nova relação processual, em que o devedor é o autor e o credor, o réu.

14 CÂMERA, Miriam Costa Rebollo apud PORTO, Éderson Garin. Manual da Execu-ção Fiscal. 2 ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 173.15 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 45. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. v.2. p. 398.

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É justamente com fundamento na natureza de “ação constitutiva negativa” dos embargos, autônoma em relação à execução, que a jurisprudência pátria tem entendido aplicáveis a eles dispositivos processuais relacionados ao direito de ação, como é o caso dos honorá-rios de sucumbência, previstos no art. 20 do Código de Processo Civil de 1973 (art. 85 do Código de Processo Civil de 2015).16

Aplicam-se também aos embargos, dada sua natureza de ação autônoma e guardadas as devidas peculiaridades, os arts. 282 a 284 do Código de Processo Civil de 1973 (arts. 319 e 320 do Código de Processo Civil atual), que definem os requisitos da petição inicial.17 A aplicação dos referidos dispositivos aos embargos será abordada com maior pro-fundidade no capítulo seguinte.

Com base no mesmo fundamento (natureza de ação autônoma), a jurisprudência afasta dos embargos a aplicação de outros dispositivos legais, como, por exemplo, o art. 188 do Código de Processo Civil de

16 PROCESSO CIVIL. HONORÁRIOS DE ADVOGADO. EMBARGOS DO DEVE-DOR. NATUREZA JURÍDICA. AUSÊNCIA DE CONDENAÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 20, § 4º, CPC. APRECIAÇÃO EQUITATIVA. DOUTRINA. PRECEDENTES. RECURSO PROVIDO. I - Segundo a doutrina, “os embargos têm o caráter de ação pela qual o devedor formula uma pretensão consistente na anulação da execução ou no des-fazimento ou restrição da eficácia do título executivo. Trata-se, portanto, de uma ação constitutiva, visto destinar-se à desconstituição da relação processual da execução ou da eficácia do título executivo”. II - Acolhidos os embargos do devedor, incide a regra do § 4º do art. 20, CPC. III - Na espécie, os critérios legais recomendam a redução da verba honorária (STJ, RESP 237676, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, DJ 08/03/2000, p. 127).17 AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSO CIVIL. EMBARGOS À EXECU-ÇÃO. PRODUÇÃO DE PROVA. CONVENCIMENTO DO JUÍZO. JULGAMENTO ANTECIPADO DA LIDE. 1.Dada a natureza jurídica dos embargos à execução, qual seja de ação autônoma, a inicial deve observar o disposto no artigo 282, do CPC, de-vendo o embargante especificar as provas que pretende produzir, o que não ocorreu no caso em apreço, não bastando a simples assertiva ou pugnação genérica por produção de prova, para ilidir a presunção de liquidez e certeza do título executivo, que goza a dívida regularmente inscrita. 2.Cabe ao juiz, a quem compete a direção do processo, decidir sobre a conveniência ou não das provas a serem produzidas, eis que é o seu destinatá-rio. Entendendo que a prova é desnecessária, pode indeferi-la, não agindo em descon-formidade com a lei. 3.Decisão mantida. 4.Agravo a que se nega provimento. (TRF3, AI 00048772220044030000, rel. Des. Fed. Marli Ferreira, Sexta Turma, DJU 27/07/2004).

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1973, aplicável apenas aos recursos e à contestação18 (art. 183 do atual Código de Processo Civil, que passou a ser aplicável a todos os prazos, exceto àqueles especificamente previstos para a Fazenda Pública, con-forme seu parágrafo segundo).

Pois bem, partindo-se, então, do pressuposto majoritariamente re-conhecido de que os embargos à execução possuem a natureza jurídica de “ação autônoma com natureza constitutiva negativa, conexa à exe-cução”, pode-se extrair a natureza jurídica do prazo para sua oposição, o qual, antes de ser um prazo de natureza meramente processual, possui a conformação de prazo “decadencial”.

Valho-me, aqui, dos ensinamentos de Agnelo de Amorim Filho,19 no seu clássico artigo denominado “Critério Científico para Distinguir a Prescrição da Decadência e Para Identificar as Ações Imprescritíveis”, no qual, em síntese, o douto professor conclui que:

1ª) - Estão sujeitas a prescrição (indiretamente, isto é, em virtude da prescrição da pretensão a que correspondem): - todas as ações condenatórias, e somente elas;

2ª) - Estão sujeitas a decadência (indiretamente, isto é, em vir-tude da decadência do direito potestativo a que correspondem): - as ações constitutivas que têm prazo especial de exercício fixado em lei;

3ª) - São perpétuas (imprescritíveis): - a) as ações constitutivas que não têm prazo especial de exercício fixado em lei; e b) todas as ações declaratórias. (grifo nosso).

18 PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ART. 188 DO CPC. 1. “À época do oferecimento dos embargos, não se aplicava, no caso da autarquia apelante, o disposto no art. 188 do CPC, porquanto, o artigo em comento, cingia-se ao prazo para contestar ou para recorrer, afastada a sua incidência na presente hipótese.” 2. “A nature-za jurídica dos embargos à execução, conforme lição de Humberto Theodoro Júnior, ‘é a de uma ação de cognição incidental de caráter constitutivo, conexa à execução ...’ ...” 3. “Constituindo os embargos de devedor ação incidental de conhecimento, inaplicável é o art. 188 do CPC, quando opostos pela Fazenda Pública, por se restringir à con-testação e ao recurso. (RF 319/164).” (TRF2, AC 9802094633, rel. Des. Fed. Alberto Nogueira, Quinta Turma, DJU 22/01/2002).19 AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da deca-dência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3, p. 95-132, jan./jun. 1961.

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Portanto, considerando que os embargos à execução fiscal, como espécie que são do gênero “embargos do devedor”, são ação autônoma de natureza constitutiva, sujeito o exercício desse direito de ação ao prazo legal de 30 (trinta) dias, contados do depósito, da juntada da carta de fiança aos autos ou da intimação da penhora (art. 16, incisos I a III, da Lei n. 6.830/198020), decorre a conclusão lógica de que referido prazo possui, antes de tudo, natureza decadencial.

São regras básicas dos prazos decadenciais, conforme se extrai do art. 207 do Código Civil,21 que, salvo disposição legal expressa em sentido contrário, não estão sujeitos a impedimento, suspensão ou interrupção.

Também são regras da decadência legal que a parte por ela benefi-ciada não pode renunciá-la (art. 209 do Código Civil),22 e que dela o juiz deve conhecer de ofício (art. 210 do Código Civil). 23

Trazendo tais regras para a seara do processo de execução fiscal, uma vez que tal prazo também tem seu viés de prazo processual, tem-se a também lógica conclusão de que, por se tratar o prazo para oposição de embargos de prazo com natureza decadencial, fixado em lei, não sujeito a impedimento, suspensão, interrupção ou renúncia, trata-se, no processo, de prazo peremptório e preclusivo, portanto, improrrogável pelo juiz ou por convenção das partes.

As definições acima são importantes para a demonstração da tese já identificada no título do presente artigo, ou seja, a impossibilidade de “aditamento” da petição inicial de embargos à execução fiscal.

20 Art. 16 - O executado oferecerá embargos, no prazo de 30 (trinta) dias, contados:I - do depósito;II - da juntada da prova da fiança bancária;III - da intimação da penhora.21 Art. 207. Salvo disposição legal em contrário, não se aplicam à decadência as nor-mas que impedem, suspendem ou interrompem a prescrição.22 Art. 209. É nula a renúncia à decadência fixada em lei.23 Art. 210. Deve o juiz, de ofício, conhecer da decadência, quando estabelecida por lei.

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4 Diferença entre “aditamento da inicial” e “emenda à ini-cial”

O art. 282 do Código de Processo Civil de 197324 arrolava os re-quisitos da petição inicial, e o art. 283 do mesmo Estatuto estabelecia que “a petição inicial será instruída com os documentos indispensáveis à propositura da ação”. Semelhante previsão consta, atualmente, com pequenas alterações que não vêm ao caso, nos arts. 319 e 320 do atual Código de Processo Civil.

Os requisitos mencionados pelo art. 282 (atual 319) são: I) o juiz ou tribunal a que é dirigida a inicial; II) a qualificação (nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência) das partes (autor e réu); III) o fato e os fundamentos jurídicos do pedido (os quais não se confundem com a legislação aplicável, cuja expressa menção não é necessária); IV) o pedido, com suas especificações; V) o valor da causa; VI) as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados; VII) o requerimento para a citação do réu.

Acerca dos requisitos da inicial, acima mencionados, Luiz Rodrigues Wambier25 afirma: “Outra não é a razão de ser de tais exigências: traçar os exatos parâmetros do julgamento futuro”.

Além da atenção formal aos requisitos antes mencionados, a inicial deve desenvolver e chegar, de forma lógica, a partir dos fatos e dos fundamentos jurídicos narrados ao que é ao final postulado (pedido). A não atenção a essa sequência lógica é uma das causas de inépcia da inicial (art. 295, parágrafo único, inciso II, do Código de Processo Civil

24 Art. 282. A petição inicial indicará:I - o juiz ou tribunal, a que é dirigida;II - os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e residência do autor e do réu;III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido;IV - o pedido, com as suas especificações;V - o valor da causa;VI - as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos alegados;VII - o requerimento para a citação do réu.25 WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v.1. p. 283.

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de 1973, e art. 330, § 1º, inciso III, do atual Código de Processo Civil), dando causa ao indeferimento da inicial (art. 295, inciso I, combinado com o art. 267, inciso I, ambos do Código de Processo Civil de 1973 e art. 330, inciso I, combinado com o art. 485, inciso I, do atual Código de Processo Civil).26

Também será inepta a inicial que não arrolar de forma clara os fatos ou os fundamentos jurídicos que deles decorrem, por lhe faltar causa de pedir (art. 295, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil de 1973 e art. 330, § 1º, inciso O do atual Código de Processo Civil), ensejando também o seu indeferimento.

O art. 295, inciso VI, do Código de Processo Civil de 1973 previa também que a inicial seria indeferida quando não observadas as prescri-ções do art. 39, parágrafo único, primeira parte, e 284, ambos do Estatuto Processual revogado (arts. 330, inciso IV, 106 e 321, do atual Código de Processo Civil).

O art. 39 do Código revogado, nos seus incisos, estabelecia obri-gações para o advogado ou para a parte, quando postulasse em causa

26 Art. 39. Compete ao advogado, ou à parte quando postular em causa própria:I - declarar, na petição inicial ou na contestação, o endereço em que receberá intimação;II - comunicar ao escrivão do processo qualquer mudança de endereço.Parágrafo único. Se o advogado não cumprir o disposto no nº I deste artigo, o juiz, antes de determinar a citação do réu, mandará que se supra a omissão no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de indeferimento da petição; se infringir o previsto no nº II, reputar-se-ão válidas as intimações enviadas, em carta registrada, para o endereço constante dos autos.Art. 106. Quando postular em causa própria, incumbe ao advogado:I - declarar, na petição inicial ou na contestação, o endereço, seu número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil e o nome da sociedade de advogados da qual participa, para o recebimento de intimações;II - comunicar ao juízo qualquer mudança de endereço.§ 1o Se o advogado descumprir o disposto no inciso I, o juiz ordenará que se supra a omissão, no prazo de 5 (cinco) dias, antes de determinar a citação do réu, sob pena de indeferimento da petição.§ 2o Se o advogado infringir o previsto no inciso II, serão consideradas válidas as in-timações enviadas por carta registrada ou meio eletrônico ao endereço constante dos autos.

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própria,27 sendo também considerados requisitos formais da petição inicial (tais requisitos constam, no atual Código, no art. 106). A não observância do inciso I do art. 39 da Lei Processual Civil revogada (art. 106, inciso I, do Código atual) ensejava a necessidade de “emenda” da inicial, para que fosse suprida a omissão, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de indeferimento da inicial (parágrafo único, primeira parte, do Código de 1973, e § 1º do Código atual, que prevê agora o prazo de 5 (cinco) dias).

O art. 284, por sua vez, referindo-se especificamente aos requisitos formais do art. 282 e à necessidade de que a inicial fosse instruída com os documentos indispensáveis à sua propositura (art. 283), ou ainda, à hipótese de se verificarem defeitos ou irregularidades capazes de dificul-tar o julgamento de mérito (como, por exemplo, o caso já mencionado de quando da narração dos fatos não decorre logicamente a conclusão), estabelecia que o juiz deveria determinar ao autor que a emendasse ou completasse, no prazo de 10 (dez) dias, sob pena de ser indeferida

27 Art. 39. Compete ao advogado, ou à parte quando postular em causa própria:I - declarar, na petição inicial ou na contestação, o endereço em que receberá inti-mação;II - comunicar ao escrivão do processo qualquer mudança de endereço.Parágrafo único. Se o advogado não cumprir o disposto no nº I deste artigo, o juiz, antes de determinar a citação do réu, mandará que se supra a omissão no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de indeferimento da petição; se infringir o previsto no nº II, reputar-se-ão válidas as intimações enviadas, em carta registrada, para o endereço constante dos autos.Art. 106. Quando postular em causa própria, incumbe ao advogado:I - declarar, na petição inicial ou na contestação, o endereço, seu número de inscrição na Ordem dos Advogados do Brasil e o nome da sociedade de advogados da qual participa, para o recebimento de intimações;II - comunicar ao juízo qualquer mudança de endereço.§ 1o Se o advogado descumprir o disposto no inciso I, o juiz ordenará que se supra a omissão, no prazo de 5 (cinco) dias, antes de determinar a citação do réu, sob pena de indeferimento da petição.§ 2o Se o advogado infringir o previsto no inciso II, serão consideradas válidas as in-timações enviadas por carta registrada ou meio eletrônico ao endereço constante dos autos.

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(parágrafo único)28 (todas as remissões a artigos do Código de 1973; no atual Código, na mesma ordem, são os seguintes artigos: 321, 319 e 320, tendo o prazo para emenda passado a ser de 15 (quinze) dias).

Todas as situações acima mencionadas dizem respeito a hipóteses de “emenda (ou complementação) da inicial”, uma vez que não alteram a essência da lide, ou seja, os parâmetros a serem decididos pelo juiz e que vieram definidos na petição inicial, os quais devem permanecer os mesmos.

É por esse motivo (não modificar a lide) que a jurisprudência dos Tribunais entende pela possibilidade (ou necessidade) de o juiz determinar a “emenda” da inicial para suprir irregularidades formais mesmo após a citação do réu e apresentação de contestação, na qual podem vir alegados tais defeitos como matérias preliminares,29 antes de julgar extinto o processo por um desses defeitos.

28 Art. 284. Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts. 282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias.Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial.Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a com-plete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial.29 PROCESSUAL CIVIL. INÉPCIA DA INICIAL. EMENDA. POSSIBILIDADE. 1. Deve o magistrado, em nome dos princípios da instrumentalidade das formas e da eco-nomia processual, determinar a emenda da petição inicial que deixa de indicar o pedido com suas especificações. 2. O fato de já existir contestação do réu não há de ter, só por si, o efeito de inviabilizar a adoção da diligência corretiva prevista no art. 284 do CPC, em especial nos casos em que a falta for de convalidação possível. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ, AGRESP 200500344518 AGRESP - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – 752335 Relator(a) JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Órgão julgador QUARTA TURMA Fonte DJE DATA: 15/03/2010)REPETIÇÃO DE INDÉBITO TRIBUTÁRIO. FALTA DOS COMPROVANTES DE RECOLHIMENTO. OPORTUNIDADE DE EMENDA ÀINICIAL. INOBSERVÂN-CIA. ART. 284 DO CPC. I - Conforme jurisprudência desta Corte, mesmo após o ofe-recimento da contestação, pode o juiz determinar que se emende a inicial quando faltar documento indispensável à propositura da demanda. Precedentes: REsp nº 674215/RJ,

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Situação diversa da “emenda” da inicial é o chamado “aditamento” da inicial, o qual estava previsto no art. 294 do Código de Processo Civil de 1973 (Antes da citação, o autor poderá aditar o pedido, correndo à sua conta as custas acrescidas em razão dessa iniciativa) e atualmente, consta no art. 329, inciso I, do Código de Processo Civil.30

No processo civil, a citação dá origem ao que se denomina de “es-tabilização da lide”, pela formação da relação jurídica processual, entre autor e réu, intermediada pelo juiz.

Mesmo depois da citação é possível que seja “aditada” a inicial, modificando-se o pedido, porém, neste caso, deve haver concordância expressa da outra parte (art. 264 do Código de Processo Civil de 197331 e art. 329, inciso II, do atual Código de Processo Civil32).

Rel. Ministro JORGE SCARTEZZINI, DJ de 20.11.2006; REsp nº 425140/SC, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, DJ de 25.09.2006; REsp 101013/CE, Rel. Mi-nistro HAMILTON CARVALHIDO, DJ de 18.08.2003. II - Na hipótese, somente em autos de recurso especial se decidiu que a comprovação de pagamento do tributo cons-titui requisito à propositura da ação de repetição de indébito. III - Deve-se, então, deter-minar o retorno dos autos ao juiz de primeiro grau para que abra oportunidade à parte de emendar a inicial, conforme artigo 284 do Código de Processo Civil, com a invalidação de todos os atos processuais praticados sem essa observância. IV - Agravo regimental improvido. (STJ, AGRESP 200700195364 AGRESP - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL – 921086cRelator(a) FRANCISCO FALCÃO Órgão julgador PRIMEIRA TURMA Fonte DJ DATA: 14/06/2007 PG: 00272)30 Art. 329. O autor poderá:I - até a citação, aditar ou alterar o pedido ou a causa de pedir, independentemente de consentimento do réu;[...]31 Art. 264. Feita a citação, é defeso ao autor modificar o pedido ou a causa de pedir, sem o consentimento do réu, mantendo-se as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)Parágrafo único. A alteração do pedido ou da causa de pedir em nenhuma hipótese será permitida após o saneamento do processo. (Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973) 32 Art. 329. O autor poderá:[...]II - até o saneamento do processo, aditar ou alterar o pedido e a causa de pedir, com consentimento do réu, assegurado o contraditório mediante a possibilidade de manifes-tação deste no prazo mínimo de 15 (quinze) dias, facultado o requerimento de prova suplementar.

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Após o “saneamento do processo”, antes previsto no art. 323 do Código de Processo Civil de 1973 sob a denominação “providências preliminares”, e, atualmente, no art. 347 do Código de Processo Civil, tal aditamento, contudo, torna-se inviável.

E é assim porque a citação, que era “o ato pelo qual se chama a juízo o réu ou o interessado, para o fim de se defender”, conforme o art. 213 do Código de Processo Civil de 1973, e na dicção do art. 238 do Código de Processo Civil atual, “o ato pelo qual são convo-cados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual”, também é o ato que “induz litispendência e faz litigiosa a coisa” (art. 219, do Código de Processo Civil de 1973 e art. 240 do atual Código).

Por isso, a alteração ou acréscimo de pedidos (aditamento da ini-cial) antes da citação é livre ao autor, e após a citação, com a anuência expressa do réu, somente é possível até o saneamento, sob pena de se eternizar o processo, com sucessivas alterações de pedido ou causa de pedir durante o seu curso.

Todas as observações acima, em relação aos requisitos e a emenda da inicial são plenamente aplicáveis aos embargos à execução fiscal, sendo compatíveis com sua natureza, sendo tranquila a jurisprudência a respeito. 33

O mesmo não acontece, todavia, com a hipótese de “aditamento da inicial”, mesmo antes da intimação do embargado (que é o ato similar à citação no âmbito dos embargos à execução), como será abordado no capítulo seguinte.

33 PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. PETIÇÃO INICIAL. EX-CESSO NÃO EXPLICITADO. EMENDA DA INICIAL. DESATENDIMENTO. IN-DEFERIMENTO. ILEGALIDADE INEXISTENTE. I- Nos embargos à execução, por serem ação de conhecimento, a petição inicial deve atender aos requisitos dos arts. 282 e 283 do CPC. Verificando o juiz a falta de algum requisito, ordenará que o Executante a emende. Inatendida a ordem, o juiz indeferirá a inicial (art. 284 c/c 295 e art. 739, inciso III, todos do CPC). (STJ, EREsp 255673/SP EMBARGOS DE DIVERGÊN-CIA EM RECURSO ESPECIAL 2001/0154004-0 Relator(a) Ministro GILSON DIPP (1111) Órgão Julgador S3 - TERCEIRA SEÇÃO Data do Julgamento 10/04/2002 Data da Publicação/Fonte DJ 13/05/2002 p. 150)

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5 Impossibilidade de aditamento e inovação após a oposição dos embargos do devedor

Como demonstrado nos capítulos anteriores, os embargos à execução fiscal, apesar de se tratarem de uma “ação incidental de natureza cons-titutiva negativa, conexa à execução fiscal”, possuem na lei a previsão de um prazo para sua oposição.

Esse prazo, embora previsto para a prática de um ato processual, como vimos, possui, em decorrência da natureza jurídica dos embargos (ação constitutiva negativa), a natureza de prazo decadencial.

Ainda, em seu viés processual, tal prazo possui natureza peremp-tória (não pode ser dilatado pelas partes ou pelo juiz), do que decorre a incidência do instituto da preclusão (temporal, se decorrido o prazo sem oposição de embargos, ou consumativa, se opostos dentro do prazo).

Também foi mencionado que, havendo previsão no § 2º do art. 16 da Lei de Execuções Fiscais de que no prazo de embargos deve ser alegada “toda matéria útil à defesa”, há incidência do chamado “princípio da eventualidade” na inicial dos embargos à execução fiscal.

Também ficou demonstrada a diferença entre a “emenda da inicial” (que visa suprir a falta de requisitos formais, sem alterar a substância da lide) e o “aditamento da inicial” (que permite ao autor acrescentar fatos, fundamentos jurídicos e pedidos à sua ação, independente de anuência do réu, se antes da citação, ou com a concordância deste, se depois da citação, mas sempre antes do saneamento do processo).

Temos, ainda, a previsão do art. 223 do Código de Processo Civil atual no sentido de que “decorrido o prazo, extingue-se o direito de praticar ou de emendar o ato processual, independentemente de decla-ração judicial”

Diante de todas essas constatações, conclui-se que, uma vez opostos os embargos, a matéria nele trazida (fatos, fundamentos jurídicos e pedi-dos) não pode ser alterada por meio de “aditamento”, trazendo à relação jurídica processual formada pelos embargos questões que não tenham sido alegadas no momento da apresentação da inicial para distribuição processual.

Caso assim se permitisse, perderia o sentido a previsão legal de prazo para oposição de embargos, pois bastaria à parte, no último dia de seu

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prazo, apresentar uma petição inicial genérica, ou com apenas poucos fatos e pedidos, e contar com a demora decorrente dos mecanismos processuais para, dilatando seu prazo unilateralmente, vir aos autos, antes ainda da intimação, e apresentar novos fatos e fundamentos, já depois de decorrido o prazo de embargos.

Sequer seria possível, também, que ainda dentro do prazo de embar-gos, mas depois de já opostos estes, exemplificativamente, no 15º dia do prazo, viesse o embargante aos autos para, em aditamento à inicial, no 29º dia, por exemplo, trazer novos fatos, fundamentos ou pedidos, uma vez que estaria violando a chamada “preclusão consumativa”, que impede a renovação do ato processual uma vez que a parte o tenha praticado.

A correta identificação e diferenciação do que seja mera “emenda da inicial”, tendente a suprir deficiências formais, sem inovar na lide, do “aditamento da inicial”, que visa acrescentar à lide questões inicialmente a ela não trazidas, é essencial para que o processo tenha seu curso corre-to, conforme previsto em lei, sem dilações ou incidentes indevidos, em atenção ao hoje constitucional princípio da razoável duração do processo.

Além disso, uma vez que o rito previsto em lei guarda estrita ob-servância a diversos princípios inerentes ao processo, como o princípio lógico, o princípio da concentração, o princípio da eventualidade, dentre outros, além de institutos processuais como os prazos peremptórios e a preclusão, bem como o instituto material da decadência, a não observân-cia ao que estabelece a lei acarretaria a violação do também constitucional princípio do devido processo legal, pois possibilitaria às partes, sponte própria, alterar o procedimento legalmente previsto.

Colaciono, abaixo, alguns julgados no sentido do aqui sustentado:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ADITA-MENTO À INICIAL COM NOVOS FUNDAMENTOS E PE-DIDO MAIS DE UM ANO DEPOIS DE PASSADO O PRAZO DOS EMBARGOS. IMPOSSIBILIDADE. [...] III - Inicialmente, quanto à não comprovação do recolhimento de todas as contribui-ções previdenciárias, observo que não houve impugnação tem-pestiva da Fazenda Nacional. Embora tenha apresentado pedido de aditamento à petição inicial às f. 88/91, pedindo o reconhecimento de excesso à execução por razão diversa da já alegada e em montante bem superior ao inicialmente sustentado, este só foi juntado aos au-

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tos quase um ano após o fim do prazo para embargar à execução. IV - Vê-se que, no caso, não se trata de mero pedido de aditamen-to do pedido, mas de tentativa vedada por lei de impugnação à execução em momento absolutamente inapropriado (TRF5, AC 200983020009541 AC - Apelação Civel – 503850 Relator(a) Desembargadora Federal Cíntia Menezes Brunetta Órgão julgador Primeira Turma Fonte DJE - Data: 18/07/2013 - Página: 181). 34

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ADITAMENTO. INADMISSÍVEL. Os embargos à execução têm natureza jurídica de ação autônoma, que visa desconstituir - total ou parcialmente - o título executivo cobrado na ação de execu-ção fiscal, regida pela Lei nº 6830/80. O agravante exerceu seu direito de opor embargos à execução, tendo aperfeiçoada a relação processual com a citação da embargada, não sendo possível, por isso, o seu aditamento, quanto mais a alteração do pedido formulado na inicial, em razão da preclusão consu-mativa. Agravo de instrumento a que se nega provimento (TRF3, AI 00154426420124030000 AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 476161 Relator(a) DESEMBARGADORA FEDERAL MARLI FERREIRA Órgão julgador QUARTA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA: 31/10/2012).

TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. [...] VII - Incabível a apreciação do pleito veiculado no aditamen-to à inicial, porquanto todas as matérias de defesa deveriam ter sido ventiladas quando do ajuizamento dos embargos, não se verificando, in casu, qualquer das hipóteses previstas no art. 462, do Código de Processo Civil. [...] (TRF3, AC 00109042120094039999 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 1411446 Relator(a) DESEMBAR-GADORA FEDERAL REGINA COSTA Órgão julgador SEXTA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA: 27/09/2012).

34 Observa-se no acórdão acima transcrito uma imprecisão terminológica da julgadora, quando menciona que “não se trata de mero pedido de aditamento do pedido”, pois se percebe que pretendia ela mencionar que não se tratava de mero pedido de “emenda do pedido inicial”, para lhe suprir falta de requisitos formais. Essa imprecisão terminoló-gica pode gerar confusões, no sentido de se entender cabível eventual “aditamento do pedido de embargos”, quando já se demonstrou acima que isso atentaria não somente contra a lei, mas também contra diversos princípios do processo.

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TRIBUTÁRIO - PROCESSUAL CIVIL - EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL - TEMPESTIVIDADE DO APELO. FA-ZENDA PÚBLICA. INTIMAÇÃO PESSOAL - PRESCRIÇÃO. DEFESA ADMINISTRATIVA. SUSPENSÃO - CONEXÃO. JULGAMENTO DOS PARADIGMAS. PREJUDICIALIDADE – ADITAMENTO DE EMBARGOS. NÃO CABIMENTO [...] 5. Incabível aditamento de embargos pois com a inicial dos embargos o executado deve levantar toda a matéria útil à sua defesa (§ 1º do art. 16 da LEF), a substituição de penhora não abre nem renova o prazo para interposição e, tratando-se de matéria já levantadas nas ações anteriormente ajuizadas, mais do que mera conexão, configuraria litispendência ou coisa julgada. [...] (TRF3, AC 00101894220104039999 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 1497224 Relator(a) JUIZ FEDERAL CONVOCADO CLAUDIO SANTOS Órgão julgador TERCEIRA TURMA Fonte: e-DJF3 Judicial 1 DATA: 15/07/2011 PÁGINA: 565).

TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. CONTRIBUIÇÃO PRE-VIDENCIÁRIA. EMBARGOS A EXECUÇÃO FISCAL. [...] IV - Tampouco merecem acolhida os argumentos apresentados após a propositura dos embargos, incidindo em aditamento da peça inicial, a teor do disposto no Código Processual Civil; [...] (TRF3, AC 05157612019934036182 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 772627 Relator(a) JUIZ CONVOCADO NELSON PORFÍRIO Órgão julgador JUDICIÁRIO EM DIA - TURMA B Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA: 23/02/2011 PÁGINA: 1136).

PROCESSO CIVIL - EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - NO-VOS EMBARGOS DENTRO DA MESMA RELAÇÃO PROCES-SUAL - INADMISSIBILIDADE: PRECLUSÃO - IMPROCEDÊN-CIA AOS EMBARGOS. 1. Consagrada a unicidade da peça de embargos, a ter de concentrar todos os argumentos em seu bojo (primeira parte do parágrafo 2º do art. 16, LEF) e no prazo de 30 dias para sua interposição, notório que inadmissível, como no caso vertente, tenha a parte apelante oposto seus embargos, em 28.07.2003, fundada em excesso de execução e pela falta de liquidez da CDA, enquanto, em 19.07.2005, constrói verda-deiramente novos embargos, sob argumento completamente distinto - agora a cuidar de pagamento, conforme explanado em audiência: ora, da essência dos embargos se afigura seu propósito

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desconstitutivo do título em execução, de tal arte que a significar a manobra recorrente verdadeira e cabal inovação em sede de embargos, sem autorização no sistema e, superiormente a isso, em afronta ao postulado da concentração da defesa, erigido por aquela norma especial. 2. Admitir-se tal intento, independente-mente de se estar diante de contexto no qual já intimado (ou não) o erário a impugnar, configura inadmissível pactuação com a insegurança e a instabilidade na relação processual, subverten-do-se a noção basilar do executivo fiscal, no qual, desde quando vigente o ordenamento em pauta, incumbe ao executado, assim o desejando, defender-se do título em cobrança, aduzindo nos embargos - peça única, repare-se - toda a matéria útil à defesa, em assim explícita observância ao adotado dogma da concen-tração dos atos de defesa, da eventualidade ou da preclusão. 3. Quando o legislador deseja permitir tal gesto repetitivo, assim o faz por expresso, consoante § 8º do art. 2º, LEF, igualmente o reiterando o art. 203, CTN. 4. No sentido do evento preclusivo, a impedir novos embargos dentro da mesma relação processual, como claramente praticado segundo o mais mínimo dos cotejos entre a inicial e o pretenso aditamento, o v. entendimento, da lavra da Eminente Desembargadora Federal Doutora Cecília Marcon-des. Precedente. 5. Improvimento à apelação. Improcedência aos embargos. (TRF3, AC 00364528220084039999 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 1333998 Relator(a) JUIZ CONVOCADO SILVA NETO Sigla do órgão SEGUNDA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial 2 DATA: 17/12/2009 PÁGINA: 494).

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. ARTIGO 557, § 1º, DO CPC. EMBARGOS À EXECUÇÃO. [...] 1. Nos termos do art. 16, §2º, da LEF, é inadmissível o aditamento, em momento posterior, da inicial dos embargos. [...] (TRF3, AC 00037880820024036119 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 1402146 Relator(a) DESEMBARGA-DOR FEDERAL HENRIQUE HERKENHOFF Órgão julgador SEGUNDA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA: 08/07/2009 PÁGINA: 184).

AGRAVO DE INSTRUMENTO - PEDIDO DE ADITAMEN-TO DOS EMBARGOS À EXECUÇÃO. 1. Do compulsar dos autos denota-se haver oposição dos embargos à execução fiscal em 09/06/1997 com alegação de ilegalidade e inconstitucionalidade da

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atualização monetária cobrada, bem como o direito a pagar somente o valor principal. 2. Transcorridos mais de 07 (sete) anos, insurgem--se nos autos com o que denominaram “aditamento aos embargos à execução fiscal”, alegando ilegitimidade passiva dos sócios, a necessidade de exibição do processo administrativo, iliquidez do crédito, ausência de lançamento da multa, ilegalidade da cobrança da multa e inconstitucionalidade do encargo previsto no Decreto-lei n.º 1.025/69. Em tal oportunidade requereu a “substituição” de toda a argumentação tecida nos embargos anteriormente opostos pelos novos fundamentos. 3. Mister observar dispor o art. 16, § 2º, da Lei n.º 6.830/80 que “No prazo dos embargos, o executado de-verá alegar toda matéria útil à defesa, requerer provas e juntar aos autos os documentos e rol de testemunhas, até três, ou, a critério do juiz, até o dobro desse limite”. 4. Não se há falar em aplicação subsidiária do art. 294 do CPC, o qual prevê a possi-bilidade de aditamento da inicial antes da citação, seja porque a execução fiscal é regida por norma específica, seja porque não comprovaram os agravantes tenha sua insurgência ocorrido antes da intimação da exeqüente para apresentar impugnação. (TRF3, AI 00747016320074030000 AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO – 305263 Relator(a) JUIZ CONVOCADO EM AUXÍLIO MIGUEL DI PIERRO Órgão julgador SEXTA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial 2 DATA: 12/01/2009 PÁGINA: 718).

EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL – INADMISSIBILIDADE DE ADITAMENTO DA INICIAL DOS EMBARGOS EM RÉPLI-CA, ARTIGO 16, § 2º, LEF - DEVOLUTIVIDADE RECURSAL ENVOLVIDA A ANALISAR SOMENTE OS TEMAS CONTIDOS NA EXORDIAL - PAGAMENTO - ÔNUS CONTRIBUINTE DE PROVAR INATENDIDO - IMPROCEDÊNCIA AOS EMBAR-GOS. 1. De se destacar imperativo o comando do § 2º, do artigo 16, LEF, ao prever que, deverá o executado alegar toda a matéria útil à defesa, requerer provas e juntar aos autos os documentos no prazo dos embargos. 2. Evidente que no caso vertente, como asseverado pela r. sentença, na exordial o único tema levantado foi o de inexistência do débito, sendo que em sua réplica, inovou a parte embargante ao trazer o tema atinente à responsabilidade de sócio. 3. Consoante o mencionado artigo 16, a inovação configurada impede seja o tema analisado: da essência dos embargos se afigura seu propósito desconstitutivo do título em execução, de tal arte que

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a significar a manobra recorrente verdadeira e cabal inovação em sede de embargos, sem autorização no sistema e, superiormente a isso, em afronta ao postulado da concentração da defesa, erigido por aquela norma especial. 4. Admitir-se tal intento configura inad-missível pactuação com a insegurança e a instabilidade na relação processual, subvertendo-se a noção basilar do executivo fiscal, no qual, desde quando vigente o ordenamento em pauta, incumbe ao executado, assim o desejando, defender-se do título em cobrança, aduzindo nos embargos - peça única, repare-se - toda a matéria útil à defesa, em assim explícita observância ao adotado dogma da concentração dos atos de defesa, da eventualidade ou da preclusão. Precedentes. (TRF3, AC 00881785219954039999 AC - APELA-ÇÃO CÍVEL – 284270 Relator(a) JUIZ CONVOCADO SILVA NETO Órgão julgador TURMA SUPLEMENTAR DA PRIMEIRA SEÇÃO Fonte DJF3 DATA: 19/11/2008).

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. ADITA-MENTO. Incabível o aditamento à inicial de embargos à execu-ção, muito depois da impugnação aos embargos à execução. Apelo dos Autores provido, prejudicado o apelo da UFRJ. (TRF2, AC 200051010091796 AC - APELAÇÃO CIVEL – 326913 Relator(a) Desembargador Federal ROGERIO CARVALHO Órgão julgador SEXTA TURMA ESPECIALIZADA Fonte DJU - Data: 28/07/2005 - Página: 152).

DIREITO ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. EM-BARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA POR INFRAÇÃO ÀS NORMAS METROLÓGICAS. DEFESA. PRECLUSÃO. ARTIGO 16, § 2º, LEF. JUNTADA DE CÓPIA DO PROCESSO ADMINISTRATIVO. ADITAMENTO DA INICIAL NA RÉPLICA. 1. Caso em que os embargos sustentaram apenas a carência de ação, por não ter sido instruída a execução fiscal com cópia do processo administrativo, de que resultou a imposição da multa, sendo, depois da impugnação, aditada, em réplica, a inicial com a alegação de que, na espécie, somente caberia a pena de advertência, fundamento este que foi o acolhido pela sentença. 2. Nulidade da sentença que se rejeita em favor de sua reforma, com a exclusão do exame da matéria que extrapolou os limites da controvérsia, fixada pela inicial, nos termos do artigo 16, § 2º, da LEF, e que acarretou o acolhimento dos embargos, com inovação da lide.

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3. Improcedência dos embargos, reforma integral da sentença, condenação da embargante em verba honorária de 10% sobre o valor atualizado da causa. (TRF3, AC 00216064619974039999 AC - APELAÇÃO CÍVEL – 367103 Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS MUTA Órgão julgador TERCEIRA TURMA Fonte DJU DATA: 18/03/2004).

TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PEDIDO DE SUBSTI-TUIÇÃO DE BEM. COMPENSAÇÃO. 1. Não há nas alegações da agravante fato extremo que reclame urgência liminar à cognição. A penhora de bens é inerente ao feito executivo. 2. Também não há a probabilidade do direito alegado. Com efeito, no que se refere à compensação afirmada (ou pedido de substituição de penhora, como pretende a agravante), o que busca a parte é suscitar matérias que não foram oportunamente aventadas quando do ajuizamento dos embargos e acobertadas pelo manto da preclusão, diante do prazo peremptório para o ajuizamento da presente ação (art. 294 do CPC). 3. No presente caso, somente após os embargos, a parte agravante questionou compensação supostamente devida. Sim, compensação, porque o bem substituto seria suposto crédito que o executado pos-suiria frente à União, o que, a bem da verdade, caso aceito, forçaria uma compensação. 4. De qualquer modo, como a ação de embargos à execução submete-se ao prazo de 30 (trinta) dias, não é possível que as matérias de defesa que não foram alegadas na petição inicial sejam posteriormente e após o prazo legal questionadas, máxime quando possível o ajuizamento de ação autônoma para tal desiderato. O prazo para embargos à execução é peremptório e não comporta aditamento do pedido. (TRF4, AG 5025418-46.2013.404.0000, Primeira Turma, Relator p/ Acórdão Jorge Antonio Maurique, juntado aos autos em 13/12/2013).

6 Críticas ao entendimento que sustenta a possibilidade de aditamento dos embargos à execução fiscal

Observo que transcrevi acima apenas acórdãos que sustentam a mesma tese aqui defendida.

Consigno, no entanto, que existem também inúmeros precedentes dos Tribunais Regionais Federais e do Superior Tribunal de Justiça no sentido do cabimento do “aditamento à inicial” nos termos do art. 294

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do Código de Processo Civil de 1973, antes da intimação do embargado, e com a anuência deste, se após a intimação (art. 329, incisos I e II, do atual Código de Processo Civil).

A crítica que faço a esse entendimento, inicialmente, fundamenta-se na impossibilidade de aplicação subsidiária dos arts. 264 e 294 do Código de Processo Civil de 1973 (art. 329, incisos I e II, do atual Código) aos embargos à execução fiscal, pois conforme o art. 1º da Lei de Execuções Fiscais essa aplicação subsidiária somente é possível naquilo que não contrariar a referida Lei.

Como tenho sustentado, no momento em que a Lei de Execuções Fiscais prevê especificidades como prazo peremptório e preclusivo para oposição de embargos, e que na inicial deve vir alegada toda matéria útil à defesa, tais especificidades impedem a aplicação subsidiária de institutos notoriamente incompatíveis com a inteligência da Lei, como é o caso do mencionado “aditamento”.

Outra crítica que faço ao entendimento de quem sustenta o cabimento do “aditamento” da inicial dos embargos é que muitos precedentes nesse sentido se referem, na realidade, a hipóteses de “emenda da inicial”, instituto jurídico diverso, como demonstrado no capítulo 4, acima, esta sim, plenamente compatível com os embargos à execução fiscal.

Essa imprecisão terminológica não é justificável, pois, como de-monstrado, “emenda da inicial” refere-se a aspectos formais do processo, sem alterar o objeto litigioso, enquanto “aditamento da inicial” refere-se ao conteúdo da lide, ou seja, importa na alteração do objeto litigioso, com o acréscimo de fatos, fundamentos jurídicos ou pedidos não veiculados no momento oportuno.

A terceira crítica que faço ao entendimento pela possibilidade de aditamento à inicial dos embargos à execução fiscal é no sentido de que nenhum dos precedentes encontrados nesse sentido se manifesta sobre as questões que sustentam a tese aqui defendida, como a existência de um prazo preclusivo para oposição de embargos, tal como o são os prazos recursais, a incidência do instituto da preclusão consumativa, pela prática do ato de opor os embargos, e mesmo sobre a previsão da concentração dos atos de defesa na peça única de oposição de embargos, demonstrando a incidência do princípio da eventualidade, sujeita, repito, a prazo preclusivo.

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Assim, para que se admita o “aditamento da inicial” dos embargos execução fiscal, seja antes, seja depois da intimação do embargado, mister que o julgador afaste de forma expressa, mediante fundamen-tação específica, os óbices acima apresentados, sob pena de violar não apenas os princípios processuais inerentes e já mencionados anterior-mente, mas o próprio dever de fundamentar suas decisões, pois estará decidindo manifestamente de forma contrária à lei, sem afastá-la com fundamentos hígidos.

Esse dever fundamental está agora expresso no art. 489, § 1º, inciso IV, do atual Código de Processo Civil:

Art. 489...

[...]

§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

[...]

IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador;

Outra questão que decorre do que foi acima sustentado é que, apesar de os embargos serem entendidos como uma ação autônoma, como possui prazo previsto em lei para sua oposição, sujeitando-se à preclusão (consumativa ou temporal, conforme o caso), aos princípios da concentração e da eventualidade (pela necessidade de que na inicial seja alegada toda a matéria útil a defesa), sua inicial mais se assemelha a uma contestação da execução fiscal.

Não se conceberia que ao réu fosse dada a possibilidade de, depois de decorrido o prazo de defesa e já apresentada a contestação, viesse aos autos, em momento posterior, e acrescentasse à sua defesa novos argumentos, não alegados oportunamente, ampliando o objeto litigioso pelo acréscimo de teses defensivas.

Assim, da mesma forma, pela incidência dos princípios acima mencionados, não se pode conceber o cabimento de, após opostos os embargos, e ocorrida, portanto, a preclusão consumativa, possa o em-bargante inovar sua defesa, acrescentando argumentos que poderiam

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e deveriam ter sido alegados na inicial, pois isso somente é aceito na petição inicial do processo comum por não ser este, em regra, sujeito a prazo (salvo hipóteses de incidência de prazo decadencial sobre o próprio direito material).

7 Hipótese legalmente prevista de “aditamento” da inicial dos embargos à execução fiscal

Como acréscimo a tudo o que já foi dito acima, deve ser menciona-do que quando o legislador quis possibilitar ao executado/embargante que “aditasse” a inicial dos embargos, formulando defesa não veiculada inicialmente, assim o fez expressamente.

Refiro-me à previsão do art. 2º, § 8º, da Lei de Execuções Fiscais, que ao possibilitar a substituição da Certidão de Dívida Ativa, que é o título executivo extrajudicial que instrui a execução fiscal, “até a decisão de primeira instância” (entendendo-se tal momento como a sentença dos embargos à execução fiscal), não somente possibilita, mas determina a devolução do prazo para oposição de embargos.

Apesar disso, tal devolução de prazo e possibilidade de aditamen-to não é ampla e irrestrita, ao contrário, é restrita ao que foi objeto de alteração no título executivo em relação ao que anteriormente instruía a execução fiscal.

Por exemplo, se no título executivo original estava incluído o encargo de 20% (vinte por cento) a que se refere o Decreto-Lei n. 1.025/1969 e multa de 100% (cem por cento) do tributo devido, e no título juntado em substituição consta o mesmo encargo de 20% (vinte por cento), ten-do sido alterada a multa para 50% (cinquenta por cento), apenas essa alteração da multa pode ser objeto de aditamento, não cabendo nele ser inserida discussão sobre o encargo, se já não constasse na inicial, pois tal aspecto não foi alterado.

No sentido do acima sustentado, é a previsão do art. 203 do Código Tributário Nacional:

Art. 203. A omissão de quaisquer dos requisitos previstos no artigo anterior, ou o erro a eles relativo, são causas de nulidade da ins-crição e do processo de cobrança dela decorrente, mas a nulidade

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poderá ser sanada até a decisão de primeira instância, mediante substituição da certidão nula, devolvido ao sujeito passivo, acusado ou interessado o prazo para defesa, que somente poderá versar sobre a parte modificada.

