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Revista do Portal das Poéticas Visuais

Revista do Portal das Poéticas Visuais · drade, “Martim Cererê” (1928), de Cassiano Ricardo, “Cobra Norato” (1931), de Raul Bopp e na música de Vila Lobos. Os artistas

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Revista do Portal das Poéticas Visuais

Um nordestino a cavalo

2005

Acrílica sobre tela

1m x 80 cm

Acervo de Artes Visuais da Faac-Bauru

Marcos oliveira

Revista do Portal das Poéticas Visuais

Vice-Reitor em exercícioJulio Cezar Durigan

Pró-reitora de Pós-GraduaçãoMarilza Vieira Cunha Rudge

Diretor FAACRoberto Deganutti

Vice - DiretorNilson Guirardello

Editores CientíficosRicardo Nicola e Nelyse Salzedas

Editora ExecutivaRosa Maria Araújo Simões

Comissão de Relações InternacionaisMaria Luiza C. Costa e Rosa Maria Araújo Simões

Coordenação Editorial:

Maria Antonia Benutti, João Eduardo Hidalgo, Maria do Carmo Jampaulo Plácido Palhaci, Milton Koji Nakata, Dorival Rossi, Luiz Antonio Vasques Hellmeister, Roberto Deganutti, Adenil Alfeu Domingos, Sônia de Brito, Guio-mar Biondo, Elaine Patrícia Grandini Serrano, Maria Luiza Calim de Carvalho Costa, Joedy Luciana Barros Marins Bamonte, Rosa Maria Araújo Simões, José Marcos Romão da Silva, Célia Maria Retz Godoy dos Santos, Solange Ma-ria Bigal, Solange Maria Leão Gonçalves, Ricardo Nicola e Nelyse Apparecida Salzedas.

Coordenação Técnico-CientíficaNúcleo de Pesquisa em Multimeios Mídia Press

Editor Assistente/Projeto Gráfico EditorialFelipe Oliveira CavalieriUniversidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil

WebdesignLucas Trentim Navarro de AlmeidaUniversidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil

Edição e preparo de originais/Tradutor dasversões impressa e on-line:Ivan Abdo AguilarUniversidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil

Edição de Imagens e CapaMilena RosaUniversidade Estadual Paulista (UNESP) - Bauru, São Paulo, Brasil

Conselho Científico:

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Derrick de KerckhoveUniversidade de Toronto (UofT) - Toronto, Ontário Canadá

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Maria Cristina Castilho CostaUniversidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil

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Massimo CanevacciUniversità de Roma - La Sapienza - Roma, Itália

Eduardo Peñuela CanizalUniversidade de São Paulo (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil

Antonio Manuel dos Santos SilvaUniversidade Estadual Paulista (Unesp) - Bauru, São Paulo, Brasil

Duda Penteado, Artista PlásticoNew Jersey City University - New Jersey City, NJ, EUA

Elza AjzenbergMuseu de Arte Contemporânea (USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil

Edson LeiteUniversidade de São Paulo (EACH USP) - São Paulo, São Paulo, Brasil

Jesús González Requena Universidad Complutense de Madrid - Madrid, Espanha

Genaro Talens Université de Genève (UNIGE) - Geneva, Suíça

Julio Pérez PeruchaPresidente de La Asociación Española de Historiadores del Cine, Madrid - Madrid, Espanha

UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA“JULIO DE MESQUITA FILHO”

Poéticas Visuais/Impresso no BrasilISSN: 2177-5745 versão impressa - ISSN: 2317-4935 versão on-line

Classificação CAPES Qualis B3 em Artes/Núsica, B2 em Interdisciplinar e B5 em Ciências Sociais Aplicadas

EDITORIAL

Voume 2 N° 2 2011www.poeticasvisuais.com

copywrite.Revista Poéticas Visuais, Faac/Unesp/2011

Revista do Portal das Poéticas Visuais da Universidade Estadual Paulista“Júlio de Mesquita Filho”

Av. Luiz Edmundo Carrijo Coube n° 14-01CEP 17033-360 Bauru - São Paulo - Brasil

PABX (14) 3103-6068E-mail: [email protected]

As opiniões expressas nos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Todo material incluído nesta revista tem autorização expressa dos autores ou de seus representantes legais.

LIÇÕES DO MODERNISMO:Francisco Rebolo Gonzales Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales Elza AJZENBERGp. 11

O Anjo de Dürer e os Herdeiros de SaturnoThe Angel of Dürer and the Heirs of Saturn Paulo Roberto Amaral Barbosap. 22

Aprendendo a aprender - comece pela capaLearning to learn - Start by its cover. Sonia de BRITO & Guiomar Josefina BIONDOp. 30

Relações de texto e imagem em vídeo-música de Arnaldo AntunesRelationship of text and image in music video Arnaldo Antunes. Rivaldo Alfredo PACCOLAp. 36

A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO SOB A ÓTICA DO ENUNCIADOR DO SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century: Ideology and simbologyMaria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS p. 41

Arte, Narrativas e MemóriasArt, histories and memoriesAlecsandra Matias de OLIVEIRAp. 59

EDITORIAL

EM DESTAQUE

P. 9 Sumário

Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 29

Após dois textos referentes a nossa revista e ao grupo que a compõem, cedo a minha voz a João Cabral de Melo Neto (Re-

cife, 1929-Rio de Janeiro,1999) que em seu poema “Rios sem discurso” (Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 1995) constrói, em uma sintaxe o dire n´est pas dire: “um rio precisa de muita água em fio para que todos os poços se enfrasem: se reatando, de um poço para outro poço, em frases curtas, então frase a frase, até a sentença rio do discurso único em que se tem voz. A seca combate”. Assim começamos, pouco a pouco, enfrasan-do, juntando artigos, pesquisas, propostas, até que como diz João Cabral de Melo Neto, “em que se tem voz, a seca combate”.

Nelyse Apparecida Melro SalzedasLíder do Grupo de Pesquisa do CNPq

“Texto e Imagem”Unesp-Bauru

EDITORIAL

ARTIGOS

NO

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p.

136

Performance “Carimbada”: Uma proposta poética de desterritorialização do corpo feminino brasileiro em terras lusitanas.Performance “Stamped”A proposal poetic deterritorialization of the bady brazilian women in lusitanian lands.Janaina Teles BARBOSAp. 67

As regras do génio Notas sobre os quadros sociais da criatividade artísticaThe rules of geniusGrade about que social pictures with the artistic creative.Pierfranco Maliziap. 79

O CORPUS DO PSPERFORMANCE ALÉM DA LINHA DO HORIZONTE

The computer corpusUnbeleaveble performance.

Niura Borges, Patricia Soso & Rosemary Brump. 90

Portinari, leitor de QuixotePortinari is a Don Quixote reader

Célia Navarro Floresp. 101

WE ARE YOU, US Latinization’s Next Wave:ESTABLISHING A “NEW” DIRECTION

FOR 21st CENTURYLATINO ART IN THE USA: (The Ground-breaking Emergence of the We Are You

Project’s WAY IT’S Art Exhibition)

José Manuel Rodeirop. 114

Que se faz quando se olha uma pintura?What to do when looking at a painting?Nelyse Aparecida Melro Salzedasp. 134

Um olhar sobre o corpo e as relações transdisciplinares entre arte e tecnologiaA look at the body and the relationship between trans-art and technologyRicardo Nicola p. 135

RESENHAS

11Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

10Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2

LIÇÕES DO MODERNISMOFrancisco Rebolo Gonzales

Lessons of the modernist of Francisco Rebolo Gonzales

Elza AJZENBERGProfessora Titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo,

SP, Brasil. Coordenadora do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes.

The article discusses the second phase of Brazilian modernism, characterized by the actions of groups of artists, in particular the formation and performance of the Santa Helena Group, the cultural city of São Paulo. It is dedicated also to the aesthetic route Francisco Rebolo Gonzales, the artisan of color.

Rebolo Gonsales, Francisco (São Paulo, SP, Brasil, 1902- São Paulo, SP, Brasil, 1980).

Filho de imigrantes espanhóis e de origem proletária, Rebolo aos 12 anos de idade, trabalhava como aprendiz de decorador. Essa formação foi adquirida na Escola Profissional Masculina do Brás e, a partir daí, trabalhou nos murais das igrejas Santa Ifigênia e Santa Cecília, em São Paulo. Em 1917, exerceu o ofício de decorador, simulta-neamente ao de jogador de futebol no São Bento e, em seguida, no Corinthians. Em meados de 1930, os pintores de parede costumavam fazer ponto na praça da Sé e em suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales, recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório na sala 231 do Palacete Santa Helena, na antiga praça da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247). Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na sala 232. Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando, à noite, um curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes de Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se, periodicamente, no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o deno-minado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales, Mário Zanini, Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Alfredo Volpi, Humberto Rosa, Clóvis Graciano, Manoel Martins e Alfredo Rullo Rizzotti. De 1936 em diante, Rebolo expôs coletivamente no Salão de Maio (1937, 1938 e 1939), na Família Artística Paulista (1937, 1939, 1940) e no Sindicato de Artistas Plásticos. A primeira mostra individual aconteceu em 1944 e, dez anos mais tarde, recebeu o Prêmio Viagem à Europa, no Salão Nacional de Arte Moderna. Durante sua carreira, o artista realizou diversas exposições individuais e integrou inúmeras coletivas.

O artigo discute a segunda fase do modernismo brasileiro, caracterizado pelas ações de grupos de artistas. Em particular, a formação e atuação do grupo Santa Elena, a cidade cultural de São Paulo. É dedicado também à rota estética de Francisco Rebolo Gonzales, o artesão da cor.

Palavras-chave: Modernismo, Francisco Rebolo Gonzales, Grupo Santa Elena

Keywords: Modernism, Francisco Rebolo Gonzales, Santa Elena Group

12 13Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

A Revolução de 1930 impulsionou visão crítica na maneira de pensar e pontuou o contexto cultural e estético dos anos seguintes. O ano de 1933 foi decisivo nesse sentido. Foi o ano de publicações que marcaram as gerações intelectuais posteriores: “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre,

e “Evolução Política do Brasil”, de Caio Prado Júnior. Essas obras – juntamente com “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda – motivaram um momento de redescoberta do Brasil. Impulsionaram debates à luz de premissas diametralmente opostas. Intelectuais e artistas polarizaram idéias políticas: mais à esquerda ou à direita.

Com o tempo, temáticas nacionalistas, que procuraram recuperar raízes históricas, como o negro, o índio, o caipira, a paisagem, canaviais nordestinos ou cafezais do sul, foram ganhando espaço. Nos anos de 1930, os temas delineados na década anterior foram se consubstanciando numa busca de solução para o impasse do Mo-dernismo. O fascínio pelas lendas indígenas e o nacionalismo – que permearam as criações modernistas desde o poema Pau-Brasil, de Oswald de Andrade, resultaram, em obras como “Macunaíma” (1928), de Mário de An-drade, “Martim Cererê” (1928), de Cassiano Ricardo, “Cobra Norato” (1931), de Raul Bopp e na música de Vila Lobos. Os artistas preocuparam-se em desvendar o Brasil, voltando-se para o regionalismo e para a crítica social. Naquele momento, Tarsila do Amaral, por exemplo, expressou questões sociais em obras como “Operários” e “2ª Classe” (1933), substituindo os rosas e azuis festivos por tons sombrios.

Nesse período São Paulo viveu grandes mudanças socioeconômicas, significativo progresso no setor das comunicações e impasses políticos. Em 1932, ano da Revolução Constitucionalista, São Paulo comemorou o aniversário da cidade com um comício de cerca de cem mil pessoas. Na ocasião, pedia-se a devolução da auto-nomia do Estado. Vale lembrar que a cidade cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, cal-çamento, praças, viadutos, parques e os primeiros arranha-céus, transformaram a fisionomia da capital paulista. Esse contexto apresentou-se favorável à organização de agremiações e grupos artísticos.

Sociedade Pró-Arte Moderna – SPAM e Clube dos Artistas Modernos – CAM,

Família Artística Paulista, Salão de Maio e Osirarte

A 23 de novembro de 1932, na casa do arquiteto Gregori Warchavchik, um grupo de artistas e intelectuais reuniu-se para fundar a Sociedade Pró-Arte Moderna de São Paulo – a SPAM, como se tornou conhecida. Lasar Segall, Paulo Rossi Osir, John Graz, Vittorio Gobbis, José Wasth Rodrigues, Arnaldo Barbosa, Antonio Gomide, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Regina Graz Gomide eram alguns dos artistas participantes. Em reuniões posteriores estiveram presentes Brecheret e Hugo Adami, entre outros.

Com a finalidade de angariar fundos para os cofres da Sociedade, organizou-se no carnaval de 1933 um gran-de baile – “Carnaval na Cidade de SPAM” – em recinto decorado por uma equipe de artistas sob a direção de Se-gall. A “Cidade” possuía suas próprias autoridades, hino (o “Spamtriótico”), com música de Camargo Guarnieri, moeda própria (o Spamote, dividido em Spamins) e mesmo um jornal - “A Vida de Spim”, dirigido por Mário de Andrade, Antônio Alcântara Machado e Sérgio Milliet. Centenas de metros quadrados foram pintadas formando numa gigantesca obra de arte coletiva de alguns dos mais importantes pintores da época.

O sucesso da mostra repetiu-se na segunda Exposição da SPAM, realizada em fins de 1933, tendo como no-vidade a participação de diversos artistas cariocas ou radicados no Rio de Janeiro, como Portinari, Di Cavalcanti e Guignard.

Novo baile carnavalesco – intitulado “Expedição às Matas Virgens da Spamolândia”, foi organizado em 1934, sob a supervisão de Segall. Na decoração colaboraram, entre outros, Anita Malfatti, Rossi Osir, Gastão Worms, Balloni, Arnaldo Barbosa e Jenny Klabin Segall.

Um dia após a fundação da SPAM, surgiu, a 24 de novembro de 1932, o Clube dos Artistas Modernos – o CAM – iniciativa de Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antônio Gomide. O CAM ocupou salão

espaçoso no mesmo prédio da SPAM, Pavilhão de D. Olívia Guedes Penteado. Organizou exposições pioneiras – com desenhos de crianças e de doentes mentais - , concertos, debates e conferências – entre as quais, a de Tarsila do Amaral, sobre “Arte Proletária” e a do pintor mexicano Siqueiros.

No andar térreo, Flávio de Carvalho instalou seu Teatro da Experiência, com a participação de Camargo Guar-nieri. Alvo da suspeição policial, esse teatro, pouco depois, cerrava as portas. Como escreveu um dos antigos participantes e historiador, Paulo Mendes de Almeida, assim terminava “um grande e vibrante movimento de arte e de inteligência, que dificilmente se repetirá”.

Contudo, a polícia ainda não estava satisfeita: mais uma vez, alegando ofensa ao decoro, cerrou em junho de 1934 uma exposição de Flávio de Carvalho, apreendendo cinco obras e colocando guardas na porta.

Os santelenistas correspondiam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com grande envolvimento de imigrantes, especialmente de italianos. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia que se estabeleceu no Estado. Volpi e Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e Zanini eram filhos desses imigrantes; Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses. Quase todos exerciam profissões que os mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, bordador; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro, e Manoel Martins, aprendiz de ourives. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproximação no Santa Helena. Zanini e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo fizeram amizade por ocasião do III Salão Paulista de Belas Artes (1936).

Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tor-nou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade de conhe-cimento dos materiais e das técnicas de arte. Tiveram o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de expressão artística mais preocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre valorizado pelos pintores vanguardistas.

É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista, realizadas, respectivamente, no Grill-room do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de 1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista Aspectos – em agosto-setembro de 1940.

A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da ex-posição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas “correntes mais avançadas”, mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”.

O Salão de Maio foi organizado pelos críticos de arte Quirino da Silva, Geraldo Ferraz e Flávio de Carvalho. A primeira edição ocorreu em 1937 na Esplanada do Hotel de São Paulo, com o comparecimento de artistas de São Paulo e do Rio de Janeiro: Tarsila, Brecheret, Flávio de Carvalho, Guignard, Cícero Dias, Gomide, Portinari, Segall, Santa Rosa, Ernesto de Fiori e Waldemar da Costa. O catálogo de abertura expressava os objetivos da promoção: a produção de pintores e escultores capazes de absorver o sentido da história da arte de seu tempo, os progressos técnicos e o “conteúdo sentimental, ideológico e poético

O segundo Salão ocorreu, em 27 de junho de 1938, no mesmo local. Trazia como novidade um grupo de artis-tas estrangeiros, entre os quais Ben Nicholson, Alexander Calder, Joseph Albers e Alberto Magnelli e numerosa participação de brasileiros.

O terceiro e último Salão de Maio realizou-se na Galeria Ita sobre a liderança de Flávio de Carvalho, com a presença de 39 expositores. Na oportunidade, Alexander Calder pela primeira vez mostrou seus móbiles ao pú-blico brasileiro. Palestras, debates e um espetáculo de bailado japonês completaram esse salão.

Paulo Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940 a firma Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Desta pequena indústria – “Atelier de Azulejos Osirarte” – surgiram azulejos artísticos. No início a produção estava voltada para a atender à demanda do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Rossi Osir, conhecido pela sua cultura e gosto literário, realizou

14 15Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

pesquisas de cores e condições técnicas que permitiram cumprir as exigências do pedido e o projeto de Cândido Portinari, responsável pelo desenho da fachada do Ministério. Seguiu-se a série para a Igreja da Pampulha, Minas Gerais, novamente com desenhos de Portinari.

Dessa experiência, surgiu a idéia de ampliar a indústria e a realização de painéis. Para tanto, Rossi Osir soube cercar-se de um grupo de artistas como Vittorio Gobbis, Hilde Weber e artistas do Grupo Santa Helena como Alfredo Volpi e Mário Zanini. Voltada para temas nacionais, a Osirarte funcionou até 1959.

No decorrer dos anos de 1930 e 1940, além do envolvimento destes grupos em São Paulo, desdobramentos modernistas e associativos ocorreram em outros estados. Em 1931, realizou-se, no Rio de Janeiro, o “Salão Revolucionário”, expondo os modernistas. Nesse mesmo ano, formou-se o Núcleo Bernadelli, nas dependências da Escola Nacional de Belas Artes. O nome foi uma homenagem aos irmãos Rodolfo e Henrique Bernadelli, que se empenharam na renovação das artes brasileiras, opondo-se ao academicismo.

Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, ama-dureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte.

O Grupo Santa Helena

Distante das ousadias da fase pioneira do Modernismo, a arte, pouco teórica e bastante prática, desenvolve-se amplamente no Brasil desde 1930. Calcada na visão direta do ambiente natural, humano e social, essa arte pertence a um quadro histórico e a uma política desfavorável à liberdade cultural. Entretanto, tem ganhos no pro-cesso de renovação plástica do país e nas buscas sociais. Essa afirmação apóia-se no espírito de união dos artistas. Por eles foram criados vários grupos relevantes para a trajetória da arte moderna, que enfrentava a oposição das tendências acadêmicas. Entre os grupos, um dos mais consistentes é o Santa Helena.

O Grupo Santa Helena surgiu em meio às transformações sociopolíticas da Revolução de 1930. Os decênios de 1930 e 1940 pontuaram a trajetória histórico-artística dos artistas desse grupo. Nesse período, São Paulo cresceu e modernizou-se com a expansão cafeeira e, depois, com a industrialização e o desenvolvimento do setor bancário e financeiro. Trens, bondes, luz elétrica, automóvel, calçamento, praças, viadutos, parques e os primei-ros arranha-céus, transformaram sua fisionomia.

A partir de 1934, em diferentes momentos, foram eles chegando ao Palacete Santa Helena, na antiga Praça da Sé, n. 43 (posteriormente, n. 247), convivendo, até o final da década, em salas transformadas em ateliês. Não existia nenhuma intenção que os movesse no sentido de organizar um movimento. Aproximaram-se espontanea-mente uns do outros, identificados pela origem social, por vivências artísticas ou artesanais.

No Palacete Santa Helena, uniram-se artistas ligados a trabalhos de simples pintura de paredes ou de deco-ração de residências e, principalmente, pela própria necessidade de uma união que lhes permitisse enriquecer conhecimentos e práticas. Dedicavam-se ao desenho com modelo vivo – exercício que teve continuidade nos próprios ateliês do Santa Helena - , comparecendo ao curso livre da Sociedade Paulista de Belas Artes (SPBA). Ali se firmavam amizades. O que predominou nesses artistas foi indiscutivelmente o esforço pessoal de aprimo-ramento, somado, a partir da existência do Grupo, aos ganhos da atividade conjunta.

Nesse contexto, é possível observar os pintores de parede que costumavam fazer ponto na Praça da Sé e em suas imediações. Um desses pintores, Rebolo Gonsales, recém-saído do futebol profissional, abriu seu escritório na sala 231 do Santa Helena. Logo depois outro artesão, Mário Zanini, imitou-lhe o gesto, instalando-se na sala 232.

Um e outro eram, nas horas vagas, artistas amadores, freqüentando à noite um curso livre de desenho na Escola Paulista de Belas-Artes. No curso, orientado por Lopes Leão, conheceram outros artesãos-artistas, como Volpi, Graciano e Manoel Martins. Logo em seguida, esses pintores e alguns outros passaram a reunir-se perio-dicamente no Palacete Santa Helena, para desenhar ou trocar idéias sobre arte. Nasceu, desse modo, o denomi-nado Grupo Santa Helena, constituído por Rebolo Gonsales (1902-1980), Mário Zanini (1907-1971), Fulvio Pennacchi (1905-1992), Aldo Bonadei (1906-1974), Alfredo Volpi (1896-1988), Humberto Rosa (1908-1948), Clóvis Graciano (1907-1988), Manoel Martins (1911-1979) e Alfredo Rullo Rizzotti (1909-1972). O próprio Rebolo explicaria, anos mais tarde, as origens do Grupo: “O Santa Helena não começou como um movimento: foi transformado em movimento pelos intelectuais”. Um grupo formado por meia dúzia de amigos, cujo traço comum era não gostar de acadêmicos e querer a “pintura verdadeira” que não fosse anedótica ou narrativa. “A pintura pela pintura”.

Na base da formação desse Grupo estava a contribuição do imigrante e seus filhos. Para Flávio Motta, por exemplo, o trabalho do imigrante contribuiu no aprimoramento de relações de trabalho e de produção dentro da vida brasileira, com “implicações referentes à história da pintura, arquitetura, etc.”

Os santelenistas corresponderam à situação sociocultural de uma metrópole em rápida expansão, com forte presença italiana. A maioria de seus membros pertencia à grande colônia que se estabelecera no Estado. Volpi e Pennacchi eram italianos, enquanto Bonadei, Graciano, Rosa, Rizzotti e Zanini eram filhos desses imigrantes; Rebolo era descendente de espanhóis e Manoel Martins, de portugueses. Quase todos exerciam profissões que os mantinham no seu dia-a-dia. Volpi, Rebolo e Zanini eram pintores de parede; Rizzotti, torneiro; Bonadei, borda-dor; Pennacchi, açougueiro; Graciano, ex-ferroviário e ex-ferreiro; e Manoel Martins, aprendiz de ourives.

Os componentes do Santa Helena, além da origem imigrante e humilde, possuíam certas especificidades na formação: alguns chegaram a estudar no exterior, outros realizaram aprendizados na Escola Paulista de Belas-Ar-tes e havia os autodidatas. Entretanto, o que predominou nesses artistas foi, indiscutivelmente, o esforço pessoal de aprimoramento.

O companheirismo que cultivavam constituía grande aliado. Volpi e Zanini conheciam-se antes da aproxima-ção no Santa Helena. Zanini e Rebolo já eram próximos desde o início dos anos de 1930. Pennacchi e Rebolo fizeram amizade por ocasião do III Salão Paulista de Belas Artes (1936).

Os artistas exerciam a pintura decorativa de residências, entre outras tarefas, e esse vínculo profissional tor-nou-se fator decisivo para a sua aproximação, que perdurou com mais força até o início dos anos de 1940. Sem idéias preconcebidas, deram forma a uma existência comunitária. Mostravam-se ciosos da necessidade do co-nhecimento dos materiais e das técnicas da arte. Do ponto de vista estético, é possível observar em suas obras releituras espontâneas ou indiretas do Impressionismo, das formas construídas de Cézanne ou traços incisivos de Van Gogh.

Esse aprendizado não se compara com a experiência internacional dos primeiros modernistas, residentes em Paris e outras cidades ou freqüentadores assíduos do ambiente artístico europeu. A formação desses “operários da pintura” realizou-se no próprio ambiente paulistano, com absorção, principalmente, das culturas italiana e francesa.

Recolhidos em busca de aperfeiçoamentos técnicos, sem reconhecimento crítico, não estavam próximos das manifestações vanguardistas que os membros da Sociedade Pró-Arte Moderna (SPAM) e do Clube de Artistas Modernos (CAM) tinham promovido em 1932 e 1934. Possuíam, contudo, vocação de artistas e eram guiados por um instinto criador que os conduziria afinal à profissionalização e, posteriormente, ao resgate pela crítica de arte.

Nessa direção coloca-se o termo “artista operário” pelo crítico Mário de Andrade. Esses artistas voltados ao seu ofício, à necessidade associativa, com o objetivo comum de “fazer pintura” ou, na palavra de Rebolo, “fazer pintura pura” e, com o desdobramento lírico do fato desses operários sobreviverem da pintura, portanto serem também “operários da pintura”. Ao lado da discussão sobre a visão de artistas, que, para sobreviverem, ousaram partir de um aprendizado básico através de “lições de ateliê”, está o esforço concentrado de cada participante, qual seja, somaram limites econômicos-profissionais e optaram pela “pintura pura” e por meio dela sobreviveram como operários da própria arte.

16 17Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

Em sua trajetória, o Grupo Santa Helena sentiu os efeitos do desenvolvimento das artes aplicadas. Nessa se-gunda fase do Modernismo, não se difundira o gosto de conviver com o novo. Raros eram os artistas modernos que se sustentavam através do próprio trabalho. Eram poucos os interessados em divulgar a arte, e na época não se possuía institutos ou museus voltados a estes propósitos. Conseqüentemente, faltava tanto aos artistas como ao público, o apoio de uma infra-estrutura cultural. Vários artistas exerciam funções paralelas para sobreviverem.

Tiveram, porém, o mérito de contribuir para o amadurecimento de um tipo de expressão artística mais pre-ocupado com os aspectos puramente técnicos ou com o métier – aspecto nem sempre valorizado pelos pintores vanguardistas. Ou, como escreveu Sérgio Milliet, a atuação desse grupo representou “uma reação da pintura de matizes e atmosfera contra as correntes mais avançadas, mas menos artesanais”.

É importante salientar que os artistas do Grupo Santa Helena nunca fizeram uma exposição conjunta de suas obras. Porém, participaram das três mostras da Família Artística Paulista , realizadas, respectivamente, no Grill-room do Hotel Esplanada, em novembro de 1937; no Automóvel Clube, à rua Líbero Badaró, em maio-junho de 1939; e no Palace Hotel do Rio – a convite da Associação dos Artistas Brasileiros e com o patrocínio da revista Aspectos – em agosto-setembro de 1940.

A primeira exposição da Família Artística Paulista não alcançou a repercussão desejável. No catálogo da exposição, Paulo Mendes de Almeida destacou o repúdio do Grupo ao academicismo, o fato de não se inserir nas “correntes mais avançadas” , mas de estar integrado nas “legítimas tradições da pintura”. Na segunda apresenta-ção, o artigo de Mário de Andrade, de 1939, Esta Paulista Família, foi mais ressonante. E, na última versão da Família Artística, encerrada em setembro de 1940, os santelenistas já haviam se dispersado. Alguns artistas do Santa Helena reencontram-se nas atividades da Osirarte.

Na Osirarte destacaram-se duas influências nem sempre reconhecidas: Paulo Rossi Osir (1890-1959) e Vit-torio Gobbis (1984-1968). Esse último, originário da Itália, transferiu-se para o Brasil ainda nos anos de 1920, trazendo domínio dos procedimentos da pintura figurativa pouco renovada. Há na obra de Rossi Osir, aguda meticularidade realista fortemente vinculada à visualidade italiana, que manteve imperturbável qualidade e coe-rência estilísticas. Sua formação artística foi feita em vários países europeus, entre 1908 e 1927.

