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REVISTA DO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS

REVISTA DO TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS · O primeiro Diretor da Revista foi o hoje decano da Corte, Ministro Armando Rollemberg, de 1964 a 1969, sendo ... ceito sobretudo didático

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REVISTA DO

TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS

REVISTA TFR

REVISTA DO

TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS

JESUS COSTA LIMA

Ministro Diretor da Revista

Administração

Tribunal Federal de Recursos Praça dos Tribunais Superiores - CEP 70072

BRASÍLIA - BRASIL

BRASÍLIA N~ 145 P.I/I90 MAIO/87

340.6

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista do Tribunal Federal de Recursos. n. I - 1979 - Brasília, TFR , 1979 - mensal.

190 p.

\. Direito. 2. Jurisprudência. I. Brasil. Tribunal Federal de Recursos.

TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS

Ministro LAURO FRANCO LEITÃO - 19-12-77 - Presidente (*)

Ministro EVANDRO GUEIROS LEITE - 19-12-77 - Vice-Presidente (**)

Ministro ARMANDO LEITE ROLLEMBERG - 29-7-63 Ministro JosÉ FERNANDES DANTAS - 29-10-76

Ministro WASHINGTON BOLÍVAR DE BRITO - 19-12-77

Ministro ANTONIO TORREÃO BRAZ - 19-12-77 Ministro CARLOS MARIO DA SILVA VELLOSO - 19-12-77 Ministro OTTO ROCHA - 26-9-78

Ministro WILLIAM ANDRADE PATTERSON - 3-8-79 Ministro ROMILDO BUENO DE SOUZA - 8-4-80 - Corregedor-Geral (**)

Ministro SEBASTIÃO ALVES DOS REIS - 23-6-80

Ministro MIGUEL JERONYMO FERRANTE - 23-6-80 Ministro JosÉ CÃNDIDO DE CARVALHO FILHO - 23-6-80

Ministro PEDRO DA ROCHA ACIOLI - 23-6-80 Ministro AMÉRICO Luz - 23-6-80 Ministro ANTONIO DE P ADUA RIBEIRO - 23-6-80

Ministro CID FLAQUER SCARTEZZINI - 7-5-81 Ministro JESUS COSTA LIMA - 9-12-81 - Diretor da Revista

Ministro GERALDO BARRETO SOBRAL - 16-12-82 Ministro CARLOS AUGUSTO THIBAU GUIMARÃES - 10-6-83

Ministro PAULO ROBERTO SARAIVA DA COSTA LEITE - 25-9-84 Ministro NILSON VITAL NAVES - 11-4-85

Ministro EDUARDO ANDRADE RIBEIRO - 12-6-85 Ministro lILMAR NASCIMENTO GALVÃO - 29-10-85 Ministro JosÉ DE JESUS FILHO - 9-1-86

Ministro FRANCISCO DIAS TRINDADE - 9-1-86

Ministro FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO - 30-3-87

(*) Não integra as Turmas. Preside a sessão plenária, onde tem, apenas, voto de ljualidade e em matéria constitucional (arts. 21, item VIII, e 175, § 2?, do RI).

(**) Não integram as Turmas. Presidem as Seções, onde têm, apenas, voto de qualidade (arts. 22, § I?, item I, e 23, item I, do RI).

TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS

TRIBUNAL PLENO

(quin tas-feiras)

Presidente: Ministro LAURO LEITÃO

PRIMEIRA SEÇÃO

( quartas-feiras)

Presidente: Ministro GUEIROS LEITE

Primeira Turma (Sessões às terças-feiras, segunda e última sexta-feira do mês)

Ministro WASHINGTON BOLÍv AR - Presidente

Ministro CARLOS THIBAU

Ministro COSTA LEITE

Ministro DIAS TRINDADE

Segunda Turma (Sessões às terças-feiras, segunda e última sexta-feira do mês)

Ministro Ono ROCHA - Presidente

Ministro WILLlAM PATTERSON

Ministro JosÉ CÂNDIDO

Ministro COSTA LIMA

Terceira Turma (Sessões às terças-feiras, segunda e última sexta-feira do mês)

Ministro JosÉ DANTAS - Presidente

Ministro FLAQUER SCARTEZZINI

Ministro NILSON NAVES

Ministro AssIs TOLEDO

SEGUNDA SEÇÃO ( terças-feiras)

Presidente: Ministro BUENO DE SOUZA

Quarta Turma (Sessões às quartas-feiras, segunda e última segunda-feira do mês)

Ministro ARMANDO ROLLEMBERG - Presidente

Ministro ANTONIO DE P ADUA RIBEIRO

Ministro ILMAR GALVÃO

Ministro JosÉ DE JESUS

Quinta Turma (Se~sões às quartas-feiras, segunda e última segunda-feira do mês)

Ministro TORREÃO BRAZ - Presidente

Ministro SEBASTIÃO REIS

Ministro PEDRO ACIOLl

Ministro GERALDO SOBRAL

Sexta Turma (Sessões às quartas-feiras, segunda e última segunda-feira do mês)

Ministro CARLOS VELLOSO - Presidente

Ministro MIGUEL FERRANTE

Ministro AMÉRICO Luz

Ministro EDUARDO RIBEIRO

CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL

Ministro LAURO LEITÃO - Presidente Ministro GUEIROS LEITE - Vice-Presidente

Membros Efetivos Ministro BUENO DE SOUZA - Corregedor-Geral

Ministro SEBASTIÃO REIS

Ministro MIGUEL FERRANTE

Membros Suplentes

Ministro JosÉ CÃNDIDO

Ministro PEDRO ACIOLl

Ministro AMÉRICO Luz

APRESENTAÇÃO

A Revista do Tribunal Federal de Recursos tem origem na determinação contida na alínea c do art. 325, do primitivo Regimento Interno.

Na sessão plenária de 13 de setembro de 1948, aprovou-se a publicação semestral de um periódico Tribunal Federal de Recursos - Jurisprudência - destinado a inserir Acórdãos, providências administrativas, relatórios, portarias, noticiários e legislação de interesse do Tribunal.

Todavia, somente após decorridos dezesseis anos, isto é, nos primeiros meses do ano de 1964, é que foi publicado o primeiro número da Revista do Tribunal Federal de Recursos. De início, circulava trimestralmente. Apenas a partir do mês de abril de 1981, com 71 números editados, é que passou a ser difundida mensalmente.

O primeiro Diretor da Revista foi o hoje decano da Corte, Ministro Armando Rollemberg, de 1964 a 1969, sendo sucedido pelos Ministros Antônio Neder, de 1969 a 1971; Jorge Lafayette Guimarães, de 1971 a 1973; Moacir Catunda, de 1973 a 1975; Décio Miranda, de 1975 a 1977; Paulo Távora, de 1977 a 1979; Carlos Velloso, de 1979 a 1981; William Patterson, de 1981 a 1983; Pádua Ribeiro, de 1983 a 1985 e, atual­mente, tem a dirigi-la o Ministro Costa Lima, com mandato a terminar no dia 23 de junho de 1987, porquanto os diretores da Revista são escolhidos na mesma sessão ple­nária em que o Tribunal elege os .çeus dirigentes e, também, com mandato de dois anos.

Importa registrar, ainda, que a partir de 1979 a direção da Revista assumiu a res­ponsabilidade por mais duas outras publicações: o Ementário de Jurisprudência, editado mensalmente, reproduzindo as ementas dos Acórdãos, devidamente classifica­dos por assuntos, e logo após a publicação no Diário da Justiça, enquanto que o Boletim de Jurisprudência, editado quinzenalmente, antecipa a divulgação de ementas antes da publicação no Diário da Justiça.

A Revista do Tribunal Federal de Recursos insere, em cada número, quatro Acórdãos selecionados pelos respectivos Ministros ou as súmulas com os julgados. Constitui, as­sim, um repositório dos mais importantes julgados da Corte, um documentário de suas publicações, um veículo, através do qual é mantida permanente comunicação com Juízes, advogados, membros do Ministério Público e Professores de Direito.

A Revista do Tribunal Federal de Recursos, com este número especial, participa das comemorações alusivas ao quadragésimo aniversário de fundação do TFR. E o faz prestando justa homenagem ao mundo jurídico brasileiro, reservando as suas páginas aos ilustres Professores, que se dignaram de atender ao nosso convite, escrevendo sobre temas que livremente escolheram, demonstrando o alto apreço e reconhecimento ao tra­balho que o TFR vem desenvolvendo nestes quarenta anos.

Desejamos, com esse breve registro, tornar público o nosso sincero agradecimento pela gentileza dos ilustres Colaboradores, ao mesmo tempo em que, temos certeza, este número tornar-se-á Ímpar pela variedade e profundidade dos temas que enfoca, os quais contribuirão para o aperfeiçoamento das instituições jurídicas do País.

Ministro Diretor da Revista

SUMÁRIO

Págs. Dimensões jurídicas do Sigilo Bancário - autor: Álvaro Me-lo Filho .............................................. .

11 O TFR e o Direito Bancário - autor: Amoldo Wald. . . . . . . 23 III Seis Crimes Especiais Equiparados e a Aplicação de suas Pe-

nas - autor: Celso Delmanto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 IV Natureza das Decisões do TC - autor: J. Cretella Júnior. . . 43 V Limite das Penas e seus efeitos - autor: Damásio E. de Je-

sus. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57 VI Princípio da Legalidade - autor: Geraldo Ataliba . . . . . . . . . 65

VII Proteção Ambiental e Ação Civil Pública - autor: Hely Lo-pes Meirelles .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

VIII Tutela jurisdicional da Propriedade industrial - autor: Humberto Theodoro Júnior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

IX A jurisprudência integrativa e o Ideal de Justiça - autor: Ives Gandra da Silva Martins. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

X Considerações sobre a causa de pedir na Ação Rescisória -autor: José Carlos Barbosa Moreira.. .. . . . . .. . .. .. . . . . . . . 115

XI Das Formas de Expressão do Direito - autor: R. Limongi França. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123

XII Negócios Prepratórios - autor: Orlando Gomes. . . . . . . . . . . 139 XIII O método tópico de Interpretação Constitucional - autor:

Paulo Bonavides. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 XIV A Positividade no Direito - autor: Paulino Jacques ....... 155 XV Dano Processual - autor: Roberto Rosas.. . . . . .. . .. . . . .. . 163

XVI Constituição no País da Epidemia das Normas - autor: Kuy Barbosa Nogueira ..................................... 175

XVII - As Ações de Adjudicação compulsória e sua Prescrição -autor: Wagner Barreira ... , .. . . .. . .. . .. . . . . . . .. . . . . . . . .. 183

DIMENSÕES JURÍDICAS DO SIGILO BANCÁRIO

Álvaro Melo Filho

ÁL V ARO MELO FILHO

DIMENSÕES JURÍDICAS DO SIGILO BANCÁRIO

SUMÁRIO

I. Introdução 2. Dimensão histórica 3. Dimensão legal 4. Dimensão doutrinária 5. Dimensão jurisprudencial 6. Dimensão prática

I. Introdução

O estudo dos aspectos jurídicos do sigilo bancário tem sido descurado na doutrina nacional, conquanto as menções feitas nas obras de Direito Bancário são incompletas e superficiais.

Poucas linhas foram dedicadas no Brasil ao sigilo bancário, inobstante ser um ins­tituto reconhecido expressamente na legislação positiva de quase todos os países civili­zados. Saliente-se, por oportuno, que o principal trabalho nacional referente ao assunto tem como autor Noé Azevedo (in Rev. dos Tribunais, vol. 315, pág. 412), que abordou o tema numa fase bem anterior ao disciplinamento legal e específico do sigilo bancário na Lei n? 4.595/64.

Por isso o objetivo basilar é realizar uma análise abrangente da matéria, num tem­po marcado por crises, revisões de valores, dúvidas, tensões e lutas irrefragáveis, repen­sando o já pensado na busca de novas respostas, sem olvidar as lições emergentes da le­gislação e doutrina alienígenas.

Cumpre destacar, nesta introdução, que Juan Carlos Malagarriga formula um con­ceito sobretudo didático de sigilo bancário ao assinalar que «el secreto bancario es la obligación impuesta a los bancos de no revelar a terceros, sin causa justificada, los da­tos referentes a sus clientes que lIeguen a su conocimiento como consecuencia de las re­laciones jurídicas que los vinculam». (in «EI Secreto Bancario», Abeledo-Perrot, Bue­nos Aires, 1970, pág. 15).

Nesta perspectiva o sigilo bancário desenvolve-se dentro das relações Banco-cliente; seus elementos subjetivos são, pois, o cliente, que tem o direito de exigir tal sigilo, e a entidade bancária, que tem a obrigação de respeitá-lo, salvo em determinadas hipóteses e circunstâncias que serão objeto de análise mais adiante. Por outro. lado, o sigilo ban-

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cano tem como objeto os valores, . ou seja, aquilo que encerra ou representa riqueza material e que geralmente constitui-se por dinheiro.

A necessidade de «discreción bancaria» justifica-se mais por razões de interesse pú­blico do que privado, conquanto a obrigação de sigilo não só reforça a confiança da clientela nas instituições financeiras, como também assegura uma afluência vigorosa de capitais e um volume substancial de negócios que, na ausência do sigilo, tomariam o caminho rumo a países em que o sigilo bancário esteja garantido e juridicamente prote­gido.

Daí exsurge a importância do sigilo bancário alardeada por Nelson Hungria: «Na atualidade, é geralmente reconhecido que entre os confidentes neces­

sários, legalmente obrigados à discrição, figuram os banqueiros. Notadamente nas operações de crédito, o sigilo bancário é uma condição imprescindível, não só para a segurança do interesse dos clientes do Banco como para o pró­prio êxito da atividade bancária. Raros seriam, por certo, os clientes do Ban­co, se não contassem com a reserv.a do banqueiro e seus prepostos. Em nenhu­ma outra atividade profissional é de se atender, com mais adequação, à adver­tência de que a alma do negócio é o segredo» (in «Comentários ao Código Pe­nai», vol. 6, pág. 271).

2. Dimensão histórica A trajetória histórica do sigilo bancário associa-se às próprias atividades e institui­

ções bancárias sempre presentes na civilização da Antiguidade, da Idade Média, dos tempos modernos e que, seguramente, permanecerão nas civilizações futuras por força das exigências do tráfico econômico e das crescentes necessidades estatais.

A gênese do sigilo bancário demonstra que ele não é uma construção intelectual apriorística, mas decorrência de um amplo desenvolvimento econômico e jurídico, ace­lerado sobretudo no «reino dos banqueiros» de que falava Ripert (in «Aspects juridi­ques du capitalisme moderne», 1951, 2~ ed., pág. 164).

Max Weber (in «Historia Económica General», Fondo de Cultura Económica, Ma­drid, 1974, pág. 223), discorrendo sobre o embrião das atuais operações bancárias, assi­nala que «los templos antiguos funcionaron ai principio como cajas de depósito. Esta era su primordial misión como Bancos; en cuanto cajas de depósitos de los templos eran bienes sagrados, y quien ponía la mano sobre ellos cometía un sacrilegio. EI tem­plo de Delfos era un lugar de custodia de tesoros para numerosos particulares y espe­cialmente caja de ahorros típica de los esclavos».

Verifica-se, então, que as primitivas operações de Bancos estavam conectadas com o sagrado. Da inviolabilidade dos templos onde surgiram as instituições bancárias e do respeito ao divino que se irradiava às atividades, inclusive bancárias, levadas a cabo no âmbito daqueles templos, infere-se que desde os primeiros momentos o oculto, a arca­no, o misterioso, o discreto e o segredo estão presentes em todas as operações bancá­rias. E na lição de Luis M. CalOria Prieto (in «EI Secreto Bancario», Inst. de Estudios Fiscales, Bilbao, 1978, pág. 37), «los redimentários negocios bancarios heredaron por esta causa un carácter que, adecuándose a las múltiples y cambiantes circunstancias his­tóricas, ya no les abandonará jamás: el silencio, su obligado desconocimiento para los terceros; en otos términos, su envoltura en un hálito de discreción, de la que actual­mente es fiel exponente e\ secreto bancario. En cualquier caso, además, fuere qual fuere el alcance de lo expuesto, es innegable que el secreto y la discreción vinieron en parte de la mano dei emplazamiento en los templos de los primitivos institutos banca­rios, pues debido a ello sus actes presumiblimente se colocaron bajo la protección de los dioses, testigos de su nacimiento».

Este primeiro período, que alguns historiadores chamam de Mesopotâmico, caracteriza-se pela condição sagrada à qual vincula-se a primitiva atividade bancária.

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No entanto, na Grécia, inicia-se o processo de desvinculação com a atividade ban­cária afastando-se da religiosa, sem contudo perder as características de sigilo e de dis­crição herdadas dos hábitos dos sacerdotes.

A esse respeito Raymond Fahrat (in «Le Secret Bancaire», Sirey, Paris, 1970, pág. 17) indica que «Demóstenes ensinou que, além da atividade ordinária, a custódia de caixas-fortes em que se depositavam os objetos preciosos e valores, os banqueiros de­sempenhavam a função de notários ou mesmo de conselheiros e confidentes de seus clientes, graças ao conhecimento da legislação. Isto leva a crer-se que a profissão de banqueiro embasava-se em normas, umas legais, outras morais. Nesta última categoria poderia situar-se o sigilo bancário».

Já em Roma a obrigação de sigilo bancário havia abandonado o terreno religioso e sagrado que tanta importância teve no seu nascimento, e começa a dar ao instituto uma regulamentação propriamente jurídica, não só reconhecendo sua existência, mas igual­mente disciplinando seus limites. Refere Carvalho de Mendonça que os banqueiros, se­gundo o Direito Romano, exerciam ofício público: officium eorum atque ministerium publicam habet causam (Digesto, Lei n? lO).

Na Idade Média, apesar do obscurantismo que predominou no seu início, as práti­cas bancárias e seu sigilo impuseram-se não só por sua origem e natureza, como tam­bém em face da própria situação histórica medieval que envolvia em brumas e oculta­ções todas as atividades da época.

Segundo Esteban Cottely, a primeira instituição bancária, no sentido moderno, foi o Banco de São Jorge, que teve sua origem nos anos de 1147/1148 e que impunha o dever de segredo a seus empregados, os quais deviam jurar e conservar em sigilo tudo o que soubessem a respeito dos atos e documentos da instituição e de seus clientes.

Na Renascença surgem os grandes capitalistas banqueiros e opera-se a dissemina­ção da atividade bancária por diversos países do mundo, contribuindo, decisivamente, para a implantação da moderna economia creditícia. E uma característica permanente e inarredável das transações bancárias está no direito-dever-ético do Banco de guarda de silêncio, no concernente aos dados e conceitos de valor de sua clientela, de que é depo­sitário em função de seu ofício. Como advertia Carvalho de Mendonça, «um dos pre­ceitos mais recomendados aos banqueiros é a guarda do segredo dos negócios dos seus clientes». Aduíia ainda que «aos banqueiros, por exemplo, muitas operações são con­fiadas, especialmente as de comissão e depósito, a título implicitamente confidencial» (in «Tratado», 2~ ed., vol. lI, pág. 23, e vol. VI, Parte lI, n? 1.374).

Como registra Raymond Fahrat (opus, cit., pág. 20), o Regulamento Francês, de outubro de 1706, já consagrava expressamente no seu art. 8? que «o segredo é absolu­tamente necessário nas negociações de Banco, câmbio, comércio e finanças». E mais, que <mão poderá ser revelado qualquer que seja o pretexto ou causa».

Chega-se, então, a períodos históricos mais recentes, em que se vai, progressiva­mente, consolidando o dever de sigilo bancário em normas jurídicas, seguindo o cami­nho já esboçado no Direito Romano que culminou na atual legislação do sigilo bancá­rio, cujo modelo procura assegurar livre trânsito às atividades bancárias do homo aeconomicus, fazendo uma simbiose da ordem pública com o interesse individual prote­gido.

3. Dimensão legal

É tal a relevância do sigilo para a estabilidade e progresso das relações sociais, que é ele adotado e prescrito no Direito Universal, integrando inúmeros ordenamentos do Direito Comum Brasileiro, como desdobramento de sua raiz constitucional. Com efei­to, é indiscutível a existência de um Direito Constitucional (art. 153, § 9?, da Constitui­ção Federal) destinado a preservar a intimidade e a impedir que seja violado «o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas e telefônicas».

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o vetusto Código Comercial - repetindo a norma dos romanos de que libri mer­catorum non sunt perscrutandi, ne videantur eorum secreta - impedia o livre acesso aos livros dos comerciantes, por qualquer «autoridade, Juízo ou Tribunal, debaixo de pretexto algum, por mais especioso que seja» (arl. 17). Com relação a esse ditame, ad­verte Carvalho de Mendonça:

«Um dos preceitos mais recomendáveis aos banqueiros é a guarda do se­gredo dos negócios de seus clientes» (<<Tratado», vol. VI, Parte IlI, pág. 82).