Portanto, trata-se de previsão expressa de hipótese de aditamento da inicial, e mesmo assim, a lei estabelece restrições a esse aditamento, que somente poderá versar sobre a parte modificada do título executivo (Certidão de Dívida Ativa da Fazenda Pública), tudo a demonstrar, nova-mente, o descabimento de “aditamento à inicial” dos embargos, mesmo antes da intimação do embargado.

ConclusãoO “espírito do legislador”, como ficou consignado na exposição de

motivos da Lei de Execuções Fiscais, citado na introdução desse texto, foi da criação de um mecanismo processual célere para a cobrança do crédito da Fazenda Pública, de modo que interpretações que não guardem observância a essa intenção do legislador, como aquelas que possibilitam a extensão de institutos incompatíveis com o rito por ele eleito, acabam por caminhar contrariamente à atual busca de um processo célere, que realmente satisfaça o direito e realize o restabelecimento da paz social de forma rápida, porém sem ferir as garantias processuais.

Na prática processual, tenho observado a existência de embargos à execução fiscal que tramitam há cinco, seis, ou mais anos, em torno da discussão sobre teses que não foram veiculadas na inicial, mas levadas aos autos apenas em momento posterior, muitas vezes após a própria intimação do embargado e apresentação de impugnação por este.

A correta aplicação dos institutos da preclusão, dos prazos peremp-tórios e de natureza decadencial, previstos na Lei de Execuções Fiscais, bem como dos princípios lógico, da concentração e da eventualidade, extraídos das disposições legais da LEF, ao mesmo tempo que garante o exercício da ampla defesa e do contraditório, em atendimento ao devido processo legal, também milita em prol da segurança jurídica e da estabilização da paz social, através de um processo de execução (incluindo seus incidentes, como os embargos à execução fiscal), num prazo razoável.

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De nada adianta a Constituição prever esse princípio como direito fundamental, asseverando que a lei deverá garantir os meios para sua observância, se os operadores do direito, responsáveis por dar concretude ao princípio, militarem em sentido contrário, sob o equivocado argumen-to de “contraditório e ampla defesa”, pois acabam por ferir o próprio princípio maior do devido processo legal, em seu sentido substancial, e não apenas formal.

O contraditório e a ampla defesa devem ser exercidos através dos meios legalmente previstos, pois é isso que configura “devido processo legal” no sentido formal, devendo, ainda, ser respeitadas as naturezas jurídicas dos institutos processuais, a fim de observar o devido processo legal no seu aspecto substancial.

Esperamos que, com essas considerações, tenhamos deixado claro os fundamentos pelo qual adotamos a tese exposta no título do presente artigo, segundo a qual entendemos ser incabível o aditamento da ini-cial dos embargos à execução fiscal, instituto jurídico diverso da mera emenda à inicial.

ReferênciasAMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescri-ção da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-132, jan./jun. 1961.DUARTE, Bento Herculano; OLIVEIRA JUNIOR, Zulmar Duarte de. Princípios do Processo Civil – Noções Fundamentais. São Paulo: Método, 2012.PORTO, Éderson Garin. Manual da Execução Fiscal. 2. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010.SILVA, Adailson Lima e. Preclusão e coisa julgada. São Paulo: Editora Pillares, 2008.SOARES, Carlos Henrique. Novo conceito de trânsito em julgado. Re-vista CEJ - v. 14 n. 51 out./dez. 2010, Brasília: CJF, 2010.TEIXEIRA, Guilherme Freire de Barros; PINTO, Júnior Alexandre Moreira. Direito Processual Civil – Institutos Fundamentais. Curitiba: Juruá, 2008.

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THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 50. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2009. v.1.THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 45. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2010. v.2.WAMBIER, Luiz Rodrigues. Curso Avançado de Processo Civil. 9. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. v.1.

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CONTROLE INDIRETO DA JURISDIÇÃO INTERNACIONAL: A “AUTORIDADE

COMPETENTE” NA HOMOLOGAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA NO BRASIL

MARCELO DE NARDIJuiz Federal (Porto Alegre – RS). Professor de Direito Internacional do Comércio,

Mestrado Profissional de Direito da Empresa e dos Negócios (UNISINOS). Professor de Direito Internacional Privado (ESMAFE/RS).

Membro da Delegação Brasileira para a Comissão Especial do Judgments Project da HCCH.

RESUMO: Este estudo visa compreender o exame pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) do requisito para homologação de sentença estrangeira de “ser proferida por autoridade competente”, constante do inc. I do art. 963 do Código de Processo Civil. A prática tem demons-trado que o exame desse requisito limita-se a verificar se a decisão estrangeira não viola a jurisdição exclusiva brasileira, quando deveria avançar para identificar adequada jurisdição produzida pela autoridade estrangeira, examinando quais elementos de contato relevantes leva-ram-na a exercitar seu poder.

PALAVRAS-CHAVE: Jurisdição internacional. Sentença estrangeira. Homologação.

IntroduçãoA Conferência da Haia de Direito Internacional Privado1 (HCCH)

mantém, desde o ano de 1992, um projeto de convenção visando facilitar a circulação internacional de sentenças estrangeiras. Conhecido como Judgments Project,2 é atualmente a iniciativa de natureza legislativa de maior relevância da HCCH, consumindo grande parte dos recursos da

1 La conferénce de la Haye de droit international privé, ou The Hague Conference on Private International Law. Disponível em: <http://www.hcch.net>. Acesso em: 10 abr.2017. Informações essenciais sobre a organização internacional podem ser obtidas em <https://www.hcch.net/en/about>. 2 Maiores informações disponíveis em: <https://www.hcch.net/en/projects/legislative--projects/judgments>. Acesso em: 10 abr.2017.

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instituição e envolvendo a totalidade dos seus 82 membros, além de outras organizações internacionais e organizações não governamentais. O projeto já produziu um resultado relevante, a convenção de 2005 so-bre eleição de foro,3 e está praticamente finalizado um anteprojeto que provavelmente será submetido aos membros da HCCH para início da deliberação diplomática no ano de 2018.

O objetivo principal da convenção projetada é estabelecer um sis-tema facilitado de circulação de sentenças estrangeiras. Para alcançar esse objetivo, a convenção deverá considerar as importantes diferenças entre os diversos países quanto à aceitação da decisão jurisdicional estrangeira em sua esfera de soberania. Em simplificação de valor aca-dêmico, podem-se identificar três tipos de sistema de reconhecimento de sentenças estrangeiras quanto à abertura para admitir a decisão de outro país:

1. Não admitem decisões estrangeiras (completamente fechados)

2. Estabelecem regras para reconhecimento da jurisdição estran-geira, exigindo certos vínculos da autoridade estrangeira com a causa decidida

3. Não verificam a jurisdição estrangeira quanto ao vínculo da autoridade estrangeira com a causa decidida (completamente abertos) 4

A atual jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça indica que o Brasil se aproxima do modelo 3, pois o controle de ser proferida por auto-ridade competente5 a decisão homologanda tem se limitado a examinar se a autoridade estrangeira não invadiu a competência exclusiva do juiz na-

3 Disponível em: <https://www.hcch.net/en/instruments/conventions/specialised-sec-tions/choice-of-court>. Acesso em: 10 abr.2017. Nessa data, a convenção estava em vigor para o México, a União Europeia e Singapura.4 Conclusões a partir da tabela comparativa sobre regras de jurisdição, preparado pelo Secretariado da HCCH e finalizado em 29 de setembro de 2014. O documento não é público.5 Inc. I do art. 963 do Código de Processo Civil (CPC), Lei n. 13.105/2015, vigência em 18 mar.2016.

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cional, prevista no art. 23 do CPC.6 Essa abertura à jurisdição internacional pode ser descrita, por um lado, como uma pretensão a cosmopolitismo e cooperação internacional, mas também pode resultar em excessiva expo-sição dos jurisdicionados nacionais, que se veem submetidos a qualquer decisão estrangeira sem que se tenham verificado mínimos elementos de vinculação da causa com a autoridade que a proferiu.

O exame dessa questão, com visão brasileira, é o objetivo deste estudo, que, após especificar o problema, percorrerá os conceitos de jurisdição internacional e de controle indireto da jurisdição internacio-nal, para alcançar algumas conclusões sobre conteúdos a pesquisar e aprofundar conclusões sobre o tema.

Este estudo tem o propósito de introduzir um marco teórico para ilus-trar futura coleta de dados sobre homologação de sentenças estrangeiras no Brasil e formas de controle indireto da jurisdição internacional por outros países, para posterior análise quantitativa e qualitativa. Indepen-dentemente dos futuros desdobramentos, as conclusões aqui alcançadas guardam autonomia conceitual.

1 O problemaO modelo de admissão de efeitos na jurisdição nacional brasileira de

decisão de autoridade estrangeira segue o sistema de delibação concen-trado, de responsabilidade de um único órgão de natureza jurisdicional, o Superior Tribunal de Justiça (STJ).7A história da distribuição legislativa

6 Assim está redigido o art. 23:Art. 23. Compete à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra:I - conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil;II - em matéria de sucessão hereditária, proceder à confirmação de testamento particular e ao inventário e à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional;III - em divórcio, separação judicial ou dissolução de união estável, proceder à partilha de bens situados no Brasil, ainda que o titular seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional.

7 Nos termos da al. i do inc. I do art. 105 da Constituição:Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:I - processar e julgar, originariamente:[…]i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias; (Incluída pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) […]

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dessa competência interna registra centenária atribuição ao Supremo Tribunal Federal (STF) até 2004,8 quando a Emenda Constitucional 45 a transferiu para o STJ. A relativamente recente transição modificou a percepção jurisprudencial sobre o tema, afetando os institutos que lhe são próprios. A exemplificar a modificação, registra-se a admissão de tutela jurisdicional de urgência no seio do processo de delibação, admitida após a transição. 9 Este estudo se limitará a examinar o problema revelado no período de jurisdição do STJ, ou seja, o que se praticou desde a entrada em vigor da Emenda Constitucional 45/2004, em 31 de dezembro de 2004, sem olvidar eventuais referências mais remotas.

Dentre os requisitos para homologação da decisão estrangeira o STJ sempre declarou a necessidade de ter sido proferida por autoridade competente. Vejam-se os atos regulamentares sobre o tema:

ResPresSTJ 2210, 31dez.2004 (determina transitoriamente a apli-cação do RISTF)

RISTF, art. 217. Constituem requisitos indispensáveis à ho-mologação da sentença estrangeira:

I- haver sido proferida por juiz competente; […]

ResPresSTJ 911, 4maio2005

Art. 5º Constituem requisitos indispensáveis à homologação de sentença estrangeira:

I - haver sido proferida por autoridade competente; […]

8 O sistema de delibação adotado para o reconhecimento de sentenças estrangeiras vigora no Brasil desde o Decreto n. 6.982⁄1878 (STJ, Corte Especial, SEC 2714 AgRg, rel. Cesar Asfor Rocha, j. 4ago.2010).9 O § 3º do art. 4º da Resolução nº 9/2005 do Presidente do STJ, regulamento transitório naquela Corte sobre a homologação de sentenças estrangeiras, já admitia essa possibilidade, o art. 216-G da atual redação do Regimento Interno do STJ a autoriza, e o § 3º do art. 961 do CPC consagra legislativamente a possibilidade.10 Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/30>. Acesso em: 22 abr. 2016.11 Disponível em: <http://bdjur.stj.jus.br/dspace/handle/2011/368>. Acesso em: 22 abr. 2016.

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Regimento Interno do STJ12, emenda 18/2014

Art. 216-D. A sentença estrangeira deverá:

I - ter sido proferida por autoridade competente; […]

A exigência está legalmente prevista na al. a do art. 15 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB: 13

Art. 15. Será executada no Brasil a sentença proferida no estrangeiro, que reúna os seguintes requisitos:

a) haver sido proferida por juiz competente; […]

Atualmente está presente a previsão legal no inc. I do art. 963 do CPC:

Art. 963. Constituem requisitos indispensáveis à homologação da decisão:

I - ser proferida por autoridade competente;[…]

A diferença entre juiz competente e autoridade competente se explica pela leitura de um dispositivo esclarecedor sobre o que deve ser considerado sentença estrangeira na expressão constitucional, incluindo provimentos não judiciais, conforme o § 1º do art. 961 do CPC: 14

Art. 961. […]

§ 1º É passível de homologação a decisão judicial definitiva, bem como a decisão não judicial que, pela lei brasileira, teria natureza jurisdicional.

12 Disponível em: <http://www.stj.jus.br/publicacaoinstitucional//////////index.php/Re-gimento/issue/archive>. Acesso em: 22 abr.2016.13 Decreto-lei n. 4.657/1942.14 O Regimento Interno do STJ já previa essa possibilidade:Art. 216-A. […]§ 1º Serão homologados os provimentos não judiciais que, pela lei brasileira, tiverem natureza de sentença. (Incluído pela Emenda Regimental n. 18, de 2014)

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O que interessa aqui é identificar a ação do STJ quando examina o requisito de competência da autoridade estrangeira quando decide pela homologação ou não de sentença estrangeira. Nesse contexto, um exame das decisões em processos de delibação é essencial.15

Uma primeira observação importante é a de que a competência da autoridade estrangeira não é examinada pelo STJ quanto à sua compe-tência interna, ou seja, quanto à subdivisão da jurisdição no país de origem. O exame concernente à autoridade responsável pela sentença estrangeira faz-se nos limites da competência internacional e não adentra a subdivisão interna do país.16 A adequação do exercício da jurisdição pela autoridade estrangeira para que os efeitos da decisão proferida sejam reconhecidos no Brasil, ou seja, a competência internacional, é que será examinada pelo STJ.

Em segundo momento, verifica-se que o STJ visa delimitar a juris-dição exclusiva nacional, sem preocupação explícita e consistente com os vínculos que os submetidos à jurisdição estrangeira com ela teriam. Ilustrativo é o seguinte fragmento de ementa:

[…] 1. É devida a homologação de sentença estrangeira que atenda os requisitos previstos no art. 15 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e nos arts. 216-A a 216-N do RISTJ, bem como não ofenda a soberania nacional, a ordem pública e a dignidade da pessoa humana (LINDB, art. 17; RISTJ, art. 216-F).

2. Não há óbice à homologação da sentença estrangeira que disponha apenas sobre guarda de menor e direito à percepção de alimentos e de visitas, sem trazer à discussão imóveis situados no Brasil, por

15 Para informar este estudo, utilizou-se investigação promovida em novembro de 2014 pelo autor, recolhendo considerável número de decisões do STJ em homologação de sentença estrangeira, entre os anos de 2010 e 2014. Pesquisa pontual por precedentes de data posterior também foi utilizada.16 STJ, Corte Especial, AgRg na SE 2714⁄GB, rel. Cesar Asfor Rocha, DJe 30 ago.2010. Na mesma linha, […] não interessa à ordem jurídica brasileira as divisões ou pecu-liaridades da competência interna dos países de origem da decisão, devendo o exame limitar-se à competência internacional ou geral (STJ, Corte Especial, SEC 4695, rel. Francisco Falcão, j. 7 maio 2012).Essa era a posição jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal (p. ex.: STF, SEC 05418, rel. Maurício Corrêa, j. 7out.1999).

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se tratar de causa de competência concorrente (CPC, art. 88), e não exclusiva, da autoridade judiciária brasileira (CPC, art. 89).

3. A competência internacional concorrente, prevista no art. 88, III, do Código de Processo Civil, não induz a litispendência, podendo a Justiça estrangeira julgar igualmente os casos a ela submetidos. Eventual concorrência entre sentença proferida pelo Judiciário brasileiro e a sentença estrangeira homologada pelo STJ, sobre a mesma questão, deve ser resolvida pela prevalência da que transitar em julgado em primeiro lugar. […]

(STJ, Corte Especial, SEC 12.897/EX, rel. Raul Araújo, j. 16dez,2015, DJe 2fev.2016)

A doutrina nacional assim expressa essa constatação (ARAU-JO, 2010, p. 57):

[…] há distinção entre as sentenças estrangeiras cujo conteúdo está abrangido pela competência exclusiva da autoridade judicial brasileira (art. 89 do CPC[1973]), daquelas referenciadas no âmbito da competência concorrente (art. 88 do CPC[1973]).

Apenas na primeira hipótese a sentença alienígena não será passível de homologação, pois a autoridade estrangeira classificar-se-á como incompetente […]

Como se vê, e perpassar a história das decisões confirma, o objeto do exame do requisito de autoridade estrangeira competente se limita a verificar se não há ofensa à jurisdição exclusiva nacional.

Uma interpretação mais restritiva do requisito legal pode ser ofere-cida neste estudo, com exigências mais precisas de vinculação do caso concreto com a autoridade estrangeira prolatora da decisão a homologar, como o fazem muitos países estrangeiros. O sentido desse controle, para além de exercício da proteção da jurisdição exclusiva nacional como bem executado pelo STJ, também é o de proteção ao jurisdicionado nacional, exigindo que a decisão estrangeira tenha sido proferida em situação na qual haja razoável envolvimento da pessoa afetada pela jurisdição estrangeira com aquele foro. Esta frase final expressa o que se examina neste estudo.

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2 Jurisdição internacionalA compreensão do problema da jurisdição internacional impõe

absorver o conceito de soberania e do monopólio de jurisdição que lhe é inerente (CASTRO, 1995, p. 527; JATAHY, 2003, p. 24) e constatar a existência de várias soberanias em convivência (os vários Estados). Tais percepções entrelaçam-se com conceitos de Direito Internacional Priva-do, cuja essência é admitir que a solução de determinado caso jurídico possa estar na regulamentação de outra soberania. Veja-se o comentário de Vera Jatahy (2003, p. 2):

[…] a solução do conflito de jurisdições interessa tanto ao Estado, na medida do exercício de sua soberania, quanto ao indivíduo, atento à salvaguarda de determinados direitos universais que lhe devem ser assegurados - o livre acesso à justiça e o respeito ao direito adquirido.

O estudo do conflito de jurisdições concorrentes situa-se num ponto em que se sobrepõem o direito internacional público e o direito internacional privado. […]

Examinar o problema da jurisdição internacional, ou da competência internacional, ou do conflito de jurisdições (JATAHY, 2003, p. 11), ou da competência geral (CASTRO, 1995, p. 527), significa buscar solução para a delimitação do poder próprio de determinado Estado, ou seja, quais são os limites em que se arroga o monopólio de jurisdição (JATAHY, 2003, p. 2-3; CASTRO, 1995, p. 527). Como consequência da constatação da existência de múltiplas soberanias e de suas jurisdições, a necessidade de convivência e delimitação de poderes absolutos e necessariamente excludentes exige a autolimitação, uma vez que seria ilógico admitir uma limitação externa de poder absoluto.

A decisão de certo Estado de delimitar a própria jurisdição está informada por critérios de conveniência, como expressão adequada de sua soberania (CASTRO, 1995, p. 528):

[…] O poder-dever de processar e julgar, como função de governo, existe em todas as jurisdições, mas há causas que a justiça de um país não deve processar, nem julgar, como estranhas à sua vida social, e outras de que deve tomar conhecimento como a ela pertinentes. E saber quais sejam as causas de que a justiça de um Estado deve, ou não, conhecer é problema que não pode ser resolvido senão em função desse Estado, e só em relação a esse mesmo Estado.

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Uma visão pragmática da decisão autolimitadora do poder de um Estado deve considerar a necessidade de atender ao modelo de monopólio de jurisdição em sua esfera de influência soberana, da qual a melhor expressão física é o território. A jurisdição não pode ser recusada: trata-se de dever do Estado de agir impedindo a vin-gança privada. Assim, a autolimitação da jurisdição será informada pela necessidade de oferecê-la adequadamente, em contraste com o necessário respeito à jurisdição estrangeira também soberana, e a constatação pragmática de que o exercício jurisdicional deve ser efetivo, ou seja, que o juiz prolator da sentença possa executá-la (CASTRO, 1995, p. 537).

O legislador brasileiro estabeleceu o limite máximo da jurisdição nacional, em matéria cível, através dos arts. 21 e 22 do CPC, e fixou a reserva de jurisdição exclusiva, os temas em que não admite jurisdição estrangeira sob qualquer forma, no art. 23 do CPC. Ao tomar essa deci-são, elegeu critério ou pontos de contato que constituem o expediente técnico pelo qual se refere à existência de uma vinculação entre o foro e a questão debatida. (STRENGER, 2003, p. 23).

Multiplicando-se o modelo até aqui descrito pelas variadas soberanias constatadas no universo humano, logo se verifica a possibilidade e necessidade de certas sentenças proferidas em uma das jurisdições tornarem-se eficazes em outra jurisdição. 17

Admitir a eficácia de sentenças estrangeiras pode estar entre as decisões que um Estado soberano toma por seu próprio poder, im-pondo certas condições e limites, que vão do óbvio de não admitir sentença estrangeira sobre temas que reservou para sua jurisdição exclusiva, até certos elementos de controle procedimental, como a oportunidade de adequada defesa.

A jurisdição internacional, portanto, será compreendida neste estudo como a delimitação autoimposta por cada um dos Estados soberanos quanto à jurisdição própria, considerada em relação ao exercício de

17 “[É] claro que nenhum Estado distribui justiça fora de sua jurisdição, mas nada im-pede, e tudo aconselha, que no forum se atribua validade a atos judiciais emanados de países estrangeiros, assim como se atribui valor a atos praticados por particulares.” (CASTRO, 1995, p. 551).

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jurisdição por Estado estrangeiro que possa vir a gerar efeitos no am-biente interno, mediante certas condições. É esta última face da questão, a admissão de efeitos da sentença estrangeira na jurisdição própria, que interessa a este estudo.

3 Jurisdição internacional indiretaEntende-se por jurisdição internacional indireta, ou mais preci-

samente declarando o conteúdo aqui pretendido examinar, o controle indireto da jurisdição internacional, a ação de determinado Estado, em momento de examinar as condições para que se gerem efeitos de sentença estrangeira em seu ambiente de influência política, de verificar se o exercício da jurisdição pelo juízo de origem se deu em condições de razoável vinculação àquele foro. Há certos parâmetros geralmente reconhecidos para essa verificação e que se propagam entre os variados países.

Irineu Strenger aponta algumas técnicas legislativas específicas para instrumentalizar a escolha desses parâmetros:

[…] o direito comparado oferece, quanto a regulamentação da competência judicial internacional de um país, opção entre duas técnicas legislativa: adotar regras específicas para a competência internacional de um lado, ou utilizar os mesmos critérios da com-petência interna adaptados ao campo internacional de outro lado. (STRENGER, 2003, p. 25).

No âmbito da primeira técnica apontada por Strenger, podem-se incluir as adotadas pelos países da tradição anglo-saxônica, em que o critério decisivo radica na possibilidade de que os órgãos estatais exer-çam um controle físico sobre a pessoa do demandado, e o sistema suíço, que se reserva jurisdição internacional exclusiva sobre pessoas naquele país domiciliadas (STRENGER, 2003, p. 25).

O sistema brasileiro é desse grupo que estabelece regras específicas para a jurisdição internacional, operando de forma negativa: quando há jurisdição exclusiva nacional (art. 23 do CPC) não se admite sentença estrangeira; quando há jurisdição concorrente (arts. 21 e 22 do CPC), admite-se a sentença estrangeira quando não conflitar com coisa julgada internamente estabelecida; quando não há jurisdição brasileira, admite-se

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a sentença estrangeira. Em todos os casos de admissão, controla-se o conteúdo para preservação da ordem pública interna.18

A segunda técnica se aplica aos países que têm conexão com a tra-dição germânica, que verificam a jurisdição internacional aplicando ao caso concreto as regras de fixação de jurisdição (competência!) internas, e verificando se o país de origem atende aos requisitos.

A questão é, portanto, como o país que está recebendo em seu ambiente soberano uma sentença estrangeira verificará se a jurisdição exercida pela autoridade estrangeira o foi de modo adequado. Esses são os indirect jurisdictional grounds, ou seja, os vínculos com o foro identificados pela autoridade estrangeira que legitimaram o exercício de seu poder.

Em considerável parcela dos países do mundo, a admissão de sen-tença estrangeira exige da autoridade que a proferiu demonstração de alguma vinculação fática com a causa decidida. Esses vínculos estão estabelecidos, em geral, com algum fato relevante da situação jurídica em exame e guardam grande semelhança com os elementos de conexão indi-cadores de lei aplicável nas operações de Direito Internacional Privado:

Entre os numerosos critérios existentes para atribuir competência judiciária internacional nas diversas matérias, pode-se mencionar os seguintes, de modo não exaustivo: nacionalidade, domicílio, re-sidência, pura presença física de uma pessoa em um território, sede social, lugar onde se situa determinado estabelecimento mercantil, lugar de situação de um bem, lugar de execução de uma obrigação, país do pavilhão de um navio, etc. Junto a tais critérios, existe outro fator que deve destacar-se por sua incidência na matéria: a autonomia da vontade, a qual, por si só é suscetível na maior parte dos casos de criar, entre o fato em causa e a jurisdição, a vinculação daquilo que aqui se aborda. (STRENGER, 2003, p. 24-25).

O problema apontado no tópico 2. deste estudo se evidencia exa-tamente porque o STJ não exercita o controle indireto da jurisdição estrangeira. Em poucas oportunidades as decisões de homologação

18 CPC, art. 963, inc. VI. Constituem requisitos indispensáveis à homologação da de-cisão: […] não conter manifesta ofensa à ordem pública.

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de sentença estrangeira no Brasil indicam que o exame de ser pro-ferida por autoridade competente a decisão homologanda se projeta para investigar se houve razoáveis vínculos da causa originária com a jurisdição estrangeira. São exemplos as seguintes passagens de decisões do STJ:

Compulsando os autos, verifica-se que o casal havia fixado domicí-lio no país a quo, razão porque é aplicável o disposto no art. 7º da LICC, estando, portanto, satisfeito o requisito previsto no inciso I do art. 5º da Resolução n. 9⁄2005.

(STJ, Corte Especial, SEC 2714 AgRg, rel. Cesar Asfor Rocha, j. 4 ago.2010)

[…] a competência da justiça inglesa é evidente: trata-se de ação de divórcio em face de cônjuge inglês, ao que tudo indica, residente no mesmo lugar do juízo sentenciante.

(STJ, Corte Especial, SEC 3341, rel. Laurita Vaz, j. 14 jun.2012)

Na hipótese, quanto ao primeiro requisito [haver sido proferida por autoridade competente], cabe salientar que a requerida sequer impugnou o fato alegado na inicial, no sentido de que os sete contratos de arrendamento, objeto da ação estrangeira, contêm cláusulas que elegeram aquele foro como competente. Ademais, pode-se verificar, da tradução juramentada da sentença homolo-ganda, que a competência do tribunal inglês foi reconhecida pela própria requerida (fl. 40).

(STJ, Corte Especial, SEC 06948 AgRg, rel. Nancy Andrighi, j. 17 dez.2012)

O domicílio das partes nos Estados Unidos da América define a competência das autoridades judiciárias daquele país e a conse-qüente aplicação da respectiva legislação (art. 7º, caput, da LINDB).

(STJ, Corte Especial, SEC 8267, rel. Ari Pargendler, j. 20 nov.2013)

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Na maioria dos casos, todavia, o exame da vinculação da causa com a jurisdição de origem não se dá de forma expressa:

[…] a sentença preenche todos os requisitos exigidos pela Resolução nº 9 desta Corte de Justiça, pois foi proferida por juiz competente, transitou em julgado e está devidamente autenticada pelo cônsul brasileiro e traduzida por tradutor oficial.

(STJ, Corte Especial, SEC 9419, rel. Maria Thereza de Assis Moura, j. 16 out.2013)

[…] Não há óbice à homologação da sentença estrangeira que disponha apenas sobre guarda de menor e direito à percepção de alimentos e de visitas, sem trazer à discussão imóveis situados no Brasil, por se tratar de causa de competência concorrente (CPC, art. 88), e não exclusiva, da autoridade judiciária brasileira (CPC, art. 89). […]

(STJ, Corte Especial, SEC 12.897/EX, rel. Raul Araújo, j. 16dez.2015, DJe 2 fev.2016)

Em outros países, essa verificação se faz de forma expressa, como requisito objetivo da admissão dos efeitos da sentença estrangeira. Os Estados Unidos da América examinam o exercício de jurisdição pela autoridade estrangeira com base em conceitos internacionais de exercício de jurisdição:

The most common ground for refusal to recognize or enforce a foreign judgment is lack of jurisdiction to adjudicate in respect of the judgment debtor. […] if the rendering court had jurisdiction under the laws of its own state, a court in the United States asked to recognize a foreign judgment should scrutinize the basis for asserting jurisdiction in the light of international concepts of juris-diction to adjudicate. See § 421. Since all the bases for jurisdiction to adjudicate listed in § 421 satisfy the requirements of due process in the United States, any foreign judgment rendered on one of those bases will be entitled to recognition, provided the facts support the assertion of jurisdiction.

(Restatement 3rd of the Foreign Relations Law of the U.S., § 482, p. 2-3, c)

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No Canadá, a exigência é de que haja uma real e substancial conexão da jurisdição estrangeira com os litigantes ou com o objeto da disputa:

Canadian courts, like many others, have adopted a generous and liberal approach to the recognition and enforcement of foreign judgments. To recognize and enforce such a judgment, the only prerequisite is that the foreign court had a real and substantial con-nection with the litigants or with the subject matter of the dispute, or that the traditional bases of jurisdiction were satisfied. […]

(Supreme Court of Canada, Chevron Corp. v. Yaiguaje, 2015 SCC 42, 4set.2015)

A já mencionada tabela comparativa de fundamentos para reconhe-cimento de jurisdição19 indica outras possibilidades, com predominância do método de espelhamento. Ilustrativamente, veja-se:

Argentina: sistema de espelhamento das regras de competência internas (art. 517 do Código de Processo Civil e Comercial)

Espanha: admite reconhecimento se houver uma razoável conexão entre a jurisdição de origem e a lide. A regra deriva de evolução jurisprudencial.

Identificar se a autoridade estrangeira prolatora de sentença a que se pretende dar eficácia no Brasil detinha jurisdição internacional para conhecer do caso significa perscrutar certas regras de jurisdição vincula-das à situação concreta. Os elementos de vinculação, sejam espelhados das regras nacionais sobre jurisdição internacional, sejam declarados expressamente, sejam indicados por fórmulas genéricas de razoável vin-culação, devem ser expressamente verificados pelas autoridades nacionais encarregadas de referendar a eficácia nacional da decisão estrangeira.

A importância de examinar, ou pelo menos compreender, a atividade de controle indireto da jurisdição internacional aparece na evolução do já mencionado Judgments Project da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado. O registro das origens do projeto no relatório explicativo da convenção de 2005 sobre eleição de foro em contratos

19 Ver nota de rodapé nº 4.

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internacionais pressupõe o controle indireto dos fundamentos da juris-dição exercida no estrangeiro como ponto de convergência de certos fundamentos comuns para exercício de jurisdição, que, quando exercidos sob essa forma, resultariam em circulação facilitada sob o regime da convenção sugerida:

[…] jurisdictional grounds are divided into three categories. There are lists of approved grounds of jurisdiction and of prohibited grounds of jurisdiction. All other grounds of jurisdiction fall into the so-called “grey area”. The idea is that where the court has jurisdic-tion on an approved ground, it can hear the case, and the resulting judgment will be recognised and enforced in other Contracting States under the Convention (provided certain other requirements are satisfied). A court of a Contracting State is not permitted to take jurisdiction on prohibited grounds. Courts are permitted to take jurisdiction on the “grey area” grounds, but the provisions of the Convention relating to recognition and enforcement will not apply to the resulting judgment. (HARTLEY; DOGAUCHI, 2005, p. 785).

A evolução desses conceitos, com as dificuldades a eles inerentes,20

resultou em uma minuta de convenção que arrola alguns fundamentos reconhecidos como autorizadores de circulação sob o regime da con-venção (white list, approved grounds for jurisdiction), que podem ser resumidos em21:

- domicílio da pessoa natural - art. 5.1(a e b)

- manutenção de filial, agência ou estabelecimento pela pessoa jurídica - art. 5.1(c)

- consentimento do réu com a jurisdição - art. 5.1(d)

20 “[…] it became apparent as work proceeded that it would not be possible to draw up a satisfactory text for a “mixed” convention within a reasonable period of time. The reasons for this included the wide differences in the existing rules of jurisdiction in dif-ferent States and the unforeseeable effects of technological developments, including the Internet, on the jurisdictional rules that might be laid down in the Convention. […].” (HARTLEY; DOGAUCHI, 2005, p. 785).21 Report of the fifth meeting of the working group on the judgments project (26-31 October 2015). Disponível em: <https://assets.hcch.net/docs/06811e9c-dddf-4619 -81af-71e8836c8d3e.pdf>. Acesso em: 24 abr.2016.

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- local do cumprimento da obrigação contratual - art. 5.1(e)

- local da prática do ato danoso - art. 5.1(f)

O domínio desses conceitos, que não destoam substancialmente das previsões de jurisdição nacional concorrente dos arts. 21 e 22 do CPC, será essencial para aperfeiçoar os critérios de admissão de eficácia de sentenças estrangeiras no Brasil, especificando o exame indireto da jurisdição internacional da autoridade estrangeira. Caso o Brasil resolva se engajar em uma futura convenção sobre circulação de sentenças es-trangeiras, como proposto no Judgments Project, o exame das condições de jurisdição deverá ser aprofundado, e as sentenças brasileiras que tiverem prospectiva eficácia no estrangeiro deverão expressar as razões pelas quais a jurisdição nacional foi admitida, como forma de facilitar o ajuste às regras de circulação.

ConclusõesA importância de avançar na especificação desse exame está em

outorgar maior proteção ao jurisdicionado nacional, que passará a compreender exatamente quais os limites em que o Estado brasileiro reconhece a jurisdição estrangeira. O jurisdicionado nacional ver-se-á protegido de ações judiciais de oportunidade intentadas no estrangeiro, como nos casos de difamação,22 utilizando jurisdições de conveniência que venham a impor condenação inatingível em outras jurisdições.

22 Para uma rápida visão sobre os casos de difamação e jurisdição de oportunidade, ver BELL 2008, p. 3: Libel tourists are claimants who, aggrieved by a publication that hurts their reputation, sue in a court outside their home country in order to increase the likelihood that they will win the case. Libel tourists are also referred to as defamation shoppers. This title emphasizes the shopper’s practice of searching for the best deal - in this case for the international jurisdiction friendliest to plaintiffs bringing libel or defamation claims.Libel tourism has reached the headlines recently due to an increase in the number of per-sons around the world who have discovered the advantages of bringing libel actions in England and other pro-plaintiff jurisdictions, notwithstanding the lack of substantial con-nection of either plaintiff or defendant with the country in which the suit is brought. England has become a magnet for such claims both because it welcomes cases with a thin English connection and because its libel law strongly favors the plaintiff, particularly in placing on the defendant speaker the burden of proving the truth of the challenged statement.

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Poder-se-ia argumentar que em tais situações a sentença estrangeira não seria admissível no Brasil por manifesta ofensa à ordem pública (inc. VI do art. 963 do CPC). Tal defesa, de fato, poderia ser sustentada, mas a incerteza, fluidez e inconstância desse conceito23 retira do ambiente a segurança necessária à previsibilidade inerente a um sistema jurídico que valoriza a eficiência econômica e a proteção das pessoas. Um tema profundamente técnico, tratado internamente no Brasil com elementos suficientemente precisos de definição de jurisdição internacional através da técnica de espelhamento, para controlar indiretamente a jurisdição internacional da autoridade estrangeira de que provenha sentença, é objetivo francamente alcançável.

O aperfeiçoamento desse sistema de controle, independente de qualquer alteração legislativa, já que é eventualmente aplicado como se viu em casos pontuais acima registrados, é medida que se impõe como instrumento de construção de jurisprudência em matéria de homolo-gação de sentença estrangeira no Brasil, que dará maior segurança ao jurisdicionado nacional. Tal atuação renovada permitiria reclassificar o Brasil removendo-o do grupo de países que não verificam a jurisdição estrangeira quanto ao vínculo da autoridade estrangeira com a causa decidida (completamente abertos) para o grupo de países que estabe-lecem regras para reconhecimento da jurisdição estrangeira, exigindo certos vínculos da autoridade estrangeira com a causa decidida (ver ).

Remanescem para pesquisa os temas da comparação de sistemas de controle indireto de jurisdição internacional, da busca mais ampla das decisões do Superior Tribunal de Justiça para catalogação e tabulação com objetivos quantitativos e qualitativos, e do aprofundamento do conceito de jurisdição internacional. Especificar essa pesquisa, reordenando as ideias com base em novos dados e informações, permitirá estabelecer um modelo de controle indireto da jurisdição internacional que seja apropriado para a realidade nacional, ao que se vislumbra sem qualquer alteração legislativa.

23 ARAUJO 2008, p. 326: [a ordem pública] funciona como uma válvula de escape, por força das regras de DIPr, quando é preciso impedir a aplicação da norma estran-geira competente, sendo de caráter indeterminado e mutante. […]

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A CONCILIAÇÃO NOS PROCESSOS EM FACE DO INSS COMO REALIZAÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS: À RAZOÁVEL DURAÇÃO

DO PROCESSO

FLAVIA FOPPAAdvogada, Especialista em Direito Público pela Escola da Magistratura Federal;

Especialista em Dieito Tributário pela Faculdade UniRitter e Conciliadora na Justiça Federal da Subseção Judiciária de Porto Alegre.

MARCELO SCHENK DUQUEDoutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha.

Pesquisador convidado junto ao Europa Institut da Universidade de Saarland, Alemanha. Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul – ESMAFE/RS e

de diversas instituições de ensino jurídico superior.

RESUMO: A conciliação é um instrumento operacional de prestação jurisdicional acessível, rápida e efetiva, cujo sucesso depende do em-penho das partes envolvidas. O estudo analisa os efeitos dos processos de conciliação perante o INSS, no âmbito da Justiça Federal da Subse-ção Judiciária de Porto Alegre. Parte do pressuposto de que o acesso à previdência social é um direito fundamental indispensável para a manutenção de uma vida digna. A partir da coleta de dados empíricos e de uma revisão bibliográfica, o estudo visa a analisar se, nos proce-dimentos de conciliação levados a efeito pelo INSS, o segurado acaba por renunciar ao exercício de um direito fundamental, de modo a afetar a garantia do mínimo essencial, ou se, alternativamente, a conciliação em matéria previdenciária afirma-se como um instrumento garantidor da dignidade humana.

PALAVRAS-CHAVE: Conciliação. Renúncia. Dignidade Humana. Direitos Fundamentais. Previdência Social.

1 IntroduçãoA relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito aponta para um

vínculo indissociável entre o mundo objetivo e as necessidades da pessoa. Na realidade fática, pesquisas de campo tendem a contribuir, significati-vamente, para o avanço das discussões teóricas. Neste sentido, o presente estudo tem por finalidade verificar em que medida os segurados do INSS que participam de processos de conciliação perante o INSS, acabam por

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renunciar ao exercício de direito fundamental de natureza social, de modo a afetar o seu mínimo existencial. Volta-se, portanto, a uma análise prática dos aspectos positivos e negativos gerados pela conciliação no âmbito previdenciário. Parte da premissa de que os processos de conciliação não estão imunes à incidência dos direitos fundamentais. A pesquisa vale--se da análise e da coleta de informações, a partir de entrevistas com os operadores do direito e com segurados que compareceram às audiências de conciliação no âmbito da jurisdição da Justiça Federal de Porto Alegre. A pesquisa possui caráter descritivo, a partir do momento que analisa as características de processos específicos de conciliação, recorrendo às técnicas de pesquisa de campo e revisão bibliográfica.

2 O acesso à justiça e a necessidade de políticas públicas

O direito está em constante mudança, o que faz necessária a evolução de todo o sistema que possibilita a aplicação do direito, principalmente no âmbito de acesso à justiça (LUDWIG, 2011, p. 8). Definindo a expressão acesso à justiça, de forma bem simplificada, pode-se dizer que “esse tema está amplamente ligado ao binômio possibilidade-viabilidade de acessar o sistema jurídico em igualdade de condições” (MORAIS, 2008, p. 32). Logo, ter acesso à justiça é ter acesso efetivo à tutela jurisdicional quando ela se torne imprescindível à resolução do conflito (LUDWIG, 2011, p. 8). Gradativamente o acesso à justiça passou a ser reconhecido como ponto importante dentre o novo rol de direitos individuais e sociais. Desta forma, o acesso à justiça tornou-se o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas proclamar os direitos de todos (ABREU, 2004, p. 35). Nesse compasso de evolução social e valorização do acesso à justiça, surgiu o Estado Democrático de Direito (AYOUB, 2005, p. 11).

O acesso à Justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir e não apenas declarar direitos (CAPPELLETTI, 1988, p. 11-12). Nesse sentido, não se pode falar de democracia sem o respeito às garan-tias dos direitos dos cidadãos, que, por sua vez, não serão eficazes, caso não exista livre acesso à justiça, independentemente de circunstâncias ligadas à classe social, sexo, raça, etnia e religião (FILHO, 2003, p. 96). Com esse pano de fundo, o acesso à justiça evidencia uma tomada de

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consciência dos problemas, necessidades e deveres fundamentais, para que se alcance uma resposta positiva aos anseios da sociedade (AYOUB, 2005, p. 11). Nessa perspectiva, o acesso à justiça afirma-se como um direito-garantia, sem o qual nenhum dos direitos reconhecidos e decla-rados tem exercício assegurado, aptos, assim, a desconstituir lesões ou ameaças. Logo, a Justiça não será verdadeira Justiça, se o processo não for capaz de solucionar os conflitos de interesse no plano da realidade dos fatos (FILHO, 2003, p. 150).

Essa reflexão resultou no processo de viabilidade de acesso à justiça, para manutenção de lesão ou ameaça de lesão de direitos constitucio-nalmente assegurados, os quais preservam os direitos fundamentais, conhecido como efetiva consolidação democrática (NOGUEIRA, 2004, p. 141). Forte, aqui, é a noção de que o acesso à justiça é um direito fundamental e, como tal, deve ser realizado em sua plenitude, em prol de todos, para se obter mais igualdade social (SANTOS, 1995, p. 283). Sendo assim, sem acesso aos direitos e à justiça, “de pouco vale o mero reconhecimento dos direitos e a instalação de mecanismos legais de proteção, e se esse mesmo acesso é, também em si, um direito, é que se indaga pela natureza desse direito do qual depende a realização de todos os outros.” (SANTOS, 1996, pp. 405- 420).

A necessidade de mudanças no sistema, no sentido de facilitar o acesso à justiça, foi se intensificando e se aprimorando, dando origem a iniciativas estatais com objetivo de ampliar o acesso à justiça e tornando--a mais efetiva. Dentre as iniciativas inerentes ao Estado do bem-estar social, podem-se citar os serviços de assistência Judiciária Gratuita. Outro aspecto que merece ser mencionado é o estreitamento nas relações entre a política e o direito, o que resultou na intensa institucionalização do direito na vida social e na própria política, com a consequente redefinição das relações entre os poderes, passando o Judiciário a assumir um protago-nismo visível na sociedade (ALVES, 2013, p. 25). Nesse contexto, a Gratuidade da justiça é um instrumento real de acesso à justiça, que veio em benefício das classes menos favorecidas, dando um grande passo no nosso sistema judiciário (NOGUEIRA, 2004, p. 142).

Outro ponto a ser considerado é a criação dos Juizados Especiais como forma de acesso à justiça e como mecanismo de agilização do processo judicial. A Constituição de 1988 aduz, no seu artigo 98, I,

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a criação de Juizados Especiais pela União, no Distrito Federal nos Territórios, e pelos Estados, “providos por juízes togados ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menos potencial ofensivo”. A partir daí, a Constituição despertou na popu-lação a esperança de que o Poder judiciário era a solução para todos os problemas brasileiros. A descoberta da cidadania, ao menos pelas associações representativas de direitos, fez tornar normal a busca pelo Judiciário (SILVA, 2004, p. 21).

Em suma, a partir dos movimentos inovadores que facilitaram o acesso à justiça, surgiram alguns aspectos que refletiram negativa-mente, pois a sociedade, ao se socorrer do Estado para resolver os seus conflitos, obteve dificuldades com os obstáculos processuais, que causavam a morosidade do processo (AYOUB, 2005, p. 17). Nessa linha de pensamento, percebeu-se a necessidade de obter uma prestação jurisdicional em tempo mais razoável (WATANABE, 2011, p. 382). O processo não poderia mais ser visto como puro instrumental jurídico alicerçado em métodos técnico-científicos. Consequente-mente, era fundamental uma mudança, para que se considerasse não apenas a esfera jurídica, mas também o âmbito social e político da função jurisdicional (SOUSA, 2004, p. 19). O acesso a procedimentos judiciais racionais, com efetividade não apenas do ponto de vista das suas decisões, mas também da celeridade mínima que deles se espera, são imperativos de um dever constitucional de proteção do Estado, que traduz, ao fim e ao cabo, a finalidade do agir estatal em relação à pessoa (DUQUE, 2013, p. 314ss).