Rossi Osir, além da iniciativa de realizar as exposições da Família Artística Paulista, fundou em 1940 a firma Osirarte, que teve por objetivo reviver no Brasil a arte do azulejo. Sua primeira encomenda foi a decoração de paredes externas do Ministério da Educação, para a qual Portinari forneceu seus cartões. Voltada para temas nacionais, a Osirarte funcionou até 1959, tendo participações de artistas do Santa Helena, como Alfredo Volpi e Mário Zanini.

Em síntese, sobre as contribuições dos artistas do Grupo Santa Helena e de seu contexto, pode-se valorizar como ponto de partida as questões econômicas e culturais enfatizadas por Mário de Andrade.

A origem social e as afinidades profissionais e artesanais motivaram a denominação de “artistas proletários” por Mário de Andrade. O autor lembra ainda que é no início dos anos de 1940 que o conhecido edifício eclé-tico-tardio , da antiga Praça da Sé, passou a designar o Grupo Santa Helena. Registraram, conforme assinalou também Mário de Andrade, conteúdos de vida, “uma dor muda” ; acima de tudo realizaram uma obra pictórica de alta sensibilidade, disciplinada pelo métier rigoroso.

Ao comentar o papel dos “representantes novos” da Família Artística Paulista, Mário de Andrade enfatizou a característica mais divulgada desses artistas: a sua condição social. Citava-os como todos do povo, senão “direta-mente proletários”, “pelo menos vindos de operários ou de gente de pequenos recursos econômicos e culturais”. Essa condição foi determinante em suas carreiras. Esse fator correspondia a aspectos recentes de uma sociedade em que se registra “progressiva influência da classe média e da proletária”, acrescentando-se a estas influências a participação de artistas imigrantes ou de seus descendentes.

É relevante a influência que recebiam da pintura italiana – à qual se ligavam naturalmente pelas origens. Sem as ousadias da vanguarda modernista, mas ao mesmo tempo guardando distâncias das regras acadêmicas, quase sempre através de pequenas telas ou de “janelas para a pintura pura”, escolheram um Modernismo contido. As obras dos santelenistas refletiram em primeiro lugar o estrato social a que pertenciam. Essa vertente é visível, no seu “proletarismo”, assinalando, novamente, o termo utilizado por Mário.

Hoje, pode-se retomar ou mesmo acrescentar debates à sinalização ou à terminologia desse crítico de arte. Porém, é incontestável a marca do contexto social na visão do grupo. Prevalecem em suas representações as excursões ao “ar livre”, as paisagens humildes, despojadas, os arrabaldes operários anônimos, o litoral, as natu-rezas-mortas, a figura humana popular, os temas religiosos e alguns outros motivos e registros do modo de vida dos componentes do grupo.

Esta geração pode ser inserida no contexto da autocrítica sinalizada por Mário de Andrade: “Nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou”, ao mesmo tempo que aponta desdobramentos deixados pela Semana de 1922: “a conquista do direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”. Tanto Mário como outros críticos assinalaram que apesar desta geração não ter atingido o experimentalismo e vanguardismo da primeira fase modernista, ama-dureceram um claro “domínio do fazer artístico” ou do métier. Esclarecia ainda Mário que, no eixo de suas lutas e sonhos do dia-a-dia, o que os aproximava era uma afinidade no interpretar, perceber e realizar a arte.

Rebolo, o Artesão da Cor

(...) na arte deve-se fazer coisas espontâneas, com a marca do amor e entusiasmo, para poder se emocionar e emocionar outras pessoas” (Rebolo)

Para Rebolo (1902-1980), da convivência com os companheiros do Santa Helena, ficam lições definitivas: as discussões, a permuta de experiências, livros e revistas, a luta pela sobrevivência e a paixão pela pintura. Na busca de informações novas, o que importa assimilar, em primeiro lugar, é a técnica artesanal, o uso de ferra-mentas – o que lhe facilitará captar as nuanças da natureza que tanto ama e concentrar-se na estrutura de suas composições. Ficam, das lições no atelier, o desenho do modelo vivo e o estudo das naturezas-mortas. Porém, o mais importante é o registro da vivência paulistana de sua época – a busca de temática pictórica própria, dentro da realidade atualizada.

Ficam lições de domingo, com prática da pintura ao ar livre e a descoberta de que as coisas estão vivas, mer-gulhadas na luz, vibrando, lembrando a visão dos impressionistas. Todavia, Rebolo não persegue as propostas dos artistas franceses na pesquisa dos efeitos da luz sobre o motivo e a percepção do transitório. É mais provável que, próximo às experiências de Rebolo e de seus companheiros, tenham tido mais efeito as pesquisas do movimento italiano Macchiaioli , considerado a fonte do movimento novecentista chega ao Brasil através de Hugo Adami, depois de uma viagem de estudos à Europa, entre 1927-1928.

Os seguidores do Macchiaioli têm em comum com os impressionistas franceses a prática da pintura ao ar livre e o uso de manchas. Mário Zanini, por exemplo, explora muito o efeito das manchas enquanto Rebolo, com evo-lução de sua pintura, passa a transformar as manchas em zonas coloridas, aproximando-se da técnica de alguns pós-impressionistas. Ao contrário dos impressionistas, que compõem o espaço com manchas coloridas, Rebolo tende a ordenar o espaço sem dissolver os contornos. No início da carreira, na obra Fazenda do Prada (1935), as manchas coloridas tendem à diluição dos contornos das árvores, nuvens e outros elementos. Mais tarde, os contornos e as zonas coloridas serão cada vez mais definidos. Na obra Marinha (1973), demonstra nitidamente a vontade de reduzir a natureza a zonas coloridas.

O registro do cotidiano realizado por Rebolo tem o caráter de um diário íntimo que se abre ao leitor para ser completado e manter o diálogo: “homem e o mundo ao redor” ou “homem-natureza”. Os registros procurados são os mais simples e prosaicos. Procura documentar a própria vivência, de uma maneira pessoal. É desta forma que registra, da janela do seu atelier no Santa Helena, São Paulo que começa a crescer, produzindo documentos preciosos de um período de transição da paisagem urbana, como nas obras Rua do Carmo (1936), e Praça Clóvis (1944) – observação direta e simples de pessoas pacatas e de uma cidade que se transforma.

18 19Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

De meados dos anos de 1930 até fins dos anos de 1940, tem preferência pela realização de paisagens ao ar li-vre. A opção é por pintura de cidades do interior do Estado ou do litoral e, de preferência, das regiões suburbanas de São Paulo, como Cambuci, Sumaré ou Tremembé. Essa última região é retratada na obra Tremembé (1937) – hoje é impossível reconhecer através dessa tela o bairro do Tremembé. No quadro há, no centro, um morro que começa a ser alcançado por casinhas; em baixo, os tapetes de hortaliças, resolvidos em vários tons, são tratados por lavradores. Aqui as tonalidades ocres e verdes, que marcam a paleta de Rebolo, já estão definidas, assim como os aspectos construtivos da obra. Há com freqüência tonalidade cinza envolvendo tudo; ele mesmo explica o porquê de sua visão cromática:

“(...) eu pintava a cidade de São Paulo, principalmente os subúrbios que já são cinza de natureza. A cidade crescia, se industrializava. Naquele tempo, não tinha os ares modernos, bonitos, limpos e elegantes de agora; era uma cidade suja com as primeiras tintas da industrialização. Eu encontrei profunda poesia naquela tristeza cinza. A paisagem suburbana, que me agradava tanto, não conseguia despertar a sensibilidade dos acadêmicos”.

A estrutura unitária da composição e o interesse pelos elementos arquitetônicos surgem com freqüência nesse período, revelando necessidade construtiva. Na Paisagem com Casas (1940), a arquitetura é um componente essencial da paisagem; não só alude à unidade inseparável da São Paulo que cresce, bem como as pequenas casas, com os seus planos nitidamente cortados, que constituem um núcleo sólido no qual se condensa a luz da paisagem, assumindo uma função construtiva. Rebolo usa constantemente esse tipo de arquitetura singela, plan-tada em forma de “ninho”, ou no meio de morros, ou no topo. O importante não é revelar objetos pictoricamente interessantes (a bela casa, o edifício que cresce), mas definir um espaço plástico unitário ao qual nem um único elemento se impõe, nem subordina os demais. Desse modo, a paisagem se oferece ao artista como motivo a ser experimentado ou ouvido, como um espaço unitário no qual não é possível nenhuma graduação, senão perfeita confrontação de todos os valores.

Com o tempo, deixa cada vez mais claro o que pretende com a sua pintura ou com a sua visão poética: a co-municação da realidade interior com a realidade exterior. Isto é, o que deseja é expressar compreensão profunda e união constante com a natureza. É esse desejo, sem dúvida, que o levará a viver no sítio do Morumbi, mais pró-ximo do verde e da sua procura. Para ele, a emoção e o entusiasmo diante da natureza não passam pela impulso passional próprio dos paisagistas românticos. O mundo não é um espetáculo para ser simplesmente contemplado ou exaltado, senão uma experiência, e a pintura é um modo de vivê-la. A natureza para Rebolo não é objeto e sim motivo, estímulo para a criatividade. Intui que a profunda unidade do homem e da natureza, que em outro tempo fora espontânea, ameaça desfazer-se, porque a sociedade contemporânea, orgulhosa de seu cientificismo quer conhecer e não sentir a natureza ou reter o seu lirismo. Mas senti-la e captá-la sob formas líricas também não é autêntico modo de conhecê-la?

A esta questão Rebolo responde afirmativamente, e esclarece algumas atitudes do homem contemporâneo diante do seu ambiente. Sempre observando a natureza com olhos atentos, chega a síntese que equivale a uma marca registrada e destaca a possibilidade do sujeito reconhecer no espaço pictural seu próprio ambiente de vida: um lugar que pode ser aconchegante ou hostil, com o qual se pode estabelecer uma relação ativa, não distinta da qual liga o homem à sociedade.

Nos anos seguintes muda com freqüência de técnica, mas sem perder de vista o traço de união “homem-natu-reza”, mesmo quando se ocupa de uma obra mais estruturada. Dos fins dos anos de 1940 até a década de 1950, passa aos poucos para a produção em atelier. Prefere um esquema visual livre e intuitivo, e não matemático. Apesar disso, constatam-se nas suas composições a segurança estrutural e a tendência de retomar soluções se-melhantes. Desde os primeiros trabalhos até a última fase, Rebolo mostra aguda sensibilidade na composição de suas obras, equilibradas como se seguissem um esquema secreto, preconcebido. São constantes, desde o começo de sua carreira, o esquema triangular e o aparecimento de três elementos em destaque, como um conjunto de árvores, uma estrada, um morro ou árvores, pessoas ou animais. Na obra Bois e Coqueiros, de fase posterior, de 1967, o aparecimento do conjunto de três elementos – casas, bois e coqueiros – é tão enfático que compete com

os demais elementos da composição.

A tendência de estruturar e organizar geometricamente chega a competir, em certas ocasiões, com a esponta-neidade que caracteriza o seu temperamento. Essa tendência faz com que Sérgio Milliet pergunte pela influência de Cézanne, ao que Rebolo responde: “ “ – onde mora esse pintor?” A tela Socorro (1938), já demonstra, como outras da mesma década, a tendência à estruturação; mais tarde, na paisagem Morumbi (1944), é clara a síntese das formas, lembrando Cézanne. Anos depois, como na obra Lenhadores (1950), equilibra-se entre o peso de uma pintura racionalmente construída e o lirismo. Expressa a preocupação com alguns dados cubistas na organização das casas, árvores e esquematização dos corpos. Mas o ambiente poético criado pela luminosidade e os tons su-aves levam o espectador a meditar sobre o sentido das formas líricas do pintor, cuja ênfase recai nos lenhadores que se arcam em limites imprecisos entre o trabalho e o sonho.

Neste período em que as suas paisagens passam a ser mais sínteses mentais, associadas à memória visual, está convencido de que a força da pintura reside na própria pintura e não no tema. O desenvolvimento de pequenas verdades, que o afirmam em sua busca, recompensa-o do cansaço cotidiano. Não aceita a pintura puramente visual, quer ser poeta. Porém a sua poesia pretende faze-la como pintor, não traduzindo temas em figuras, senão construindo imagens com materiais de pintura, provando que é ao mesmo tempo poeta e artesão da cor.

Às vezes cai em certas tendências naturalistas, passando, através de seus matizes discretos, certa fidelidade à atmosfera característica de São Paulo, em certas épocas, com o céu encoberto. Ou chega a observar a natureza, seus acidentes geográficos, os verdes, o oxigênio respirado, como no vôo de pássaro com que descreve Campos do Jordão, obra de 1943. Ou, ainda, afastando-se da fidelidade atmosférica, escolhe tons de uma terra mais aver-melhada, extensa, como na obra Colheita (1946).

A paisagem é sempre o seu assunto predileto. É um verdadeiro ecologista, preocupado com a preservação. A figura humana, quando surge, é envolvida, geralmente, pela imensidão da terra e dos verdes. A paisagem em Rebolo não é um elemento decorativo, uma “moldura”: impõe-se como uma necessidade, como oxigênio para a vida. A natureza aparece em vários tons de verde, sugerindo a presença do ar – a atmosfera vital do homem. Em alguns trabalhos os verdes cobrem todo o espaço, como numa das obras de sua última fase: Arvoredos (1975). A natureza pode apresentar-se generosa e florida, como nas obras de 1972 Caminho e Primavera. Outras vezes, a natureza é atacada pela poluição, como na representação de troncos ressecados, tendo atrás o Rio Guaíba – Pai-sagens (1977).

Além das figuras humanas integradas à paisagem, ele as destaca no estudo de retratos. São numerosos quadros de tamanho pequeno, em que procura os seus próprios traços ou que transmite a sua capacidade de captar ca-racterísticas essenciais; atento ao olhar penetrante, buscando aspectos psicológicos, como nos retratos do amigo Osório César (1939), e de sua mulher, Lisbeth (1942). No início da carreira fica clara a importância da figura humana, realizando vários desenhos de modelo vivo e óleos, como o estudo de Nu (1934). Os trabalhos com a temática feminina aparecem freqüentemente. Em geral, não são retratos, todavia lembram Lisbeth, ou ainda são moças em posição simples, prosaicas. Ora são diálogos líricos, de composição singela, tonalidades suaves, revelados na encantadora Moça no Jardim, na obra Mulheres no terraço (1943), ou em Esperando – registrando Lisbeth em 1946, que já espera Suzy, num momento de concentração e tranqüilidade. Em todos esses trabalhos, coloca o despojamento do ambiente, os gestos suaves e uma certa datação, revelada nos tipos e nos trajes.

O amadurecimento de suas obras é marcado por vários estímulos e algumas conquistas. No início está muito envolvido com os companheiros do Santa Helena. As primeiras conquistas surgem com as oportunidades nas mostras da Família Artística Paulista. Em 1944 expõe individualmente. A sua atuação é importante no Sindicato dos Artistas Plásticos e na organização da vida artística de São Paulo. Em 1945, participa da fundação do Clube dos Artistas e Amigos da Arte – o “Clubinho” – do qual será diretor anos seguidos; esse clube tem grande impor-tância para a divulgação artística dos paulistas.

Sempre trabalhando em ritmo acelerado, em 1954 o pintor tem a consagração merecida, com a obtenção do

20 21Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 11-21, 2011.

“Prêmio de Viagem ao Exterior”, no 3º Salão de Arte Moderna, no Rio de Janeiro. Este salão tem um episódio singular. Os pintores participantes apresentam-se com telas apenas em branco e preto, como sinal de luto às taxas das tintas importadas, tão caras como os perfumes. Ironicamente, Rebolo – o famoso artesão da cor – expõe o quadro Casas da Praia Grande, em preto e branco.

Depois de uma grande despedida no “Clubinho”, parte com a família, por dois anos, para a Europa. Com a viagem vêm as visitas aos museus, ateliers e a execução de novas obras. A arquitetura italiana motiva-o a realizar obras de maior rigor. A própria força da arquitetura renascentista orienta a construção de fachadas bem estru-turadas e que acompanham as tonalidades típicas da arquitetura romana: ocres e terras. A obra Roma (1956), assegura a disciplina do olhar e o lirismo da “cidade eterna”. Da visita a Pompéia fica a marca do famoso verme-lho pompeano que aparece em várias paisagens européias como, por exemplo, Ravena (1956), que se afasta de uma construção rígida e aproxima-se de uma composição “fauve”. Na volta, em agosto de 1957, expõe as telas pintadas na Europa no Museu de Arte Moderna. Comenta que se renovou, como se tivesse tomado um banho de juventude. Na obra Suzy (1959), indica que mantém recordações do período europeu, associando o rigor formal a variantes do vermelho pompeano na visão poética da filha que toca flautinha.

Aos 60 anos de idade, é temporariamente obrigado a afastar-se da pintura, depois de ter sofrido um infarto. Deixa de lado as tintas e passa a desenhar. Recuperado, nos anos de 1960 a pesquisa da matéria é sua marca fundamental. Diante da insistência de Marcelo Grassmann, elabora uma série de gravuras, à procura de novos desdobramentos. De 1960 a 1965, a influência da gravura se traduz por um leve “farfalhar” das cores. Mas a inspiração para esse tipo de pintura, assinala Rebolo, vem da contemplação de pinturas etruscas, marcadas pela história: com partes intactas ao lado das formas corroídas pelo tempo. Para o pintor, as partes descascadas desta pintura sugerem novas formas e constituem fonte para novas concepções.

Passa a buscar, na experiência com xilogravura, recursos plásticos para associar e retomar os efeitos da tex-tura dessas pinturas etruscas. Na gravura, aprende a desbastar uma camada para revelar o interior da madeira; e, quase naturalmente, começa a agir da mesma maneira em relação à sua nova pintura. Surge uma técnica na qual coloca uma base de tinta preta, depois aplica as cores, tendo o cuidado de, em seguida, retirar com papel absor-vente, o excesso de tinta. Por fim, aparece uma textura de colorido discreto. Esta experiência deixa como saldo uma série de quadros, tais como: Menina flaustista (1964), e do mesmo ano, Quiriri, onde os efeitos da textura sugerem a água em movimento.

No final dos anos de 1960 elimina o preto, deixando reaparecer as cores claras. Nos anos de 1970 retoma as linhas de estrutura e diminui a textura, chegando até as cores chapadas. Promove um retorno ao toque mágico dos primeiros tempos – um anel lírico, marcado pela fidelidade e inquietação, em que pontos de chegada se apro-ximam do ponto de partida. Nos últimos anos viaja por diversos estados brasileiros, registrando lugares típicos e a luminosidade que distingue esses lugares. É desse modo que é vista, da parte alta da cidade, a Olinda (1974). Deixa surgir o mar verde, típico do nordeste, e as cores alegres que Franz Post, nos seus magníficos trabalhos sobre essa região, não pôde traduzir, porque os seus olhos e a sua paleta traziam a luminosidade e o estilo de cores sombrias de um outro país.

Valoriza neste período, a realização de um espaço muito especial – onde coloca formas que, apreendidas pelo observador, levam-no a uma reflexão sobre a existência e o mundo que o envolve. Propõe uma pintura de adesão à vida, de volta à natureza: uma necessidade de rever o modo de vida contemporâneo. Na Paisagem (1979), esta idéia torna-se clara: nos primeiros planos as árvores, verde, muitos tons de verde; deixa para trás a cidade. Não se trata de se afastar da sociedade urbana, mas de repensa-la. Ao propor esta volta lírica, quase romântica, revela uma atitude do homem contemporâneo diante da natureza, empenhando-se em salvá-la e proclamando-a insubstituível.

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Recebido em 12 de Julho de 2011. Aprovado para publicação em 14 de Agosto de 2011

22 23Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011.

O Anjo de Dürer e os Herdeiros de Saturno

The Angel of Dürer and the Heirs of Saturn

Paulo Roberto Amaral BarbosaDoutor em História da Arte pelo Programa de Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil e chefe da Divisão Técnico-Científica de

Acervo do MAC/USP.

Os monges, acometidos por esse mal, se mostram desgostos com a vida, inquietos, sem desejo pelo trabalho e a estes se recomenda, como tratamento, o exaustivo trabalho físico. Caso o esforço físi-co não dê resultado, o clérigo deve ser abandonado por sua ordem religiosa à sua própria sorte. Isto porque, durante o período medieval, acedia é um pecado grave equiparado à gula, à fornicação, à

inveja e à raiva. A melancolia, vista como um fato de ordem religiosa, ao se transformar em acedia, marca a de-sesperança da salvação, que torna a alma indolente e desleixada, lançando o indivíduo à inércia. A vida dedicada ao louvor, à santidade deveria ser alegre, nesse caso, a melancolia é vista como o “abandono de Deus”.

Já na visão renascentista, acedia não integra mais a lista dos pecados capitais e passa a ser vista com maior tolerância, transformando-se em tristitia (tristeza), dotada de dois significados diferentes: 1) tristeza mundana (talvez, ocasionada pela perda de bens materiais), na qual a alma se curva frente aos valores terrenos – de cono-tação pecaminosa e, 2) tristeza virtuosa, inspirada por Deus, que conduz à salvação – algo que atinge os grandes homens.

O texto de Agrippa, De La Philosophie Occulte, articula o humor melancólico às faculdades da alma e a uma hierarquia na ordem da ação e do conhecimento. Na visão do autor, o primeiro grau da melancolia ou a imagi-nação é o temperamento dos pintores, arquitetos, escultores e mestres de várias artes manuais; o segundo, ou razão, é o temperamento dos físicos, oradores e filósofos; o terceiro, ou intelecto, dos místicos e santos. Nessa direção, segundo, a leitura de Luciana Chauí Berlinck, em seu livro Melancolia – Rastros de dor e perda, se Ficino orienta a realização da Primavera, Agrippa é o pressuposto teórico para duas obras de Dürer: Melancolia I e São Jerônimo.

No reconhecido estudo de Saxl e Panofsky, Dürer ‘Melancolia I’, os autores examinam iconograficamente a gravura e referem-se ao texto de Agrippa, considerando-o orientador da obra e chamam a atenção para o fato da gravura trazer em seu título o número I, reforçando a descrição de Agrippa de três níveis da melancolia. Isto porque Melancolia I está visivelmente dedicada às artes manuais. Contudo, outros autores questionam: onde es-tão Melancolia II e III? Logo depois de Melancolia I, Dürer pinta São Jerônimo em seu Estudo. Saxl e Panofsky julgam essa obra um contraponto e um contradito a Melancolia I. Para os autores, São Jerônimo em seu Estudo

Albert Dürer, Melacolia I,gravura (31 x 26 xm), 1514. Alemanha

Durante a Idade Média surge um novo termo para designar o “estado melancólico”: acedia ou acídia (do grego akedia, indiferença). Hoje, essa palavra teria o significado de abatimento do corpo e do espírito, enfraquecimento da vontade, inércia, tibieza, moleza, frouxidão ou ainda melancolia profunda. De acordo com João Cassiano , acedia era um sentimento predominantemente dos solitá-rios – criado em mosteiro cristão na antiga Palestina, Cassiano adquire grande experiência sobre o tema. Para o autor, acedia liga-se a um espírito maligno, o chamado “demônio do meio-dia”. Esse demônio está associado à tentação da carne, ao pecado e à solidão.

During the Middle Ages a new term for the “dismal state”: akedia (indifference from the Greek). Today, this word would have a significance of abating of the body and spirit, weakness of will, inertia, coldness, weakness, softness or even deep melancholy. According to João Cassiano, acedia was a predominant feeling of the lonely - created in ancient Christian monastery in Palestine, Cassiano acquired extensive experience on the subject. For the author, acedia binds to an evil spirit, the so called “noon demon.” This demon is associated with the temptation of the flesh, sin and loneliness.

Palavras-chave: Anjo de Durer, Herdeiros de Saturno, melancolia renascentista

Keywords: Angel of Dürer, Heirs of Saturn, renascentist melancholy

24 25Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011.

seria a Melancolia III, ou a inspiração intelectual daquele que conhece os segredos divinos. Dürer dissera que as duas representações deveriam ser vistas juntas ou simultaneamente. Todavia, informações indicam que a Melan-colia II, que transmitiria a inspiração filosófico-profética, não é realizada, ou ainda, seja a gravura O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, de 1513.

De fato, a “melancolia renascentista” influencia muitos artistas do período e o exemplo, Albert Dürer, em Me-lancolia I, 1514, traz o sentimento não mais com uma conotação médica (doença ou sanidade), porém, torna-se

metáfora. Na gravura, a melancolia é representada como uma mulher de asas (ou um anjo), potencialmente capaz de grandes voos intelectuais. Mas a Melancolia não está voando, está sentada, imóvel, na clássica posição dos melancólicos, com o rosto apoiado em uma das mãos. A cabeça lhe pesa, cheia de mórbidas fantasias. Às voltas com seus demônios internos, a Melancolia permanece imóvel, como se lhe faltasse ânimo para movimentar-se.

Erwin Panofsky sublinha a melancolia imaginativa como faceta principal da gravura, Melancolia I, de Albert Dürer – o que permite lê-la como produto do imaginário alquímico do período. O Anjo sentado, de fisionomia

aborrecida e contrariada, manuseando com displicência a ponta do compasso que tem nas mãos e com o qual poderia “redesenhar” o espaço que o rodeia, é a própria imagem da confusão de alma que é preciso sublimar, encontrando um caminho. A desarrumação dos objetos à volta de um Anjo, que mais poderia ser uma “dona de casa”, incapaz de pôr ordem em suas coisas, é outro dos sinais que o artista fornece. A confusão do exterior torna--se reflexo da íntima confusão, enquanto se aguarda algum sinal ou que alguma coisa de repente mude, ainda que por acaso, mais do que por intervenção própria. A figura feminina também está atrelada à representação da peste – o flagelo cuja epidemia devastara diversas regiões da Alemanha.

A esfera pequena, no canto inferior da gravura, à esquerda, será marca de perfeição, tal como o possível arco--íris em que a palavra melancolia se inscreve também pode significar uma transformação positiva e luminosa. Quase tão destacado quanto o Anjo, está, sempre do lado esquerdo, um poliedro encostado a uma escada que tem por trás um anjo menor, um “putto”, semi-adormecido. Walter Benjamin chama a atenção para a pedra, ou ainda, o poliedro que seria um cubo, desenhado de modo peculiar para que não se tenha, desde logo, a noção do equilíbrio das faces. O que faz todo o sentido: os alquimistas falam da pedra cúbica, e da pedra polida, quando

Albert Dürer, O Cavaleiro, a Morte e o

Diabo, gravura, (31 x 26 xm), 1513,

Museum Boijmans van Beuningen. Holanda

Albert Dürer, São Jerônimo em seu estudo, gravura, (31 x 26 xm), 1514. Alemanha

26 27Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011.

desejam referir-se à perfeição que é necessário atingir.

Na gravura, a alma está adormecida e o mesmo sinal é dado pelo cão enrolado que está dormindo aos pés do Anjo. O cão adormecido, fiel companheiro do artista em muitas das gravuras com referências alquímicas conhecidas, é outra alusão à melancolia. O organismo canino, no período, está ligado à figura do baço. À época, cães com face melancólica seriam os melhores: um cão alegre e amistoso não seria confiável para a guarda da propriedade. No sentido metafórico, a figura do cão negro é remetida à memória. Como o cão, a memória é um fiel acompanhante do homem. Memória às vezes sombria, como algo evidenciado pela própria cor escura do animal, corresponde à obsessão renascentista de evocar, lembrar. O melancólico lembra, porém, o que recorda é triste. O cão adormecido representa a memória desligada, imersa em profundo sono. O mar no horizonte da gravura relembra a inclinação dos melancólicos para as longas viagens, remetendo-se à transitoriedade do mundo frente à inércia do humano.