O Código Penal, por seu turno, prevê como crime (arl. 154) «revelar alguém, sem justa causa, segredo de que tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão ... » E nessa trilha o Código de Processo Penal estatui no art. 207 que «são proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar seu testemunho».

Dentro do arsenal de leis dispondo sobre o assunto, a Consolidação das Leis Tra­balhistas inclui, como uma das hipóteses que constituem justa causa para a rescisão do contrato de trabalho, a «violação de segredo da empresa» (art. 482, g).

O Código Civil, no ar.t. 144, reforça o sigilo dispondo que «ninguém pode ser obrigado a depor de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, deva guardar se­gredo».

Em harmonia com esta norma substantiva civil o Código de Processo Civil estabe­lece que a parte e a testemunha não são obrigadas, em depoimento, a revelar fatos «a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar sigilo» (arts. 347, lI, e 406, lI), do mesmo modo que podem escusar-se de exibir, em Juízo, documento ou coisa, «se a exi­bição acarretar a divulgação de fatos, a cujo respeito, por estado ou profissão, devam guardar segredo» (art. 363, IV).

Já o Código Eleitoral, além de adotar providências para assegurar o sigilo do voto (art. 103), comina penalidades para quem violar do sigilo do voto (art. 312) e o sigilo da urna ou dos invólucros (art. 317).

O Estatuto da OAB (Lei n? 4.215/63), no seu art. 89, lI, insere dentre os deveres do advogado o de «guardar sigilo profissional» (art. 87, V) e inclui dentre os direitos do advogado o de «fazer respeitar, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profis­sional, a inviolabilidade de seu domicílio, do seu escritório e dos seus arquivos».

O Estatuto dos Funcionários Públicos Civis da União (Lei n? 1.711, de 28-10-52) coloca a discrição como um dever funcional (arl. 194, IlI) e aplica a pena de demissão no caso de «revelação de segredo que o funcionário conheça em razão do cargo» (arl. 207, VII). Aliás, a transgressão de tais deveres de discrição e sigilo tem relação estreita com delitos catalogados no Código Penal - a violação do sigilo funcional (art. 325) e a violação do sigilo da proposta de concorrência (art. 326).

Na mesma diretriz, o Estatuto dos Militares (Decreto-Lei n? 1.029, de 21-10-69) ar­rola entre os preceitos da Ética Militar o de «abster-se de tratar, fora do âmbito apro­priado, de matéria relativa à segurança nacional, seja de caráter sigiloso ou não».

A Lei das Sociedades Anônimas (Lei n? 6.404176) também não descurou do sigilo ao dispor, no art. 155, § I?, que o administrador da sociedade deve «guardar sigilo so­bre qualquer informação que ainda não tenha sido divulgada para conhecimento do mercado, obtida em razão do cargo e capaz de influir de modo ponderável na cotação de valores mobiliários, sendo-lhe vedado valer-se da informação para obter, para si ou para outrem, vantagem mediante compra ou venda de valores mobiliários».

Para o ProL Fran Martins in «Comentários à Lei das Sociedades Anônimas», vol. 3, Forense, Rio, 1979, pág. 407), é esse o «chamado dever de lealdade que o adminis­trador tem para com a companhia de que é órgão, mantendo reserva sobre os negócios sociais e não usando, «em benefício próprio ou de outrem, com ou sem prejuízo para a

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companhia, as oportunidades comerCiaIS de que tenha conhecimento em razão do exercício de seu cargo» (art. 155, I).

Esse sigilo é igualmente exigível quando se trata de oferta pública para a aquisição do controle da sociedade, seja por meio de compra de ações, seja por permuta das mes­mas por valores mobiliários de propriedade do ofertante. Nesse sentido, a Lei das So­ciedades Anônimas, no art. 260, estatui que «até a publicação da oferta, o ofertante, instituição financeira intermediária e a Comissão de Valores Mobiliários devem manter sigilo sobre a oferta projetada, respondendo o infrator pelos danos que causar».

Procurando preservar o «transbordamento», a «inundação» ou o «vazamento» de informações dolosamente propaladas com o intuito de gerar a especulação ou com o objetivo de manipular o mercado, a regra de sigilo constante do art. 260 da Lei das So­ciedades Anônimas refere-se, unicamente, à revelacão discriminatória, a um ou alguns investidores apenas, de que uma oferta pública vai ser lançada para a aquisição de de­terminadas ações, ensejando o aproveitamento dessa informação reservada em prejuízo dos vendedores de títulos (<<inside trading»).

Assim, nos termos do art. 260 referido, a Comissão de Valores Mobiliários, to­mando conhecimento prévio da operação, do mesmo modo que o ofertante e a institui­ção financeira intermediária da operação, devem sobre a mesma guardar o sigilo neces­sário.

No âmbito tributário, o CTN determina que a prestação de informações à autori­dade administrativa não abrange os «fatos sobre os quais o informante esteja legal­mente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, ativi­dade ou profissão» (parágrafo único do art. 197). E o art. 198 impõe o dever de sigilo à Fazenda Pública e seus agentes, salvo nos casos de «requisição regular da autoridade judiciária no interesse da Justiça» (parágrafo único do art. 198) ou de «prestação mú­tua de assistência para fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações» (art. 199).

Não é demais acrescer as normas referentes ao sigilo fiscal insertas no Decreto n? 85.450, de 4-12-80:

Art. 673. Todas as pessoas que tomarem parte nos serviços da Secreta­ria da Receita Federal são obrigadas a guardar rigoroso sigilo sobre a situação de riqueza dos contribuintes (Decreto-Lei n? 5.844/43, art. 201).

§ I? A obrigação de guardar reserva sobre a situação de riqueza dos contribuintes se estende a 'todos os funcionários do Ministério da Fazenda e demais servidores públicos que, por dever de ofício, vierem a ter conhecimen­to dessa situação (Decreto-Lei n? 5.844/43, art. 201, § I?).

§ 2? É expressamente proibido revelar ou utilizar, para qualquer fim, o conhecimento que os servidores adquirirem quanto aos segredos dos negócios ou da profissão dos contribuintes (Decreto-Lei n? 5.844/43, art. 201, § 2?).

Art. 674 Aquele que, em serviço da Secretaria da Receita Federal, reve­lar informações que tiver obtido no cumprimento do dever profissional ou no exercício de ofício ou emprego, será responsabilizado como violador de segre­do, de acordo com a lei penal (Decreto-Lei n? 5.844/43, art. 202).

Art. 675 Nenhuma informação poderá ser dada sobre a situação fiscal e financeira dos contribuintes, sem que fique registrado, em processo regular, que se trata de requisição feita por Magistrado, no interesse da Justiça, ou por chefes de repartições federais e Secretários da Fazenda nos Estados e no Dis­trito Federal, no interesse da Administração Pública (Lei n? 3.470/58, art. 54).

§ I? As informações requisitadas pelos Secretários da Fazenda do Dis­trito Federal e dos Estados somente poderão versar sobre a receita e despesa

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das firmas e sociedades, bem como a respeito de propriedades imobiliárias (Lei n? 3.470/58, art. 54, parágrafo único).

li! 2? O Banco Central do Brasil, a Comissão de Valores Mobiliários e a Secretaria da Receita Federal manterão um sistema de intercâmbio de infor­mações, relativas à fiscalização que exerçam, nas áreas de suas respectivas competências, no mercado de valores mobiliários (Lei n? 6.385/76, art. 28).

§ 3? Compete ao Secretário da Receita Federal expedir as instruções ne­cessárias para o cumprimento do disposto neste artigo e no anterior.

Chama-se a atenção, igualmente, para o Decreto n? 79.099, de 6-1-77, que apro­vou o Regulamento para Salvaguarda de Assuntos Sigilosos, disciplinando, dentre ou­tros aspectos, área sigilosa, assunto sigiloso, documento sigiloso, grau de sigilo, mate­rial sigiloso, etc.

Já o art. 2? do Decreto n? 78.382/76 dispensa da publicação obrigatória os contra­tos administrativos que «forem classificados como sigilosos pelo Ministro de Estado ou dirigente de autarquia».

Especificamente no que tange ao sigilo bancário, ganha relevância o art. 38 da Lei n? 4.595, de 31-12-64, verbis:

Art. 38. As instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados.

§ I? As informações e esclarecimentos ordenados pelo Poder Judiciário, presta­dos pelo Banco Central do Brasil ou pelas instituições financeiras, e a exibição de livros e documentos em Juízo se revestirão sempre do mesmo caráter sigiloso, só podendo a eles ter acesso as partes legítimas na causa, que deles não poderão servir-se para fins es­tranhos à mesma.

§ 2? O Banco Central do Brasil e as instituições financeiras públicas prestarão in­formações ao Poder Legislativo, podendo, havendo relevantes motivos, solicitar sejam mantidas em reserva ou sigilo.

§ 3? As Comissões Parlamentares de Inquérito, no exercício da competência constitucional e legal de ampla investigação (art. 37 da Constituição Federal e Lei n? 1.579, de 18 de março de 1952), obterão as informações que necessitarem das institui­ções financeiras, inclusive através do Banco Central do Brasil.

§ 4? Os pedidos de informações a que se referem os §§ 2? e 3? deste artigo deve­rão ser aprovados pelo Plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal e, quando se tratar de Comissão Parlamentar de Inquérito, pela maioria absoluta de seus membros.

§ 5? Os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados so­mente poderão proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depó­sitos, quando houver processo instaurado e os mesmos forem considerados indispensá­veis pela autoridade competente.

§ 6? O disposto no parágrafo anterior se aplica igualmente à prestação de escla­recimentos e informes pelas instituições financeiras às autoridades fiscais, devendo sem­pre estas e os exames serem conservados em sigilo, não podendo ser utilizados senão re­servadamen te.

§ 7? A quebra do sigilo de que trata este artigo constitui crime e sujeita os res­ponsáveis à pena de reclusão, de um a quatro anos, aplicando-se, no que couber, o Có­digo Penal e o Código de Processo Penal, sem prejuízo de outras sanções cabíveis.

Da leitura deste art. 38 da Lei n? 4.595/64 de flui-se que a guarda do sigilo bancário constitui dever legal imposto de forma cogente, sob cominação severa, só de­sobrigando diante de situações definidas, em circunstâncias expressas e ante autoridades que a própria legislação enumera exaustivamente. O desatendimento desses preceitos constitui crime, sujeitando os responsáveis à pena de reclusão, sem prejuízo de outras

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sanções cabíveis. Aliás, a violação do sigilo bancário ocorre quando o seu depositário, qual seja, a instituição financeira ou seu preposto, revela-o a terceiros, estranhos e de­sobrigados de sua manutenção. Desde que revelado, por quem tenha obrigação legal de preservá-lo, a quem não tem essa obrigação, dá-se a violação e, assim, pode-se falar em «quebra» de sigilo.

A expressa obrigação de manter sigilo assentando-se em irrecusável interesse do Es­tado na proteção da economia nacional a que estão intimamente vinculados os negócios bancários e afins, pelo que representam como impulso criador de riquezas, abrange tríplice posição das atividades bancárias, quais sejam: operações ativas, passivas e servi­ços prestados. A respeito de tais atividades, assim doutrina Giuseppe Ferri:

«A atividade atual dos Bancos resulta de uma dúplice categoria de opera­ções: aquelas essenciais à função que é própria dos Bancos (exercício do crédi­to), e que consistem, de um lado, na coleta dos capitais junto aos poupadores (operações passivas) e de outro lado, na distribuição dos capitais (operações ativas); aquelas que consistem na prestação de determinados serviços (chama­dos serviços bancários) a favor do público e que, não obstante a notabilíssima relevância assumida na prática, econômica e juridicamente desempenham uma função apenas assessória e complementar.» In «Manuale di Diritto Commercia­le», Turim, 1971, pág. 680.

Em termos objetivos e concretos, o empréstimo, o desconto, a antecipação, a abertura de crédito, o crédito documentário são exemplos de operações ativas; o depó­sito, a conta corrente, o redesconto são classificados como operações passivas; e o ser­viço de cofres de segurança, a prestação de informações, a cobrança de títulos, etc., são exemplos de serviços prestados a que alude o caput do art. 38 da Lei n? 4.595/64.

Como se vê, a obrigação de manter sigilo que ex surge da própria lei, tanto com­preende o ato de prestar informações, como declarar ou fornecer dados ou documentos relacionados com as operações ou serviços prestados pelos Bancos. Outrossim, a obri­gação legal de sigilo envolve a prestação de informações sejam em sentido afirmativo ou até mesmo negativo acerca das atividades bancárias.

O Consultor-Geral da República, Dr. Adroaldo Mesquita da Costa, no Parecer H-594, acentua que «o sigilo não é estabelecido para ocultar fatos, mas para revestir a re­velação deles de caráter de excepcíonalidade». Nessa mesma linha de raciocínio Nelson Hungria (in Rev. dos Tribunais, vol. 99, pág. 297) observa que «todo dever tem sua ra­zão e limite na utilidade social e não pode deixar de ser, portanto, relativo. A noção de dever do silêncio é tudo quanto há de menos absoluto». A esse propósito é bastante elucidativa e eloqüente a lição de Costa Manso - «O dever de guardar segredo profis­sional não é, pois, absoluto. O que a lei proíbe é a revelação ilegal, a que tenha por móvel a simples leviandade, a jactância, a maldade» (in «Casos Julgados», ed. de 1920, pág. 183).

O sigilo bancário, portanto, não é absoluto e comporta limites naturais e legais. Dentre os limites naturais «figuram o direito de o Banco levar a protesto um título re­presentativo de um empréstimo, de acionar judicialmente o cliente em virtude de uma operação realizada e fornecer dados a respeito da operação quando o cliente solicite, sem que incorra no crime de violação de sigilo». (In «Contratos Bancários», Saraiva, São Paulo, 1981, pág. 50).

Já os limites legais encontram-se no próprio art. 38 da Lei n? 4.595/64, que ar­rola as exceções e hipóteses em que as instituições financeiras podem prestar sigilosas in formações:

a) Em atendimento a solicitações do Poder Executivo, através de agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda e dos Estados, quando houver processo instaura­do. Vale acrescentar, por oportuno, que quando o Código Tributário Nacional, no art. 197, lI, preceitua que «os Bancos, casas bancárias, Caixas Econômicas e demais insti­tuições financeiras» prestem informações às autoridades fiscais tributárias «com relação

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aos bens, negócios e atividades de terceiros», pressupõe-se a existência de inquérito ad­ministrativo, conquanto não houve qualquer abrandamento da Lei n? 4.595/64 que re­quer a existência de processo instaurado (art. 38, § 5?), como condição básica para en­sejar a resposta solicitada.

b) Atendendo a pedido do Poder Legislativo, inclusive por intermédio de suas Co­missões Parlamentares de Inquérito, observada a sua aprovação pelo Plenário da Câ­mara dos Deputados ou do Senado Federal, e, quando se tratar de Comissão Parla­mentar de Inquérito, pela maioria absoluta de seus membros.

c) Em atenção à solicitação do Poder Judiciário, por requerimento de seus órgãos competentes. Aduza-se, nesse tocante, que a Lei n? 5.0 lO, de 30-5-66, no seu art. 44, dispõe que «mediante livre acesso aos registros imobiliários, bem como aos livros e do­cumentos bancários para o cumprimento de mandado de penhora, seqüestro, arresto, busca ou apreensão de bens ou dinheiro em favor da União ou de suas autarquias». Assim, desde que circunscrita às relações jurídicas litigiosas, e no interesse maior da Justiça, configura-se legítima e legal a revelação da verdade resguardada pelo segredo bancário.

Aduza-se que, em face do advento da Lei n? 7.492, de 16-6-86, mais conhecida co­mo «lei do colarinho branco», o Ministério Público Federal passou também a ser órgão detentor da prerrogativa para requisitar informações, documentos e diligências no âm­bito do Sistema Financeiro Nacional, sem que se lhe possa opor o óbice do sigilo ban­cário, como se lê no art. 29 e seu parágrafo único, verbis:

«Art. 29. O órgão do Ministério Público Federal, sempre que julgar ne­cessário, poderá requisitar, a qualquer autoridade, informação, documento ou diligência relativa à prova dos crimes previstos nesta lei.

Parágrafo único. ' O sigilo dos serviços e operações financeiras não pode ser invocado como óbice ao atendimento da requisição prevista no caput deste artigo.»

As indagações e solicitações de autoridades de quaisquer dos poderes menciona­dos, cujo atendimento implique em revelação do sigilo bancário, só devem ser obedeci­das quando apoiadas em texto legal explícito, ou seja, nas exceções ao segredo bancário constantes de hipóteses taxativas, exaustivas e restritivas de lei.

Arnaldo Vasconcelos (in «Sigilo Bancário», Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 69, pág. 26) explicita de forma bem didática que, «de acordo com os princípios da le­gislação em vigor, o fornecimento de informações, que revestirá sempre caráter sigilo­so, deve subordinar-se, cumulativamente, às seguintes condições:

a) permissibilidade legal (exceções contempladas); b) apresentação de parte legítima para requerê-la; c) existência de fato (processo) que justifique o pedido; e d) compromisso de utilizá-las para as finalidades específicas em causa». O Projeto do Código Civil, em tramitação, ao tratar dos contratos bancárÍos, não

olvidou de disciplinar o sigilo bancário através do art. 868, verbis:

Art. 868. Os Bancos guardarão sigilo sobre as suas operações, salvo a obrigação de prestar informações às autoridades na forma e nos termos permi­tidos em lei ou regulamento.

Parágrafo único. É facultado ao Juiz requisitar ao Banco informações discriminadas sobre os elementos da operação, a pedido de quem tenha legíti­mo interesse, quando considerar necessário à decisão da lide.

Igualmente no campo da lege ferenda, dentre as subemendas apresentadas à Co­missão Mista do Congresso Nacional que examinou a Proposta de Emenda Constitucio­nal n? 11/84, destaca-se a Emenda n? 139, de 11-5-84, que tem como um dos seus obje-

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tivos alterar o art. 153, § 9?, da Constituição Federal, que passaria a vigorar com a se­guinte redação:

«Art. 153. § 9~' É inviolável o sigilo bancário da correspondência e das comunica­

ções em geral. A conta bancária do indivíduo não será objeto de investigação, nem servirá de base impunível para a tributação.»

A justificativa para alçar o sigilo bancário, a nível constitucional, enfatiza que «a conta corrente do particular», enquanto mero depósito bancário, representa na prática «a extensão até o recinto do Banco», de um «espaço» da residência do indivíduo. Isto porque, ao invés de guardar seu dinheiro num compartimento reservado (cofre, gaveta, etc.) de sua moradia, o particular, para maior segurança, ou porque é mais prático, op­ta por depositá-lo em estabelecimento bancário.

A Constituição Federal, no § 10 do art. 153, estatui que «a casa é asilo inviolável do indivíduo».

Logo, se o dinheiro do particular está resguardado da intromissão de terceiros e do próprio Estado, enquanto estiver guardado no interior da moradia, é de evidência lógi­ca e cristalina de que essa proteção estende-se à conta bancária, se o cidadão optar pelo depósito daquele dinheiro em Banco.

Por outro lado, argumenta-se que o sigilo bancário está desprotegido, pois é co­mum ao Estado realizar abusiva devassa em contas bancárias particulares por meio de requisições feitas por seus órgãos de polícia.

Além desses motivos justificadores da introdução de um mandamento que ampare, constitucionalmente, o sigilo bancário, alega-se que os sistemas modernos de computa­ção eletrônica de operações bancárias têm facilitado o acesso de pessoas estranhas a in­formações privativas de depósitos bancários de terceiros.

«Desponta claro, por conseguinte, mais uma vez, a necessidade de que, com base no princípio constitucional que objetiva a contenção do poder,. seja o Estado refreado em favor da segurança do indivíduo, abstendo-se, ele próprio, de fazer devassa em con­tas bancárias dos depositantes, insculpindo-se e resguardando-se na Lei Maior o sigilo bancário irrestrito.

Emerge, neste rumo de idéias, o princípio segundo o qual, «quando assecuratórios de direitos a serem opostos ao exercício do poder estatal, as normas constitucionais passam a coincidir com os próprios objetivos da Constituição, em si mesma considera­da». Assim, para «fortificar» a área de proteção privada, e o desfrute pelos indivíduos das liberdades públicas, o Estado tem que se autoconter, demarcando na Constituição, para determinadas matérias, uma área de liberdade individual, na qual, ele, o Estado, não pode ingressar, mediante a observância do preceito auto-regulatório que haja edita­do.»