É nítida, pois, a influência democrática arraigada e assegurada pela Constituição de 1988, na qual evidencia a participação da sociedade civil, maior interessada e destinatária das decisões tomadas pelo Poder Judiciário ou por uma nova forma alternativa de solução do conflito, seja pela mediação, conciliação, negociação ou arbitragem (AYOUB, 2005, p. 17). A partir da definição do Movimento pela Conciliação como polí-tica nacional, sob a coordenação permanente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e com a participação de todos os envolvidos, experimen-tou-se uma verdadeira e profunda mudança na cultura da litigiosidade (PACHÁ, 2014).

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Nessa esteira, convém lembrar as palavras de Cesar Peluzo,1 que, quando na posse da Presidência do STF, externou entendimento a respeito dos problemas que acometem o Judiciário brasileiro: “O mecanismo judicial de hoje, é a velha solução adjudicada, que se dá mediante pro-dução de sentenças e, em cujo seio, sob fluxo de uma arraigada cultura de dilação, proliferam os recursos inúteis e as execuções extremamente morosas e, não raro, ineficazes”.

Diante dessa afirmativa, percebe-se a necessidade de modificação do nosso sistema, no sentido de inovar com meios alternativos de solução de conflito, que sejam oferecidos aos cidadãos como instrumento facultativo de exercício da função constitucional de resolver conflitos. Em outras palavras, é preciso institucionalizar, no plano nacional, os meios alter-nativos de solução de conflito, como instrumento operacional eficaz de prestação jurisdicional acessível, rápido e efetivo (WATANABE, 2011, p. 388). Está-se, aqui, diante de um método cooperativo de resolução do conflito, que tem por objetivo colocar fim ao conflito manifesto (FIO-RELLI, 2008, p. 55). Importa dizer que a criação de análoga política pelo CNJ, além de criar um importante filtro da litigiosidade, estimulará em nível nacional o nascimento de uma nova cultura de solução nego-ciada e amigável dos conflitos (WATANABE, 2011, p. 385). Com esse fundamento na necessidade de buscar novas alternativas de solução de conflitos, torne-se indispensável entender o que é conciliação.

2.1 Conceito de ConciliaçãoAo longo dos anos, o Estado vem perdendo forças; o excesso de

burocracia resultou em crise, para si e todas as suas instituições. A globalização cultural somada às modificações políticas e econômicas fomentou a crise Judiciária (MORAIS, 2008, p. 77). Nesse contexto dinâmico e exigente, mostra-se como derradeira a necessidade de no-vas alternativas para a solução de conflitos. Avocado esse movimento evolutivo, surge como possibilidade de solução de conflito a concilia-ção que é realizada pela comunidade ativa, um estágio avançado de

1 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/discur-soPeluso.pdf>.

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cidadania participativa. A característica evolutiva do organismo social, do movimento em busca do novo, trouxe à tona o próprio operador do Direito, colocando-o em posição de destaque nesse processo transfor-mador (AYOUB, 2005, p. 16).

Um marco importante no Brasil deu-se a partir da década de 80, período em que surgiram as primeiras experiências concretas no sentido de se permitir um maior acesso à justiça, quando os membros da magis-tratura do Rio Grande do Sul tomaram a iniciativa de criar os Conselhos de Conciliação e Arbitragem (SOUSA, 2004, p. 21). Esses Conselhos tinham autonomia para decidir, extrajudicialmente, os conflitos com valores de até 40 ORTNs, cujo objetivo era a rapidez para resolver os conflitos de menor complexidade (FILHO, 2003, p. 250-251). Com efeito, após a criação dos Conselhos de Conciliação e Arbitragem, editou-se a Lei Federal n. 7.244, a qual instituía os Juizados de pequenas Causas para dirimir os conflitos de menor complexidade e de valor econômico pouco expressivo (SOUSA, 2004, p. 21).

A partir daí, com o advento da Constituição de 1988, restou obriga-tória a criação de Juizados Especiais, no âmbito da União, dos Estados e do Distrito Federal, conforme preceitua o artigo 98, inciso I. Contu-do, somente em 1995, após a promulgação da Lei n. 9.099/95, que se ampliou a competência para a área criminal e cível, ficando adstrito ao valor máximo de 40 salários mínimos. Somente em 1999, com a apro-vação da Emenda Constitucional n. 22, a competência estendeu-se para o âmbito da Justiça Federal, sendo regulamentada pela Lei n. 10.259/01, ficando limitada ao valor máximo de 60 salários mínimos (FILHO, 2003, p. 250-251). Logo, os Juizados Especiais constituem-se, em verdade, num inovador sistema jurídico direcionado para a solução dos conflitos de menor complexidade, buscando, sempre que possível, a conciliação das partes (SOUSA, 2004, p. 27).

Foi a partir da criação dos Juizados Especiais que a conciliação passou a ganhar ênfase no sistema judiciário. O destaque é sua natureza como processo de informação, mediante a participação de um terceiro interveniente, cujo papel é atuar como instrumento de ligação e comu-nicação entre as partes, para conduzi-las ao entendimento, por meio da identificação dos problemas e possíveis soluções. Todavia, importa dizer que a conciliação nos Juizados Especiais somente foi prevista de forma

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judicial (FILHO, 2003, p. 265). Em paralelo a essas mudanças, surgiram as chamadas “ondas”, que indicam tentativas de superar as dificuldades econômicas que obstruíam o acesso à justiça, paralelamente ao ataque da problemática organizacional, característica do aparato judicial, em sua visão tradicional (AYOUB, 2005, p. 17).

É fundamental ressaltar que o processo é, ao lado da autocomposição e das demais formas de heterocomposição, apenas um meio para obter a defesa do direito subjetivo e a paz jurídica (LUDWIG, 2011, p. 14). Nessa linha, os métodos alternativos de solução de conflitos, conhecidos como ADR (Alternative Dispute Resolution) passaram a experimentar uma crescente evolução, mesmo na linha de críticas e resistências das chamadas ondas, que tinham como objetivo desenvolver maneiras de expressar as responsabilidades dos operadores do direito. Entretanto, os fundamentos e finalidades desses institutos alternativos refletem a verdadeira essência do movimento revolucionário a que se fez referência, tornando a justiça efetivamente acessível a segmentos cada vez mais amplos da população (AYOUB, 2005, p. 17).

Importa aqui destacar que heterocomposição é o método alternativo em que a solução para o conflito fica adstrita a um terceiro decidir, ou seja, é dele a responsabilidade de determinar o que as partes devem ou não fazer. Em contrapartida, a autocomposição recebe essa denominação, pois conforme o termo indica, são as partes que buscam uma solução sem a decisão ou determinação de um terceiro. Como exemplos de “Mé-todos Alternativos de Gestão de Conflitos”, pode-se citar a negociação, a conciliação e a mediação (FIORELLI, 2008, p. 51).

É cabível salientar que a busca pela resolução consensual entre as partes é antiga na legislação brasileira. A Constituição, de 1824, como pioneira, já previa, em seu artigo 161, que “sem se fazer constar, que se tem intentado o meio da reconciliação, não se começará Processo algum”, ou seja, sem a comprovação de que o autor havia buscado a autocomposição com o réu, processualmente não haveria interesse de agir (CARDOSO, 2010, p. 105). Com essa visão, ainda nos dias de hoje, nada impede, ao contrário, que mesmo instaurada a lide, as partes sejam convocadas para a audiência onde sejam esclarecidas a respeito das van-tagens e da existência do processo de mediação para que dele possam lançar mão na solução do litígio (FILHO, 2003, p. 265).

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Foi justamente essa crise, marcada pela incapacidade do Estado de monopolizar o processo judiciário, que emergiu a evolução de proce-dimentos jurisdicionais alternativos, como a arbitragem, a mediação, a conciliação e a negociação, no sentido de obter rapidez e informalidade (MORAIS, 2008, p. 77). Frisa-se que, sem ou com pouca interferência da máquina estatal, o que se busca é o tratamento de conflitos onde estes se originam, onde se obtém a ação direta das partes nele envolvidas, tendo base diferenciadora a participação de um conciliador (AYOUB, 2005, p. 17-18). Essa linha de pensamento segue para que se possa garantir a cada cidadão o pleno acesso à justiça, ciente de que, em nossa sociedade, esses anseios não podem mais ser atendidos apenas por um Poder Judi-ciário sobrecarregado e desaparelhado (NEVES, 2004, p. 137).

Diante de tais circunstâncias, para enfrentar a crescente demanda gerada pela excessiva jurisdicionalização dos conflitos, é que começou a se desenhar uma nova proposta surgida do próprio Judiciário: a com-posição dos litígios pela conciliação (PACHÁ, 2014). Significa que a iniciativa do CNJ, ao lançar o programa pela conciliação, não apenas estimula e orienta os órgãos judiciários neste caminho, mas também exorta as autoridades públicas e a comunidade jurídica em geral para a necessidade de revisão de conceitos não necessariamente marcados pela funcionalidade (FERRAZ, 2014). A partir de então, o CNJ dedicou-se à formação permanente de conciliadores. Atividades de formação e mul-tiplicação foram realizadas em todas as regiões do país e contaram com a participação de magistrados e servidores da Justiça (GRACIE, 2014).

Nesse contexto, cabe ao Poder Judiciário promover todos os meios necessários para dirimir os litígios postos a sua apreciação. Sendo assim, a forma mais rápida de materializar isso é propor formas de alcançar a conciliação. Dentro de um discurso ético, a cada pessoa é dado o direito de agir, podendo fazer tudo aquilo que não prejudica a liberdade ou di-reito de terceiros (PINHEIRO, 2014). É de suma importância dizer que na conciliação “não existem vencedores nem perdedores, são as partes que constroem a solução para os próprios problemas, tornando-se res-ponsáveis pelos compromissos que assumem, resgatando, tanto quanto possível, a capacidade de relacionamento.” (FERRAZ, 2014). No âmbito dos direitos fundamentais, é razoável dizer que a conciliação preserva a garantia constitucional do acesso à Justiça e consolida a ideia de que um acordo bem construído tende a ser a melhor solução (PACHÁ, 2014).

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Entretanto, é imperioso salientar que nem sempre a conciliação será o meio mais indicado a solucionar os conflitos. Isso porque a con-ciliação poderá ser judicial ou extrajudicial. Tudo dependerá do caso a ser analisado (PIRES, 2002, p. 139). Há situações que demandam a atividade substitutiva do Poder Judiciário, na forma de um verdadeiro julgamento, apto a balizar os comportamentos. Sem embargo, a conci-liação sempre deve ser a primeira alternativa e a mais estimulada como instrumento de grande potencial que é para a pacificação dos conflitos (FERRAZ, 2014).

Em termos de iniciativa, o CNJ promoveu, nos primeiros dias de dezembro, a Semana da Conciliação. Essa realização é o ponto alto de um projeto nacional, permanente e cada vez mais consolidado na Justiça brasileira: o “Movimento Conciliar é Legal” (PACHÁ, 2014). Ressalta-se, Conciliar é legal não apenas porque traz maiores benefícios às partes e efetividade às demandas judiciais, mas também porque tem justificativa na lei e na Constituição (FERRAZ, 2014). Além do mais, é mais relevante para o juiz um acordo amigável, mediante uma conciliação das partes, do que uma sentença brilhante proferida e que venha a ser confirmada (ou não) pelos tribunais superiores (WATANABE, 2014).

Para compreender ainda mais a importância da conciliação e a ne-cessidade de fortalecer e disseminar essa ferramenta, é necessário traçar algumas ponderações acerca de quem atua na prestação jurisdicional, ou seja, quem pode conciliar.

2.2 Quem pode conciliar?A iniciativa de conciliar na Justiça Federal, em processos em face

do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), fundamenta-se a partir da Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que considera tanto a conciliação como a mediação instrumentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios. Importa dizer que, de acordo com o artigo 2º, inciso II, da Resolução n. 125/2010 do CNJ, “na implementação da Política Judiciária Nacional, com vista à boa qualidade dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados: adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores”.

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Desse modo, considerando a Resolução n. 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça, que prima pela boa qualidade dos serviços, tem-se especialmente no seu art. 12, “nos Centros, bem como todos os demais órgãos judiciários nos quais se realizem sessões de conciliação e media-ção, somente serão admitidos mediadores e conciliadores capacitados na forma deste ato, cabendo aos Tribunais, antes da instalação, realizar curso de capacitação”, e a Resolução n. 15/2011 do TRF da 4ª Região, que dispõe sobre a adequação e ampliação do sistema de conciliação da Justiça Federal da 4ª Região à política Judiciária Nacional de tratamento dos conflitos de interesse, especialmente no que concerne ao art. 11, que trata dos mediadores e conciliadores (Centro Judiciário de Soluções de Conflitos e Cidadania [CEJUSCON], 2012).

Aduz o art. 8º, parágrafo 2º, do CNJ, “Os Tribunais deverão assegurar que nos Centros atuem servidores com dedicação exclusiva, todos capaci-tados em métodos consensuais de solução de conflitos e, pelo menos, um deles capacitado também para a triagem e encaminhamento adequado dos casos”. Assim como o art. 12, parágrafo 2º, do CNJ prevê que “todos os conciliadores, mediadores e outros especialistas em métodos consensuais de solução de conflitos deverão submeter-se a reciclagem permanente e à avaliação do usuário.” (BRASIL, Resolução n.125, 2010).

Nessa esteira, o Planejamento Estratégico da Justiça Federal do Rio Grande do Sul criou um projeto de participação de alunos da Ma-gistratura Federal no Rio Grande do Sul (ESMAFE) como conciliadores ou mediadores na Justiça Federal. Os coordenadores do Projeto foram o Juiz Federal Hermes Siedler da Conceição Júnior (Coordenador do CEJUSCON) e o Juiz Federal Substituto Gerson Godinho da Costa (Di-retor-Geral da ESMAFE). O Projeto teve como base o art. 12, parágrafo 1º, do CNJ, o qual prevê que todos os mediadores e conciliadores deverão realizar curso de capacitação, curso de treinamento e aperfeiçoamento, como condição prévia de atuação nos Centros. Aduz o art. 1º do Projeto do Planejamento Estratégico que será facultado aos magistrados, caso entendam conveniente, “a nomeação de mediadores e ou conciliadores, voluntários e não remunerados, regularmente matriculados no curso da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, devendo estes mediadores e ou conciliadores, ter reputação ilibada e vocação para a conciliação” (CEJUSCON, 2012).

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De acordo com o art. 10 da Resolução n. 15/2011, poderão atuar como mediadores e ou conciliadores, voluntários e não remunerados: “Magistrados, Procuradores de Estado ou integrantes de qualquer carreira jurídica do Poder Judiciário, advogados, estagiários, psicólogos, assis-tentes sociais e outros profissionais com formação universitária, desde que, tenham reputação ilibada e vocação para a conciliação.” (BRASIL, Resolução n. 15, 2011). Cada voluntário deverá submeter-se a um curso preparatório de conciliação, o “Curso Básico de Conciliação”, realizado no Tribunal Regional da 4ª Região, tendo uma carga horária de 45 horas (CEJUSCON, 2012). Por sua vez, o Portal da Conciliação tem previsão no art. 15 da Resolução n. 125/2010 do CNJ e tem a função de disponi-bilizar, no âmbito do CNJ, na rede mundial de computadores: publicação das diretrizes de capacitação de conciliadores e mediadores; relatórios gerenciais do programa; compartilhamento de boas práticas, projetos etc.; fórum permanente de discussão; divulgação de notícias relacionadas ao tema; relatórios de atividades da “Semana da Conciliação” (BRASIL, Resolução n. 125, 2010).

A figura do conciliador já tem previsão no nosso ordenamento ju-rídico. Muito antes da ocorrência de conciliação no âmbito da Justiça Federal, a Lei n. 9.099/1995, no seu art. 7º, descreve que “Os concilia-dores e Juízes leigos são auxiliares da Justiça, recrutados, os primeiros, preferentemente, entre os bacharéis em Direito, e os segundos, entre ad-vogados com mais de cinco anos de experiência” (BRASIL, Lei n. 9.099, 2014). Temos ainda, no art. 18 da Lei n. 10.259/2001, que “Os Juizados Especiais serão instalados por decisão do Tribunal Regional Federal. O Juiz presidente do Juizado designará os conciliadores pelo período de dois anos, admitida a recondução” (BRASIL, Lei n. 10.259, 2001). Nos termos da resolução n. 32/2008 do Conselho de Justiça Federal (CJF), no seu art. 1º, parágrafo 6º, “O juiz que presidir o juizado designará o conciliador pelo período de 2 (dois) anos, admitida a recondução, após o preenchimento do termo de adesão e compromisso anexo” (BRASIL, Resolução n. 32, 2008).

Frisa-se, o Conselho Nacional de Justiça com o intuito de pre-servar a qualidade dos serviços de conciliação e mediação enquanto instrumento de pacificação social e de prevenção de litígios, instituiu o Código de Ética, conforme Anexo III da Resolução n. 125/2010 do

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CNJ. O art. 1º do Anexo III traz um rol de princípios fundamentais que são norteadores da atuação dos conciliadores e mediadores judiciais: “confidencialidade, decisão informada, competência, imparcialidade, independência e autonomia, respeito à ordem pública e às leis vigentes, empoderamento e validação” (BRASIL, Resolução n. 125, 2010). Se-gundo o art. 1º, parágrafo 2º, do Projeto de Planejamento Estratégico, “os mediadores e conciliadores firmarão compromisso de bem desenvolver suas atividades, na forma da Lei do Voluntariado e sob as penas da lei” (CEJUSCON, 2012).

Dentre as responsabilidades e sanções do conciliador e ou media-dor, podemos destacar que “o conciliador e ou mediador deve exercer suas funções com lisura, respeitar os princípios e regras do Código de Ética, assinar, para tanto, no início do exercício, termo de compromisso e submeter-se às orientações do Juiz Coordenador da unidade a que es-teja vinculado”, conforme o seu art. 4º. Assim como aduz o art. 8º que “o descumprimento dos princípios e regras estabelecidos neste Código, bem como a condenação definitiva em processo criminal, resultará na exclusão do conciliador do respectivo cadastro e no impedimento para atuar nesta função em qualquer outro órgão do Poder Judiciário Nacional” (BRASIL, Resolução n. 125, 2010).

Destarte, é necessário que os agentes envolvidos – magistrados, promotores, advogados, defensores e principalmente as próprias partes – promovam profunda alteração de mentalidade e adotem a disposição de modificar condutas consolidadas por longos anos de atuação com foco na litigiosidade. Nesse pano de fundo, o Conselho Nacional de Justiça, que tem como competência zelar pela eficiência operacional, ao acesso ao sistema de justiça, bem como fazer valer o art. 37 da nossa Carta Magna, considerou a conciliação a melhor medida a ser tomada (GRACIE, 2014). Sendo assim, um dos pontos a serem observados neste trabalho são os aspectos positivos e negativos da conciliação.

3 Conciliação: aspectos positivos e negativosO homem é um ser pleno de necessidades e busca satisfazê-las vi-

vendo em sociedade. Sendo assim, não se pode conceber uma sociedade em que não haja direito. Para que a sociedade possa subsistir, tem de

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contar com um mecanismo regulador do comportamento dos indivíduos em diferentes grupos (FILHO, 2003, p.73). Nesse horizonte, o acesso à justiça assume caráter de justiça social e de o mais fundamental dos direitos humanos, constituindo-se em obrigação essencial e indelegá-vel do Estado, configurando, assim, um dos pressupostos da cidadania (ABREU, 2004, p. 29). A partir daí, foram intensificadas e aprimoradas algumas iniciativas por parte dos organismos estatais para ampliar o efetivo acesso dos mais carentes à prestação jurisdicional, aprofundan-do-se as medidas e políticas sociais que já vinham sendo adotadas nesse sentido dentro das diretrizes inerentes ao Estado socialmente vinculado (ALVES, 2013, p. 13).

Importa dizer que o acesso efetivo à justiça tem sido progressiva-mente reconhecido como de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais. A titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação (ABREU, 2004, p. 35). Ressalta-se que o reconhecimento da jurisdição como um direito fundamental do cidadão eleva esta atividade à dimensão de um verdadeiro dever-poder do Estado, na medida em que cria para o ente público uma obrigação de caráter irrecusável em relação ao cidadão (FILHO, 2003, p. 94).

Na perspectiva de busca pelo efetivo acesso à justiça, o Poder Judi-ciário Nacional passou a enfrentar uma imensa crise, resultante da sobre-carga excessiva de processos, o qual atingiu diretamente o desempenho do Judiciário colocando em risco a sua credibilidade (WATANABE, 2011, p. 382). A partir daí, fez-se necessário buscar novas formas alternativas de solução de conflito, deixando o processo de ser a via única para a contestação da conflitualidade social e, como consequência, o Judici-ário afastou-se da posição de monopolizador de solução dos conflitos (FILHO, 2003, p. 248).

Nesse novo contexto, foram incorporados ao nosso sistema meios alternativos de solução de conflitos, não só com o objetivo de reduzir a quantidades de sentenças, de recursos e de execuções, mas principalmente com o intuito fundamental de transformação social com mudança de mentalidade (WATANABE, 2011, p. 382). Dentre os meios alternativos e informais de solução de conflitos, utilizados com o fim de aprimorar a prestação jurisdicional, tem-se a conciliação, a qual possibilita critérios

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de igualdade social distributiva e na participação de membros da própria comunidade (AYOUB, 2005, p. 17).

Contudo, assim como toda a inovação, as mudanças de mecanismos do processo jurisdicional, as facilitações de acesso à justiça, através de meios alternativos de solução de conflitos, trouxeram aspectos tanto posi-tivos quanto negativos. Dentro dos aspectos positivos, tem-se a mediação como um processo colaborativo, no qual é estimulado o tratamento cordial entre as partes, devolvendo a autoestima aos participantes; o tempo tam-bém é um fator positivo, pois esse procedimento, na maioria das vezes, é mais curto do que o procedimento judicial e os custos, menores. Já no ponto de vista negativo, tem-se o fato de que nem sempre a mediação comporta o tamanho e a intensidade do conflito; existem situações que não podem ser mediadas (MORAIS, 2008, p. 146).

Para uma melhor análise dos aspectos tanto positivos como negati-vos, serão explicitados alguns pontos de vista dos operadores do direito que atuam na Justiça Federal da Subseção Judiciária de Porto Alegre/RS, nos processos de Conciliação em face do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Clara, aqui, é a ideia de que a conciliação é “uma forma alternativa rápida de solução de conflitos, onde ambas as partes devem ceder para tal composição. De regra, tem se apresentado como uma ótima opção para o segurado, mas a questão deve ser analisada individualmente” (GREGÓRIO, 2014).

Outros aspectos positivos: “a ação é muita rápida e o pagamento sai em poucos meses. A parte pode expor sua situação fática e a sentença é construída pelas partes. A renúncia de 5% é mínima. Muitos acordos superam inclusive as expectativas de sentença” (GIUSTINA, 2014). A conciliação “atende aos anseios do segurado de forma mais célere e, principalmente, lhe oportuniza sentir-se partícipe do processo. Na conciliação, o segurado ganha voz, faz uma opção, ainda que restrita, já que do outro lado temos um ente público com limites objetivos para transigir” (LOPES, 2014).

Frisa-se, “a vantagem para o INSS seria a economia feita pela conci-liação, que atualmente é de apenas 5%. Para a AGU o acordo possibilita a redução de demandas, assim a Instituição pode se dedicar a outras causas” (GIUSTINA, 2014). Nessa mesma esteira, importa dizer que há uma economia com o “deságio no pagamento dos benefícios; ganho

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de tempo despendido com a instrução dos processos; não pagamento de juros pelo atraso no pagamento do débito; redução do acervo judicial; maior satisfação dos segurados com o recebimento imediato da verba a que tem direito” (GREGÓRIO, 2014). Cabe destacar que “para o acor-do só vão processos em que já há uma prova pericial judicializada da incapacidade do segurado, a qual, salvo forte prova em contrário, será por regra, acolhida pelo magistrado” (LOPES, 2014).

Todavia, “não se pode atestar que a conciliação é a melhor opção, até porque nem todos os casos são compatíveis de conciliação” (GIUS-TINA, 2014). Muitas vezes, a conciliação não é o meio de solução de conflito mais benéfica, por exemplo, “nas hipóteses em que comprovada a invalidez permanente em período muito remoto; para efeitos de acordo, a conversão em invalidez só ocorreria na data da perícia. Talvez, se o processo fosse a julgamento, o autor teria um valor de atrasados muito maior” (LOPES, 2014).

Frisa-se, hoje, na Justiça Federal da Subseção Judiciária de Porto Alegre, nos acordos de conciliação nos processos em face do INSS, “o per-centual acordado é de 95% dos atrasados, o maior beneficiário deveria ser o segurado, visto que abrevia a duração do processo e ameniza seu trauma socioeconômico” (GIUSTINA, 2014). Nesse sentido, a desvantagem seria da Autarquia, “apenas de ordem financeira, ou seja, o desembolso imedia-to do valor relativo aos benefícios a serem pagos” (GREGÓRIO, 2014). Contudo, “os grandes beneficiários dos acordos são os grandes escritórios de advocacia que cobram honorários contratuais de 30% dos atrasados além de outros aditivos. O acordo somente seria o melhor caminho se o cidadão pudesse acessar diretamente o Judiciário” (GIUSTINA, 2014).

Outro aspecto negativo que merece destaque é a desvantagem do acordo para a AGU, ou seja, “o risco que o Procurador avoca para si, já que eventual erro ou fraude na conciliação configura responsabilização do Advogado Público” (GIUSTINA, 2014). Ressalta-se que, para o INSS, “a desvantagem é a perda do direito de impugnar o laudo pericial judicial e a perda do direito de recurso” (AQUINO, 2014), considerando ainda “a banalização da concessão dos benefícios de incapacidade. O custo social do benefício atingiu índices preocupantes e muitas pessoas estão preferindo buscar a aposentadoria por invalidez, do que cumprir requisitos para outras formas de aposentadoria” (GIUSTINA, 2014).

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Diante de toda análise feita até aqui em relação aos aspectos tanto positivos quanto negativos, conclui-se que a conciliação é uma “forma alternativa rápida de solução de conflitos, onde ambas as partes devem ceder para tal composição” (GREGÓRIO, 2014). Logo, “não existem vencedores nem perdedores, são as partes que constroem a solução para os próprios problemas, tornando-se responsáveis pelos compromissos que assumem, resgatando, tanto quanto possível, a capacidade de rela-cionamento” (FERRAZ, 2014).

Nesse aspecto, é de suma importância, considerando os direitos fundamentais, analisar até que ponto as partes podem renunciar a um direito, sem que se violem os seus direitos individuais.

3.1 Possibilidade de renúncia ao exercício de direitos funda-mentais

Os direitos fundamentais, diga-se, “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 2004, p. 19). Importa saber que, em sua concepção contemporânea, são fruto de experiências históricas distintas, cujo traço comum foi revelar a importância do resgate de uma tradição, em que o ponto de partida é a pessoa (DUQUE, 2014, p. 31). Sendo assim, o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas, sob outras circunstâncias, ou em outras culturas (BOBBIO, 2004, p. 20).

Nesse contexto, isso influenciou e constituiu, a seu tempo, o motivo condutor (leitmotiv) da cultura jurídica contemporânea (MARQUES, 2006, p. 587), que é exatamente o papel primordial dos direitos huma-nos, em um cenário no qual a pessoa humana está focada no centro do direito (DUQUE, 2014, p. 35). Essa visão está diretamente ligada a uma exigência idealizada de democracia, que sustenta a crença em torno da construção de uma comunidade de homens livres e iguais, autênticos coautores das leis que regem o viver comum, num cenário onde a liber-dade requer respeito às diferenças, pressupondo o reconhecimento da igualdade de todos, embora diferentes (FILHO, 2003, p. 70).

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Diante do que foi exposto, é muito comum encontrar na doutrina afirmações no sentido de serem irrenunciáveis os direitos fundamentais. “Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê--los, mas não se admite sejam renunciados ” (SILVA, 1999, p. 185). Ao encontro desse entendimento, de que não se pode aceitar a renúncia à titularidade de um direito fundamental, mas tão somente a renúncia ao exercício de tal direito, há quem sustente que se deve distinguir entre renúncia ao núcleo substancial do direito (inadmissível) e limitação voluntária ao exercício de direitos (permitida sob certas condições) (CANOTILHO, 2003, p. 146). Em contrapartida, sustenta-se que ne-nhum direito fundamental é absoluto. Com efeito, direito absoluto é uma contradição em termos. Mesmo os direitos fundamentais sendo básicos, não são absolutos, na medida em que podem ser relativizados (FILHO, 2014). Em verdade, é inadmissível a renúncia a direitos fun-damentais. Eventualmente, pode-se renunciar ao exercício concreto de determinados direitos, sob determinadas circunstâncias, sempre ciente de que a admissibilidade da renúncia a direito fundamental depende da disponibilidade do bem jurídico protegido jurídico-fundamentalmente (DUQUE, 2014, p. 101).

Para que se possa entender a possibilidade de renúncia ao exercício dos direitos fundamentais, essa análise deve ser feita a partir de um “re-ferencial teórico que se sustenta no trinômio ‘âmbito de proteção-núcleo essencial-princípio da proporcionalidade’ a partir das diferenciações entre os princípios e regras, noções sem as quais os discursos dos direitos fundamentais perdem em objetividade e em coerência” (KAUFMANN, 2013, p. 105). Todavia, importa aqui considerar que relevante para a constatação da admissibilidade de uma renúncia ao exercício dos direitos fundamentais é a verificação dos fundamentos que levaram à sua efe-tivação. Isso porque a renúncia não pode ter como fundamento a mera existência do poder estatal ou privado (DUQUE, 2014, p. 107).

Em relação ao núcleo essencial, cabe dizer que sua principal função é definir os limites da flexibilização, diga-se, precisar um limite para a atuação legislativa, em relação aos direitos fundamentais, de forma que não atinja aquele conteúdo mínimo inviolável da norma constitucional, sob pena de incorrer em inconstitucionalidade (KAUFMANN, 2013, p. 106). Dessa forma, uma vez considerado o conteúdo essencial como

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o núcleo de um direito fundamental e, portanto, figurando este como limite dos limites (DUQUE, 2014, p. 281s.), conclui-se que o conteúdo essencial veda qualquer tentativa reguladora do legislador, como uma verdadeira muralha frente ao mesmo (MATOS, 2014).

Quanto ao princípio da proporcionalidade, é “considerado um sub-princípio da razoabilidade como forte sistematização no direito alemão, possuindo os seguintes aspectos, segundo a doutrina germânica: (I) ade-quação; (II) necessidade; e (III) proporcionalidade em sentido estrito” (PESTANA, 2014, p. 202). Destaca-se que o vocábulo “proporcional” deriva do latim proportio, que se refere principalmente à divisão em partes iguais ou correspondentes a uma dada razão. É umbilicalmente ligado à ideia de quantidade, de justa medida, de equilíbrio (FILHO, 2014). Assim sendo, por meio desse princípio, é possível analisar a legitimidade das restrições a direitos fundamentais, para verificar se respeitam a justa medida, a proporção entre causa e efeito, entre meio e fim.

Vale dizer que, em cada caso concreto, deve ser feita uma análise de conexão de sentido entre a eficácia de um direito fundamental e a possibilidade de renúncia ao exercício deste direito (DUQUE, 2014, p. 117). Por exemplo, a Constituição Federal aduz um rol de proteção, destacando no seu título VIII - Da Ordem Social, capítulo I, no art. 193: “a ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”, capítulo II – Da Seguridade Social, na seção II – Da Saúde, na Seção III - Da Previdência social (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988).

Nessa mesma esteira, foi promulgada a Lei n. 8.213, de 24 de julho de 1991 (Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providên-cias), que aduz no seu art. 1º a finalidade da Previdência Social, que é assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, assim como o requisito essencial para ter direito ao benefício, mediante contribuição, e incidir em um dos motivos pré-estabelecidos, motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de servi-ço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. (BRASIL, Lei n. 8.213, 1991). Frisa-se, nas relações previdenciárias, que a autarquia previdenciária atua no polo passivo, atuando como prestadora de serviços e benefícios; em contrapartida, temos os beneficiários, que atuam no polo ativo. Contudo, cabe ressaltar

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que há uma inversão na figura dos polos, quando o segurado requisita junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) o seu benefício e tem sua solicitação negada, após a prestação do exame médico-pericial, que fica a cargo da própria autarquia (FORTES, 2005, p. 57).

Deve-se relembrar: a seguridade social é um fundamento do bem--estar social, que demanda um constante reconhecimento e proteção, para preservar da melhor forma possível a dignidade da pessoa humana, na condição de valor fundamental (SARLET, 2012, p. 81ss). Todavia, ressalta-se, existem muitos obstáculos que dizem respeito à justiciabili-dade dos referidos direitos e, em particular, à seguridade social, mas que não impedem sua exigência judicial. Dentre esses obstáculos, podem-se citar: “a falta de especificação concreta do conteúdo desses direitos [...]; autorrestrição do Poder Judiciário, ante as questões políticas e técnicas [...]; inadequação dos mecanismos processuais tradicionais para a tutela dos direitos sociais [...]”. (FERREIRA, 2007, p. 195).

A busca da eficiência operacional, a missão de garantir à socie-dade uma prestação jurisdicional acessível, rápida e efetiva, fez com que o CNJ criasse a Resolução n. 125, de 29 de novembro de 2010, que possibilitou a conciliação na Justiça Federal nos processos em face do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Conforme aduz o art. 8º da Resolução, “para atender aos Juízos, Juizados ou Varas com competência nas áreas cível, fazendária, previdenciária, de família ou dos Juizados Especiais Cíveis, Criminais e Fazendários, os Tribunais deverão criar os Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania [...].” O CNJ considera tanto a conciliação como a mediação instru-mentos efetivos de pacificação social, solução e prevenção de litígios (BRASIL, Resolução 125, 2010).

Ressalta-se: a vida digna, núcleo essencial dos direitos funda-mentais, deve prevalecer. Assim devemos relembrar que a seguridade social é um fundamento do bem-estar social, que demanda um constante reconhecimento e proteção, para preservar da melhor forma possível a dignidade da pessoa humana. Desta feita, busca-se garantir a esses indivíduos a efetivação de um direito constitucional fundamental: a vida com dignidade. Cabe agora analisar os reflexos da Conciliação na Justiça Federal de Porto Alegre, para que se possa compreender o exemplo supracitado.

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3.2 Reflexos da conciliação na Justiça Federal de Porto AlegreA implantação da conciliação trouxe grandes mudanças no nosso

sistema Judiciário, “aproximou o cidadão da Justiça Federal, resultando em publicidade positiva para o Poder Judiciário. Da mesma forma, a prática da ‘conciliação em massa’ serviu para desafogar as Varas Previ-denciárias” (GIUSTINA, 2014). É importante dizer que “a conciliação atua em benefício da Justiça Federal, pois contribui para a celeridade dos processos, possibilitando à parte a concessão do seu benefício no momento da conciliação, em vez de ter que esperar pela sentença do seu processo judicial” (HENN, 2014). O fato de a conciliação ser realizada na Justiça Federal “evita a angularização processual, considerando que as audiências são realizadas após a distribuição do processo e antes da citação, e em casos de acordo, o processo é extinto com a solução do conflito antes mesmo de qualquer ato contestacional do demandado” (GREGÓRIO, 2014).

Cabe salientar os efeitos positivos que a conciliação surtiu na Justiça Federal: na busca da pacificação social, visando à prevenção e solução de litígio; na economia processual; na satisfação almejada pelas partes, quanto à rápida decisão alcançada, pela celeridade processual; na facili-dade do acesso à justiça pela parte mais frágil da relação, por saber que há um método alternativo para resolver os conflitos de baixa complexidade; e principalmente pela informalidade do sistema. Frisa-se ainda que “a conciliação não implica risco, a ponto de prejudicar uma das partes no litígio caso não aceitem a conciliação e decidam que o processo retorne à vara de origem, para dar prosseguimento normal ao caso conflitante” (AQUINO, 2014).

Frisa-se que, “a conciliação contribui para a Justiça Federal princi-palmente no que se refere ao imediato atendimento do jurisdicionado, com a diminuição do acervo processual, com a economia de tempo e com a satisfação do jurisdicionado” (GREGÓRIO, 2014). Destarte, “a Justiça Federal se beneficia da maior agilidade no trâmite dos processos. O processo que é encaminhado para a conciliação costuma a ser resolvido em poucos meses. Assim, não há acúmulo de processos muito antigos” (ZANATTA, 2014).

As primeiras audiências do SICOPREV foram realizadas na Justiça Federal de Porto Alegre na data 20 de junho de 2012 – foi um projeto

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piloto. Foram cinco audiências programadas, que resultaram em acor-dos, pois as partes aceitaram a proposta feita pelo INSS. Segundo a procuradora Ângela Bertoldo de Mello, “o INSS será beneficiado com a nova sistemática, pois, com a possibilidade de um número maior acor-dos, haverá redução de processos a serem analisados. Essa diminuição da demanda trará uma economia para a instituição”. (BRASIL, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, 2014). Em agosto de 2013, a Justiça Federal atingiu 97% de acordos em mutirão, sendo que foram agendadas 490 audiências, que foram realizadas dentro de uma semana (BRASIL, Conselho Nacional de Justiça, 2014).

O Projeto piloto de conciliação nasceu de uma experiência nos Juiza-dos Especiais Previdenciários de Porto Alegre e surgiu com o objetivo de unificar a tramitação das perícias e das conciliações em um único tipo de serviço, para agilizar as ações de concessão de benefícios por incapacida-de. Contudo, o projeto deu tão certo, que no dia 10 de julho de 2014 foi instalada a primeira Vara Federal de Conciliação do país. O presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), desembargador federal Tadaaqui Hirose, refletiu sobre sua carreira na magistratura e encerrou a solenidade com uma previsão para o futuro. “Sou da época em que o poder público não fazia acordo. Hoje verificamos uma grande mudança no Judiciário e eu seus atores. Acredito que estejamos caminhando, com a conciliação, onde não há vencidos ou vencedores, para um período em que tenhamos mais paz social neste país”. (BRASIL, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, 2014).

Pode-se dizer que a conciliação ganhou força substancial com a promulgação do Novo Código de Processo Civil, o qual abarca em seu texto, esparso em diversos artigos, a Resolução n. 125 do CNJ, o que dispõe sobre os meios alternativos de solução de conflitos (BRASIL, Lei n. 13.105, 2015). Ao encontro do Novo Código de Processo Civil, no sentido de valorizar os meios alternativos de solução de conflito, foram promulgadas as novas leis, Lei n. 13.129, de 23 de Setembro de 2015, que alterou a lei de arbitragem (Lei n. 9.307/1996) e a Lei n. 13.140, de 26 de Junho de 2015, que alterou a lei de mediação (Lei n. 9.469/1997). Por sua vez, a Lei de arbitragem possibilita que as pessoas, ao contratarem, possam se valer da arbitragem para dirimir possíveis litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, assim

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como a própria administração pública poderá utilizar-se da arbitragem (BRASIL, Lei n. 13.129, 2015). Já a lei de mediação dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública (BRASIL, Lei n. 13.140, 2015). Encerram-se essas considerações com o seguinte dado: a Vara Federal de Conciliação de Porto Alegre, de acor-do com estudos feitos pela direção do Foro da Justiça Federal gaúcha, contou com cerca de 2000 ações ajuizadas mensalmente, sendo que, dessas, 800 ações estavam diretamente relacionadas a auxílio-doença, aposentadoria por invalidez e benefício assistencial (BRASIL, Seção Judiciária do Rio grande do Sul, 2014).

4 Considerações finaisO presente trabalho buscou verificar os efeitos, na prática, da conci-

liação nos processos em face do INSS, os aspectos positivos e negativos gerados pela conciliação. Além disso, buscou apontar o discurso do operador do direito que atua na área da Previdência Social, bem como, a partir de uma perspectiva que aplica os direitos fundamentais no âmbito previdenciário, verificar se o segurado que concilia na Justiça Federal e renuncia parte de um direito tem possibilidade de estar afetando o mínimo existencial.

A seguridade social é um fundamento do bem-estar social, que de-manda um constante reconhecimento e proteção, para preservar da melhor forma possível a dignidade da pessoa humana. Trata-se de um direito fundamental de 2ª Geração e, assim sendo, indispensável à existência do ser humano, elevado a tal status pela atual Constituição Federal de 1988, a qual aduz, no seu art. 194, que a seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previ-dência e à assistência social. Ante o exposto, não restam dúvidas de que a nossa Carta Magna elenca um instrumento de proteção social, que tem como objetivo a proteção da dignidade da pessoa humana.

Dessa forma, no sentido de reconhecer e preservar os direitos fun-damentais, a nossa Constituição Federal de 1988 traz, no seu art. 201, o sistema de previdência social, o qual prevê que a previdência social

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será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados os critérios que preservem o equilí-brio financeiro e atuarial. Esses direitos requerem muito mais do que o reconhecimento de proteção, demandam uma ação positiva, tanto por parte do estado, como por parte do legislador, pois a sociedade nas suas relações encontra-se em constante transformação.

A partir dessa previsão constitucional, o Legislador implementou a nossa legislação ao criar a Lei n. 8.212, de 24 de julho de 1991 (Lei Orgânica da Seguridade Social), que aduz, no seu art. 3º, a finalidade da Previdência Social, que é assegurar aos seus beneficiários meios indis-pensáveis de manutenção, por motivo de incapacidade, idade avançada, tempo de serviço, desemprego involuntário, encargos de família e reclu-são ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. Vale dizer, o Poder Público, com fundamento na solidariedade, tem o dever de prestar iniciativas de governo, política públicas, para a manutenção do sistema que objetiva ideais de igualdade e de dignidade da pessoa humana.

Nessa mesma esteira, foi promulgada a Lei n. 8.213, em 24 de julho de 1991 (Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras provi-dências), que aduz, no seu art. 1º, a finalidade da Previdência Social, que é assegurar aos seus beneficiários meios indispensáveis de manutenção, assim como o requisito essencial para ter direito ao benefício, mediante contribuição, e incidir em um dos motivos pré-estabelecidos, motivo de incapacidade, desemprego involuntário, idade avançada, tempo de servi-ço, encargos familiares e prisão ou morte daqueles de quem dependiam economicamente. O regime previdenciário é contributivo, assim sendo só terá direito ao benefício o contribuinte que mantiver o pagamento de suas contribuições em dia, o que lhe resulta na manutenção da qualidade de segurado. Em outras palavras, sempre que o contribuinte incidir em algum dos casos previstos na lei e tiver preenchidos todos os requisitos terá direito ao benefício da Previdência Social.

No que tange à execução das atividades políticas e operacionalização das diretrizes constitucionais e legais da Previdência Social supracitadas, incumbe ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A autarquia pre-videnciária tem por fim desenvolver, entre outras, as seguintes atividades: manter o programa permanente de revisão da concessão e da manutenção dos benefícios da Previdência Social, a fim de apurar irregularidades e

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falhas existentes, assim como submeter o beneficiário ao exame pericial que é feito por médico da própria autarquia, que irá confirmar ou não a sua incapacidade, conforme a Lei n. 8.212/91.

Dessa forma, quanto às relações previdenciárias, temos de um lado a autarquia previdenciária operando como prestadora de serviços e be-nefícios; e de outro lado, temos os beneficiários. Todavia, faz necessário dizer, que se num primeiro momento a autarquia previdenciária atuava no polo passivo e o beneficiário no polo ativo, quando o segurado requisita junto ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) o seu benefício e tem como resposta uma negativa, há uma inversão na posição desses polos. Diante desse indeferimento do benefício requerido, o segurado poderá ingressar com uma ação administrativa junto ao INSS, ou ainda propor uma ação judicial junto a Justiça Federal.

Convém observar que os direitos fundamentais são concebidos, originariamente, como direitos subjetivos públicos, isto é, como direitos do cidadão em face do Estado. Sendo assim é imprescindível o reconhe-cimento da vinculação dos direitos fundamentais em relação aos órgãos Executivos, no exercício de qualquer atividade pública. A constituição prega um exercício harmônico e independente dos poderes públicos, por meio da delimitação das respectivas competências. A nenhum poder público é dado extrapolar as competências constitucionais, devendo ser submetido aos princípios norteadores da administração pública, previs-tos expressamente no art. 37 da Constituição Federal. Contudo, nesse aspecto, espera-se uma atuação efetiva do Estado, dentro de seu âmbito de competência. Os direitos sociais, econômicos e culturais, por sua vez, igualmente conforme tal tradição, seriam direitos cuja satisfação depende não mais de uma abstenção, mas, sim, de uma atuação positiva de prestações estatais.