O Anjo traz chaves em sua cintura. Para o artista tais “chaves” são indispensáveis, pois todo o processo é cifrado, é secreto e não é dado a qualquer um. No chão, uma bolsa. Não por acaso, nos desenhos preparatórios da gravura, Dürer escreve que as chaves significam poder e a bolsa, riqueza. Metáforas: “quem tem chaves pode abrir portas, inclusive, as do céu”; “a bolsa remete a uma característica tradicionalmente atribuída aos melan-cólicos, avareza”. Deve-se mencionar, ainda, que Saturno é frequentemente representado com bolsa e chaves, a divindade é vista como responsável pelo processo de cunhagem de moedas. A profusão de objetos na obra de Dürer é relevante para o presente estudo – chama-se atenção que na produção de De Chirico, os objetos tem grande peso e importância, como se verá proximamente neste estudo.

Em Dürer, os objetos são os utilizados cotidianamente, em vários ofícios, na ciência: uma balança, uma ampulheta, uma sineta, martelo, serrote, pregos. Aparentemente são ferramentas que não estão ali para serem usadas; ao contrário, os elementos sugerem a imobilidade, expressa em ponto culminante nas imagens do Anjo e do cão. A ampulheta mostra o tempo congelado: os dois compartimentos contêm a mesma quantidade de areia. Há ainda uma tábua numérica, uma clara alusão à geometria, à época, valorizada como verdadeira fonte do co-nhecimento, excluindo-se a visão teórica e enfatizando-se os aspectos práticos. A tábua numérica apresenta-se ao lado de instrumentos humildes como o martelo e o serrote, emprestando à geometria um caráter essencialmente humano. Benjamin afirma que a transição entre o melancólico e o mundo se faz por intermédio das coisas, não das pessoas. Acumular – riqueza, roupas, obras de arte, propriedades – é o imperativo dessa época, mesmo que depois os objetos fiquem sem utilidade, como acontece na gravura.

A gravura de Dürer é alegórica, o que não deixa de ser apropriado – em se tratando de melancolia, como se percebe, alegorias não são raras. O anjo ou a mulher de Melancolia I poderia representar, para alguns autores, a peste negra que assola a Europa à época e aproxima os sentimentos de morte e dor aos melancólicos. Nesse caso, a melancolia é interpretada como uma espécie de “psicose da peste”. Aos 34 anos de idade, Dürer vive a peste em Nuremberg e expressa em suas gravuras as experiências vividas. A Melancolia poderia ser o que autores chamam de “fantasia” que, apesar de ser versada no decifrar dos símbolos, não apaga a iconografia própria à genialidade melancólica do período.

Ao completar o sentido alegórico, o anjo é apresentado com o rosto na sombra, olhar perdido ao longe e a cabeça apoiada numa das mãos, em posição semelhante ao Pensador de Michelângelo – nessa ilustração e, em diversas outras, desenhadas e talhadas por Dürer, há referências a essa obra-prima. Também, nessa direção, o pequeno “putto”, que lê uma inscrição segurando um sextante nas mãos, representaria o “gênio da história”, que tenta classificar os acontecimentos em ordem cronológica ou, então, o “gênio da astrologia”, que se dedica à previsão do mundo futuro. Assinala-se, aqui, que fazer da melancolia uma alegoria é não mais considerá-la como um humor passageiro, submetido à existência humana, mas atribui-la as qualidades de uma divindade é índice de um projeto estético construído sobre os processos da melancolia, que visa submeter os elementos do meio a uma arte da composição.

Ao se considerar as três gravuras designadas por Dürer como “Meisterstiche” , (O Cavaleiro, a Morte e o Diabo, 1513, São Jerônimo em seu Estudo, 1514 e a Melancolia I, 1514), pode-se notar que elas encerram, entre outros símbolos, o crânio humano, a ampulheta, o cão (além do leão de São Jerônimo), animais fantásticos e

signos cabalísticos. De igual formato, elas mergulham no claro-escuro oriundo da segunda viagem de Dürer à Veneza e permitem a divisão da luz em espaços variados. A presença da morte, o inexorável escoamento do tem-po e a centralidade das personagens (o Cavaleiro, São Jerônimo e a Melancolia) definem o conjunto de gravuras. O conjunto expressa a “face negra” da melancolia, na tradição antiga que relembra o gênio da morte que cerca o humano. Ao retomar as interpretações de Panofsky, o Cavaleiro representaria a vida do cristão no mundo material da ação e da decisão; São Jerônimo, o santo no mundo espiritual da contemplação sagrada e a Melancolia, aquela do gênio secular presente no mundo racional e imaginativo das ciências e das artes.

Contudo, a “elevação intelectual”, contida na alegoria de Melancolia I, apresenta dissonâncias inerentes ao contexto renascentista. Como diz Panofsky, “a teoria e a prática não se conjugam bem, é o que mostra a composi-ção de Dürer; e o resultado é a incapacidade de agir e o humor sombrio”. Doença, causada pelo pensar excessivo, a melancolia é também a enfermidade que mais leva a pensar, em outros termos, alimenta a reflexão filosófica e a criação poética. Para os homens de “elevada intelectualidade”, o preço a pagar seria o isolamento, como no caso de Montaigne, que se retira da vida pública para, em seu castelo, refletir sobre a clássica questão: “Que sei

Candido Portinari, Dom Quixote de Cócoras com Ideias Delirantes, lápis sobre papel, (37 x 24,6 cm), 1956, Museus Castro y Maia, Rio de Janeiro. Brasil

28 29Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 22-29, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v 2, n. 2, pág 22-29, 2011.

eu?” Montaigne não é propriamente um eremita porque continua atento aos problemas de seu tempo, mas é “o melancólico em sua torre solitária”, segundo seu amigo e poeta John Milton (1608 – 1674), em Il penseroso (O pensativo), publicado em 1654. O poema é uma alusão aos tempos sombrios e meditativos cercados pela peste negra. Nele o poeta saúda a “boa” melancolia que leva ao amor de Deus e que seria própria dos intelectuais inconformados com a existência humana.

Nesse sentido, poderia se considerar, como “a torre solitária – o templo da melancolia”, a biblioteca – o mundo cercado pelos livros que refletem algo limitado e, de certa forma, controlado em oposição às descobertas do “novo mundo”, no período renascentista. Cervantes, em diversas passagens de seu romance, mostra a figura desgastada e “fora de seu tempo” do cavalheiro andante. A personagem Sancho Pança seria considerada sua antí-tese e, por sua vez, mais adaptada às novas demandas. Desprovido de pudores e com um profundo senso prático, Sancho Pança vive de acordo com as solicitudes do período, ao contrário do seu senhor, que almeja as honrarias de uma vida cavaleresca que não existe mais. Dom Quixote é levado à loucura pelos livros – melancolia e loucura têm suas ligações (às vezes se complementam, às vezes se contradizem) – uma tênue linha as divide. O Cavalhei-ro da Triste Figura é limítrofe, reflete a melancolia dos fidalgos que vivem a aventura mítica de um passado sem retorno. Ao longo do período renascentista, o progresso e o predomínio do comércio impelem a novos comporta-mentos econômicos e sociais que são rejeitados pelo feudal Dom Quixote: “(...) de pouco dormir e muito ler lhe resseca o cérebro” – sua “triste figura” pode ser tomada como a projeção corporal de seu temperamento: seco por dentro, seco – magro – por fora (isto é, a condição física dos melancólicos).

A ideia do fidalgo, do príncipe ou do “monarca melancólico” é recorrente à época e é transmitida em inúmeras manifestações artísticas. No teatro, por exemplo, Shakespeare cria Hamlet, um personagem desiludido com o mundo; incapaz de vingar a morte do pai e dono de uma imaginação superior que adota a melancolia como uma resposta ao mundo doente no qual vive. Shakespeare aborda o mal-estar com transparência, empatia e complexi-dade. Dá ao seu personagem astúcia e sentimentos de autodestruição. No momento em que Hamlet é encenado, a melancolia é tanto um elogio quanto uma doença – aos menos privilegiados social e economicamente, a me-lancolia é vista como um mal a ser extirpado (um melancólico é candidato, assim como a escória da sociedade, a integrar a Nau dos Insensatos). Para os mais abastados, o humor é o que daria o tom de sua genialidade – a retomada da tradição clássica fornece os sustentáculos para esse pensamento.

No drama barroco é frequente a figura do “príncipe melancólico”. No período da reforma e contra-reforma, crescem as obras que tratam da moralidade do cotidiano e da honestidade das pequenas coisas. Para os intelec-tuais, o “absurdo da existência” os aproxima do terror da morte, do mundo enlutado. No mundo protestante, a intervenção divina adquire novos aspectos: nele as ações humanas, baseadas na moral e na racionalidade, trazem consequências divinas. Para Walter Benjamin, o príncipe melancólico barroco é aquele que, dotado de poderes absolutos, sabe que não pode mais contar somente com a intervenção divina em relação ao mundo. Daí, o caráter dramático da qual a alegoria barroca não pode prescindir. O homem barroco retoma a natureza como objeto da ciência, no sentido de dominá-la, mas nesse processo, se afasta de seu potencial simbólico. Do mesmo modo, a melancolia barroca possui implicações expressivas de um mesmo sentimento: o medo, a necessidade de domínio daquilo que aparece como contraditório e externo à consciência.

No histórico sobre as diversas concepções relativas ao sentimento melancólico se percebe a proliferação de discursos que variam entre: o médico que encerra na fisiologia seus sintomas e a interpreta como doença física com incidências psíquicas secundárias; o médico-filosófico que reflete sobre sua tipologia e sobre a relação do

humor com o sentimento, da alma com o corpo e, o filosófico-moralista que se dedica à doença da alma ligada intrinsecamente ao desgosto pela vida. Os “herdeiros de saturno” (Dürer, Cervantes, Shakespeare, entre outros) transformam o humor e o mal-estar em alegoria, metáfora e, depois, pode-se dizer, criam uma “estética da me-lancolia” que passa pelo ideário medieval (como um pecado capital), adentra o Renascimento (às vezes como doença; outras vezes como traço de genialidade – retomando às ideias aristotélicas), ressurge no Barroco (como o medo inexorável frente à morte), no Rococó (passa a ser a “doce melancolia”) e, finalmente, será base primordial do Romantismo – as fontes românticas nutrem a poética de Giorgio De Chirico e o transformam em um “herdeiro de saturno”.

As percepções românticas sobre a melancolia varrem a Europa e adquirem status social. Na Itália, por exem-plo, todos aqueles que acreditam serem gênios esperam ser melancólicos. Ingleses, que viajam para as terras italianas e lá convivem por certo tempo, regressam para casa gabando-se da sofisticação adquirida e expressa em seus atributos melancólicos – uma vez que somente ricos podem arcar com os custos das viagens, a melancolia torna-se uma doença aristocrática inglesa. Porém, é na França que o humor configura-se em “doce melancolia” que, mais tarde, é o sustentáculo do ideário romântico.

Referencias

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SCLIAR, Moacyr. Saturno nos Trópicos ... op. cit., p. 75.

João Cassiano (c. 370- 435) foi um teólogo cristão, do período patrística, monge de Marselha, na atual França.

SOLOMON, Andrew. O Demônio do Meio-Dia: Uma Anatomia da Depressão. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 264 e seguintes.

BERLINCK, Luciana Chauí. Melancolia: Rastros de Dor e de Perda...op. cit.,p. 30.

PANOFSKY, Erwin.Saturn and Melancholy, ed. by H.W. Janson, 1964.

BENJAMIN, Walter. Origine du Drame Barroque Allemand. Paris: Flammarion, 1985.

LAMBOTTE, Marie-Claude. Estética da Melancolia...op.cit., p.19.

PIGEAU, Jackie. Metáfora e Melancolia: ensaios médico-filosóficos. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto, 2009, p. 119.

Recebido em 15 de Maio de 2011. Aprovado para publicação em 17 de Setembro de 2011

30 31Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011 .

Aprendendo a aprendercomece pela capa

Learning to learn - Start by its cover.

Sonia de BRITODoutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da

UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil.

& Guiomar Josefina BIONDODoutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista e Professora Assistente Doutora da

UNESP de Bauru, São Paulo, Brasil.

A função principal da capa de um livro é anunciar um contexto, além de atrair, provocar e despertar o interesse do leitor. A capa foi criada para proteger o livro, porém, sua evolução técnica acabou reunin-do outras finalidades: estética, identificação do conteúdo, promover e embelezar etc. Como objeto de comunicação, age como um cartaz legível e despojado.

No Brasil, foi a partir da década de 40, com a evolução da propaganda e dos novos meios de comunicação que a ilustração saiu dos limites do desenho para recorrer à pintura e à fotografia. São vários os artistas convidados para compor capas de livros, entre eles podemos citar: Ismael Nery, Iberê Camargo, Siron Franco, Portinari, Di Cavalcanti. Pressupõe-se que não foi ao acaso que Milton José de Almeida, criador do leiaute, escolheu a obra de Max Ernst para ilustrar a capa do livro de Newton Duarte. Ernst costuma usar materiais diversos para compor as suas obras, o que constitui a identidade estilista das suas composições, as quais têm como base teórica a psicanálise, a psico-logia, a anatomia, a paleontologia, a literatura, a poesia não ortodoxa, a história natural e a história da arte, que fazem parte do inconsciente coletivo: “A consciência sendo censura dita normas que sistematizam, assim romper com a consciência é romper com a sintaxe, rompe com a organização da forma”. (BISCHOFF, 2002). Dono de uma cultura extraordinariamente variada, Max Ernst incorporou as estéticas: surrealista, dadaísta e metafísica. Apreciava manuais científicos ultrapassados, à procura de possibilidades técnicas não tradicionais, evitando o uso de tintas diretamente na tela.

Ilustração 1 Capa do livro Vigotsky e o “Aprender a Aprender”

A colagem, a frotagem e a grattagem são as técnicas empregadas e o uso de objetos retirados do cotidiano trans-formou-se em fontes pictóricas sem relação entre si, mas sugestivos e com possibilidade de várias leituras, uma vez que as interpretações determinam o valor das representações. É assim com o emprego de diversos símbolos culturais, combinando-os com a realidade que se pode encontrar o jogo do inconsciente.

Por outro lado, sabe-se que Vigotsky se interessava pelas questões psicológicas relacionadas com a criação, com a literatura e com a arte. Em seus estudos sobre Psicologia, ele confronta dois fatores que movem a criação humana: o intelectual e o emocional. Faz uma análise da estrutura da obra, afirmando que o conteúdo não se introduz de fora da obra, mas o artista o cria nela. Tem por aspiração compreender a função da arte na vida do homem como um ser sócio-histórico.

Ao analisar o texto, pode-se constatar a polêmica que existe no lema criado por Vigotsky “Aprender a Apren-der”, pois mais do que um lema, é uma verdadeira posição pedagógica que tomou conta da comunidade educa-cional do novo milênio.

Contrapondo essa questão e defendendo a necessidade de uma reflexão crítica e histórica, além de uma análise minuciosa da psicologia vigotskiana, Duarte aponta para o papel ideológico desempenhado por esse tipo de apro-priação das idéias de Vigotsky, ou seja, o papel de manutenção da hegemonia burguesa no campo educacional. Ainda segundo Newton Duarte (2000), uma pedagogia crítica só seria constituída com educadores que se rebe-lassem contra essa forma de alienação, caso contrário, não passaria de ações humanizadoras ingênuas. Defende a tese de que o trabalho educativo deve desempenhar o papel de mediador entre a vida cotidiana e as esferas não-cotidianas da atividade social.

É olhando pela fresta da superfície raspada, pondo a estrutura em evidência como fez Max Ernst que conse-guimos enxergar no papel das relações entre a palavra e a pintura, as possíveis associações de sentido, que cons-tituem a singularidade dessa obra: o resultado da ambiguidade da representação. Fugindo do dogmatismo e da rigidez dos métodos tradicionais, não se ateve a nenhum outro método que revelasse o inconsciente sem a censura da razão, colocando à disposição do mundo inteiro maneiras de invenção de quadros. Foram essas técnicas novas que permitiram ao artista permanecer “além da pintura”.

Nascido em família burguesa, Max Ernst vê inicialmente a cultura e a arte como passatempo de feriado ou como matéria aborrecida nas mãos de professores de História da Arte. Mais tarde, libertando-se desse espírito burguês, busca novas descobertas e reconquista a arte viva. A partir de uma ruptura na composição com o uso de objetos estranhos, retirados de catálogos de mercadorias, anuncia uma arte desarrumada, mas que reflete o

From the book of Newton Duarte (2000) Vigotysky and “Learning to Learn”, you can make a compelling reflection of the cover, a masterpiece of the artist Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”.

Compare and interpret the theme of Vygotsky with the picture is our purpose, because look at the painting on the surface of the cover is meaningless by itself, is necessary to seek a dual mechanism of visual perception on what it represents. It is a metaphor. Such explicit representation abroad and, by analogy, implicitly synthesizes the inside of a slogan that has become a symbol of the innovative teaching positions.

Do livro de Newton Duarte (2000) Vigotysky e “Learning to Learn”, Pode-se ter uma profunta reflexão a respeito da capa, uma obra-prima do artista Max Ernst, “Birds, too: Bird-Snake and Scarecrow” by 1921 (in Bischoff, 1993) and the phrase “Learning to Learn”.

Compare e interprete o tema de Vygotsky com a imagem é nosso propósito, por que apenas olhar na figura de uma capa não tem sentido. É necessário enxergar um mecanismo duplo de percepção visual do que ela representa. É uma metáfora. Uma representação explícita e, por analogia, impli-citamente sintetiza o interior de um slogan que ten se tornado um símbolo de posições de ensino inovadoras.

Palavras-chave: Max Ernst, Interpretação das capas, aprendendo a aprender

Keywords: Max Ernst, cover interpretation, learning to learn

32 33Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011 .

cotidiano. O caráter mecânico substitui o orgânico, a montagem ocupa o lugar da composição harmônica e a colagem vai ao encontro da destreza inventando, assim, a técnica de libertação. Portanto, ao usar o acaso, o in-consciente e as metáforas, o artista consegue construir os pilares (que podem ser de evasão, de desconstrução, de reconstrução) da sua arte, além de ter modificado o sujeito-artista que nele habitava. Foi ao acaso, também, que percebemos o dialogismo entre a pintura e o lema.

Na obra “Pássaros; também Pássaro-Serpente e Espantalho”, tudo é figurativo, o fazer artístico não rompe a forma, mas a organização. Cria outro espaço para o objeto: o estranhamento, o qual o observador poderá, através da sua interpretação, fazer relações e associações entre o visível e o legível, a partir de seu horizonte de expec-tativa.

Decodificando a capa, a figura do espantalho, com duas cabeças de pássaros de perfil, representa o elemento simbólico transformador, um fantasma pós-moderno, navegando entre a sociedade de consumo e a educação, tentando seduzir o sujeito pela informação. Essa é a maneira encontrada pelo artista para abordar o sujeito. Mas, quem é esse sujeito? Um sujeito dentro de um barco, tendo ao fundo o céu de cor cinza mecanizado. Seria ele o Professor? O sujeito que dá um tratamento mecanizado ao conhecimento e à informação? Entre o parecer e o ser, o professor é aquele que tem nas mãos o leme, a direção, que conduz o aluno de um lado a outro, no barco do conhecimento formal. O sujeito é a própria linguagem, a palavra, o desenho, a escrita, feitos com signos na forma de códigos que geram mensagens e produzem efeitos.

Por outro lado, o barco pode ser visto como fonte da vida, útero que gera, cresce e faz nascer, acolhe pessoas, guarda e traz à memória o símbolo fálico; a serpente, a sedução, a fecundação, o reviver do passado através do nascimento. Resgata, assim, uma história, pois cada lugar é único, cultural, aberto a possibilidades de aprendi-zagem. Isso tudo faz o leitor interessado procurar sentido e interpretação da obra, fazendo uma viagem interior e exterior.

O elemento barco projetado na tela pode ser visto como veículo transportador de pessoas e de mensagens de um lado para o outro. Logo, a água é o elemento que sustenta e transporta o barco de uma margem a outra. Assim, é possível fazer analogias entre elementos aparentemente isolados com o processo comunicacional. Sem o canal, o lema “Aprender a Aprender” é só um lema, palavras em estado dicionário, mas que podem ser postas em ação e interação com o outro, construir, desconstruir, juntar elementos diferentes para encontrar novos caminhos.

O inusitado como as pernas do espantalho ou a serpente em estado de harmonia, pode abrir espaço para novas

descobertas, o que é experimental pode dar certo, além do possível encontro com novas teorias, novas técnicas, críticas, elogios, ideologias... Articular, misturar tendências, estilos, transitando entre canais naturais, artificiais, pictóricos, resulta em ecletismo definido como pós-moderno. Nesse sentido, a água traduz um campo semântico simbólico de origem primitiva de tudo, mas segundo a psicanálise é fonte de renovação das potencialidades do inconsciente. No espaço da tela, a água parece diluída na fonte vazia. Esse é um comportamento pós-moderno de desfazer princípios, regras, valores, práticas, realidades, a própria des-referencialização do real, do sujeito. (Santos, 1991).

Há ambiguidade nas figuras antitéticas: o espantalho com o corpo dividido em dois, o masculino e o feminino: o da direita do observador, na figura do marinheiro como condutor; o da esquerda, a criança como aprendiz. Ambos têm as pernas representadas por duas colunas significando o poder estético enquanto decoração cênica, imóvel na sua verticalidade, mas que simbolizam o sustentáculo do conhecimento científico, do ensino formal, das verda-des eternas. Que pilares são esses? O da Ciência e o da Arte? Representam o sujeito que aprende e o sujeito que aprende ensinando? Interagindo, assim, na via de mão dupla do processo comunicacional, que o emissor se torna receptor e o receptor se torna emissor do ensino/aprendizagem.

Seguindo essa linha de pensamento, para a formação do indivíduo, Vigotsky (In Duarte, 2000) fala sobre os quatro pilares da Educação: aprender a conhecer para compreender; aprender a fazer para agir sobre o meio; aprender a viver junto está relacionado com a participação e cooperação humana e aprender a ser é essencial e integram os pilares anteriores na relação Eu versus Eu, Eu com o outro e o Eu no mundo.

O marinheiro atento a todas as direções (olhar 180°), com a cabeça de pássaro, com o bico aberto para a comunicação eloquente e a língua ereta, em tensão, parece fisgar o desejo e a fantasia, sem separar o real e o imaginário, o signo e a coisa (Santos, 1991), seduzindo o indivíduo física e intelectualmente. Nesse sentido, o peixe representa o alimento físico, e a vaca no plano inferior, mais atrás, símbolo da fertilidade. Como se pode observar há mudança do campo semântico desses objetos figurativos, uma vez que o sentido do verbo alimentar e da sua derivação está ligado à degustação, à saúde, à preservação e à sobrevivência da espécie. O elemento erótico, bíblico, alimenta o intelecto, a alma, as emoções. Um está no plano concreto; o outro, da abstração, da subjetividade. Logo, “Aprender a Aprender” está no plano do intelecto, do conhecimento, que é cumulativo e transformador.

A criança do lado esquerdo pode ser o aprendiz, com a veste mais clara, tem a seu lado a figura feminina, a boneca ou mãe com cabeça disforme, com rosto esboçado, como máscaras ancestrais, um manequim com formas irreconhecíveis, abalando a segurança que se pensa encontrar num mundo previsível. Pode ser o consumista de-votado que cultiva o narcisismo. É o ridículo, o irônico, decadente que perde a identidade e deixa para os outros assumirem o que deveria ser a sua função. Porém, se a cabeça é disforme, indiciam que ela pode ser moldada a partir de interesses, fatos, teorias, comportamentos, educação. A figura da boneca articulada, imóvel, por asso-ciação lembra o tempo mitológico da deusa da fortuna cega (BISCHOFF, 1993). A fortuna cega está mais para emoção, religião, moral, tradição, enquanto o professor é conhecimento científico, ideológico, formal, institucio-nalizado, político, crítico...

No mundo humano, está contido o balão, um dirigível, que se instaura no mundo da fantasia, ligado ao bico do pássaro pelo fio da história, os discursos globais totalizantes perderam força e o passado se liga ao presente, fazendo pensar na história do indivíduo e investigar o seu próprio discurso. As viagens revelam o navegador pelo sonho, são alimentos para as fantasias. Nessa linha de pensamento, o lema “Aprender a Aprender” pode ser o fio condutor para interpretar Vigotsky e, consequentemente, Newton Duarte.

O braço estendido, símbolo daquele que tem o compromisso de ampliar o repertório cultural da humanidade, tem uma parte do braço escondido pela enorme bolsa do capitalismo. Observa-se também uma ligação entre o braço feminino e a serpente: gestos de fantasias infantis, que revelam as brincadeiras, as surpresas, o lúdico, pois este está ligado à serpente, símbolo da tentação, mas que também pode ser visto como objeto de castigo. A educação maniqueísta recompensa os bons alunos e castiga os maus. A mão escondida indica que alguma coisa pode sair de lá e surpreender, como o artista/mágico que tira da cartola o inusitado, a inspiração e a técnica de seus quadros, de seus conteúdos programáticos.

As roupas parecem peças que podem ser trocadas ou retiradas como a manga da camisa ou a perna da calca. Segundo McLuhan (1969), a roupa é o prolongamento da pele, mas não há pele, há a simbolização da roupa: proteção, sensualidade, poder, sexo, revelando também o tempo vivido, cenas retiradas do inconsciente, numa superposição temporal, tentando recuperar o tempo anterior, interior da infância: a criança e o adulto. Essas tro-cas podem indicar brincadeiras nas quais as crianças vestem e desvestem bonecos de papelão, mas são também indicadores de novos conhecimentos que sofrem mudanças e transformações.

No vestuário da tela, o casaco vermelho demasiado grande, símbolo mundano, de um vermelho erótico, de-monstra a roupa que não vestiu, demonstra ainda um viver arrumado, descompromissado com a realidade e com o desafio da desconstrução que leva a aprender com os desafios, com as antíteses ordem/desordem. Por outro lado, se o casaco é grande, não tem um referencial de corpo, serve para qualquer um. Desafiando o olhar, a calça parece uma saia dobrada sobre o braço em formato de bolsa que tudo esconde e guarda, ou o mágico que retira o segredo da cartola, depende da imaginação.

Observa-se na parte superior da tela, uma garrafa que esfumaça transformando a matéria em imagem. É a degra-dação do sujeito fazendo-o sentir-se vazio. Por outro lado ao ser lida como signo tem-se a visão de uma bomba que vai explodir e a fumaça vai envolver o espectador/ leitor no fluido, o ópio da comunicação, ou ainda o pó mágico, ingrediente indispensável e poderoso da Literatura e, aqui, das Artes Plásticas. São o sonho e a realidade, pureza e erotismo, uma verdadeira experiência do caos como elemento fundamental e transformador, trazendo mudanças na forma de apreensão dos sentidos.

Confrontando o espaço visual e verbal, obtém-se um olhar em forma de gráfico:

34 35Poéticas Visuais, Bauru, v. 2, n. 2, p. 30-35, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 30-35, 2011 .

Ilustração 2 - Organização do espaço visual.

O gráfico acima nos oferece a idéia de como o espaço da tela se acha estruturado. A tela pode ser dividida formalmente em espaço inferior, superior, direito e esquerdo, revelando na sua estrutura, a gramática plástica de uma organização composicional que contém os sentidos denotadores e conotadores da interpretação textual. Assim, a obra de arte sendo um texto, pode ser lida nas suas linhas, formas e cores.

A linha horizontal serve de base e sustentação, pode ser percebida por seus planos em profundidade que vão desde a caixa verde no primeiro plano, a fonte da vida (nascimento), o barco (útero), até o horizonte, demons-trando o tempo do desenvolvimento humano em harmonia com a natureza.

A linha vertical, mais para a direita do observador, provoca certa tensão em relação ao marinheiro, ou seja, um deslocamento do olhar para as fantasias infantis em relação às realizações do adulto. Uma diagonal atravessa o espaço da tela ocupado pela bolsa no primeiro plano, traduz uma visão contemporânea da ideologia política dominante que representa o capitalismo, a ambição. Essa transversalidade mostrada na tela, deve ser a do leitor, com seu olhar questionador, inquieto, reflexivo e crítico, daquele que não se apropria das idéias e das imagens sem antes questioná-las ou aplicá-las na sua realidade para só assim tê-las como conhecimento produtivo e real, podendo assim comprovar resultados.