Afigura-se oportuno destacar o Projeto de Lei n? 68, do Senado Federal, que pre­tende dar ao caput do art. 38 da Lei n? 4.595/64 a seguinte redação:

«Art. 38. As instituições financeiras conservarão sigilo em suas opera­ções ativas e passivas e serviços prestados, exceto nas que, total ou parcial­mente, envolvam recursos públicos de qualquer natureza, ainda que apenas na condição de repassadoras.»

A justificativa da modificação proposta respalda-se na constatação de que opera­ções financeiras envolvendo recursos públicos são, muitas vezes, realizadas de formas que desatendem às cautelas indispensáveis à preservação do erário. A divulgação de tais operações constituir-se-ia num modo adicional de fiscalização da utilização desses recursos, impedindo que o instituto do sigilo bancário fosse usado para acobertar situa­ções não enquadráveis nos seus reais objetivos e nem sempre compatíveis com os inte­resses da sociedade e do País.

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Assinale-se que na seara dos recursos financeiros públicos, a publicidade constitui requisito de eficácia e moralidade dos atos administrativos a ele referentes, como ex­surge da lição de Hely Lopes Meirelles (in «Direito Administrativo Brasileiro», 10~ ed., Ed. RT, São Paulo, 1984, págs. 64/65):

«Em principio, todo ato administrativo deve ser publicado, porque públi­ca é a administração que o realiza, só se admitindo sigilo nos casos de segu­rança nacional, investigações policiais ou interesse superior da administração a ser preservado em processo previamente declarado sigiloso nos termos do De­creto Federal n? 79.099, de 6-1-77. Lamentavelmente, por vício burocrático, sem apoio em lei e contra a índole dos negócios estatais, os atos e contratos administrativos vêm sendo ocultados dos interessados e do povo em geral, sob o falso argumento de que são sigilosos, quando na realidade são públicos e devem ser divulgados e mostrados a qualquer pessoa que deseja conhecê-los e obter certidão.

A publicidade, como principio de administração pública, abrange toda a atividade estatal, não só sob o aspecto de divulgação oficial de seus atos como também de propiciação de conhecimento da conduta interna de seus agentes. Essa publicidade atinge, assim, os atos concluídos e em formação, os proces­sos em andamento, os pareceres dos órgãos técnicos e jurídicos, os despachos intermediários e finais, as atas de julgamentos das licitações e os contratos com quaisquer interessados, bem como os comprovantes de despesas e as pres­tações de contas submetidas aos órgãos competentes. Tudo isso é papel ou do­cumento público que pode ser examinado na repartição por qualquer interes­sado e dele obter certidão ou fotocópia autenticada para os fins constitucio­nais.»

Há de examinar-se, neste projeto de lei, o conflito entre o instituto do sigilo ban­cário e a publicade de que se deve revestir o emprego e a utilização de recursos finan­ceiros públicos. Com efeito, por um lado, há os que se apegam à precaução de segredo nos negócios bancários justificada pelas características peculiares do setor financeiro, tanto em defesa dos clientes quanto pelo interesse de toda a sociedade na confiabilidade e solidez do sistema financeiro, vital ao funcionamento global da economia. Por outro lado, há os defensores da tese de que as normas legais dos Estados democráticos exi­gem como obrigação inarredável a prestação de contas que fazem os administradores dos dinheiros públicos, não havendo como aplicar-se na espécie o sigilo bancário, de modo a sobrepor-se ao interesse social e moral de obter informações para aferir a efi­ciência e a probidade da gestão e utilização dos recursos financeiros públicos.

Constata-se, então, que apesar dos preceitos vigorantes, especialmente o art. 38 e seus parágrafos, da Lei n? 4.595/64 e, ultimamente o art. 29 e parágrafo único da Lei n? 7.492/86, o legislador pátrio, através das propostas de lege ferenda, procura ora re­forçar, ora delimitar o raio de incidência do sigilo bancário, sem perder de vista sua fonte inspiradora que é o interesse de ordem pública.

De toda sorte, qualquer mutação legislativa na disciplina do instituto do sigilo ban­cário impõe cautelosa meditação para que eventuais alterações que venham a ser con­cretizadas não resultem no desfazimento de valores de alta significação que o legisla­dor, de todos os recantos do mundo, sempre buscou preservar e resguardar.

4. Dimensão doutrinária

A doutrina, na concepção de Marcello Caetano (in «Manual de Direito Adminis­trativo», vaI. I, Forense, 1970, pág. 87), tem dois papéis: o de auxiliar os órgãos de aplicação e interpretação do direito constituído e o de influenciar os órgãos de criação quanto ao direito constituendo. Para Orlando Gomes, é por intermédio da doutrina «que se constroem as noções gerais, os conceitos, as classificações, as teorias, os siste­mas, facilitando a criação, a reforma e a aplicaçã.o do Direito». E como arremata Gas-

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ton Morin, cabe à doutrina «a honrosa tarefa de transformar o direito vivo sem tocar no direito escrito».

Nesta linha de argumentação passa-se à análise das construções doutrinárias, ou seja, das teorias que dão forma jurídica ao sigilo bancário, especialmente, no plano técnico-j urídico.

Com «a metamorfose das fortunas imobiliárias em valores mobiliários» a que alu­dia Ripert (opus. cit., pág. 135), o sigilo bancário alcança grande significação e torna­se pedra angular da atividade bancária, seja como meio de proteção do capital maneja­do pelos Bancos em nome ou em lugar de seus clientes, seja como pressuposto das cha­madas «relações de confiança» em face do «secreto que el Banco guarda acerca de las operaciones que el cliente le confía».

O fundamento jurídico do sigilo bancário afigura-se como um tema controvertido que tem ensejado as mais variadas teorias no âmbito da doutrina, não só porque os ju­ristas deixam-se influenciar por aspectos próprios dos campos sócio-político-econômico, como também porque a matéria carece de uma regulamentação global e integrada que propicie uma visão conjuntural.

São estas as principais vertentes doutrinárias em derredor dos jurídicos fundamen­tos do sigilo bancário.

a) Teoria do Uso Esta corrente doutrinária entende que está no uso e costume o fundamento do sigi­

lo bancário, sendo os juristas Molle e Goisis, na Itália, e Garrigues, na Espanha, seus principais defensores.

De acordo com Molle (in «Ordine de esibizione di doeu menti e segreto bancario», em Banca, Borsa e Titoli de Crédito, 1954, 11, pág. 253), o sigilo bancário assenta-se no uso que se faz obrigatório através da integração do contrato, ex vi do art. 1.374 do Código Civil italiano. Tal doutrina encontrou eco na jurisprudência italiana, cuja Corte de Casación, em 18-7-74, decidiu que «sobre la base de una práctica constante­mente seguida en orden ai respecto de la considerada obligación dei secreto bancario, se ha formado un uso vinculante como fuente dei Derecho».

Esta teoria consuetudinária é convalidada por Garrigues (in «Contratos Banca­rios», Madrid, 1953, pág. 52), para quem «el fundamento dei deber de secreto que tie­nen los Bancos hay que buscarlo, una vez más, en las normas usuales de general vigen­cia, y el fundamento, a su vez, de este uso bancaria hay que buscarlo en la naturaleza antes apuntada dei contrato bancario como una relación de confianza».

Convém salientar que esta teoria do uso pode ser válida nos sistemas jurídicos em que o sigilo bancário não foi consagrado legalmente. Desse modo, onde há uma confi­guração positiva do sigilo bancário, tal doutrina vê-se obrigada a ceder lugar a outras que tenham fundamentos no campo legal. como ocorre no caso brasileiro.

b) Teoria do Contrato Há os defensores da teoria que justificam o sigilo bancário como um dever jurídi­

co oriundo da relação contratual que une o Banco ao cliente. Dentro deste quadro, o sigilo bancário coloca-se como uma das arestas fundamentais em que se sustentam as operações bancárias, ou seja, os contratos bancários que constituem sua forma jurídica principal.

Segundo Sheerer, citado por Garrigues (opus cit., pág. 51), «Ia obligación de se­creto seria un deber accesorio (rebenpflicht) que se sitúa ai lado dei deber principal ob­jeto dei contrato». Vale dizer, o contrato bancário, por ser uma relação eminentemente fiduciária, impõe ao Banco a obrigação contratual de manter o sigilo, como necessário dever acessório.

A grande dificuldade na tese contratualista fica por conta da inexistência de uma cláusula expressa superada, de certo modo, pela jurisprudência do Reino Unido que consagrou, no caso «Tournier V. National Provincial Bank», a tese de que a convenção

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de vincular o banqueiro a seu cliente tem uma cláusula implícita que obriga o banquei­ro a observar o sigilo relativamente à conta e às operações de seu cliente.

Rafael J. Parga (<<EI secreto bancario nel Derecho espanol», in Rev, de Der. Mer­cantil, n? 113, 1969, pág. 397) assinala que «no puede recurrirse ai fá~il expediente de estimar que se trata de una cláusula tácita o de que es obligación accesoria de otra prin­cipal. En definitiva, se está, con este modo de proceder, eludiendo el problema capital, cu ai es determinar concretamente el punto de apoyo de la conducta que' se exige ai Ban­co de guardar silencio o secreto».

Insurgindo-se contra a doutrina contratual, Luis M. Gazorla Prieto (opus cit., pág. 67) afirma que «en realidad, cu ando se recurre ai principio de la voluntad contrac­tual implícita, no se hace más que mezclar el postulado contractual con otros en los que ocupa un lugar destacado la consideración de que el fundamento dei secreto esta por encima de la voluntad contractual, en qualquiera de sus manifestaciones».

c) Teoria de Segredo Profissional A teoria do segredo profissional como fundamento do sigilo bancário tem sido de­

batida nas doutrinas de diversos países. Raymond Fahrat (opus cit., pág. 23) sustenta que a maior parte dos sistemas

jurídicos contemporâneos tem a tendência de incluir o banqueiro na lista de pessoas submetidas às prescrições da regra geral do sigilo profissional. Consagram, a partir daí, a regra autônoma de um segredo profissional do banqueiro «que constituye en la maté­ria el sistema fundamental y el derecho común de la discreción bancaria».

Na França, o mais importante defensor desta teoria é Hamel, ao argumentar que a obrigação de sigilo inclui-se dentre aquelas inerentes a outros profissionais, sendo certo e induvidoso que o banqueiro está sujeito ao segredo profissional, não só enquanto meio indispensável para o exercício das atividades bancárias, como também por força do papel que tais atividades desempenham na vida cotidiana.

Ensina Georges Ripert, com referência ao Direito francês, que o banqueiro está obrigado a guardar segredo profissional em relação às operações de que trata com seus clientes. (<<Traité Elémentaire de Droit Commercial», 2~ ed., n? 2.044).

Em contrapartida, as monografias de André Perrand - Charmantier (<<Le Secret Profissionnel - Ses Limites - Ses Abus») e de M. A. Iman (<<La Responsabilité du Banquier en Matiere de Dépôt»), ambas citadas no trabalho de Noé Azevedo, não in­cluem os banqueiros entre os profissionais que são obrigados a guardar segredo, con­quanto não estão entre as pessoas enumeradas pelo art. 378 do Código Penal francês e de outras que por leis especiais têm de observar o segredo profissional.

P. Gulphe (<<Du secret profissionnel du banquier em droit français et en droit com­paré», in «Revue Trimestrielle de Droit Commercial», 1948, pág. 121) reforça esta po­sição explicitando que «na ausência de disposição legal especial a doutrina convenceu-se de que os banqueiros estão excluídos do âmbito de aplicação do art. 378 do Código Pe­nal» .

Na Itália, Crespi, apoiado no art. 622 do Código Penal, sustenta que por segredo profissional «não se deve entender apenas o segredo do profissional, (stricto sensu), e sim «o segredo inerente ao exercício profssional de determinada atividade», hipótese que permite a inserção da atividade bancária em tal enquadramento.

Os críticos desse posicionamento entendem, por sua vez, que o citado art. 622 não permite a extensão da obrigação do segredo a todas as categorias profissionais, sendo inadmissível sua «extensão analógica».

Na Alemanha, a doutrina encontra-se dividida, pois, enquanto alguns autores asse­guram que o segredo bancário é um autêntico segredo profissional, outros tratadistas defendem a tese de que os banqueiros não se sujeitam ao segredo profissional por não estarem compreendidos na enumeração taxativa e exaustiva da norma penal respectiva.

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Na Suíça, o art. 47 da Lei Bancária de 1934 consagrou o caráter profissional do si­gilo bancário, quando prevê uma sanção penal (de natureza pecuniária - até 2.000 francos suíços, ou, restritiva de liberdade até 6 meses de prisão) para quem «quebrou o sigilo que deve guardar por disposição expressa de lei ou em virtude de segredo profissional». Em consonância com este critério, Schweizer (<<Prácticas bancarias sui­zas», in Rev. Bancaria, México, vol. VIII, n? 3, 1960, pág. 226) observa que «Ias nor­mas procesales de algunos cantones expresamente incluyen a los banqueros entre quie­nes pueden excusarse de rendir testimonio en asuntos que impliquen secreto profesio­nal».

d) Teoria da Obrigação Jurídica A justificativa doutrinária do sigilo bancário, dentro da ótica do Direito brasileiro,

não comporta, por exemplo, a assertiva de Lauro Muniz de que «os banqueiros respei­tam o segredo bancário, não como ato apenas voluntário, mas com a convicção de ob­servância de uso e costume consagrado, e de uma obrigação moral e legal» (in «Direito Bancário», Liv. Ed. Univ. de Direito Ltda., São Paulo, 1975, pág. 393).

A rigor, a concreção positiva ou a existência do dispositivo jurídico escrito (art. 38 da Lei n? 4.595/64) elide a fundamentação do sigilo bancário como resultado da «ob­servância de um uso e costume consagrado». Outrossim, ressai da lição de Rafael J. Parga (opus. cit., pág. 393) que, «en rigor, el secreto bancario es una obligación jurídi­ca. Constituye una obligación para el Banco. He aquí su naturaleza jurídica».

Nessa perspectiva, o sigilo bancário é uma obrigação jurídica e o seu fundamento repousa em uma norma legal, em sentido material. Acresça-se, no entanto, que tal jus­tificação doutrinária não tem um caráter generalizante, não sendo extensiva a todos os ordenamentos jurídicos, especialmente àqueles em que o tratamento do sigilo bancário refoge à consagração jurídico-positiva.

Nesse ponto é preciso não olvidar a relatividade da doutrina, posto :jue, de acordo com Luis M. Cazorla Prieto (opus. cit., pág. 80), «Ia justificación jurídica de la discre­ción bancaria no es dogmática e invariable, sino que ha dependido segÚI1 tenemos ya noticia de los diversos ordenamientos jurídicos y dei grado a\canzado por los mismos en su tratamiento».

Por outro lado, o fundamento jurídico do sigilo bancário, como obrigação jurídica decorrente de dispositivos legais do nosso ordenamento ganha um significado maior quando se analisa seus limites· que constituem «justa causa de revelación dei secreto bancario», em face da valoração de normas e interesses superiores juridicamente prote­gidos, cujas hipóteses, ex vi legis, não importam em violação ou quebra do sigilo ban­cário.

5. Dimensão jurisprudencial

Um trabalho desta natureza não poderia deixar a la tere os aspectos jurispruden­ciais do sigilo bancário, conquanto a jurisprudência ou «direito aplicaaol>, pelas suces­sivas interpretações, opera uma contínua valoração da norma, fazendo-a respeitada en­quanto conquista confiança e respeito para si própria. Todos sabemos que o legislador imprime às leis suas ilusões e, à jurisprudência cabe a tarefa de torná-Ias reais.

Desempenhando a tríplice função de aplicar a lei, de ajustá-Ia às necessidades sócio-econômicas e de colmatar as lacunas da lei, andando com os fatos adiante dela, a ação e missão da jurisprudência é destac(J,da por Rui Barbosa quando assevera que «so­berano é só o Direito interpretado pelos Tribunais», enquanto é de Antolin Del Cueto a assertiva de que «Ia ley reina y la jurisprudencia gobierna».

Veja-se, agora, a dimensão jurisprudencial do sigilo bancário expressa nos Acór­dãos a seguir transcritos:

1. «O banqueiro está obrigado a fornecer informações requisitadas por autoridade judiciária sobre determinada conta de cliente, para a provas de fa-

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tos articulados em ação de indenização ex delicto, na qual é parte.» (Ac n~s 41.348 e 41.370, in Rev. dos Tribunais, vol. 179, pág. 650).

2. «Ação entre parceiros rurais. Documento requisitado ao Banco pelo Juiz. Sigilo determinado pela Lei n~ 4.595/64. Informações. Segurança conce­dida em parte.» (Ac n? 94.481 - SP - 2~ Tribunal de Alçada Civil, in RT 529/148).

3. «O sigilo não desobriga o Banco a prestar informações pedidas pelo Juiz, para instruir processo.» (Ac n? 96.957 - SP - TJ, in RT 312/153).

4. «Mandado de Segurança. Matéria criminal. Requisição de informa­ções a estabelecimento de crédito sob pena de desobediência. Pretendida vio­lação do sigilo bancário e, conseqüentemente, de direito líquido e certo. Ino­corrência. «Writ» denegado. Inteligência do art. 38, § 1~, da Lei Federal n~ 4.595/64.» (Ac n? 98.402 - SP - TJ, in RT 403/136).

5. «Inexiste sigilo bancário contra os interesses da Justiça. O princípio do sigilo comercial não é, nem poderia ser absoluto; deve ceder ante os inte­resses da Justiça, sobretudo quando se cogita de apurar, mediante informa­ções bancárias imprescindíveis, atos atinentes à constituição da sociedade anô­nima, que atinge o patrimônio de terceiros.» (AI n~ 7.740 - RS - TJ, in RT 343/498).

6. «Os Bancos não se podem eximir de ministrar informações, no inte­resse público, para esclarecimento da verdade, essenciais e indispensáveis ao julgamento de desenlace de demandas submetidas ao Poder Judiciário.» (RMS n~ 1.047 - STF, in Rev. Forense, vol. 143/154).

7. «Sigilo bancário. As decisões na instância ordinária entenderam que em face do CTN o segredo bancário não é absoluto. Razoável inteligência do Direito Positivo Federal, não havendo ofensa ao disposto no art. 153, § 9~, da Lei Maior, nem tampouco negativa de vigência do art. 144 do Código Civil. O objetivo do «writ» era afastar a exigência de apresentação de fichas contábeis, ao fundamento de violação de sigilo bancário. Inocorrência de dissídio juris­prudencial. Recurso Extraordinário não conhecido.» (RE n~ 7.1.640 - do STF, in RTJ 59/571).

8. «Direito à obtenção de certidões (art. 153, § 35, da CF). Caso em que, considerada a índole da autarquia, a negativa tinha apoio ná garantia de sigilo bancário.» (RE n~ 82.700 - SP, in RTJ 76/655).

9. Sigilo Bancário. Contas de depósitos. Fiscalização tributária. «Administrativo e tributário. Repetição de indébito. Sigilo bancário.

CTN, art. 197. Lei n~ 4.595/64, art. 38. I - O exame de documentos e regis­tros de contas de depósito nas instituições financeiras, para efeito de fiscaliza­ção dos tributos federais, dependerá de autorização em cada caso específico, sendo que, no presente, a intimação dirigida ao Banco autor para prestar in­formações, atendeu os requisitos da Portaria OB n~ 493/68, do Sr. Ministro da Fazenda, editada visando a facilitar a fiscalização.

II - Os textos dos arts. 197 do CTN - são os Bancos obrigados, me­diante intimação escrita, a prestar à autoridade administrativa todas as infor­mações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros - e 38 da Lei n~ 4.595/64 - as instituições financeiras conservarão sigilo em suas operações ativas e passivas e serviços prestados - não se confli­tam; ao contrário, convivem em harmonia.

III - Apelação a que se nega provimento.» (AC n~ 47.875 - MO -TFR, in Dl de 16-9-82, pág. 9.056).

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10. Sigilo bancário. Poder Judiciário. «Mandado de Segurança. Sigilo bancário. As informações e esclarecimen­

tos ordenados pelo Poder Judiciário, prestados pelas instituições financeiras ou bancárias, excepcionam a obrigatoriedade do sigilo que, contudo, opera como regra. A salvaguarda se transfere, porém, ao órgão judicial e às partes legítimas da causa (Lei n? 4.596/64, art. 38, §§ I? e 7?, MS n? 2.434 - MG; Jurisprudência Mineira, v. 63-58 a 63). Segurança denegada.» (MS n? 97.254 - MA - TFR, in Dl de 4-11-82, pág. 11.183).