O CNJ, a partir da Resolução n. 125/2010, possibilitou a conciliação em processos em face do INSS na Justiça Federal, considerando essa como instrumento efetivo de pacificação social, solução e prevenção de litígios, e que a sua apropriada disciplina em programas já implemen-tados no país têm reduzido a excessiva judicialização dos conflitos de interesses, a quantidade de recursos e de execução de sentenças. Afirma ainda que a conciliação em processos em face do INSS tem como obje-tivo a busca da eficiência operacional, a missão de garantir à sociedade

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uma prestação jurisdicional acessível, rápida e efetiva, mas para isso é imprescindível à manutenção de princípios que norteiam os direitos fundamentais do cidadão.

A conciliação foi uma conquista de grande relevância para o desen-volvimento da preservação da garantia constitucional do acesso à Justiça e consolida a ideia de que um acordo bem construído é sempre a melhor solução. E como efeito prático, a conciliação contribui para a Justiça Federal, principalmente no que se refere ao imediato atendimento do jurisdicionado, com a diminuição do acervo processual, com a econo-mia de tempo e com a satisfação do jurisdicionado. A Justiça Federal se beneficia da maior agilidade no trâmite dos processos, pois este é enca-minhado para a conciliação e costuma ser resolvido em poucos meses. Assim, não há acúmulo de processos muito antigos. Contudo, não se pode atestar que a conciliação é a melhor opção, até porque nem todos os casos são compatíveis com conciliação; muitas vezes, a conciliação não é o meio de solução de conflito mais benéfica; tudo dependerá do caso a ser analisado. Mas a conciliação sempre deve ser a primeira alternativa e a mais estimulada como instrumento de grande potencial que é para a pacificação dos conflitos.

A seguridade social, assim como os demais direitos sociais se con-verteram em um dos fundamentos do Estado de Bem-estar moderno, constituindo-se em um fator importante para a legitimidade política e para a coesão social nas sociedades amplamente desiguais. Pode-se concluir ainda que, para um Estado social Constitucional, a seguridade social passou a ser essencial para garantir um mínimo essencial à po-pulação, para que ela possa viver com dignidade. Sendo a dignidade da pessoa humana o mais importante princípio constitucional, e sendo a vida o mais relevante direito fundamental, a correlação de ambos leva à inarredável conclusão de que o principal direito do cidadão é o direito a uma vida digna.

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NOVAS PERSPECTIVAS NO ENSINO DO DIREITO: MUDANÇAS MUITO ALÉM DO USO

DE METODOLOGIAS ATIVAS

TAÍS SCHILLING FERRAZJuíza Federal, doutoranda em Ciências Criminais, mestre em Direito pela PUCRS,

especialista em Docência no Ensino Superior pela UNIASSELVI e formadora nos cursos de aperfeiçoamento de magistrados.

RESUMO: O artigo analisa o processo de mudança que ocorre no mo-delo de ensino-aprendizagem no âmbito das escolas de magistratura, defendendo a importância de ser levado aos demais operadores do Direito e à academia. Partindo das características do modelo tradicional de ensino, predominantemente expositivo, que tem como protagonista o professor e por objetivo a transmissão em abstrato do conhecimento pronto, defende que os cursos voltados aos profissionais e acadêmicos do Direito sejam concebidos como oportunidades para a construção conjunta do conhecimento, na busca do desenvolvimento de saberes, habilidades e comportamentos que sejam significativos ao contexto social e profissional, em um processo no qual se promova o protagonismo e a autonomia do aprendiz.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino. Aprendizagem. Escolas da Magistratura. Competências. Metodologia.

IntroduçãoNa prova oral de um concurso público da área jurídica, o examinador

deseja saber se o candidato compreendeu o princípio da proporcionali-dade e pede a ele que exponha como resolveria um caso específico que, com riqueza de detalhes, lhe apresenta. Sua expectativa era de que, ao formular a resposta, o candidato invocasse o princípio ou, no mínimo, os efeitos de sua incidência ou não incidência. Surpreende-se, porém, ao perceber que a resposta, além de superficial, sequer tangencia o fun-damento que pretendia ver abordado.

Na sequência, o mesmo examinador pede ao candidato que fale sobre o princípio da proporcionalidade. Ele o faz, com total domínio da teoria, seus pressupostos, sua origem, seus efeitos, e, ainda assim, não percebe a ligação com o caso concreto apresentado na pergunta anterior.

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Situações como esta, em bancas de concurso, são muito mais comuns do que se pode imaginar. Os candidatos aos cargos e funções apresentam--se profundamente preparados na teoria, mas, quando confrontados com situações de vida em que serão chamados a atuar, não são capazes de estabelecer ligação entre elas e o conhecimento teórico acumulado, não percebem que podem invocar, para resolver os problemas do dia a dia, os conteúdos que com tanto esforço memorizaram e sistematizaram.

Esse parece ser um dos efeitos da metodologia adotada no proces-so de ensino-aprendizagem do Direito, que muito pouco mudou nas últimas décadas, talvez séculos, seja na academia, seja quando voltado ao desenvolvimento de competências profissionais. O modelo encontra sua maior representação nos concursos, que, especialmente nas provas objetiva e dissertativa, selecionam os candidatos que mais dominam a teoria. Estes, porém, a par de todo o conhecimento que acumularam, não serão necessariamente os mais competentes no exercício das funções para as quais estão sendo recrutados.

Em outras áreas do conhecimento, as grandes universidades desdo-bram-se no desenvolvimento de técnicas pedagógicas mais voltadas à aplicação prática do conhecimento, cientes de que estão diante de novas gerações de alunos, para os quais o mundo se abre sem prévia sistema-tização e memorização de elementos teóricos.

São alunos que vão em busca de saberes e os bebem nas mais va-riadas – e não necessariamente qualificadas – fontes, que se descobrem, cada dia mais, como protagonistas de sua própria educação, como atores de seus destinos, que aprendem experimentando, muitas vezes através de erros. A busca de informação é simples, prática e customizada segundo as preferências e necessidades daquele que pesquisa.

Essas novas gerações de aprendizes chegam também às instituições de ensino jurídico, porém são introduzidas em uma espécie de universo paralelo, no qual a abstração é a regra e no qual os dogmas introjetados pelo aprendizado são aplicados aos casos concretos de maneira essen-cialmente silogística, dedutiva.

Um movimento se inicia no sentido de romper com esse contexto e de atualizar o ensino jurídico ao novo modelo de sociedade, que é dinâ-mico, que questiona o conhecimento pronto, que preza a autonomia do aprendiz e a construção coletiva do conhecimento, que busca promover o saber significativo.

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Esse movimento de transformação, que em outras áreas do conheci-mento já encontrou terreno fértil, está sendo fortemente impulsionado no Direito por uma atuação inovadora das escolas de magistratura, seguindo um fluxo internacional, que parte de uma indagação fundamental: que juiz a sociedade quer? Que habilidades e atitudes ele deverá demonstrar no exercício de suas funções?1

Trata-se de uma nova matriz em desenvolvimento, aplicável não apenas aos juízes, mas a todos os profissionais da área jurídica e ao processo de ensino-aprendizagem universitário, em que a formação do conhecimento incorpora a participação do aluno, suas expectativas e experiências e no qual o conhecimento não é visto como uma cópia do mundo exterior, não preexiste ao sujeito que aprende. Há permanente construção e reconstrução.2

Este artigo analisa esse processo de mudança e defende a importância de ser estimulado, de forma a ligar o ensino jurídico à realidade dos que atuam no Direito, em todos as suas vertentes.

1 Educação e protagonismo do alunoAo desenhar um curso sobre gestão de pessoas, os coordenado-

res pedagógicos de um centro de formação especializado nessa área indagam-se, inicialmente, que habilidades, atitudes e saberes teóricos um profissional que gerenciará grupos determinados deverá desenvol-ver para utilizar em seu ambiente de trabalho. Já existe um mínimo de

1 A União Europeia, em especial a França e a Romênia, e países como Canadá, Austrá-lia, Chile e Estados Unidos vêm dando grande importância à formação dos magistrados e introduzindo, nos centros de formação, técnicas de educação de adultos, com foco no desenvolvimento de habilidades e de competências comportamentais. O movimento pode ser representado pelo provérbio chinês adaptado: Eu ouço, eu esqueço. Eu vejo, eu me lembro (talvez). Eu faço, eu compreendo. (IOJT, Journal of the International Organi-zation for Judicial Training. Judicial Education and Training, v. 1, ago. 2013). Disponí-vel em: <http://www.iojt.org/~/media/Microsites/Files/IOJT/Microsite/iojtJournal001.ashx>. Acesso em 16 abr. 2017.2 CASTANHO, Maria Eugênia. Sobre professores marcantes. In: CASTANHO, Sérgio. _____. Temas e Textos em metodologia do ensino superior. 7. Ed. Campinas: Papirus, 2001, p. 153-163.

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consenso, no sentido de que um líder deve ser capaz, por exemplo, de escutar ativamente seus subordinados, de conhecer suas potencialidades, de dar feedback de forma positiva, de gerenciar conflitos intersubjetivos, entre outras competências.

Tendo presentes essas condições fundamentais a desenvolver, o passo seguinte será estudar o público-alvo, identificar suas expectativas, a expectativa da instituição contratante, o estágio de conhecimento dos futuros alunos, seus interesses e expectativas, e, então, definir os objetivos da aprendizagem específica.

Nesse momento projeta-se que, ao final da ação de formação, o aluno deverá ser capaz de gerenciar um conflito originado de uma falha de comunicação; deverá ser capaz de dar feedback positivo; deverá ser capaz de conduzir uma reunião garantindo a participação do maior nú-mero de subordinados etc.

Só então é que se cogita da estrutura curricular da ação de forma-ção e da sua carga horária, distribuindo-se seus conteúdos em etapas, identificando-se a melhor metodologia a ser adotada para alcançar os objetivos traçados e selecionando-se os formadores.

Quanto às técnicas pedagógicas, serão quase que exclusivamente vinculadas às metodologias ativa e interrogativa, centradas em resolução de problemas e na construção conjunta do conhecimento, valorizando-se as experiências prévias individuais.

Os alunos serão avaliados ao longo da ação de formação, na medida em que forem trazendo seus aportes e desenvolvendo seus conhecimentos, habilidades e comportamentos.

Nada mais distante de um curso jurídico tradicional, seja na acade-mia, seja no ensino profissional.

Se um curso como este fosse preparado por juristas em um modelo tradicional, iniciaria, desde logo, com a definição da carga horária des-tinada, seguida da seleção dos professores especialistas (ou não). Estes ficariam livres para selecionar os conteúdos que entendessem necessá-rios para habilitar alguém a ser gestor de pessoas. A metodologia a ser adotada seria essencialmente expositiva e a grande parte do tempo seria reservada à transmissão de conhecimentos teóricos, como: conceito de gestão, origem e natureza jurídica da gestão de pessoas, elementos

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constitutivos, classificação, efeitos, jurisprudência etc. Com boa vonta-de e tempo remanescente, se houvesse, seria aberto algum espaço para perguntas baseadas no interesse do público-alvo, já exaurido e pensando em qualquer coisa menos na aula.

O resultado teria sido a transmissão (e não necessariamente a aqui-sição) de conteúdos absolutamente teóricos e abstratos. No dia seguin-te, o aluno chegaria em seu ambiente de trabalho e não seria capaz de mobilizar o conhecimento que lhe foi disponibilizado pronto e em tese, para administrar um conflito real entre seus subordinados.

Além da inversão de etapas, no que se diferenciam os dois modelos de curso?

No primeiro, o saber (conhecimento teórico), o saber ser e conviver (comportamento, atitude) e o saber fazer (habilidade) serão construídos ao longo do curso, com a participação do professor e dos alunos, cabendo ao professor facilitar esse processo mútuo de ensino-aprendizagem, formu-lando os problemas, indicando possíveis caminhos, construindo situações para simulação e estudos de caso, mediando debates. No último, o saber (conhecimento teórico) estará concentrado no professor depositário da verdade, verdadeiro oráculo a transmitir respostas inquestionáveis, nos limites que entender adequados.

Decidir sobre a realização de um curso de formação, no primeiro modelo, pressupõe análise de necessidades – do que os alunos precisam? Por que precisam? No outro, uma ou mais pessoas arbitram, a partir da própria avaliação, e de forma absolutamente genérica, o que deve ser ofertado ao seu público.

Os conteúdos a serem abordados, no primeiro caso, dependerão dos objetivos de aprendizagem traçados. No segundo modelo, não raro, serão os professores escolhidos que definirão o alcance de suas exposições, havendo ampla margem para escolha, o que resulta, não raras vezes, em abordagens absolutamente desconectadas da realidade em que inserido o público-alvo e de seus interesses.

A definição da metodologia, no primeiro caso, depende dos objetivos pedagógicos que se pretenda alcançar com o curso e centra-se na maior utilidade para a realidade dos alunos na escolha de uma ou outra técnica. No segundo, depende apenas da habilidade ou criatividade do professor e, no âmbito jurídico, tende a ser expositiva.

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Em poucas palavras, no primeiro exemplo, o aluno será protagonista da própria formação. No último, o protagonista será sempre o professor, detentor e veículo principal de transmissão do conhecimento.

Pode-se argumentar que quando o curso é concebido exclusivamente no meio jurídico – um curso de Direito Tributário ou de Direito Penal, por exemplo –, conhecer os institutos e seus regimes jurídicos é fundamental para defender interesses em juízo e julgar.

Jamais se diria o contrário.O que aqui se defende é a inversão da lógica tradicional de desenho

de uma ação de formação, de forma a torná-la mais eficiente, atraente e enriquecedora.

Não se questiona a necessidade da manutenção de disciplinas que revolvem o conhecimento mais abstrato, como filosofia, hermenêutica, sociologia, deontologia etc. De forma alguma devem ser eliminadas. Afirma-se, porém, para reflexão, que a grande parte da estrutura curricular dos cursos jurídicos – sejam eles da academia, sejam das instituições – é pensada e desenvolvida, até hoje, mediante a identificação e a apresen-tação de conteúdos prontos, inquestionáveis, a exigir a memorização de dogmas, com metodologia essencialmente expositiva e com uso de técnicas de avaliação puramente somativas.

Partindo-se das competências fundamentais a desenvolver, e tendo--se presentes as verdadeiras necessidades e interesses do público-alvo, os resultados serão potencializados e poderão ser mensurados, o que a mera atribuição de notas ou conceitos em provas ou trabalhos, ao final de um curso, pouco revelará.

O foco no aprendiz perpassa o planejamento e chega também na fase de execução da formação. Assim, buscar entender o que os alunos sabem sobre o tema do curso que estão frequentando, o que eles desejam aprender, conhecer sua formação anterior e se buscam por qualificação ou formação profissional são informações com propósitos didáticos,3 que podem orientar a ação do formador, além de revelar eventuais dificuldades de aprendizagem, permitindo a adequação do curso ao seu público-alvo.

3 ZEN, Mariane Werner. Organização do trabalho pedagógico na sala de aula: Plane-jamento, metodologia e avaliação. Indaial: Uniasselvi, 2011, p. 32.

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Para aquele que aprende, ter contato com a teoria visualizando sua importância prática é muito mais eficiente que memorizá-la em tese, sem perceber, muitas vezes, o propósito. Conteúdos como natureza ju-rídica, conceitos e classificações poderão ser abordados, construídos ou sistematizados, durante uma ação de formação concebida apenas com estratégias ativas, como dinâmicas de grupo, estudos de caso, simulações. É na resolução de problemas que terão testada a sua utilidade e inclusive serão melhor memorizados.

A educação superior, no Brasil, foi historicamente influenciada pelo método de ensino denominado escolástico, de herança jesuítica, que pressupõe o conhecimento como algo posto, indiscutível, pronto e acabado, a ser assim, portanto, repassado.4 Nesse modelo, destacam-se a figura do professor, como detentor e repassador desse conteúdo inques-tionável – dogmas a serem memorizados; a metodologia expositiva e a avaliação associada à ideia de castigo.

Embora a maior parte dos cursos universitários tenha sofrido também a influência da metodologia construída nas universidades da Alemanha, marcada pela ideia de parceria na construção do conhecimento, as ciências humanas, em especial as jurídicas, permaneceram vinculadas ao método escolástico, que, com o tempo, foi permeado, na educação profissional, pela influência francesa-napoleônica, o que não significou, propriamente, ruptura com as características do modelo original.

2 O desenvolvimento de competências como norte nas ações de formação

Algumas perguntas básicas estão pressupostas em uma ação de formação:

• Que habilidades, comportamentos e saberes teóricos um estu-dante de Direito ou um profissional da área jurídica deve saber mobilizar?

4 ANASTASIOU, Léa das Graças Camargos. Metodologia de ensino na universidade brasileira: elementos de uma trajetória. In: CASTANHO, Sérgio; CASTANHO, Maria Eugênia (orgs.). Temas e Textos em metodologia do ensino superior. 7. Ed. Campinas: Papirus, 2001, p. 60.

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• Por que é necessário o desenvolvimento de tais conhecimentos, habilidades e atitudes?

• O que os alunos deverão saber, ser capazes de fazer ou que comportamentos se espera que possam adotar ao final de uma formação?

A resposta a essas perguntas depende da preexistência de alguns consensos quanto às competências fundamentais para o exercício de um mister, uma função, um cargo.

É sobre essas perguntas que as Escolas de magistratura vêm adaptan-do os cursos de formação, num movimento que segue o fluxo internacio-nal, que introduz novas perspectivas de educação judicial e metodologia ativa nas atividades propostas, desenvolvendo nos juízes e futuros juízes a capacidade de mobilizar, articular e implementar valores, conhecimentos e habilidades para a realização das atividades exigidas por sua função.5

O marco zero de uma ação de formação de juízes, advogados, promotores ou defensores públicos, está representado em uma primeira pergunta: que profissional queremos desenvolver?

Esta é a pergunta que nos remete às competências fundamentais.Que juiz a sociedade brasileira e gaúcha quer? É possível arriscar

alguns consensos mínimos. Ele deverá ser capaz de:• solucionar e mediar conflitos em contextos cada vez mais com-

plexos;• conduzir-se com ética;• escutar;• rever suas decisões, quando necessário;• adaptar-se a diferentes situações;• inserir-se na comunidade;• conhecer e desempenhar seu papel na construção de uma socie-

dade mais justa, livre e solidária, em constante evolução;...entre outras competências.

5 FERRAZ, Taís Schilling. Um novo olhar sobre a seleção e a formação de magistra-dos. Revista Interesse Público, v. 95, p. 15-31, 2016.

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A mesma pergunta pode ser feita aos outros profissionais do Direito: que advogado, que defensor, que promotor, que jurista a sociedade quer? A resposta – as competências fundamentais desses profissionais – consti-tuirão os alicerces das ações de formação, desde os bancos universitários.

Deve-se partir, porém, de um processo democrático para a identifi-cação das habilidades e capacidades fundamentais de um profissional da área jurídica, e elaborar um conjunto de competências não se esgota na designação de uma comissão de redação.6 Trata-se de uma tarefa a ser empreendida a muitas mãos, e que deve resultar na eleição de qualidades observáveis e mensuráveis, de forma que se possa avaliar o seu desen-volvimento permanente e identificar as reais necessidades de formação.

E o que é competência neste contexto? A competência é o saber em movimento. Ela não se limita a co-

nhecer. Envolve também o agir em determinada situação, o saber ser, conviver e fazer.

Agir com competência é posicionar-se diante de um contexto com autonomia para encontrar o caminho mais eficaz e buscar o resultado à luz dos valores a serem preservados.

Trata-se de tomar decisões e atitudes em situações imprevistas, o que significa intuir, pressentir, arriscar com base na experiência anterior e no conhecimento. A lição é extraída do Parecer do Conselho Nacional de Educação CNE/CEB 16/99,7 que, na sequência, explicita ainda mais o conceito de competência profissional:

Ser competente é ser capaz de mobilizar conhecimentos, infor-mações e até mesmo hábitos, para aplicá-los com capacidade de julgamento em situações reais e concretas, individualmente e com

6 PERRENOUD, Philippe. Construire des compétences. Entretien avec Phi-lippe Perrenoud, Université de Genève, 2000. Disponível em: <http://www.unige.ch/fapse/SSE/teachers/perrenoud/php_main/php_2000/2000_30.html>. Acesso em: 16 abr. 2017.7 Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação e Câmara de Educação Básica. Resolução CNB/CEB 16, de 5.10.1999. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/setec/arquivos/pdf_legislacao/rede/legisla_rede_pa-recer1699.pdf>. Acesso em 16 abr. 2017.

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a equipe de trabalho. Sem capacidade de julgar, considerar, discer-nir e prever os resultados de distintas alternativas, eleger e tomar decisões, não há competência...

É possível afirmar que alguém tem competência profissional quando constitui, articula e mobiliza valores, conhecimentos e habilidades para a resolução de problemas. Desenvolver o aluno, sob este contexto, habilita--o para a criatividade e a atuação transformadora.8 O ensino somente será efetivo, como leciona Vygotski,9 se passar pela experiência do sujeito, tendo o professor o importante papel de preparar o ambiente, que não é físico, mas relacional e afetivo.

Uma ação de formação prepara, capacita o aluno, desenvolvendo suas potencialidades, entre conhecimentos, habilidades e comporta-mentos, para que ele, mais adiante, seja capaz de mobilizá-los na vida cotidiana, em seu ambiente profissional ou pessoal. A aquisição das com-petências propriamente – isto é, a obtenção da capacidade de mobilizar os saberes desenvolvidos no curso –, só poderá ser aferida em situações reais, na complexidade da vida. Antes disso, no universo da formação, fala-se em capacitação para o exercício de competências.

3 Como capacitar para mobilizar o saber? Aprender é construir significados através da interação entre o co-

nhecimento novo e algum conhecimento prévio existente na estrutura cognitiva do aprendiz. Havendo interação, ambos os conhecimentos se modificam: o novo passa a ter significado, é compreendido e passível de aplicação, e é assimilado ao conhecimento prévio, que adquire novos significados, ficando mais elaborado. O resultado é uma síntese de quali-dade superior. Para que a aprendizagem ocorra, o docente deverá ancorar

8 Taís Schilling. Engenharia por competências: um importante referencial na formação de magistrados. Revista de Doutrina da 4ª Região, Porto Alegre, n.74, out. 2016. Disponível em:<http://www.revistadoutrina.trf4.jus.br/artigos/edicao074/Tais_Ferraz.html>. Acesso em: 15 abr. 2017.9 VYGOTSKI, L. S. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004, apud Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados - ENFAM. Apostila do I Curso de Formação de Formadores, 2012, p. 14.

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o conhecimento novo aos conhecimentos e experiências já existentes na estrutura cognitiva do aprendiz.10

É por isso que o desenho de uma ação de formação exige o domínio da arte de formular perguntas em diversos momentos.

Após a pergunta-chave, voltada à identificação das competências que se pretende que o aluno adquira, é necessário perguntar-se o quanto o aluno já conhece, que interesse e expectativas ele teria com uma ação de formação voltada ao desenvolvimento das qualidades antes pressupostas. Nesse momento, pode ser necessário buscar informações diretamente junto ao público-alvo ou por outras vias.

Esta não é uma etapa simples na concepção de um curso. Dela depende o interesse e a utilidade do esforço que se pretende dedicar à formação.

Num curso que pretenda desenvolver a adaptação frente ao novo Código de Processo Civil, por exemplo, será de baixa utilidade, para a futura mobilização de saberes, incluir como objetivo pedagógico que o aluno seja capaz de diferenciar os sujeitos do processo, se o público--alvo é formado de juízes, promotores, advogados, defensores ou mesmo estudantes de Direito.

No entanto, pode ser importante, do ponto de vista do aprendiz e da instituição, que o aluno-juiz rapidamente se adapte às principais mudanças do CPC, elencando como objetivo de aprendizagem que ele seja capaz de fundamentar suas decisões com observância dos novos requisitos; de organizar seus processos de trabalho de forma a assegurar que os julgamentos sigam a ordem cronológica; de diferenciar os atos processuais sujeitos às novas regras dos que permanecerão sendo regidos pela legislação anterior, entre outros saberes.

Definidos os objetivos de aprendizagem, parte-se, então, para o elenco dos conteúdos a serem abordados, distribuindo-os na carga ho-rária, que também deve ser definida preferencialmente à luz do maior ou menor alcance dos objetivos pedagógicos.

A escolha dos formadores deve ser feita uma vez definidos os ob-jetivos e o conteúdo programático do curso.

10 A assertiva provém do Anexo único da Resolução ENFAM n. 11/2015, que apresenta os Fundamentos das Diretrizes Pedagógicas da Escola Nacional de Formação e Aper-feiçoamento de Magistrados.

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A partir desse momento, o professor escolhido ingressa no processo de desenho do curso. Ciente das competências a desenvolver, dos ob-jetivos de aprendizagem e dos conteúdos a serem abordados, caberá ao professor, dentro da carga horária disponível, particularizar, através de um plano de aula ou de disciplina, os objetivos específicos, conteúdos e a metodologia que utilizará para que sejam alcançados os objetivos cujo desenvolvimento lhe foi proposto.

Esta não pode ser uma tarefa solitária. O professor deve manter com a coordenação pedagógica permanente interlocução, de forma a garantir alinhamento de ações, evitando superposições de iniciativas pedagógicas ou que não sejam alcançados os propósitos da formação. Cabe ao profes-sor, a partir de sua experiência, trazer também à coordenação propostas de redefinição dos elementos das etapas anteriores do planejamento. A via de comunicação deve ter os dois sentidos.

4 As competências do formador Ao formador competirá promover, em concreto, a ação de forma-

ção. Para tanto, além de conhecer os objetivos gerais da formação e de traçar, em seu plano de ensino, os objetivos específicos da etapa que lhe foi atribuída, elencando os conteúdos que pretende que sejam em alguma medida compreendidos e elaborados, deverá decidir o “como” da formação, isto é, a metodologia pedagógica que pretende utilizar.

No modelo de ensino-aprendizagem que entrega ao aluno o prota-gonismo do processo, o professor será aquele que facilita, que o conduz no caminho da aprendizagem, oportunizando-a, sem entregá-la pronta. Rompe-se, aqui, com a ideia de que ao professor cabe, ao preparar sua aula, trazer ao aluno o máximo do conhecimento empacotado, que possa transmitir no espaço de tempo de que dispõe. Ao contrário, cabe-lhe apontar caminhos para a busca e o compartilhamento do conhecimento. A finalidade dessa dinâmica “não é apresentar verdades acabadas, mas sim instrumentalizar o aluno para se apropriar de conhecimentos e ter condições de elaborar novos conhecimentos”.11

11 LOPES, Antonia Osima. Relação de interdependência entre ensino e aprendizagem. In: VEIGA, Ilma P. Alencastro (org.). Didática: o ensino e suas relações. 17. ed. Cam-pinas: Papirus, 2010. p. 112.

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Enganam-se aqueles que pensam que esta é uma tarefa mais simples que a de preparar uma aula expositiva de longa duração. Ao contrário, o planejamento de uma aula em que se pretenda a participação e iniciativa do aluno é comumente mais complexo e demorado, exige maior trabalho de pesquisa e criação.

Em sala de aula, o trabalho do formador não será menos desafiador, seja porque o controle de uma turma de alunos a que se atribui maior au-tonomia é tarefa difícil, seja porque, ao ser chamado a assumir sua própria aquisição de conhecimentos e a compartilhar suas experiências sobre o tema proposto, é bastante comum que o aluno se retraia, colocando-se em posição defensiva, pois não foi treinado, em suas anteriores vivências de aprendizagem, para se expor ou compartilhar o controle de uma aula. Prefere, em um primeiro momento, que o professor assuma a função de lhe trazer a informação. Afinal, não é sempre esta a tarefa dele?

Assim, nesse movimento de mudança, é de fundamental importância preparar os formadores para promoverem a autonomia de seus alunos. É preciso que desenvolvam a capacidade de escuta, de formular perguntas--chave e conduzir debates em sala, de lançar mão de técnicas pedagógicas cada vez mais adequadas aos objetivos de aprendizagem traçados.

Mais do que isso, é preciso exercitar a empatia, colocando-se no lugar do aluno e visualizando, previamente, a utilidade dos conteúdos e da metodologia escolhidos para o desenvolvimento das competências visadas.

Para tanto, o formador deve diagnosticar o domínio prévio dos ob-jetivos do curso que os alunos trazem consigo e verificar as expectativas que estes têm em relação ao curso.12 Esse diagnóstico, quando obtido já no início da ação de formação, o auxiliará, inclusive, a repensar o que havia previamente planejado.

No âmbito do Poder Judiciário, essa mudança de foco no processo de ensino-aprendizagem já se faz sentir e pode ser observada nos nor-mativos editados pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados – ENFAM, que elencou as diretrizes pedagógicas de planejamento, implementação, acompanhamento e avaliação das ações

12 GIL, Antonio Carlos. Didática do Ensino Superior. São Paulo: Atlas, 2011.

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referentes à formação inicial e continuada dos juízes.13 A ENFAM insti-tuiu o Programa de Formação de Formadores,14 para o desenvolvimento de competências relativas ao exercício da docência, recomendando que os cursos oficiais voltados à magistratura sejam ministrados preferencial-mente por profissionais que já tenham sido habilitados pelo Programa e determinando que o planejamento e a coordenação sejam atribuídos a um formador certificado em curso oficial de formação de formadores.15 Está previsto, ainda, que as escolas de magistratura devem oferecer cursos com foco no desenvolvimento de competências profissionais para atuação nos diversos ramos da Justiça,16 bem como que deve ser destinado um mínimo de 40% da carga horária para o desenvolvimento de métodos ativos, que permitam a aplicação sistemática do conteúdo teórico do curso.17

A guinada de concepção pedagógica, a valorizar não mais a quan-tidade de conteúdos, mas a qualidade dos processos que conduzam à construção de significados e ao desenvolvimento das competências cognitivas complexas, fica clara na leitura de um dos itens do anexo único da Resolução ENFAM n. 11/2015, que, ao tratar dos processos de formação de magistrados, registra que:

[...] o ponto de partida deve ser uma situação ou conhecimento de domínio do magistrado (conhecimento prévio), e sempre que possível sob a forma de problema, indagação ou desafio que mo-bilize suas energias mentais e capacidades cognitivas tendo e vista a produção de uma resposta a partir da busca de informações, de discussões com os pares, com os especialistas, com os formadores ou com membros da comunidade científica e técnica da área.

5 Estratégias de ensinoEmbora a criatividade seja o limite, quatro grandes estratégias

pedagógicas em utilização no processo de ensino-aprendizagem são co-

13 Resolução ENFAM n. 11/2015.14 Resolução ENFAM n. 2/2016.15 Resolução ENFAM n. 5/2016.16 Resolução ENFAM n. 2/2016.17 Instrução Normativa ENFAM n. 3/2016.

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mumente empreendidas: afirmativa, ativa, interrogativa e demonstrativa. A cada uma delas estão vinculadas técnicas pedagógicas específicas.

Entre as técnicas de ensino não há certo ou errado, melhor ou pior. A depender do objetivo de aprendizagem a ser alcançado e conforme a característica de aprendizagem do aluno, será mais adequado optar por uma ou por outra, ou por mais de uma.

A estratégia afirmativa consiste na transmissão oral do conhecimen-to. Desdobra-se essencialmente em técnicas expositivas, com ou sem uso de apoio em mídias (power point, vídeos, fotos etc.). Vale dizer: o professor fala e o aluno escuta, assumindo essencialmente uma posição passiva na relação transmissor-receptor. O método não é incompatível com a participação, que, ocorre, via de regra, mediante perguntas dos alunos, mas esta participação não é o escopo principal, já que o conteúdo a transmitir é dado e não construído.

A estratégia demonstrativa consiste na transmissão de técnicas vi-sando à repetição do procedimento pelos alunos. Apresenta-se uma visão global do que se pretende fazer e transmitir, demonstra-se e analisa-se o resultado obtido. Normalmente, a demonstração é seguida de um exer-cício de aplicação pelos alunos do conhecimento transmitido. Embora haja experimentação, ela ocorre após a transmissão de um conhecimento pronto.

As demais estratégias – ativa e interrogativa – requerem maior participação do aluno na construção do conhecimento, que não é dado, mas coletivizado.

A estratégia ativa consiste, basicamente, em oportunizar que o alu-no aprenda através da experimentação. O contato com o conteúdo e o processo de aprendizagem ocorrem na medida em que se oportuniza a aplicação dos conhecimentos previamente adquiridos ou não a situações próximas à realidade. Nesse modelo, o formando é considerado fonte de conhecimento e sua bagagem é confrontada, na prática, com infor-mações e elementos de interpretação que permitem elevar seu nível de compreensão. Nas técnicas vinculadas a esta estratégia de ensino, o aluno é conduzido a atuar com autonomia, responsabilidade e conforme seus interesses e motivações. É o protagonista do seu aprendizado. Aprende a aprender e, muitas vezes, a compartilhar o que sabe. São exemplos

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de técnicas pedagógicas vinculadas a este modelo o estudo de caso, a dramatização (ou simulação), as dinâmicas de grupo, entre outros meios de mobilização.

Na estratégia interrogativa, busca-se que o conhecimento seja construído através da participação, criando-se oportunidades para que a experiência pessoal de cada aluno acerca do tema possa ser apresentada ao grupo, e incentivando-se a participação, através da formulação de perguntas mais ou menos abertas e diante de uma relação menos formal com o professor. Aqui a comunicação em ambos os sentidos é a palavra de ordem, cabendo ao professor, através do reforço positivo ou outras técnicas, provocar a reflexão, a articulação, a construção, a desconstrução e a reconstrução de ideias. Aqui, estão entre as técnicas mais utilizadas a tempestade de ideias (brainstorming) e o método socrático. Sua aplica-ção não é simples. É preciso aprender a perguntar, tendo presente que o aluno, em especial o adulto, não é uma folha em branco, ele traz consigo vivências que, não raras vezes, superam as do próprio formador.

Cada estratégia de ensino tem suas vantagens e desvantagens. A opção não pode ser arbitrária, cabendo ao formador escolher as técnicas e recursos didáticos que oportunizem aos alunos interagir com os con-teúdos, de forma a que os objetivos da aprendizagem sejam alcançados.

A alternância também é importante. Nem todos os alunos aprendem no mesmo ritmo ou pelas mesmas formas de abordagem do conteúdo. Alguns são mais visuais, outros, mais auditivos; para alguns o estudo individual é mais eficiente, para outros, o trabalho em grupo é libertador; e a grande parte aprende experimentando. O papel do professor é facilitar esse processo de ensino-aprendizagem, tendo presente que o aluno é o protagonista de sua própria formação. Cabe ao formador proporcionar os meios para que ele aprenda a aprender.

Ao optar, por exemplo, por uma exposição, o formador consegue transmitir, rapidamente, uma quantidade relativamente grande de conteú-do ou introduzir um tema. Normalmente a técnica da palestra é adequada a turmas numerosas e poderá ter bons resultados se empreendida com alguns cuidados, como dosagem do tempo, uso de recursos audiovisuais, demonstrações, storytelling etc. As técnicas expositivas não podem ser consideradas as grandes vilãs dos cursos jurídicos. Seu uso dosado, para finalidades específicas, tem excelentes resultados.

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Não se pode, porém, desconhecer que a retenção do conhecimento obtido através de uma palestra é inferior ao memorizado através da dramatização ou da experimentação direta.18

Assim, a utilização, ainda que em alternância, de métodos que oportunizem a participação do aluno é fundamental.

ConclusãoEste trabalho procurou trazer à reflexão o processo de ensino-

-aprendizagem adotado, tradicionalmente, nos cursos da área jurídica, confrontando-o com um novo modelo, que, já tardiamente, vem ganhando espaço entre os operadores do Direito e que se inicia no âmbito das es-colas de educação judicial, com o objetivo de contribuir para a formação de magistrados autônomos, criativos, críticos, cooperativos, solidários e comprometidos com os desafios da sociedade brasileira.19

Nesse novo modelo, o protagonista da própria educação é o aluno e a definição do que deve ser objeto da formação parte da ideia de com-petência, a capacidade de o aluno mobilizar conhecimentos, habilidades e comportamentos para resolver problemas, seja ele um acadêmico seja um profissional do Direito. A pergunta-chave a ser formulada no plane-jamento de um curso ou disciplina será: que competências são esperadas daquele público-alvo?

Deve haver um consenso inicial quanto às competências que se pretende que um acadêmico ou profissional determinado desenvolva. Identificá-las é o marco zero de um programa de formação, pois é no rol de competências fundamentais a serem perseguidas que os programas educacionais deitarão as raízes de suas ações de formação.

Ao serem identificadas necessidades de aperfeiçoamento em quais-quer dessas competências, as escolas planejarão os cursos, formulando objetivos pedagógicos voltados diretamente a capacitar os alunos a mobilizar os saberes em contextos de cada vez maior complexidade.

18 DALE, Edgar. Audiovisual methods in teaching. New York: Dryden Press, 1946.19 Resolução Enfam n. 11/2015, anexo único.

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Os objetivos pedagógicos, por sua vez, serão as âncoras para a definição de todos os demais elementos da ação de formação, como con-teúdos, carga horária, professores, metodologia e sistemas de avaliação.

Tendo-se presente que o foco da formação transferiu-se da escola e do formador para o formando, e que se pretende desenvolver competências relativas não apenas ao conhecer, mas também ao saber ser, ao saber convi-ver e ao saber fazer, modifica-se, ainda, a perspectiva quanto à metodologia a ser utilizada, que precisará garantir maior iniciativa e participação ao aluno na construção do conhecimento, num processo coletivo, com abertura de espaços relevantes e momentos para interação e compartilhamento de vivências e para o desenvolvimento da autonomia e da criatividade.

Um movimento de mudança no ensino como este não ocorre sem dificuldades e resistências, estas últimas motivadas fortemente pelo receio da novidade, da perda do controle sobre conteúdos e formas de promover a aprendizagem. É, porém, um movimento sem volta, que ocorre há mais tempo em várias outras áreas do conhecimento.

Ademais, um sistema judiciário que agora se volta para o respeito aos precedentes judiciais, terá que partir dos problemas, de situações concretas já decididas, e não mais do dogma (ou não exclusivamente), e fazer transitar seus operadores pelo caminho do raciocínio indutivo, da analogia e da argumentação, em que os mecanismos silogísticos de atuação já não resolvem os problemas que, ademais, apresentam-se a cada dia mais complexos.

Ao se pretender que aquele candidato do concurso, no exemplo cons-truído na introdução deste artigo, consiga mobilizar os conhecimentos que adquiriu para resolver o problema concreto que lhe foi trazido pelo examinador, é necessário oportunizar a ele a experimentação, desen-volver nele a capacidade de articular conhecimentos teóricos e práticos, permitir que aprenda a combinar as dimensões cognitiva, do saber fazer e comportamental.

A atividade teórica possibilita o conhecimento da realidade e o es-tabelecimento de finalidades para sua transformação. Mas, para produzir tal transformação, não é suficiente a atividade teórica, é preciso atuar de forma prática.20

20 VAZQUEZ, A. S. Filosofia da praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

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Que este movimento, que se inicia no mundo jurídico, nacional e internacional, pelas escolas de magistratura, ganhe espaço e impulso entre os demais operadores do Direito, no ensino profissional e no ensino universitário. Que o novo modelo se aperfeiçoe constantemente, criando oportunidades para o aprendizado entre os pares e com os demais prota-gonistas do mundo jurídico, em uma perspectiva transdisciplinar e cada vez mais dinâmica.

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A CRISE COMO INCENTIVO AO RECONHECIMENTO DO DANO MORAL

COLETIVO AMBIENTAL

GRAYCE KELLY BIOEN Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.

Pós-Graduanda em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal. Integrante do Corpo Editorial da Revista de Direito Ambiental e Sociedade (RDAS). Participante do Grupo de

Pesquisa do CNPq: “Estado, Ambiente e Jurisdição”. Advogada.

RAFAELA SANTOS MARTINS DA ROSAJuíza Federal Substituta na 12ª Vara Federal de Porto Alegre. Graduada em Direito pela

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Direito pela UNIVALI/SC e mestre em Direito e Sustentabilidade pela Universidade de Alicante/Espanha.

Professora de Direito Ambiental, Direito Penal e Processual Penal na Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul.

Diretora Geral da ESMAFE/RS e vice-presidente da AJUFERGS, Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul.

RESUMO: A crise ambiental tornou-se a grande preocupação da pós-modernidade, já que o estilo de vida contemporâneo prevê uma necessidade cada vez maior de aquisição e substituição de mercadorias, motivado, sobretudo, pelo paradigma estilístico. Sendo assim, percebe--se uma diminuição considerável dos recursos naturais existentes, bem como o aumento na produção de resíduos sólidos que desencadeiam a presença de danos ambientais. Nesse contexto, percebem-se as limitações dos mecanismos existentes para a contenção dos efeitos advindos da crise, tornando necessária a presença de um novo elemento para freá-la: o dano moral coletivo ambiental, que ganha fôlego na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e objetiva realizar a reparação do meio ambiente da forma mais completa possível.

PALAVRAS-CHAVE: Meio Ambiente. Dano Moral. Coletividade. Crise Ambiental.

IntroduçãoNo período pós-moderno, os objetos mais banais assumem formas

sinuosas e cores alegres, passando a fazer parte de um universo dedicado a eles: o design. As fortes influências trazidas com o desenvolvimento industrial e a multiplicidade de mercadorias disponíveis no mercado

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contribuíram para a consolidação de um novo paradigma: o estilista. E assim, com o advento de uma nova ideologia, surge um novo modelo capitalista, que, inevitavelmente, também é artístico.

Em meio a essa realidade efêmera, marcada por excessos, a proteção ao meio ambiente torna-se fundamental para a manutenção do equilíbrio ecológico para as futuras gerações; em especial com o aumento conside-rável dos resíduos sólidos e os impactos ambientais provenientes dessa nova realidade denominada crise ambiental. Assim, a identificação das questões que assombram a pós-modernidade e as consequências da relação homem-natureza permitiram concluir que os mecanismos de reparação de danos existentes são insuficientes para combater os efeitos advindos da crise, já que, além de não alcançarem a reparação integral do ambiente, não conseguem desestimular a prática criminosa.

Diante dessa realidade e buscando uma valorização cada vez maior dos recursos naturais, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a existência do dano moral coletivo ambiental, que, além de consagrar o princípio “in dubio pro natura”, apresenta caráter punitivo e pedagógico, já que, ao ser considerado mais um elemento de punição e possuir critérios que permitam que as indenizações sejam arbitradas sem o risco de enriquecimento exacerbado, serve como desestímulo à prática poluidora.

A crise ambiental e o paradigma estilísticoO momento vivenciado, fortemente influenciado pelo design e as

suas tendências minimalistas – que ocasionam a falsa ilusão de que menos é mais – em uma sociedade de anseios efêmeros e passageiros, marcada pela constante insatisfação,1 desencadeou um sistema capita-lista diferenciado, capaz de atender aos anseios dessa nova geração de consumidores que preza pelo belo, pelo artístico e necessita, portanto, de um capitalismo artista, como bem descreve Lipovetsky e Serroy:2

1 BAUMAN, Zygmunt. A Ética é Possível num Mundo de Consumidores? 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 174.2 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 43.

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O capitalismo artista tem de característico o fato de que cria valor econômico por meio do valor estético e experiencial: ele se afirma como um sistema conceptor, produtor e distribuidor de prazeres, de sensações, de encantamento. Em troca, uma das funções tradicionais da arte é assumida pelo universo empresarial. O capitalismo se tornou artista por estar sistematicamente empe-nhado em operações que, apelando para os estilos, as imagens, o divertimento, mobilizam os afetos, os prazeres estéticos, lúdicos e sensíveis dos consumidores. O capitalismo artista é a formação que liga o econômico à sensibilidade e ao imaginário; ele se ba-seia na interconexão do cálculo e do intuitivo, do racional e do emocional, do financeiro e do artístico.

Essa nova percepção da realidade contribui de forma exponencial para o agravamento da crise ambiental, já que o culto à beleza propor-ciona uma nova forma de obsolescência: a estilística. Nesse contexto, eletrodomésticos passam a ser substituídos apenas porque o branco já não é mais tendência, e sim a cor metálica, que, apesar de ser considerada símbolo da modernidade, vem perdendo espaço para a cor preta, que representará (em pouco tempo) o que há de mais luxuoso no mercado.