A garrafa na parte superior da tela também é um sinal provocador, pois ao atravessar a tela solta a fumaça do gênio criador ou como uma névoa é capaz de impedir o domínio e a transformação do leitor. A comunicação provoca mudança. Ao deslocar o olhar para um caminho diferente do tradicional, torna-se capaz de transcender a técnica e a construção lexical, refletindo sobre verdades, vivências, conteúdos e intertextualidades.

Concluindo, não foi nossa intenção analisar Vigotsky, como fez tão bem Newton Duarte, nem tão pouco ques-tionar o conteúdo do livro. A nossa intenção foi provocar o leitor para ler as imagens, as obras de arte, as capas, pois elas além de auxiliar a leitura do texto verbal, oferecem elementos para novas interpretações, tornando-o um leitor privilegiado e crítico.

Vigotsky propôs uma teoria, Duarte faz críticas àqueles que se apropriam do conhecimento sem questionar, sem ler com a devida atenção e profundidade o lema “Aprender a Aprender”. A capa, por sua vez, como obra de arte, tem o poder de revelar aquilo que o olho sozinho não consegue enxergar, mas com a alfabetização da imagem

será possível desvendar a esfinge ideológica que mata aquele que não decifra o enigma da imagem plural.

Do mesmo modo que a tela, o lema analisado por Duarte é uma provocação, ou seja, provoca o leitor para mudar, pesquisar, interpretar, romper estruturas e barreiras para juntar os novos sentidos, pois só mudando será possível ler-se, ler o outro e ler o mundo, ou seja, sair do diletantismo para aprofundar-se no conhecimento.

Par interpretar Ernst e Vigotsky foi preciso atentar para a convergência entre eles: o rompimento da convencio-nalidade. Nesse sentido, procuramos aproximar as interrelações do aspecto subjetivo tanto da tela como do lema. Desse interacionismo simbólico, a ênfase recaiu nos aspectos encobertos, implícitos, tornando-os explícitos, através da re-leitura resultante do ato perlocucional.

Logo, a nossa inspiração de leitura foi espiralada: a obra de arte porque inicia a obra paradidática, que analisa Vigotsky, que gerou o tema que critica o neoliberalismo, o capitalismo, e os educadores que se esforçam e refor-çam o lema “Aprender a Aprender” sempre para virar apreender...

Referências

BERGER, René. El Conocimiento de la pintura. Barcelona: Editora Noguer, S. A., 1976.

BERLO, David K. O processo da comunicação: introdução à teoria e à prática.

Tradução Jorge Arnaldo Fontes. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

BERNARD, Roncillac. Pintura é uma linguagem. Paris: Bordas, 1995.

BISCHOFF, Ulrith. Max Ernst. São Paulo: Editora Taschen, 1993.

CHARTIER, Roger (org.). Práticas da Leitura. São Paulo: Ed. Liberdade, 2000.

DUARTE, Newton. Vigotsky e o “Aprender a Aprender”. Campinas: Editora Autores Associados, 2000.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Vigotsky e Bakhtin. Psicologia e Educação: um intertexto. São Paulo:

Ática, 1996.

JANSON, H. W. História da Arte. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989.

JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. Tradução Marina Appenzeller. Campinas, SP: Papirus, 1996.

MANGUEL, Alberto. Lendo Imagens. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2001.

McLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem. São Paulo: Cultrix, 1969

SANTAELLA, Lúcia e NÖTH, W. Imagem. Cognição, Semiótica, Mídias. São Paulo: Iluminuras, 2001.

VIGOTSKY, L. S. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

Recebido em 14 de Março de 2011. Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011

36 37Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011.

Relações de texto e imagem em vídeo-música de Arnaldo Antunes

Relationship of text and image in music video Arnaldo Antunes.

Rivaldo Alfredo PACCOLA Mestre em Comunicação pela UNESP/Bauru, São Paulo, Brasil e especialista em Gestão Escolar

pela UNICAMP, Campinas, São Paulo, Brasil.

Selecionamos a faixa 15, Campo, do vídeo-home acompanhado de texto escrito, chamado “Nome”, porque permite um enfoque na linha da semiótica do sensível, inaugurada em 1987, com a publicação De l’imperfection, por Greimas, quando o corpo ganha estatuto dentro da semiótica dita narratológica.

Foi ali que GREIMAS (1987) fincou novas balizas para a captura estética que um texto poético pode apresentar. Divide a referida obra em duas partes: a fratura e as escapatórias. A primeira parte a fratura é composta por um conjunto de cinco textos literários, que têm em comum, em algum momento do discurso, o fugidio instante do resplendor da beleza, que possibilita instalar-se a pergunta pela experiência estética. Já na segunda parte as escapatórias estende-se em observações sobre a estética da vida cotidiana incorporadas a uma reflexão que reúne a semiótica com a estética e até aspira ser uma axiologia.

Destacamos o capítulo IV da primeira parte A cor da obscuridade, enfocando a obra “Elogio da sombra”, de Junichiro Tanizaki , no qual Greimas faz, dentre outras, as seguintes constatações:

a) há uma completa inversão das funções sujeito/objeto: enquanto nos textos dos autores europeus é o sujeito que tem papel ativo, empreendedor, e o objeto solicitado se apresenta diante dele, para o escritor japonês o objeto é o “pregnante”; mais ainda: é o objeto que exala a energia do mundo, e feliz é o sujeito, quando tem ocasião de

encontrá-lo em seu caminho;

b) a escuridão, concebida como uma aglomeração de corpúsculos, produz a matéria negra que é vista, na su-perfície fenomênica, como um objeto estético. A ausência de cor que é o negro oculta uma presença multicor explosiva;

c) o sujeito, a ponto de dissolver-se num mundo excessivo, repele a visão do demasiadamente cheio e do de-masiadamente próximo, utilizando a expressão: “e, com pesar, pestanejo”. Repele de modo inconsciente, reflexo de autodefesa ante o insuportável. Não seria horror do sagrado?

O que sobressai nesta análise é a idéia do velamento. Para ver o real, que está por detrás do real aparente, é preciso velar. Através do velamento, claro e escuro permanecem ligados.

Na segunda parte, no capítulo VI Imanência do sensível , Greimas discute questões de método que a semiótica apresenta sem cessar e que vive com lucidez. A busca de interpretações cognitivas é inviável, mas as fraturas permitem a fusão entre sujeito e objeto, na qual podemos sentir a satisfação da imperfeição.

As sensações possibilitam sinestesias de todas as ordens sensoriais, que são relatadas em De l’imperfection: a visão (o mais superficial dos sentidos) de um seio nu; o olfato (sentido profundo, de comunicação com o sagrado) sente o cheiro de jasmim; o paladar (o sapere latino, ter sabor) converte-se em saber; a audição (desde a época romântica), fechando os olhos, a monoisotopia desse sentido aumenta a eficácia da sonoridade, quando uma gota produz som caindo sobre a bacia de cobre.

O quiasma entre o sincretismo e o exclusivismo sensorial produz, por exemplo, na cerimônia japonesa do chá ou na cozinha francesa, uma tensividade do sujeito em relação ao objeto, de ordem visual e olfativa, que se cons-titui num verdadeiro introïbo, uma espera exaltante e retardadora do consumo.

Tais tensões quiasmáticas ocorrem no plano das gestalten, em uma “deformação coerente” do sensível que permitiria encontrar correspondências “normalmente” invisíveis e outras formas mais ou menos desfiguradas, as quais uma leitura mais profunda se apressaria em atribuir novas significações, numa função metalinguística.

No capítulo em que trata dO Entrelaçamento o Quiasma, MERLEAU-PONTY (1964) vê o mundo como cruzamento de duas negações; o resultado desse entrelaçamento “o próprio olhar é incorporação do vidente no visível, busca dele próprio, que lá está no visível”; o entrelaçar conflita os percursos, então o filósofo menciona que a relação entre perceber e sentir um vermelho fóssil é trazer de volta, do fundo de mundos imaginários. Não há um sentido único.

Nesse sentido, interessa a intersemioticidade do texto e não a intertextualidade. Na tensão entre o vivo e o fóssil, o texto é sentido e relido no nível do imaginário. O imaginário constitui-se das tensões, percepções sensíveis, texturas, atuando num micro-universo que é o texto.

Merleau-Ponty está interessado naquilo que é tensão, possibilidade da coisa, mas ainda não é a coisa; porque, entre o objeto e a percepção existe o imaginário, de modo que, enriquecendo o imaginário, se enriquece a per-cepção.

Na tentativa de aplicar alguns conceitos de uma semiótica que busca diminuir a distância entre o inteligível e o sensível, passamos a abordar alguns aspectos da obra “Nome” (vídeo-home e livro) do poeta-cantor Arnaldo Antunes (1993).

Pretendemos enfocar — e tentar entender que impacto o texto sofre sob a postura da semiótica do sensível — a música com animação de vídeo e texto impresso, cujo título é Campo e tem a seguinte letra:

C A M P OUm campo tem terra.

In this paper we analyze the music video animation of the poet-singer Arnaldo Antunes, entitled “Field”, seeking the meanings produced by the sharing of verbal, visual, audible and the tactile.

Neste trabalho, pretendemos analisar a música Campo, com animação de vídeo, do poeta-cantor Arnaldo Antunes, buscando as significações produzidas pelo compartilhamento do verbal, do visual, do audível e do tátil,

Palavras-chave: Arnaldo Antunes, Campo, imagem na música

Keywords: Arnaldo Antunes, Field, image on music

38 39Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 36-40, 2011.

E coisas plantadas nela.A terra pode ser chamada chão.É tudo que se vê.Se o campo for um campo de visão.

ANTUNES (1993) apresenta-o da seguinte forma gráfica:

Como mencionamos, por se tratar de uma música com animação de vídeo e texto impresso, Antunes trabalha com o compartilhamento do verbal, do visual, do audível e do tátil. Estas quatro formas de sentir, sinergicamente, colaboram para a construção da poética.

Primeiramente, verificam-se tensões de diversas ordens:

—escuro (ausência de cor) / claro (letras translúcidas)—espaço vazio / espaço preenchido—largo / estreito—espessamento / despojamento—chão (palpável) / visão (abstrata)

À medida que as palavras se sucedem no campo, a sonoridade da música as faz vibrar. As palavras vibram como as cordas de uma guitarra, produzindo um efeito estésico de espessamento-despojamento. Por isso, a visibilidade não é pura, é permeada pela tatilidade, pela audibilidade, enfim, pelos sentidos.

Então, pode-se dizer que a semiótica, aqui presente, visual, não é uma semiologia da comunicação, do signo, mas é uma semiótica que quer ser uma semiologia da significação.

Portanto, estamos diante de uma semiótica do espetáculo, daquilo que é visual, é imanentista.Estudar a significação pela visualidade é procurar ver o texto como um produto produtor, de forma que se

verifica:

1)Preponderância da relação sobre os termos:

campo — terraterra — chãocampo — visão

Nesta relação triádica, identificamos: → terra = significado→ chão = significante→ campo = objeto extralinguístico capturado da realidade

O campo de visão é a percepção do real, segundo o ponto de vista greimasiano.O poema é, pois, a percepção da realidade, a proto-forma do objeto, o figural.

2)Recusa de um enfoque genético em benefício de um enfoque gerativo-transformacionalO título do poema é apresentado como luz na escuridão, na disposição do n.º 5 em um dado de jogo: C M A P O

A tensão aqui gerada evoca o texto de Junichiro Tanizaki, analisado por GREIMAS (1987) em A cor da obs-curidade, cujo velamento leva-nos à seguinte constatação: - para ver o real que está por detrás do real, é preciso velar - através do velamento, claro e escuro permanecem ligados.

Ou, segundo HUYGHE (1960, p.61): “Se é um lugar-comum dizer que não haveria coisa visível sem a luz, logo se lhe acrescenta um paradoxo, a saber, que a luz pode igualmente permitir a expressão, o fazer ver aos olhos do espírito aquilo que escapa aos olhos do corpo.”

3)Enfoque imanente do texto — texto versus contexto, via enunciação

41Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

40Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2 p. 36-40, 2011.

O projeto da semiótica visual quer surpreender os caminhos da semiotização de substância plástica, surpreen-der nos espaços entre as linguagens.

No vídeo, as palavras estão em movimento, em contraste: / terra - chão / / vê - chão / / visão / / campo de visão /

Assim, produzem a sinergia, pois essas palavras vibram como cordas feridas de uma guitarra, gerando efeitos musicais dinâmicos e interferindo na percepção. Torna, pois, o estésico em estético.

4)Preponderância da forma sobre a substância:- tensão entre o que é da forma e - o que é da substância

A plasticidade da poesia impressa apresenta-se em letras estreitas e compridas, com predominância da isotopia da obliquidade em relação à verticalidade; olhando-se verticalmente, se veem pontilhados (chão); entretanto, olhando-se horizontalmente, se lê com nitidez (visão).

Portanto, produzem-se tensões de diversas ordens: verticalidade, horizontalidade, obliquidade.Observa-se uma trans — form — ação → metamorfose, no encontro mítico–mágico: matéria/sentido.

Produzir sentido é exercitar metamorfoses, transformar um estado de coisas em um estado de signos.Constata-se, no texto, a poética do despojamento, do que seria o figural:

— no visual, mostra-se a proto-forma do objeto, plástico e dinâmico (em constante mutação);— no verbal: → a palavra “campo”, enquanto chão, é significado; → a palavra “campo”, enquanto visão, é percepção.

As tensões apontadas colaboram para a construção da poética, através da qual percebemos o mundo pelas suas qualidades, pelas estesias que, pouco a pouco, vão se transformando em estética.

Referências

ANTUNES, Arnaldo. Campo 64978192 in “Nome” music video. São Paulo: BMG Ariola vídeo-home, acom-panhado de texto impresso homônimo, 1993.

GREIMAS, Algirdas-Julien. De l’imperfection. Paris-França: Pierre Fanlac Éditeur, Périgueux, 1987.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Visível e Invisível. São Paulo: Perspectiva, 1964.

HUYGHE, René. A Arte e a Alma. Lisboa-Portugal: Bertrand, 1960.

Recebido em 18 de Março de 2011. Aprovado para publicação em 17 de Novembro de 2011

A CONSTRUÇÃO DO HERÓI VITORIANO SOB A ÓTICA DO ENUNCIADOR DO

SÉCULO XXI: IDEOLOGIA E SIMBOLOGIA

The construction of victorian heroe by the enunciator vision from the XXI century: Ideology and simbology

Maria Angélica Seabra Rodrigues MARTINS

A figura do herói é inerente a todas as culturas humanas. Seus feitos são transmitidos aos jovens nos ritos de iniciação pelos anciãos das tribos, a fim de que adqui-

ram as responsabilidades relativas a seu papel na sociedade em que estão inseridos. Muitas das estórias folclóricas relatam os feitos de determinado herói, que levaram a modificações em comportamen-tos ou que solucionaram conflitos em determinadas tribos, muitas vezes expondo-se a perigos que poderiam lhes custar a própria vida, mas que se mostraram capazes de conduzir a uma evolução humana e moral desse indivíduo e do povo por ele representado.

À medida que a narrativa se desenvolve, surgem elementos ca-pazes de auxiliar o indivíduo em formação a entender as pressões do id (mente pré-consciente), oferecendo possíveis soluções, de acordo com os requisitos de sua mente consciente (ego) ou incons-ciente (superego), temporárias ou permanentes, para problemas que o perturbam. Ao enfocar problemas humanos universais, as narrativas folclóricas (e os contos de fadas) auxiliam a abordagem de problemas existenciais como morte, envelhecimento, limites da vida, segundo Bettelheim (1987), que devem ser enfrentados, como

Neste artigo a figura de Alice, do livro Alice na Terra das Maravilhas (1865) por Lewis Carroll será analisa-da do ponto de vista de Tim Burton, em sua adaptação para os filmes (2010). Levando em conta sua analise de um ponto de vista Vitoriano e sua ênfase na construção de uma heroína com uma caracterização feminina mo-derna, considerando as estruturas do inconsciente que permitiram o personagem a obter a sabedoria, coragem e capacidade de decidir seu próprio destino.

In this paper the figure of Alice from the book Alice in Wonderland (1865) by Lewis Carroll will be analyzed from Tim Burton’s sight in the adaptation for the movies (2010), noticing his analysis of a Victorian argument and his emphasis to a construction of a heroine with a characterization in the female pattern at the present time, considering the structures of the unconsciousness that allowed the character to obtain the wisdom, courage and the capacity to decide its own destiny.

Palavras-chave: Tim Burton, Alice no País das Maravilhas

Keywords: Tim Burton, Alice in Wonderland

42 43Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

a questão do mal, tão presente quanto a virtude e que estão figurativizados nas propensões desenvolvidas por todo ser humano, as quais devem ser enfrentadas e os problemas morais solucionados de forma a promoverem a integração do indivíduo ao meio social, de forma equilibrada.

Ao fornecer a problemas cotidianos uma roupagem que aborde temáticas apresentadas de forma figurativiza-da, tais estórias propiciam que situações complexas sejam vivenciadas em um mundo de fantasia, o “lá-então”, em que tudo é possível. Ao observar as lutas e bravatas do herói (ou heroína) da estória, enfrentando monstros, bruxas, florestas encantadas, o ego em formação se identifica com esse herói e compreende que também é capaz de se libertar de suas dificuldades, caso atue de maneira correta e seja persistente. A necessidade da fantasia estaria relacionada ao fato de a criança possuir um ego frágil, em processo de construção; dessa forma, deve visualizar em um contexto exterior a ele os desejos que não consegue dominar, a fim de que possa obter algum tipo de controle sobre os mesmos. (BETTELHEIM, 1980, p.71)

A personagem Alice será analisada neste artigo, a partir do filme de Tim Burton (2010), observando-se a interpretação do diretor das obras de Lewis Carrol (Alice no País das Maravilhas, de 1865, e Alice através do espelho o que ela encontrou por lá, de 1871) e considerando-se o encaminhamento dado pelo cineasta a um argumento vitoriano, cuja ênfase na construção da heroína aproxima-se dos moldes femininos atuais, em que as estruturas do inconsciente levam a personagem a adquirir sabedoria e a desenvolver a coragem e a capacidade de decidir seu próprio destino. A simbologia dos elementos apresentados será observada à luz da antropologia e da psicologia (individuação junguiana), utilizando como instrumental teórico metodológico as teorias do discurso, a partir das relações envolvendo os sujeitos enunciadores, a intertextualidade e a carga ideológica que se manifesta no contexto dessa nova versão.

Alice: a heroína no limiar de uma nova era

A estória de Alice no País das Maravilhas, na versão cinematográfica de Tim Burton (2010) apresenta uma

nova versão do herói, feminina, adulta, e que marca o alvorecer de um novo século, em que mudanças significativas irão determinar o novo papel da mulher na sociedade. Alice é aquela que ousa romper limites, opondo-se aos ditames da restritiva sociedade vitoriana e decidir seu próprio destino como mulher.

Dependendo do contexto em que estiver inserido, o herói tanto poderá representar a complexidade psicológica e ética da condição humana, quanto transcender essa mesma condição, ao assumir vir-tudes que o ser humano comum dificilmente consegue atingir, como a fé, a coragem, a determinação e a paciência. Dessa forma, ousa ir além, destacando-se do comum dos mortais e, por isso mesmo, é por eles amado (ou odiado). A Alice de Tim Burton será observa-da como a que representa as mudanças de uma era, um reflexo do super-homem de Nietzsche, liberto de todas as amarras impostas pela época, sem arrependimentos e sem falsos moralismos.

O conceito de herói remete ao herói clássico grego, que fornecia o modelo de conduta para a sociedade de sua época e era guiado por ideais nobres e altruístas como liberdade, fraternidade, sacrifício, coragem, justiça, moral, paz. Seu périplo em direção à heroicidade envolvia adquirir a sophrosyne ou temperança, marca característica do verdadeiro herói. Héracles e Ulisses despenderam longo tempo e muitas ações para a alcançarem, e, no caso do primeiro, também o direito à divindade, por meio do martírio pelo fogo; no caso do na-vegador, as muitas peripécias para domar sua prepotência e obter de Poseidon, a quem ofendera, a permissão para voltar para seu oikos, seu lar, o que somente ocorre com a interferência de Zeus.

No caso de Alice, os acontecimentos que envolveram o século XIX e que surgem na obra de Lewis Carroll, por meio das marcas deixadas no discurso pelo enunciador, serão retomadas no intertexto estabelecido por Tim Burton, a partir de Alice no País das Maravilhas (1865) e Através do espelho e o que encontrou por lá (1871), enfatizando aspectos que o enunciador considera pertinentes, a partir da visão que o homem do século XXI tem das transformações vividas pela mulher, em decorrência dos acontecimentos que pontuaram a segunda metade do século XIX, e o século XX. Se a visão do primeiro escritor está contextualizada no universo vitoriano, a do diretor perpassa uma visão abrangente dos acontecimentos, produzindo um modelo de heroína com característi-cas marcadamente feministas.

Se o herói grego constituía um reflexo da sociedade de seu tempo, a Alice de Tim Burton é aquela que evi-dencia mudanças significativas no universo feminino, a partir da visão de um indivíduo de época posterior ao ocorrido e que imprime sua marca a seu discurso. Dessa forma, se revela ao receptor elementos que remetem ao contexto de época em que esse discurso foi escrito, de certa forma à revelia do autor, também não deixa de apresentar a interpretação do diretor acerca desses fatos, o que remete a Bakhtin, quando afirma que existe na linguagem “vozes sociais e históricas, que lhe dão determinadas significações concretas e que se organizam no romance em um sistema estilístico harmonioso (...)”(BAKHTIN, 1988, p. 106) o que leva a identificar a língua

Fig. 2Alice – Tim Burton

Fig. 3 Alice na versão de Lewis Carroll (século XIX)

44 45Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

como “uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo”(IDEM). Existe, portanto, a inter-relação entre dois enunciados: o do contexto de época pesquisado e o transformado pelo roteirista e recriado pelo diretor, em dis-cursos que dialogam entre si, produzindo efeitos de sentido que, ao mesmo tempo em que contam uma estória, também a contam com a marca do enunciador/diretor, construindo uma visão plurilíngue do mundo, no conceito bakhtiniano:

O diálogo das linguagens não é somente o diálogo das forças sociais na estática de suas coexis-tências, mas é também o diálogo dos tempos, das épocas, dos dias, daquilo que morre, vive, nasce; aqui a coexistência e a evolução se fundem conjuntamente na unidade concreta e indissolúvel de uma diversidade contraditória e de linguagens diversas. (BAKHTIN, 1988, p.159)

Dessa forma, segundo a teoria bakhtianiana, o discurso seria observado como mecanismo dinâmico, em que “todos os termos de um texto vêm inseridos em múltiplas situações, em diferentes contextos linguísticos, históri-cos e culturais”, segundo Lopes (2003, p.70), o que leva à pluralidade de sentidos em um texto, a sua construção dialógica. Kristeva ao retomar Bakhtin e considerar no texto a noção de sujeito, do destinatário e dos textos externos, observa que essas três dimensões realocam em dois eixos as relações entre o sujeito e o destinatário (horizontal) e o espaço onde as palavras se manifestam em direção ao corpus literário (vertical), encontrando outra esfera de existência, isto é, tornando-se discurso.

Por meio da leitura ocorre a apropriação de um texto por outro, em que se cria uma nova significação; dessa forma, “toda sequência está duplamente orientada: para o ato de reminiscência (evocação de uma outra escrita) e para o ato de intimação (a transformação dessa escritura)” (KRISTEVA, 1978, p.121). Nesse processo Kristeva retoma o dialogismo bakhtiano, analisando-o tanto sob a ótica da subjetividade, quanto da comunicatividade, substituindo a noção de intersubjetividade pela de intertextualidade (cf. LOPES, 2003, p.71), conceito por ela criado em 1969. Com base nesse direcionamento, a noção de “pessoa-sujeito da escritura” cede espaço à da “am-bivalência da escritura” (KRISTEVA, 1978, p.121). Dessa forma, um texto dialoga com outros textos, embora também reflita as vozes de seu tempo, os hábitos, os valores, as crenças e a história de um grupo social, seus anseios e temores.[ ] Retomando Eichembaum (1970):

A obra de arte é percebida em relação com as outras obras artísticas, e com ajuda de associa-ções que são feitas com elas. Não apenas o pastiche, mas toda obra de arte é criada paralelamente e em oposição a um modelo qualquer. A nova forma não aparece para exprimir um conteúdo novo, aparece para substituir a velha forma que perdeu seu caráter estético. (cf. LOPES, 2003, p.73)

Segundo Zani (2003), como o conceito de dialogismo extrapola a literatura e a história de suas fontes, mani-festando-se no interior de produções artísticas e culturais variadas (pintura, cinema, música, literatura), em uma polifonia “onde vozes subexistem, como uma relação intertextual” (p.126), capaz de se estender por vários meios e períodos, refletindo a intertextualidade tanto desempenhos anteriores do próprio autor, quanto as influências de outros autores, o que se manifesta por meio da projeção da enunciação no enunciado, e que faz da comunicação um “exercício dialógico” (LOPES, 2003, p.73), polifônico e “visceralmente ideológico” (IDEM), à medida que o enunciador imprime seu direcionamento ao constructo de seu texto-discurso.

Dessa forma, observa-se que Tim Burton imprime a sua versão de Alice à possibilidade de o sujeito/mulher

vitoriana reagir contra os reguladores sociais da época, o que seria inadmissível, naquele contexto histórico-social, mas que constitui um eco da modernidade do século XXI, estabelecendo uma relei-tura da obra de Lewis Carroll, em que a garota que cai na toca do coelho pode apenas sonhar com um mundo diferente de fantasias. Com base nas transformações sociais e históricas que perpassam os séculos XIX e XX, modificadoras do papel da mulher, levando-a a assumir sua participação enquanto sujeito, em um novo mundo em que o feminismo se impõe, o intertexto apresenta a Alice Kingslei-gh atual manifestando rebeldia, traços de reação ao sistema em que a história está inserida, evidenciando que não aceita as imposições, desde o não uso do corpete e das meias em uma ocasião especial, até a não aceitação imediata do casamento com um lorde, ambição máxima das donzelas da sociedade de seu tempo. Tim Burton man-tém o corpus básico de Carroll, ambientando sua estória em um suposto futuro da Alice original, com traços de contemporaneidade, o que Lopes (2003) denominaria “visceralmente ideológico”.

O dialogismo entre o texto literário de Carroll e o de Burton perpassa a retomada do tema do primeiro, revestindo-o de um novo investimento ideológico, possível para o homem do século XXI, que pode retomar a obra original, apresentando na ficção um sal-to de apenas treze anos, quando na realidade sua Alice transporia mais de um século, o que justifica também a “muiteza” (coragem, ousadia, na colocação do Chapeleiro Maluco) de que se investirá a personagem ao longo da estória.

Nessa releitura da Alice de Lewis Carroll (Fig. 3), observa--se a carnavalização bakhtiniana, que se manifesta em um “mundo de ponta-cabeça, em que se sus-pendem todas as regras, as ordens e proibições que regem as horas do tempo de trabalho na ‘vida normal’, segundo Lopes (2003, p.77), “quando a ordem, o bom senso, as leis e as hierarquias que organizam nosso mundo cotidia-no são virados para o avesso, e as distâncias firmemente estabeleci-

Fig. 4 Chapeleiro Maluco - Tim Burton

Fig. 5 -Alice - Tim Burton

46 47Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

das pelas convenções são abolidas” (IDEM), impondo-se um novo modo de relações humanas, que surge em oposição às relações sociais: “A conduta, o gesto e a palavra do homem se libertam da dominação das situações hierarquizadas (camadas sociais, graus, idades, fortunas) que as determinam inteiramente fora do Carnaval e se tornam excêntricas, deslocadas do ponto de vista da lógica da vida habitual”. (BAKHTIN, 1970, p.170)

A sugestão de que o modus operandi dessa nova Alice será diferente é apresentado logo no início, quando, ao invés de meninas brincando no jardim, como na obra de Carroll, surge uma reunião de homens de negócios e uma Alice criança que, acordando após um pesadelo, surpreende a conversa dos adultos e a fala emblemática do pai que marcará seu percurso ao longo da estória: “A única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível”. O diálogo com o pai acerca do medo da loucura, ao lhe contar o sonho com o coelho de paletó, a lagarta azul e o pássaro dodô evidencia um “exercício polifônico” em uma visão diferenciada do mundo, pois em um contexto onde não seria adequado incentivar-se a fantasia nas crianças, uma vez que a própria infância não deveria ser estimulada, mas rapidamente transposta, segundo Ariès (1981), o pai diz a Alice não se preocupar com o inadequado, pois entre as pessoas que conhecera as malucas eram as mais interessantes:

ALICE: -- Será que estou louca? PAI: -- Receio que sim. Você é louquinha. Maluca. Pirada. Mas vou lhe contar um segredo: as melhores pessoas o são. (...)