11. Bacen. Inquérito Policial contra Chefe de Departamento Regional. Habeas Corpus.

«Penal. Habeas Corpus. Inquérito Policial. Chefe de Departamento Re­gional do Banco Central elo Brasil e Chefe Adjunto do mesmo órgão, em São Paulo. Quebra de sigilo bancário por parte de Gerente de Agência do Banco do Brasil S.A. Pedido do Departamento Regional do Banco Central para apli­car sanção administrativa contra aquele servidor do Banco do Brasil. Todavia, o aludido departamento não possui atribuições para tanto, tendo o respectivo chefe tomado as providências que lhe cabia, encaminhando o caso à direção superior do Banco Central do Brasil, em Brasília - DF. Destarte, os ora pa­cientes não se omitiram em praticar qualquer providência a propósito do fato ocorrido na área do Banco do Brasil S.A. A requisição de Inquérito Policial, pelo MM. Juiz Federal, se baseou na alegação do Dr. Procurador da Repúbli­ca de que teria tido andamento tortuoso o ofício encaminhado por aquele Ma­gistrado ao Departamento do Banco Central do Brasil, cujos chefe e chefe ad­junto teriam praticado os delitos de desobediência ou prevaricação. porém, a prova documental existente nestes autos não demonstra, em tese, a existência quer de prevaricação, quer de desobediência. Falta, por ISSO, justa causa para a ação penal e, pois, para a instauração de inquérito Policial contfa os ora pa­cientes. Assim, concede-se a ordem de Habeas Corpus em favor dos ora pa­cientes, determinando-se o trancamento do Inquérito Policial, que fora requi­sitado pelo MM. juiz Federal da 3? Vara, Seção Judiciária do Estado de São Paulo.» (HC n? 443/7 - 27-8-80 - SP - TFR - Dl de 20-8-80).

6. Dimensão prática

Os problemas práticos aqui ·enfocados não são de mero alcance doutrinário, e mui­to menos acadêmico, por envolverem antes conseqüências pragmáticas, sobretudo para propiciar uma segura interpretação e aplicâção dos preceitos sobre sigilo bancário.

A Lei n~ 4.595/64, ao disciplinar, no art. 38, de forma rígida e inflexível, a prote­ção do sigilo bancário, fê-lo assentando-se em princípios de ordem eminentemente pú­blica, considerando que da discrição das operações das instituições financeiras muito depende a sobrevivência de todo o sistema bancário.

No entanto, é o próprio art. 38 que, em seus parágrafos, indica as condições e cIr­cunstâncias em que o sigilo bancário pode ser revelado, ao enumerar, expressa e exaus­tivamente, as autoridades ou órgãos a quem poderão ser prestadas informações que contenham matéria sigilosa E é exatamente em torno de fatos e operações Que interes­sam à Justiça, à Administração Pública, ao Poder Legislativo e à segurança nacional que surgem os problemas práticos relacionados com o resguardo do sigilo bancário:

a) As solicitações ordenadas pelo Poder Judiciário, porque fundadas no § I? do art. 38 da Lei n? 4.595/64, hão de ser atendidas e não se pode falar de violação de sigi­lo, na medida em que se trata de transferência da obrigatoriedade de manutenção do segredo, pois as informações e esclarecimentos prestados «revestirão sempre do mesmo caráter sigiloso, só podendo a eles ter acesso as partes legítimas na causa, que del.es não

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poderão servir-se para fins estranhos à mesma». Vale dizer, fica a cargo do JuíZG> a res­ponsabilidade pela não divulgação do que lhe foi confiado em caráter sigiloso.

Note-se que sob o fundamento de que cabe ao Banco Central do Brasil a autori­zação para que as instituições financeiras possam funcionar (art. 18 da Lei n? 4.595/64) e que o Bacen (autarquia federal) exercita, privativamente, a fiscalização das institui­ções financeiras (art. 10, VIII, da Lei n:' 4.595/64), não raro o Poder Judiciário, objeti­vando facilitar sua tarefa, determina a prestação de informações sobre contas, movi­mentações e operações de pessoas físicas e jurídicas em determinada praça ou Estado.

Impende evidenciar, em primeiro lugar, que o Bacen, de acordo com o art. 12 da Lei n? 4.595/64, opera «exclusivamente com instituições financeiras públicas e pri­vadas, vedadas operações bancárias de qualquer natureza com outras pessoas de direito público ou privado, salvo as expressamente autorizadas por lei.»

Em segundo lugar, uma análise detida do § I? do art. 38 referido mostra que as informações e esclarecimentos são «prestados pelo Banco Central do Brasil ou pelas instituições financeiras», donde se conclui que a solicitação só pode ser atendida por quem detém as informações, ou seja, o Bacen não é obrigado a informar sobre a vi­da bancária de pessoas com as quais está, inclusive, legalmente impedido de concretizar «operações bancárias de qualquer natureza» (art. 12 da Lei n? 4.595/64). Ressalte-se, aqui, a diferença que exsurge em relação às informações solicitadas pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, que devem ser obtidas «das instituições financeiras, inclu­sive através do Banco Central do Brasil» (art. 38, § 3?). Assim, fazendo uma interpre­tação sistemática do § I? do art. 38, infere-se nesse lavor exegético que os ás~entamen­tos e registros operacionais decorrentes das relações das instituições financeiras com ter­ceiros (clientes) não são coligidos «através do Banco Central do Brasil» pois, quando o legislador assim o quis, fê-lo de forma clara, expressa e inequívoca, como se lê no § 3? do art. 38, in fine. Aplica-se, in casu, a advertência de Maximiniano para quem «a ver­dade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida: examine-se a norma na íntegra, e mais ainda: o Direito todo, referente ao as­sunto.»

É preciso não olvidar que o Bacen não conta entre os elementos de fiscalização e controle, que a lei lhe deferiu, o de exercer coação direta ou indireta sobre instituições financeiras, de modo a pressionar as respectivas administrações no sentido de que prati­quem atos de responsabilidade pessoal, eventual e circunstancialmente configurados co­mo crime (art. 38, § 7?, da Lei n? 4.5951(64), daí porque não compete ao Judiciário ob­ter informações próprias das instituições financeiras «através do Banco Central do Bra­sil».

Por isso, com relação aos pedidos do Poder Judiciário, no que tange ao forneci­mento de extratos de contas ou indagações sobre a existência de depósitos, o Bacen es­tá, materialmente, impossibilitado de atendê-los, visto não dispor de registros dos cor­rentistas da rede bancária. Além disso, falta ao Bacen competência ou base legal para colher, junto às instituições financeiras, dados outros que não os destinados às suas es­pecíficas atividades de fiscalização. Com efeito, dentre os poderes de fiscalização por lei conferidos ao Bacen, não se inclui o controle de depósitos e demais operações que as instituições financeiras celebram com pessoas físicas e jurídicas.

Também, com referência à determinação de bloqueio de contas bancárias, não está o Bacen autorizado por lei a impor tal medida aos estabelecimentos bancários, cabendo à autoridade judiciária dirigir-se diretamente a tais instituições financeiras que, sob sua exclusiva responsabilidade, adotarão a medida que lhes parecer mais certa e adequada, arcando com as conseqüências de seu procedimento.

Em síntese, o Bacen só é obrigado aprestar, por ordem do Poder Judiciário, as in­formações que tiver, isto é, constante de seus arquivos e registros. Deste modo, as soli-

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citações dos Juízes, Desembargadores e Ministros a respeito de elementos de fato situa­dos na área de mera relação entre as instituicões financeiras e a respectiva clientela, hão de ser feitas diretamente aos estabelecimentos creditícios que são obrigados a respondê­las, por força do disposto na Lei n? 4.595/64 (art. 38, § 1 ?).

b) No âmbito do Poder Legislíltivo e comum o ptldido de informações formulado por Deputados, Senadores ou por Comissão Parlamentar de Inquérito sobre operações ativas e passivas e serviços de instituição financeira com solicitação, ainda, de nomes de clientes, valores de operações, extratos de contas, etc.

Preliminarmente, deve acentuar-se que, de acordo com o disposto no § 2? do art. 38 da Lei n? 4.595/64, as informações são devidas e prestadas ao Poder Legislativo, e não individualmente, a este ou àquele parlamentar. Por isso, para que o atendimento de pleitos da espécie não configure quebra de sigilo bancário, condiciona-se à «aprova­ção pelo Plenário da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal e, quando se tratar de Comissão Parlamentar de Inquérito, pela maioria absoluta de seus membros», como determina o § 4? do art. 38 da Lei n? 4.595/64.

Convém salientar que tal exceção só contempla o Poder Legislativo Federal; vale dizer, a proteção específica e excepcional da Lei n? 4.595/64 não abrange os membros e CPI de Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores, conquanto os *§ 2?, 3? e 4? do art. 38 hão de ser interpretados em conjunto, e nunca, isoladamente, daí porque o acesso de Deputados Estaduais de Vereadores e de CPI estadual ou municipal a da­dos sigilosos torna as instituições financeiras sujeitas às conseqüências penais e adminis­trativas que a divulgação acarreta.

Aduza-se 'que, no plano constitucional, a fiscalização das operações de crédito é matéria que se insere na órbita de competência exclusiva da União (art. 8?, X, da Constituição), não assistindo às Assembléias Legislativas dos Estados ou às Câmaras de Vereadores competência constitucional paru exercer, mesmo em caráter suplementar, fiscalização sobre operações sujeitas ao regime da Lei n? 4.595/64, ainda que estas ins­tituições sejam entidades da Administração Direta ou Indireta, estadual ou municipal.

Dentro desta perspectiva o Jurista Carlos Medeiros (in Rev. do Direito Adminis­trativo, vol. 64, pág. 7) acentua que «as Comissões Parlamentares de Inquérito são ór­gãos de investigação do Legislativo, na esfera de sua competência. Assim, os poderes de uma comissão, organizada pelo Legislativo estadual, não poderão exorbitar das atri­buições deste. Somente nas matérias de competência estadual poderá ela atuar e obrigar o comparecimento de autoridades, servidores e quaisquer pessoas. Se a matéria, que constitui objeto da investigação, escapa à competência legislativa do Estado, ninguém poderá ser constrangido a prestar-lhe declarações nem a depor contra si próprio, sob cominação legal.

Ainda recentemente o Supremo Tribunal Federal teve oportunidade de afirmar esta tese, livrando autoridade federal de ameaça de prisão por não haver atendido à convo­cação de Comissão de Inquérito constituída por Assembléia Legislativa estadual (HC n? 37.996, sessão de 16-11-60)>>.

Deixando de lado outros aspectos, cumpre explicitar que o poder das CPIs esta­duais e municipais deve ficar adstrito à órbita de suas atribuições, vale dizer, somente são investigáveis os «fatos que possam ser objeto de legislação, de deliberação, de con­trole, de fiscalização» (in «Rev. de Inf. Leg., vol. 69, pág. 33) para que não seja deso­bedecida a advertência de Duguit « ... mais elle ne peut faire aucun acte qui sont nor­malement et légalement de la competence de fonctionnaires administratifs ou judiciai­res». (in «Traité de Droit Constitutionnel», vol. 4?, pág. 393).

Na mesma linha de raciocínio Francisco Campos, em primoroso parecer (in Rev. de Direito Administrativo, vol. 67, págs. 341/376) versando sobre a atuação de Comis­são Parlamentar de Inquérito, preleciona que «o poder de investigar não é um poder geral, indiscriminado e autônomo, mas um poder auxiliar ou ancilar da função legisla­tiva» (pág. 357), ou seja, «o poder de 'investigar é incidente no poder de legislar e, por-

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tanto, um meio ou instrumento destinado a tornar eficiente o desencargo da função le­gislativa ... » (pág. 363).

A respeito ensina Pontes de Miranda que a Assembléia pode criar comissões de in­quérito para investigar quaisquer fatos que se sub sumam na sua competência (in «Co­mentários à Constituição de 1946», 2~ ed., vol. 11, págs. 265/266). Na mesma diretriz, o Senador e jurista Paulo Brossard, em alentado estudo sobre CPI criada por Assem­bléia Legislativa (in «Rev. de Direito Público, vol. 63 1 pág. 140), após referir-se à hipó­tese de invasão na esfera de atribuição de outros poderes acentua: «As comissões po­dem ser constituídas para investigar fatos dett;rminados que informem os colégios legis­lativos a respeito de qualquer assunto .sobre p' qual tenham competência, quer para to­marem medidas legislativas, outras, desde qUe caibam na sua órbita de competência.» E como decorrência inelutável dessa assertiva salienta' incisivamente: «Assim sendo, o âmbito de ação das comissões de inq!lérito& imenso e somente os assuntos que compe­tem à União e aos municípios escapam ao seu poder de investigação» (opus. cit., pág. 132).

Lastreado em Helio (<<Du Régime Constitutionel», vol. I, pág. 112) salienta o fes­tejado Francisco Campos que a CPI só pode exercer «o seu poder de polícia apenas so­bre as coisas e as pessoas que se encontrem no recinto (tomada esta expressão no seu amplo sentido) reservado às suas deliberações, não podendo, assim, senão mediante mi­nistério da lei, estender aquele poder aos indivíduos e às coisas exteriores àquele recin­to». E dentro do quadro do Direito Constitucional Brasíleiro esta colocação de Helio é de procedência total, não apenas no que tange ao princípio da divisão dos poderes, mas, igualmente, à luz das garantias individuais, explícitas e implíéitas, asseguradas na Constituição.

E a prova inequívoca de que as CPIs estaduais e municipais não têm, presente­mente, a faculdade e o amparo legal para solicitar informações e documentos,soQre !ls­suntos envolvendo o sigilo bancário resulta do Projeto de Lei n? 6.700,· de 1982,' .em tramitação na Câmara dos Deputados, cujo objetivo é estender aos memb'ios dos Pode­res Legislativos dos Estados e Municípios a prerrogativa de acesso a informações e do­cumentos, legalmente protegidos por segredo, de negócios bancários. Aliás, por força de emenda ao referido projeto apresentada pelo Deputado Evandro Ayres de Moura, e aprovada pela Comissão de Economia, Indústria e Comércio, em 30-5-84, os «pedidos de informações dos Legislativos Estadual e MuniCipal, restringir-se-ão a operações e atos em que sejam parte os respectivos Estado e Município, por suas Administrações Di~eta e Indireta».

Infere-se, então, que na atualidade, qUaisquer informações prestadas às CPIs esta­duais ou municipais sobre operações ativas, passivas e serviços de instituição financeira, com indicação de nomes de clientes, natureza e valores das respectivas operações, extra­tos de contas e outras semelhantes configuram, sem dúvida, quebra de sigilo bancário. Apenasmente podem ser prestadas informações ou fornecidos documentos relativa­mente às despesas administrativas, do pessoal, patrimônio, etc., que em absoluto se confundem com a matéria objeto de sigílo bancário, nos termos da lei federal.

c) O sigílo bancário não é estabelecido para ocultar fatos, mas para revestir a reve­lação deles de caráter de excepcionalidade, como ocorre nas hipóteses dos §§ 5? e 6? do art. 38 da Lei n? 4.595/64, em face do que os agentes fiscais tributários do Ministério da Fazenda Federal e dos Estados (o dispositivo não alude aos' agentes fiscais tributá­rios municipais) podem «proceder a exames de documentos, livros e registros de contas de depósitos», assim como podem solicitar «esclarecimentos e informes pelas institui­ções financeiras».

Por outro lado, inobstante ser a Secretaria da Receita Federal competente para ob­ter informações e cópias de contas correntes, diretamente das instituições financeiras (art. 38, §§ 5? e 6?, da Lei n? 4.595/64, e art. 661 do Decreto n? 85.450/80), quando tais entidades, spont sua, sem qualquer solicitação da SRF, remetem extratos de contas, cópias de cheques e de guias de depósitos, incorrem na quebra do sigílo bancário, posto

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tratarem-se de comprovantes de operações bancárias alCançadas pela vedação do art. 38 da Lei n? 4.595/64.

As condições que a lei reputa necessárias.,'para que se afaste o princípio do sigilo bancário que procura preservar - na ,hipótese de pedidos, formulados pelos agentes do fisco federal e estadual - são a existência de um processo jnstaurado e se os elementos solicitados, ou exame de documentos e livros, considerados indispensáveis, forem re­queridos pela autoridade competente. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, ao manifestar-se no Processo S.C. n? 101.320/66 a par de outras considerações, salienta que «o legislador, ao falar em processo instaurado, quis referir-se à hipótese de prece­dência da lavratura do processo à efetivação daqueles cogitados exames, não bastando, por certo, que haja simplesmente um «termo de exame de escrita» ou peças que a ele se assemelhem, conforme a vigente sistemática processual fiscal. Por outro lado, há neces­sidade que a autoridade competente, que é a que preside os atos processuais, se haja manifestado, considerando imprescindíveis esses exames, para cabal saneamento proces­sual. Somente após preenchidas essas duas condições é que poderá atuar a fiscalização, então com franco acesso àqueles elementos elucidativos».

Convém aduzir, por oportuno, que os dados coligidos pelas autoridades fiscais tri­butárias devem ser «conservados em sigilo, não podendo ser utilizados senão reservada­mente» (art. 38, § 6?, in fine).

O Código Tributário Nacional (Lei n? 5.172/66) trata de sigilo bancário. sob o ponto de vista administrativo da fiscalização tributária, e, no art. 197, 11, assim precei­tua:

«Art. 197. Mediante intimação escrita, são obrigados a prestar à autori­dade administrativa todas as informações de que disponham com relação aos bens, negócios ou atividades de terceiros: ••••••••••••••••••••••••••• 0,0 ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• •

"

11 - os Bancos, casas bancárias,' Caixas Econômicas e demais institui­ções financeiras.»

Pareceria, à primeira vista, que o dispositivo do CTN transcrito está em oposição ou conflito com o mencionado art. 38 da LeI n? 4.595/64, ou que, pelo menos, teria havido um abrandamento da regra da Lei n? 4.595/64 que pressupõe para o atendimen­to do pedido a existência de processo instaurado (art. 38, § 5?). Mas, para os que vis­lumbram um choque ou antagonismo entre os dispositivos do CTN e da Lei n? 4.595/64, é de toda pertinência a lição de Campbell Black:

«Se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem a sua supremacia. Preferem-se as disposições que se rela­cionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata.» (<<Hand­book on the Construction and Interpretation of the Laws», 2~ ed., pág. 328).

Outrossim, o Código Tributário Nacional nada inovou, e até acompanha e reforça o disposto na Lei n? 4.595/64, ao estatuir no parágrafo único do art. 197 o segumte:

«Art. 197. . ................................................... .

Parágrafo único. A obrigação prevista neste artigo não abrange a pres­tação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante estej:1 legalmente obrigado a observar o segredo, em razão de cargo, ofício, função', ministér!o, atividade ou profissão.»

Ademais, <mão se pode perder a visão da floresta, por causa das árvores», ou seja, o exegeta não deve esquecer a importante e inarredával advertência de que as normas jurídicas só têm as finalidades ou a teleologia consentidas pelo sistema, como um todo. Vale dizer, essas normatividades devem ser compreendidas em harmonia com o conjun­to jurídico a que pertencem - lex non est textus sed contextus. A sua finalidade é pro­teger o sigilo bancário, e, conseqüentemente, os clientes das instituições financeiras.

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Não foram instituídas para se voltarem contra o regime dó sigilo bancário, pois seria um absurdo assim entendê-las, o que importaria em fulminar o alcance e sentido qu"e o dispositivo procura atingir.

Depreende-se, então, que não houve quebra de coerência do sistema legal e que os textos legais são perfeitamente harmônicos entre si, enfatizando que os limites do sigilo bancário estão regidamente definidos na lex specialis (Lei n? 4.595/64), só devendo ser superados nos casos excepcionais e pela forma nela previstos.

d) As autoridades policiais com relativa freqüência solicitam informes e documen­tação de instituições financeiras que constituem indícios de fatos criminosos, objetivan­do a adoção de providências de sua responsabilidade.

Como as autoridades policiais - órgão do Poder Executivo - não estão inéluídas entre as expressas exceções dos §§ do art. 38 da Lei n? 4.595/64, as instituiçõ~s finan­ceiras estão impedidas de fornecer tais informações porque revestidas do caráter sigilo­so.

Gilberto Nóbrega (in «Depósito Bancário», 2:' ed., pág. 78) diante da clareza do caput do art. 38 não tegiversa ao acentuar que um Banco não pode fornecer, a pedido de autoridades policiais, extrato de conta de determinado correntista «mesmo que se trate de apurar delito de ação pública e uma vez que o estabelecimento não seja parte no inquérito. Falta à polícia autoridade legal para tanto».