E assim, sucessivamente, desencadeia-se um longo processo de substituição de mercadorias,3 motivado não tanto pela ineficiência no desempenho de suas funções, mas apenas pela cor, forma, estilo, que deixam de atender as expectativas dos consumidores. Lipovetsky e Serroy4 fazem uma constatação interessante a esse respeito:

Nenhum objeto, por mais banal que seja, escapa hoje da intervenção do design e seu trabalho estilístico. Até os produtos que outrora eram estritamente utilitários e tinham pouco a ver com a dimensão estéti-ca (telefones, relógios, óculos, material esportivo ou de escritório, roupas de baixo, transportes coletivos) são agora redesenhados por designers, quando não artistas em vanguarda, repaginados continu-amente, transformados em acessórios de modas.

3 BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: A Transformação das Pessoas em Mer-cadoria. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 162.4 LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. p. 49-50.

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Da análise, percebe-se que, nos últimos tempos, em especial com a incorporação do consumo como estilo de vida e antídoto para os mais variados males que assombram a pós-modernidade, surge um novo mercado, capaz de atender as demandas de um público que anseia para exercer o poder que o capitalismo lhe proporciona: o de compra. E as-sim, com a emoção e as infinitas possibilidades resultantes do crédito facilitado, a mercadoria que até então era vista como algo necessário e, quando em demasia, supérfluo, assume tamanha importância na vida dos consumidores, que se torna parte indissociável de seu cotidiano. Nesse sentido, argumenta Debord: 5

Por esse movimento essencial do espetáculo, que consiste em retornar nele tudo o que existe na atividade humana em estado fluído, para possuí-lo em estado coagulado, como coisas que se tornaram o valor exclusivo em virtude da formulação pelo avesso do valor vivido, é que reconhecemos nossa velha inimiga, a qual sabe tão bem, à primeira vista, mostrar-se como algo trivial e fácil de compreender, mesmo sendo tão complexa e cheia de sutilezas metafisicas, a mercadoria.

Depreende-se que a fluidez da mercadoria vai de encontro à liquidez da pós-modernidade, constantemente insatisfeita com as imperfeições que a vida lhe impõe e que são atinentes a ela, desejando, portanto, um estilo de vida que beire ao espetacular, em que não há espaço para impurezas. A sociedade do espetáculo busca uma vivência que não lhe pertence, coagulada, como diria o autor, formulada pelo avesso, encontrando refúgio na mercadoria e sua orla de encantos.

O design, nesse contexto, além de estimular a aquisição de merca-dorias, apresenta uma faceta mais obscura: a de incentivar a substitui-ção. Produtos que não atendam determinados padrões estilísticos sob esse enfoque devem ser trocados por uma versão mais cool, estilizada. Bauman faz uso da maquiagem como exemplo, já que em uma estação a cor que era tendência, na seguinte, deixa de ser, necessitando ser tirada das prateleiras:

5 DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. 14. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015. p. 27.

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O que quer dizer tudo isso? É preciso “jogar no lixo” o bege a fim de preparar o rosto para receber cores profundamente vivas, ou as cores fortes estão invadindo as prateleiras dos supermercados e os balcões de cosmética para se ter certeza de que a carga de produtos bege não usados realmente sejam jogados fora? Os milhões que jogam fora o bege e abastecem a bolsa de cores vivas provavelmen-te diriam que o tom relegado ao monte de lixo é um triste efeito colateral ou uma “vítima colateral” do progresso da maquiagem. Mas alguns dos milhares que reabastecem as gôndolas dos super-mercados poderiam admitir, em algum momento de sinceridade, que a inundação das prateleiras com cores muito vivas foi incitada pela necessidade de encurtar a vida útil do bege, e com isso manter a economia em marcha. 6

O impacto ocasionado pela geração descartável, que contraria o velho princípio de Lavoisier,7 que dizia que “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, passa a ser relegado a segundo plano em uma época marcada pela estilização. Percebe-se que a busca por produtos diferen-ciados tem estimulado algumas empresas a criarem eletrodomésticos especiais, que tem seu custo quadriplicado apenas porque apresentam um design mais elegante. O site de compras Submarino8 possui uma ca-tegoria específica para esse tipo de mercadoria, denominada Cool Stuff, em que é possível encontrar os mais diversos produtos.

Pode-se dizer da análise dos itens considerados “moderninhos” que não existe faixa etária para as influências estilísticas. Isso porque, entre o rol de produtos estilizados, é possível encontrar brinquedos, ele-trônicos, artigos esportivos e até mesmo carrinho para recém-nascidos, demonstrando que as novas e futuras gerações já nascem inseridas em um contexto cultural “estiloso”.

6 BAUMAN, Zygmunt. A Ética é Possível num Mundo de Consumidores? 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. p. 151-152.7 O aforismo popular é inspirado na “Lei de Conservação das Massas” que ganhou notoriedade com Antoine Laurent Lavoisier (1743 e 1794) também conhecida como Lei de Lavoisier.8 Cool Stuff. Disponível em: <http://www.submarino.com.br/coolstuff>. Acesso em: 25 fev. 2017.

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Percebe-se que o paradigma estilístico ganha fôlego a partir do fe-nômeno de valoração das mercadorias, pois, como é sabido, vivencia-se a falsa ilusão de que na aquisição de um produto de alto custo estará embutido o valor de sua qualidade. A informação que, muitas vezes, corresponde à realidade mostra-se aparentemente exagerada, quando um refrigerador de uma porta, da marca SMEG, verde-maçã, com esti-lo retrô anos 50, custe, na categoria de Cool Stuff do Submarino, valor equivalente a R$ 13.729,00 (treze mil, setecentos e vinte e nove reais) 9.

Um exemplo mais próximo à realidade e que pode ser usado ao tratar da substituição de mercadorias está relacionado à moda. Pois ela foi, em um primeiro momento, o berço de toda a criação estilística imposta à sociedade, já que dela resultam as maiores mudanças realizadas em um curto espaço de tempo. Gilles Lipovetsky10 aborda a questão:

Nesse sentido, é verdade que a moda, desde que está instalada no Ocidente, não tem conteúdo próprio; forma específica da mudança social, ela não está ligada a um objeto determinado, mas é, em primeiro lugar, um dispositivo social caracterizado por uma tem-poralidade particularmente breve, por reviravoltas mais ou menos fantasiosas, podendo, por isso, afetar esferas muito diversas da vida coletiva. Mas até os séculos XIX e XX foi o vestuário, sem dúvida alguma, que encarnou mais ostensivamente o processo de moda; ele foi o teatro das inovações formais mais aceleradas, mais caprichosas, mais espetaculares.

A moda, dada as suas peculiaridades, em especial a liberdade de criação que a rodeia, permite uma reinvenção constante do vestuário. Nesse sentido, o que é tendência hoje deixará de ser na próxima estação, desencadeando um verdadeiro processo de escravidão estilística, que é preocupação ambiental na medida em que o estímulo ao descarte e a sua banalização passa a ser vista com naturalidade, incorporando-se ao coti-

9 Geladeira / Refrigerador Verde-Maça SMEG 1 Porta. Disponível em: <http://www.submarino.com.br/produto/ 113081994/geladeira-refrigerador-smeg-1-porta-a-nos-50-esquerda-268l-verdemaca?condition=NEW&oferta=3131333038323030362e303037373635 37343030303636302e4e4557>. Acesso em: 28 fev. 2017.10 LIPOVETSKY, Gilles. O Império do Efêmero. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 25.

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diano dos consumidores, que, acostumados com a baixa temporalidade dos produtos, seguem os ditames impostos pela indústria do vestuário sem realizar uma reflexão crítica a respeito da cadeia produtiva.

O documentário “The True Cost”11 surge como alerta a essa questão e busca desvendar quem paga o verdadeiro preço pelas roupas que são utilizadas atualmente. Através de uma série de entrevistas realizadas, de-monstra as precárias condições de trabalho que grandes marcas fornecem para a confecção de seus produtos, bem como os impactos ambientais resultantes da cadeia produtiva, que inegavelmente contribuem para o agravamento da crise ambiental.

A cultuação ao belo, ao estilístico, ao minimalista desperta um grande questionamento a ser enfrentado: qual será o destino atribuído ao que já não é mais utilizado e não poderá ser reciclado? Em especial o dos eletrônicos, fundamentais ao cotidiano pós-moderno e indissoci-áveis da realidade das gerações presentes? Resíduos sólidos, nesse caso altamente poluentes, tornam-se um problema ambiental na medida em que existem pouquíssimos pontos de coletas disponíveis no país12, de-sencadeando descarte incorreto e contaminação de metais pesados nos solos, nos rios, e até mesmo propiciando o contato direto de catadores com lixo contaminado.

Nesse ínterim, quem sabe o processo de conscientização da socie-dade de consumo pós-moderna, inserida em meio ao paradigma estilista, seja a percepção da insustentabilidade relacionada à temporalidade de seus produtos. A observação de que o design enquanto influência res-ponsável pela renovação de mercadorias pode destruir ou contribuir para a proteção ambiental permite que haja uma escolha, que poderá estar pautada na sustentabilidade.

E assim, a partir da readequação das criações estilísticas através de conceitos atemporais, capazes de quebrar o ciclo vicioso de descarte e

11 The True Cost. Disponível em: <http://truecostmovie.com/>. Acesso em: 25 fev. 2017.12 Destino do Lixo Eletrônico Vira um Desafio Planetário. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2015/11/destino-do-lixo-eletronico-vira-um-de-safio-planetario.html> Acesso em: 25 fev. 2017.

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substituição imediata de utensílios apenas em virtude da cor e forma, pode ser um grande avanço para controlar os efeitos da crise ambiental. Porque embora a solução surja como utópica, talvez seja o caminho para o surgimento de um novo paradigma. E é possível essa mudança de consciência. Prova disso são os alimentos orgânicos, que estão ganhando um espaço cada vez maior no mercado.

Acredita-se que a consciência da crise e um estímulo maior na pro-dução de produtos atemporais desencadeariam um novo grupo de con-sumidores, mais conscientes, exigentes e sustentáveis, que resgatariam um pouco de seus ancestrais, para os quais a substituição de mercadorias em plenas condições de uso apenas por não serem mais “bonitas” era incogitável.

O dano moral coletivo no estado socioambientalEm meio a um contexto pós-moderno marcado cada vez mais pela

substituição de mercadorias e pelo surgimento de necessidades até então desnecessárias, torna-se inegável a existência de uma crise ambiental que se concretiza através da presença cada vez maior de danos ambientais. Pois, em que pesem as inúmeras contribuições trazidas com a Consti-tuição Federal de 1988 – de fundamental importância para a valorização de legislações como a Política Nacional do Meio Ambiente de 1981, a Lei da Ação Civil Pública de 1985 e que certamente teve papel decisivo na criação da Lei dos Crimes Ambientais de 1998 –, o aumento popula-cional aliado ao estilo de vida considerado “digno” na pós-modernidade tornou necessária a criação de mecanismos de contenção para os eventos danosos que crescem em ritmo alarmante.

Nesse sentido, sabe-se que o paradigma individualista e utilitarista do homo sapiens contribui de forma negativa para a manutenção do equi-líbrio ecológico, já que torna predominante a falsa ideia de que compete única e exclusivamente ao ente estatal essa responsabilidade. Darcy Azambuja,13 ao falar de Estado, fez um alerta para o número crescente de atribuições que lhe são conferidas:

13 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4. ed. São Paulo: Globo, 2008. p. 156.

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De há um século para cá tem aumentado assombrosamente a com-petência do Estado, o volume dos assuntos sobre os quais ele é chamado a decidir e mandar. Foi erigido em Providência onipotente pelo fetichismo político do homem moderno e incumbido não apenas de manter a ordem nas ruas, mas também de dar paz e conforto aos corações magoados e aos espíritos inquietos, saúde aos enfermos, alegria aos infelizes, ciência aos ignorantes, senso aos levianos. Não bastou que distribuísse justiça: teve também de distribuir pão, água, luz, música e notícias.

A dificuldade em atender a todos esses anseios é inegável e desen-cadeou a ilusão de que o ente estatal é responsável de forma integral para zelar pelos direitos do povo, fazendo com que a responsabilidade compartilhada entre Estado e Coletividade defendida pelo Constituinte de 1988 fosse esquecida e a crise ambiental agravada. O dano ecológico nesse cenário surge como resquício desse processo de apropriação da natureza, que pode ser comparado a um grande supermercado, em que tudo se extrai e nada se devolve,14 mas tendo como agravante o fato de que o preço, até então gratuito, poderá custar caro.

O dano ambiental, embora possua conceituação aberta, pode ser compreendido como um atentado às condições naturais do meio ambiente, isto é, tudo aquilo que modifique a sua estrutura original e cause impactos a curto, médio e longo prazo. Sendo que para sua caracterização não é preciso que seja visível, já que tal conceituação excluiria os impactos advindos da poluição e da radiação, por exemplo. A respeito do conceito abstrato de dano, Carvalho15 expõe:

A inexistência de previsão expressa do conceito de dano ambiental favorece uma construção dinâmica de seu sentido na interação entre a doutrina e os tribunais, atendendo à necessária ponderação dos interes-ses em jogo e à garantia da qualidade de vida assegurada constitucio-nalmente. O dano ambiental detém um conceito aberto, dependendo da avaliação do caso concreto pelo intérprete para a sua configuração, em face da dimensão multifacetária que engendra seu diagnóstico.

14 NALINI, José Renato. Ética Ambiental. 3. ed. Campinas: Millennium, 2010. p. XXI.15 CARVALHO, Délton Winter de. Dano Ambiental Futuro: A Responsabilização Civil pelo Risco Ambiental. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 102.

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A principal vantagem da ausência de uma definição própria para “dano ambiental” reside justamente na possibilidade conferida ao caso concreto de ser analisado de forma individualizada, já que os inúmeros componentes da crise são considerados eventos danosos, como o aque-cimento global, os agrotóxicos, a contaminação dos solos, a poluição hídrica, o desmatamento, temas que, embora distintos, são tidos como danos ambientais e que estão interligados, já que o meio ambiente não possui fronteiras – como o fatídico evento ocorrido em Novembro de 2015, no Distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (Minas Gerais), demonstrou, onde a enxurrada de lama alcançou o estado do Espírito Santo e também o da Bahia.

Percebe-se que, diante da presença cada vez maior de danos ambien-tais e de impactos negativos para o meio ambiente e a qualidade de vida das presentes e futuras gerações provenientes dessa realidade, tornou-se necessário encontrar mecanismos para coibir e reparar a existência de eventos danosos, até mesmo como forma de combater ou remediar a crise ambiental vivenciada. Nesse sentido, em que pese a existência de institutos como a reposição natural e a compensação ecológica buscarem instrumentos para a realização da reparação integral com a menor inter-venção humana possível, isso se torna insuficiente em termos práticos, já que, embora restaurem o meio ambiente, não atuam como desestímulo à prática de novos danos.

Sendo assim, torna-se indispensável a presença da responsabilidade civil, pois, embora seja considerada medida extrema por atuar em três esferas distintas, é o que vem trazendo maiores resultados nas últimas décadas no combate aos crimes ambientais. Nesse contexto, destaca-se a área cível, que até pouco menos de uma década atrás contava apenas com a responsabilização proveniente de danos materiais, mas que, a partir de 2010,16 através do reconhecimento do Superior Tribunal de Justiça, passou a contar com a presença da responsabilidade civil por dano moral ambiental coletivo, que representou um grande avanço dentro do instituto, já que, além de servir como desestímulo à prática criminosa, permitiu que a reparação fosse realizada da forma mais completa possível.

16 Através do Recurso Especial n. 1.180.078, do Tribunal de Justiça do Estado de Mi-nas Gerais, datado de 2010 (julgado em 02.10.2010) que teve como relator o Ministro Herman Benjamin.

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O dano extrapatrimonial coletivo ambiental ou dano moral coletivo ambiental está relacionado à privação que as presentes e futuras gerações terão ao meio ambiente ecologicamente equilibrado em decorrência de um evento danoso, podendo se dar, a título exemplificativo, através da perda do patrimônio histórico, cultural e paisagístico, elementos que jamais serão recuperados. O próprio lapso temporal que decorre até a recuperação do status quo (quando for possível alcançá-lo) é considerado ensejador dessa modalidade indenizatória, já que durante o período em que as condições foram diversas das previstas originalmente houve um prejuízo ao sujeito coletivo. Além disso, a extensão do dano não pode ser fator determinante para sua caracterização, uma vez que tal premissa excluiria, por exemplo, o dano futuro, que muitas vezes apresenta pe-quenas consequências a curto prazo e grandes consequências a médio e longo prazo.

Nesse sentido, salienta-se a importância de uma diferenciação precisa entre dano moral coletivo ambiental e dano moral individual ambiental, já que a repercussão na aplicação do instituto da responsabilidade civil possui grandes peculiaridades, em especial no que diz respeito ao valor a ser arbitrado a título indenizatório, que representa a grande dificuldade na concretização do instituto, pois, ao contrário do que ocorre em uma relação entre particulares, o valor, por ser destinando a um Fundo Esta-dual ou Federal com o intuito de fomentar a proteção ambiental, jamais enfrentará o risco do enriquecimento exacerbado.

Sobre a distribuição dos valores arrecadados, Rodrigueiro17 afirma: “Diante de um grupo indeterminado, o dano deve ser reparado e os valores apurados destinados a um fundo de reconstituição dos bens le-sados de acordo com a Lei da Ação Civil Pública”, o que permite uma análise do art.13 da referida legislação:

Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano cau-sado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Minis-

17 RODRIGUEIRO, Daniela. Dano Moral Ambiental: Sua Defesa em Juízo, em Bus-ca de Vida Digna e Saudável. 1. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004. p. 153.

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tério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados. 18

Observa-se que competirá à União e aos Estados dispor dos recursos auferidos. Sendo assim, em âmbito federal, a Lei n. 7.797, de 1989, criou o Fundo Nacional do Meio Ambiente19, administrado pela Secretaria Nacional do Meio Ambiente; e no âmbito estadual, a Lei n. 10.330, de 27 de Dezembro de 1994, criou o Fundo Estadual do Meio Ambiente (FEMA) 20.

Em que pese a existência do instituto desde 1985 com a criação da Lei da Ação Civil Pública, sua aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça é recente, já que até então as decisões proferidas manifestavam-se de forma contrária ao instituto. A partir de 2010, quando saíram as primeiras decisões favoráveis, foi possível perceber a consagração de princípios ambientais, bem como o surgimento de novos (que é o caso do in dubio pro natura), conforme será exposto a seguir.

O Agravo Regimental no Recurso Especial n. 571.389 do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, datado de 2014 (julgado em 13.10.2015), que teve como relator o Ministro Humberto Martins, refor-çou o valor imaterial do meio ambiente e a sua importância imensurável para a coletividade ao determinar a demolição de uma edificação cons-truída de forma irregular em área de preservação permanente:

AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. EDIFICAÇÃO IR-REGULAR EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DUNAS E VEGETAÇÃO DE RESTINGA. ACÓRDÃO REGIO-NAL QUE, EMBORA RECONHEÇA A IRREGULARIDADE, MANTÉM A EDIFICAÇÃO. VIOLAÇÃO DOS ARTS. 2º, “F”, E PARÁGRAFO ÚNICO, E 3º, “B”, E § 1º, DA LEI 4.771/1965.

18 BRASIL. Lei n. 7.347, de 24 de Julho de 1985. Disponível em: <http://www.pla-nalto.gov.br /ccivil_03/leis/L7347Compilada.htm> Acesso em: 04 fev. 2017.19 BRASIL. Lei n. 7.797, de 10 de Julho de 1989. Disponível em: <http://www.pla-nalto.gov. br/ccivil_03/leis/L7797.htm> Acesso em: 04 fev.2017.20 RIO GRANDE DO SUL. Lei n. 10.330, de 27 de Dezembro de 1994. Disponí-vel em: <http://www.al.rs.gov.br/legiscomp/arquivo.asp?Rotulo=Lei%20n%BA%2010330&idNorma=247&tipo=pdf> Acesso em: 04 fev. 2017.

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CONFIGURADA. DEMOLIÇÃO DA CONSTRUÇÃO E RECU-PERAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA. NECESSIDADE. 1. Na origem, o Ministério Público do Estado de Santa Catarina propôs ação civil pública contra os antigos e o atual proprietário de imóvel, pois teriam edificado em área de preservação permanente de dunas e de vegetação de restinga fixadora das dunas (“Praia do Santinho – Bairro do Ingleses”), pleiteando a demolição da edificação, sem prejuízo da recuperação ambiental e da indenização por danos morais coletivos. 2. Ao negar provimento ao recurso de apelação do Parquet, o Tribunal de origem entendeu por bem, “mesmo veri-ficando a possibilidade de real impacto ambiental e considerando que a área em análise deveria de fato ser preservada” (fl. 237, e-STJ), manter as edificações irregulares na área de preservação permanente de dunas e restingas. 3. Todavia, estando a construção edificada em área prevista como de preservação permanente, limi-tação administrativa que, só excepcionalmente, pode ser afastada (numerus clausus), cabível sua demolição com a recuperação da área degradada, haja vista contrariedade direta aos arts. 2º, “f”, parágrafo único, e 3º, “b”, § 1º, da Lei 4.771/1965, interpretados restritiva-mente. 4. Ademais, as “restingas” são ecossistemas associados ao bioma “Mata Atlântica”, encontrando proteção também no art. 2º da Lei 11.428/2006 (Lei da Mata Atlântica). Agravo regimental provido para, em realinhamento do meu entendimento, do agravo e dar provimento ao recurso especial.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça surpreende na medida em que o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina havia afastado a hipótese de demolição, já que a construção estava pronta. A Corte, ao determinar que a edificação seja demolida, não apenas assegura que a legislação vigente seja cumprida, mas atua como desestímulo para a realização de novas construções em áreas de preservação permanente. O caso exemplifica a importância do meio ambiente para o ordenamento jurídico, que se sobrepõe ao direito patrimonial, devendo ser tutelado sempre. A reparação nesse contexto ocorre da forma mais completa possível, pois além do particular ser obrigado a demolir sua edificação, terá de arcar com os custos materiais e morais que a construção indevida desencadeou no meio ambiente, situação que poderia ter sido evitada, caso o particular tivesse respeitado a APP – típico exemplo em que a punição certamente cumprirá seu papel pedagógico.

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O Recurso Especial n. 1.367.923 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, datado de 2011 (julgado em 27.08.2013), que teve como relator o Ministro Humberto Martins, é genial na medida em que consagra o principio in dubio pro natura:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. OMISSÃO INEXISTENTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. CONDENAÇÃO A DANO EXTRAPATRIMONIAL OU DANO MORAL COLETIVO. POS-SIBILIDADE. PRINCÍPIO IN DUBIOPRO NATURA. 1. Não há violação do art. 535 do CPC quando a prestação jurisdicional é dada na medida da pretensão deduzida, com enfrentamento e resolução das questões abordadas no recurso. 2. A Segunda Turma recente-mente pronunciou-se no sentido de que, ainda que de forma reflexa, a degradação ao meio ambiente dá ensejo ao dano moral coletivo. 3. Haveria contra sensu jurídico na admissão de ressarcimento por lesão a dano moral individual sem que se pudesse dar à coletividade o mesmo tratamento, afinal, se a honra de cada um dos indivíduos deste mesmo grupo é afetada, os danos são passíveis de indenização. 4. As normas ambientais devem atender aos fins sociais a que se destinam, ou seja, necessária a interpretação e a integração de acordo com o princípio hermenêutico in dubio pro natura.

Como bem salientado, seria contraditório reconhecer a existência de um dano moral individual, até mesmo na seara ambiental, e não admitir o coletivo, já que é notória a presença de danos que ultrapassam meros dissabores e atingem uma coletividade difusa. Nesse sentido, acertada a decisão que além de consagrar o princípio in dubio pro natura, isto é, na dúvida, o meio ambiente deve ser considerado, também reconhece a importância do direito acompanhar a sociedade e as novas demandas ambientais que surgem constantemente.

Da análise dos julgados percebe-se o caráter protecionista da Corte e a busca incessante para que o meio ambiente ecologicamente equilibrado seja alcançado, mesmo sendo necessário adotar medidas extremas, como no julgado que determinou a demolição de edificação construída em área de preservação permanente. Tais situações, embora sejam lamentáveis por estarem no Judiciário e terem enfrentado um longo caminho processual até chegarem ao STJ, trazem esperança ao evidenciarem que o dano ambiental jamais ficará impune, pelo contrário, será julgado de modo repressivo e pedagógico.

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ConclusãoPercebe-se um real agravamento da crise ambiental na pós-moderni-

dade, marcada, sobretudo, pelo estilo de vida pós-moderno e o aumento na oferta de produtos disponíveis no mercado. Situações que, somadas à facilidade ao crédito, desencadearam um momento caótico, em que o “ter” vale mais que o “ser” e a busca incessante pelo novo torna-se o principal objetivo a ser alcançado na vida dos consumidores, que, emaranhados em um ciclo de descarte, substituem constantemente suas mercadorias, cada vez mais rápido.

As consequências desse paradigma para o meio ambiente são inestimáveis e podem ser vistas através da multiplicação do número de danos ambientais, que cresce em ritmo alarmante, tornando necessária a existência de mecanismos para prevenir e reparar os estragos ocasio-nados. Diante da ineficácia dos institutos existentes, que não conseguem alcançar a reparação da forma mais completa possível, ganha força na jurisprudência do STJ o reconhecimento do direito à coletividade de um dano moral coletivo ambiental, que, apesar de apresentar algumas difi-culdades quanto à sua caracterização e valoração, deve ser considerado uma grande conquista para a causa verde e um instrumento a mais no combate à crise ambiental.

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A (IM)POSSIBILIDADE DE GOZO CONCOMITANTE DE DIREITOS SOCIAIS

DAS SERVIDORAS PÚBLICAS EM LICENÇA-MATERNIDADE: UMA ANÁLISE DA

SOBREPOSIÇÃO DOS DIREITOS A FÉRIAS E LICENÇA À GESTANTE

LETÍCIA BORGES THOMAS Advogada; Mestre em Direito Internacional Público (Advanced LL.M.), com especialização

em Paz, Justiça e Desenvolvimento, pela Leiden University (Países Baixos), premiada por excelência por meio da Leiden Excellence Scholarship; Especialista em Direito Público pela

Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul em convênio com a Universidade de Caxias do Sul. Trabalhou como profissional contratada no Tribunal Penal Internacional e possui publicações em matéria de Direito Constitucional, Direito Internacional e Direitos

Humanos.

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo a análise sobre a legi-timidade da fruição concomitante de licença-maternidade e férias no âmbito da Administração Pública. Consagrados pelo art. 7º, incisos XVII e XVIII, da CF/88 para todos os trabalhadores e estendidos aos servidores públicos por meio do art. 39, §3º, os direitos sociais de férias e licença-maternidade são direitos imutáveis sob a ótica constitucional. O status constitucional de direito social/cláusula pétrea atribuído à licença-maternidade e às férias torna-os preponderantes em relação à legislação infraconstitucional ou ao entendimento jurisprudencial que, de alguma maneira, limite o gozo desses direitos por eventual permissibilidade de concomitância. O art. 80 da Lei n. 8.112/90 elenca taxativamente as possibilidades de interrupção das férias, e assim o é para proteger o servidor público de perturbação ao descanso, não sendo possível que a Administração Pública ou o Poder Judiciário o interprete de maneira a suprimir este direito ou reduzi-lo. A licença-maternidade não é uma benesse à trabalhadora, mas uma proteção ao nascituro e ao infante, não se confundindo com a natureza do direito a férias, existente para fins de proteção ao trabalho e à saúde do trabalhador. A legalidade da suspensão/interrupção do gozo de férias de servidora pública em caso de concomitância com licença-maternidade é discutida como objetivo geral. Licença à gestante e férias são direitos indispensáveis e assegurados a trabalhadoras celetistas e servidoras públicas, não se podendo interpretá-los de maneira a prejudicar servidora pública que vier a dar à luz durante período de férias, quando haverá o encontro de ambos os benefícios. Essa situação já foi superada na seara trabalhista.

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Em âmbito Administrativo, cabe assegurar que a garantia de pleno gozo dos direitos sociais não dependa da sorte da servidora em relação ao momento do parto.

PALAVRAS-CHAVE: Direitos sociais. Férias. Licença-maternidade. Servidor Público. Interrupção de férias.

1 IntroduçãoOs direitos fundamentais assegurados aos trabalhadores na Consti-

tuição Federal são garantias sociais enquadradas na categoria de direitos fundamentais de segunda geração. Exigem, para a sua efetividade, a ação positiva do Estado para estabelecer certo grau de igualdade material que proporcione aos cidadãos meios que os subsidiem nas desproporções das relações sociais e econômicas, seja essa intervenção promovida pelo Legislativo, pelo Executivo ou pelo Judiciário. O direito a férias, como uma das expressões dessas garantias, é um direito social de índole constitucional assegurado aos trabalhadores para garantir-lhes descanso prolongado em retribuição a um lapso temporal de dedicação ao trabalho. O direito à licença-maternidade, outrossim, também re-presenta um benefício consagrado entre os direitos fundamentais, cujo fito, a proteção à maternidade, mostra-se essencial à trabalhadora em decorrência de sua responsabilidade biológica e social pelo evento da maternidade.

Diante das divergências jurisprudenciais que vêm surgindo no tocan-te ao gozo desses direitos no serviço público, mostra-se mister a análise acerca da legalidade/constitucionalidade da sua fruição concomitante no âmbito da Administração Pública.

Para que esse estudo possa ser feito, examinar-se-ão os direitos sociais dos trabalhadores, sua evolução e seu status de direitos fundamen-tais, tidos como imutáveis sob a ótica constitucional. Também, apontar--se-ão e analisar-se-ão as distintas finalidades e a indispensabilidade da licença-maternidade e das férias – ambas asseguradas a celetistas e servidoras públicas –, e o entendimento jurisprudencial dos Tribunais trabalhistas acerca desses direitos.

Assim, poder-se-á discutir as disposições do art. 80 da Lei n. 8.112/90, que trata das causas interruptivas das férias no serviço público,

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e se é legítima a interpretação da licença-maternidade como uma dessas causas ou se seria uma causa suspensiva.

Com o objetivo de embasar a delimitação do tema, ou seja, a garan-tia dos direitos sociais aos servidores públicos, analisam-se, portanto, subsídios legais, doutrinários e jurisprudenciais que definam o cenário contemporâneo do funcionalismo público em relação aos direitos traba-lhistas que lhe são assegurados.

Por fim, tenta-se responder ao problema e confirmar a veridicidade das hipóteses das pesquisas por meio da análise da legalidade da deter-minação, à servidora pública, de fruição de licença-maternidade e férias concomitantemente quando aquela parteja durante gozo das férias.

A relevância da matéria mostra-se clara quando se percebe tratar-se a questão de uma análise de direitos indispensáveis à dignidade do ser humano no que tange ao exercício de seu trabalho e, inquestionavelmente, à sua dignidade no que toca à própria existência, visto que os efeitos do labor repercutem imediata e diretamente nas demais esferas da vida da pessoa. Tratando-se de uma abordagem voltada a direitos que preservam a saúde da servidora pública, por meio das férias, e protegem a mater-nidade e o bebê, por meio da licença-maternidade, a realização desta análise é de extrema importância, porquanto a interpretação acerca da sua fruição quando em eventual e imprevista concomitância influencia diretamente no tempo que a genitora poderá prestar cuidados ao bebê e recuperar suas condições físicas e mentais para o trabalho.

2 Dos direitos sociais do trabalhadorSob a ótica dos direitos humanos, a Unesco definiu os direitos

fundamentais relacionando-os ao Direito Constitucional e ao Direito Internacional, considerando-os sob duas perspectivas distintas.1 Definiu--os como direitos cuja missão é, por um lado, proteger, de maneira insti-tucionalizada, a esfera de direitos do indivíduo contra eventuais abusos de poder cometidos pelo Estado; e, por outro, promover, paralelamente,

1 Les dimensions internationales dês droits de l’homme. UNESCO, 1978, p. 11. Dispo-nível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001342/134209fo.pdf>. Acesso em: 20 abr. 2016.

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o estabelecimento de condições humanas de vida, bem como o desen-volvimento multidimensional da personalidade humana.

A positivação desses direitos pelo poder constituinte originário tem o condão de incorporá-los à ordem jurídica dos direitos considerados natu-rais e inalienáveis do indivíduo. Isso porque, conforme ensina Canotilho,2

para assegurá-los não é suficiente sua mera positivação na ordem jurídica: é necessário garantir a tais direitos a dimensão de Fundamental Rights, colocando-os no suprassumo do ordenamento jurídico – a Constituição Federal –, visto que “os direitos fundamentais são-no, enquanto tais, na medida em que encontram reconhecimento nas constituições e deste conhecimento se derivem consequências jurídicas. [...]”.3

Nos moldes em que foi escrita, a Constituição Federal não deixa dúvidas sobre seu caráter antropológico central constitucionalmente estruturante do Estado de Direito. O Estado de Direito é um Estado Constitucional, cuja base, pela análise dos direitos fundamentais consti-tucionalmente consagrados, exprime que sua raiz antropológica reconduz ao ser humano como pessoa, como cidadão, como trabalhador e como administrado. O Estado Constitucional “pressupõe a existência de uma constituição normativa estruturante de uma ordem jurídico-normativa fundamental vinculativa de todos os poderes públicos.” 4

Conforme já declarado pelo Supremo Tribunal Federal – STF e reafirmado pela doutrina, a Constituição Federal de 1988 é uma Consti-tuição Social.5 Assim, implícita ou explicitamente dispostos, os direitos sociais estabelecidos pela Carta Magna constituem fins programáticos intrínsecos da República Federativa do Brasil, cujo objetivo fundamental, nos termos do art. 3º, inciso IV, é o bem-estar social.

A partir de uma análise inicial de cunho morfológico, verifica-se que o vocábulo social é largamente empregado no direito constitucional, no direito do trabalho e, em certa medida, no direito administrativo. Entre-

2 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7.ed., 13 reimp. (Manuais Universitários). Coimbra: Almedina, 2003. p. 377.3 Idem.4 Ibidem, p. 248.5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.946/DF - medida cautelar - Rel. Min. Sydney Sanches, decisão: 29-4-99. Informativo STF n. 147.

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tanto, sob a ótica constitucional, direito social consiste em um gênero do qual os direitos dos trabalhadores participam como espécie.6

Os direitos sociais foram estabelecidos como ferramentas de preser-vação da dignidade humana, sendo considerados, portanto, integrantes da expressão “direitos e garantias individuais”, disposta no art. 60 da Constituição Federal.7 Destarte, configuram cláusulas pétreas não sus-cetíveis a emendas constitucionais, conforme disposto no §4º, inciso IV, do referido dispositivo.

A categoria de direitos sociais é consagrada na Carta Magna a partir de seu art. 6º. Esses direitos caracterizam-se “como verdadeiras liberdades positivas, de observância obrigatória em um Estado Social de Direito, tendo por finalidade a melhoria das condições de vida aos hipossuficientes, visando à concretização da igualdade social, que con-figura um dos fundamentos de nosso Estado Democrático, conforme preleciona o art. 1º, IV.”8 Incluem-se, nessa gama de direitos, aqueles relacionados ao trabalho, dispostos principalmente no art. 7º.

Por meio dos preceitos constitucionais insculpidos no art. 7º, a Constituição da República superou a tendência clássica de carac-terização do direito do trabalho como simples direito de proteção (“orientação protetiva”) e “erigiu o trabalho, o emprego, os direitos dos trabalhadores e a intervenção democrática dos trabalhadores em elemento constitutivo da própria ordem constitucional global e em elemento privilegiado de realização do princípio da democracia econômica e social”.9 Os direitos elencados no referido artigo visam a assegurar o direito ao trabalho, o direito de trabalho e o direito dos trabalhadores, ou seja, refletem a plenitude dos direitos e garantias individuais do trabalhador.

6 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Direito Contemporâneo do Trabalho. São Pau-lo: Saraiva, 2011. p. 39- 41.7 CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Al-medina, 2013. p. 941.8 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e legislação consti-tucional. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2004. p. 163.9 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da constituição. 7. ed., 13 reimp. (Manuais Universitários). Coimbra: Almedina, 2003. p. 346.

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Para a concretização desses direitos, cabe ao Poder Público efetivá-los, tanto no que tange à concretização pelo exercício de suas funções administrativas, quanto, na função judicial, sobretudo pelo Poder Judiciário, na interpretação das normas em favor das garantias do trabalhador, e não em seu prejuízo. Até mesmo porque, por serem normas dotadas de valor de direito positivo, consagradas, por todo o arcabouço jurídico, legislativo, constitucional e internacional, como a quintessência dos direitos individuais, não são passíveis de interpre-tações em seu detrimento.

Uma série de garantias elencadas no art. 7º e direcionadas aos trabalhadores em geral é estendida aos servidores públicos por in-termédio do art. 39, §3º, da Constituição Federal. Dentre os direitos mencionados neste dispositivo, incluem-se as férias e a licença--maternidade.

2.1 Da licença-maternidade como cláusula pétreaNo sistema internacional, a proteção à maternidade vem sendo

concretizada há décadas. A própria Organização Internacional do Trabalho vem promulgando, desde a sua criação, diversas conven-ções cujo conteúdo volta-se expressamente à proteção à gestante e à maternidade. Os principais objetos das convenções sobre o tema são a necessidade de permanência da mãe junto ao filho e o direito de amamentar.

Em sua Convenção n. 3, assinada e ratificada pelo Brasil pelo De-creto n. 423 de 1935,10 a Organização Internacional do Trabalho tratou do emprego das mulheres antes e depois do parto, incluindo, no referido documento, o salário-maternidade e a proibição de trabalho da mulher, em todos os estabelecimentos industriais, comerciais, públicos ou privados, ou nas suas dependências, durante o período de seis semanas depois do parto. A convenção não diferenciou trabalhadoras do setor público e do setor privado.

10 BRASIL Tribunal Superior do Trabalho. Índice de Convenções da Organização In-ternacional do Trabalho – OIT. Convenção n 3. Disponível em: <http://www.trtsp.jus.br/geral/tribunal2/LEGIS/CLT/OIT/OIT_003.html>. Acesso em: 29 mar. 2016.

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O documento foi revisado pela Convenção n. 103,11 que ampliou a duração da licença para doze semanas, instituindo que pelo menos seis destas deveriam ser gozadas após a data do parto. A principal caracte-rística dessa Convenção, ainda em vigor no Brasil – que deveria servir também de base para a interpretação hodierna das normas de proteção à maternidade –, diz respeito ao intervalo entre a data esperada do parto e o parto de fato. Consoante o art. III da Convenção, seria admissível a extensão do período da licença-maternidade quando o parto ocorresse em momento posterior ao planejado. Dessa forma, se a gestante inicias-se sua licença de doze semanas nas seis semanas anteriores ao parto e este acabasse ocorrendo em data posterior, a mãe teria uma extensão da licença-maternidade no lapso temporal entre a data esperada do parto e o dia efetivo do parto, independentemente do tempo que durasse e sem prejuízo das seis semanas remanescentes. Isso porque seu direito de gozar da integralidade de sua licença após o nascimento do bebê não poderia ser prejudicado de nenhuma forma.

Por se tratar de questão biológica, nem sempre é possível prever com exatidão a data em que o nascimento virá a ocorrer. Por meio desta convenção, portanto, aceitou-se expressamente a adoção de medidas extensivas em favor da gestante, mesmo excedendo o período da pre-visão normativa de direito à licença-maternidade, a fim de evitar que o direito do tempo mínimo de licença-maternidade à trabalhadora restasse prejudicado em hipóteses de imprevistos do parto.

Tais disposições foram reiteradas por convenções posteriores que ampliaram a proteção à gestante face à relevância social do evento da maternidade. Segundo recomendações da mesma organização, o principal objetivo da licença é a proteção à infância, o que lhe atribui, portanto, caráter de imprescindibilidade.

Sem dúvida, a saúde física e mental do bebê é o bem maior tutelado pela constituição, uma vez que já restou demonstrado que o vínculo que se forma nos seis primeiros meses de vida é

11 Esta convenção foi ratificada pelo Brasil e promulgada por intermédio do Dec. nº 58.820/66. Destinava-se à proteção de todas as mulheres empregadas em empresas industriais, públicas ou privadas, e suas filiais, bem como às mu-lheres empregadas em trabalhos não industriais e agrícolas.

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fundamental para garantir a formação de um futuro cidadão mais sadio, tanto do ponto de vista físico quanto psíquico. 12

(grifo nosso).

O ordenamento jurídico pátrio seguiu trajetória semelhante na sua evolução em prol da proteção à maternidade. Por se tratar de um direito constitucional corroborado, também, pelo Ato das Disposições Transi-tórias (art. 10, II, b), a concessão de licença à gestante, sem prejuízo de seu emprego e salário, é estendida a todas as trabalhadoras, independen-temente do regime de contratação ou da espécie de ofício que exerça.

As normas constitucionais relacionadas à maternidade asseguram proteção à gestante em diversos aspectos e, por essa razão, já foram tratadas pelo Supremo Tribunal Federal em vasta jurisprudência,13 mor-mente no tocante ao tempo mínimo obrigatório da licença-gestante e a impossibilidade de violação deste direito. Isso vem reforçar o caráter peremptório da norma, de maneira que não se mostra admissível a sua redução, sobretudo em razão de a Excelsa Corte já ter reconhecido o direito de licença-maternidade como cláusula pétrea.14

Sob a perspectiva social, o direito decorre da necessidade de ama-mentação nos primeiros meses de vida do bebê, conforme anunciado

12 UNICEF. The Baby-Friendly Hospital Initiative. Organisation Mondiale de la San-té (World Health Organization). Allaitement au sein exclusif. Um dos fatores de maior importância na formação desse vínculo é o aleitamento materno, através do qual a mãe fornece ao bebê o alimento mais adequado ao seu desenvolvimento, bem como fornece os anticorpos necessários ao fortalecimento da saúde do recém-nato. Tanto é assim que a Organização Mundial de Saúde e a UNICEF expressam a importância da amamenta-ção prolongada na “Declaração de Innocenti”, de 1º de Agosto de 1990. Declaração de Innocenti. Disponível em <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_in-nocenti.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2016.13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Segunda Turma Recursal. Recurso Extraor-dinário n. 600.057-AgR. Relator. Min. Eros Grau, Julgamento em 29 set. 2009. DJE de 23-10-2009. No mesmo sentido: RE 634.093-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, jul-gamento em 22-11-2011, Segunda Turma, DJE de 7-12-2011; RE 597.989-AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 9-11-2010, Primeira Turma, DJE de 29-3-2011; RE 287.905, Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 28-6-2005, Segunda Turma, DJ de 30-6-2006.14 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI n. 1.946/DF - Medida Liminar- Ret Min. Sydney Sanches, Informativo STF n. 241.

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pela Organização Mundial da Saúde15 e pela Sociedade Brasileira de Pediatria.16 Essas organizações afirmam que, neste período, a criança deve ser alimentada exclusivamente com o leite materno, a fim de prevenir doenças e garantir que o desenvolvimento no primeiro ano de vida ocorra sem problemas, mormente porque o aleitamento materno no primeiro semestre de vida do bebê diminui muito a mortalidade infantil contada de um ano para baixo.

Ainda, os benefícios da amamentação “são inegáveis, tanto para mãe e bebê, quanto para o próprio Estado, já que a criança amamentada por esse período de tempo não apresenta muitas doenças, o que desafo-ga o atendimento em hospitais e postos de saúde.”17 Essas declarações tornam irrefutável a imprescindibilidade da licença-maternidade, tanto sob aspecto legal, quanto sob aspecto social.

A previsão constitucional da licença representa um “importante meio de proteção não só da mãe trabalhadora, mas, e talvez principalmente, do nascituro, na medida em que o tempo de convívio, por ocasião do recente nascimento, representa vantagens sensíveis ao desenvolvimen-to.”18 O mesmo foi afirmado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, ao definir que a licença-maternidade “visa, por um lado, à proteção da condição biológica da mulher no decurso da sua gravidez e na sequência desta e, por outro, à proteção das relações especiais entre a mulher e o seu filho durante o período que segue à gravidez e ao parto.”19

15 UNICEF. op. cit..16 SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA. n. 37. Ano VII. Junho / Julho, 2005. Licença-maternidade. 6 meses é melhor. Lançamento da campanha marca Dia do Pe-diatra e aniversário de 95 anos da Sociedade. p. 6 -7. Disponível em: <http://www.sbp.com.br/campanhas/em-andamento/licenca-maternidade-6-meses-e-melhor/>. Acesso em: 30 mar. 2016. Veja também: CAMPEDELLI, Rachel Collins. Utilidade da licença maternidade. Edição do dia 30 jan. 2016. Jornal do Senado. Secretaria de Assistência Médica e Social do Senado. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/senado/portal-doservidor/jornal/jornal97/utilidade_licenca_mater.> Acesso em: 15 mar. 2016.17 Idem.18 MALLET, Estevão; FAVA, Marcos. Comentário ao art. 7º, inc. XVIII. In: CANO-TILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; STRECK, Lenio L. (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 584-585, p. 584.19 HOFMANN. Igualdade de remuneração entre homens e mulheres - Licença por maternidade. 1983. Disponível em: < http://www.cite.gov.pt/pt/acite/juriscomu_geral.html>. Acesso em 03 mai. 2016.