Treze anos após, o dialogismo se manifesta, no contato com o mundo do futuro noivo, que tenta dominar sua imaginação:

HAMISH: -- Por que gasta seu tempo pensando em coisas impossíveis?ALICE: -- Papai dizia que acreditava em seis coisas impossíveis antes do café.

É o choque de dois universos em que o mundo em tons pastel, marcado pelas convenções sociais hierarquizadas do noivo irá contrastar vivamente com as cores fortes e com o inesperado do País das Maravilhas (Fig. 6 e 7). Alice foge do convencional, ao ser inquirida pelo noivo com um pedido de casamento para o qual não tem uma resposta, no mo-mento, e “mergulha na toca do coelho”, um mundo que existia em sua imagina-ção, em que a paisagem é desafiadora, as cores fortes e as convenções não são respeitadas (o Chapeleiro Maluco cami-nha sobre a mesa posta para o chá para recebê-la, a rainha descansa seus pés so-bre um porco, ao invés de uma almofada,

por exemplo). A polifonia surge nesse mundo em tons pastéis

onde tudo aparentemente é perfeito, como marca das situações contraditórias: uma irmã feliz se-gundo as convenções, mas traída pelo marido; um noivo lorde, expectativa de toda donzela, mas em um noivado arranjado, sem relações afetivas; uma moça de dezenove anos que foge de um pedido de casamento, quando o maior risco para toda moça da época era não encontrar um noivo... Mas, como afirma Bakhtin, todo discurso ideológico que repre-senta o lado pretensamente sério da vida é manipu-latório, o discurso que se constrói entre o lado de fora e o de dentro da toca do coelho objetivam ma-nifestar no sujeito Alice a possibilidade de transfor-mar sua capacidade em estado virtual de se rebelar em atualização, ao transformá-la de inconformada em heroína, o que ocorrerá em seu percurso no País das Maravilhas para provar a todos que é a “verdadeira” Alice, ou seja, a que aprendeu, quando criança, a capacidade de ir contra o sistema e de passar de potência ao ato.

Segundo Lopes (2003), a ficção da modernidade “nasce do encontro de vozes diferenciadas que se somam, se interenunciam, se contradizem, se homologam e se infirmam umas às outras – em síntese, se relativizam mu-tuamente” (p.76): “o resultado é que a intertextualidade nasce da percepção da disjunção existente entre essas duas vozes, essas duas consciências, esses dois discursos, homólogos narrativos das contradições profundas que coexistem a cada instante dentro e fora de uma mesma coletividade” (IDEM)

Dessa forma, Tim Burton apresenta um discurso em que dois textos se contradizem, de maneira a que um surge como uma inversão jocosa, paródica, ridícula do outro, segundo a visão cotidiana do mundo, dentro do que Bakhtin denominaria carnavalização, a tal ponto que não se sabe qual seria o verdadeiro e qual o falso, ou qual o real e qual o imaginário, nos mundos de Alice, o que lhe deixa a opção da escolha.

A competencialização do herói

Além de Bakhtin, outros estudiosos que se dedicaram à visão funcionalista da língua, os chamados formalis-tas russos, também renovaram a metalinguagem crítica, fornecendo novos modelos de análise do texto literário. Entre eles destacam-se Jakobson, e seus estudos sobre as funções da linguagem, particularmente a relação entre a emotiva e a poética; Eikhenbaum e Tomachevski, analisando elementos como a entoação e o ritmo no verso e na prosa; Tynianov, com uma metodologia para os estudos literários (LOPES, 2010); e Propp, apresentando um estudo da estrutura dos contos fantásticos (ou maravilhosos), por meio da observação das repetições que obser-vou nos mais de 400 contos populares russos analisados:

O fato de que os contos são compostos sempre dos mesmos elementos serve a Propp como prova Fig. 6 – pálido mundo exterior

Fig. 7 – colorido Mundo Subterrâneo

48 49Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

de sua origem comum. A Morfologia o leva a vislumbrar o fator social que constitui a protoforma subjacente ao conto: é o caso do ritual de iniciação como fonte arcaica dos motivos do conto mági-co. A lei da metamorfose, fundamental na morfologia goethiana, vem completar o paralelismo entre essas duas manifestações. As duas morfologias - a de Goethe e a de Propp - representam a busca de leis capazes de descrever a repetição dos fenômenos e também a causa da repetição. Longe de um interesse abstrato pela composição literária, a morfologia proppiana fundamenta-se nessa repetição presente nos contos russos. (LOPES, 2010, p.13)

Propp observou que certas estruturas, principalmente as relativas à natureza oral dos contos, permitia-lhes que fossem transmitidos através dos séculos, sem que sua essência desaparecesse, apesar da interferência do narrador, podendo alterar certos elementos para adaptá-lo à compreensão de seu público, características do conto que Jolles (1976) denomina “formas simples” e que permitia que fosse compreendido por todos. Ao se isolar as partes elementares de um conto, surgia uma morfologia, ou seja, “uma descrição do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relações destas partes entre si e com o conjunto” (PROPP, 1984, p.25). Por se tratar de uma narrativa breve, objetiva e compacta, em sua estrutura importava saber o que fazem as personagens (IDEM, p.26), pois o conto maravilhoso atribui ações iguais a personagens diferentes, o que permite o estudo desses contos “a partir das funções dos personagens” (p.25), entendendo-se por função “o procedimento de um personagem, definido do ponto de vista de sua importância para o desenrolar da ação” (p.26)

Propp (1984), também identificou um modelo abstrato presente nas estruturas desses contos, capazes de pro-duzir o “efeito narrativa”, manifestando-se, em princípio, na inversão da situação inicial: assim, a uma situação inicial de carência, envolvendo o herói, segue-se a liquidação dessa carência; se houver a ruptura de um contrato, termina com o restabelecimento desse contrato, por exemplo. Greimás, na linha estruturalista, retoma os estudos de Propp e observa que as sequências propostas estão abrigadas em uma estrutura, cujo padrão marca o percurso do herói, em um modelo triádico das provas perfomanciais, que denominou prova qualificante, em que ocorre a aquisição da competência por parte do sujeito (querer e dever, poder e saber); prova principal, ou perfomance do sujeito e muitas vezes um lugar de confrontação com um anti-sujeito; e a prova glorificante ou lugar de reconhe-cimento do sujeito, isto é, a sanção do contrato estabelecido.

Na década de 60, Greimás concluiu que o percurso do sujeito articulava, de forma regular, quatro percursos encadeados: manipulação, competência, perfomance e sanção. Na manipulação, um destinador (um sujeito que faz fazer) exerce sobre um destinatário (sujeito operador) um fazer persuasivo, induzindo-o a um querer ou a um dever fazer, mediante a apresentação do objeto de sua ação e levando-o a um fazer-crer. Dessa forma, estabelece--se entre ambos um contrato fiduciário, que no final do percurso será sancionado pelo destinador como positivo ou negativo. (BARROS, 1990)

Em Alice no País das Maravilhas (2010) de Tim Burton, o não conformismo de Alice, atuando como destina-dor, a induz a um querer-fazer/não aceitar o casamento arranjado, o que a leva a empreender a fuga para adquirir a competência (ou prova qualificante) para, na condição de donzela da era vitoriana, renunciar a seu papel social de mulher submissa a um casamento como única opção feminina. Dessa forma, a estória introduz um improvável argumento – para a época – o da escolha da mulher por uma profissão exclusivamente masculina (dirigente de uma empresa de navegação), ao invés da vida como mãe de família e dama da sociedade, uma marca deixada no discurso pelo enunciador Tim Burton.

O percurso que a leva a se tornar heroína é o desenvolvido no País das Maravilhas, o “lá-então” de que fala Bettelheim (1987). Alice-adulta tem que se fazer diminuta para entrar nesse reino, em que a temática remete à infância e à época de fantasias estimuladas pelo pai (agora falecido). Observa-se no líquido que a faz enco-lher a figurativização do retorno a um tempo em que se alcançava o impossível, meramente acreditando-se ser possível, por isso ela toma o conteúdo do frasco onde está escrito “Drink me” e encolhe; da mesma forma come o pedaço do bolo (Altenstrudel), quando precisa crescer para pegar a chave sobre a mesa.

Nesse novo mundo aonde Alice-adulta chega, o tempo-espaço não são marcados como no mundo exterior, por isso o questiona-mento apresentado pelos habitantes do Mundo Subterrâneo quanto a ela ser a mesma que um dia estivera lá. Segundo Pinel (2003), a trajetória do herói relaciona-se a seu posicionamento diante dos acontecimentos do mundo, caminhando do egoísmo para o alocentrismo, ou seja, em sua evolução aprende a ter os outros como seu centro de interesse. Nesse percurso, suas atitudes envolvem adquirir conhecimento sobre os fatos, motivar-se a ocupar o lugar ou a desempenhar a função esperada, mostrar-se pronto a novos aprendizados (com humildade), ser audacioso (ter coragem), e fazer por merecer. Nesse percurso, compreende o sentido da vida e o valor do coletivo, o que o motiva a não mais pensar de forma egocêntrica. Dessa forma, ao ser apresen-tada a Absolem, o guardião do Oráculo – um pergaminho mágico que revela presente, passado e futuro – quando lhe indagam se é a Alice verdadeira, a lagarta, como o arquétipo do velho sábio, responde: “Não totalmente”, ou seja, Alice precisaria, como afirma Pinel, aprender a ter os outros como seu centro de interesse, desenvolver o altruísmo, para poder se tornar digna de portar a espada Vorpal e matar o Jaguadarte no Gloriandei.

Fig. 8 – A sábia lagarta Absolem

Fig. 9 - O monstro Capturandum

50 51Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

A heroína irá desenvolver seu percurso a partir das provas que enfrentará para se qualificar até desempenhar sua prova glorifican-te, quando realiza o esperado: matar o Jaguadarte e libertar o reino da Rainha Branca, destruindo a Rainha Vermelha. No terreno do “aqui–agora”, irá se competencializar para realizar sua performan-ce principal: ser capaz de matar o Jaguadarte, seu medo maior, para enfrentar o mundo exterior e realizar a sanção positiva, do ponto de vista do destinador.

A primeira prova é a do confronto com o Capturandum, ani-mal semelhante ao puma, batedor dos guardas da Rainha Vermelha. Alice não acredita ser real o que está passando, mas parte de um sonho, então não se move e se belisca (como o pai a ensinara) para acordar, mas é ferida pelas garras do animal, o que configura, se-gundo a análise de Propp (1984, p.35) , o dano, que determina “o nó da intriga”, inserindo Alice no contexto da estória, pois precisa ser auxiliada pela ratinho alfaiate (adjuvante) que arranca um olho do animal com sua agulha, para que Alice possa fugir. Entretanto, esse ferimento também acrescenta um outro aspecto ao conto, pois antecipa a função em que o herói é marcado (marca, estigma), que lembrará a personagem durante toda a trama, de que não está vi-vendo um sonho.

Ao fugir, Alice e os gêmeos Tweedledee e Tweedledum (Fig.10)– personagens originais de outra obra de Lewis Carroll, Através do espelho e o que Alice encontrou por lá (1871) – chegam a uma encruzilhada em uma cena que traça um intertexto com o filme O mágico de Oz de 1939, na qual há duas placas com in-dicações confusas: Sub sul (SNUD) e Subleste (QUEAST), que remetem à confusão da própria mente da futura heroína. Nesse mo-mento, ocorre a segunda prova, quando os meninos são levados por um grande pássaro JubJub e Alice fica só, tendo que enfrentar o medo da solidão em terras desconhecidas. Motivada pelo desejo de ir em auxílio dos gêmeos, Alice embrenha-se em uma floresta escura, com árvores retorcidas – marca de Tim Burton – quando surge o Gato de Cheshire (Fig. 11), como adjuvante, que cuida de seu ferimento, apenas para que não infeccione, embora não o faça desaparecer, e a conduz ao Chapeleiro Maluco e à Lebre de Março.

Um aspecto interessante abordado quanto a esse encontro é que se Lewis Carroll trata da questão do tempo, com a discussão à mesa girando em torno de o relógio do Chapeleiro não estar funcionando direito para marcar o dia, quando deveria marcar a hora, no século

XIX, no filme de Tim Burton, a questão da loucura é abordada com a ruptura da noção de valores espaciais: o Chapeleiro vem saudar Alice que chega com o gato, atravessando por sobre a mesa vitoriana posta para o chá; da mesma forma, a lebre despeja o líquido em uma xícara com o fundo quebrado; e Alice, diminuída por um líquido dado pelo Chapeleiro, para escondê-la dos guardas da Rainha Vermelha, é colocada dentro de um bule de chá.

Nesse universo contraditório, cabe ao Chapeleiro revelar a Alice seu papel, recitando-lhe o mito presente no oráculo, primeiramente em linguagem cifrada: “Estava briluz e os silvos tovos gireavam e gimbolavam no vabar. Tão mimíssicos eram os borogovos que os momequis foram transgabar”.

Como ela não compreende a linguagem cifrada, continuou: “O jaguadarte com olhos de fogo. Mandíbulas que mordem e presas que agarram. Cuidado com o Jaguadarte, filho. E o frumioso Capturandum. Ele empunhou sua espada Vorpal: a Lâmina Vorpal que fura quem a encara. Ele o deixou morto, mas com a cabeça. Ele retornou galopando vitorioso.”

O Chapeleiro revela a Alice que o mito é sobre ela, mas a futura heroína recua: “Eu não mato. Então tire isso da mente”, ou seja, o sujeito Alice ainda não desenvolveu a competência do poder-fazer, para conseguir realizar sua performance principal.

Como resposta, agindo como destinador de uma ação, o Chapeleiro procura manipular Alice, a partir da inti-midação, despertando-lhe um dever-fazer: “Mente? Você não mata (jocoso). Tem alguma ideia do que a Rainha Vermelha fez?” . Alice procura se defender: “Eu não conseguiria se quisesse”. Então ele retorna à manipulação por meio da provocação: “Você não é mais a mesma de antes. Você era muito mais... muitais. Perdeu sua muite-za”. Ao que ela responde, aceitando a provocação: “Minha muiteza?”. O Chapeleiro responde, apontando-lhe o peito: “Aí dentro. Falta algo”. Estabelece-se o fazer-crer entre destinador e destinatário, quando Alice pede-lhe que conte o que a Rainha Vermelha fez, embora ele a advirta não ser uma estória bonita; ela lhe pede que também fale sobre o ataque do Jaguadarte ao reino da Rainha Branca e a destruição.

Após a narração dos fatos, chegam os soldados da Rainha Vermelha e, para que Alice escape, o Chapeleiro a coloca (ainda diminuta) na aba de sua cartola e a atira na outra margem do lago, dizendo-lhe para fugir para o reino da Rainha Branca. Ocorre a terceira prova, pois no dia seguinte, após ter passado a noite escondida sob a cartola, Alice é encontrada pelo cão Bayard, a serviço da Rainha Vermelha, que se mostra amigável e lhe conta que o Chapeleiro foi pego. Ao invés de se salvar, Alice pede ao cão que a leve ao encontro da inimiga, em Salazen Grum, para salvar o amigo, ocorrendo nova prova de altruísmo. Alice cavalga o cão como se fosse um corcel de um herói e desenvolve nova performance secundária.

A prova seguinte a espera na chegada ao castelo, cercado por um fosso onde boiam cabeças dos inimigos, justificando o mote (e a crueldade) da Rainha Vermelha: “Cortem-lhe a cabeça!”. Alice deve pisar sobre elas para transpô-lo, municiando-se de coragem, ela vence essa prova e penetra nos jardins do palácio, justamente no instante em que a rainha joga crícket com um ouriço como bola. Alice liberta o animalzinho, em um ato heróico, realizando performances secundárias, ainda como pequenina, mas que a preparam para o Gloriandei, cujo papel principal – o de heroína – ainda não aceita.

No jardim, pede ao coelho branco um pedaço do doce que a faz crescer e, como fica muito alta, utiliza-se desse fato como um ardil, ao ser encontrada pela rainha, dizendo-lhe ser uma fugitiva da terra de Afensa, pois crescera muito e os seus não mais a aceitavam. Dessa forma, enquanto destinador, utiliza a sedução por meio de um saber-fazer sobre a rainha/destinatário e obtém a sanção positiva, pois a tirana se identifica com ela, devido ao tamanho de sua cabeça e a acolhe como “protegida”, estabelecendo-se entre ambas um contrato fiduciário.

Nesse episódio há um intertexto a ser considerado com a Odisseia de Homero, pois Ulisses também se utili-

Fig.10 Tweedledee e Tweedledum

Fig. 11 – Gato de Cheshire

52 53Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

zou de um ardil semelhante, para entrar nos muros de Troia, dentro de um enorme cavalo. A Alice diminuta ou em tamanho normal (reconhecível), não poderia fazê-lo, mas imensa, pode entrar, incógnita (chegada incógni-to, na teoria de Propp), o que, o que permite o desencadeamento das outras funções: um falso herói apresenta pretensões infundadas (pretensões infundadas), que se traduz pelos planos da Rainha Vermelha e do Valete de dominarem no Gloriandei e de Alice se tornar a nova protegida da Rainha.

Na sequência, é proposta à futura heroína uma tarefa difícil (tarefa difícil): Alice deve tomar a espada Vorpal guardada pelo temível Capturandum; por meio da sedução, o destinador Alice, utilizando-se de um saber-fazer, devolve ao animal o olho que lhe fora anteriormente arrancado pelo ratinho e obtém a adesão do destinatário, que por meio de um querer-fazer permite que ela pegue a chave pendurada em sua coleira e abra o baú onde está a Vorpal. A sanção desse percurso do sujeito é, portanto, positiva, e Alice dá mais um passo rumo a sua heroici-dade. A tarefa é realizada (realização da tarefa).

O Chapeleiro e o Ratinho são condenados à decapitação pela Rainha Vermelha, mas organizam uma revolu-ção, no momento da execução da pena, conclamando o povo à luta contra a tirana, no que são atendidos. Alice surge na praça montando o Capturandum e, em meio à confusão, o ratinho grita “Fuja, Alice!”, momento em que o herói é reconhecido (reconhecimento), também ocorrendo na sequência o desmascaramento do malfeitor, quando o Chapeleiro chama a rainha de Cabeçuda e mostra que toda a corte usava disfarces (narizes, orelhas, barrigas postiças) para ficarem feios e serem aceitos pela tirana.

Ao chegar a Marmoreal, Alice executa nova performance, entregando à Rainha Branca a espada Vorpal, dizendo-lhe que a devolvia a quem ela de fato pertencia. Entretanto, ocorre uma tentativa de manipulação do destinador/rainha sobre Alice, quando afirma que a armadura já estava completa, faltando apenas o campeão que a vestiria para enfrentar o Jaguadarte e olha significativamente para Alice, o que sugere a provocação se-gundo um saber-fazer, atribuindo ao destinatário/Alice um dever-fazer. Entretanto, como parte de seu processo persuasivo de levar o destinatário primeiramente a crer nas razões do destinador, Mirana dissimula, rapidamente acrescentando que Alice é um pouco mais crescida do que esperava (para usar a armadura). O destinatário/Alice, induzido, em parte, pela manipulação do destinador/rainha, conta que sua altura se devia ao excesso de Altestru-del, então Mirana prepara-lhe uma poção para que retorne ao tamanho normal.

A função o herói recebe nova aparência (transfiguração) apresenta-se na roupa com que Alice surge vestida: túnica e calças compridas, como um príncipe hindu, em um lugar onde reina a extrema feminilidade nos vestidos, nos gestos, na aparência e na voz suave.

Dessa forma, o tema da transformação do indivíduo em heroína está figurativizado no abandono das vesti-mentas femininas, contra as quais ela já esboçara descontentamento no mundo exterior, ao não vestir o corpete e as meias para a festa. No Mundo Subterrâneo não há o regulador social que a impede de assumir, agora, seus desejos, o que fica evidente no próprio reconhecimento de seu ego, no contato a seguir com Absolem, que tam-bém está finalizando seu processo de transformação, fechando-se em um casulo:

ALICE: Absolem? Por que está de cabeça para baixo?ABSOLEM: Cheguei ao fim desta vida.ALICE: Você vai morrer?ABSOLEM: Transformar-me.ALICE: Não vá. Preciso de sua ajuda. Não sei o que fazer...ABSOLEM: Não posso ajudá-la se você nem sabe quem é, menina idiota. ALICE: Eu não sou idiota! Meu nome é Alice. E moro em Londres. Minha mãe se chama Helen

e minha irmã, Margaret. Meu pai se chamava Charles Kingsleigh. Ele tinha um projeto de viajar ao redor do mundo e nada o deteve. Eu sou filha dele. Eu sou Alice Kingsleigh.

ABSOLEM: Alice, finalmente! Você era tão tola quando esteve aqui pela primeira vez. Pelo que me lembro, chamava de “País das Maravilhas”.

Alice então se recorda dos acontecimentos de sua infância no mesmo local, tornando-se um sujeito agora competencializado segundo um poder e um saber-fazer, estando apta a vestir a armadura (Fig.14) e a empunhar a espada Vorpal. Contrariando as expectativas dos amigos, Alice/heroína chega montando o Capturandum, a fim de realizar sua performance principal: matar o Jaguadarte. Segundo Resende (2010): “A lagarta é um ser raste-jante que fica independente na forma de borboleta. Pode-se dizer que Alice “rasteja” em sua vida, ao contrário do dinamismo e brilho que alcança ao final da aventura.”

No campo de batalha, con-frontam-se as irmãs Iracebeth, a irascível Rainha Vermelha, tema da fúria e do descontrole do mal, figurativizados no nome e na apa-rência (cabelos vermelhos, testa larga, roupas de época) em Eli-zabeth I, rainha da Inglaterra; e Mirana, nome de provável origem latina, significando mulher sábia, admirável, tematizando o Bem, o que está figurativizado nos gestos contidos, na fala suave, no tempe-ramento controlado e na presença do branco e do azul, cores suaves; Entretanto, também apresenta ati-Fig. 12 - Alice: tranformação da donzela vitoriana em mulher decidida Fig. 13 – Conversa final com Absolem e redescoberta de si mesma

Fig. 14 - Alice campeâ da Rainha Branca

54 55Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

tudes dissimuladas, a preferência por tratar com seres mortos, batom, unhas e sombrancelhas negras, em um vivo contraste com o branco predominante no reino marmóreo, sugerindo um outro traço de sua personalidade, trazido ferreamente sob controle.

O confronto com o Jaguadarte é marcado pelo encorajamento a partir da recordação do pai das seis coisas impossíveis, que ela atribui a seu próprio percurso no Mundo subterrâneo e vai recitando, enquanto enfrenta o monstro:

Seis coisas impossíveis. Conte-as, Alice. Um: há uma poção que faz você encolher. Dois: e um

bolo que faz você crescer [ataca o animal e corta-lhe a língua; ele a joga no chão com a cauda]. Tres: animais podem falar. Quatro, Alice!: Gatos podem desaparecer! Cinco: existe um lugar cha-mado País das Maravilhas. Seis: eu consigo matar o Jaguadarte.

Retomando Jung, Rezende (2010) esclarece que quanto mais largo o campo da consciência, quanto mais o indivíduo se conhecer, maior será o livre arbítrio, mais possibilidades se apresentarão e poderão ser concretiza-das pelo eu: “O eu possui o livre-arbítrio – como se afirma, mas dentro dos limites do campo da consciência” (JUNG, 1990a, p. 4, cf, RESENDE, 2010)

Alice, um sujeito devidamente competencializado segundo um poder e um saber-fazer, realiza sua perfor-mance principal, mata o Jaguadarte, obtendo a sanção positiva, e devolve o Reino à Rainha Branca. Entretanto, como a competencialização também envolve adquirir a capacidade de agir por si mesma e de improvisar quando necessário, contrariando o oráculo, que dizia que ela matara o Jaguadarte mas não lhe cortara a cabeça, Alice imprime sua marca ao momento presente e, de um salto, pula sobre o pescoço do monstro e com um único golpe decepa-lhe a cabeça com a Vorpal, o que causa estranhamento aos amigos. Dessa forma, a nova Alice está pre-

Fig. 15 – Alice enfrenta o Jaguadarte

parada para deixar o Mundo Subterrâneo, pois adquiriu a coragem, a persistência e a sabedoria necessárias para construir próprio seu futuro.

A grande batalha e o universo junguiano

A temática do Bem e do Mal está figurativizada, no campo de batalha, tanto nas cores, quanto no aspecto de cada jogo: no de xadrez, com peças brancas a descoberto, vence o raciocínio, a sabe-doria; no de baralho, cartas vermelhas, a trapaça, o que será visível, quando Iracebeth, ignorando a proposta de paz de Mirana, apresen-ta sua maior arma, o Jaguadarte.

O excesso de racionalismo da cabeça volumosa, que impede o controle das emoções (Iracebeth não consegue lidar com o ciú-me do relacionamento dos pais com a irmã, por isso faz cobranças carregadas de ira a seu redor); e o lado extremamente feminino de Mirana, que precisa de um cavaleiro que vista a armadura, pois é incapaz de matar qualquer ser vivo; sob a ótica junguiana, Irace-beth e Mirana representam o animus e a anima exacerbada, entre esses dois arquétipos Alice deve aprender seu próprio autocontrole.

Segundo Resende (2010):

(...) Alice confronta os dois opostos de si mesma – Iracebeth e Mirana – e leva o melhor dos dois, apesar deles acabarem se separando novamente. Mas o conhecimento ad-vindo do seu embate ficou e transformou a persona-gem. Sua persona acaba se constituindo como uma armadura, que precisa usar para saber se impor aos circundantes e tomar as rédeas da sua vida. A ênfase agora recai em Mi-rana, que passou a reinar no mundo subterrâneo. (...)

56 57Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

a Rainha Branca fornece uma persona de guerreira e encarna também o feminino. Como símbolo do Si-mesmo detém os opostos em si, e usa de dons sobrenaturais. Apoia uma mulher em uma época de preconceitos, rigidez e pressões, e fornece-lhe os instrumentos interiores para seu sucesso.

A simbologia presente nesses dois aspectos torna-se patente na busca de Alice pelos momentos em que es-teve com o pai – seu exemplo de animus empreendedor, destemido, audaz – uma vez que no universo vitoriano em que vivia estava a mulher cercada de normas e regras que impediam o desenvolvimento da racionalidade, pautando seus atos em uma persona marcada por atitudes suaves (porém irreais), similares às da Rainha Branca. Já a atitude típica da Rainha Vermelha, no universo junguiano vista como aquela que não consegue desenvolver a persona, o trato social, geralmente é temida, não desejada. O coelho branco que surge no momento de decisão no mundo real é o símbolo que indica a Alice o momento de resgatar sua capacidade de ação, sua “muiteza”, ou seja, a capacidade de reagir, de colocar-se contra os ditames da sociedade e seguir seu próprio destino.