Também a Consultoria-Geral da República, no Parecer n? 594-1I (in DO de 21-ll-67, fI. 11.697), já evidenciava que «sem mandado judicial a autoridade policial não pode obter informações ou apreender documentos bancários e fichários médicos, pois o sigilo bancário e o segredo profissional são ditados por altos interesses sociais que a lei ampara». (Grifou-se).

Esta diretriz não é extensiva ao Ministério Público Federal consoante verifica-se no art. 29 e parágrafo único da Lei n? 7.492, de 16-6-86, já transcrito.

Assim, por força desta legislação especial, o Ministéno Público Federal, cuja atua­ção também se liga à preservação dos interesses e valores da ordem econômico­financeira nacional, não mais pode ser inibido e obstaculizado de ter acesso a docu­mentos e informações bancárias, mesmo antes de iniciada qualquer Ação Penal, sob o fundamento de que tais operações e serviços estão protegidos pelo sigilo bancário. E se assim não fosse o sigilo estaria funcionando para ocultar possíveis fatos criminosos, além do que a própria função institucional desempenhada pelo Ministério Público Fe­deral estaria comprometida.

Releva notar que quando o Bacen ou outra instituição financeira pública toma a iniciativa de oficiar ao Ministério Público, ex vi do art. 4?, § 2?, da Lei n? 4 728/65, relatando operações com indícios veementes (art. 239 do Código de Processo F~nal} ae crime definido em lei como de ação pública, tal comunicação deve ser formalizada com todos os documentos indicadores do ilícito, objetivando propiciar àquele órgão não só uma segura avaliação do suporte fático da acusação, assim como melhores condiçõe"s de oferecer a pertinente denúncia. Vale dizer, como o art. 38 da Lei n? 4.595/64 não ampara operações ilícitas, e, considerando que é dever legal do Bacen notificar ao Mi­nistério Público possíveis crimes detectados no exercício de função fiscalizadora, torna­se necessário fundamentar sua convicção em segur.os elementos de prova, ainda que in­diciária, remetendo-se ao Ministério Públrco a documentacão comprobatória da infra­ção, para instrução do procedimento penal cabívél, sem que isto implique em quebra ou violação do sigilo bancário.

Finalmente, é preciso ressaltar que não numerus clausus as hipóteses legalmente determinadas e ensejadoras de revelação do sigilo bancário, daí não ser possível o aten­dimento de pedidos da espécie mesmo formulados por Governador de Estado, eis que, dentre as autoridades contempladas pelas exceções legais (art. 38, §§ I? a 6?, da Lei n? 4.595/64), não se encontram os Chefes dos Executivos Estaduais.

o TFR E O DIREITO BANCÁRIO

Amoldo Wald

ARNOLDO WALD

o TRIBUNAL FEDERAL DE RECURSOS E O DIREITO BANCÁRIO

A crescente intervenção do Estado nas áreas econômicas e financeiras tem repercu­tido no plano jurídico, ensejando a construção de uma jurisprudência do Tribunal Fe­deral de Recursos, abrangendo um novo ramo da ciência jurídica, que podemos deno­minar o Direito Público Bancário.

Efetivamente, no Direito brasileiro, a Constituição Federal atribui à União Federal a competência exclusiva para emitir moeda e fiscalizar as operações de crédito (artigo 8?, inciso IX e X). As Constituições anteriores determinavam que só podiam funcio­nar, no País, Bancos de depósitos quando fossem brasileiros os seus acionistas (artigo 145 da Constituição de 1937), tendo sido a matéria posteriormente transferida para a lei ordinária (artigo 149 da Constituição de 1946) e atualmente não mais prevalecendo.

A regulamentação do Sistema Financeiro Nacional consta na Lei n? 4.595, de 31-12-64, que o considera integrado pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Cen­trai, pelo Banco do Brasil e pelas demais instituições financeiras públicas e privadas.

Enquanto o Conselho Monetário Nacional tem com potência de caráter geralmente normativo, ao Banco Central cabe, basicamente, a função de fiscalizar o sistema ban­cário, tanto privado como público, além de emitir o papel-moeda. Assim, determina a lei que o Banco Central deve exercer o controle do crédito, a fiscalização das institu­ções financeiras e a aplicação de penalidades às mesmas, tendo poderes para autorizar as instituições financeiras para que possam funcionar no País, instalar ou transferir a sua sede ou dependências, ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas, alterar os seus estatutos, etc. (artigo 10 da Lei n? 4.595, de 3)-12-64). Por outro lado, a autoridade monetária também aprova os nomes dos administradores eleitos para gerir as instituições financeiras (artigo 33 da lei citada), cabendo-lhe, ainda, fixar as bases do regime eqüitativo que deve ser assegurado aos acionistas minoritários, no caso de aqui­sição de controle de estabelecimento bancário que seja sociedade de capital aberto (arti­go 255 da Lei n? 6.404, de 15-12-76).

A legislação brasileira considera, outrossim, a atividade bancária como afetando a segurança nacional (Decreto-Lei n? 1.632/78)(').

(I) O referido decreto foi considerado constitucional pelo egrégio Tribunal Federal de R;ecurs?s, por decisão proferida no Mandado de Segurança n? 90.245, julgado em ll-12-8~, cUJO Acor­dão encontra-se publicado na Revista do Tribunal Federal de Recursos, vol. 82, pags. 334 e se­guintes.

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Os Tribunais brasileiros têm admitido, embora sem maior análise de mérito, que a instituição financeira exerce uma função concedida pelo poder público, razão pela qual a carta patente que lhe foi concedida pode ser cancelada quando a entidade paralisa as suas atividades, não cumprindo assim as suas obrigações. Neste sentido existe julga­mento do Tribunal Federal de Recurso.e).

Na área administrativa, as autoridades têm preferido reconhecer que se trata de uma atividade autorizada de natureza especial em relação à qual a fiscalizaçao contínua, realizada pelo Banco Central, adquire uma densidade especial, de tal modo que os principais atos da vida bancária não têm validade ou eficácia sem o «placet» da autoridade administrativa.

Verificamos, assim, que quando se trata da alteração da diretoria, da modificação dos estatutos de um Banco, de sua transferência de controle ou de sua incorporação ou fusão, a operação só se concretiza mediante a simbiose de duas ou mais declarações de vontades, a dos particulares, que se rege pelo Direito Comercial, e a do Estado, sob a forma de autorização ou aprovação do Banco Central, que está sujeito às normas de Direito Administrativo.

Essa situação nos parece peculiar e importante, pois exige, para a sua análise, o exame simultâneo de duas posições que obedecem a regulamentações distintas. Tanto para verificar a validade do ato, como para eventualmente desconstituí-lo, torna-se ne­cessário compatibilizar as normas possivelmente em conflito, ensejando eventualmente uma aparente superposição das competências da Justiça Federal e Estadual, prevalecen­do sempre aquela, conforme entendimento do TFR.

Trata-se de problema que tem surgido recentemente nos Tribunais brasileiros nos quais se discute, por exemplo, a desconstituição de uma incorporação de instituição fi­nanceira, em virtude da qual foi extinta a carta patente de um Banco. Até que ponto é viável, em tal hipótese, examinar a incorporação sob o prisma exclusivo do Direito Co­merciai, podendo-se eventualmente restabelecer a existência de um Banco, já agora sem carta patente, ou é necessário proceder simultaneamente à anulação do ato administra­tivo, para que possa ocorrer o restabelecimento da situação anterior na sua totalidade? E sendo a concessão e a extinção da carta patente um poder discricionário do Banco Central, será ou não possível restabelecer, por via judicial, uma carta patente já extin­ta? O Tribunal Federal de Recursos entendeu que, excepcionalmente, o Poder Judiciá­rio poderia restabelecer o direito à carta patente no caso da Credence.

Essas perguntas de natureza prática envolvem, inclusive, questões processuais de alta indagação quanto à Justiça competente para resolver esse tipo de conflito e a posi­ção exata da autoridade administrativa no litígio, que aparentemente se trava entre par­ticulares. Evidencia-se que o debate não é puramente acadêmico, mas tem importância no próprio desenvolvimento da vida econômica do País, especialmente em momento de dificuldades financeiras nacionais e internacionais, que obrigam os poderes públicos a uma atuação rápida e segura.

Cabe salientar que no Direito brasileiro a competência dada na matéria ao Banco Central não é vinculada, mas sim discricionária, de modo que as autoridades podem aprovar ou recursar-se a aprovar uma operação de acordo com os critérios gerais de oportunidade e conveniência, consideradas as condições do mercado, sem prejuízo da eventual responsabilidade no caso de desvio ou abuso de poder. Acresce que no campo do poder discricionário, não cabe ao Juiz se substituir à autoridade, podendo, tão­somente, responsabilizar aqueles que atuaram contra a lei, com culpa ou dolo, de mo-

(2) Acórdão unânime do Plenário do Tribunal Federal de Recursos no Mandado de Segurança n? 94.668, julgado em 3-12-81. Alguns autores também consideram que os Bancos são, no fundo, concessionários de um serviço público ou equiparados aos concessionários (R. Martin Mateo e F. Sosa Wagner, «Derecho Administrativo Economico», Madrid, Ediciones Pirámide, 1974, pág.81).

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do que, em tese, qualquer litígio desse tipo se resolverá,~ nêcessária e exclusivamente em perdas e danos, não se admitindo a desconstituição do ato praticado.

Acresce que em certos casos, como o do artigo 255 da Lei das Sociedades Anôni­mas, a norma jurídica tem como destinatário o próprio Banco Central, ao qual cabe zelar para que seja assegurado um tratamento eqüitativo aos acionistas minoritários da entidade financeira, cujo controle está sendo adquirido. Em tais hipóteses, a instituição financeira, que adquire o controle, se limita a obedecer aos critérios fixados pela auto­ridade competente. Cabe, então, indagar até que ponto poderá o comprador ser res­ponsabilizado, caso o critério adotado não for considerado o melhor, sem que haja a desconstituição prévia do ato administrativo. Essa desconstituição é ou não um requisi­to prévio para qualquer discussão entre as partes? É matéria que tem sido suscitada nos Tribunais, sem que, até agora, lhe tenha sido dada solução definitiva.

Pensamos que estamos nessas hipóteses, diante de atos mistos, complexos ou bifa­ces. O ato complexo tem a sua conceituação própria do Direito Administrativo, mas a sua etrutura está tradicionalmente vinculada à existência de várias declarações de vonta­des, todas elas da mesma natureza, ou seja, dentro da sistemática administrativa, que obedece exclusivamente ao Direito Público. O ato misto tem, por sua vez, a sua defini­ção um tanto quanto vinculada aos atos unilateralmente comerciais. Donde pensarmos no ato biface, como sendo uma forma de ato complexo abrangendo manifestações de vontades situadas, respectivamente, na área privada e - na área pública, ou seja, no Di­reito Comercial e no Direito Administrativo.

Não deixa de haver uma certa analogia de estrutura entre os atos básicos de Direi­to Bancário, aos quais nos referimos, e outros da vida civil, nos quais o Estado tam­bém participa, como ocorre no Direito de Família, em relação ao casamento e, no pas­sado, em certas legislações, em relação à adoção ou à legitimação por decreto. Cabe, todavia, salientar que, nos atos de Direito de Família, a posição do Estado se limita a examinar requisitos formais, enquanto, no Direito Bancário, as autoridades exercem um poder discricionário e participam assim da realização do ato.

A doutrina civilista não tem dado a devida atenção ao ato complexo, invocando, todavia, eventualmente o ensinamento dos administrativistas(3) e fazendo a devida dis­tinção entre as situações nas quais o Estado tem uma situação meramente passiva, co­mo no caso da função executada pelo registro de imóveis, não podendo a autoridade recusar o seu concurso, e aquelas em que desempenha um papel ativo e concorre com uma declaração de vontade, que atende aos interesses sociais, e se fundamenta no exercício de poder discricionário. No primeiro caso, o Estado não passa de um órgão de registro ou de controle de requisitos formais, sendo mero espectador, enquanto, no segundo, a sua vontade é substancial e constitutiva para a existência do negócio, pois não se limita a homologar o ato, mas dele participa ativamente e só após a aprovação da autoridade é que o ato passa a ter eficácia, sendo condição de validade do mesmo.

A doutrina italiana definiu o ato complexo como aquele no qual há um feixe de vontades que funcionam como uma vontade única, fazendo os autores a distinção entre a complexidade interna e externa. É interna quando as várias manifestações emanam de um mesmo órgão e externa quando se originam de entidades diversas (4). Mas, em ge­rai, mesmo a chamada complexidade externa, tem como pressuposto que as diversas entidades do qual emanam o ato sejam da mesma natureza, sendo todas elas públicas.

Por outro lado, reconhece-se que a aprovação ou a autorização do Banco Central não é simples condição suspensiva para a eficácia do ato, mas verdadeiro requisito para

(3) Darcy Bessone de Oliveira Andrade, «Da Compra e Venda», Belo Horizonte, Editora Bernar­do Álvares, 1960, pág. 83.

(4) Arturo Lentini, «Istituzioni di Diritto Administrativo», Milão, Società Editrice Libraria, 1939, vol. I, pág. 186.

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sua própria existência, não havendo, assim, como confundir a autorização com a con­dição, tanto mais que a própria autorização pode eventualmente ser condicional(').

Na doutrina francesa, aludiu-se recentemente ao ato misto, comportando uma parte administrativa e outra privada, nele se vislumbrando um contrato com efeitos re­gulamentares, como acontece, por exemplo, no caso da convenção coletiva de trabaho, da qual Carnelutti pôde dizer que ela tem «o corpo do contrato e a alma da lei». Os mestres franceses também reconheceram a dupla natureza da concessão de serviços pú­blicos, entendendo que ela é, de um lado, um contrato entre concedente e concessio­nário e, de outro, um regulamento que existe em relação aos usuários do serviço públi­co. Defendida por Léon Blun no Conselho de Estado e por· Léon. Duguit e Maurice Hauriou na doutrina, essa tese nos leva a reconhecer a existência do ato misto, simulta­neamente contratual e regulamentar(6). De modo analógico, nada impediria que no Di­reito Bancário se reconhecesse a dupla natureza de certos atos, que seriam, simultanea­mente comerciais e administrativos e entre os quais haveria uma vinculação de tal den­sidade que não poderiam ser separados um do outro, como se fossem verdadeiros ir­mãos siameses. Tratar-se-ia dos atos bifaces.

Em tal hipótese, a aprovação do ato pelo Banco Central lhe daria uma espécie de «blindagem», na feliz expressão do Professor Wilson do Egito Coelho, impedindo que o acordo comercial se desfizesse sem a simultânea desconstituição do ato administrati­vo. Por outro lado, a desconstituição definitiva do ato da autoridade (autorização ou aprovação) levaria, necessariamente, ao desfazimento do ato comercial.

Neste sentido, já se manifestou a mais recente doutrina alemã para a qual o ato aprovado pela administração não pode ser desfeito sem a intervenção da mesma(').

No Direito Administrativo brasileiro, Hely Lopes Meirelles esboçou o conceito do ato negociai administrativo, que corresponde ao «acto administrativo-negócio jurídico» castelhanos, aos «atti administrativi negoziali» do Direito Italiano e aos «rechtsgeshaef­ttiches Verwaltungsakte» do Direito Alemão, entre os quais inclui as autorizações e aprovações administrativas concebidas como atos unilaterais da admmistração que en­cerram um conteúdo tipicamente negociai, de interesse recíproco da administração e do administrado, mas não se adentram à esfera contratual(8).

Não chegou o ilustre administrativista brasileiro a examinar, nas primeiras edições do seu livro, o problema específico das aprovações e autorizações vinculadas a atos de Direito Comercial, que existem no Direito Bancário.

Mais recentemente, em parecer, reconheceu o Professor Hely Lopes Meirelles a na­tureza de ato-condição da autorização dada pelo Banco Central do Brasil e admitiu a existência, na incorporação de Banco, de um verdadeiro ato biface. Escreveu a este res­peito, o mestre dos administrativistas brasileiros que:

«A autorização do Banco Central do Brasil para a incorporação de Banco é um típico ato-condição de natureza negociai, principal, e integrante da ope-

(5) Rafael Bielsa, «Derecho Administrativo», 6~ edição, edição de La Ley, 1964, Tomo Il, págs. 168 e 169.

(6) Sobre a matéria existe excelente monografia do Professor Yves Madiot, da Faculdade de Direi­to de Poitiers, intitulada «Aux Frontieres du contrat et de I'acte administratif unilatéral: re­cherches sur la notion d 'acte mixte en droit public français», Paris, Librairie générale de droit et de jurisprudence, 1971.

(7) Ernst Forsthoff, «Traité de Droit Administratif Allemand», tradução francesa, Bruxelas, Buy­lant editor, 1969, pág. 424.

(8) Hely Lopes Meirelles, «Direito Administrativo Brasileiro», 9~ edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, pág. 139.

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ração a realizar. É ato negociai porque contém uma declaração de vontade da administração coincidente com a pretensão do particular e se destina a permi­tir a efetivação do negócio desejado pelas partes, no caso, a incorporação; é principal, porque sem ele a operação incorporativa não se viabiliza; é inte­grante do negócio porque deste não pode dissociar-se. (Cf. nossa obra citada, páginas 139 e seguintes). A incorporação de um Banco por outra apresenta uma face administrativa e outra comercial. É um ato biface, que se forma com a justaposição da vontade da administração à pretensão dos particulares. Ambas são distintas mas inseparáveis: aquela é regida pelo Direito Adminis­trativo e esta pelo Direito Privado, mas uma não sobrevive sem a outra, e as­sim sendo, para invalidar-se ou alterar-se o negócio há que se desconstituir ou modificar, primeiro, o ato administrativo, para depois se alterar o ato comer­ciai, pois aquele é que plasma este e o acompanha em todas as suas muta­ções».

E analisando as conseqüências da tese, concluiu que: «Nessa conformidade, o ato administrativo que precede, acompanha ou

sucede um negócio privado - civil ou comercial - só pode ser invalidado pe­lo Judiciário com o chamamento da autoridade, entidade ou órgão, que o pra­ticou, na ação em que se pretende alterar ou anular o negócio realizado com aquiescência do Poder Público. Ainda que o ato administrativo contenha vício de fundo ou emane de autoridade incompetente, traz em si a presunção de le­gitimidade e, por isso mesmo, só pode ser desconstituído, desconsiderado ou anulado após a intervenção da administração na lide em que se discute a lega­lidade ou as condições do negócio impugnado. Não se nega ao Poder Judiciá­rio a faculdade de invalidar qualquer ato administrativo, mas exige-se o devi­do processo legal e a Justiça competente para conhecer e decidir qualquer cau­sa que importe negação de efeitos ou de vigência dos atos da administração interessada».

Com esses estudos, o primeiro passo foi dado para que se examinasse o regime jurídico dos atos bifaces no Direito Brasileiro, aos quais Hely Lopes Meirelles passou a fazer referência nas edições mais recentes de sua obra (11 ~ edição, 1985, pág. 149).

O problema da criação de um ato biface simultaneamente regido por normas de Direito Privado e de Direito Público no campo bancário não se limita, aliás, às opera­ções nacionais. Estamos sentindo a necessidade progressiva de estabelecer normas inter­nacionais em relação ao mercado dos euro-dólares e os Bancos Centrais já reconhecem a inviabilidade da manutenção do sistema atual no qual o excesso de liberdade está le­vando à criação de um mercado inseguro. Quando o Brasil começou a regulamentar as atividades das instituições financeiras, comentou-se que, depois da liberdade do fa­roeste, era preciso que chegasse o xerife para pôr a casa em ordem. É o que está ocor­rendo atualmente no mercado internacional. Desde 1974, vários Bancos Centrais sus­tentaram a necessidade de se estabelecer um controle efetivo das operações internacio­nais, cada Banco Central devendo acompanhar a captação e os financiamentos das ins­tituições financeiras do seu país. Nesse sentido, manifestaram inicialmente o Governa­dor do Banco da Inglaterra e o Presidente do Banco Nacional Suíço, seguidos por auto­ridades de outros países.

Numerosos são hoje aqueles que defendem a criação de um controle internacional nas operações de euro-dólares e desde a falência do Banco Herstatt, o Banco de Regu­lamentos Internacionais (BRI) criou um comitê especial para tratar das regras e práticas de controle das operações internacionais também denominado Comité Cook (9).

(9) Blaise, Fauchard et Kahn, «Les Euro-Crédits», vaI. 8?, Paris, Librairies T~chniques, pág. 369 e seguintes.

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Não há dúvida que, com o fortalecimento do Fundo Monetário Internacional, também no campo das relações externas um certo controle há de ser estabelecido que ensejara uma colaboração entre os banqueiros e as autoridades, tanto nacionais, quan­to internacionais. É, pois, possível que muito breve tenhamos um Direito Monetário In­ternacional a completar as normas do Direito Bancário Interno, sendo difícil prever se o Direito Internacional Econômico continuará sendo um mito ou poderá ser uma reali­dade (1Cl).