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A licença-maternidade, portanto, não é uma benesse apenas à traba-lhadora, mas um direito essencial conferido pela Lei Maior também para a proteção do bebê e do infante. Não se confunde, pois, com a natureza do direito a férias, igualmente protegido pela Constituição Federal, que visa a proteger o trabalho e recompensar o trabalhador depois de trans-corrido o lapso temporal do seu período aquisitivo.

2.2 Do direito fundamental às fériasO direito a férias remuneradas encontra alicerce no ordenamento

jurídico pátrio desde a Constituição de 1934, tendo sido previsto, também, nas Constituições posteriores.

No Direito Internacional, a garantia do repouso está inserida nas normativas da Organização Internacional do Trabalho desde os seus primórdios, estabelecendo as regras gerais sobre o direito às férias anuais remuneradas principalmente na Convenção n. 132. O Brasil internalizou essa convenção por intermédio do Decreto n. 3.197/99, ainda vigente no país. O Decreto tem status de lei ordinária e, por se tratar de matéria de garantia fundamental, deve ser aplicado da maneira mais favorável ao trabalhador. Por meio da ratificação da Convenção, o ordenamento jurí-dico pátrio integrou-se ao sistema internacional de proteção do instituto do descanso anual remunerado.

A matéria é de tamanha relevância que diversas súmulas já foram editadas pelas Cortes Superiores para assegurar interpretações benéficas ao trabalhador quanto às múltiplas regras que incidem sobre o seu direito a férias. A finalidade principal dessas súmulas é assegurar ao trabalhador o seu devido descanso, evitando eventuais possibilidades de reduções desnecessárias em razão da imprescindibilidade da garantia.

No plano das garantias individuais relacionadas ao trabalho, o direito ao controle do tempo despendido nas atividades laborais ocupa espaço muito relevante, eis que diretamente ligado à higidez do trabalhador. Ao lado do limite de jornada e do descanso semanal, o instituto das férias insere-se nesta gama de normativos focados na proteção da garantia em relevo. O legislador, ao constitucionalizá-lo, outorga ao direito em análise importância elevada.20 (grifo nosso).

20 MALLET, Estevão; FAVA, Marcos. op. cit., p. 584-585.

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Embora não se trate de um instituto absoluto (sendo passível de regulamentação infraconstitucional, tanto no tocante às atividades do setor público quanto do setor privado), não são admitidas supressões a esse direito em razão de seu status fundamental.

3 A jurisprudência acerca da concomitância de direitosEm recente decisão (Informativo 566), o Superior Tribunal de Justiça

entendeu que as férias das servidoras não podem ser interrompidas pela licença-maternidade para serem gozadas posteriormente porque o art. 80 da Lei n. 8.112/90, que elenca taxativamente as possibilidades de inter-rupção das férias do servidor público, não prevê a licença-maternidade. Assim, decidiu que ambos os benefícios deveriam ser gozados de maneira concomitante. Veja-se:

DIREITO ADMINISTRATIVO. FÉRIAS GOZADAS EM PERÍ-ODO COINCIDENTE COM O DA LICENÇA À GESTANTE.

A Lei 8.112/1990 não assegura à servidora pública o direito de usufruir, em momento posterior, os dias de férias já gozados em período coincidente com o da licença à gestante. Ressalta-se que a coincidência das férias com a licença-gestante - sem a possibilida-de de gozo ulterior dos dias de férias em que essa coincidência se verificar - não importa violação do direito constitucional a férias. Isso porque, nesse período, há efetivo gozo de férias, ainda que ao mesmo tempo em que a servidora faz jus à licença-gestante, tendo em vista que a referida licença não é causa interruptiva das férias. Observe que o art. 80 da Lei 8.112/1990 assim dispõe: “As férias so-mente poderão ser interrompidas por motivo de calamidade pública, comoção interna, convocação para júri, serviço militar ou eleitoral, ou por necessidade do serviço declarada pela autoridade máxima do órgão ou entidade”. Nesse contexto, vê-se que a palavra “somente” limita a consideração de hipóteses de interrupção de férias e não possibilita eventuais aplicações extensivas. Torna-se indevida, assim, qualquer ampliação do rol desse dispositivo. Nesse sentido, aliás, a Segunda Turma do STJ já decidiu pela impossibilidade de aplicação extensiva do art. 80, caput, da Lei 8.112/1990: “Discute-se nos autos a possibilidade de alteração das férias, em decorrência de licença médica, após iniciado o período de gozo [...] Nos termos da legislação de regência, as hipóteses de interrupção de férias são

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taxativamente previstas no artigo 80 da Lei n. 8.112/90, dentre as quais não se insere o acometimento de doença e a respectiva licença para tratamento médico” (AgRg no REsp 1.438.415-SE, Segunda Turma, DJe 13/5/2014). AgRg no RMS 39.563-PE, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julgado em 6/8/2015, DJe 18/8/2015.

Data vênia o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a de-cisão não parece estar em consonância com os desenvolvimentos da proteção aos direitos fundamentais e sociais e à proteção dos direitos das trabalhadoras. Doutrinas constitucionalistas, administrativistas e traba-lhistas, conjuntamente à jurisprudência que vem se desenvolvendo nos Tribunais da seara trabalhista e nos Tribunais inferiores com jurisdição administrativa, manifestam entendimento diverso: em prol da preservação integral de ambos os institutos. Tal preservação se concretiza por meio da vedação do gozo concomitante.

Uma vez que se trata de direitos assegurados constitucionalmente a servidores públicos e trabalhadores celetistas sem qualquer distinção expressa na Carta Magna, impende traçar-se um paralelo entre as inter-pretações trabalhistas e administrativistas para que se possa fazer a devida análise sobre esses direitos e seus respectivos dispositivos.

3.1 Da suspensão/interrupção do gozo de férias em caso de concomitância com licença-maternidade: o entendimento trabalhista

No que tange aos efeitos contratuais das férias e da licença-materni-dade, a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT dedica à matéria o seu Capítulo IV, Título IV, que abarca os arts. 471 a 476-A, e faz a distinção entre os institutos jurídicos juslaborais de suspensão e interrupção do contrato de trabalho.

Segundo o disposto no referido Diploma Legal, durante a suspensão do contrato de trabalho, não há exigência de pagamento de salários pelo empregador e não há cômputo do período de afastamento como tempo de serviço, diferentemente da interrupção, conforme se verá a seguir. Entende-se a suspensão como suspensão total do contrato, pois paralisa a prestação do serviço e cessa as obrigações patronais ou quaisquer outros efeitos provenientes do contrato enquanto perdurar a suspensão.

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Na interrupção do contrato de trabalho, por outro lado, as obriga-ções patronais continuam sendo devidas, e o seu tempo de duração é contabilizado como tempo de serviço. Considera-se, segundo a doutrina trabalhista, como uma espécie de suspensão parcial do contrato de tra-balho, porquanto paralisa temporariamente a prestação do serviço, mas mantém o pagamento de salários e outros efeitos do contrato, como, por exemplo, o vínculo laboral.

O art. 473 da CLT apresenta o rol de hipóteses em que há a interrup-ção do contrato de trabalho com a manutenção do vínculo, das obrigações patronais, do salário e demais efeitos contratuais. Embora aquele não mencione a licença-maternidade, o art. 392 do mesmo Diploma estabe-lece que a empregada gestante tem direito à licença-maternidade sem prejuízo do emprego e do salário. É interpretada, portanto, como caso de interrupção contratual (suspensão parcial do contrato), porquanto mantém o vínculo contratual, o pagamento do salário pelo empregador (compen-sado junto à Previdência Social) e a contagem como tempo de exercício laboral, mas interrompe a prestação do serviço temporariamente.

Ao empregador é vedado conceder férias durante o gozo da licença (impedimento legal). Por essa mesma razão, é vedado que, por qual-quer razão, a empregada usufrua desse direito durante o seu benefício de licença-maternidade. Destarte, se o parto ocorrer durante o período de férias da empregada, dando ensejo ao início imediato da licença, o benefício deve ser suspenso em razão da interrupção contratual que a licença-maternidade acarreta – e a fruição de férias pressupõe a execução normal do contrato de trabalho.

O direito a férias da trabalhadora reinicia imediatamente após o tér-mino da licença, momento em que o contrato volta à sua normal execução. A regra, portanto, é: na hipótese de impedimento legal à concessão das férias (caso da licença à gestante), suspende-se o gozo das férias pela interrupção contratual e prorroga-se o seu termo final, não sendo possível que o seu gozo se dê, nem mesmo por um dia sequer, em concomitância com a licença-maternidade.

A preocupação central é que as férias e a licença-maternidade são bens jurídicos distintos, com finalidades distintas e, por essa razão, tam-bém produzem efeitos distintos sobre o contrato de trabalho. A corroborar esse entendimento:

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FÉRIAS. Dobra devida. Encontrando-se interrompido o trato laboral em razão do gozo de licença-maternidade e subsequente licença-amamentação, a concessão das férias a partir da data em que retornaria a trabalhadora ao serviço não configura des-respeito ao prazo estabelecido no art. 134 da CLT, não havendo que se falar em pagamento do período em dobro. Recurso ordinário a que se dá provimento.21 (grifo nosso).

FÉRIAS. DOBRO. LICENÇA MATERNIDADE. SUSPEN-SÃO DO CONTRATO DE TRABALHO. Estando suspensos os efeitos do contrato de trabalho em razão do gozo de licença maternidade, prorroga-se o termo final do período concessivo de férias, pelo que, tendo sido usufruídas estas imediatamente após a cessação da licença maternidade, não há falar-se em seu pagamento dobrado. Recurso Ordinário a que se nega provimento.22

(grifo nosso).

[...] FÉRIAS. PERÍODO AQUISITIVO 2000/2001 COM 1/3. Hipótese em que o termo final do período concessivo das férias ocorreu durante a licença-maternidade da autora, sendo correta a concessão das férias imediatamente após o final da referida licença, uma vez inviável a concessão das férias em momento anterior, diante do afastamento da autora [...]. 23 (grifo nosso).

Sob um viés administrativista, a situação contratual também não permanece a mesma durante o gozo de férias e de licença-maternidade. Quando a servidora entra em licença-maternidade, não há normalidade na sua situação contratual, visto que a prestação laboral cessa, dando lugar aos cuidados do nascituro em tempo integral. Essa situação não é compatível com a normalidade contratual que demanda a concessão das férias. Não é possível que, durante uma licença-maternidade, a servidora

21 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. 11ª Turma Recursal. Recurso Ordinário n. 02482-2008-087-02-00-0; Ac. 2009/0413622. Relator: Desª Fed. Dora Vaz Treviño. Julgamento em: 09 jun. 2009. p. 201.22 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. 7ª Turma Recursal. Recurso Ordinário n. 00364, Ac. 20040053630. Relator: Juíza Anélia Li Chum. Julgamento em: 11 fev. 2004.23 BRASIL. Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região. 1ª Turma Recursal. Recurso Ordinário n. 00617-2003-512-04-00-5. Relator: Juiz Ricardo Hofmeister de Almeida Martins Costa. Julgamento em: 11 jun. 2004.

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usufrua o direito de recuperar sua disposição e energia com o justo gozo de férias, após o exaurimento decorrente do prolongado período de desforços funcionais contínuos ao longo de um ano ou mais de serviços prestados à Administração Pública.

De uma maneira exegética, é possível considerar, inclusive, que não há como haver concomitância até mesmo porque licença e férias são contadas por dias e perduram por uma diária inteira, não sendo possível, portanto, que se sobreponham, pois que cada benefício deve durar o dia todo.

3.2 Da interpretação do art. 80 da Lei n. 8.112/90Em âmbito administrativo, o art. 80 da Lei n. 8.112/90 elenca taxati-

vamente as possibilidades de interrupção das férias do servidor público. Veja-se: “Art. 80. As férias somente poderão ser interrompidas por motivo de calamidade pública, comoção interna, convocação para júri, serviço militar ou eleitoral, ou por necessidade do serviço declarada pela autoridade máxima do órgão ou entidade.”

Não prevê, pois, a licença-maternidade como causa de interrupção. A ausência, contudo, fora feita de maneira intencional pelo legislador. Isso porque se trata de perceptivo legal voltado a tutelar a proteção ao servidor face às ordens da Administração Pública. Protege diretamente a higidez física e mental do servidor público pela garantia de não retomada da atividade laboral, injustificadamente, durante o gozo do seu descanso.

O taxativo rol refere-se especificamente à interrupção forçada das férias por questões alheias à vontade do servidor e prejudiciais ao seu interesse. Destina-se a assegurar ao servidor o descanso sem ser pertur-bado, salvo em caso de convocação obrigatória e excepcional ou por necessidade do órgão ou entidade no qual exerce suas atividades laborais.

Salienta-se, todavia, que, como a disposição legal existe para a pro-teção do servidor público, não é adequado que a Administração Pública ou o Poder Judiciário interpretem a norma em prejuízo daquele. O enten-dimento de que a licença-maternidade não interrompe as férias e que, por isso, ambas devem ser usufruídas em concomitância configura um intole-rável atentado contra o resguardo da saúde do agente público, contra seu direito ao descanso e à restauração mental e física mediante férias. Atenta, inclusive, contra um objetivo que beneficia, em última instância, a própria

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Administração Pública, visto que a boa condição do servidor é pressuposto para o bom exercício das atribuições funcionais em proveito do Estado.

Os cuidados com um nascituro não apenas impedem a devida restauração, como provocam efeito contrário à finalidade das férias: demandam envolvimento diuturno e exaustivo de dedicação, atenção e trabalho. Exatamente por isso são benefícios distintos. A concomitância de ambos acaba por suprimir o direito de férias da servidora porque, uma vez iniciada a licença-maternidade, ela passará a cuidar do bebê, o que acabará por subverter qualquer possibilidade de descanso. Corroborou este entendimento o TST, ao decidir o seguinte:

SERVIDOR PÚBLICO. FÉRIAS. INTERRUPÇÃO. LICENÇA À GESTANTE SUPERVENIENTE. POSSIBILIDADE. ARTS. 80 E 207 DA LEI Nº 8.112/90. 1. A garantia de não-interrupção das férias visa a proteger o servidor de eventual convocação para retomar as suas atividades por motivo fútil, o que prejudicaria sobremaneira seu necessário descanso e sua revitalização (art. 80 da Lei nº 8.112/90). 2. Nela não se inclui a hipótese de licença à gestante superveniente no caso de nascimento de prematuro, como aqui (§ 2º do art. 207 da Lei nº 8.112/90), porquanto inserida num inequívoco contexto constitucional de proteção à maternidade, à paternidade e à infância (arts. 6º, 7º, incisos XVIII e XIX, 201, inciso II, e 203, inciso III). Afinal, a licença não representará um período de repouso para a licenciada, mas de cuidados especiais dedicados ao bebê. 3. Assim, a licença à gestante, assegurada pelo art. 207 da Lei nº 8.112/90, é também hipótese de interrupção de férias, que se soma àquelas previstas no art. 80 do Estatuto dos servidores da União. 4. Recurso em matéria administrativa a que se dá provimento para autorizar à servidora a fruição do período remanescente de férias adquiridas e interrompidas pela superveniência de licença à gestante.24

No referido julgado, o Relator aponta que:

24 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso em matéria administrativa n.º 1180003320025120000 118000-33.2002.5.12.0000. Relator: João Oreste Dalazen. Julgamento em: 31 mar. 2005. Data de Publicação: DJ 29/04/2005. Disponível em: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1385738/recurso-em-materia-administrati-va-rma-1180003320025120000-118000-3320025120000/inteiro-teor-9808577>. Aces-so em 05 mai. 2016.

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A interpretação axiológica da norma em comento permite consi-derar que tal garantia de não-interrupção das férias visa a proteger o servidor de eventual convocação para retomar as suas atividades por motivo fútil, o que prejudicaria sobremaneira seu necessário descanso e sua revitalização.

A licença-maternidade, segundo o Ministro, apoia-se em inequívoco preceito constitucional de proteção à maternidade, à paternidade e à infân-cia, conforme claramente dispõe a Constituição Federal. É amparada pela legislação infraconstitucional e tem duração razoável exatamente porque o recém-nascido necessita de cuidados especiais durante o período. O período de afastamento do trabalho “é necessário para que a mãe possa desdobrar-se em cuidados e atenções para com o bebê e, certamente, a licença não representará um período de repouso para a licenciada”.25

A mesma Egrégia Corte, em sua Seção Administrativa, já decidiu, em casos análogos, pela possibilidade de adiar o início das férias para exercício posterior ao previsto em lei em decorrência de a servidora já estar em licença-maternidade no período do exercício que lhe restava para gozar do benefício do repouso. Diante deste quadro, não é cabível que se permita o adiamento do início das férias para além do exercício permitido por lei (de modo que não seja ceifado o direito da servidora), mas não se reconheça a possibilidade de interrupção e adiamento do seu término pelo mesmo ensejo. Colaciona-se:

FÉRIAS. GOZO CONCOMITANTE COM LICENÇA GESTAN-TE. POSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO DO PERÍODO PARA O EXERCÍCIO SEGUINTE. ACUMULAÇÃO. Conquanto o art. 77 da Lei nº 8112/90 disponha a possibilidade de acumulação de férias apenas em caso de necessidade do serviço, tal preceito visa proteger a Administração. Afigura-se correta, portanto, a alteração do período de férias que coincidiu com o da licença à gestante para gozo no exercício seguinte. Recurso a que se nega provimento.26

(TST-RMA-775.778/2001, DJ: 13-09-2002, Rel. Min. JOSÉ LU-CIANO DE CASTILHO PEREIRA).

25 Idem.26 BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Recurso em matéria administrativa n. 775.778/2001. Relator: Min. José Luciano de Castilho Pereira. Julgamento em: 13 set. 2002. Disponível em: <http://tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/1385738/recurso-em--materia-administrativa-rma-1180003320025120000-118000-3320025120000/inteiro--teor-9808577 >. Acesso em 05 mai. 2016.

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Alternativamente, ainda, é possível interpretar a licença-maternidade prevista no art. 207 da Lei n. 8.112/90 como causa de suspensão das férias. Trata-se de uma alternativa eficiente para sanar o problema de cunho morfológico que afasta a licença do rol do art. 80 por não estar prevista expressamente como causa interruptiva. Em vez de ser entendida como interrupção das férias, a licença-maternidade pode configurar a suspensão das férias. Juridicamente essa interpretação se mostra ade-quada, porquanto a licença suspenderia o gozo das férias para posterior retomada somente dos dias remanescentes.27

A interpretação mostra-se adequada porque a licença-maternidade realmente possui natureza diferente das causas de interrupção elencadas no referido art. 80. De qualquer forma, independentemente da justificativa da não concomitância (se por ser causa de interrupção contratual, inter-rupção de férias ou sua suspensão), a licença-maternidade, como visto, não é compatível com o benefício das férias e não pode ser usufruída de maneira simultânea.

4 Da inconstitucionalidade do gozo simultâneo de férias e licença-maternidade

Uma das marcantes características do constitucionalismo moderno é o princípio da vedação do retrocesso, também chamado de effet cliquet. Esse princípio visa a impedir que detentores dos poderes constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário –, por intermédio de atos ou leis, desconstituam o grau de concretização das normas da Constituição, mor-mente quando, para a sua plena efetividade, as disposições constitucionais dependam, em maior ou menor escala, das normas infraconstitucionais ou da interpretação jurisprudencial.

Medidas que tendem a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anula-ção desses benefícios, são inconstitucionais e representam uma violação

27 Sabe-se que, em outras esferas do direito (e.g., o Direito Tributário), a interrupção ocasiona o reinício da contagem do período, ao passo que, pela suspensão, o prazo volta a fluir de onde parou.

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do effet cliquet inerente aos direitos fundamentais.28 Essa vedação do retrocesso é intrínseca aos direitos trabalhistas e àqueles extensíveis aos servidores públicos e deve ser assegurada inclusive em face do processo de mutação constitucional.

O rol de direitos concedidos aos servidores públicos constitucional-mente compõe, em realidade, um “piso de garantias”, ou seja, “é possível que haja ampliação de tais direitos sociais, segundo a legislação de cada ente federado. Contudo, o que não é possível é estabelecer garantias aquém do rol de direitos sociais também aplicáveis aos servidores pú-blicos.” 29 O direito a férias e à licença-maternidade integram esse piso e configuram postulados de direitos fundamentais que estão em posição superior à legislação ordinária,30 não sendo passíveis de redução nem mesmo por decisões judiciais.

Ao se determinar a concomitância do gozo desses direitos por meio da interpretação da legislação administrativa, as próprias decisões acabam, na prática, suprimindo e prejudicando o direito ao gozo das férias. Não obstante não alterem o texto normativo, esses julgados po-dem configurar a aplicação distorcida das disposições constitucionais, de maneira não desejada ou prevista pelo constituinte, ocasionando a mutação constitucional em desfavor das servidoras.

5 Considerações FinaisEmbora o Estatuto dos servidores da União não preveja a licença-

-maternidade como causa de interrupção das férias, o fato de terem sido esses benefícios erigidos pela Constituição Federal como direitos reconhecidos aos servidores públicos faz imperiosa a interpretação axiológica das normas administrativas no sentido de preservá-los em sua integralidade. A decretação de coexistência e concomitância de seu gozo inevitavelmente resultará na supressão de garantias constitucionais.

28 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5.ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 336.29 MAFFINI, Rafael. Direito administrativo. 2.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 250.30 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo STF nº 241. Reconheceu o direito de licença à gestante como cláusula pétrea na ADI nº 1.946/DF.

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Em que pesem as normas da CLT não sejam plenamente adequadas às relações de trabalho no seio da Administração Pública e, de certa forma, se desfigurem no âmbito administrativo devido às particularidades da relação laboral entre Estado e servidor, esses direitos são assegurados constitucionalmente aos servidores, e, portanto, transpassam os limites da legislação ordinária e prevalecem sobre suas normas. Logo, direito a férias e à licença-maternidade, por seu status de direitos sociais, postu-lados de direitos fundamentais de segunda geração asseverados na Lei Maior, possuem proeminência e devem ser observados em sua integra-lidade quando da interpretação da legislação administrativa.

Uma vez configurado o indício de um processo de mutação constitu-cional em prejuízo das cláusulas pétreas, tem-se como inconstitucionais as decisões que lhe pautam, por tratar-se de processo pernicioso aos indivíduos. Assim o é porque as cláusulas pétreas são imunes, também, a este tipo de edição ou supressão: a interpretativa.

O entendimento que se dá sobre esses direitos influencia imediata-mente no tempo que a genitora poderá permanecer com o filho em período crucial de seu desenvolvimento – período que acarreta, também, grande desgaste físico e emocional para os pais. Os efeitos sociais da matéria são consideráveis, tanto no que se refere aos prejuízos/benefícios que podem ser alcançados nesta etapa da vida de uma pessoa, quanto no que se refere à garantia oferecida à servidora para efetivo envolvimento com seu filho sem que sofra prejuízos no gozo do seu descanso.

A controvérsia se mostra ainda mais acentuada quando se constata que esse tipo de prejuízo não ocorre em outras hipóteses. Por exemplo: 1) quando as servidoras gestantes não gozam suas férias em época pró-xima à licença-maternidade, usufruem da integralidade das férias e da integralidade da licença; 2) servidoras que não são gestantes também usufruem da integralidade das férias e, se vierem a engravidar e já tive-rem gozado o benefício naquele exercício, terão direito à integralidade da licença-maternidade; 3) trabalhadoras em regime de CLT, amparadas pela interrupção do contrato para fins de licença, também podem fruir integralmente seu direito de férias e de licença-maternidade. Como consequência, restam prejudicadas somente as servidoras que entram em trabalho de parto em ocasião não programada, em meio às suas férias. Isso representa injusto prejuízo a esse pequeno grupo, visto que, ainda que

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lhes sejam assegurados direitos idênticos constitucionalmente, acabam fruindo número de dias inferior em relação às demais, em decorrência da concomitância dos benefícios, por um mero infortúnio temporal re-lacionado ao momento do parto.

Se não houver a mesma interpretação de direitos constitucionais idênticos, ter-se-á o cenário em que direitos fundamentais de servidoras gestantes ficarão à mercê da sorte, dependendo da data em que o parto venha a ocorrer, o que não se mostra razoável.

Considerando que a licença tem como objeto a proteção à maternida-de, não se justifica a supressão de direitos daquelas que acabam entrando em trabalho de parto durante o benefício das férias. As finalidades de ambos os benefícios não se modificam conforme a espécie de contrato; em todas as modalidades de contratação, seus respectivos objetos são os mesmos: a proteção ao trabalhador de um lado; à maternidade e à criança de outro. Deve, portanto, prevalecer a isonomia, não se justificando a diferenciação.

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O SISTEMA DEMOCRÁTICO BRASILEIRO E A INSATISFAÇÃO DO PLURALISMO POLÍTICO

LUCAS MELLO NESS

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Pós-Graduando Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal.

Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pelotas. Advogado.

RESUMO: Os partidos políticos contemplam e encerram o conceito de pluralismo político? Por meio de uma abordagem teórica, este artigo objetiva iluminar discussões tão caras frente ao atual cenário político vi-venciado no Brasil. Estudos jurídicos, regra geral, não se debruçam sobre tais fenômenos e críticas, pondo-os sob o resguardo da Ciência Política; contudo, é preciso que se reconheça que é através do fenômeno jurídico que as disputas e ideologias político-filosóficas tomam corpo e manifes-tam-se, com a chancela da legitimidade, dentro do Estado Democrático de Direito. Cumpre, pois, avaliar as estruturas e ideais que esboçaram as escolhas do modelo político partidário brasileiro e, criticamente, avaliar e indagar-se se eles são capazes de responder aos anseios que ensejaram sua conformação. Refletindo acerca dos conceitos de pluralismo político e das noções que compreendem o que são partidos políticos, conclui-se pela insatisfatoriedade com que o meio pretensamente cumpre o fim a que foi designado.

PALAVRAS-CHAVE: Pluralismo político. Democracia. Legitimidade. Partidos.

1 Introdução

O modelo representativo sustentado e propagado no sistema polí-tico brasileiro é uma falácia e, em última análise, inconstitucional. Tal afirmação, em que pese sua veemência e aparente desesperança, é a conclusão primeira da análise que se faz acerca da crítica erigida pelo constitucionalista Paulo Bonavides.1 Ao defender, em obra homônima, a teoria constitucional da democracia participativa, sustenta que o pro-cesso eleitoral é falso e baseado na manipulação do povo pela classe economicamente dominante.

1 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

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O pluralismo político, conforme art. 1º, V, da Constituição Federal, objetiva manifestar que o Estado Brasileiro pauta-se pela liberdade de seus membros, os quais podem amplamente participar das decisões do país com suas diferentes posições político-filosóficas2. Assegurar a parti-cipação de diferentes formas de pensamento na conformação política do país após a experiência de um regime ditatorial é elemento de tal monta primordial que foi expresso na qualidade de princípio fundamental que rege a República brasileira.

Esse princípio objetiva-se, dentre outras formas, através do plura-lismo partidário, cujo mote é organizar e personificar a atuação de certas manifestações das diferentes liberdades e opiniões dispersas pelo povo, de modo a sistematizá-la com o intuito de promover sua efetivação nos processos decisórios.

Em que pese a aparente boa intenção do constituinte, o que se observa é a utilização indevida de recursos financeiros para atender a interesses escusos das classes economicamente dominantes. O escopo aqui preten-dido não é tecer uma crítica à dominação do capital sobre o social, mas sim observar, de forma reflexiva, como a dominação converte-se em subversão apolítica.

Segundo a filósofa Hannah Arendt,3 a política só existe enquanto pluralidade, pluralidade esta que impede a massificação da sociedade. Em síntese, sua crítica sobre a sociedade de massas sedia-se no fato de que sua consequência primeva é ser terreno fértil à ascensão de diversas formas de totalitarismo. 4 Em que pesem as críticas arendtianas terem sido dirigidas, especialmente, ao regime nazista, o temor pela massificação da sociedade é atual. 5

Faz-se mister, pois, consolidar estudos que promovam a reflexão acerca do pluralismo, sistematizando suas raízes e intenções, a fim de que se possa buscar, ao fim e ao cabo, a efetivação dos anseios constituintes

2 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Atlas, 2009. p.50. 3 ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. p. 83-84 4 ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 5 GUERRA, Elizabete Olinda. Carl Schmitt e Hannah Arendt: olhares críticos sobre a política na modernidade. São Paulo: LiberArs, 2013. p.92

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– em conjunto com o cabedal fático-empírico que os promoveu. Nessa seara, o presente artigo investigará o pluralismo político, a instituição partidária e sua correlação, com o intuito de conhecer se um consegue ser instrumento do outro.

2 Pluralismo

A construção da Constituição da República Federativa do Brasil é um processo que remonta ao século XVIII, quando da luta pela ruptura dos modelos absolutistas de poder, sendo o modelo liberal proposto como forma de amenizar as consequências de um Estado que tudo pode em relação a seus súditos. Em que pesem as visões romantizadas acerca desse modelo de organização estatal, sua pretensão maior sempre foi a diminuição do Estado, força invisível que deveria transformar-se de dominador dos súditos à base do livre desenvolvimento.

Esse pensamento, de matriz iluminista, não trazia, em si, uma visão de igualdade. Regra geral, as análises acerca dos momentos históricos que resultaram nas grandes revoluções democráticas (as Revoluções Estadunidense e Francesa) alinham aos ideais a igualdade hoje defendida na noção de “voto igualitário” do modelo democrático atual, o que é uma falácia. Como destaca Elizabete Guerra,6 ao analisar Hannah Arendt, a confusão entre República e Democracia data do século XIX.

Seguindo uma análise direta do texto arendtiano,7 tem-se por evi-dente que a inclusão de ideais mais amplos, que conduziram à noção desenfreada de igualdade, nasce na necessidade de legitimar a revolução como manifestação popular e não apenas de uma estirpe social. Dessa feita, inúmeros ideários foram somando-se às reivindicações, maldis-postos sob a bandeira do liberalismo.

Historicamente, atribui-se a insuficiência do sistema liberal clássico à incapacidade da autogestão do homem consigo mesmo. As relações entre poder, força e trabalho não se estabelecem de forma harmônica e funcional quando a regulação de uma autoridade não componente da

6 GUERRA, Elizabete Olinda. Carl Schmitt e Hannah Arendt: olhares críticos sobre a política na modernidade. São Paulo: LiberArs, 2013.7 ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1986.

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relação (autônoma) não se faz presente (destaca-se que não se entrará no mérito acerca de justiça, adequação ou matriz filosófica dos sistemas e sua coerência ou não com a noção de igualdade humana). Constitucio-nalmente, forja-se a noção de Estado Social, assumindo-se a insuficiência do Estado Negativo, sendo necessário que ele aja na promoção de alguns direitos e condições mínimas a parte de seus membros.

Dentro do estudo das dimensões dos direitos fundamentais, tem-se que uma nova concepção não afasta as anteriores, acrescendo-se e com-pondo a forma de melhor e justa efetivação. Paralelamente é preciso que se assuma a compreensão de que a sociedade em alguns poucos grupos, divisos por situações macrorrelacionais, não é suficiente para manifes-tar e representar a comunidade humana – são inúmeras organizações, pessoas e diferentes reivindicações que carecem de espaço nos centros decisórios do poder. A limitação e a redução dos anseios da comunidade em um ou poucos partidos é característica de sociedades massificadas e tendentes à submissão a formas totalitárias de estado – como o nazismo e o fascismo, por exemplo.8

Desse reconhecimento histórico, somado às experiências ditatoriais vivenciadas no Brasil na segunda metade do século XX – quando se expe-rimentou uma maquiada e pífia previsão bipartidarista –, o constituinte de 1988 traz marcada e manifestamente o pluralismo político como princípio fundamental. Mas, uma vez compreendida sua necessidade em vias gerais, é preciso que se exponha mais sobre o significado político desse termo, que não se esgota numa vontade ou provocação, mas na previsão de elemento assumidamente necessário ao Estado Democrático de Direito.

Antes de adentrar em árdua conceituação, é salutar pontuar que, dentro da perspectiva constitucional, tais valores foram postos de forma refletida e não randômica ou ocasional. Tal colocação vai de encontro a

8 A construção circular proposta por Hannah Arendt tem voz em seu temor; a sociedade moderna, ao pautar-se pela necessidade apolítica, tende a converter-se em uma socie-dade de massas, pano de fundo à ascensão do Totalitarismo. O Totalitarismo mina a autonomia do ser, reduzindo-o à pura necessidade e, com ela, sua limitação através da irreflexão com ele havida. As experiências de vida da autora, bem como seus estudos e reflexões (destacam-se as obras: “Origens do Totalitarismo”, “Eichmann em Jerusa-lém” e “A vida do espírito”) fundamentam seu temor quanto à ascensão de qualquer espécie de Totalitarismo.

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críticas que eventualmente são feitas ao texto constitucional brasileiro, que, por falta de formação de parte de seus operadores, sofre críticas quanto aos ideais ali postos. As subcomissões formadas para discussão quando da Assembleia Constituinte trazem trechos que respaldam a pre-ocupação de seus componentes quanto ao pluralismo e a essencialidade dos partidos políticos na manutenção de seu status.

Destaca-se trecho da argumentação do Dr. Francisco Weffort, pre-sente nos Anais da Assembleia Constituinte de 1988: 9

A meu ver nas condições do Brasil de hoje e com o tipo de com-promisso que todos nós temos, com a construção de um processo democrático duradouro no País, creio que a nossa Constituição deverá se preocupar com a definição de organização partidária que propicie o pluralismo partidário no País.

Evidentemente, nenhuma Constituição pode determinar qual venha a ser o sistema partidário, mas ela pode, sim, definir princípios que impulsionem num sentido ou no outro. Penso que nós deveríamos trabalhar com o critério da Constituição de um pluralismo partidário, da pluralidade partidária, da expressão das diferentes correntes de opinião com a mais ampla liberdade. Mas, ao mesmo tempo, penso eu, que a Constituição deve abrir toda a liberdade de organização partidária. Não pode também deixar de estimular uma certa razoa-bilidade do sistema de expressão partidária.

As perspectivas globalizadas e contemporâneas – quando salutar-mente compreendidas e vivenciadas – tendem a impulsionar a compre-ensão do pluralismo enquanto movimento político necessário à formação estatal. Existe um equilíbrio entre a individualidade e a massa indefinida do sumo Estado. Em que pesem as características pessoais, a tendência humana é agrupar-se em grupos que buscam seus interesses e objetivos, lutando e disputando contra quem se oponha a esse movimento.

Esses grupos são múltiplos e não necessariamente coerentes. Assim, é possível, por exemplo, que o membro de determinado grupo identifique--se com outro tido como opositor, visto que a mediação dá-se, também,

9 ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE: Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos, 4a. 1988. Brasília. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/pu-blicacoes/anais>.

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em nível interno.10 Esse movimento de interesses e identidades promove que o grupo de sujeitos destaque-se do todo, reafirmando que o Estado não existe por si como poder absoluto e autossuficiente nele centralizado.

O jusfilósofo Norberto Bobbio,11 ao conceituar pluralismo, traz a noção expressa por Kung Chuan Hsiao acerca do que compreende um Estado Pluralista:

O Estado pluralista é simplesmente um Estado onde não existe uma fonte única de autoridade que seja competente em tudo e absolutamen-te abrangente, isto é, a soberania, onde não existe um sistema unificado de direito, nem um órgão central de administração, nem uma vontade política geral. Pelo contrário, existe ali a multiplicidade na essência e nas manifestações; é um Estado divisível e dividido em partes.

O primeiro anseio respondido por esse modelo estatal é de compor forte aversão aos modelos totalitários de poder. Esses modelos trazem no Estado a fonte da obediência e da unidade, tudo emana daquele que organiza, regula e dita as regras. Nota-se que essa característica não distingue qual o mote centralizador adotado: pode ser o monarca, o líder, a raça, a identidade nacional, a falácia da vontade de todos. Os estados totalitários utilizam-se da massificação de seus membros a fim de elimi-narem o movimento político, reduzindo seus membros a peças comuns, substituíveis e membros indistintos de uma grande e una corporação.12

O segundo anseio respondido está na limitação do modelo raso que promove a elevação indistinta do individual. Historicamente – confor-me já destacado – o ser humano demonstrou-se falível em excesso para

10 BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. 11 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicolas; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 12. ed. Brasília: UNB, 1998. p. 928.12 Seguindo a construção de Hannah Arendt, tem-se que o fenômeno de massificação dá-se em sentido circular, em que ora se manifesta como causas, ora como consequên-cias. Observa-se na perda da pluralidade o esvaecimento da dignidade humana. Forçosa e silenciosamente retirado do espaço público, o ser humano – vertido em mero trabalho e escravo de suas visceralidades, sejam naturais ou impostas – perde de sua perspectiva imediata as atividades e relações que o dignificam, que lhe fazem humano, próprio e peculiar. Afastado de suas particularidades, incapaz de gerar pluralidade, o ser humano verte-se em massa, sucumbindo a novas formas de Totalitarismo.

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permitir-se regular-se por um Estado simplesmente negativo, em que a força de um pudesse ser rapidamente contraposta à manifestação plena da coletividade. Assim, não é possível que o individualismo seja a resposta ou o modelo a ser seguido; é preciso assumir a condição gregária do ser humano também nos matizes político-filosóficos.

Nesse sentido, apresenta-se o pluralismo na qualidade de equilíbrio razoável entre a massa e o indivíduo. O ser humano é um ser gregário e plural e tende a reunir-se com vias de buscar o interesse comum. Em que pese a essencialidade do “ser humano”, não há um único conceito capaz de esgotar a noção de interesse ou bem comum – nem a forma de atingi-lo. Nesse sentido, grupos formam-se e compõem o movimento plural necessário à existência da política (dentro da concepção arend-tiana). Esses grupos devem coexistir e correlacionar-se com vias de seu crescimento comum, porém conscientes de que a unidade existe dentro das diferenças e não na imposição de uma identidade única.

Ao mesmo tempo em que compreende algo maior que o indivíduo, o Estado deve verter-se na resposta à regulação existencial da pluralidade de seus membros e não no engessamento das matrizes político-filosóficas.

À luz de Bobbio: 13 Distingue-se de tais teorias, mas não se lhes opõe: as propostas das doutrinas pluralistas são perfeitamente compatíveis, já com as propos-tas da doutrina constitucionalista, uma vez que a divisão horizontal do poder não obsta mas integra a divisão vertical, já com as da doutrina liberal, visto a limitação da ingerência do poder estatal constituir, de per si, condição de crescimento e desenvolvimento dos grupos de poder diversos do Estado, já com as da doutrina democrática, pois a multiplicação das associações livres pode constituir um estímulo e uma contribuição para o alargamento da participação política. Todas elas são compatíveis, porquanto visam ao mesmo alvo comum: o Estado como único centro de poder. O Pluralismo impugna-lhe a tendência à concentração, o constitucionalismo a indivisibilidade, o liberalismo o caráter absoluto, a democracia a concepção descendente e não ascendente do poder. É frequente os teóricos do Pluralismo considerarem como sistema antitético o totalitarismo.

13 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicolas; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 12. ed. Brasília: UNB, 1998. p. 928.

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O pluralismo traz e defende a ruptura da perversa pretensão me-galomaníaca de formar e instituir-se um poder central, concentrado e unificado. Dentro da conceituação apresentada por Bobbio, destaca-se que vem no sentido de contrapor-se horizontalmente a esse modelo de concentração de poder, fazendo-se conceituação político-filosófica compatível a diversos modelos e propostas estatais; ele não rompe com ideários já consolidados e basilares das matrizes estatais hoje existen-tes, pelo contrário, impulsiona-os a uma melhor adequação à realidade humana, salutar e naturalmente plural.

3 Partidos políticosUma vez assumida a perspectiva de que o modelo pluralista responde

aos anseios humanos mais basilares no quesito organizacional, sem que tenha de se vincular a um modelo ideológico na concepção vertical do controle de poder, é preciso que se avalie o modelo como ele é preten-samente efetivado no Brasil. Faz-se mister, pois, conhecer a instituição dos partidos políticos.

A política preexiste à concepção partidária. A utilização comum e corriqueira do termo “política” está, quase instintiva e indistintamente, associada à de partido. Contudo, um exercício simples de desconstrução do coloquial traz à tona toda tradição organizacional da história do ho-mem, que se pôs a analisar a forma com a qual os agentes da comunidade engendravam-se na “dança do poder”, desde os filósofos e a proposta classista da República, aos medievais e a forma com que um príncipe tornaria perene e estável seu reino.

Ainda que se reconheça que diferentes grupos e associações sempre compuseram o interesse da comunidade, não havia uma direta relação entre esses e a manifestação institucional do poder.14 No exercício de composição e tomada dos espaços sociais e do reconhecimento da ne-cessidade de ocupá-los de forma efetiva e reflexiva, diferentes formas de agrupamento social por reconhecimento ou afinidade tomaram corpo.

14 “Parece-nos, hoje, que o partido político constitui elemento natural de todo o sistema político. É ele onipresente: nos regimes autoritários e nos liberais, nos países em desenvol-vimento bem como nos industriais. Difícil é citar um Estado em que não haja, pelo menos, um partido político.” (CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UNB, 1982. p. 05)

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Em seu conjunto, o desenvolvimento dos partidos parece associa-do ao da democracia, isto é, à extensão do sufrágio popular e das prerrogativas parlamentares. Quanto mais as assembleias políticas veem desenvolver-se suas funções e independência, tanto mais os seus membros se ressentem da necessidade de se agruparem por afinidades a fim de agirem de comum acordo; quanto mais o direi-to de voto se estende e se multiplica, tanto mais se faz necessário enquadrar os eleitores por comitês capazes de tornar conhecidos os candidatos e de canalizar os sufrágios em sua direção.15

Ligas, comitês, associações, clubes, grupos de pressão, diversas manifestações que, apesar de similitudes e congeneridades, apresentam características que não se coadunam com aquelas expressas por Joseph LaPalombara para definir partido político: organização durável; completa; com vontade deliberada de exercer diretamente o poder; com vontade de procurar apoio popular. Da adoção dessas características é possível idealizar um partido político, nas palavras de Edmund Burke:16

[...] Um conjunto organizado de homens reunidos para trabalhar em comum no interesse nacional, segundo o princípio particular a respeito do qual concordaram [...]. A vocação do filósofo é definir os fins próprios do poder. A vocação do homem político, que é um filósofo comprometido com a ação, é encontrar os meios adequados para tais fins e utilizá-los com eficácia.

Os partidos, tendo como ideal o interesse da coletividade, deve-riam expressar sua vontade no âmbito da civilidade, reconhecendo que a construção da sociedade ideal perpassa pelo reconhecimento de sua pluralidade. Ao que parece, sua recente instituição nasceu eivada de ví-cios, que o transmutam em busca implacável pelo poder, sua dominação e conservação. 17

15 CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UNB, 1982. p. 22.16 Edmund BURKE apud CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UNB, 1982. p. 40). 17 “[...] A organização regular ou durável (ou o agrupamento regular ou durável) de determinado número de indivíduos com vistas ao exercício do poder, isto é, seja da conquista, seja da conservação do poder.” (Raymond ARON apud CHARLOT, Jean. Os Partidos Políticos. Brasília: UNB, 1982. p.41).

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Hannah Arendt18 já reconhecia a precariedade desse modelo, observando que sua alta capacidade de corruptibilidade e manipulação, tende a manifestar desde sua gênese ideológica a falibilidade e a insu-ficiência dos partidos: “Assim, desde as suas origens, o partido, como instituição, pressupunha ou que a participação do cidadão nos assuntos públicos era garantida por outros órgãos públicos, ou que tal participação não era necessária [...].”

O conflito que existe desde a gênese desse modelo partidário está na crítica havida ao sistema representativo, como um todo; ao forjar uma instituição cujo mote é o poder, retira-se a legitimidade pura com que seus anseios e defesas se constituem no seio de seus membros. Histórica e invariavelmente, a organização partidária tende a constituir novos e próprios interesses, que se afastam daqueles trazidos por seus membros e representados. Outrossim, esse sistema tende a afastar pessoas que não se sintam contempladas pelo todo do programa partidário, excluindo parte dos cidadãos do processo conformador da opinião.