Segundo Jung (2008), quando um arquétipo surge em um sonho, na fantasia ou na vida, ele fornece ao indivíduo uma força que gera fascínio ou impele à ação. O ser humano possuiria “uma psique pré-formada de acordo com sua espécie, a qual revela também traços nítidos de antecedentes familiares” (JUNG, 2008, p.90) determinada a partir de formas de função denominadas por ele “imagens”, que expressam não apenas a forma da atividade a ser exercida, mas também, simultaneamente, a situação típica na qual se desencadeia a atividade:

Tais imagens são “imagens primordiais”, uma vez que são peculiares à espécie, e se alguma vez foram ‘criadas’, a sua criação coincide no mínimo com o início da espécie. (...) Uma vez que tudo o que é psíquico é pré-formado, cada uma de suas funções também o é, especialmente as que derivam diretamente das disposições inconscientes. A esta pertencem a fantasia criativa. Nos produtos da fantasia tornam-se visíveis as ‘imagens primordias’ e é aqui que o conceito de arquétipo encontra sua aplicação específica (IDEM)

(...) arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens similares, são formas ins-tintivas de imaginar. São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma (...) Resultariam do depósito das impressões superpostas deixadas por certas vivências fun-damentais, comuns a todos os humanos, repetidas incontavelmente através dos milênios (SILVEIRA, 1978, p.77)

As vivências típicas a que se refere Jung estão relacionadas às emoções e fantasias causadas por fenômenos da natureza, pelas experiências com a mãe, pelos encontros do homem com a mulher (e vice-versa), pelas jor-nadas difíceis como a travessia de mares e de grandes rios, pela transposição de montanhas etc. Tais vivências constituiriam disposições herdadas que, inerentes à estrutura do sistema nervoso, seriam capazes de construir “representações análogas ou semelhantes”, as quais, funcionando como um nódulo de concentração de energia em estado potencial, atualizam-se na forma de imagens arquetípicas, que muitas vezes se manifestam nos so-nhos, sendo instintivamente reconhecidas nos contos de fadas e nas estórias folclóricas. No caso de Alice, a toca do coelho simboliza a fuga dos padrões conhecidos, para que possa entrar em contato com seu rico universo inte-rior, em busca de saídas para a situação de desagrado em que se encontra. Entretanto, a ruptura com tais padrões

exigirá um afastamento dos elementos da “caverna” em que esteve aprisionada, para encontrar a si mesma, sua força interior e fazer valer sua vontade.

Como protagonista da estória, Alice, representa o ego, aquilo que o indivíduo conhece sobre si mesmo ou, como afirma Jung, o ego “é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” (1990A, p. 1, cf. RESENDE, 2010). Tais atos corresponderiam a ações baseadas no uso da própria vontade e com objetivos bem definidos, por isso é através dele que o indivíduo pode ou não mudar seu destino e também por isso somente Alice pode matar o Jaguadarte (IDEM), optando por cortar-lhe a cabeça, o que não estava determinado anteriormente, no oráculo, pois seu ego ainda não estava formado.

Dessa forma, deve desenvolver um percurso rumo à heroicidade, enfrentando diferentes desafios, rumo a sua individuação. Nesse trajeto, encontra diferentes auxiliares e oponentes que a auxiliam ou instigam em momentos críticos. Assim, é conduzida por um adjuvante, o sorridente Gato de Cheshire, quando está para errar o caminho; é aconselhada pela lagarta Absolem (arquétipo do velho sábio), que também lhe sinaliza o momento de se trans-formar, ao passar de verme a borboleta (símbolo de transformação: morte e vida, liberdade), evidenciando que Alice estaria pronta para aceitar novos desafios no mundo exterior, assumindo sua própria vontade. Tim Burton enfatiza o inconsciente sombrio, com figuras que o marcam como a um pesadelo, como o estranho Valete de Copas (o protetor da Rainha Vermelha), as árvores ressequidas, o céu enevoado, o contraste entre o branco e o negro no reino da Rainha Branca, e entre o vermelho e o negro no reino da Rainha Vermelha, uma tirana a quem faltam emoções adequadamente desenvolvidas.

O colorido do ambiente e a maquiagem/aparência exacerbadas dos personagens de sonho do País das Mara-vilhas, como a do Chapeleiro Maluco; a cabeça enorme da Rainha Vermelha; e o negro dos lábios, contrastando com a palidez cadavérica da Rainha Branca, em nada se parece com os tons pastéis do mundo exterior. Esse conjunto de elementos simboliza os medos mais profundos que essa Alice terá que enfrentar para se tornar adulta e uma heroína capaz de retornar, enfrentando os ditames da era vitoriana, assumindo não o papel esperado para uma mulher – casar e ser submissa ao marido – mas se tornar uma dirigente de uma companhia de navegação e viajar por todo o mundo.

Se o sangue do Jaguadarte corresponde ao prêmio obtido pela façanha alcançada e o meio pelo qual ela será transportada ao mundo exterior, e que Alice bebe sem temor, o mesmo não acontece com Iracebeth ao receber a notícia de seu exílio para o mundo exterior, um mundo que exigia o equilíbrio das emoções, competência que ela não possuía; dessa forma se desespera ao saber que não terá a seu lado o valete, para a proteger dos excessos de sua própria falta de habilidade no trato social.

CONCLUSÃO

Alice desenvolve o percurso do herói, em seu mundo interior, o que a qualifica para desempenhar a rebeldia que irá expressar em seu retorno, transformada: não mais a menina medrosa e rebelde, mas a mulher decidida e compromissada com seu futuro. Dessa forma, deixa o mundo conhecido, os hábitos segundo os quais foi criada e em cujos valores sua moral se desenvolveu, para descobrir o sentido da vida que lhe fora transmitido pelo pai, quando criança, por meio da magia e do estímulo à fantasia, em uma época em que o comum era o estímulo ao oposto, ou seja, como a infância não era cultuada, os indivíduos aguardavam a idade adulta para se manifestarem, o que não ocorre com Alice e o pai.

Penetrar na toca do coelho, ao fugir, no momento em que é dada em casamento a um rapaz com quem não

59Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.

58Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 41-58, 2011.

Arte, Narrativas e MemóriasArt, histories and memories

Alecsandra Matias de OLIVEIRA

Mestre em Comunicações e Doutora em Artes Visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - Brasil.

Q uando se define a condição contemporânea como um estado de incredulidade em relação às meta-narrativas, estabelece-se também o patamar para uma série de questionamentos sobre os sistemas narrativos pelos quais a sociedade humana organiza e dá significado, unidade e “universalidade” à sua

experiência. Entre esses sistemas, em franco debate, encontra-se a arte que tem sua função narrativa intrínseca desde os mais remotos testemunhos. Seja nas representações funerárias no Egito, nos relevos comemorativos nas construções greco-romanas ou na pintura sacra medieval, uma das funções da arte é contar histórias.

Na antiguidade clássica, arte liga-se ao simulacro, à ideia e à beleza. A arte não se encontra na natureza, mas no mundo das fantasias e da razão. Nesse sentido, “o simulacro é o intelecto unido ao objeto, e esta adição tem um valor antropológico, pelo fato de que ela é o próprio homem, sua história, sua situação, sua liberdade e a resistência que a natureza opõe a seu espírito”. Então, arte é conhecimento. Conhecimento do objeto, quando apreendido do mundo real e conhecimento, quando o artista constrói o simulacro, utilizando suas capacidades mnemônicas. É também forma de cognição para o espectador, uma vez que este reconhece, por suas faculdades mnemônicas, o objeto simulado.

Para os gregos, a ideia de beleza é permeada pela razão, que por sua vez se vale da memória, da proporção e de regras imutáveis. Nessa concepção, a arte não é cópia fiel da realidade, mas a memória da realidade. Por ser aparência, representa o intelecto associado ao objeto de arte ou à criatividade do artista, acrescida da forma, caracterizando a idealização do objeto em sua plena harmonia. “Mesmo quando o herói olímpico recebe o direito de ter sua imortalidade, através de uma estátua, essa não tem a forma exata do retrato, pois é somente uma idea-lização do que deve ser uma representação harmônica do corpo e do rosto de um herói”.

A arte é, no seu sentido pragmático, ou seja, enquanto ensinamento ético-político, empregada pelos romanos

simpatiza, simboliza o retorno às lembranças de uma época em que tinha o poder de decisão. Dessa forma, as personagens que encontra no País das Maravilhas representam aspectos de seu universo interior: o Chapeleiro Maluco, o medo de sua própria loucura, que a desafia; a Lebre maluca, que age de forma totalmente desconexa, a ruptura com os padrões da época; a Rainha Vermelha, o excesso de racionalidade (animus) e a tirania; a Rainha Branca (anima), etérea, mas incapaz de tomar atitudes – a própria lady vitoriana – que precisa de Alice para que seja seu Cavaleiro.

Observa-se uma luta entre o delicado e vulnerável papel feminino, esperado da mulher da época, e a neces-sidade de assumir seu lado guerreira para poder modificar seu destino e exercer seu livre arbítrio. Sob a ótica junguiana, os arquétipos da anima e do animus necessitam entrar em equilíbrio, bem como seu ego, para que Alice seja um indivíduo completo: sendo feminina, mas capaz de tomar suas próprias decisões. Dessa forma, a protagonista/sujeito pode, finalmente, adquirir as competências necessárias à obtenção de sua heroicidade: sabedoria, comedimento, capacidade de perdoar, humildade, astúcia, recebendo a sanção positiva do destinador “busca do self” que a motivou a ir à procura de seu mundo interior.

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Acesso em 13/02/2011

Recebido em 17 de Novembro de 2010. Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011

The paper provides an insight into the interrelationships between public opinion, opinion resear-ch and the process of socialization of the arts via the Internet. We believe that the discussion of this topic is very important to understand the effects of reflections between the circulation of information within the artistic and artistic production itself, since the process of informational network (promo-ters of artists, museums, donors and representatives of cultural events society) is of fundamental importance for the formation of public opinion in a society.

Este artigo providencia um ponto de vista nas relações entre opinião pública, pesquisa de opi-nião e o processo de socialização da arte através da internet. Acreditamos que a discussão deste tópi-co é muito importante para entender os efeitos das reflexões entre a circulação de informações dentre os artistas e as produções artísticas em sí, já que o processo de redes de informação (promotores de artistas, museus, doadores e representantes de eventos culturais) é de importância fundamental para a formação da opinião pública numa sociedade.

Palavras-chave: opinião pública, socialização da arte

Keywords: public opinion, art socialization

60 61Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.

A partir das inovações e transformações ocorridas a partir do século XX, a arte como conhecimento não é mais uma concepção unânime e a arte passa a valorizar outras formas de sentir e de expressar o mundo, tais como sonhos , emoções e imagens que não são passíveis de narração, ou pelo menos, não de uma narração line-ar e totalmente compreensível. As vanguardas históricas (Expressionismo, Dadaísmo, Cubismo, Surrealismo e Abstracionismo) alteram, quebram ou até mesmo dissolvem o aspecto narrativo na arte. Em comum, buscam a liberdade e a autonomia para o objeto artístico. Porém, nenhuma das vanguardas exclui a ideia de que a arte é modo de expressão de emoções.

Nesse ponto, assinala-se que como sistema de organização das emoções, a memória serve como uma busca pessoal de aprendizado, de repertório para o porvir ou até mesmo uma advertência sobre os perigos do esqueci-mento. Na arte moderna, as imagens se disseminam excessivamente e necessitam de uma ordenação que não é necessariamente regular ou linear. A proliferação do uso da fotografia, por exemplo, contribui para a formação do novo sistema visual, registrando a memória do instante. O registro da memória ganha novas técnicas (especial-mente, através dos veículos de comunicação) que multiplicam sua capacidade de transmissão de imagens – o que ocorre é certa banalização dos registros e, por consequência, toda e qualquer memória pode ser preservada. As vanguardas históricas e, mas tarde, a arte pós-II Guerra estão envoltas nesse movimento acelerado de proliferação de imagens.

As concepções de documento e monumento seriam substituídas somente pelo conceito de imagens da me-mória? Não. Mesmo a arte moderna tem seus monumentos comemorativos que exaltam aspectos da renovação industrial e da ligação homem-máquina. A imagem que constitui a obra de arte deflagra múltiplos elos que, por sua vez, constituíram diversos presentes. A obra de arte revela a memória que traz consigo. Memória essa que continuará, em seu devir, a atravessar outros presentes, uma vez que sempre, diante da imagem, se está diante de tempos “(...) olhá-la significa desejar, esperar, estar diante do tempo”.

Os fenômenos mnemônicos na arte moderna podem ser compreendidos, a partir das considerações de Henri Bérgson, em especial na obra Matéria e Memória. Nessa obra, o filósofo considera central a noção de “imagem”, na encruzilhada da memória e da percepção. Na ordem espiritual, na lembrança e na memória, está a união da matéria e do espírito , ou seja, as representações arquitetônicas (monumentos) são agentes transmissores de lem-branças. A memória será o elo entre o material e o espiritual.

Bérgson define a matéria como imagem: certa existência que surge imediatamente através do sentido da visão. A percepção é definida como algo puramente material porque mostra de modo simples a existência da coisa. A per-cepção é, ainda, a ação da matéria, é o reflexo do material, não pode existir isoladamente. Já a lembrança torna-se a ação do espírito de recordar e de perceber. Segundo Bérgson, a memória capacita o indivíduo a trabalhar suas lembranças e a formar objetos materiais. Nesse sentido, a memória é algo que motiva o retorno das lembranças para que o presente construa novas significações. Essas lembranças organizam o presente e revelam o futuro. Logo, a lembrança, assim como a percepção não existe isoladamente. A memória é móvel e criativa, mais do que isso, a memória possibilita a criação do novo.

A perspectiva de Bérgson da memória, de certa forma, influencia os caminhos da literatura como documento escrito, em particular, porque realça as interações da memória e do espírito. Marcel Proust convence-se, rapida-mente, da proximidade entre literatura e memória. Assim, um objeto como, por exemplo, uma flor somente se transformaria em flor verdadeira como objeto de memória. Proust observa que as mnemotécnicas, geralmente, baseiam-se no princípio da ação sensorial, ou seja, no estimular os sentidos: visão, audição, olfato, paladar e

– como meio para a narrativa de acontecimentos históricos com a finalidade de lembrar as vitórias dos generais e imperadores. Por essa razão, a arte é pensada como “coisa pública”, ou seja, perpetua a memória coletiva de Roma. Arcos, obeliscos e outros monumentos arquitetônicos romanos são como instrumentos de rememoração – as marcas de uma “história gloriosa.” Quando a arte se torna cristã, nas catacumbas narra o sacrifício dos mártires e os eventos bíblicos. Através da arte, ocorre a cristianização da memória coletiva, permeada pelos ritos litúrgicos, girando em torno dos cultos dos mortos e dos santos. “Pode-se descrever o judaísmo e o cristianismo, religiões radicadas histórica e teologicamente na história, como ‘religiões da recordação’”. Através da lingua-gem artística os registros religiosos mantiveram-se por todo o período medieval e evangelizaram partes remotas do mundo.

No Renascimento, retorna-se às premissas clássicas, a arte passa a ser considerada “coisa mental”, isto é, arte é a recriação da natureza e se limita ao processo de ordenação matemática e à harmonia: elemento da vida. Através da arte renascentista os temas bíblicos, os mitos e a vida nos reinos espelham o “espírito de uma época”. Na Renascença, a memória está resguardada pelo registro escrito (uma infinidade de tratados, manuais e documen-tos) e pelas obras-primas (monumentos arquitetônicos, telas e esculturas) que são a garantia de “imortalidade de artistas e mecenas”.

As teorias clássicas sobre a arte ligam-se, por intermédio da precisão, da regularidade e da sistematização do conhecimento, às regras e princípios teóricos adotados pelas academias de Belas-Artes. Nas academias francesas e italianas predominam os valores relativos à semelhança do real e da beleza. Contudo, o neoclassicismo e o ro-mantismo acrescentam à concepção de arte dinamismo e sentido evolutivo. Os iluministas depositam esperanças nas ciências e na cultura especializada – fatores que poderiam possibilitar o progresso infinito. Para os iluminis-tas, a memória é claramente passível de treinamento, bem como a arte. Técnicas e temas são transmitidos com mais intensidade através de recursos mnemônicos. Os gêneros da pintura (retrato, natureza-morta, paisagem e pintura histórica) florescem rapidamente e mostram a potencialidade do aspecto narrativo da arte, nesse momen-to. Não é por coincidência que um desses gêneros, a paisagem, abre caminhos para o Impressionismo que em sua proposta procura aprisionar a luz e o instante – a recordação do momento presente.

É o modernismo que reivindica com mais contundência uma “arte pela arte” que se nega a veicular mensagem e servir de meio transparente de comunicação. Os artistas de vanguarda aproveitam as conquistas da ciência na sociedade moderna para a construção de novo sistema visual. Nesse sistema, a memória na arte não reconstitui somente o visível, mas também os sentidos humanos. O próprio conceito de memória se alarga, especialmente, com as teorias freudianas e piagetianas. Simultaneamente, o conceito de conhecimento deixa de ser o “enciclo-pédico” (ou acumulativo) dos iluministas e compreende-se a fragmentação e o processo de especialização do Saber em saberes.

No entanto, o caráter efêmero da produção de vanguarda e sua ação de destruição para construir o novo tornam--se processo de esgotamento da arte. A busca pelo novo constitui-se em obsessão do artista: ao encontrá-lo, ele logo se transforma em antigo. O artista se vê condenado a encontrar uma nova forma de olhar e por essa razão transforma-se constantemente, desagrega sua identidade; ao desagregar-se, armazena em sua memória impres-sões que se transformarão em imagens. A memória manifesta-se, pois, na luta contra o movimento implacável do tempo. Essa condição leva o artista a questionar a validade da mesma, sobretudo, com a crise que se instala na Europa no pós I Guerra Mundial. Para Walter Benjamin, os sobreviventes que regressam das trincheiras, voltam mudos. Por quê? Porque aquilo que vivenciam não podia mais ser assimilado por palavras. A memória da batalha torna-se dolorosa e difícil de ser transmitida a outrem.

62 63Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.

tato. Entre esses, a visão possuiria prioridade sobre os demais sentidos, por essa razão, os conteúdos da memória também são vistos como imagens mnemônicas. A ideia de Proust é destituir a visão dessa posição privilegiada e abarcar outros sentidos como portadores da memória. Para tanto, o escritor lida com as memórias involuntárias e voluntárias. A visão estaria relacionada às atitudes racionais por isso interligada à memória voluntária. Já a memória involuntária não tem como origem um desejo determinado de manipular o passado com vistas à sua possível utilização no presente. Pelo contrário, a memória involuntária advém de uma sensibilidade difusa e inesperada (todos os sentidos em ação confusa) que acomete o homem a qualquer instante, levando-o a reviver flashes do seu passado, em todo o seu colorido original.

Ao atualizar o passado, a memória (somatória de voluntária e involuntária) recria o tempo (passado, presente e futuro), fundindo instante e duração num continnum tecido. Para Marcel Proust, a arte conseguiria operar a síntese entre instante e duração, através da matéria media as relações com o espiritual. Nesse sentido, deve-se retomar uma das questões principais que auxiliam na constituição da história, como disciplina, no século XIX: a exclusão da memória involuntária. Na arte essa expulsão nunca ocorre totalmente. O que se dá é a utilização da memória involuntária com maior ou menor intensidade. A arte pressupõe conhecimento sensível e este depende das potencialidades da memória involuntária, assim sendo, eliminar os sentidos expostos na memória involuntá-ria seria dirimir o que há de essencial na arte.

Nesse ponto, torna-se importante assinalar que a arte não se inicia na ocasião das primeiras obras de arte – ou pelo menos aquilo que se denomina arte atualmente – mas quando certos objetos são pensados esteticamente. Ela também não acaba quando deixam de existir obras de arte (esculturas, pinturas, música ou literatura), a arte se altera e renova-se de tal maneira que uma história da arte sustentada tão somente em estilos, movimentos, evolução e progresso artístico não dá conta de sua plenitude. A partir do pensamento estético, conta-se a história da arte que a princípio é mimética de depois se torna moderna e, agora contemporânea.

A contemporaneidade mostra que as formas artísticas não podem mudar, a menos que as práticas sociais o façam ou, ainda, a produção artística é construída num contexto social e num sistema de valores vivido. A arte contemporânea justapõe e dá igual valor ao mundo fechado em si mesmo e o mundo aberto para o exterior, da história e da experiência (nesse âmbito, a memória). Essa “arqueologia emocional” esbarra muitas vezes no co-lecionismo, no qual os objetos servem de apoio. O recordar nas poéticas visuais torna-se amealhar instrumentos para próximas ações, analisar as possibilidades à luz das experiências vividas, reviver o prazer de sensações boas e precaver-se com a reincidência das más.

Para o artista contemporâneo, o cultivo da memória é, acima de tudo, uma busca de reafirmação do que o passado significa. Mesmo a memória coletiva que geralmente serve a propósitos políticos ou de orientação de conduta, sendo imposta ao grupo por uma determinada instância superior (um governo, uma religião ou uma ins-tituição), sofrendo uma série de intervenções e revisões ao logo do tempo, manipulada para servir a determinados propósitos, na produção artística tem sua afirmação ou negação. Para os artistas a memória pode servir como um propósito cognitivo, um esforço de apreensão de um fato ou momento que remete ao coletivo (artista e público) uma reflexão sobre o que foi ou o que poderia ter sido – a suspensão de um momento muitas vezes eternizado no espaço expositivo ou na percepção do objeto estético, em uma narrativa fragmentada, indireta e que não permite possibilidade de leitura única e linear.

Na contemporaneidade, a sensação de descontinuidade, desencaixe e fragmentação geram um sentimento de pouca “intimidade” com a realidade, o que pode justificar o crescente desejo de expressão e busca de sentido

pessoal que permeia a produção artística, especialmente, a brasileira de meados dos anos de 1990. Os trabalhos apresentam-se, cada vez mais, narrativos, autobiográficos e auto-referenciais. A memória, o corpo e, em alguns casos, a história e a localidade são impressos nos objetos estéticos como forma de especificidade.

As buscas destinam-se ao relato de histórias individuais, às particularidades das origens dos artistas, à genui-nidade de lugares, ao entendimento do cotidiano urbano e do seu papel na sociedade. Contudo, todos procuram, através do trabalho artístico, dar sentido à existência, seja a sua própria ou a da coletividade. No mundo atual, pressionado por uma força de “pasteurização” de valores, surgem propostas de reafirmação da individualidade e da localidade, utilizando a memória como arma de “resistência”.

Nesse sentido, desvelar memórias pessoais e a configuração de um olhar atento para dentro de si torna-se movi-mento de resistência contra a apatia e a amnésia - sentimentos gerados por um contexto de excessos, estabelecido pela cultura da mídia eletrônica e cibernética que produz o máximo de informação contido em um mínimo de tempo, gerando um estado de ansiedade incessante, focado na tentativa de acompanhar os fatos que são ofere-cidos a cada instante repetidamente. Muitos artistas contemporâneos põem em debate a comercialização das memórias através das impressões maquínicas (TV, Internet, jornais entre outros veículos de comunicação). A lei-tura pessoal das memórias se contrapõe à amnésia e a apatia social que o oferecimento freqüente de informações acarreta na cultura atual.

O fascínio dos artistas por histórias relaciona-se à atração pela convenção (na permanência ou na ruptura dela), pela nostalgia e pela memória das narrativas já conhecidas. Esse fascínio transforma a produção dos artistas con-temporâneos em obras/textos, cobertas de “narrativas enviesadas” ou abertas para si mesmas:

A arte torna-se comentário sobre o tempo e a vida, que toma o corpo de uma escritura, tão subjetiva como o próprio alfabeto. É conhecimento flexível mais imprescindível – um conhecimento que se abre ao observador como um estranho livro, que a narrativa contida se assume de acordo com seu próprio olhar.

A arte como comentário abre espaço para diferentes linguagens e, mais do que isso, para figuras de linguagens, ou, ainda, metáforas (do grego, metaphora = transporte, junção) diversas que narram os acontecimentos e senti-mentos envoltos na contemporaneidade. Através da metáfora, a arte expressa formas de conhecimentos possíveis e atuais. Essas metáforas são cada vez mais complexas. Podem estar encravadas nas poéticas visuais ou repre-sentar uma circunstância específica vivenciada pelo o artista e seu público. Podem estar presentes em elementos compositivos na obra ou até mesmo surgirem pela ausência destes.

Nesse contexto, emerge a discussão referente à seriação, repetição, acumulação e citação – elementos compo-sitivos transmissores de metáforas. Esses elementos têm reminiscências na arte moderna, porém na contempo-raneidade assumem linhas radicais. Os artistas contemporâneos através da seriação, repetição, acumulação e ci-tação de elementos na produção estética misturam mitologias públicas e privadas. Jogam, metaforicamente, com as memórias pessoais e coletivas. Através desses elementos, a obra de arte não está isolada na sua forma objetual, mas abrange diferentes variantes: poética do artista, vida, técnica, elementos compositivos, entre outros fatores.

A repetição de elementos compositivos apresenta-se como a confirmação do presente que não envelhece que se condiciona em transe celebrativo. O mesmo elemento se repete obsessivamente durante a trajetória do artista, como por exemplo, as bandeirinhas de Alfredo Volpi. Já a seriação pode ser repetição (e vice-versa). Porém, se

64 65Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.

configura como seriação que assume uma forma sistêmica, articulada pela experiência artística e que desnatu-raliza o sistema clássico de representação. Na seriação o elemento se transfigura como se ocorresse uma “nova variação sobre o mesmo tema”. A acumulação, na modernidade e contemporaneidade, é liberada pela permis-sividade e pelo desperdício da indústria e da tecnologia, gerado pelo fenômeno de fetichização e patronização da cultura – este procedimento sobrepõe repetição e seriação. A citação advém da necessidade dos artistas em usar arquétipos universais e inevitáveis. Estes seriam utilizados de modo articulado e transformados em arte representacional, ou ainda, serem suprimidos, com o risco de simplesmente dar uma nova roupagem às alegorias tradicionais , conferindo-lhes certo “ar contemporâneo” e falso, ao invés de propor novas investigações sobre os temas do passado.

Muitas vezes, na arte contemporânea, as narrativas não se prestam à exaltação de eventos e tão pouco à gran-diosidade de um homem envolvido em ações nobres. Inexiste uma moral implícita, as alegorias, nem sempre identificáveis, tangenciam histórias difusas, possibilitando um labirinto de especulações, muitas vezes utilizadas sob o pretexto de “retorno à pintura” e ao “exercício do retrato de uma visão particular”. A hierarquia clássica e o lugar dos acontecimentos desaparecem e são substituídos pela associação enigmática e democrática com ares antigos. Há uma “presença da ausência”, um “sentimento de que a cultura há muito se foi e de que a festa está em outro lugar”.

A figura humana retorna ao cenário artístico, porém, apresenta um desequilíbrio perturbador, um aspecto de fragilidade e cansaço. Na representação contemporânea, em algumas poéticas, a figura humana está recortada e fora do centro da composição. O homem deixa de ser o centro e a medida de todas as coisas, resta-lhe somente observar atônito o cotidiano para dar o seu próximo e indeciso passo carregado de obscuridade e melancolia, mas, paradoxalmente, com certa dose de ironia.

A dúvida e o ceticismo pairam sobre qualquer tentativa de imposição de “grandes verdades”, resta à auto-consciência perceber que a inocência se perde e que será necessário “ir além”, não se prendendo às teorias e às descobertas científicas. É necessária uma aceitação, sem restrições, às manifestações culturais de outros setores da sociedade. Essa atitude torna-se contrária ao modernismo que propõe uma elite “avant gard” versus uma cultura de massa, sem possibilidades de pontos de contato. Os procedimentos de repetição, seriação, citação e acumulação mimetizam e criticam a racionalidade técnica, utilizando principalmente a memória do artista que se refere às metáforas envoltas nos procedimentos, mas também a do espectador, responsável por decodificar as memórias guardadas.

Desse modo, a estreita ligação entre arte e memória decorre de suas implicações narrativas, cognitivas e emoti-vas. Tal qual a história, a arte debate-se entre romper ou não com a memória. Contudo, as margens desse embate apresentam-se tênues e subjetivas. Percebe-se que a memória utilizada em arte é a somatória da voluntária e involuntária. E isso provoca grande diferencial. Se na história tenta-se apartar (sem muito sucesso) os valores subjetivos da memória involuntária, na arte, a partir do século XX, principalmente, após as vanguardas históricas e os fenômenos da modernidade, o uso da memória involuntária sobrepõe ao uso da memória cognitiva. A arte se-ria o revés da história? Não. Nenhum dos sistemas consegue livrar-se totalmente da interação entre as memórias. E é essa nuance entre as memórias que transforma as relações entre história/memória/arte complexas e próximas.