Entendemos que há, no caso, um campo novo que deve merecer a atenção dos ju­ristas na área bancária e que consiste justamente na harmonização adequada das nor­mas de Direito Privado e de Direito Público, a fim de evitar que, considerando ambos os campos como linhas paralelas que nunca se tocam, se leve o Direito Bancário a si­tuações caóticas e de impasse que acabam engendrando soluções contrárias ao interesse público, como é o caso da nacionalização dos Bancos realizada recentemente em vários países, em detrimento do próprio desenvolvimento da economia, no plano nacional e internacional.

A posição dos juristas que se recusaram examinar e compreender os problemas econômicos fizeram com que, por longos anos, tivéssemos num mundo fictício domina­do pelo mito da estabilidade monetária. Foi a época em que em vários países, os eco­nomistas pretenderam substituir os advogados e tornaram-se legisladores e intérpretes da lei, ensejando a prevalência de uma tecnocracia sem a adequada formação jurídica. Agora, nessas últimas décadas, os legisladores e os juristas da maioria dos países reco­nheceram a necessidade de encarar os fatos econômicos, de conviver com eles, e, conse­qüentemente, de aderir ao realismo monetário, rejeitando mitos e presunções descabi­das.

No plano bancário, a situação é um pouco parecida. Não há como garantir a so­brevivência dos Bancos num mundo tumultuado como o nosso, sem a presença vigoro­sa e constante de um Banco Central considerado como elemento catalizador e orienta­dor da economia nacional e com o qual os Bancos privados devem colaborar na cons­trução de uma economia consertada. Desconhecer essa realidade só pode levar a solu­ções fictícias. Todos os Bancos necessitam ou podem necessitar de redesconto, que atualmente constitui um verdadeiro seguro para a instituição financeira, mas alguns de­les pretendem manter um liberalismo já inviável e não condizente com a adequada pro­teção dos depositantes e a própria orientação da economia nacional. Assim sendo, John Kenneth Galbraith salientou que todos os Bancos querem gozar dos benefícios de­correntes da existência dos Bancos Centrais, mas nem sempre lhes apraz obedecer às normas baixadas pelas autoridades monetárias, ou seja, pagar o preço correspondente, o prêmio do seguro("). Ora, é evidente que o Estado moderno não pode abrir mão do exercício do poder de polícia, que deve exercer na área bancária, no próprio interesse dos Bancos e da sociedade concebida como um todo. Mas esse poder deve ser tutelado pela Justiça a fim de evitar abusos, interferências indevidas e regulamentações excessi­vas e estatizantes.

Aos Tribunais cabe, pois, a missão de zelar para que este poder de polícia dos Bancos Centrais seja exercido de acordo com normas prévias e claras e com o necessá­rio respeito dos direitos individuais, mas também com a energia e a rapidez necessárias para atender aos superiores interesses da economia nacional.

(10) Prosper Weil, «El Derecho Internacional Económico: Mito e Realidade,» in «Estudios de De­recho Económico», vol. I, Universidad Nacional autónoma de México, 1977, pág. 173.

(11) John Kenneth Galbraith, «A Moeda», tradução brasileira, São Paulo, Livraria Pioneira, 1977, pág. 76.

Rio, 13-5-87.

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Alcançar este justo equilíbrio entre interesses individuais e SOCIaIS, entre a liber­dade de iniciativa e a responsabilidade decorrente, entre o espírito do Direito Comercial e o Poder de Polícia, regulamentado pelo Direito Administrativo, passa a ser, nos dias de hoje, uma meta básica do Poder Judiciário, ao qual não é lícito desconhecer nem a realidade econômica, nem a escala de valores, pois a sua função consiste, basicamente, em submeter a vida econômica aos princípios morais, como bem lembrava Carnelutti.

As decisões do Poder Judiciário, nos recentes pronunciamentos do Tribunal Fede­ral de Recursos, que fixaram os adequados parâmetros nos conflitos entre acíonistas majoritários e minoritários de instituições financeiras e delimitaram adequadamente o exercício do poder de polícia pelo Banco Central, sem prejuízo da garantia dos direitos adquiridos, constituem uma importante contribuição para o novo Direito Público Ban­cário, conciliando adequadamente os princípios éticos e as necessidades econômicas.

Rio, 13-5-87

SEIS CRIMES ESPECIAIS EQUIPARADOS E A APLICAÇÃO DE SUAS PENAS

Celso Delmanto

CELSO DELMANTO

SEIS CRIMES ESPECIAIS EQUIPARADOS E A APLICAÇÃO DE SUAS PENAS

SUMÁRIO

I. Apresentação 2. Da simplificação ao embaraço 3. Três crimes especiais equiparados ao estelionato: Previdência Social, café e

créditos ou incentivos governamentais 4. Três crimes especiais equiparados à apropriação indébita: Salário-família, Im-

posto de Renda e IPI 5. A situação atual 6. A questão em face da Constituição e do art. I? do Código Penal 7. A dupla valoração não permitida 8. Concluindo

I. Apresentação

Ao lado dos crimes comuns definidos pelo Código Penal, nossa legislação criminal é dotada de bem expressivo número de outras infrações penais, inseridas nas denomina­das leis especiais ou extravagantes.

Dentre elas, há vários tipos penais que podemos chamar de crimes equiparados ou remetidos, em razão da peculiaridade de não terem sanção própria. Eles, simplesmente, atribuem ao preceito que descrevem as penas de algum crime do Código Penal ou, mes­mo, da legislação especial.

Os crimes que denominamos equiparados são facilmente idenficáveis pela forma incomum que utilizam ao ditar suas sanções.

Assim, por exemplo, no crime de genocídio: «Será punido com as penas do art. 121, § 2?, do Código Penal, no caso da letra a» (Lei n? 2.889/56, art. I?).

Nos crimes da Previdência Social: «I. de sonegação fiscal, na forma da Lei n? 4.729»; «lI. de apropriação indébita, definido no art. 168 do Código Penal»; «III. de falsidade ideológica, definido no art. 299 do Código Penal»; «IV. de estelionato, defi­nido no art. 171 do Código Penal» (Lei n? 3.807/60, art. 155, I a IV, com a redação do Decreto-Lei n? 66/66).

Na apropriação do Imposto de Renda descontado na fonte: «Inclui-se entre os fa­tos constitutivos do crime de apropriação indébita, definido no art. 168 do Código Pe­naI» (Lei n? 4.357/64, art. 11).

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Na alienação de coisa já alienada fiduciariamente em garantia: «ficará sujeito à pe­na prevista no art. 171, § 2?, inc. I, do Código Penal» (Lei n? 4.728/65, art. 66, § 8?).

Também no emprego indevido da palavra couro: «constitui crime previsto no art. 196 e seus parágrafos do Código Penal» (Lei n? 4.888/65, art. 4?).

Na violação de «containers» ou cofres de carga: «responderá pelo crime de contra­bando ou descaminho, nos termos do art. 334, § I?, letra b, do Código Penal» (Lei n? 4.907/65, art. 8?).

Na violação de compromisso ou obrigação assumido com relação à uniformização de reajustes salariais: «fica equiparado ao crime de sonegação fiscal, definido pela Lei n? 4.729» (Decreto-Lei n? 15/66, art. 10).

Na comercialização proibida de café: «fica equiparado ao crime de estelionato» (Decreto-Lei n? 47/66, art. 2?).

Para o exercício ilegal da hemo terapia: «configura o delito previsto no art. 232 do Código Penal» (Decreto-Lei n? 211/67, art. 5?).

No crime de resistência aos fiscais de pesca, quando de prisão em flagrante: «serão punidos em conformidade com o art. 329 do Código Penal» (Decreto-Lei n? 221/67, art. 63).

Na falsidade de carteiras de trabalho: «considerar-se-á crime de falsidade, com as penalidades previstas no art. 299 do Código Penal» (CLT, art. 49, com a redação do Decreto-lei n? 229/67).

Semelhantemente, na saída irregular de mercadorias da Zona Franca de Manaus: «será considerado contrabando» (Decreto-Lei n? 288/67, art. 39).

Para o IPI, pela utilização em fim diverso do produto de sua cobrança: «constitui crime de apropriação Indébita definido no art. 168 do Código Penal» (Decreto-Lei n? 326/67, art. 2?).

Quanto ao fumo estrangeiro: «Ficam incursos nas penas previstas no art. 334 do Código Penal» (Decreto-lei n? 399/68, art. 3?).

Na aplicação, para fim diverso, de parcelas do Imposto de Renda liberadas pela SUDAM: «equipara-se a crime de sonegação fiscal, observada a Lei n? 4.729» (Decreto-Lei n? 756/69, art. 18).

Para a malversação do patrimônio de sindicatos: «ficam equiparados ao crime de peculato» (CLT, art. 552, na redação dada pelo Decreto-Lei n? 925/69).

Também na aplicação indevida de créditos ou financiamentos governamentais ou provenientes de incentivos fiscais: «ficam sujeitos às penas previstas no art. 171 do Decreto-Lei n? 2.848» (Lei n? 7.134/83, art. 3?).

E, na recente lei que trata da pesquisa, exploração, remoção, ou demolição de bens submersos, afundados ou encalhados: «sujeitam os infratores às sanções cabíveis ao Decreto-Lei n? 72.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal» (sic) (Lei n? 7.542/86, art. 36).

2. Da simplificação ao embaraço

Variados fatores poderão ter levado os autores dessas leis ou decretos-leis à opção pela formulação de sanções equiparadas e não próprias.

Provavelmente, terão pensado em assim simplificar a apenação dos comportamen­tos que desejavam tipificar como delituosos. Em vez de lhes dar sanções próprias, pre­feriram escolher algum crime que parecesse ter semelhança, próxima ou remota, com a conduta a que visavam punir, equiparando suas penas.

Em vários casos, porém, o que aparenta ser mais fácil acaba redundando em difi­culdade para o aplicador dessas leis equiparadas.

TFR - 145 37

Dentre os embaraços mais visíveis, alguns apenas decorrem de meros enganos ou falhas de revisão.

Como exemplo deles, o Decreto-Lei n? 211/67, que ao pretender punir o exercício irregular da hemoterapia, remete à figura do art. 232 do Código Penal (que diz respeito ao lenocínio e tráfico de mulheres), em vez de equipará-lo ao art. 282, que é o disposi­tivo que trata do exercício ilegal da medicina. Ou o caso da Lei n? 4.888/65, que man­da punir pelo art. 196 do Código Penal, quando o artigo referido já estava derrogado, há vinte anos, pelo Decreto-Lei n? 7.903/45. Também a recentíssima Lei n? 7.542/86, que, com lapso revisional, vaga e abstratamento diz sujeitar seus infratores ao Decreto­Lei n? 72.848, quando o Código Penal, a que se refere, é o Decreto-Lei n? 2.848/40.

Do ponto de vista da aplicação da pena, muitos crimes equiparados não apresen­tam dificuldade alguma. É o que se vê daqueles que contam com remissão precisa: «art. 121, § 2?, da Lei n? 2.889/56; art. 171, § 2?, inc. I, da Lei n? 4.728/65; e art. 334, § I?, b, da Lei n? 4.907/65».

Outros há que, embora desprovidos de exatidão na equiparação, não acarretam maiores problemas por remeterem a apenação a leis que têm uma única e mesma san­ção para as várias condutas nelas previstas. É o caso dos crimes equiparados à sonega­ção fiscal, pois aos cinco incisos desta lei é cominada idêntica pena.

Todavia, existem outros crimes especiais remetidos, para os quais a aplicação da pena, aparentemente simples, pode trazer dificuldades e, na prática, tem provocado de­cisões sem uniformidade. São eles, notadamente, os equiparados ao estelionato (ou art. 171 do Código Penal) e à apropriação indébita (ou art. 168 do Código Penai).

É particularmente deles, que procuraremos tratar neste estudo. 3. Três crimes especiais equiparados ao estelionato: Previdência Social, café e

créditos ou incentivos governamentais Especificamente, devem ser aqui assinalados os referentes à Previdência Social (art.

155, IV, da Lei n? 3.807/60), à comercialização proibida de café (art. 2? do Decreto­Lei n? 47/66) e à aplicação indevida de créditos governamentais ou incentivos fiscais (art. 3? da Lei n? 7.134/83).

A dúvida que eles nos despertam diz respeito à possibilidade ou não de ser aplicá­vel a esses crimes especiais equiparados a hipótese prevista no § 3? do art. 171 do Códi­go Penal: «A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de Direito Público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência» .

Podemos deixar de lado a sutil discrepância que há na doutrina quanto à natureza jurídica da regra desse § 3? - qualificadora ou causa de aumento da pena - pois a distinção não interfere no presente estudo.

O que nos interessa examinar é a aplicabilidade ou não do referido § 3? do art. 171 do Código Penal aos chamados crimes especiais remetidos.

À primeira vista, a resposta seria positiva, pois temos, nesses três crimes extrava­gantes equiparados ao estelionato, infrações penais cometidas em detrimento de uma das entidades especialmente arroladas no § 3?

Assim, pareceria não haver sentido, por exemplo, em aplicar-se o § 3? ao estelio­nato comum perpetrado contra a Previdência Social e não o fazer incidir quando o es­telionato encontrar tipificação especial em uma das três alíneas do art. 155, IV, da Lei n? 3.807/60, que é a própria Lei Orgânica da Previdência Social.

Entretanto, a incidência do § 3? acarreta o aumento de um terço da pena comina­da de um a cinco anos de reclusão e também alarga os prazos prescricionais.

Por isso, ele não pode ser aplicado só com base na semelhança, bom senso ou lógi­ca, pois a analogia é inaceitável no Direito Penal, a menos que seja para beneficiar o agente.

38 TFR - 145

4. Três crimes especiais equiparados à apropriação indébita: Salário-família, Im­posto de Renda e IPI.

Na legislação penal extravagante assinalamos os seguintes: a falta de pagamento do salário-família, quando as cotas tiverem sido reembolsadas pela Previdência Social (art. 155, 11, da Lei n? 3.807/60); a apropriação do Imposto de Renda retido pelas fontes pagadoras (art. II da Lei n? 4.357/64) e a utilização indevida do produto da cobrança do IPI (art. 2? do Decreto-Lei n? 326/67).

Também neles surge problema semelhante, de que resulta a pergunta seguinte: São aplicáveis aos crimes especiais equiparados à apropriação indébita as qualifica­

doras (ou causa de aumento de pena) previstas em algum dos incisos do § I? do art. 168 do Código Penal?

O mencionado § I? - que na verdade deveria ser parágrafo único, pois o art. 168 nunca teve outros parágrafos - preceitua: «A pena é aumentada de um terço, quando o agente recebeu a coisa:

I - em depósito necessário; 11 - na qualidade de tutor, curador, síndico, Iiquidatário, inventariante, testa­

menteiro ou depositário judicial; 111 - em razão de ofício, emprego ou profissão». Em tese, pelo menos a derradeira dessas hipóteses - em razão de profissão - pa­

receria ser perfeitamente cabível aos três crimes especiais equiparados à apropriação in­débita, pois dificilmente pode-se imaginar que a falta de pagamento do salário-família, a apropriação do Imposto de Renda retido na fonte, ou a apropriação do IPI, quando praticadas, não o sejam «em razão de ofício, emprego ou profissão» (§ I?, 111, do art. 168).

Todavia, tratando-se de norma apenadora, que faz acrescer a punição de um terço e também alarga os lapsos prescricionais, sua incidência deve ter apoio em lei e não na aparência ou equivalência.

5. A situação atual

A prática forense nos mostra que, na maioria das vezes, tanto o § 3? do art. 171, como o § I?, 111, do art. 168 do Código Penal, vêm sendo acrescidos àqueles crimes es­peciais equiparados.

Freqüentemente, são tais parágrafos articulados nas denúncias, aplicados nas sen­tenças condenatórias e, muitas vezes, confirmados em grau de apelação - sem que provoquem discussão. Como exemplos, lembramos os mais recentes, que abonam a in­cidência do § 3? do art. 171 no art. 155, IV, da Lei n? 3.807/60: TFR, Ap n? 6.688, Dl de 4-12-86, pág. 23.901; Ap n? 6.591, Dl de 27-11-86, pág. 23.318; Ap n? 6.863, Dl de 20-11-86, pág. 22.742; Ap n? 6.074, Dl de 30-10-86, pág. 20.749; Ap n? 6.460, Dl de 9-10-86, pág. 18.796; Ap n? 6.580, Dl de 2-10-86, pág. 18.166; Ap n? 6.579, Dl de 15-5-86, pág. 8.075.

Em número bem menor, são os v. julgados que rejeitam a aplicação do § 3? do art. 171, do Código Penal ao crime de estelionato do art. 155, IV, da LOPS: TFR, Ap n? 6.832, Dl de 13-11-86; Aps n?s 6.332 e 6.197, Dl de 6-11-86, pág. 21.423.

Apesar dessa diferença entre os v. Acórdãos referidos, não se pode dizer que se haja estabelecido, propriamente, uma divergência jurisprudencial sobre a matéria, pois os v. arestos que aceitam a agregação do § 3? não discutem, via de regra, as razões que fundamentariam sua aplicabilidade.

Parece-nos, pois, que o assunto está a merecer mais aprofundado exame, que en­globe todos os três mencionados crimes especiais equiparados ao estelionato, assim co­mo os outros três equipamentos à apropriação indébita.

TFR - 145 39

Este é o motivo do presente estudo, com o qual, obviamente, não pretendemos di­rimir o problema, mas esperamos que sirva para despertar outras e melhores análises sobre o tema.

6. A questão em face da Constituição e do art. I? do Código Penal Sempre que se discute a aplicabilidade ou não de alguma norma que acarrete a im­

posição de sanção penal, impõe-se que sejam lembrados os princípios constitucionais. Ao dispor sobre os direitos e garantias individuais, o art. 153, § 16, da Constitui­

ção em vigor manda que seja «observada a lei anterior, no relativo ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação do réu».

Com essa regra, que e fundamental ao Estado de Direito, impõe-se a obrigatorie­dade da reserva legal e a proibição da analogia in malam partem.

Por sua vez, o Código Penal enuncia, taxativamente, em seu art. I?: «Não há pena sem prévia cominação legal». Esse principio, que serve de baliza ao Direito Criminal, impõe que pena alguma seja aplicada, sem que ela esteja prevista em lei.

Em face desse princípio constitucional e penal, torna-se obrigatória a pergunta: Quando as leis especiais equiparadas, ora examinadas, mandam aplicar a seus in­

fratores as penas do art. 171 (ou do art. 168) do Código Penal - ou equiparam o fato ao «estelionato» (ou à «apropriação indébita») - pode-se ir além, aplicando-se, também, o § 3? do art. 171, o § I? do art. 168 do Código Penal?

Pessoalmente, parece-nos que não, pois ao se fazer incidir os referidos parágrafos, estaríamos ampliando o texto daquelas leis especíais equiparadas, que só se referem, ex­pressa e explicitamente, ao art. 171 (ou ao art. 168) e ao «estelionato» (ou à «apropria­ção indébita»).

Raciocinando dentro dos termos precisos ditados pelas regras do art. 153, § 16, da Constituição, e do art. I? do Código Penal, deve-se recusar a questionada aplicabili­dade.

Todavia, a discussão proposta perderia muito de sua validade, caso não se suge­risse alguma razão em contrário. Esta poderia ser a de que, ao equiparar-se a pena ou o comportamento especial ao daqueles crimes remetidos, estariam implícitas as qualifi­cadoras ou causas de aumento que lhes são agregadas pelo Código Penal.

Será forçoso, porém, reconhecer que restaria, no mínimo, constitucionalmente duvidosa a aplicação de agravamento da pena criminal com base em fator só implícito, e não expressa e regularmente enunciado na sanção penal.

Há, ainda, outra questão importante, que será levantada a seguir.

7. A dupla valoração não permitida Com precisão, o Direito Penal distingue as circunstâncias do crime e suas

elementares. As primeiras são dados ou fatos que estão ao redor do crime, mas cuja ausência não exclui a figura penal, pois não lhe são essenciais, embora interfiram na pena. Já as elementares são também dados ou fatos, mas que compõem a própria des­crição do fato típico, e cuja falta altera ou exclui o crime.

Relembrando essas noções, veja-se o que ocorre com os crimes especiais equipara­dos ora estudados:

I. Quanto ao § 3? do art. 171 do Código Penal, que manda exacerbar a pena de um terço, se o crime é cometido em detrimento das entidades que arrola, obviamente ele não é elementar em relação às figuras de estelionato comum que vêm descritas no caput e no seu § 2?, incisos I a VI.