O modelo partidário não traz em si um problema ou afronta ao plu-ralismo. Contudo, sua efetivação tende a manifestar interesses escusos e silenciosos, evidentemente contrários a seu pretenso objetivo. Dentro de uma perspectiva histórica, tem-se que isso, na realidade brasileira, diz da origem dos partidos na instituição do sistema político e não da estruturação dos grupos e ligas. Como na maioria dos estados do Terceiro Mundo, os partidos vêm ao encontro do sistema político eleito pela elite intelectual, de forma que não emerge do anseio popular sua estruturação, mas sim da necessidade técnica havida no sistema imposto.

Seguindo a ordem de críticas arendtianas, tem-se que a opinião trazida pela filósofa remonta aos medos expressos pelos revolucionários estadunidenses. Ao maximizar-se a organização dos interesses, mais dis-tante o cidadão estará das esferas de decisão e poder; quanto mais distante da ação, mais parca, letárgica e apolítica será sua existência. Com isso, os interesses comuns que deveriam ser resguardados são substituídos pelos interesses de uns poucos; ao mesmo tempo, os “representados” passam a ser massificados e de forma tal conduzidos que creem estar compondo a “vontade pública”.

18 ARENDT, Hannah. Da revolução. São Paulo: Ática, 1986. p. 217.

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Paulo Bonavides traz evidências desse distanciamento no sistema brasileiro, ao destacar o debate e a vontade constitucional de dar mais força à manifestação direta dos cidadãos através do plesbicito:

Com o advento da Lei 9.709, de 18 de novembro de 1998 - a cha-mada Lei Almíno Afonso - já não há, prima facie, como arguir a inconstitucionalidade por omissão do legislador no que toca à reser-va legal do art. 14 da Constituição Federal, pertinente ao emprego das técnicas plebiscitárias.

Do ponto de vista formal, resguardou-se a legalidade. Mas do ponto de vista material, que é o que importa nas reflexões deste Capítulo, o problema subsiste, porquanto a fragilidade e insuficiência dos conteúdos participativos da lei em tela certificam manifesta ofensa ao princípio da legitimidade, tendo-se em vista que o legislador sufocou e invalidou o desígnio constituinte de fazer do povo, no exercício da democracia direta, a peça chave do regime, qual se infere da interpretação da letra e do espírito principiológico que move o parágrafo único do art. 1 da Constituição Federal. Como faz falta, pois, entre nós, um controle material de constitucionalidade à luz da Nova Hermenêutica! 19

As discussões acerca dos problemas técnicos de se levar a cabo uma participação direta e ativa dos cidadãos chegaram a inúmeras soluções que, embora não sejam o escopo do presente artigo, são destacadas a fim de estruturar as reflexões conexas ao tema. As duas principais a que se faz destaque são o modelo distrital, em que há multiplicação das esferas de participação em pequenos grupos, tornando a participação direta viável e, a partir dela, a composição das vontades do todo; e o modelo de grupos legítimos, em que a formação dos interesses públicos é feita por grupos que atuam junto às causas defendidas e cujo mote não é o poder, mas sim a efetivação daquele interesse – assim, comporta a participação de diferentes identidades pessoais que não precisam assumir bandeiras outras que não aquela em destaque; outrossim, esse modelo afasta a corruptibilidade da massificação em prol de interesses escusos, ao não ter em si a necessidade de convencimento de uma massa que legitime sua atuação.

19 BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 108.

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Mantendo a proposta de estudo reflexivo conceitual acerca das bases históricas e teóricas do sistema partidário, a fim de observar sua correla-ção com seu guia teleológico – o pluralismo –, faz-se oportuno destacar a contribuição à discussão referenciada no Dicionário Político de Bobbio: 20

Quando o nível de participação for elevado e o envolvimento polí-tico dos cidadãos intenso, a delegação e o controle sobre ela serão acumulados e específicos e os partidos serão levados a colocar um questionamento político que tenha em conta as exigências e as necessidades mais gerais dos próprios associados e simpatizantes.

Ao contrário, um baixo nível de participação e uma situação de não mobilização tornarão menos controlável a delegação, favorecerão a cristalização das estruturas políticas permitindo que estas funcionem como filtro de questionamentos particulares e setoriais. Em resumo, a possibilidade de os partidos serem instrumento de democracia está dependente do controle direto e da participação das massas.

Ao analisar o fenômeno partidário, extrai-se que Bobbio e seus colegas trazem à tona a reflexão plural acerca da manutenção ou não do objetivo do partido. Não se está afirmando que o sistema tende, por si, à ruptura, porém sua efetivação é tendenciosa e precária e, em não havendo interesse real na construção do partidarismo ideal, falha e vil.

4 Há efetivação?

Observa-se, pois, que o modelo partidário – embora tente revestir-se de pluralidade de interesses – não se coaduna com o pluralismo. Ele vem para suprir uma necessidade organizacional e transveste-se de ideologias que não compreendem – muitas vezes voluntariamente – seu papel na conformação e representação de interesses de parcelas significativas da sociedade. O objetivo do partido ideal é nobre, mas sua efetivação encontra limites naquele que passa a ser o traço comum entre todos os partidos, a ânsia pelo poder em detrimento da observância dos interesses comuns da comunidade. Os interesses comuns podem, em verdade, ser

20 BOBBIO, Norberto; MATTEUCI, Nicolas; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política. 11. ed. Brasília: UNB, 1998. p.904

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efetivados por diversos caminhos, e dessa multiplicidade nasce a varie-dade de partidos, clubes, associações.

Assim, o pluralismo apresenta-se como resposta à noção de que uma única bandeira é insuficiente e parca para agregar sob si a multipli-cidade de anseios, ideais e reivindicações que emergem do seio da co-munidade. O que se vê, contudo, na atual formatação “política” nacional, são partidos que apenas compõem a estrutura formal do poder, servindo de estruturas necessárias à sua dominação e não faces representativas da multiplicidade brasileira. O que os partidos querem? Dominar o po-der e não representar as bandeiras que compõem, 21 ao fim e ao cabo, a flâmula nacional.

Apesar de garantida constitucionalmente, a pluralidade política e sua pretensa efetivação partidária constitui simulacro e falácia, visto que o povo, feito massa, é posto a par do sistema decisório, sendo manipulado e utilizado como massa de manobra, não fazendo diferença as opiniões e ideologias que pareçam defender. Ao fim e ao cabo, o povo serve ape-nas aos grandes interesses corporativos que o incentivam a colocar-se irreflexivamente sobre os processos decisórios.

Referências ARENDT, Hannah. Crises da República. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973.

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O IMPOSTO SOBRE A PROPRIEDADE PREDIAL E TERRITORIAL URBANA

(IPTU) PROGRESSIVO NO TEMPO COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DA FUNÇÃO

SOCIAL DA PROPRIEDADE IMOBILIÁRIA URBANA

MARIANA HIWATASHI DOS SANTOS Advogada. Especialista em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal/

Universidade de Caxias do Sul. Bacharela em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com Láurea Acadêmica (2014).

RESUMO: Este artigo tem como objetivo abordar a utilização do Im-posto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana em sua natureza extrafiscal, ou seja, progressivo no tempo, como instrumento eficaz na busca da concretização da função social da propriedade imobiliária urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana progressivo no tempo. Poder Público Municipal. Função social da propriedade imobiliária urbana. Função social da cidade. Direito à moradia digna.

IntroduçãoO fenômeno atual conhecido como “ocupações” em imóveis loca-

lizados nas regiões centrais das principais cidades brasileiras é apenas um dos reflexos de um dos mais complexos problemas enfrentados pelos grandes centros urbanos: a dificuldade de acesso à moradia digna das populações de baixa renda ou em situação de rua. A partir disso, explorar soluções para a insuficiência de opções adequadas de moradia adquire cada vez mais significância social, objeto, inclusive, do Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), o qual o denominou de “crise de direitos humanos”, a ser enfrentada em conjunto pelas nações. Segundo o referido documento, espera-se que a condição seja erradicada até 2030, prazo para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentá-vel. A relatora identifica como uma das causas dessa crise a especulação

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do mercado imobiliário e os mercados irregulares, que colocam a moradia no patamar de commodity, e não de direito humano.1

Nesse sentido, o presente trabalho buscará analisar em que medida a aplicação da modalidade do Imposto sobre a Propriedade Predial e Ter-ritorial Urbana (IPTU) progressivo no tempo, prevista no art. 182, § 4º, inciso II, da Constituição Federal (CF) de 1988, constitui um instrumento de fomento ao cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana, visando a possibilitar habitação adequada às populações de baixa renda ou em situação de rua das grandes cidades brasileiras. Partindo dessa premissa, pretende-se realizar um estudo acerca da função social da propriedade imobiliária urbana, buscando analisar se o atual regime jurídico do IPTU permite o real cumprimento da cláusula finalística dessa espécie de propriedade e como a introdução e/ou efetiva utilização da modalidade progressiva no tempo representa uma possível tentativa de solução para a dificuldade de acesso à moradia digna.

1 O Imposto sobre a Propriedade Territorial e Predial Urbana (IPTU) progressivo no tempo

A modalidade extrafiscal, progressiva no tempo, do IPTU, apesar de ter sofrido fortes críticas por autores renomados, destacados também são aqueles que a defendem, por entenderem que a progressividade realiza o princípio da isonomia como instrumento de justiça.2 Pode inclusive ser considerada matéria de política fiscal colocada disposição do legis-lador, caso haja interesse na busca de uma verdadeira revolução social por meio da tributação.3

1 UNITED NATIONS. General Assembly. Human Rights Council. Report of the Special Rapporteur on adequate housing as a component of the right to an ad-equate standard of living, and on the right to non-discrimination in this context, de 30 dez. 2015. Disponível em:<http://ap.ohchr.org/documents/dpage_e.aspx?si=A/HRC/31/54><http://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.2 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 34. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 305.aspx?NewsID=17134&LangID=E>. Acesso em: 04 mar. 2016.3 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral de Direito Tributário. 6. ed. São Paulo: Noeses, 2013. p. 309, 628-630.

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O IPTU progressivo no tempo, de natureza extrafiscal,4 constitui importante instrumento de política urbana, em que “a alíquota do imposto cresce em função do tempo durante o qual o contribuinte se mantém em desobediência ao plano de urbanização da cidade”,5 disposto no art. 182, § 4º, inciso II, da CF/88, com o evidente objetivo de ordenar a propriedade conforme sua função social.6 Harada considera imposto extrafiscal aquele que tem assento no poder de polícia, nos termos do art. 78 do Código Tributário Nacional, aplicável por todos os entes da federação, nos limites da repartição das competências constitucionais. Entende essa espécie de imposto como exercício da atividade administra-tiva pública com o poder de restringir direitos individuais e coletivos, tal qual o direito de propriedade, em prol do bem comum e do bem-estar da coletividade.7 Para Carvalho, a utilização dos tributos em sua modalidade extrafiscal prestigia situações consideradas pelo legislador como social, política ou economicamente valiosas, que ultrapassam, por conseguinte,

a função meramente arrecadatória do Poder Público.8 Compete, portanto, ao Município, intervir de forma mais direta no ordenamento urbanístico, considerando que o art. 1829 da CF/88 incumbiu a esse ente político a execução da política de desenvolvimento urbano, conforme diretrizes gerais fixadas na Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Ci-dade), com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

4 MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de Direito Tributário. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1996. p. 442. 5 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 34. ed. rev., atual. e ampl., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 403.6 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Foren-se, 2013. p. 336-337.7 HARADA, Kiyoshi. Sistema Tributário na Constituição de 1988: Tributação pro-gressiva, 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 269.8 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 244-245.9 BRASIL. CF/88. Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus ha-bitantes. § 1º O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. § 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

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Outrossim, o § 1º do art. 182 da CF/88 tornou obrigatória a ela-boração e a aprovação do plano diretor para os Municípios com mais de vinte mil habitantes, instrumento básico da política de desenvol-vimento e de expansão urbana, tendo como objetivo definir a função social da propriedade, podendo, por isso, somente abranger zona urbana ou de expansão urbana. Assim dispõe o inciso VII do art. 2º da Lei n. 10.257/2001.10 Já o § 2º do referido dispositivo constitucional expressamente preceitua que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da ci-dade expressas no plano diretor, atribuindo a cada Município, através do plano diretor, a competência para definir os elementos da função social da propriedade urbana.11

Quanto à necessidade de observância dos princípios e regras tributárias constitucionais, entende Coelho que a progressividade extraf-iscal não viola o princípio do não-confisco se aplicada corretamente,12 ou seja, se estiver de acordo com o regime tributário constitucional e com os parâmetros por ele determinados.13 A tributação gerada pelo IPTU progressivo no tempo poderia, inclusive, atingir o próprio direito de propriedade, sob pena de tornar-se ineficaz, sem, contudo, violar o princípio do não-confisco.14 Por outro lado, Ávila15 entende haver uma limitação material, decorrente da proibição de excesso, quanto à carga tributária imponível ao contribuinte pela instituição de impostos, de forma a não esvaziar o conteúdo dos núcleos essenciais dos direitos

10 BRASIL. Lei 10.257/2001. Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o ple-no desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: VII – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município e do território sob sua área de influência;11 HARADA, op.cit., p. 311-318.12 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário brasileiro. 14. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 336.13 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 18. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 246. 14 COELHO, op. cit., p. 338.15 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 159, 160 e 470.

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de liberdade, no qual se insere a propriedade, não restringindo exces-sivamente um direito fundamental em benefício de outro. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu pela possibilidade de um tributo ser exorbitante na hipótese de haver um fundamento constitu-cional para tanto, ou seja, quando se tratar de regras com finalidades extrafiscais, como dispõe a norma que prevê o IPTU progressivo no tempo, cuja finalidade é incentivar o cumprimento da função social da propriedade.16

Tendo em vista os objetivos visados com a utilização do IPTU progressivo, deduzidos do próprio texto constitucional, seria legítima, inclusive, uma incidência tributária mais severa aos contribuintes de IPTU que insistirem em exercer seu direito de propriedade em discordância aos interesses da coletividade, ou seja, que não conferirem destinação social ao imóvel. Todavia, o ente estatal não pode usar o imposto de natureza extrafiscal para incrementar a sua receita, de forma que a extrafiscalida-de encontra justificativa somente como meio de incentivar o titular da propriedade a adequá-la ao planejamento urbano no qual está inserida, estabelecido previamente em lei que tenha disposto sobre metas de política urbana.17 Dessa forma, apenas a propriedade imobiliária urbana que estiver em desacordo com o estabelecido no plano diretor, regulado por lei federal prévia, poderá sofrer a incidência do IPTU progressivo no tempo, ou seja, de natureza extrafiscal18, com previsão no art. 7º da Lei n. 10.527/01. 19 Trata-se essa da lei federal prévia20 necessária para o exercício da tributação progressiva no tempo do imposto em questão, também exigida pelo STF, conforme julgamento do Recurso Extraordi-nário n. 194.036.

16 Ibidem., p. 400.17 DERZI, Misabel de Abreu Machado. Princípios Fundamentais no Direito Tributário Municipal. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; GODOY, Mayr (coord.) Tratado de Direito Municipal, v. 1. São Paulo: Quartier, 2012. p. 310-311.18 Ibidem., p. 311.19 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro: Fo-rense, 2013. p. 337. 20 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 28.ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 131.

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De acordo com Harada,21 com fundamento nos arts. 24, inciso I22, e 3023, inciso VIII, da CF/88, o Município é competente para legislar sobre direito urbanístico, pois, caso contrário, perderia quase completamente sua autonomia como entidade política. Ressalte-se ainda a competência legislativa suplementar dos Municípios para dispor sobre matérias de interesse local, prevista pelo art. 30,24 incisos I e II, da CF/88. Para Horta, o texto constitucional vigente, resultado do processo de emancipação do Município frente ao Estado-membro do qual é integrante, iniciado pela Constituição Federal de 1934, assegurou ao Poder Municipal o direito de legislar sobre peculiaridades locais, possibilitando que a competência de auto-organização na espera legislativa municipal atingisse um estágio de evolução mais avançado.25 Segundo Meirelles, 26 o interesse local encontra--se presente naquelas matérias em que há preponderância do interesse do Município quando em comparação com o interesse dos Estados e da União. Nesse sentido também dispõe Costa,27 que entende o critério da preponde-rância como essencial para caracterizar quando deve haver prevalência do interesse municipal frente aos dos demais entes federativos.

Depreende-se, portanto, que à municipalidade foi assegurado o poder de legislar sobre direito urbanístico, desde que observadas as normas e as diretrizes gerais estabelecidas pela União, no uso de sua competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do

21 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 28.ed. rev. ampl. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 307-308.22 BRASIL. CF/88. Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legis-lar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;23 BRASIL. CF/88. Art. 30. Compete aos Municípios: VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do par-celamento e da ocupação do solo urbano;24 BRASIL. CF/88. Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;25 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5. ed. rev e atual. por Juliana Campos Horta. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 584 e 594.26 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 16. ed. São Paulo: Mal-heiros, 2013. p. 137-138.27 COSTA, Nelson Nery. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 62.

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território e de desenvolvimento econômico e social,28 bem como para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos,29 de forma a permitir a unifi-cação de seu poder de tributar com seu poder de regular a economia e planejar o desenvolvimento urbano, garantindo, assim, maior alcance à extrafiscalidade.30 Além disso, da exegese do citado dispositivo consti-tucional que instituiu a sistemática da progressividade das alíquotas do IPTU no tempo, percebe-se que o Poder Público Municipal não pode aplicar o disposto no § 4º do art. 182 da CF/88 enquanto não existir o Plano Diretor exigido.31

O Estatuto da Cidade, no art. 7º e parágrafos, atendeu, portanto, à ordem prevista no supracitado dispositivo constitucional, determinando que, a partir do descumprimento dos prazos fixados para o parcelamen-to, edificação ou utilização compulsórios, o Poder Municipal passará a cobrar o IPTU progressivo no tempo, através da majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos, alíquota essa que deverá estar estabelecida na lei específica a que se refere o art. 5º, não podendo ultrapassar duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de quinze por cento. Não havendo o cumprimento da obrigação de parcelar, edificar ou utilizar o imóvel no prazo de cinco

28 BRASIL. CF/88. Art. 21. Compete à União: IX - elaborar e executar planos nacio-nais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;29 BRASIL. CF/88. Art. 21, XX - instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos;30 HARADA, Kiyoshi. Sistema Tributário na Constituição de 1988: Tributação pro-gressiva. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006. p. 308-309.31 Ibidem., p. 315-318. Assim sendo, segundo o autor, cabe elencar os requisitos para que o Poder Municipal possa utilizar as medidas previstas no § 4º, do art. 182, da Constituição Federal Brasileira: a) existência do Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal, observadas as diretrizes federais, fixadas em lei, bem como as normas gerais para a política urbana; b) lei municipal específica, à qual compete delimitar a área incluída no Plano Diretor, aprovada pela Câmara Municipal, bem como definir objeti-vamente a expressão “solo urbano subutilizado”, para fins de cobrança de IPTU pro-gressivo no tempo; c) observância de lei federal, ou seja, das diretrizes gerais previstas em normas gerais, nos termos do art. 182, caput, da CF/88, especialmente as normas previstas na Lei n. 10.257/2001, que estabelece diretrizes gerais da política urbana; d) existência de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, e e) obediência à ordem de enumeração das providências arrolada no referido dispositivo.

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anos, o Município manterá a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a referida obrigação.32

2 A função social da propriedade imobiliária urbanaA propriedade imobiliária urbana, assim como as demais espécies

de propriedade, para ser considerada válida e legítima no ordenamento jurídico brasileiro atual, deve observar sua função social,33 não somente uma limitação ao direito de propriedade, mas, segundo parte da doutri-na, verdadeiro elemento intrínseco ao conceito de propriedade.34 Para Gonçalves, 35 Leon Duguit deve ser considerado o precursor da ideia de que os direitos decorrentes da propriedade somente se justificam pela finalidade social para a qual devem contribuir.

A Constituição de 1967 foi a primeira a dispor expressamente sobre a função social da propriedade.36 Atualmente, encontra previsão na CF/88, em seu art. 5º, inciso XXIII,37 o qual determina que toda propriedade

32 Vide PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 16. ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado/ESMAFE, 2014. p. 529.33 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 108. 34 SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch da. A propriedade agrária e suas funções soci-ais. In: SILVEIRA, Domingos Sávio Dresch da; XAVIER, Flávio Sant’Anna (Org.). O Direito Agrário em Debate. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1988. p. 13.35 DUGUIT, Leon apud GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 5. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 244-245. Segundo o autor: “A propriedade deixou de ser o direito subjetivo do indivíduo e tende a se tornar a função social do detentor da ri-queza mobiliária e imobiliária; a propriedade implica para todo detentor de uma riqueza a obrigação de empregá-la para o crescimento da riqueza social e para a independência social. Só o proprietário pode executar uma certa tarefa social. Só ele pode aumentar a riqueza geral utilizando a sua própria; a propriedade não é, de modo algum, um direito intangível e sagrado, mas um direito em contínua mudança que se deve modelar sobre as necessidades sociais às quais deve responder.” (grifo nosso)36 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 135-138.37 BRASIL. CF/88. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;

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deverá atender à sua função social, e em seu art. 170, inciso III,38 como princípio geral da atividade econômica, 39 no sentido de que também a ordem econômica observará a função social da propriedade, impondo limites à atividade empresarial.40 Assevera Mendes41 a importância da cláusula finalística da propriedade para estabelecer uma ordem social-mente justa.

Haja vista que, nos diversos ramos do direito, a preponderância do interesse público sobre o privado atingiu um patamar considerável, a propriedade não é mais absoluta e ilimitada, mas sim um direito com finalidade social.42 Nessa lógica, o Código Civil de 2002, influenciado pela consolidação em âmbito constitucional do princípio da função social da propriedade, também o incorporou, em seu art. 1.228, §§1º e 2º, pre-ceituando que o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais.43 De forma semelhante previu o art. 2.03544 do mesmo diploma legal. O dispositivo legal em comento visou a dar maior efetividade à cláusula constitucional geral do

38 BRASIL. CF/88. Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade (grifo nosso)39 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 397-398.40 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 795; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2012.41 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gus-tavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 340.42 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 5. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 22.43 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 105.44 BRASIL. Lei 10.406/2002. Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídi-cos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução. Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

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art. 5º, inciso XXIII, que dispõe o dever de a propriedade cumprir a sua função social45 como norma cogente46, condicionando-a a limitações em prol do interesse coletivo e distanciando-se da noção liberal e individual intrínseca ao conceito usual de propriedade presente desde o Código de Napoleão, de 180447, que conferia ao titular poder quase ilimitado de usar, gozar e dispor sobre a coisa.48 Acerca do caráter não absoluto do direito de propriedade já se manifestou o STF, quando do julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.213. 49

Ressalte-se ainda que Silva50 entende o princípio da função social como o fundamento do regime jurídico da propriedade, determinante nos modos de aquisição, gozo e utilização desse instituto, não podendo mais se entender o direito de propriedade como mero direito individual, com a finalidade de proteger interesses individuais de seu titular, mas serviente também dos direitos da coletividade.51 Alterou-se, assim, a natureza da propriedade, sem, contudo, extingui-la do ordenamento jurídico.52 Conforme Gomes, 53 consiste essa em uma expressão vaga que conferiu, além de direitos ao proprietário, deveres, deixando de ser compreendida como um direito subjetivo absoluto na ordem patrimonial. Comparato54 pondera que a propriedade não é garantida como um fim em si própria, mas sim como um instrumento de proteção de valores

45 PELUSO, Ministro Cezar (Coord.). Código Civil Comentado: Doutrina e Juris-prudência. 4.ed. rev. e atual. Barueri: Manole. 2010, p. 1198.46 TARTUCE, Flávio. Direito Civil: direito das coisas. 6. ed. atual. e ampl. v. 4. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 23-24.47 GOMES, op. cit., p. 11.48 COSTA, Nelson Nery. Direito Municipal Brasileiro. 6. ed. rev. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 147.49 STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.213-MC, Relator Min. Celso de Mel-lo, julgamento em 04/04/2002, Diário de Justiça de 23/04/04. Disponível em: <www.stf.jus,br>. Acesso em: 02 mar. 2016.50 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p. 283-284.51 TARTUCE, op. cit., p. 30.52 SILVA, op.cit., p. 283-284.53 GOMES, op. cit., p. 119.54 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e Deveres Fundamentais em matéria de propriedade. Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/numero3/artigo11.htm>. Acesso em: 02 mar. 2016.

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considerados fundamentais pela ordem constitucional que deve servir à realização da igualdade social e da solidariedade coletiva em relação aos mais desamparados pelo sistema. Para outros autores, a propriedade, em razão de sua função social, deve ser visualizada não apenas como um direito fundamental, mas também como um dever fundamental, diretamente ligado à justiça social. Destarte, é possível sintetizar a fun-ção social como sendo um poder-dever do proprietário de dar ao objeto da propriedade determinado destino, de vinculá-lo a certo objetivo de interesse coletivo.

3 A necessária ponderação entre o direito à propriedade imo-biliária urbana e o direito à moradia digna

O conceito e, consequentemente, o próprio regime de propriedade imobiliária passaram por significativas transformações ao longo de sua história, incorporando elementos de interesse da coletividade. Assim sendo, o exercício dos poderes inerentes ao direito de propriedade privada por seu titular, em desacordo com a sua função social, entra em conflito com uma série de outros direitos fundamentais, com destaque para o direito à moradia, ainda mais perceptível nos grandes centros urbanos de países emergentes.

Apesar do grande avanço já alcançado no que diz respeito ao regi-me jurídico desse instituto jurídico, o atual estágio da evolução humana ainda não conseguiu superar por completo a concepção de propriedade como direito subjetivo individual, absoluto e atrelado à própria na-tureza do ser humano, desenvolvida por filósofos como John Locke, que vislumbrava a propriedade privada como uma extensão do próprio corpo humano, inerente ao homem e dele inseparável, podendo ser considerado um verdadeiro direito natural. 55 Impende mencionar que, para esse autor, a propriedade gozava praticamente do mesmo status da vida e da liberdade, razão pela qual não poderia, enquanto direito, ser cedida ao Estado na formação do contrato social, admitindo, portanto,

55 LOCKE, John. Two Treatises of Government. New York: Hafner Publishing Co., 1947. p. 43.

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o direito de resistência.56 Sua natureza de direito fundamental advém do reconhecimento da função que lhe é reconhecida de proteção pessoal do seu titular, ou seja, tem como objetivo assegurar a autonomia privada do ser humano e o desenvolvimento de sua personalidade, tendo em vista que cada indivíduo manifesta sua personalidade através do poder que exerce sobre seus bens.57 Por conseguinte, como forma de extensão da personalidade de uma pessoa, com a finalidade de satisfazer suas necessidades, a propriedade pode ser concebida como uma expressão da liberdade individual.58 A propriedade adquire, consequentemente, o status de fundamental quando serve para assegurar a liberdade de seu titular e, consequentemente, da própria sociedade.59

Essa visão atingiu seu auge e fortaleceu-se, a partir do século XVIII, com o avanço do Liberalismo e do Estado Liberal, no qual o direito de propriedade privada tornou-se indissociável da própria liberdade humana, orientada exclusivamente pela autonomia da vontade, imune a possíveis intervenções estatais. A sacralidade conferida a esse instituto, recepcio-nando a concepção romana,60 foi positivada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, decorrente da Revolução Francesa, de 1789, que, em seu art. 17, estabeleceu a propriedade como “um direito sagrado e inviolável”, exteriorização da própria pessoa humana e da cidadania, concebida para ser universal61 e perpétuo62. Nesse mesmo sentido, sob a influência do individualismo exacerbado, dispuseram as constituições de caráter liberal, as quais buscaram exaltar apenas os direitos fundamentais do homem, como o é o direito de propriedade, considerado essencial para o livre desenvolvimento da personalidade.63

56 CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 503.57 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENWALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos reais, vol. 5. 8. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podium, 2012. p. 279-280.58 Ibidem., p. 280.59 Ibidem., p. 281.60 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 159.61 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENWALD, Nelson. Curso de Direito Civil: Direitos reais, vol. 5. 8. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Jus Podium, 2012. p. 285.62 GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 111.63 CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 111.

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Contudo, aos poucos, esse individualismo teve de ceder, especial-mente ao longo do século XIX, em razão da Revolução Industrial e do desenvolvimento das doutrinas socializantes, 64 superando, consequen-temente, essa concepção individualista de propriedade, principalmente através do princípio da função social da propriedade e da consecução do bem comum, 65 idealizado por Pio XI em sua Encíclica do Quadra-gésimo Ano, segundo a qual seus titulares devem exercer os poderes a ela inerentes em prol do bem comum. Esse conceito de propriedade foi melhor desenvolvido ao longo do século XX, através da imposição de limites a tal direito, conferindo ao interesse público prevalência sobre o particular,66 atingindo seu auge na pós-modernidade, na qual a ampliação das formas de o ser humano se relacionar com a propriedade exige cada vez maiores transformações na concepção de tal instituto jurídico. Esse direito encontra-se correntemente assegurado no plano constitucional no art. 5º, inciso XXII, 67 da CF/88, elencado entre os direitos e garantias fundamentais, como garantia institucional, segundo Pontes de Miranda.68

Ocorre que, incorporando expressamente em seu texto, o legislador constituinte impôs como condição do direito de propriedade o bem-estar social, 69 no inciso XXIII do citado artigo, que dispõe que “a propriedade atenderá a sua função social”, retirando o caráter de absoluto e intocável da propriedade privada70, criando, assim, um dever fundamental anexo ao direito de propriedade.71

64 VENOSA, op. cit., p. 159.65 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2012.66 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro, v. 5. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 22.67 BRASIL. CF/88. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXII - é garantido o direito de propriedade; [...]68 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, t. 5. p. 395.69 Ibidem.70 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2013. p. 818.71 CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, Gilmar F.; SARLET, Ingo W.; (Coord.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. p. 730.

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No âmbito do direito privado, vinculado aos direitos fundamentais assegurados por normas de direito público,72 encontram-se previstos os elementos constitutivos da propriedade, os quais se extraem da leitura do art. 1.228 do Código Civil.73 Harada74 conceitua a propriedade como o direito real de usar, gozar, reivindicar e dispor do bem, desde que obedecidos os limites inseridos para que atenda ao interesse da coletivi-dade. Nessa esteira, impende salientar a relevância da política urbana, consagrada em capítulo próprio na CF/88. Especificamente quanto ao papel do direito de propriedade na política nacional de desenvolvimento urbano estabelecida pelo texto constitucional, ressalte-se que o art. 182, § 2º, introduziu a função social da propriedade urbana como essencial ins-trumento à ordenação da cidade previsto no plano diretor.75 Não obstante as medidas previstas no § 4º do art. 182 da CF/88 representem grande avanço ao sujeitar a utilização do solo às determinações de leis urbanís-ticas e do plano diretor elaborado por cada Município, assevera Silva76

no sentido de ter “exequibilidade praticamente inalcançável”, devido aos diversos fatores envolvidos na execução de cada uma das medidas referidas em tal dispositivo, o que acaba justificando, em parte, a inércia dos Poderes Públicos Municipais, até então existente, na implementação desses instrumentos de política urbana.

Considerando a concepção de direito de propriedade praticamente inalterada há séculos, entram em constante conflito o regime de proprie-dade imobiliária urbana e o efetivo cumprimento de sua função social, crucial na concretização do direito fundamental à moradia, assegurado pela CF/88, principalmente em seu art. 6º. 77 Trata-se de direito essencial para assegurar a dignidade da pessoa humana, fundamento da República

72 CANARIS, Claus-Willhelm. Direitos Fundamentais e Direito Privado. 2. reim-pressão. Coimbra: Almedina, 2009. p. 28.73 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Direito das Coisas. 28. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.74 HARADA, Kiyoshi. Sistema Tributário na Constituição de 1988: Tributação Pro-gressiva. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 278.75 SILVA, op. cit., p. 824.76 Ibidem., p. 824.77 BRASIL. CF/88. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)

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Federativa do Brasil e característico de um Estado Democrático de Direi-to, sobre o qual a CF/88 se fundou. De acordo com Silva,78 característica principal desse tipo de Estado é a superação do Estado capitalista e o surgimento de um Estado que busca promover justiça social, sem, toda-via, ingressar no Estado socialista, o qual, com fulcro na dignidade da pessoa humana, orienta-se à realização dos direitos sociais e à garantia do exercício pleno da cidadania.

Destarte, em virtude de um evidente processo de atualização do ca-tálogo de direitos fundamentais, o legislador passou a conceber o direito à moradia como essencial ao respeito da dignidade da pessoa humana e intrinsecamente vinculado ao direito à vida.79 Assim, em harmonia com o sistema internacional de direitos humanos,80 o direito fundamental à moradia restou assegurado na atual Carta Magna, no caput do art. 6º, introduzido pela Emenda Constitucional n. 26, de 14 de fevereiro de 2000, ao vigente texto constitucional.81 Para Sarlet, citada alteração constitucional operou-se como medida para satisfazer as condições materiais básicas necessárias a uma vida com dignidade e com certo padrão de qualidade, de forma a tutelar a vida e a dignidade humana.82 Consiste, portanto, em um direito constitucional de todos e dever do Estado prestá-lo por meio de políticas públicas, essencial para a efeti-vação e defesa da dignidade humana.83 Assim, elevou-se à categoria de direito fundamental de caráter social, definido como um valor supremo da nossa sociedade no preâmbulo da CF/88, dentre os direitos sociais. No âmbito infraconstitucional, destaca-se a Lei n. 11.124, de 16 de junho de 2005, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Habitação de Interesse

78 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2013. p. 122.79 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gus-tavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 256.80 Ibidem., p. 657.81 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 712 e 837.82 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 587.83 Ibidem., p. 556.

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Social (SNHIS), cria o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e institui o Conselho Gestor do FNHIS.

No plano supranacional, o direito à moradia84 é reconhecido atual-mente como um direito fundamental de todo ser humano, ou seja, como um direito humano. Nessa mesma linha, os tratados internacionais de direitos humanos, todos ratificados pelo Brasil, também estabelecem o direito à moradia como um direito humano fundamental, com destaque para a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), adotada e proclamada pela Assembleia-Geral da ONU, em 10 de dezembro de 1948, ao dispor, em seu art. 25, que “todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.” 85 (grifo nosso). Ainda no âmbito da ONU, adotou-se, em 19 de dezembro de 1966, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto n. 591, de 06 de julho de 1992. Especificamente em seu art. 11, prevê a obrigação do Estado brasileiro de proteger e promover o direito à moradia adequada, segundo Piovesan,86 direito incorporado ao Direito brasileiro, apesar de não expressamente previsto no âmbito nacional.

Nesse sentido também estabelece a Declaração Americana dos Di-reitos e Deveres do Homem, da Organização dos Estados Americanos (OEA), aprovada em Bogotá, em abril de 1948. Cabe referência ainda à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), adotada no âmbito da OEA, em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, que entrou em vigor internacional em 18

84 Vide MORAES, Guilherme Peña. Curso de Direito Constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 598.85 Vide Plataforma de debate da Relatoria Especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada. Disponível em: <http://direitoamoradia.org/?lang=pt>. Acesso em: 08 jan. 2016.86 PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 14. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 97.

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de julho de 1978, promulgada pelo Brasil por meio do Decreto n. 678, de 06 de novembro de 1992, na qual os Estados, inclusive o brasileiro, assumiram compromissos de proteger e promover o direito à moradia em diversos dispositivos.

Ainda no contexto constitucional, o direito social fundamental à moradia encontra-se assegurado também pelo art. 23, inciso IX, da CF/88, que prevê como competência comum da União, dos Esta-dos, do Distrito Federal e dos Municípios “promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”, ou seja, um “poder-dever do Poder Público” de fornecer habitação àqueles que dela necessitem.87 Esse também é o entendimento de Silva,88 ao ratificar a importância dos direitos sociais, verdadeiros direitos fundamentais, que dependem, para sua efetivação, do estabelecimento ou fortalecimento de instituições. Ao utilizar como exemplo especificamente o direito à moradia sustenta inclusive que os direitos sociais são regras jurídicas diretamente aplicáveis, vinculativas de todos os órgãos do Estado. Da mesma forma como os demais direitos sociais previstos na CF/88, o direito à moradia fortaleceu-se normativamente principalmente pelas dispo-sições dos Títulos que tratam da ordem econômica, especificamente aqueles sobre função social da propriedade.89

Conclui-se que a propriedade urbana, ao descumprir sua função social, contribui, direta e indiretamente, para a continuidade de um crescimento desordenado e de assentamentos precários nas grandes cidades, ocorrido sobretudo em decorrência da rápida urbanização da segunda metade do século XX, cenário que atualmente tem reflexos nas

87 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gus-tavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 10. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 657.88 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 151-152.89 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 544.

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desigualdades e segregações sociais e espaciais nas cidades,90 pratica-mente impedindo o acesso das populações de baixa renda a habitações condizentes com a condição humana digna, de forma a tornar a efetivação do direito fundamental à moradia ainda mais dificultosa.91

ConclusãoA propriedade imobiliária urbana somente se justifica como tal se

cumprir com a sua função social, na qual o interesse público adquire prevalência sobre o interesse particular. Nesse sentido, apesar da comple-xidade do planejamento e desenvolvimento da política urbana, sobretudo nas grandes cidades brasileiras, não pode essa ser usada como eterno argumento justificador para sua não implementação. Por esse motivo, e tendo em vista os inúmeros impactos negativos gerados pelo crescimento urbano desordenado, notadamente às populações de baixa renda e em situação de rua, que encontram cada vez mais dificuldades de acesso à moradia conforme os padrões mínimos necessários à existência humana digna, o presente artigo procurou apresentar e analisar a necessidade e a possibilidade de a modalidade extrafiscal do Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana, ou seja, progressivo no tempo, ser utilizada como instrumento de fomento ao efetivo cumprimento da função social da propriedade imobiliária urbana por parte de seus titulares, na busca de verdadeira transformação social.

A crise habitacional nas grandes cidades e a dificuldade de efetivação do direito à moradia digna são objeto de estudo tanto no âmbito nacional quanto no internacional. Não obstante, o estabelecimento de obrigações e a mera previsão de instrumentos de política urbana nas legislações nacional e internacional são insuficientes se desprovidos de interesse por parte dos governantes e da própria sociedade civil de buscar soluções con-

90 ONU lança relatório sobre cidades latino-americanas, 21 ago. 2012. Disponível em: <https://nacoesunidas.org/cidades-al-caribe-2012/>. Aces-so em: 08 jan. 2016; PROGRAMA DE LAS NACIONES UNIDAS PARA LOS ASENTAMIENTOS HUMANOS (ONU-Habitat). Estado de las ciudades de América Latina y el Caribe 2012 - Rumbo a una nueva transición urbana. Disponível em: <http://bit.ly/CidadesALCaribe2012>. Acesso em: 08 jan. 2016.91 Ibidem.

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cretas e duradouras para tais questões. Os mecanismos legais deveriam ser, por conseguinte, conhecidos e efetivamente aplicados sempre que necessário, na tentativa de promover o interesse público, concretizar o direito fundamental à moradia e respeitar a dignidade da pessoa humana.

Apesar de ciente da incapacidade de a introdução e a real cobrança do IPTU progressivo no tempo solucionarem, isolada e individualmen-te, a crise habitacional nos grandes centros urbanos, principalmente no Brasil, nem de determinar, por si só, o cumprimento da função social da propriedade urbana, referido mecanismo de política urbana, constitucio-nalmente previsto (art. 182, § 4º, inciso II, da CF/88), representa um dos instrumentos mais eficazes colocados pelo Poder Constituinte originário à disposição do Poder Público Municipal na tentativa de assegurar que a propriedade urbana não permaneça sendo utilizada como empecilho à efetivação do direito fundamental à moradia dos demais residentes das cidades, de forma a cumprir com as funções sociais da cidade e a garantir o bem-estar de seus habitantes.

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O ESTADO CONSTITUCIONAL, O ESTADO QUE SE JUSTIFICA: UMA ANÁLISE DA

SENTENÇA JUDICIAL JUSTA E O PRINCÍPIO DA MOTIVAÇÃO NO PROCESSO CIVIL

MÔNICA WESTONAdvogada. Pós-graduada em Direito Processual Civil pela UFRGS.

Pós-Graduanda em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal. Proficiência em língua inglesa atestada pelo IELTS. Fluência em inglês jurídico atestada pelo TOLES.

RESUMO: Este trabalho possui como tema central os motivos que am-param a decisão justa e os contornos do princípio da Motivação quando inserido no Estado Constitucional de Direito. Para ilustração do tema, o artigo aborda o aludido princípio como instrumento de transparência das decisões, tema caro ao exercício da democracia. Observado de forma plena, será demonstrado que confere o devido empoderamento ao cidadão, tornando-o apto ao exercício de direitos fundamentais. A motivação no Estado constitucional é dispositivo de relevo, seja para a legitimação das decisões do juiz constitucional, seja para reaproximar o estado-juiz e os cidadãos, destinatários da decisão.

PALAVRAS-CHAVE: Motivação. Estado Constitucional. Decisão justa.

1 IntroduçãoTem-se, neste artigo, a pretensão de desenvolver temas que se apre-

sentam com destacada pertinência nas sentenças judiciais: o Princípio da Motivação e a decisão justa. Dada a íntima relação entre eles, intenta--se aqui demonstrar que, ao serem observados e relacionados de forma efetiva, dá-se o preenchimento eficaz das diretrizes firmadas pelo Estado Constitucional de Direito.

Não raras vezes, a decisão justa cai em descrédito no discurso jurídico e recebe o imerecido rótulo de “mero slogan”, nas palavras de Michele Taruffo.1 É também com o objetivo de desconstrução desse entendimento que se investiu neste estudo.

1 TARUFFO, Michele. La motivazione della sentenza. Revista de Direito Processual Civil, Curitiba, v. 1, p. 178, jan./abr. 1996.

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O Princípio da Motivação ganha maiores contornos a partir da escolha do legislador constituinte, que estrategicamente posiciona a dignidade da pessoa humana no rol dos direitos fundamentais, no art. 1º, III, da Carta Política. Soma-se a esse cenário a Segurança Jurídica, fundamento do Estado de Direito expressamente mencionado no caput do mesmo artigo. “Dignidade da pessoa humana e segurança jurídica são os dois princípios fundamentais da nossa ordem jurídica.”2 Afinal, quais os reflexos desses movimentos na sentença judicial? Dessa forma, propõe-se responder a questionamentos como: existe uma decisão justa? Sendo existente, como contribui para isso o Princípio da Motivação?

A priori, a resposta ao primeiro questionamento remete diretamente ao parágrafo anterior. Afinal, nesse modelo de Estado, cujo fundamento e finalidade voltam-se à dignidade da pessoa humana, nada mais coe-rente que uma decisão que efetivamente preste tutela a direitos para que guarde adesão ao preceito constitucional. A assertiva é verídica, porém simplista. É aprimorando essas linhas básicas que serão estabelecidos os horizontes da decisão justa.

Feita a análise, parte-se ao segundo questionamento: a contribuição da motivação na decisão justa. Da transição do Estado Legislativo para o Estado Constitucional ocorreram mudanças na compreensão do Direito, em consequência também na prestação jurisdicional.

O Estado, que outrora era alvo de abstenção e de direitos negativos por parte de seus cidadãos, passa a procurar uma reaproximação com eles com a transição para o Estado Constitucional. Sob uma perspectiva, isso acarreta mudança na postura do juiz que, enquanto representante do Estado, e por alterações na própria compreensão do Direito, deixa de exercer atividade meramente mecânica de aplicação da lei e passa a ser demandado a uma tarefa de reconstrução do sentido normativo para que preste a devida tutela dos direitos. Nesse ponto, como objeto deste exame, pretende-se ilustrar que a motivação opera como um dos instrumentos de legitimação da sentença.

Noutra perspectiva, para que se dê o estreitamento dos laços do Estado com o cidadão, pretende-se demonstrar a real magnitude da

2 MITIDIERO, Daniel. A Tutela dos Direitos como fim do Processo Civil no Estado Constitucional. Revista dos Tribunais, v. 229, p. 55, mar./2014.

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confiança e o papel que desenvolve no Estado Constitucional. É nesse discurso que a segurança jurídica será inserida como meio de reapro-ximação entre juiz e destinatários da decisão. Sem dúvida, a sentença, para que seja efetiva, há de vincular os seus destinatários. Todavia, num Estado Constitucional, não basta o uso do poder de império es-tatal; a seres racionais cabem resoluções coerentes aos seus conflitos, pautadas pela justiça e pela verdade. Essas características alcançam seus destinatários através da justificação racional. O elo entre sujeitos e juiz através da motivação é de suma importância para que se estimule a credibilidade na instituição.