Em síntese, tem-se que a memória, em seus efeitos de reconstrução do tempo, é convocada e interrogada pelo historiador, e não exatamente o passado. Nesse contexto, o tempo passado só existe como fato de memória: seus aspectos fundantes são retirados por intermédio de um processo de decantação sempre atualizado em presente

continum. A memória, então, decanta o passado de sua exatidão. É ela que humaniza e configura o tempo, en-trelaçando os fatos. Por sua vez, a obra de arte permite sua leitura como montagem de tempos diferentes, o que significa dizer que existem formas diversas de repensar as relações entre o agora e “o não mais agora”. As obras de arte formam um novo modelo de temporalidade, especialmente, as obras contemporâneas que aliam diferentes tempos (o cronológico, o psicológico, o recriado e muitos outros).

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Recebido em 17 de Novembro de 2010. Aprovado para publicação em 18 de Agosto de 2011

67Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

66Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 59-66, 2011.

Performance “Carimbada”: Uma proposta poética de desterritorialização do corpo

feminino brasileiro em terras lusitanas.

The art and the sacred in the origin of the topology of the psychic apparatus

Janaina Teles BARBOSACientista Social e Artista Visual. Mestre em Design da Imagem pela Universidade do Porto-Portugal

This work builds up a poetic speech, using the body as an artistic expression, through the per- formance in public space, based on the conceptual experiences of the researcher, as well as artistic studies, sociological and anthropological on the social representations that surround the daily life of the Brazilian women in the Portuguese society.

Este artigo partiu da minha tese de mestrado em Design da Imagem da Universidade do Porto em Portugal. O es-tudo tem como fito apresentar uma leitura criativa, através da performance corporal em espaços públicos, acerca das representações sociais sobre a mulher brasileira construídas no cotidiano da sociedade portuguesa. O estudo partiu da minha vivência na condição de mulher, de nacionalidade brasileira, artista, designer e pesquisadora, compartilhando provisoriamente o cotidiano português durante dois anos.Por meio de uma produção imagética conceitual, ou seja, uma produção artística, procurei construir um discurso poético sobre a mulher brasileira e suas representações no imaginário português, para assim contribuir na com-preensão acerca dos processos de produção dos estereótipos que estes corpos sofrem. Para isto participo de uma “corpografia” que propõe uma desterritorialização do corpo feminino brasileiro ampliando olhares referencias que vão além deste universo imaginado que interfere na vida quotidiana de muitas brasileiras que vivem em Portugal. Esta produção propõe a utilização das práticas experimentais e criativas como metodologia de pesquisa em áreas do design e da comunicação, na tentativa de construir olhares mais críticos acerca da produção e consumo de informações imagéticas na sociedade contemporânea, contribuindo assimpara uma quebra de fronteiras culturais que geram preconceitos entre Brasil e Portugal, numa perspectiva de compreensão mais ampla acerca dos pro-cessos migratórios.Muitos estudos revelam que dentre a diversidade de imigrantes estrangeiras, a mulher brasileira, na sociedade européia, carrega muitos estereótipos, os quais interferem diariamente em suas vidas. Tais estereótipos estão re-lacionados ao fato de sua imagem estar vinculada a objeto sexual. As causas desse fato encontram-se em fatores históricos e sociológicos que contribuem para a produção deste imaginário coletivo tanto na Europa como no Brasil. Entre os latino-americanos residentes em Portugal, o número de brasileiros é relevante, correspondendo a mais de 90% entre estes imigrantes. Entre 1986 e 2003, o índice de brasileiros cresceu quase nove vezes, passando a sua percentagem, no total dos estrangeiros regulares, de menos de 9% para aproximadamente 15%. O fenômeno da migração brasileira em particular, é cada vez mais presente nos meios de comunicação e em debates políticos

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Trabalhos em PV - Vol 2

modernisTas conTra acadêmicos? a PinTura de hugo adami

la mirada cinemaTográfica generacional

federico fellini, enTre críTica e nosTalgia

e muiTo mais...

Este trabalho constrói um discurso poético utilizando-se do corpo como uma expressão artística, através da performance em espaços públicos, baseado nas experiÊncias conceituais do pesquisador, assim como estudos artísticos, sociológicos e antropológicos na representação social que cerca a vida cotidiana das mulheres brasileiras na sociedade Portuguesa.

Palavras-chave: corpo como uma expressão artística, vida cotidiana das mulheres brasileiras

Keywords: body as an artistic expression, daily life of brazilian women

68 69Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

e acadêmicos. Em 2006, calculava-se que viviam em Portugal mais de 100 mil imigrantes brasileiros. Hoje, este número estar bem mais elevado. (MALHEIROS, 2007)Os processos migratórios sempre causou conflitos na história da humanidade, na medida em que dois povos, apesar das ligações históricas, entram em contato, pois as diferenças culturais, muitas vezes, causam estranha-mentos e preconceitos. Outro fenômeno que é gerado nesse processo é a produção de estereótipos sobre o outro, especialmente com relação a mulher.No caso do Brasil vale remeter-se ao estudo sobre o processo de miscigenação, em que explica-se a mistura de raças de seu povo. Ao evidenciar o “mito da democracia racial” existente no país, Gilberto Freyre (1992), em Casa-Grande e Senzala, aborda a influência do escravo na vida sexual e familiar brasileira, através de uma visão erotizada das escravas. Esse estereótipo foi difundido, sempre relacionando a mulata a sabores exóticos. Assim, segundo Piscitelli (1996), o que seria atualmente reconhecido como intrínseco à mulata brasileira é sua alegria, sensualidade, juventude, afetividade, submissão, docilidade, enorme disposição para o sexo e uma certa passivi-dade. Atualmente este processo é intensificado por fatores sociais, como as fortes diferenças econômicas entre as pessoas, que contribui para que o Brasil apresente um número elevado de turismo sexual. Diante disto este estudo partiu da premissa de que todo corpo carrega identidades que o mapeia, construindo referências, memórias e simbologias. No embate com outros universos referenciais, estas identidades afloram, ganham vida e fortificam-se. Neste processo de tomada de consciência de si mesmos, descobrem-se como se é visto pelo outro, através dos chamados estereótipos que rotulam as pessoas. A experiência da alteridade faz com que o ser humano perceba a si mesmo em suas particularidades, abrindo es-paço para fortalecimentos de laços identitários. Esse processo pode parecer estável, resumindo-se na constatação da diferença no processo de reconhecer-se no outro, mas seria apenas a primeira etapa de um processo dialógico, bastante dinâmico e rico quando há uma troca em que acontece tanto um fortalecimento das identidades, como uma transformação, causada por influências mútuas. É nesse contexto que percebemos que somos constituídos de várias identidades em constante mutação e não somente uma. Percebe-se cada vez mais na contemporaneida-de um intenso trânsito de informações que promove uma quebra de fronteiras identitárias antes delimitadas por estados-nações. A sociedade da informação juntamente com fenômeno das migrações traz um novo panorama nos processos de trocas culturais na contemporaneidade. Apesar disso não podemos perder de vista o forte jogo de forças ditado pelo poder econômico, que ainda se configura entre blocos de países de todo o mundo e influen-cia fortemente as trocas culturais.Neste universo, a imagem simbólica da mulher brasileira em Portugal apresenta-se de uma maneira ainda mais forte. Quando falamos deste grupo social, o fator sexualidade é apontado como forte integrante das representa-ções sociais, constatamos então uma íntima relação entre as dimensões de gênero e nacionalidade. Nas entre-vistas realizadas neste trabalho, revelou-se o constante incômodo das mulheres com a quotidiana associação de sua nacionalidade a imagens de mulheres sensuais, que sabem sambar e extremamente vulneráveis ao sexo.Estas imagens são construídas também pelo Brasil como veículo para a construção de uma identidade nacional mer-cantilizada. Como um negócio, o turismo produz e reproduz estereótipos exotizantes, vendendo dentre imagens culturais e paisagens, corpos de morenas semi nuas. Neste processo, corpos mapeados são constantemente desmapeados e novas corpografias são construídas. No caso específico deste estudo, faço uma tentativa de sair das ruas principais deste grande mapa corporal feminino brasileiro, e desbravar ruelas, descobrindo atalhos que possam oferecer uma compreensão mais ampla e sensível destes processos. Desta forma flanei no cotidiano urbano para realizar a parte prática do projeto,dialogando constantemente com três dimensões de conhecimento que cruzaram-se a todo instante, ou seja, quando coloco--me ao mesmo tempo como pesquisadora ou observadora, pesquisada ou sujeito agente da pesquisa, e criadora ou artista. A arte aqui encontra-se como canal de expressão e comunicação, através da qual tento construir este discurso po-ético através da imagem, objetivando a abertura de brechas na realidade que suscitem questionamentos ou pontos de partidas para discussões e pensamentos sobre a realidade que me cerca. Desta forma o aspecto contestatório da ação artística é bastante relevante aqui e nela o papel do artista.

O crítico de arte Nicolas Bourriaud (1998) aponta atualmente para as “utopias de aproximação”, que são práticas artísticas que se estendem num vasto território de experimentações sociais e que pretendem agir, gerando novas percepções e novas relações de afeto, num mundo regulado pela divisão do trabalho, ultra-especialização e pelo isolamento individual. Para o filósofo francês, a arte contemporânea desenvolve um projeto político, esforçando--se em investigar e problematizar a esfera relacional. Dentro do campo simbólico que se desenrola o tecido urbano, constituído por percursos humanos programados, segundo Debord (1997), o habitus artístico pode intervir e talvez invocar sensibilidades adormecidas. É quando uma frágil barreira pode ser quebrada e num piscar de olhos ou num suspiro, a arte virar vida. Ela não produz res-ponsáveis ou salvadores, apenas suscita aos sujeitos um retorno a uma memória artista ancestral de um tempo em que indivíduo e arte não se dividiam, quando não existiam fronteiras e tudo fazia parte de uma mesma dimensão. É em busca disso que trabalho com o “corpo des-mapeado”, um corpo mutante e criativo com sentidos mais aguçados a tudo que o cerca. Ele tenta fugir da fragmentação que lhe é prometida a todo instante. Um corpo que estranha-se e brinca com suas vestimentas, usando-as quando acha que é necessário, como também, ao transmutar-se, deixa-as no caminho para serem vestidas por outros corpos. Este corpo tenta encontrar atalhos desviando-se dos caminhos ditos principais, mas muitas vezes utiliza-os como ferramenta afim de chegar a algum lugar onde possa dialogar, vivenciar e inventar novas rotas.Foi nesta perspectiva que surgi a performance “Carimbada”, realizada no Brasil em agosto de 2010, na cidade de Fortaleza, e em seguida em Portugal, em maio de 2011 na cidade do Porto.

A ação consistiu em andar por um espaço público e aos poucos auto carimbar-me com o nome “MULHER

BRASILEIRA”. Depois de marcar todo o meu corpo, olhando para um espelho, retiro da bolsa um batom verme-

lho que passo exacerbadamente nos lábios e nas partes íntimas. O carimbo, objeto que taxa e marca, foi utilizado

como simbologia dos processos de construção de estereótipos dos corpos femininos. O batom vermelho traz

uma simbologia de beleza, sensualidade, mas também de dor. O espelho participa da obra não como objeto que

intensifica a formação do ego deste modelo de mulher construído socialmente, mas como testemunha de um auto

reconhecimento desta mulher marcada e estereotipada, abrindo possibilidades de processos de resignificação de

70 71Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

identidades.

Na primeira versão ocorrida no Brasil ocorreu interação com público que ocupava aquele mesmo espaço.

Iniciei a ação agindo como uma simples participante do evento e, conversando com amigos, comecei a marcar o

meu próprio corpo. Logo depois despedi-me daquele grupo e fui percorrer a praça parando em alguns momentos

para marcar mais uma área do meu corpo. Sentei no chão, no meio da praça, e marquei todas as minhas pernas

e braços, pedindo em seguida às pessoas que me carimbassem em lugares que eu não podia ver.Após esta etapa,

levantei a roupa para carimbar as partes íntimas do meu corpo. Percebi que neste momento comecei a chamar

mais atenção do público, no entanto, continuei marcando minhas partes íntimas, como também interagi com

homens que passavam por mim oferecendo-lhes o carimbo para que marcassem o meu corpo.

A ação gerou vários tipos de reações, desde olhares desconfiados, até pessoas que parabenizaram o trabalho.

Um rapaz homossexual pediu que eu o carimbasse suas nádegas, talvez sentiu-se identificado pela ação. Uma

moça disse “é isso aí, mulher é só bunda, só carne”, parecia que ironizava, ao mesmo tempo que confirmava a

atitude do rapaz. Outras mulheres

pediram para ser marcadas com

o carimbo e saíram dizendo “sou

sim, muito brasileira”. Homens

também pediam para serem carim-

bados. Muitos pediram-me expli-

cação para tudo aquilo, eu ficava

calada na maioria das vezes, sabia

que só a ação já falava muito, as palavras não faziam parte da obra, meu corpo e o que eu fazia já trazia e oferecia

um discurso.

Estas questões tinham a intenção de suscitar reflexões que contribuíssem para o esclarecimento de alguns

conceitos. A primeira pergunta intentou para significados acerca do estereotipo da mulher brasileira. Seria o es-

tereotipo uma máscara? Uma máscara que pode ser manipulada, transformada? Ou uma máscara que esconde as

particularidades de cada mulher brasileira que vive em Portugal?

A segunda pergunta pretendia possibilitar a manipulação ou releitura da máscara criada por/para cada pessoa:

Estaria construindo minha própria imagem? Seria uma imagem diferente? Ou seria uma utilização da imagem já

construída no imaginário coletivo da sociedade portuguesa?

Com estas questões em mente, sentei ao lado de uma senhora, ao pedir para ajudar-me, ela perguntou porque

eu fazia aquilo, pois meu rosto estava ficando feio e que assim não conseguiria uma imagem bonita, mesmo as-

sim, atendeu ao meu pedido. Seu marido chegou e ele também muito simpático marcou as minhas costas e logo

depois foram-se os dois.

Continuei aquele ritual sozinha sentada no banco na rua. De repente, um rapaz que tinha saído do meu lado

e sentara-se no vaso de plantas ao lado, recusou-se em participar, mas trocou algumas palavras comigo. Ele

comentou que eu não estava nada bonita e que um “sabãozinho e uma água resolveria isso”, sugerindo que eu ca-

rimbasse somente os braços. Logo após a esse episódio, passei por um café e pedi ajuda para umas mulheres que

lá sentavam. Elas mostraram interesse em participar, uma delas escolheu com cuidado uma parte do meu corpo

para marcar, as costas. Interagiram rindo. Uma jovem disse que não precisava construir uma imagem melhor, eu

já era bonita.

72 73Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

Prossegui com minha peregrinação e percebi que cada vez mais chamava atenção. As pessoas das lojas mo-vimentavam seus corpos para matarem a curiosidade. Sentia que alterava o movimento normal da rua. Era um corpo estranho naquele fluxo com movimentos previsíveis, contatos e objetivos. Havia muitos artistas de rua. Interagi com suas estéticas.

Mais a frente, depois de cerca de quarenta minutos quando meu corpo já estava bastante marcado, parei no meio da rua e lavei-me em publico, retirando todas aquelas marcas do meu corpo. Repentinamente, formou-se um círculo com muitos transeuntes que ali pararam e ficaram a olhar-me. Eu era o alvo daqueles olhares curiosos. Esperavam provavelmente que eu fizesse algo de espetacular e talvez pensavam que bateriam palmas depois disso. Mas não fiz nada, só lavei-me, pus a água escura numa garrafa de vidro transparente e depois uma flor branca. Este ato da performance simbolizava uma ação contra o processo de taxação que meu corpo juntamente dos outros corpos femininos sofriam. A flor simbolizava vida e renovação quando pode ocorrer a recriação destes estereótipos ou uma resignificação de identidades. Foi então que levantei-me, pus a garrafa na cabeça e comecei a caminhar cuidadosamente e lentamente, fazendo todo o trajeto num constante jogo de equilíbrio.

Nesta performance assumi minha estranheza em terras lusitanas. Em Portugal sempre senti-me como um corpo estranho e deslocado, tenho a sensação que sempre estou sendo observada, vigiada em espaços públicos. Na performance colocava agora meu corpo estranho a serviço destes olhares. Eu era a agente, permitia agora que me olhassem. Oferecia códigos, sinais de um discurso, uma idéia, ou talvez um grito, um alerta.

Nestas experimentações meu cor-po apresenta-se como um território que participa como elo de ligação, co-locando-se como canal de comunica-ção com o meio, com o público, e com os lugares que transito. Nos trabalhos performáticos o habitus corporal, ou como chamo aqui, o “corpo des-ma-peado”, pode ser visto como capaci-dade geradora de práticas, disposição adquirida socialmente, num processo de construção e desconstrução, pode conter uma parte de inventividade e adaptabilidade, que permite uma coe-xistência entre aspectos de permanên-cia, improvisação e transformação. (BOURDIEU, 2002)

Desta forma, o corpo em diversas esferas da vida humana passa por pro-cessos de objetivação e a arte é uma

74 75Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

destas esferas. Numa óptica tradicional da estética artística, conceber o corpo como objeto de arte seria impossí-vel, pois uma vez construída a obra de arte nunca mais é retocada, constituindo um exemplo de idealização deste corpo. Aí ele é apenas o modelo, uma inspiração para um corpo ideal, intocável, único e místico. Nesta ótica o corpo é oposto a obra de arte, pois está em constante metamorfose.

Nas performances descritas acima essa capacidade de transformação e efemeridade do corpo humano são essências do processo criativo. Esta maneira de conceber o corpo dentro da arte proporciona uma quebra de fronteiras entre o corpo utilizado como objeto e este corpo inserido na própria vida quotidiana, relacionando-se com aspectos antropológicos.

Na ótica antropológica podemos conceber que todas as formas de representar o corpo, para nós e sob o olhar do outro, traduzem uma maneira de ser no mundo, como se o corpo não fosse nada sem o sujeito que o habita. Cuidar deste corpo não é tratá-lo como objeto, é afinal considerá-lo como sujeito de nossas representações e de nossos pensamentos. (JEUDY, 2002)

Neste processo, um aspecto interessante a colocar aqui é a fuga da morte deste corpo por meio da criação artística. Na realidade quotidiana o corpo é um território imaginado dentro ou fora do seu território de referencias simbólicas. Dentro ou fora do Brasil, o corpo da mulher brasileira, por exemplo, é cercado de estigmas construí-dos para satisfazer desejos humanos, sejam femininos ou masculinos. Jeudy (2002) coloca que a todo momento nossos corpos estão propensos a processos de objetivação. Na dimensão do amor, por exemplo, colocamo-nos a serviço do outro que então é idealizado e utilizado para o prazer de ambos. Esses processos que geram ilusões de nossos próprios corpos, segundo o autor, são essenciais para dar sentido a eles e assim fugirem da constata-ção material de suas existências, ou seja, da morte. Visto como corpos diferentes capazes de agirem diferentes, o corpo da mulher brasileira trazem a tona questões de gênero e sexualidade, sendo fruto de um mapeamento cultural que envolve outras questões além da simples designação de serem diferentes, correndo o risco constante de sofrerem a morte deste corpo vivo e dinâmico.

Porém essa realidade ilusória pode muitas vezes ser desvendada, utilizada e manipulada, como também trans-formada. Esse princípio consagra a idéia de que nosso corpo nos pertence, isso ocorre na medida em que somos sujeitos do objeto que ele representa, o que faz persistir uma dúvida acerca da realidade (JEUDY, 2002). Isto acontece neste trabalho com o processo criativo da performance, em que utilizo-me de meu corpo para questio-nar-me sobre essa realidade construída sobre mim mesma, gerando dúvidas sobre esta visualidade tratada como real, na busca de novos sentidos e de novas rotas de fuga da morte de meu próprio corpo.

Agindo como a própria arte, o corpo apresenta-se como ato único, deixando-se de lado a objetivação, cons-truindo assim um discurso diferente do textual. É como na dança em que, segundo Jeudy (2002), muitas vezes ironiza-se com o peso das palavras ou o ato de interpretação, ao desenhar seu próprio discurso.

Nas ações performáticas meu corpo sofre dois deslocamentos. O primeiro acontece pelo fato ser mulher es-trangeira e o segundo deslocamento no próprio ato artístico. No momento em que meu corpo foi deslocado ao ser posto em espaços públicos, abrindo possibilidades diversas de diálogo, provoca também um deslocamento no público. Aquele que até então vigiava, agora neste estado de ação criativa, é chamado para diálogo abrindo possibilidades diversas de ações, falas, desabafos, impressões, dúvidas, questionamentos, angústias etc.

O público apresenta-se não como público tradicional com a função de assistir e aplaudir, como num espaço no campo artístico de fruição, fechado e institucional. Ele é chamado para aquele “espetáculo” e convidado a deslocar-se dentro da sua aparente normalidade quotidiana. A rua e tudo que ela oferece são colocadas sobre um palco ilusório abrindo possibilidades diversas de desvios. “Todo o mundo é um palco, e é apenas um caso de

indivíduos empreendedores tomarem o papel de realizadores para improvisar uma nova realidade.” (MCCOR-MICK, 2010, 52)

Na performance realizada no Porto, um senhor ficou muito curioso com o que estava acontecendo e parou um instante o seu percurso, perguntando-me qual a minha motivação para aquele ato. Aconteceu um diálogo onde foram colocadas impressões sobre a imagem da mulher brasileira. A conversa foi construída de maneira espon-tânea e intuitiva. Apesar daquela ação ter uma certa justificativa, a intenção era envolver aquele senhor na ação, provocá-lo com perguntas. Para ele a imagem da mulher brasileira era boa e que não pode-se generalizar tudo, como mostra o diálogo abaixo:

- Não seria uma imagem comercial?

- Eu acho que todas as sociedades são reacionárias em princípio. A mudança é um processo.

- É um processo rico. Leva muitos anos.

- Há alguns anos atrás não a encontrei com uma garrafa na cabeça.

- Talvez seja a minha tataravó.

- Então vens com uma família que tenta um equilíbrio. Gosto da palavra. Espero encontrá-la com

o equilíbrio.

- Acho que ainda não sou capaz.

- Mas as utopias também são dignas de orientação.

- Sim, também acho. Elas nos levam a dar mais um passo.

- Posso assegurar que sim.

- Obrigada pela conversa.

- Adeus.

As ações misturam-se aos movimentos urbanos na tentativa de expressar-se, de dizer algo e abrir espaços para falas diversas, na construção coletiva de diálogos poéticos e criativos. Porém, na medida em que algo precisa ser dito, muitas vezes isso adquire caráter de invasão, gera incômodo. Em “Trespass, história da arte urbana não encomendada” (2010) autores falam que na arte de rua, quando uma propriedade é violada, o maior tabu que é rompido é a dimensão psicológica do espaço. Os objetivos da utilização daqueles espaços supostamente coleti-vos para a criação artística vão além das limitações que dizem o que é arte e o que não é, ou seja, afirmam-se no próprio ato artístico que aqueles espaços e as pessoas que transitam nele fazem parte daquela arte. Neste percurso em que ocorrem interações e incômodos, criam-se espaços emocionais que podem ser efêmeros, mas interfere de alguma forma com aquele fluxo normativo. (MCCORMICK, 2010)

De acordo com a análise de Laura Mulvey (1983), quando discute as relações e significados no cinema nar-rativo e o lugar da imagem da mulher, existem três olhares associados com o cinema: o da câmara que registra o acontecimento pró-fílmico, o da platéia, quando assiste ao produto final, e aquele dos personagens dentro da ilusão da tela. As convenções do filme narrativo rejeitam os dois primeiros, subordinando-os ao terceiro, com o objetivo consciente de eliminar sempre a presença da câmara intrusa e impedir uma consciência distanciada da platéia.

76 77Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

Segundo a autora esta interação complexa de olhares é específica ao cinema, mas ela propõe alternativas de quebra desta ilusão. O primeiro golpe é libertar o olhar da câmara em direção à sua materialidade no tempo e no espaço, e o olhar da platéia em direção á dialética, um afastamento apaixonado. Isto destrói o prazer do especta-dor e ilumina o fato do quanto o cinema dependeu dos mecanismos voyeuristas ativo\passivo. (MULVEY, 1983).

Algo parecido acontece na ação performativa ao lidar com um público que até então encontra-se desavisado, pois ela invadi a materialidade da realidade social, encontra poética nesta própria materialidade e propõe diálo-gos e construções alternativas com este público.

Apesar de lidar com o acaso e a espontaneidade como elementos essenciais no processo criativo, no trabalho “Carimbada” certos aspectos precisaram ser programados, como a escolha do espaço. Na teoria da ´Dèrive`, Debord (1958) afirma que as cidades são sitiadas e os percursos das pessoas são programados através de pon-tos fixos que impedem muitas vezes livres fluxos entre seus espaços. Desta forma, segundo ele, a rua pode ser mapeada e a ´Dèrive` é realizada dentro do domínio das variações psicogeográficas através do cálculo de pos-sibilidades. Nesta perspectiva, em “Carimbada”, escolhi uma rua comercial onde supostamente os olhares das pessoas que por ali passam são guiados por objetivos comerciais. Esta suposição foi relacionada com o fato da manipulação da imagem da mulher brasileira, a qual é vendida e comprada como produto cultural.

Um outro aspecto característico e implícito deste trabalho é a questão de identidade. Pensar neste conceito relaciona-se diretamente com o deslocamento sofrido por mim, do Brasil, meu país de origem, para Portugal. No encontro com o outro abriram-se possibilidades de pensar como sou vista por outrem e como vejo-me a mim mesma. É no diálogo destes dois campos simbólicos que este trabalho nasceu e desenvolveu-se.

Quando pensamos em identidade, corremos muitas vezes o risco de pensá-la como algo fechado, como uma caixa embalada que contém uma certa quantidade de símbolos que identificam certo grupo social em um territó-rio geográfico específico. Pensar identidade desta forma é perder de vista os aparatos históricos que o sustentam. Esta idéia emerge no interior de um jogo de poderes que marcam a diferença e a exclusão, e é sustentada por Estados com diversos objetivos, como por exemplo: assegurar uma suposta essência cultural ou fazer-se como produto cultural rentável economicamente. (HALL, 2000)

Como já referido, existe no imaginário português representações simbólicas sobre o que é Brasil e sobre o que é a mulher brasileira. Existe então uma imagem fictícia que é vendida e comprada acerca da mulher brasi-leira como a mulata, simpática, que sabe sambar e que é boa para o sexo. É mais um produto cultural mediático bastante rentável que esconde as tramas de poder entre seres humanos, entre povos e entre sexos. Esta imagem estática influencia fortemente no tecido social, configurando-se novas identidades numa costura realizada pelas próprias agentes.

O conceito de processos de “identificação”, remete à noção de identidades como reconhecimento do sujeito de características que são partilhadas ou não com outros grupos ou pessoas. É como algo em construção dentro de um processo em constante transformação. Segundo Hall, nesta perspectiva, identidades são pontos de ape-go temporário às posições de sujeitos que as práticas discursivas constroem para estes sujeitos, ou seja, o que acontece é uma negociação com suas posições ocasionando o que ele chama de pontos de sutura. (HALL, 2000). Nesta perspectiva as entrevistas feitas com mulheres brasileiras residentes em Portugal demonstraram o quanto são modeláveis suas identidades, ponto abordado na leitura corporal da performance deste trabalho.

Nos processos de globalização, incluindo o fenômeno da migração pós-colonial, em que ocorre um trânsito

cada vez maior entre as pessoas de diferentes espaços no mundo, tem perturbado o caráter aparentemente “esta-belecido” de muitas populações e culturas. Em vez de uma mistura o que ocorre neste processo é uma volta as especificidades culturais que recorre a um passado histórico. Porém, segundo Hall (2000), este processo acontece na busca não daquilo que nós somos, mas daquilo no qual nos tornamos. “Têm a ver não tanto com as questões “quem nós somos” ou “de onde nós viemos”, mas muito mais com as questões “quem nós podemos nos tornar”, “como nós temos sido representados” e “como essa representação afeta a forma como nós podemos representar a nós próprios”.” (HALL, 2000, p.109) Isso tem a ver com uma negociação com a tradição na invenção de novas rotas, e não uma suposta volta as raízes. Porém neste diálogo persiste uma carga ficcional na formação de novas identidades.