A razão é evidente, pois tanto o estelionato do caput como seus subtipos podem ser praticados contra qualquer vítima (pessoa física, empresa privada, etc.) e não ape­nas em detrimento das entidades especiais arroladas no § 3?

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É esse fato que fundamenta e justifica o próprio § 3? do art. 171. Fossem todos os estelionatos, sempre só praticáveis contra as citadas entidades, a disposição do § 3? não teria sentido algum e seria uma dupla valoração inadmissível.

Basta que se recorra à imaginação e, por via dela, procure-se trasladar o § 3? do art. 171 para outro crime, como, por exemplo, o peculato do art. 312 do Código Pe­nal. Ficaria patente o absurdo, pois iríamos punir o agente por crime que só pode ser praticado contra especial sujeito passivo e, pela dupla valoração, ainda aumentaríamos a pena com o parágrafo «transposto», pelo mesmíssimo fato de ter sido vítima aquele determinado sujeito passivo próprio.

Da leitura dos três crimes extravagantes remetidos ao estelionato - aqui examina­dos - verifica-se que: a) o referente à Previdência Social (art. 155, IV, da Lei n? 3.807/60) apenas pode ser praticado em detrimento do seu Instituto; b) o crime concer­nente ao café de comercialização proibida (art. 2? do Decreto-Lei n? 47/66) só pode ser cometido em dano do próprio IBC; c) também na aplicação indevida de créditos ou in­centivos (art. 3? da Lei n? 7.134/83), sempre teremos por vítima alguma entidade governamental. São portanto, infrações penais com subjetividade passiva própria e especial.

Ou seja, é elementar, em todas elas, que o crime extravagante seja praticado em detrimento daquelas respectivas entidades governamentais, pois, caso não ocorra essa elementar do tipo, poderiam existir outros crimes, mas não as infrações especiais equiparadas a que acima nos referimos.

Como lembra Jiménez de Asúa, às vezes o legislador, ao descrever a figura, exige determinadas qualidades no sujeito passivo, ou no objeto material, de forma que, quando estão ausentes tais qualidades, «nos hallamos antes casos particulares de falta de algún elemento típico» (cf. «Tratado de Derecho Penal», 1958, vaI. lI, págs. 806 e 935/937).

Ora, se nas figuras aqui examinadas a qualificação especial da vítima já integra o próprio tipo, parece-nos constituir inadmissível dupla valoração a agregação do § 3? do art. 171, com o qual se agravaria a pena pelo mesmÍssimo fato.

2. Com relação ao § I?, III, do art. 168 do Código Penal, que determina o au­mento de um terço da pena quando o agente recebeu a coisa «em razão de ofício, em­prego ou profissão», a situação é semelhante.

O recebimento motivado por ofício, emprego ou profissão não se apresenta como elementar do crime comum de apropriação indébita, pois esta infração pode ser prati­cada - e geralmente o é - sem que o agente tenha recebido a coisa apropriada por motivo ou causa do seu ofício, emprego ou profissão.

Entretanto, pela simples leitura dos três crimes especiais equiparados à apropriação indébita, conclui-se que eles não podem ser cometidos, sem que o agente tenha recebido o valor apropriado por um dos motivos arrolados no § I?, III, do art. I!:g ~a Código Penal.

Tanto a falta de pagamento do salário-família reembolsado pela Previdência Social (art. 155, ll, da Lei n? 3.807/60), como a apropriação do Imposto de Renda retido na fonte (art. 11 da Lei n? 4.357/64), como, ainda, a utilização indevida do IPI (art. 2? do Decreto-Lei n? 326/67) devem, necessariamente, ser praticadas por motivo de ofício, emprego ou profissão.

Assim, essas causas, que são simplesmente acidentais na figura da apropriação in­débita comum, têm a natureza de elementares para os três tipos especiais equiparados à apropriação indébita. Elas integram de tal forma as três figuras extravagantes, que, se forem retiradas tais causas, desaparecerão os próprios crimes extravagantes.

Portanto, como elementares que são dos próprios tipos, não podem neles incidir duplamente, ora integrando suas definições, ora exacerbando-lhes as sanções.

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3. É pacifica e invariável, na jurisprudência dos Tribunais, a repulsa a qualquer dupla valoraçào, como seria a aplicação do § 3? do art. 171, ou do § I?, III, do art. 168 do Código Penal, às figuras especiais equiparadas de que tratamos.

Assim, por exemplo, dita a jurisprudência que não se aplicam às agravantes quan­do elas são elementares ou qualificadoras do crime (TFR, Ap n? 4.192, Dl de 2-4-81, pág. 2.778; TJRJ, Ap n~ 7.846, RT 563/365; TJSP, Ap n? 9.157, RT 555/327; TJSC, Ap n? 15.800, RT 545/397; TJRS, Ap n? 25.611, RT 533/400). Também a agravante do art. 61, lI, g, do Código Penal, que trata das infrações praticadas com violação de dever inerente à profissão, é inaplicável se a profissão não pode deixar de ser levada em conta pela própria natureza da infração (TACrSP, Ap n? 239.313, Julgados 68/461).

Também nas infrações penais da legislação especial, há estrita obediência a essa ve­dação. Na Lei de Tóxicos, por exemplo, encontramos o crime de associação (art. 14 da Lei n? 6.368/76) e a causa de aumento decorrente da associação (art. 18, III, I~ parte, da mesma lei). Independentemente da corrente jurisprudencial que for seguida, as duas regras nunca são cumuladamente aplicadas (cf. TFR, Revisão 449, Dl de 23-10-86, pág. 20.141, Ap n? 7.198, Dl de 25-9-86, pág. 17.582; Ap n? 7.382, Dl de 27-11-86, pág. 23.346, etc.).

8. Concluindo Pelas razões aqui assinaladas, acreditamos que são inaplicáveis aos crimes espe­

ciais equiparados ao estelionato ou à apropriação indébita - ora examinados - as qualificadoras ou causas de aumento do § 3? do art. 171, e do § I?, III, do art. 168 do Código Penal.

Impedem essa incidência tanto os princípios da reserva legal e da vedação à analo­gia in malam partem, como a proibição de que uma elementar que já integra o tipo possa servir, também, para qualificá-lo ou para exacerbar suas sanções.

Numa primeira visão, pode parecer estranho ou ilógico que elas sejam inaplicáveis às figuras especiais equiparadas, quando incidem nos tipos comuns de estelionato ou de apropriação indébita.

Essa aparente incoerência deve-se, exclusivamente, ao fato de terem aquelas leis ex­travagantes optado por equiparar as penas das condutas que objetivavam punir às san­ções de outros crimes comuns, em vez de estabelecerem suas próprias penas.

À evidência, caso houvessem ditado sanções para aqueles comportamentos equipa­rados ao estelionato, poderiam fer-Ihes cominado penas mais severas do que as previs­tas para o art. 171 do Código Penal, mas não ditariam preceito agravador delas, pelo fato de terem sido cometidas em dano de entidades que já intregravam o próprio tipo especial como elementar.

Também nos delitos remetidos à apropriaçào indébita, tivessem eles recebido ape­nação própria, esta poderia até ser mais grave do que a ditada para o art. 168 do Códi­go Penal, mas tais figuras jamais teriam como qUálificadora ou causa de aumento a profissão, emprego ou ofício, que é elementar nos tipos especiais.

Não há, portanto, qualquer conotação liberalizante no posicionamento que ora sustentamos. Ao contrário, ele tem estrito apoio em imperativo princípio constitucional e em regras das mais tradicionais do Direito Penal.

O que esperamos, na verdade, é que este simples estudo desperte atenção para sua problemática e provoque outras e melhores pesquisas sobre a matéria.

NATUREZA DAS DECISÕES DO TC

J. Cretella Júnior

J. CRETELLA JÚNIOR

NATUREZA DAS DECISÕES DO TRIBUNAL DE CONTAS

Síntese:

I. Colocação subjetiva 2. Terminologia inadequada 3. O que é «jurisdição» 4. Colocação da doutrina 5. O verbo «julgar» 6. O Tribunal de Contas não exerce jurisdição penal 7. O Tribunal de Contas não exerce jurisdição civil 8. O Tribunal de Contas exerce apenas atividades administrativas

9. Aparência e realidade 10. Conclusões

I. Colocação subjetiva

Somente quem confunde «administração» com «jurisdição» e «função administra­tiva» com «função jurisdicional» poderá sustentar que as decisões dos Tribunais de Contas do Brasil são de natureza judicante. Na realidade, nem uma das muitas e rele­vantes atribuições da Corte de contas entre nós, é de natureza jurisdicional. A Corte de Contas não julga, não tem funções judicantes, não é órgão integrante do Poder Judi­ciário, pois todas suas funções, sem exceção, são de natureza administrativa.

O Tribunal de Contas é preposto do Poder Legislativo, encarregado da fiscalização orçamentária (cf. nosso «Curso de Direito Administrativo», 9~ ed., 1987, p. 125).

Os que defendem a colocação contrária, ou seja, a tese de que o Tribunal de Con­tas julga, desempenha funções judicantes, supõem ser as {unções judicantes «mais no­bres» ou «mais relevantes» que as {unções administrativas e procuram alinhar argu­mentos para demonstrar a validade da colocação adotada. Das três funções do Estado - a de julgar, a de legislar e a de administrar -, nenhuma é «mais importante» do que a outra, nenhuma é «mais nobre» ou «menos nobre». Todas as três dignificam seus membros, desde que incensurável o desempenho.

Os juristas, que procuram defender a posição que atribui natureza jurisdicional às decisões dos Tribunais de Contas, raciocinam globalmente, sem analisar uma a uma ca­da atribuição para verificar e concluir dessa análise que as atribuições dessas Cortes, pela forma e pelo conteúdo, são de natureza administrativa, tais como a emissão de pa-

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receres sobre contas que o Chefe do Executivo presta, anualmente, a elaboração de re­latório sobre o exercício financeiro encerrado, o registro e a fiscalização da legalidade dos contratos, das aposentadorias, das reformas e pensões, a verificação das contas dos responsáveis por dinheiros e bens públicos, bem como a apreciação das contas dos ad­ministradores das entidades autárquicas.

Todas essas atribuições de controle, de fiscalização, são estranhas à função jurisdicional que, no Brasil é privativa do Poder Judiciário. Do contrário, estaríamos admitindo a existência, entre nós, do instituto do contencioso administrativo. Porque «fiscalização» ou «apreciação» de contas, dizer se a conta é boa, ou não, é função administrativa.

A colocação emotiva, com base, como veremos, em terminologia inadequada, im­própria, assim como em alguns aspectos formais do Tribunal de Contas que se asseme­lham aos do Poder Judiciário - a divisão em Câmaras, por exemplo -, é responsável pela adoção da tese que sustenta a natureza jurisdicional da Corte de Contas. Como conseqüência, teria valor jurisdicional a apreciação ou fiscalização realizada, que se equipararia à sentença prolatada pelos verdadeiros e únicos Tribunais. Vamos demons­trar que todas as decisões dos Tribunais de Contas não se equiparam, de modo algum, às decisões dos Tribunais Judiciários, ou seja, os Tribunais de Contas não prolatam sentenças nem de natureza civil nem de natureza penal. Seus ilustres integrantes, embo­ra vitalícios e inamovíveis, não são Magistrados, pois não julgam.

2. Terminologia inadequada

Terminologia ou nomenclatura dúbia, inadequada, para não dizer imprópria ou in­correta, eis o primeiro fator que influi sobre a posição dos que defendem a natureza jurisdicional do Tribunal de Contas. Em primeiro lugar, o próprio termo «Tribunal», leva a pensar, num primeiro momento, que se trata de colegiado de segundo grau, mas, nesse caso, qual é a primeira instância ou primeiro grau de jurisdição a ele correspon­dente? Existiu, ou existe, no Brasil, algum colegiado judicante de primeiro grau? E, ca­so existisse, qual o segundo grau de jurisdição correspondente ao Tribunal de Contas, caso este fosse colegiado de inferior instância, com função jurisdicional?

A seguir, o emprego, até nas Constituições dos termos «julgar», «julgamento», «jurisdição» (<<O Tribunal de Contas da União tem jurisdição em todo o País»). De­pois, as garantias, prerrogativas, vencimentos e impedimentos que são as mesmas dos Ministros do Tribunal Federal de Recursos, a saber, entre as prerrogativas, a da vitali­ciedade, a da inamovibilidade e a da irredutibilidade dos vencimentos.

O Decreto-Lei n? 199/1967, no artigo 33, preceitua: «O Tribunal de Contas tem jurisdição própria e privativa sobre as pessoas e matérias sujeitas à sua competência». Ora, em qualquer estrada de rodagem, e, em especial, nas federais, encontram-se as ex­pressões «aqui principia a jurisdição da Dersa» ou «aqui termina a jurisdição federal», sem que esse emprego, vulgar ou popular, erija o vocábulo «jurisdição» à altura do ter­mo técnico, na acepção que lhe dão os processualistas.

A própria divisão interna dos Tribunais de Contas, em Câmaras, por exemplo, contribui para impressionar os que se inclinam pela tese da natureza judicante do Tri­bunal de Contas.

Em síntese, formalmente, pela aparência, pela terminologia, pela prerrogativa de seus membros, o Tribunal de Contas «se equipara» ao Poder Judiciário.

3. O que é «jurisdição». No Brasil, a função de julgar está afeta ao Poder Judiciário, pois o nosso país é

sistema de jurisdição una - una lex, una jurisdictio, ao contrário da França, em que prevalece o sistema duplo de jurisdição, o «contencioso administrativo» ao lado do «contencioso judiciário».

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Função jurisdicional é a aplicação da lei ao caso concreto, em decorrência de situa­ção contenciosa. Não é a aplicação da lei «de ofício». No Poder Judiciário, centraliza­se toda a jurisdição, que não lhe pode ser retirada nem pela própria lei, uma vez que é outorgada por mandamento constitucional expresso (<<a lei não pode excluir da aprecia­ção do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual»). Lato sensu, processo é a forma de composição de litígios para que prevaleça a ordem jurídica. Incidindo sobre a pretensão que qualifica o litígio, a atuação jurisdicional do direito objetivo, da lei, depende sempre de provocação do interessado, já que o Poder Judiciário nunca age es­pontaneamente. Para que a pretensão do interessado entre em julgamento é necessária a propositura da actio, que põe em movimento o aparelhamento judicial do Estado, cujo momento culminante é a prolação da sentença, a ocorrência de jurisdição, em seu instante decisivo. Autor, réu e Juiz são os três personagens do drama jurisdicional.

4. Colocação da doutrina Entre os partidários da tese de que os Tribunais de Contas, no Brasil, desempe­

nham funções jurisdicionais, incluem-se, além dos próprios membros desses colegiados, cujos argumentos são todos informados por grande carga subjetiva, outros nomes, de juristas insignes, que procuram demonstrar a natureza judicante daquelas Cortes.

Leopoldo da Cunha Melo, quando Procurador do Tribunal de Contas da União, sustentava (cf. «Pareceres», vol. IV, pp. 118/119), que o «Tribunal de Contas não é simples órgão administrativo, mas exerce verdadeira judicatura sobre os exatores, os que têm em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros públicos». No entanto, aquele Procurador apenas afirma, mas não demonstra, a tese que enuncia de modo tão domg­mático.

A afirmação daquele antigo Procurador dirigia-se a um trecho da primeira edição (reiterada, aliás, nas cinco seguintes), do eminente Ministro Miguel Seabra Fagundes (cf. «o Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário», § 69), que diz: «Es­sas exceções têm pequena significação prática no sistema brasileiro de controle jurisdi­cional. Representando inequívocas delegações da função de julgar a órgãos estranhos ao Poder Judiciário, são, no entanto, quantitativamente mínimas, se considerado o vul­to enorme do contencioso civil e penal a este confiado. Ao Tribunal de Contas se dele­ga a apreciação jurisdicional de certas situações individuais - as dos responsáveis por valores patrimoniais da União -, mas tão-somente no que concerne ao aspecto contá­bil, embora com reflexos nas órbitas penal e civil». Equivocou-se aquele antigo Procu­rador, porque a fiscalização que o Tribunal de Contas exerce sobre os exatores - os que têm em seu poder, sob sua gestão, bens e dinheiros, públicos - é tudo, menos «judicatura», a menos que se dê a este vocábulo a acepção vulgar ou popular e não o sentido exato, como o empregado no livro de notável Magistrado «Um Triênio de Judi­catura», sabendo-se que aquele Juiz reuniu, em seu trabalho, as mais selecionadas sen­tenças que prolatou.

Castro Nunes, no capítulo denominado atos jurisdicionais da administração sic, es­crevia: «Se o Tribunal de Contas, a mais alta jurisdição administrativa da República, composto de Magistrados que a Constituição denomina de Ministros e gozam das mes­mas garantias asseguradas aos da Corte Suprema, profere uma decisão, o direito que contra ela se insurgisse poderia ser atendido por outros meios, não, porém, pelo Man­dado de Segurança» (cf. «Do Mandado de Segurança», Forense, 5~ ed., 1956, pág. 170).

A passagem de Castro Nunes, partindo de quem parte, deixa perplexo o leitor, porque «atos jurisdicionais da administração» não existem, já que «administrar é apli­car a lei de ofício», o que não se confunde com «julgam, que se caracteriza por outra conotação, inconfundível com esta. A expressão «alta jurisdição administrativa» é um contradicto in terminis, porque «jurisdição» não só não se confunde com «administra­ção», como, até exprime idéia antitética à expressa por este último vocábulo. De modo algum o Tribunal de Contas é «jurisdição» e, muitos menos «alta» jurisdição e, caso o

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fosse, não poderia ser, ao mesmo tempo, jurisdição administrativa, porque quem «ad­ministra» não «julga» e quem «julga» não «administra».

Carlos Casimiro Costa (cf. o artigo «Funções Jurisdicionais e Administrativas dos Tribunais de Contas. Efeitos dos seus Julgados», em RT, 275) distingue as várias fun­ções dos Tribunais de Contas, classificando como judicante o «julgamento das Contas» e como administrativa a «apreciação dos atos que concedem aposentadorias, reformas e pensões».

Também é incorreta esta posição, porque, na expressão julgamento das contas», o vocábulo que grifamos é sinônimo do termo apreciação, empregado na expressão «a­preciação dos atos que concedem aposentadorias, reformas e pensões». Fiscalizar «con­tas», fiscalizar «atos», que concedem aposentadorias, reformas e pensões, é atividade aritmética e lógica, procurando-se enquadrar a realidade fática, na norma correspondente.

A Constituição fala corretamente em «fiscalização financeira e orçamentária», me­diante controle externo do Tribunal de Contas (art. 70 e § I ?), embora cometa erro de técnica terminológica quando, no artigo 72, alude ao fato de que aquela Corte da União «tem jurisdição em todo o País».

Pontes de Miranda, no «Comentários às Constituições» de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, dedica muitas páginas ao tema, indagando se o Tribunal de Contas é órgão cooperador do Executivo, de auxiliar do Congresso Nacional da União, órgão coorde­nador, órgão de catáter fiscal, órgão do Judiciário, para concluir, indagando, no re­gime da Carta de 1937: «A que Poder pertencia o Tribunal de Contas, na Constituição de 1937? Ao Poder Executivo, não; porque fiscalizava a execução orçamentária, julga­va as contas dos responsáveis por dinheiro ou bens públicos e julgava da legalidade dos contratos celebrados pela União. Ao Poder Legislativo, também não; porque estava longe de ser simples auxiliar da tomada de contas ao Poder Executivo e até se lhe es­vaía tal função nos textos de 1937. Ao Poder Judiciário, se bem que de modo especial, como função, sim; como órgão, não. Era um Tribunal e julgava. Não importa o cará­ter à parte que teve; isso não lhe tirava a função de julgar. Tanto quanto ao Tribunal de Contas de 1934, ao Tribunal de Contas de 1937 reconhecêramos função judiciária. Esse elemento de classificação, que defendemos, foi reafirmado pela Constituição de 1946. A nova Constituição tem o Tribunal de Contas como órgão (auxiliar) do Poder Legislativo. Mas função de julgar ficou-lhe. No plano material, é corpo judiciário; no formal, corpo auxiliar do Congresso Nacional» (cf. «Comentários à Constituição de 1946», 2~ ed., 1953, Max Limonad, vol. lI, pág. 338).

A autoridade de Hely Lopes Meirelles, nas várias edições de sua obra, até na últi­ma, 12?, de 1986, analisa demoradamente os vários aspectos (cf. n ed. do «Direito Administrativo») referentes à natureza do Tribunal de Contas. Assim: «A fiscalização financeira e orçamentária é conferida em termos amplos ao Congresso Nacional, mas se refere fundamentalmente à prestação de contas de todo aquele que administra bens, valores ou dinheiros públicos. É decorrência natural da administração como atividade exercida em relação a interesses alheios» (cf. «Direito Administrativo Brasileiro» , 7~ ed., 1979, pág. 677).