Feitos os exames, a pretensão é demonstrar que uma decisão justa amparada por uma motivação ampla transborda a mera justificação: é instrumento de aderência do cidadão à resolução que lhe é ofertada, gera confiança e pacificação social, ou seja, presta tutela efetiva a direito escorada nos alicerces básicos do Estado Constitucional – dignidade da pessoa humana e segurança jurídica. Ademais, a funcionalidade do judiciário torna-se mais eficiente e efetiva quando capaz de vincular seus destinatários de forma convincente. Assim, tem-se como propósito demonstrar que esse status apenas é alcançado por uma decisão justa, assim percebida aos olhos do juiz, enquanto guardião dos direitos fun-damentais e do cidadão, seu destinatário.

2 A sentença no Estado Constitucional de Direito e a decisão justaAnterior ao exame, é necessário o delineamento de premissas básicas

para melhor compreensão dos itens seguintes. A respeito da sentença no Estado Constitucional de Direto a própria organização material dada pela Constituição Federal de 1988 indica, em seu primeiro artigo, os fundamentos que pretende, e aqui se dá especial destaque à dignidade da pessoa humana. Denota-se, pois, que a Carta Magna inaugura suas disposições acerca da pessoa e de seus direitos nos primeiros artigos, para depois se ater a questões referentes à organização do Estado e seus poderes. Dessa breve análise, a conclusão não é outra senão que o Estado “é uma organização política que serve o homem”. 3

3 SARLET, Ingo Sarlet. Dignidade da Pessoa Humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 52.

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Desse panorama, Daniel Mitidieiro4 alerta que

A juridicidade pela qual se pauta o Estado Constitucional – isto é, o seu parâmetro jurídico de atuação e a efetiva atuabilidade dos direitos – assegura imediatamente a necessidade de uma decisão justa como meio particular para obtenção da tutela dos direitos.

Embora aparentemente a decisão justa possa ser por muitos desa-creditada, ou até mesmo “um slogan de propaganda”, nas palavras de Michele Taruffo, existem critérios capazes de proporcionar a “melhor decisão”. Seria utópico acreditar na existência de uma fórmula concreta e absoluta que conduzisse ao resultado “decisão justa”. Todavia, esses critérios, compreendidos enquanto “standards gerais” ou princípios, quando observados em um nível de combinação minimamente aceitável, proporcionam dentre as “possíveis decisões” a melhor delas, e, portanto, aquela que pode ser considerada justa.5

Michele Taruffo6 propõe um modelo de decisão justa a partir da conjugação dos seguintes fatores: a) que a decisão seja resultado de um processo justo, pautado pelos direitos fundamentais; b) que neste ocorra a correta interpretação e aplicação da norma ao caso concreto; e c) que se funde na apuração verdadeira dos fatos da causa. “Essas condições são todas necessárias conjuntamente, sendo evidente que a falta mesmo que de uma delas impossibilitaria a qualificação da sen-tença como justa”.

Para aplicação desses critérios, leciona Michele Taruffo:7

En teoría, cada uno de estos valores se coloca entre o minimo y el máximo (incluyendo los extremos) de la escala, o al interior de los confines del área, en la que se articula el criterio respectivo. Las combinaciones posibles están evidentemente limitadas, ya que toda

4 MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 17.5 TARUFFO, Michele. Proceso y Decisión. Madrid, Barcelona e Buenos Aires: Mar-cial Pons, 2012a. p. 234-241.6 TARUFFO, Michele. Uma Simples Verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradu-ção de Vitor de Paula Ramos. São Paulo: Marcial Pons, 2012b. p. 142.7 Idem, op. cit., 2012a, p. 240-241.

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escala contiene un número indeterminado de posiciones intermedias (no siendo tales posiciones ‘discretas’ ni exactamente distinguibles, sino diferenciándose más bien por pasajes progresivos), y cada una de estas posiciones puede encontrarse combinada con cada una de las posiciones posibles de las otras escalas. Por otra parte, se puede suponer la hipótesis de que toda decisión individual esté caracterizada por una peculiar combinación de los tres valores que corresponden a los criterios que definen la justicia de la decisión.

Em cada um dos pilares da decisão justa, a incidência do Princípio da Motivação é decisiva, pois “ao contrário do poder autoritário, que é exercido de forma absoluta e também oculta, o desempenho do poder democrático reclama publicidade e transparência, o que supõe a perma-nente explicitação das razões de atuação estatal”.8

A razão não poderia ser outra senão a sujeição de todos os poderes do estado à lei, como esclarece José Carlos Barbosa Moreira: 9 “No Estado de Direito, todos os poderes sujeitam-se à lei. Qualquer intro-missão na esfera jurídica das pessoas deve, por isso mesmo, justificar-se o que caracteriza o Estado de Direito como o ‘reichtsfertinger Staat’, como o “Estado que se justifica”. Por conseguinte, “tanto maior o poder discricionário do magistrado, quanto mais importante a necessidade de fundamentar a decisão”.10

Em conclusão, o Princípio da Motivação, elencado no art. 93, IX, da CF/88 é

inerente ao Estado Constitucional e constitui verdadeiro banco de prova do direito ao contraditório das partes. Não por acaso a doutrina liga de forma muito especial o contraditório, motivação e direito ao processo justo. Sem motivação, a decisão judicial perde duas

8 Idem, apud GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões judiciais na Constituição de 1988: funções políticas e processuais. Revista do Advogado, São Paulo, n. 99, p. 15-20, set. 2008.9 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A motivação das decisões judiciais como garan-tia inerente ao Estado de Direito. Revista Brasileira de Direito Processual, Uberaba, MG, v. 16, p. 17, 1978.10 USTÁRROZ, Daniel. A Democracia Processual e a Motivação das Decisões Judi-ciais. In: PORTO, Sergio Gilberto (org.). As Garantias do Cidadão no Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 139.

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características centrais: a justificação da norma jurisdicional para o caso concreto e a capacidade de orientação de condutas sociais. Perde, em uma palavra, o seu próprio caráter jurisdicional.11

Para que se entenda a efetiva dimensão desse processo de justi-ficação, é importante perceber a amplitude que denota a motivação a partir de uma perspectiva publicista do processo civil. Já se discorreu aqui que a Constituição ancora-se na dignidade da pessoa humana e na segurança jurídica e, por isso, confere ao processo civil a finalidade maior de tutelar direitos. Em contrapartida, conforme Daniel Mitidiero,12

essa assertiva não implica reduzir a compreensão de processo a tutela de direitos subjetivos, mas “à proeminência reconhecida à pessoa humana diante do Estado.” A dimensão publicista do processo civil, que decorre basicamente da dissociação de processo e direito material, conferiu ao processo, para além da finalidade de tutelar direitos individuais, em atenção à dignidade da pessoa humana, também escopo de proporcionar unidade ao direito, em prol da segurança jurídica.13

Nesse panorama, o princípio da motivação protagoniza as sentenças judiciais como instrumento que confere a personalidade que se propõe a decisão justa inserida no Estado Constitucional, de modo que atende seus fundamentos: a dignidade da pessoa humana e a segurança jurídica.

3 A motivação no Estado Constitucional de Direito: Um novo aspecto

3.1 Motivação enquanto método de legitimação das decisões Neste ponto, pretende-se explorar o Princípio da Motivação princi-

palmente por um viés político. À primeira vista, uma decisão motivada de-sempenha função de “garantia de efetividade dos direitos fundamentais”,

11 SARLET, Ingo Wolfgang; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 778.12 2 MITIDIERO, Daniel. A Tutela dos Direitos como fim do Processo Civil no Estado Constitucional. Revista dos Tribunais, v. 229, p. 60-65 mar./2014.13 2 MITIDIERO, Daniel. A Tutela dos Direitos como fim do Processo Civil no Estado Constitucional. Revista dos Tribunais, v. 229, p. 60-65 mar./2014.

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como trata Antonio Magalhães Gomes Filho,14 ao torná-los expressos e, portanto, cognoscíveis aos seus destinatários. O tema, todavia, não se exaure neste plano, pois “a legitimação democrática dos membros do Judiciário – que não resulta da investidura do cargo por eleição –, deriva do modo pelo qual é exercida sua função”, e é por este prisma que nos parágrafos seguintes será explorado o estudo da motivação.15

Anterior ao enfrentamento da questão, é de suma relevância prestar a ênfase: não menos importante é a estrita observância da adequada justificação como método de transparecer a adesão ao procedimento adequado para o resultado “decisão justa”, pois

Em um Estado Constitucional de Direito, têm-se como exigência fundamental que os casos submetidos a Juízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o juízo lógico que percorreu para chegar a decisão a que chegou.16

Assim, a observância do princípio da motivação na sentença é im-prescindível à verificação dos direitos fundamentais pelos seus destina-tários. Todavia, o tema a que se dedica com maior presteza é anterior: é o motivo do procedimento adequado e de sua demonstração na sentença, através da justificação.

O discurso parte da estrutura organizacional do Estado em divisão de poderes. Dessa forma, de um lado, o poder judiciário, órgão imparcial e autônomo, sustenta-se na separação dos poderes como fiscalizador dos demais para tutela dos direitos do cidadão; de outro, não há legitimida-de sem se amparar em “obrigações jurídicas perante o cidadão”, como refere Martin Kriele, o que será a seguir melhor ilustrado. Em outras palavras, incumbe ao poder judiciário limitar eventuais excessos ou am-parar omissões dos outros poderes do estado, e, noutro prisma, também “justificá-los” perante o cidadão.

14 GOMES FILHO, op. cit., 2008. p. 17.15 Ibidem, p. 16.16 LIEBMAN, Enrico Tullio. Do Arbítrio à Razão: reflexões sobre a motivação da sen-tença. Tradução de Tereza Celina de Arruda Alvim. Revista de Processo, São Paulo, n. 29, p. 7-81, jan./mar. 1983.

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Assim, se por um lado, conforme Manoel Gonçalves Ferreira Filho17, que argumenta que

[...] o direito de o indivíduo fazer passar pelo crivo do Judiciário toda lesão a seus direitos é essencial a todo regime cioso das liberdades fundamentais. Deflui inexoravelmente esse princípio da própria ‘separação de poderes’, pois outra não é, no fundo, a justificativa da independência do Judiciário senão a tutela dos direitos individuais. [...] De fato, o crivo imparcial do Judiciário contraria muita vez a prepotência dos governantes que, se podem, cuidam de impedir sua fiscalização.

Por outro, complementa Martin Kriele que: 18

a organização jurídico-estatal do Estado com divisão de poderes cria os pressupostos para que o poder estatal possa ter obrigações jurídicas perante os cidadãos e, de toda forma, somente sob essa condição pode haver liberdade e igualdade. Um poder estatal não derivado do Direito e não vinculado a obrigações jurídicas, apesar de poder exercitar seu poder de forma tolerante, amena e manter-se nas próprias leis aprovadas, também pode fazer uso cruel, tresloucado, humanamente adverso, interpretar, anular ou violar as próprias leis aprovadas [...].

Com a passagem do Estado Legislativo para o Estado Constitucio-nal, tais obrigações ganham proeminência e se devem principalmente ao fato de o juiz, além de simples aplicador da lei, é também ator político.

Isto ocorre na medida em que a solução judicial das controvér-sias supõe inevitavelmente um trabalho de verdadeira criação do direito, com o suprimento das omissões legislativas, a superação de antinomias e a integração do conteúdo do texto legislativo pelo seu aplicador.19

17 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 315.18 KRIELE, Martin. Introdução à teoria do estado: os fundamentos históricos da le-gitimidade do estado constitucional. Tradução de Urbano Carvelli. 6. ed. Porto Alegre: Fabris, 2009. p. 295.19 GOMES FILHO, op. cit., 2008, p. 15-16.

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Para elucidar, Jürgen Habermas analisa o Estado Clássico em con-traposição ao Social. No primeiro, o juiz era mero aplicador da lei ao caso concreto, não assumia postura criativa e, portanto, atuava dentro das típicas atividades judiciais, e a legitimação do ato de aplicação do texto advinha do próprio legislativo, eleito pelo povo. Em contraparti-da, a situação muda quando se passa ao Estado Social, em que o juiz não assume mais a ‘postura mecânica’ perante a lei; pelo contrário, ele reconstrói seu sentido para obter a norma aplicável ao caso concreto, aparentemente sem a legitimação para o ato, todavia única forma de tutela efetiva dos direitos. Nesse sentido,

Quando se parte desse modelo, a ordem jurídica materializada do Estado social – a qual não consiste apenas, e em primeira linha, em programas condicionais claramente delineados, pois inclui objeti-vos políticos e uma fundamentação em princípios – pode aparecer como um abalo, ou melhor, como uma corrupção da arquitetônica constitucional. Comparada à tese positivista da separação, a ma-terialização do direito carrega atrás de si uma ‘remoralização’, a qual afrouxa a ligação linear da justiça às vantagens do legislador político, na medida em que a argumentação jurídica se abre em relação a argumentos morais de princípio e a argumentos políticos visando à determinação de fins. As normas de princípio, que ora perpassam a ordem jurídica, exigem uma interpretação construtiva do caso concreto, que seja sensível ao contexto e referida a todo o sistema de regras. Nos domínios da ação não-formalizada, a possibilidade de contextualização de uma aplicação de normas, dirigida à totalidade da constituição pode fortalecer a liberdade e a responsabilidade dos sujeitos que agem comunicativamente; porém, no interior do sistema de direito, ela significa um crescimento de poder para a justiça e uma ampliação do espaço de decisão judicial, que ameaça desequilibrar a estrutura de normas do Estado clássico de direito, às custas da autonomia dos cidadãos.20

Para melhor ilustrar, eis a reflexão:

A separação de poderes que, no modelo social já havia rompido com a distinção entre Estado e sociedade, reforça a inter-relação, tensa,

20 HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre a facticidade e validade. Tradu-ção de Flavio Beno Siebeneichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Rempo, 2012. p. 305-306. v. 1.

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mas necessária, entre eles. Há, por outro lado, uma revalorização do juiz constitucional, a ponto de admitir-se o controle de constituciona-lidade mesmo das definições orçamentárias e das políticas públicas, embora, no fundo, reconheça-se que a restauração do parlamento como centro decisório em conexão com uma administração pública entre legalista e dialógica, mas sempre programada e eficiente, seja o meio mais adequado de realização duradoura e consequente das finalidades emancipacionistas do Estado democrático. Essa tarefa do juiz constitucional é, no fundo, um paradoxo: para restaurar a democracia (notadamente seu efeito socialmente redistributivo), autoriza-se um grupo pequeno, seleto e não eletivo de agentes po-líticos a corrigir ou mesmo impor um projeto de governo.21

É importante que se perceba a necessidade de um “fator de correção” para que se permita a legítima atuação deste “juiz constitucional” que preste tutela a direitos. Exatamente sob esse ângulo, Neil MacCormick22 percebe que o justo prepondera sobre o caráter representativo do juiz, porém não lhe retira a incumbência de conferir um “senso coletivo de justiça” à sua decisão. Por conseguinte, mesmo que não seja “criador” do Direito, “a obtenção convicta da decisão correta dependeria ainda de alguma confiança, dentro da comunidade, de que seus juízes eram propriamente seus representantes na investigação da resposta certa”. Sobre os aspectos da confiança e do senso coletivo de justiça será dado o especial destaque no próximo item.

Frisa-se: não se está aqui a defender a atuação do parlamento como solução, muito menos a criticar a figura do “juiz constitucional”; pelo contrário: a atividade interpretativa conferida ao juiz, é, antes de mais nada, uma reafirmação da relevância dos direitos fundamentais. Desse modo, Sergio Arenhart, Daniel Mitidiero e Luiz Guilherme Marinoni, em apoio a Robert Alexy, afirmam: “os direitos fundamentais são importantes a ponto de serem excluídos da esfera de decidibilidade do legislador”.23

21 SAMPAIO, José Adércio Leite. O Estado Democrático de Direito. In: HORBACH, Carlos Bastide et al. (coords.). Direito Constitucional, Estado de Direito e Democra-cia. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 395-410.22 Ibidem, p. 356-357.23 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Curso de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. p. 96. v. 1.

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O ponto aqui é chave e merece maior atenção: não é à toa que o guar-dião dos direitos fundamentais seja um poder imparcial e independente do legislativo. A atividade de fazer leis destoa de sua efetiva aplicação; são atividades eminentemente distintas e, muitas vezes, expõem ao extremo direitos indisponíveis. O que se está a dizer é que o juiz, no Estado Constitucional, supera a aplicação mecânica da lei e torna-se um instrumento de reafirmação dos direitos fundamentais, podendo, inclu-sive, contrapor-se à aplicação de lei formada pelo legislativo, em prol dos direitos fundamentais. Não há que se confundir com uma atividade legislativa e tresloucada do judiciário; pelo contrário, como outrora es-clarecido, toda a atividade de interferência na esfera jurídica do cidadão demanda justificação e fundamento em direitos fundamentais. Tutelar direitos trata-se, portanto, de uma dupla análise que parte do legislativo, ao fazer a lei, e passa ao reexame do juiz ao aplicá-la, ou não, pois é capaz de avaliar sua constitucionalidade e de reafirmar a democracia. É, portanto, “uma oposição entre argumentação jurisdicional em prol da sociedade e a decisão tomada pelo legislativo”.24

Retomando, um Estado voltado à dignidade da pessoa humana, e portanto que se preste à tutela dos direitos de seus cidadãos, não poderia ter outro “fator de correção” mais adequado senão os próprios, através da efetiva participação destes na atividade jurídica. Afinal, todo o poder emana do povo. A superação legítima da lei, para que vincule seres ra-cionais, demanda argumentação racional. Aqui, novamente a motivação é de especial destaque e assume intrínseca relação com a democracia. Nesse sentido, Marinoni, Arenhart e Mitidiero25 continuam o raciocínio:

É preciso que a representação argumentativa supere a representação política. Isso se torna possível quando se compreende que a demo-cracia não se resume apenas a um processo de decisão marcado pela existência de eleições periódicas e pela maioria. Um conceito adequado de democracia deve envolver não somente decisão mas também discussão. A inclusão da discussão na democracia torna a democracia deliberativa. A democracia deliberativa é uma tentati-va de institucionalizar o discurso tanto quanto possível como um

24 MARINONI; ARENHART; MITIDIERO, op. cit., 2015. p. 96.25 Ibidem, p. 96.

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instrumento para a produção de decisões públicas. Essa dimensão discursiva da democracia é exercida pela representação argumentati-va, e é nela que se situam as bases da convivência política legítima.

Nessa toada, a motivação na sentença é o instrumento através do qual é esclarecido o “iter cognitivo” do juiz sobre os fatos, provas, in-terpretação das leis. O julgador, portanto, deve transparecer o debate no ato decisório, ou melhor, a influência de ambas as partes como forma de conferir legitimidade à decisão.

A figura do “juiz constitucional” tem origem na concepção de Estado. Conforme Habermás, num Estado Liberal, o cidadão possuía em seus direitos fundamentais uma concepção negativa perante o Estado, ou seja, havia nos direitos fundamentais uma garantia de limite aos poderes do Estado em proteção ao indivíduo. Nessa concepção, existia a separação entre cidadão e Estado em que o primeiro tinha nos direitos fundamen-tais limites à atuação do segundo. Passa-se, então, a uma reaproximação entre Estado e cidadão, visto que aquele se dirige a este, seu fundamento. Neste, os direitos fundamentais assumem caráter positivo, pois conferem ao cidadão direito de livre iniciativa e de influência. Essa mudança da relação indivíduo e Estado, evidentemente, interfere na dinâmica judi-ciária, que hoje também se submete à interferência do cidadão, como garantidor de seus direitos fundamentais.26

Feita essa aproximação indivíduo-Estado, todo o poder emana da soberania popular, exercida através do voto, como dispõe Manoel Gonçalves Ferreira Filho: 27 “O estudo da democracia institucionali-zada no Brasil deve partir do exame da participação individual. É pela participação individual, com efeito, que todo poder emana do povo”. Nesse ponto,

Quanto à atividade judicial (princípio da justicialidade), ela deve ser compreendida como uma continuação do processo deliberativo democrático que se dá no âmbito da representação popular. O juiz não pode pensar sua atividade como uma mera adesão a normas positivadas (normativismo) nem pode criar o direito ex nihilo (de-

26 HABERMAS, op. cit., 2012, p. 305-308.27 FERREIRA FILHO, op. cit., 2015, p. 137-138.

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cisionismo), mas está obrigado a dar continuidade, em cada caso, à discussão democrática que se expressa nas leis e decretos dos pode-res legitimados pelo voto popular. Assim, o processo democrático está submetido à teologia constitucional, assim também o processo judicial deve conceber-se como uma concretização de finalidades da constituição e das leis em conformidade com esta.28

Segundo Jürgen Habermas, para solução da questão não basta ignorar as alterações e pregar o retorno ao Estado Liberal, em que o discurso da separação dos poderes e atividade judicial aparentemente se encaixavam. As mudanças existem, e as alterações culturais efetivamente demandam esses ajustes. A própria constituição deve ser vista com outros olhos e não pode ser vista como uma

ordem jurídica global e concreta, destinada a impor a priori uma determinada forma de vida sobre a sociedade. Ao contrário, a constituição determina procedimentos políticos, segundo os quais cidadãos, assumindo seu direito de autodeterminação, podem perseguir cooperativamente o projeto de produzir condições justas de vida.29

Nessa mesma direção, Luiz Guilherme Marinoni30 repara na técnica representativa dos juízes “não eleitos” do sistema jurisdicional brasileiro:

O debate em torno da legitimidade da jurisdição constitucional, ou melhor, a respeito da legitimidade do controle de constitucionalidade da lei, funda-se basicamente no problema da legitimidade do juiz para controlar a decisão da maioria parlamentar. Isso porque a lei encontra respaldo na vontade popular que elegeu seu colaborador – isto é, na técnica representativa.

Marinoni demonstra com clareza o foco da controvérsia e reconhece entre direitos fundamentais e democracia uma relação de interdepen-dência, de modo que outra maneira não há para dissolvê-la senão pela

28 BARZOTTO, Luis Fernando. A Democracia na Constituição. São Leopoldo: Uni-sinos, 2005. p. 192-193.29 HABERMAS, op. cit., 2012, p. 326.30 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 431.

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liberdade de participação política do cidadão, como possibilidade de intervenção no processo decisório e, em decorrência, do exercício de efetivas atribuições inerentes à soberania (direito de voto, igual acesso a cargos públicos, etc.), constitui a toda evidência, comple-mento indispensável das demais liberdades. [...] 31

Em resumo, a participação das partes e a sua influência de fato na construção da sentença sustenta-se na soberania popular, que confere legitimidade à decisão e reafirma a dignidade da pessoa humana. Nesse rumo,

somente um processo político baseado na razão, e não na vontade, como na democracia plebiscitária e na democracia procedimental, está em conformidade com a dignidade da pessoa humana, ser racional. Todo comando, toda ordem, toda lei, toda sentença, que não puder se justificar racionalmente, de um modo argumentativo, carece de força obrigatória para impor-se a seres racionais. O que é irracional não vincula um ser racional.32

O modo de se conferir às partes esse direito de influência é a reafir-mação do contraditório, estampado junto ao art. 5º, LV, da Constituição Federal, requisito indispensável ao processo justo e à decisão justa, pois

significa participar do processo e influir nos seus rumos. Isto é: direito de influência. Com essa nova dimensão, o direito ao con-traditório deixou de ser algo cujos destinatários são tão somente as partes e começou a gravar igualmente o juiz. Daí a razão pela qual eloquentemente se observa que o juiz tem o dever não só de velar pelo contraditório entre as partes, mas como fundamentalmente a ele se submeter.33

Acerca da figura do “juiz contraditor”, parcela da doutrina não adere a esse discurso. Todavia, sem adentrar no mérito, apenas para inseri-la neste discurso, essa mesma parcela reconhece no contraditório firmado somente entre as partes forma de “participação no debate”, de

31 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos Direitos Fundamentais. 10. ed. Porto Ale-gre: Livraria do Advogado, 2010. p. 61.32 BARZOTTO, op. cit., 2005, p. 181.33 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., 2015, p. 760-761.

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“influência da construção das decisões”, de proteger as partes “contra excessos eventualmente praticados pelo órgão jurisdicional”.34 Identifica no contraditório, sobretudo, meio de “assegurar que o poder jurisdicional exerce-se segundo ditames democráticos e, portanto, baliza-se pelo deba-te, pelo labor discursivo e probatório das partes”.35 Esse posicionamento, em que pese negue a inserção paritária do juiz na dialética, reconhece na observância dela modo de legitimidade da decisão, e é isto que por ora basta para fechamento da narrativa.

Desse contexto, o Princípio da Motivação naturalmente decorre, dado que

a motivação das decisões judiciais constitui o último momento de manifestação do direito ao contraditório e fornece seguro parâmetro para aferição da submissão do juízo ao contraditório e ao dever de debate que dele demanda. Sem contraditório e sem motivação adequados não há processo justo.36

Em um segundo momento, como ressalta Michele Taruffo37:

a motivação assume relevo particular, de natureza política, aque-la especial forma de participação do povo na administração da justiça, que se desenvolve no controle democrático a posteriori sobre a procedência do ato com que o juiz ‘faz’ justiça mediante a motivação.

Em suma, dessas últimas observações é possível perceber que, através da justificação racional, extrai-se da motivação complemento às decisões judiciais que se pretendam justas, um real instrumento capaz de transmitir legitimidade às decisões do juiz constitucional.

34 DELFINO, Lúcio; ROSSI, Fernando F. Juiz contraditor? Revista Brasileira de Di-reito Processual, Uberaba, MG, v. 82, p. 229-254, 2013.35 Ibidem, p. 246.36 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., 2015, p. 779.37 TARUFFO, Michele. A motivação da sentença civil. Tradução de Daniel Mitidiero, Vitor de Paula Ramos e Rafael Abreu. São Paulo: Marcial Pons, 2015. p. 342-343.

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3.1 Motivação como método de proteção da confiança Mencionou-se neste artigo, na subseção 3.1, as ponderações de

Neil MacCormick acerca da incumbência do juiz de conferir um “senso coletivo de justiça” para sua decisão, e ainda a necessidade de ser estabe-lecido um vínculo de confiança na comunidade. Esse objetivo se ampara na observância da segurança jurídica, outro pilar básico que fundamenta o Estado Constitucional.

Sobre os laços de justiça e confiança, Susan Haack relembra a metá-fora de Jeremy Bentham, “Injustice and her handmaid Falsehood”: em tradução livre, “a falsidade é serva da injustiça”. Em sua perspectiva, em um sistema legal não bastam leis e sua administração, é necessária também a “factual truth”. Para a autora, existe a efetiva possibilidade de que somente um sistema legal demande indicações objetivas de verdade.38 Ora, de fato, vislumbrar um sistema que se pretenda justo e a reaproxi-mação com o cidadão, bem como restabelecer laços de confiança, muito provavelmente implica a primazia da verdade. Antes de adentrar no tema, num brevíssimo sobrevoo, insta tecer alguns comentários sobre a verdade.

Para Michele Taruffo, a verdade ao longo do tempo assumiu cono-tações variadas. No pós-modernismo, por exemplo, consideradas as suas variações, a noção de verdade fora totalmente desconstruída, tomada como inútil, e chegou a ser considerada como “instrumento superado e não confiável”. Há ainda os construtivistas, que assumiam a verdade como meras construções mentais, ou aqueles denominados relativistas, os quais aduzem que uma decisão proferida com base em provas cientifi-camente produzidas não é mais justa do que uma outra fundamentada no ordálio do fogo. Existe também uma parcela teórica que nega qualquer possibilidade de se configurar pensamentos de alguma forma verdadei-ros de qualquer evento externo ao sujeito, estes denominados céticos.39

Configurou-se, por fim, uma segmentação daquilo que Taruffo de-nomina como pós-pós-modernistas, os quais assumem a existência de um mundo externo, pressuposto necessário à possibilidade de existirem

38 HAACK, Susan. Epistemology Legalized: or, truth, justice, and the american way. The American Journal of Jurisprudence, v. 49, p. 43, 2004.39 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 95-100.

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opiniões e teorias sobre a realidade. Estes tomam a ideia de verdade alé-tica, ou seja, todo o enunciado que se refere a acontecimento do mundo real torna-se verdadeiro ou falso em função da correspondência deste no mundo real; em outras palavras, é a realidade que determina falsa ou verdadeira determinada narrativa. O raciocínio reconhece uma noção de correspondência da verdade, além de uma noção epistêmica desta, uma vez que existente, cognoscível e demonstrável.40

É evidente que a verdade absoluta não pertence ao mundo das coisas humanas, por conseguinte também não faz parte do mundo da justiça e do processo. Todavia, tal constatação não elide de forma alguma a rele-vância da busca das “verdades relativas” no âmbito processual, ou seja, que se verifique a verdade de determinado enunciado mediante o uso da correspondência deste e a realidade do evento que representa, sem cair em subjetivismos ou relativismos, que acabariam por desorientar a finalidade maior da apuração da verdade.41

Com isso, é válido ainda frisar que o processo possui uma dimensão epistêmica, cuja descoberta da verdade é um fim essencial, condição necessária à justiça. Todavia, tal assertiva não elimina regras “contrae-pistêmicas”, apenas reafirma a necessidade de “valorar quais limites e condicionamentos justificam-se e quais, ao invés disso, além de serem epistemologicamente contraindicados, são também carentes de justifi-cativa ideológica aceitável”.42

Aqui, há ainda outra constatação: o “status subjetivo do juiz”, ou sua íntima convicção, em nada se relacionam com a verdade, a justiça, ou com a decisão justa. A verdade é alheia ao sujeito, existe e é objeti-va; o que se constrói são certezas, “status subjetivo, dizendo respeito à psicologia daquele que fala”.43 Tomada a “íntima convicção do juiz” como a correta e aplicável ao caso concreto, falha-se em três pontos: (i) conforme exposto no item anterior, a decisão perde legitimidade, por falta ou deficiência de influência das partes; (ii) exclui-se a ideia de verdade e de que a decisão deva pautar-se por ela; e (iii) fortalece-se a

40 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 100-104.41 Ibidem, p. 105.42 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 162.43 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 108.

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hipótese de que o fundamento de uma decisão dá-se pelo seu grau de persuasão subjetiva, sem sequer levar em conta a probabilidade de erro, como se “certeza subjetiva equivalesse à verdade”.44 O discurso vai além e merece transcrição:

O problema é muito mais sério, derivando do fato de que teorias difundidas sobre como o juiz deveria embasar seu juízo sobre os fatos ancoram-se em noções genéricas de certeza, de qualquer modo embebidas de subjetivismo. É, sobretudo, o caso da orientação se-gundo a qual o juiz deveria valorar as provas (e, por conseguinte, formular o próprio convencimento sobre os fatos) retirando certezas de sua intime conviction, ou seja, de uma espécie de persuasão inte-rior, imperscrutável e impassível de racionalização (e, portanto, não analisável ou controlável), sobre os fatos da causa que se trata de apurar. [...] Naturalmente, dizer que essa certeza deve ser ‘profunda’, ‘elevada’, ou ‘absoluta’ não significa acrescentar coisa alguma a tudo isso: na melhor das hipóteses, trata-se de recomendações dirigidas ao juiz, no sentido de que ele não deve ser apressado ou superficial na formação das próprias certezas, devendo, ao contrário, dedicar-se a uma séria e profunda introspecção, escavando nas camadas mais recônditas de seu ser. O mínimo a pedir é que o juiz evite decidir de modo superficial; todavia, a exigência de que a introspecção seja séria não diz coisa alguma sobre a possibilidade de que essa produza um convencimento verídico sobre os fatos da causa. A intensidade e a profundidade do convencimento não garantem de fato a verdade daquilo que é seu objeto. [...] As mesmas considerações valem em geral, mas particularmente para o juiz e seus convencimentos sobre os fatos: ele pode estar profundamente convencido, in interiore homine, da existência ou inexistência de um fato, mas esse seu con-vencimento, por mais profundo que seja, não conduz à verdade. É certo, por outro lado, que utilizando somente sua convicção interior ele terminaria por formular uma decisão completamente arbitrária.45

Feitas essas considerações, um processo pautado pela verdade e que prima pela justiça da decisão adquire o que Daniel Mitidiero denomina “justificação racional”, que se divide em “justificação interna” e “jus-

44 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 110.45 Ibidem, p. 109-111.

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tificação externa”. Desse modo, “a justificação judicial é o meio pelo qual se pode aferir a racionalidade da atividade interpretativa e do seu resultado“ e “O resultado da interpretação é racional se é universali-zável e coerente”.46

Verificada a decisão “racionalmente justificada”47, ela cumpre sua missão de orientar condutas sociais, promover a igualdade, a segurança jurídica e a coerência do sistema.48 Seguindo esse discurso, conforme Mi-chele Taruffo, de nada adianta orientá-las mediante aplicação das normas a fatos inverídicos. Tal prática levaria a decisões injustas e orientações distorcidas, infundadas e destoantes do Estado Constitucional.49

Como resultado desse procedimento racionalmente justificado, a orientação de condutas garante, antes de mais nada, três alicerces fundamentais de um Direito que se insere num Estado Constitucional: a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a liberdade. Assim, pelo simples fato de adquirir status de ser humano, todas as pessoas devem ser igualmente respeitadas, por conseguinte a todos compete “espaço de livre autodeterminação no âmbito de suas obrigações e realidades externas, conforme possa desenvolver suas melhores aptidões e possibilidades individuais”.50 É aqui que se encontra o lastro de confiança e justiça que outrora buscava MacCormick, conforme exposto no primeiro parágrafo desta subseção, em consequência também a devida aderência ao Estado de Direito pela segurança jurídica.

Desse modo, conforme ensina Daniel Mitidiero, a segurança jurídica é meio de viabilizar condições para a autodeterminação da pessoa e de desenvolvimento da vida social em circunstâncias de mútua confiança. O princípio contribui para a cognoscibilidade do Direito, ou melhor, “a controlabilidade intersubjetiva dos processos semânticos-argumentati-vos”; soma confiabilidade ao Direito, pois deve ser estável e não ser alvo de rupturas abruptas, além de calculabilidade, ou seja, possibilidade de antecipar as consequências normativas ligadas aos atos e fatos jurídicos.

46 MITIDIERO, op. cit., 2013, p. 82-83.47 Ibidem, passim.48 SARLET; MARINONI; MITIDIERO, op. cit., 2015, p. 779.49 TARUFFO, op. cit., 2012a, p. 142.50 KRIELE, op. cit. 2009, p.287.

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Por fim, o princípio exige a efetividade do Direito, pois diante do des-cumprimento do ordenamento há de se impor a sua realização. Dessa exposição, percebe-se que a tutela de direitos transborda a dimensão particular e perpassa a dimensão geral ao tratar os casos com justiça e unidade.51

A verdade, portanto, confere para a decisão, e, antes de tudo, para a sociedade, o que Michele Taruffo chama de “valor social”, o qual se exprime em basicamente dois aspectos: o ético e o político.

No que toca ao primeiro aspecto, o ético, quando inserido em siste-mas morais cuja essência é o dever de dizer a verdade e a correspondente censura ao falso, como ocorreu nos exemplos de São Tomas e Kant, pela prática desses sistemas é evidente a necessidade de ser atenuada a de-voção à verdade. O rigorismo absoluto, por óbvio, pode trazer resultado danoso. Porém, mesmo amenizado o dever de cumplicidade radical com a verdade, não há a erradicação de sua existência, pelo contrário, ocorre a sua expressa confirmação. Por conseguinte, qualquer sistema que se denomine ético deve incluir o dever de verdade como valor fundamental e ainda deve tornar inconcebível que um sistema que se diga moral não distinga verdade da mentira, ou ainda que torne legítima a falsidade.52

O valor social da verdade, ainda sob a perspectiva ética, é o centro da dinâmica social, através do que denomina Michele Taruffo de “virtu-des da verdade”. Estas, representadas pela precisão (no que diz respeito à adesão à realidade) e pela sinceridade (como virtude daquele que expressa suas convicções que julga verdadeiras), tornam-se “essenciais na difusão de informações que representa o fundamento da dinâmica social”.53 Assim, observada a intenção de buscar a verdade e as distinções entre convencimento e ficção, torna-se verdadeiro o convencimento e o consequente comportamento social, quando resultado de procedimento idôneo, ou ainda, quando deste procedimento se identifiquem justifica-tivas suficientes para que se julgue verdadeiro o resultado.54

51 MITIDIERO, Daniel. A Tutela dos Direitos como fim do Processo Civil. Revista de Processo, São Paulo, n. 39, p. 58-64, mar./2014.52 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 115-116.53 Ibidem, p. 116.54 Ibidem, p. 116-117.

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Nessa narrativa, para o bom funcionamento de uma dinâmica social, aquele que participa de uma conversação deve contribuir de alguma forma verdadeira, ou seja, deve evitar-se afirmar aquilo que se sabe ser falso, bem como não se faz necessário fazer afirmações sem que existam provas adequadas. Como consequência, com o uso da honestidade das argumentações, torna-se garantido o bom funcionamento da dinâmica social, uma vez respeitada a realidade dos fatos.55

Superado o aspecto ético, o valor social da verdade ainda possui caráter político, no que concerne à conexão entre verdade e democracia. Nessa corrente, ainda que visível a conexão entre a verdade e a demo-cracia e entre a mentira, ou enganação, como forma de manipulação da população em regimes totalitários, esta também é meio essencial para reafirmação do vínculo entre cidadão e Estado, por meio da confiança. Explico: ao considerar a verdade como condição necessária ao exercício das liberdades, estando o indivíduo cerceado dela tem, por conseguinte, limitado o seu exercício. Em outras palavras, o indivíduo “manipulado” por informação desvirtuada tem também restrito o âmbito de exercício de seus próprios direitos. O acesso amplo à informação é decisivo para a formação da opinião, para a postulação e exercício de direitos. Resultado disso é que a liberdade do cidadão é condicionante para que se façam escolhas a respeito da vida individual e social e ainda da própria existên-cia dos direitos fundamentais, elemento imprescindível à democracia.56

Como reflexo do regime instalado, a atuação judicial, neste trabalho dedicado especificamente à sentença, também deve dar à verdade orien-tação em conformidade com as diretrizes emanadas do Estado, ou seja: no mínimo curioso imaginar um sistema democrático cuja administração da justiça funda-se na mentira e na distorção da verdade.

4 ConclusãoPara um Estado que se constitui como Estado Democrático de Direito

e que tem fundamento da “dignidade da pessoa humana”, como anuncia a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, III, não há outro recurso

55 Ibidem, p. 117.56 TARUFFO, op. cit., 2012b, p. 117-119.

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viável senão a decisão justa. O justo transborda o íntimo do juiz, deve atingir a esfera cognitiva das partes que pretende vincular, sejam as partes no processo, sejam cidadãos, ambos destinatários do Direito. Portanto, de antemão, a sucinta conclusão: a decisão justa existe e a motivação é o meio de torná-la legítima e eficiente.

A um sistema que pretenda efetivamente orientar condutas e prestar tutela a direitos de maneira justa, como se propõe o Estado Constitucional, o procedimento adequado, a adequada apuração dos fatos e a correta interpre-tação e aplicação da norma ao caso concreto são imprescindíveis. Todavia, para a compreensão do que aqui se pretendeu, é preciso superar a figura do juiz inerte, destinatário da prova e prolator de uma decisão escorada em sua íntima convicção. Esses são posicionamentos ultrapassados, que destoam das demandas da sociedade atual, além de incapazes de vincular cidadãos, sujeitos de direitos. Afastar esses entendimentos é medida cabal para que se atenda e assuma o Estado Constitucional de forma efetiva.

Essa conjuntura se dá, como já alertado, principalmente pela altera-ção na relação entre Estado e cidadão, que se deu com a passagem para o Estado Constitucional. O que antes era visto como um poder limitado pelos direitos fundamentais, como se observava no Estado Liberal, hoje se percebe como um ente destinado a assegurá-los, reaproximando-os. Esse raciocínio deve ser transplantado à rotina do processo. O juiz, como representante do Estado que é, organiza o procedimento judicial como forma de tutelar direitos, orientar condutas e buscar pela decisão mais justa ao caso concreto. Em outras palavras, o juiz é figura que viabiliza a decisão justa, e não limitadora dela.

Esse enaltecimento da atuação do judiciário ganhou força com o Estado Constitucional. Alterações acerca da teoria das normas, técnica legislativa e no significado da interpretação jurídica deram nova conota-ção à atividade. Surgiram novas espécies normativas, conceitos jurídicos indeterminados e cláusulas gerais, além de demandarem do juiz atividade de reconstrução do sentido normativo. Fica evidente que a mudança qua-litativa e quantitativa do material normativo dá ao juiz margem maior de interpretação. Essa maleabilidade do ordenamento, todavia, não serve ao juízo discricionário de seu aplicador, pois há de ser submetido ao crivo de seus destinatários como forma de restabelecimento da legitimidade e para que se amolde às demandas da sociedade.

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O tema é posto em constantes desafios, porém o discurso que aqui se prega vem assumindo maiores proporções. Como exemplo, tem-se o novo Código de Processo Civil, que trouxe diversas alterações. Para melhor ilustrar, o texto do novo diploma inaugura suas disposições junto ao art.1º remetendo-se à Constituição Federal e suas normas fun-damentais. Ora, é evidente que o fundamento não só deste, como dos outros diplomas legais, ampara-se na Constituição e nela devem buscar o fundamento de seus dispositivos. O novo Código vai além e institui o Princípio da Primazia do Mérito, em seu art.4º, e o da Colaboração, em seu art.6º, que prima por uma “decisão de mérito justa e efetiva”. Em que pese ser de redação aparentemente simples, o art.6º do novo Código de Processo Civil implanta ideais de suma relevância e essencialmente ligados à decisão justa. Do texto do dispositivo, pode-se extrair, de um lado, o compromisso particular do juiz com as partes, preocupado em tutelar direitos no caso concreto (aproximando juiz e partes, como antes se argumentou), e, de outro, o compromisso geral de conferir unidade ao direito e orientar condutas, uma vez justa e efetiva.

De outra banda, percebe-se que a motivação revela-se no instrumento capaz de tornar cognoscível as razões de decidir. De nada adianta uma decisão ser considerada justa por quem a prolatou, se assim não o é para seus destinatários. Essa assertiva ganha maior forca na figura do juiz constitucional. O juiz, como ente imparcial e reafirmador dos direitos que pretende tutelar as leis, tem o condão de reconstruir sentidos normativos e inclusive declará-las inconstitucionais. Tais atividades jamais seriam legítimas se não fossem amparadas pela motivação, que transparece as razões de decidir aos seus destinatários.

Com a motivação, a decisão que presta tutela a direitos é aquela acessível às partes no processo e à sociedade, ou seja, a tutela de direitos assume a dimensão particular e a geral. É com essa técnica que se reafirma a crença nas instituições. Viu-se que ao direito é dada a prerrogativa de orientar condutas. Todavia, um sistema que prima pela soberania popu-lar, liberdade, igualdade, dignidade e tantos outros princípios que aqui poderiam ser invocados jamais conseguirá vincular cidadãos por decisões precárias, de deficiente fundamentação e, mais ainda, que dedicam a casos análogos soluções discrepantes. Como se discorreu acima, somente uma decisão racional é capaz de vincular um ser racional.

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Esse posicionamento escora-se principalmente quando da análise da verdade e os valores por ela conferidos ao processo e ao direito. Obvia-mente, os outros pontos estudados também amparam a tese. Entretanto, somente um procedimento confiável é capaz de vincular, e, no sistema brasileiro, somente a verdade é capaz de conferir esta característica.

A constante incerteza que paira sobre o ordenamento pátrio, ou me-lhor, a desatenção à segurança jurídica enquanto fundamento do Estado é motivo de especial atenção para que se melhore o clima de descrença nas instituições. Utilizando das lições de Jürgen Habermas, conceituado doutrinador alemão,

a legitimidade de uma regra independe do fato de ela conseguir impor-se. Ao contrário, tanto a validade social, como a obediência fática, variam de acordo com a fé dos membros da comunidade de direito na legitimidade, e esta fé, por sua vez, apoia-se na suposição da legitimidade, isto é, na fundamentabilidade das respectivas normas.57

Atribui-se essa situação do sistema brasileiro à deficiência da moti-vação. É este o instrumento capaz de demonstrar ao cidadão a coerência do raciocínio jurídico, sua adesão ao ordenamento, a verdade e tantos outros pontos que aqui se ilustrou. A motivação é método de dedicar às partes do processo e à sociedade a decisão justa, que efetivamente tutela os seus direitos e que confere uniformidade ao direito que lhes cabe.

Em conclusão, um sistema que se diz justo deve pautar-se pela verdade e transparência, sob pena de perder legitimidade e eficácia. De nada adianta um sistema dizer-se justo sem que efetivamente o seja perante seus destinatários. Somente dessa forma torna-se a entidade jurídica séria e confiável, capaz de vincular o cidadão não por uma força coercitiva e arbitrária, mas pela racionalidade em que se escora, ou seja, amparada pela motivação adequada na decisão.

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57 HABERMAS, op. cit., 2012, p. 50.

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