Todas estas questões foram abordadas no texto corporal da performance “Carimbada”. Na primeira versão, realizada no Brasil (p.26), traz uma constatação da problemática através de um reconhecimento territorial do meu próprio corpo. Este, depois de vivenciar uma realidade cultural diversa durante aproximadamente um ano, volta novamente a sua “origem”, o Brasil, agora com uma identidade negociada, portanto diversa. Posso dizer que aconteceu nesta fase o que Hall (2000) chama de sutura, em que ocorre um diálogo entre as identidades, verificando-se a consciência de mim mesma envolvida em estruturas maiores. É então que o meu corpo expressa--se no ato de auto-rotular-me em espaço público ao marcar-me e fazer-me marcar inteira com o título “Mulher Brasileira”, utilizando-me da expressão artística para ironizar com as próprias representações que são impostas a mim. Ao brincar com o ato de representar e ser representada, talvez a performance remete à questões colocadas por Hall (2000) neste constante processo de negociação.

Enfim, tais experiências criativas podem ser comparadas um pouco ao que Butler (2010) chama de subversão da identidade, que acontecem no interior das práticas de significação reguladoras. As práticas artísticas podem adquirir este papel de subversão, quebra e deslocamento. “Assim como as superfícies corporais são impostas como o natural, elas podem tornar-se o lugar de uma performance dissonante e desnaturalizada, que revela o status performativo do próprio natural.” (Butler, 2010, 210)

Posso dizer que estas ações performáticas foram concebidos não como obras de arte inovadoras, mas como experiências, trabalhos experimentais, ações criativas e intervenções artísticas, inspiradas no que eu sinto e penso sobre a essência da arte. Uma arte que não dependa dos espaços institucionais mas que utilize-se deles apenas como mais uma ferramenta, que não procure gênios mas que dissemine sementes, que ajude o ser humano a repensar a sociedade e transformá-la. Não falo de uma arte política, mas de uma política e de todas as esferas da vida que fossem a própria arte.

Na contemporaneidade a arte contemporânea propõe-se a modelar mais que representar, pretende inserir-se e agir dentro do tecido social mais do que inspirar-se nele. Desse ponto de vista, a obra de arte constitui-se como um interstício social, um espaço de relações humanas que, ao integrar-se mais ou menos harmoniosa e aberta-mente no sistema global, sugere outras possibilidades de intercâmbio do que aqueles vigentes nesse sistema. Dessa forma, a tarefa da arte contemporânea no campo do intercâmbio das representações é criar espaços livres, propor temporalidades, cujo ritmo atravesse aqueles que organizam a vida cotidiana; favorecer relacionamentos interpessoais diferentes daqueles que nos impõem a sociedade da comunicação.

Acredito que socialmente estes questionamentos colocados neste estudo podemalargar o campo de atuação das mulheres na luta pelos seus direitos na sociedade, contribuindo para a discussão sobre os fluxos migratórios femininos e suas implicações, ou particularmente da mulher brasileira; como tambémdeixando pistas na utili-zação de ferramentas metodológicas que dialoguem dentro do campo da arte, do design e das ciências sociais.

79Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.

78Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 67-78, 2011.

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Recebido em 11 de Março de 2010. Aprovado para publicação em 15 de Setembro de 2011

As regras do génio Notas sobre os quadros sociais da criatividade artística

The rules of geniusGrade about que social pictures with the artistic creative.

Pierfranco MaliziaCatedrático da università de Roma, Itália

Este artigo parte de um tema básico e de uma hipótese: o tema é a idéia de que - sem nada contra o sistema “competencias - capacidades - geniosidade” que faz um artista, quer dizer, a individualidade, subjetividade do artista e sua criatividade, etc. - o mesmo artista pensa - age - cria numa sociedade que sofre o processo de socialização, onde ele vivencia as instituições, a economia, a política, etc., onde ele estabelece relacionamentos fortes e duradouros.

“A criatividade é uma qualidade de definição não simples, que tem a ver com a energia, a inteli-gência, a agressividade, a ambição, a capacidade de pensar novos problemas e encontrar novas soluções para problemas antigos, de mudar mentalmente de forma inovadora elementos já dados, de simular rapidamente o resultado de cursos complexos de acção, de alcançar razoavelmente e coerentemente objectivos estabelecidos, de sintetizar novas formas com base em elementos (informa-ções) dados, etc. ” (Strassoldo, 2001; p. 94)

Provavelmente, a característica mais significativa dos “criativos” consiste no ser capaz de assimilar estímulos que frequentemente não concordam entre eles, e com base nisto, produzir “a novidade”. Esta capacidade combina-se com a tendência a modificar profundamente o existente, esperando de poder,

antes ou depois, obter alguma coisa útil, que leve vantagem: tudo isto, de fato, comporta coragem e esforço não indiferentes.

A criatividade é alguma coisa dificilmente descritível de forma completa, tanto para quem cria quanto para quem quiser estudar as dinâmicas e as formas; é claro que isto vale também para um discurso como aquilo que vamos tentar desenvolver nas (poucas) páginas seguintes, isto é, como o “ser – em - sociedade” dos artistas não pode não entrar (provavelmente de forma mais substancial de quanto normalmente pensamos) no processo cria-tivo, e influencia-lo de várias formas.

Vamos tentar, então, de delinear algumas pré-condições estruturais que podem fortemente influenciar (em alguns casos, talvez determinar) a criatividade artística, porém, sem diminuir as capacidades individuais dos artistas, isto é, o que podemos romanticamente definir o “génio” artístico, uma lógica absolutamente significativa

This paper starts from a basic theme and from an hypothesis: the theme is the idea that – without anything against the system “competencies – capacities – geniality” that makes an artist, that means, the individuality, subjectivity of the artist and his creativity etc. – the same artist thinks – acts – creates in a society that suffers a process of socialization, where he lives the Institutions, the economy, politics etc., where he establishes strong and durables relationships.

Palavras chave: geniosidade, criatividade artística, Pierfranco Malizia

Keyqords: geniality, artistic criativity, Pierfranco Malizia

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e que outras ciências (por exemplo, a psicologia cognitiva, cfr. Gardner, 1991) deverão tentar de compreender e explicar, talvez parcialmente, pela complexidade acima mencionada.

Este trabalho quer simplesmente descrever alguns quadros sociais da criatividade artística, sem ter pretensas de exaustividade, com o único intento de reflectir ulteriormente sobre a relação “sociedade - actor social”.

Arte e sociedade

“A arte não está percebida (definida) como um problema social, como por exemplo o “desconforto juvenil”, as relações industriais, a estratificação, a assistência sanitária, ou as dezenas de outros campos de investigação dos sociólogos. Sobre as razões desta atitude podemos formular outras hipóteses – corolários. Primeiro, a arte, apesar da sua evidente ubiquidade, é considerada pertencer à esfera do marginal, do supérfluo, do luxo, dos estratos mais elevados, e portanto evanescentes, da “sobra - estrutura”. Segundo, considera-se que os problemas eventuais da esfera artística não precisam ser compreendidos e explicados, e portanto solucionados, por meio das ferramentas da sociologia. Esta atitude parece ser muito difusa entre os operadores de arte (Strassoldo, cit. P. 16)”.

Esta citação, como a antecedente (proveniente por um volume que enfrenta exaustivamente as problemáticas arte/sociedade), enfrenta uma longa serie de dificuldades conceituais e temáticas que esta oportunidade encontra no debate sociológico. Provavelmente, hoje podemos enxergar uma inversão de tendência (testemunhada por uma recente produção neste sentido), em particular no âmbito musical; esta inversão de tendência é devida, tal-vez, ao desabrochar da sociologia da cultura em todos seus componentes temáticos e processuais, em particular, por quanto concerne os grandes meios de comunicação como “difusores” e/ou “produtores” de objectos cultu-rais (Griswold, 1997) em diferentes âmbitos, a partir da escola de Birmingham até as mais recentes pesquisas italianas (Morcellini, 2000), por fim, tentativas sistemáticas de grande interesse (Strassoldo, cit.; Zolberg, 1994; Crane, 1997).

Porém, quais dificuldades podem continuar obstaculizando uma sociologia da arte? O problema de fundo está provavelmente na substancial pluri – dimensionalidade da mesma arte (Gallino, 1993; pp. 38-41), e na conse-quente concentração sobre uma ou outra dimensão: por um lado, a perspectiva “genética”, centrada na produção artística (tanto material quanto económica) e os factores determinantes no processo produtivo; pelo outro, a dimensão sintáctica que privilegia a estrutura do discurso artístico e a determinação da apreciação social; ou, além disto, a dimensão semântica que leva de forma semi – unívoca para a reflexão sobre a correspondência “for-mas de arte – tipologia de sociedade”, correspondência frequentemente extrema, e que de qualquer forma auto explica-se, por fim, a dimensão pragmática que desenvolve principalmente o conceito de arte como “ferramenta ideológica” (idem, p. 40), para hipostasiar uma tal ordem social ou para discuti-lo.

Isto pertence à pluri – dimensionalidade, que pode de fato assumir-se como complexidade substancial para uma sociologia da arte; mas a arte não é exclusivamente um fenómeno complexo “difícil” de ser interpretado, assim, talvez o problema de uma sociologia da arte está também no que König escrevia há alguns anos atrás: “embora a maioria dos contributos e das pesquisas de sociologia da arte assumam o fato social “experiencia artística” como ponto de partida ou centro da própria analise, isto acontece, digamos assim, intuitivamente: isto é, considera-se obvio o fato social, sem se preocupar de circunscrevê-lo com precisão, de clarifica-lo ou especifica-lo. É claro que por um tal caminho ingénuo nascem umas dificuldades, e que para superá-las acaba se por explorar todos os sectores marginais de pesquisa.” (König, 1967; pg 31).

A produção artística

Para “arte” entendemos aqui os processos de produção e os produtos reconhecidos como tais (isto é, artísticos) pela sociedade. O significado destes “produtos” deve ser compreendido no seu contexto de geração, bem como no contexto da fruição; esta definição portanto compreende âmbitos artísticos fortemente diferenciados, tais como:

-as artes figurativas;-a literatura;-a musica;-o cinema, o teatro, a dança etc.

Como evidencia Zolberg (cit.; cap. I), podemos constantemente encontrar duas concepções de arte que sempre são fundamentais para a constituição do discurso “arte/sociedade” e que podemos sintetizar assim:

CONCEPÇÕES SIGNIFICADO PERTINÊNCIA

ENDÓGENA

EXÓGENA Arte como produto de uma genialidade criativa, unicidade do acto artístico.

Estética História da arte

Arte como processo de criatividade“social” e de “reconhecimento social”

Sociologia

82 83Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011. Poéticas Visuais, Bauru, v.2, n. 2, p. 79-89, 2011.

É claro que o posicionamento sobre uma ou a outra concepção possibilita ou não a configuração de qualquer discurso social ao redor da arte; aceitando a concepção “exógena” muitos tractos de interesse sociológico podem ser delineados, tais como:

a) a abordagem funcionalista, que sugere varias funções sociais da arte, a partir da função de “idealização” (sublimar os sentimentos) até aquela de “diversão” (ou loisir); além disso “quando considera-se a relação arte/sociedade, é preciso ter em mente que a arte pode ter, ao mesmo tempo, uma função de re – envio para uma di-mensão diferente, outra, daquela social, como fonte constante de criatividade, inovação expressiva e contestação das ordens constituídos, e uma função celebrativa que também confirma os valores e as representações social-mente partilhadas” (Crespi, 1996; pg. 184).

b) a abordagem estrutural, que considera todos os componentes da produção – fruição artística, o que mostra uma notável possibilidade de diferentes momentos de estudo, por exemplo:

-os “artistas” (rol e status, subsistemas culturais, etc.);-o “mercado” (sistema pergunta/oferta, sistemas de produção, comercialização, venda etc.)-o “publico” (consumo artístico, composição sócio – cultural, modalidades/lugares de fruição etc.);-as “politicas publicas” (intervenções estaduais na arte, arte e escola, etc.);-o “status social” da arte (bipartição “artes maiores/artes minores”, valores sociais de reconheci-

mento/apreciação, etc.);-a “industria cultural”.

A “criatividade”

A “criatividade” pode ser definida como um valor cultural, e as culturas não podem não considerar a neces-sidade de estruturar-se com modalidades e filosofias “que encorajem” a criatividade, a inovação; porém, a cria-tividade, quando favorecida, constitui uma dinâmica específica que, para ser completamente realizada, deverá excluir comportamentos “ante - criativos” como as formas de controlo social, as especializações vivenciadas rigidamente e elevadas a barreiras sociais, o favorecer formalmente as novas ideias sem realiza-las efectivamen-te, o seguir “sempre e de qualquer forma” as regras e tradições.

Esta dinâmica da criatividade pode assim ser evidenciada:

•Estímulos para a criatividade

•Desenvolvimento de ideias

•Aceitação e colectivização das ideias

• Adopção organizada das ideias e dos relativos processos de mudança

Portanto, cada fase desta dinâmica processual deve ser adequadamente acompanhada e suportada em todos os níveis, não sendo isto com certeza de fácil realização; pensamos, por exemplo, nas dificuldades e obstáculos não exclusivamente conservadores, mas também de interesse de status, de interesses particulares que podem se interpor nas fases de “desenvolvimento” e “aceitação” das ideias criativas – inovadoras. Pensamos também nas resistências (psicológicas, estruturais, de interesse) à mudança, individuais ou colectivas, reais ou instrumentais, que de fato irão obstaculizar as fases de “colectivização” e “adopção” das mesmas ideias; além disso, em termos de cultura organizacional, podemos afirmar que as ideias criativas – inovadoras (a não ser quer exista um habito tradicionalmente consolidado e que a criatividade seja colectivamente vivenciada como um valor) encontram--se frequentemente “culturalmente recusadas”, enquanto “ameaçadoras” (realmente ou não) da ordem cultural existente, embora não representem um risco para a sociedade.

A implantação e o desenvolvimento da “criatividade como valor e prática” nos sistemas sociais de forma difusa representa assim uma dinâmica processual complexa, que diz respeito ao “sistema em si” (que refere-se globalmente ao sistema organizacional como sistema, onde cada alteração individual e/ou parcial produz uma cadeia de alterações globais), à “cultura” (que refere-se à uma potencial alteração de valores, hábitos, tradições, etc., existentes, que, especialmente onde as culturas são fortes quanto ao seu “vivenciado” e compartilhamento, irá precisar de um adequado processo de inculturação, ao menos temporalmente, para realizar-se de forma com-pleta), ao “sistema de decisão” (que comporta uma lógica intencional na actividade de decisão de criar continua-mente e incondicionadamente suporte para a criatividade, que com certeza não falta de obstáculos e que sempre precisa de recursos, também, como já consideramos, com certeza não é a – conflitual).

Sobre a criatividade artística

A criatividade não pode ser reduzida apenas ao “flash” do génio, mas consiste, também, na resultante de vários factores:

a) factores de contexto sócio – cultural;b) factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”;c) condicionamentos pelas tradições artísticas;d) influencia da assim chamada “industria cultural”.

Antes de desenvolver brevemente estes pontos, devemos lembrar que esta teorização não diminui de alguma forma a “capacidade individual” do génio, porém, acrescenta algumas conotações que derivam pelo simples fato de cada génio nascer e actuar em uma sociedade, em uma cultura, em uma altura histórica etc.; vamos então examinar os pontos acima elencados.

Factores de contexto sócio – cultural. No desenvolvimento das teorias sociológicas, embora em diferentes momentos históricos – sociais e em “es-

colas de pensamento” distantes, podemos evidenciar dois momentos de elaboração teórica da assim chamada por Durkheim “efervescência social” (1972), isto é, situações de contexto que, mais que outras, facilitam processos de inovação, como a “anomia” de Merton (1992) e a “morfogenese” de Archer (1997). Segundo Merton “a anomia

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depende pela falta de integração entre a estrutura social, que define os status e os papéis dos sujeitos que agem, e

a estrutura cultural, que define os objectivos a ser alcançados pelos membros da sociedade, bem como as regras

a ser respeitadas para alcançar os objectivos. Acontece que as posições dos sujeitos que agem impeçam – lhe

de alcançar os objectivos indicados pela cultura como as melhores (por exemplo, segundo Merton, o objectivo

da riqueza e do sucesso na sociedade norte-americana) através dos meios indicados pelas normas institucionais.

Porém, quando as primeiras resultam mais importantes que as segundas, temos um comportamento de inovação.”

(Izzo, 1991; p. 291). Segundo Archer (1997) o conceito de “morfogenese” refere-se “aos processos que tendem

a elaborar ou mudar a forma, o estádio do sistema … ao contrário, o termo “morfostasi” refere-se aos processos

das trocas complexas entre o sistema e o ambiente, que tendem a conservar, a manter uma forma … de um sis-

tema” (cit., p.190). “Morfogenese” significa, então, uma situação social complexa que produz transformações e

inovações, e que, por consequência, com um assim chamado “efeito domino”, cria uma realidade complexa onde

o acto criativo possui, potencialmente, muitas possibilidades de se originar e desenvolver de forma completa.

Factores ligados aos “círculos sociais – artísticos”.

Além da noção de contexto em geral, devemos considerar a especifica influencia dos “mundos artísticos” e

dos “mercados artísticos” sobre o mesmo artista; na verdade, na nossa opinião não pode-se negar que as relações

“artistas - artista” (especialmente em subsistemas fechados, com uma forte interacção e com sistemas normativos

– valorais partilhados, isto é, verdadeiras sub – culturas) condicionem as escolhas e os percursos de cada actor,

bem como as pressões do mercado, e mais em geral, as lógicas de atribuição socioeconómicas de valor (latu sen-

su), nunca irão deixar indiferente o artista. Sintetizando, o processo de criação artística pode ser assim descrito:

CONTEXTO

REDES DE INTEGRAÇÃOMICRO

(mundos artísticos)

REDES DE INTEGRAÇÃOMESO

(mercados artísticos)

ARTISTA(personalidade, status)

PRODUTO

Becker (2004) insiste muito sobre a recíproca influencia entre os artistas (independente pela especifica arte praticada individualmente), enquanto comparticipantes de um “círculo artístico”: “ele começa pela interacção microscópica entre os participantes (submundos artísticos, n.d.r.), mudando-se gradualmente para modelos de associação sempre mais amplos, que compreendem uma variedade de mundos artísticos … os mundos onde os artistas trabalham existem como culturas mais ou menos institucionalizadas, que normalmente tem pouco a ver as umas com as outras … Esta análise de subcultura apresenta as artes como elas próprias.” (Zolberg, cit.: p. 138). Em outras palavras, Becker vê a criação artística como:

-resultante por praticas colectivas geradas nos submundos da arte, claramente sem excluir as qua-lidades individuais;

-processo influenciado por formas constantes e “intime” de interacção social, cultural em geral e artística no especifico, entre os artistas que reconhecem-se no mesmo submundo.

Condicionamentos pelas tradições artísticas.

As tradições, cuja interessante etimologia oscila entre “entrega” e “ensino”, assim chamadas “memoria co-lectiva canonizada” (Jedlovski – Rampazi, 1991), podem ser definidas como “os modelos de crenças, costumes, valores, comportamentos, conhecimentos e competências que são transmitidas de geração em geração, por meio do processo de socialização” (Seymour-Smith, 1991, p. 411). Esta palavra vem depois ser utilizada para indi-car tanto o produto quanto o processo (Cinese, 1996, p. 96) da produção cultural de transmissão/ensino típico das mesmas tradições. As tradições constituem uma parte fundamental e um elemento distintivo da identidade cultural (Di Cristofaro Longo, 1996, p. 96), do pertencimento, e constituem também um ponto de referência im-portante para a acção social em geral, em particular, suportando uma específica tipologia weberiana de “acção”, aquela “conforme hábitos adquiridos e que viraram constitutivos do costume; a reacção aos estímulos habituais em parte absolutamente limitativos; a maioria das acções da vida quotidiana é ditada pelo sentido das tradições.” (Morra, 1994, p. 96). Sendo elementos distintivos da cultura, as tradições tomam valores endógenos (de auto reconhecimento) e também exógenos (de identificação) para os grupos sociais que referem-se à estes valores.

O sistema das tradições pode ser interpretado como uma verdadeira instituição social, no sentido de “forma de crença de acção e de conduta reconhecida, estabelecida e praticada estavelmente” bem como no sentido de “práticas consolidadas, formas estabelecidas de proceder, características de uma actividade de grupo” (Gallino, cit., p. 388).

O sistema total das tradições, respeito à uma ideia de continuum cultura – subculturas (locais, profissionais, de genro etc.) pode depois ser dividido em grandes e pequenas tradições (Seymour-Smith, cit., p. 203), isto é, a complementaridade, a coexistência, entre

a) traços ligados com especificas comunidades, participantes de um sistema social mais amplo, traços mais difundidos, gerais ou comuns;

b) divisões existentes entre culturas oficiais e culturas folk (idem, p. 189); coexistência e complementaridade que viram substanciais em uma continuidade de reinterpretações, frequentemente constituídas por descobertas, reavaliações, esquecimentos.

As tradições podem ter um valor mais conservador ou de conservação (Parsone, 1965), isto é, podem ser um

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veículo para as inovações e as mudanças, bem como fornecer um suporte para processos de mudança social não alienados/alienantes: a assim chamada “referência às tradições” pode ter o duplo significado de:

a) entrincheiramento ao passado, de forma total e absolutamente não elástica, preliminar e dominante, contra tudo que apareça (o seja percebido) novo

b) conservar uma especificidade cultural que facilite, em lugar de contrastar, cada input interno/externo de mudança e consiga homogeneizar seus efeitos com os próprios específicos traços culturais.

Portanto, onde as tradições artísticas resultam “pesadas”, isto é, influenciam uma criatividade principalmente “problem solver”, a criatividade artística em geral será certamente e discretamente condicionada, e as formas “problem finder” que poderão manifestar-se serão limitadamente praticadas pelos outsiders (Becker, 1991).

Ainda Zolberg (cit.; cap. IV), reflectindo dobre diferentes pesquisas no âmbito da produção artística, faz uma hipótese de dois ideal tipos weberianos de artistas, diferentes quanto à abordagem ao problema. Segundo esta hipótese, podemos distinguir artistas “problem solver” e “problem finder”: os primeiros prestam atenção à produção artística existente, individuando diferentes modalidades de expressão; os segundos, investigam prin-cipalmente novas problemáticas e/ou necessidades artísticas. Ambas as tipologias podem, de qualquer forma, trabalhar segundo lógicas mais tradicionais ou inovadoras. Estes “ideal-tipos” podem ser assim representados, por exemplo, no âmbito das artes visuais:

AB

OR

DA

GE

M

PROBLEM FINDER

PROBLEM FINDER

PROBLEM SOLVER

PROBLEM SOLVER

Criação de “arte nova” (es: Duchamp)

Variantes de “arte nova” (es: Wharol)

Re – descoberta criativa com novos significados (es:Picasso)

Seguidores da tradição (es: os artistas figurativos)

Criação de “arte nova” (es: Bossa Nova)

Variantes de “arte nova” (es: Seu Jorge)

Re – descoberta criativa com no-vos significados (es:Moacyr Luz)

Seguidores da tradição (es: Paulinho da Viola)

“INOVAÇÃO” “TRADIÇÃO”

Influencia da assim chamada “indústria cultural”.

Quais são as lógicas, os mecanismos, os actores da industria cultural? Podemos fazer uma hipótese de modelo explicativo (embora bastante geral) sobre o que acontece hoje, em uma situação caracterizada por fenomenolo-gias incertas, onde alguns “objectos” (Griswold, 1997, pp. 26-29) fazem carreira e, sendo “funcionais”, viram “culturais” nas suas esferas de referência, ou, em uma geral “concepção do mundo”. O assim chamado “modelo de Hirsch” (Griswold, 1997, pp. 102-108; Sciolla, 2002, pp. 216,217, e obviamente Hirsch, 1972) parece colectar muito consenso. “Hirsch realizou um esquema das relações entre os diferentes subsistemas existentes no sistema, por ele mesmo definido sistema da indústria cultural, que descreve o conjunto de organizações que produzem artigos culturais de massa, como discos, livros, programas da televisão e da rádio. Neste esquema, os media re-presentem um subsistema entre os outros. A organização “de gestão”, por exemplo, para alcançar os mass media fornece informações sobre o produto (filtro 2). Estas notícias são utilizadas pelo sistema institucional nos media (gatekeepers mediais, como disc-jockey, apresentadores de talk-show, revisores de livros e filmes, etc.). Neste espaço de intermediação surgem possibilidades de relações pouco transparentes quando não de corrupção. O público conhece o novo produto através dos media. Temos, por fim, dois tipos de feedback: o primeiro vem dos medias, o segundo dos consumidores, mensurado pelas vendas de bilhetes, discos, livros, etc.” (Sciolla, 2002, p. 216).

O modelo pode ser assim configurado:

Filtro 1 Filtro 2 Filtro 3

SUBSISTEMA TÉCNICO(criadores)

SUBSISTEMA DE GESTÃO(organizações)

SUBSISTEMA INSTITUCIONAL

(media)

CONSUMO(sociedade)

feedback

A figura representa a configuração tradicional do modelo; porém, sendo um “modelo”, não deve ser utilizado de forma rígida, mas sim como principalmente indicador de um processo complexo. Assistimos hoje por meio e causa das redes, a já conhecidas alterações deste andamento processual; os clássicos exemplos são aqueles cria-tivos (em particular, das artes visuais, literatura e musica) que entram directamente, através da Web, no sistema dos media, propondo suas criações e quase “impondo-a” para o publico sem os tradicionais filtros de subsistema; nos casos de sucesso, estes criativos fazem parte do percurso na hipótese de Hirsch, embora com um andamento parcialmente diferenciado que pode ser assim configurado:

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Filtro 1 Filtro 2

SUBSISTEMA COMUNICACIONAL (web)

I° CONSUMO(sociedade “em rede)”

feedback

SUBSISTEMA TÉCNICO(criadores)

SUBSISTEMA DE GESTÃO(organizações)

SUBSISTEMA INSTITUCIONAL

(media)

CONSUMO(sociedade)

Este modelo, como nos lembra Griswold, nasceu para os “produtos culturais de massa tangíveis” e pode ser

aplicado, com as necessárias/oportunas modificas, para qualquer sector da indústria cultural.

Uma reflexão sobre o sistema da industria cultural e da sua influencia sobre os artistas e/ou aspirantes a

virar artistas, pode ser útil, quando enquadrada no complexo discurso de Bourdieu (1980) segundo o qual “a

macroestrutura nas formas cristalizadas do Estado, do sistema de domínio social e do diferente acesso dos mem-

bros aos bens de valor, material ou simbólico, constitui uma presença incumbente” (Zolberg, cit.; p. 138); para

compreender de forma completa a produção artística, não pode-se não considerar “a totalidade das relações (as

objectivas e as determinadas na forma de relação) entre o artista e os artistas, e, além destes, a totalidade dos

actores comprometidos na produção do trabalho artístico, ou, ao menos, do valor social do trabalho … o que as

pessoas chamam de criação é o conjunto de um habito e de uma tal posição (status) que pode ser já construído

ou possível na divisão do trabalho da produção cultural” (Bordieu, cit.; pp. 208-212).

Conclusões

Podemos concluir como tínhamos começado, esperando que quanto argumentado sinteticamente neste tra-

balho possa ter fornecido uma base para a tese de fundo, isto é, que também a criatividade artística (alguma

coisa pensada como o “agir na sociedade”) não possa identificar-se somente na capacidade e/ou performance

individuais (o “génio artístico”), que de qualquer forma não devem ser excluídas ou subavaliadas, mas possa

ser pesquisada também nos quadros sociais “ocultados” ou “evidentes” que orientam e influenciam os artistas,

açores sociais “imersos” (como todos) na sociedade, e portanto, que pertencem aos sistemas de interacção bem

como de relação.

Referências

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Recebido em 15 de Setembro de 2010. Aprovado para publicação em 18 de Setembro de 2011