Estamos plenamente de acordo com a afirmação. Trata-se de «fiscalização», finan­ceira e orçamentária, referida, fundamentalamente, à «prestação de contas de agente que administra bens, valores ou dinheiros públicos», atividade que tipifica a função administrativa.

E continua: «o controle externo visa comprovar a probidade da administração e a regularidade da guarda e do emprego dos bens, valores e dinheiros públicos, assim co­mo a fiel execução do orçamento» (cf. «Direito Administrativo Brasileiro», 7? ed., 1979, pág. 678). Aqui, a caracterização do controle externo é administrativa, não jurisdicional. «É, por excelência, um controle de legalidade, contábil e financeira, a cargo do Tribunal de Contas» (cf. «Direito Administrativo Brasileiro», 7~, ed., 1979, pág. 678). Ainda aqui a natureza do controle é administrativo.

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Classificando as atividades dos Tribunais de Contas do Brasil, a mesma autoridade as divide em funções técnicas opinativas, verificadoras, assessoradoras e jurisdicionais administrativas (pág. 679).

Curiosamente, a colocação de Hely Lopes Meirelles (pág. 679) coincide com a de Castro Nunes (cf. «Do Mandado de Segurança», Forense, 5~ ed., 1956, pág. 170), mas como dissemos, ao comentar Castro Nunes, os vocábulos «jurisdicionais» e «adminis­trativos» repelem-se, porque quem «julga», realiza «ato de julgam, não «administra» e quem «administra», no momento de administrar, «não julga».

Mais adiante: «Os Tribunais Administrativos são órgãos do Poder Executivo, com competência jurisdicional específica» (cf. «Direito Administrativo Brasileiro», 7? ed., 1979, pág. 748).

E, por fim, como remate: «O Tribunal de Contas da União tem uma posição sin­gular na administração brasileira, pois está instituído constitucionalmente como órgão do Poder Legislativo, mas desempenha atribuições jurisdicionais administrativas, rela­cionadas com a fiscalização da execução orçamentária, com a aplicação dos dinheiros públicos, com a legalidade dos contratos, aposentadorias e pensões» (cf. Hely Lopes Meirelles, «Direito Administrativo Brasileiro», 7~ ed., 1979, pág. 748)

E, na página seguinte: «Não exercendo funções legislativas, nem judiciais, o Tribu­nal de Contas só pode ser classificado como órgão administrativo independente» (cf. idem, ibidem, pág. 749).

Na mesma página, em nota de rodapé, está escrito: «Não se confunda jurisdicional com judicial. Jurisdição é atividade de dizer o direito, e tanto diz o direito o Poder Ju­diciário, como o Executivo e até mesmo o Legislativo, quando interpretam e aplicam a lei. Todos os Poderes e órgãos exercem jurisdição, mas somente o Poder Judiciário tem o monopólio de jurisdição judicial, isto é, de dizer o direito com força de coisa julgada. É por isso que a jurisdição do Tribunal de Contas é meramente administrativa, estando suas decisões sujeitas à correção pelo Poder Judiciário, quando lesivas de direito individual» (cf. «Direito Administrativo Brasileiro», 7~ ed., 1979, pág. 748, nota).

E, concluindo, na mesma página: «Não exercendo funções legislativas, nem judi­ciais, o Tribunal de Contas só pode ser classificado como órgão administrativo inde­pendente».

Para nós, na mesma posição, a atribuição do Tribunal de Contas é «meramente administrativa», sendo a Corte de Contas classificada como «órgão administrativo in­dependente» .

O Professor Alfredo Buzaid esclarece com absoluta precisão que, «quando o Tri­bunal de Contas acompanha e fiscaliza, diretamente, ou por delegações criadas em lei, a execução do orçamento, e quando julga da legalidade dos contratos, aposentadorias, reformas e pensões, é órgão auxiliar do Congresso, mas quando julga as contas dos responsáveis por dinheiros ou outros bens públicos e as dos administradores dos entes autárquicos, é corporação administrativa autônoma» (cf. «O Tribunal de Contas do Brasil», publicado na «Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Pau­lo», 1967, n? 62, fascículo lI, págs. 37 a 62), posição fundamental para a colocação jurídica do Tribunal de Contas, no Brasil, já que o grande processualista brasileiro - e não os administra ti vistas, nem os integrantes das Cortes de Contas - é que pode, me­lhor do que ninguém elucidar o que é «julgar», bem como o que significa, na técnica do Direito Processual, «jurisdição» e «julgamento».

Themístocles Brandão Cavalcanti, constitucionalista e administrativista, e, maIs tarde, Ministro do Supremo Tribunal Federal, analisou com profundidade o tema, não somente no livro «A Constituição Federal comentada», 3~ ed., José Konfino, Rio, 1956, vol. lI, págs. 192 a 205, como também, mais tarde, na qualidade de Magistrado, em 28 de abril de 1969, quando depois de citar seu próprio trabalho, concluiu, no rela­tório: «Não se pode contestar ao Tribunal de Contas competência para apreciar a lega-

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!idade das aposentadorias e a verificação dos seus cálculos, inclusive da prova trazida para a contagem do tempo de serviço. Mas seus atos não são insuscetíveis de aprecia­ção, quanto à sua legalidade. Pelo contrário. As suas decisões são de natureza administrativa e, como tal, devem ser consideradas pelas instâncias judiciárias» (cf. STF, em RDP, 12:154).

Citando Rafael Bielsa, no «Derecho Administrativo», 4~ ed., 1938, vol. l, pág. 764 (<<As Cortes de Contas não invadem nem a jurisdição civil, nem a jurisdição penal, a cargo dos Juízes comuns, quando fixam a responsabilidade do agente por fatos ou atos da sua gestão»), Castro Nunes, já Ministro do Supremo Tribunal Federal, conclui que o julgamento da conta se limita a essa verificação, e conclui: «É um Juízo que se insti­tui sobre operações administrativas, limitado aos atos ou fatos apurados, seja para liberar o responsável, seja para o declarar alcançado em vista das irregularidades en­contradas na sua gestão. O Tribunal de Contas estatui somente sobre a existência ma­terial do delito, fornecendo à Justiça, que vai julgar o responsável, essa base da acusa­ção. Não julga a este, não o condena, nem o absolve, função da Justiça Penal. Fixa-lhe apenas a responsabilidade material, apurado o alcance. Outros aspectos da imputação pertencem por inteiro à Justiça Comum, que pode absolver o responsável alcançado, contanto que não reveja o julgado de contas, não negue a existência material da infra­ção financeira (<<Teoria e Prática do Poder Judiciário», ed. da Revista Forense, Rio, 1943, pág. 30).

5. O verbo «julgar» Toda celeuma, em torno da fixação da natureza jurídica do Tribunal de Contas,

principiou, em 1934, quando a Constituição Federal, no art. 99, empregou o verbo «julgar», na seguinte construção: e julgará as contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos». O erro terminológico, não técnico, foi mantido nas demais Constitui­ções, na de 1937, art. 114 (<< ... julgar das contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos e da legalidade dos contratos celebrados ... »), na de 1946, art. 77 (<< ... julgar as contas .. -.», «julgar da legalidade dos contratos e das aposentadorias, reformas e pensões»), na de 1967, art. 71 § I? (<<julgamento das contas dos administradores e de­mais responsáveis por bens e valores públicos»), na EC n? I, de 1969, art. 70, § 4? (<<o julgamento da regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis será baseado em levantamentos contábeis, certificados de autoria e pronunciamento das autoridades administrativas»).

O emprego do verbo «julgar» e dos substantivos «julgamento» e «jurisdição», em dispositivos constitucionais, induziu, primeiro, os membros do Tribunal de Contas -Ministros e Conselheiros -, ao erro, inaginando que os vocábulos tinham sido empre­gados com o mesmo sentido que têm, na momenclatura técnica do Direito Processual.

No Brasil, emprega-se, a todo instante, o vocábulo «julgamento», quando se fala em «julgamento» de concurso, «julgamento» de licitação. Utiliza-se também o termo «jurisdição» (e igualmente «alçada»), na acepção vulgar ou corrente.

O cientista do direito, no entanto, não se preocupa com o nível do texto - lei or­dinária, decreto, decreto-lei, dispositivo constitucional -, porque os constituintes, não raro, cometem erros de vários tipos, a começar pelo terminológico, pelo que é funda­mentai o trabalho de intérprete, que vai buscar, nos cultores dos vários ramos do direi­to, a acepção correta dos vocábulos.

A Constituição de 1946, art. 76, encerra esta heresia jurídica: «O Tribunal de Con­tas tem a sua sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional».

Claro que essa palavra «jurisdição» é a mesma que se lê nas estradas de rodagem federais: «aqui começa a jurisdição da Dersa».

Pois bem, a transposição da rigorosa terminologia processual, para a acepção vul­gar, normal, corrente, popular, foi a responsável pela colocação dos que pretendem

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que os Tribunais de Contas, assim como os Tribunais de Justiça, «julguem», profiram «julgamento», exerçam «jurisdição», quando, na realidade, as Contas exercem, tão-só, atividades administrativas de fiscalização, de apreciação de contas, de concessão de aposentadorias, reformas, pensões.

A história do Tribunal de Contas do Brasil demonstra o que afirmamos e o que es­tamos demonstrando.

A idéia do Tribunal de Contas remonta ao ano de 1826, quando Felisberto Caldei­ra Brant Pontes Oliveira Horta, o Visconde de Barbacena, e José Inácio Borges, apre­sentaram ao Senado do Império o primeiro projeto a respeito.

O Conde de Baependi, ou seja, Nogueira da Gama, combateu-o, em discurso, di­zendo que «se o Tribunal de Revisão de Contas se convertesse em Tribunal de fiscaliza­ção das despesas públicas, antes de serem feitas, em todas e quaisquer repartições, poder-se-ia colher dele proveito; mas, sendo unicamente destinado ao exame das contas e documentos, exame que se faz no Tesouro, para nada servirá, salvo para a novidade do sistema e o aumento das despesas com os nele empregados».

Alves Branco, em 1845, na qualidade de Ministro do Império, propôs a criação de Tribunal de Contas que, além de exercer «fiscalização financeira», apurasse a «respon­sabilidade dos exatores da Fazenda Pública, com o poder de «ordenar a prisão dos de­sobedientes e contumazes» e de julgar à revelia as contas que tivessem de prestar». Aqui surge, pela primeira vez e, no Império, o verbo «julgar», mas como se vê em acepção não técnica.

Já na República, o Decreto n? 966-A, de 7 de novembro de 1890, cuja redação coube a Rui Barbosa, criou o Tribunal de Contas para «fiscalizar os atos do Poder Executivo» e a «julgar as contas de todos os responsáveis por dinheiros públicos».

O art. 89 da Constituição Republicana de 1891 disse lapidar e correta­mente: «É instituído um Tribunal de Contas para liquidar as contas da receita e despesa e verificar a sua legalidade, antes de serem prestadas ao Congresso».

O constituinte de 1891 empregou os termos técnicos, apropriados, que deveriam ter sido seguidos pelos demais constituintes ou «redatores de cartas», em 1934, 1937, 1946, 1967 e 1969, mas a Constituição de 1934, empregando, no art. 99, o verbo «julgar» e a Constituição de 1946, repetindo, no art. 77 o mesmo engano, culminando esta última por preceituar, no art. 76, que o Tribunal de Contas tem jurisdição em todo o territó­rio nacional.

Essa defeituosa distorção terminológica é que levou os adeptos da tese de que o Tribunal de Contas «julga», exerce «jurisdição», a defenderem a natureza jurídica da Corte de Contas do Brasil, quando, entre nós, nunca os Tribunais de Contas julgaram, pois sua~ funções são administrativas, como iremos demonstrar a seguir.

6. O Tribunal de Contas não exerce jurisdição penal

Contrapondo-se aos fenômenos de formação do direito, vinculados à função legis­lativa, acham-se os fenômenos de realização do direito, concretizados no ato de aplicar a lei contenciosa mente - função judicante - e no ato de aplicar a lei de ofício - fun­ção administrativa -, conforme escrevemos em outro trabalho (cf. «Controle Jurisdi­cional do Ato Administrativo», Rio, 1984, Ed. Forense, p. 12).

Embora alguns juristas tenham salientado que o Direito Penal não deixa de ser uma ciência jurídica que se desprendeu do Direito Administrativo para ter individuali­dade própria no quadro enciclopédico do Direito e que a função de punir é função ad­ministrativa, bem como tenham ressaltado que a atividade penal é, fundamentalmente, administrativa (cf. J.C. Mendes de Almeida, «Ação Penal», pp. 19 e 20, J. Frederico Marques, «Da Competência em Matéria Penal», pág. 57, e «Curso de Direito Penal», vol. I, pág. 40), na realidade, hoje, «administrar é aplicar a lei de ofício», ao passo que «julgar é aplicar a lei contenciosamente».

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o objeto ou conteúdo da jurisdição penal é o crime ou delito, havendo, de um la­do, o Estado, que tem o jus puniendi e, do outro, o réu, o autor do crime.

Justiça Penal

Na jurisdição penal, a ação do Estado, entregue aos Juízes e Tribunais Criminais, incide sobre o ilícito penal, ato positivo ou negativo do homem, antijurídico, típico, imputável e punível.

Na atividade administrativa, tendente a apurar ilícitos administrativos, ou seja, atos positivos ou negativos, imputados a funcionários ou servidores públicos, em decor­rência de infração a dispositivo estatutário expresso, a ação do Estado não é confiada nem a Juízes, nem a Tribunais.(')

Desse modo, o «alcance» diferença para menos, que, em ajuste de contas públicas, ocorre entre os valores públicos pelos quais é responsável o funcionário diante da admi­nistração, é objeto de atividade administrativa, podendo ser submetido ao Tribunal de Contas, mas o «peculato», crime típico, definido no Código Penal, art. 312, como «apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio» é objeto de atividade jurisdicional penal, devendo seu autor ser jul­gado pelo «Juiz do crime», da vara criminal e, em segundo grau de jurisdição, pelos Tribunais Criminais, através de suas respectivas Câmaras.

Nunca o «alcance», que não está previsto no Código Penal, e que, pois, não é de­lito típico, mas atípico, seria objeto de jurisdição penal e, por sua vez, o «peculato», que é delito típico, nunca seria julgado pelo Tribunal de Contas que, a final, em sen­tença condenatória, condenasse o infrator à pena cominada no Código Penal.

As questões decididas pelo Tribunal de Contas, na apreciação das contas dos res­ponsáveis pelos dinheiros públicos, são meras «questões prévias», são simples «questões prejudiciais», constituem o prius lógico-jurídico de um crime, ou, pelo menos, de cir­cunstância material desse crime.

Por isso é que Themístocles Brandão Cavalcanti, constitucionalista, administra ti­vista e Ministro do Supremo Tribunal Federal, ensinou e depois, como Relator, con­cluiu que «as decisões do Tribunal de Contas são de natureza administrativa e podem ser apreciadas quanto à sua legalidade» (STF, em RDP, 12:153).

Se ao invés de ser «administrativa», a decisão do Tribunal de Contas fosse «juris­dicional», receberia o nome técnico de «sentença penal», absolutória ou condenatória, e, neste segundo caso, condenaria o infrator, ou réu, à pena privativa de liberdade, dentro da faixa de tempo cominada no Código Penal, in abstracto. O réu funcionário público, nessa hipótese, teria cometido crime contra a administração, capitulado no Código Penal, a saber, (') peculato, (2) concussão, (l) advocacia administrativa, (4) pre­varicação, (') emprego irregular de verbas e rendas públicas, (6) extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento, C) excesso de exação, (8) corrupção passiva, (9) condescendência criminosa, ('0) violência arbitrária, (") abandono de função, (12) exer­cício funcional ilegalmente antecipado ou prolongado, (13) violação de segredo funcio­nal, ('4) violação do sigilo de proposta de concorrência.

Pois bem, cabe à Justiça Penal, no exercício de sua jurisdição específica, o julga­mento do funcionário público, que cometeu algum desses delitos contra a administra­ção. É uma jurisdição ampla, completa.

Exaure-se a jurisdição penal, no campo do funcionalismo, com o exercício de ativi­dade que procura julgar o funcionário público, condenando-o ou absolvendo-o. Que sobrou para o Tribunal de Contas, nesse campo, ao apreciar as contas dos responsáveis por dinheiros públicos?

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Nem se trata de «jurisdição administrativa», mas apenas de jurisdição penal, em matéria administrativa. Jurisdição é o aspecto formal, matéria administrativa é o aspec­to substancial ou material.

Em todos esses casos, a sanção aplicável é a pena privativa de liberdade, detenção ou reclusão, conforme o dispositivo penal infringido.

Em caso algum, ao «julgar», o Tribunal de Contas prolata sentença penal, fixando pena de detenção ou de reclusão.

Perante o Tribunal de Contas não se defrontam promotor e advogado. de defesa, nem, diante dos Conselheiros ou Ministros, há um Juiz que ouve o réu e as testemu­nhas.

O Tribunal de Contas não julga, não prolata sentenças, não condena por crime praticado.

Por fim, por ocasião do julgamento e, como conseqüência da sentença penal con­denatória, há vários institutos do Direito Penal, que formam um todo, estabelecendo um regime jurídico típico, inconfundível: os institutos do sursis, da suspensão condicio­nal da pena, da reincidência, da quebra da primariedade, das medidas de segurança, da perda da função pública, figuras essas inexistentes no «julgamento» feito pelo Tribunal de Contas.

Não se deve perder de conta também que o Tribunal de Contas «aprecia», «fiscali­za» ou «julga» contas, ao passo que o Poder Judiciário julga pessoas.

Quando se compara o tratamento do «alcance», perante o Tribunal de Contas e o «peculato», perante o Poder Judiciário, fica bem clara a diferença entre o que é «admi­nistrar» e o que é «julgam, regimes jurídicos que decorrem da fixação da natureza jurídica das duas operações, a primeira administrativa, a segunda jurisdicional.

7. O Tribunal de Contas não exerce jurisdição civil Contrastando de modo nítido com a atividade administrativa, que se caracteriza

pela aplicação da lei «de ofício», sem provocação, a atividade jurisdicional é provoca­da, de iniciativa da parte ou do interessado, razão por que, no Brasil, nenhum Juiz prestará tutela jurisdicional sem requerimento da parte ou do interessado, nos casos e forma legais (art. 2? do Código de Processo Civil), principiando assim o processo civil por iniciativa da parte, desenvolvendo-se, depois, por impulso oficial (art. 262 do Códi­go de Processo Civil).

Procedat Administratio ex officio, mas ne procedat iudex ex officio. Eis os dois principios que ressaltam a diferença entre a administração e o Judiciário, porque, neste último, ninguém pode ser Juiz sem que haja autor, nemoiudex sine actore.

A inércia inicial do Judiciário contrasta com o dinamismo inicial da Administração; sem ajuizamento da actio, a atividade jurisdicional não tem início, ao passo que a ativi­dade administrativa, regra geral, não depende do interessado.

A atividade jurisdicional é atividade pública, constituindo, no sistema jurídico bra­sileiro, monopólio do Poder Judiciário, exceto alguns pouquíssimos casos de jurisdições anômalas (cf. Guimarães Carneiro, «jurisdição e Competência», 2~ ed., 1983, Saraiva, pág. 8). Assim, requisito formal da jurisdição é a existência de órgão integrante do Po­der Judiciário (cf. J. M. de Arruda Alvim, «Código de Processo Civil Comentado», São Paulo, 1975, RT, vol. I, p. 41).

8. O Tribunal de Contas exerce apenas atividades administrativas Nenhuma das tarefas ou atividades do Tribunal de Contas configura atividade

jurisdicional, pois não se vê, no desempenho dessa Corte de Contas, nem autor, nem réu, nem propositura de ação, nem provocação para obter prestação jurisdicional, nem inércia inicial, nem existência de órgão integrante do Poder Judiciário, nem julgamento de crimes contra a administração.

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Ao contrário, as atividades do Tribunal de Contas, tipicamente administrativas, são a apreciação da legalidade das concessões iniciais de aposentadoria, para fins de re­gistro, a apreciação da legalidade das reformas, a apreciação da legalidade das pensões, a apreciação das contas do Chefe do Executivo, na respectiva esfera, o «julgamento», aliás, verificações das contas dos administradores e demais responsáveis por bens e va­lores públicos, concluindo, a final, se as contas estão em ordem, ou se houve alcance, a elaboração de parecer prévio sobre as contas que o Chefe do Executivo presta anual­mente, a apresentação de minucioso relatório sobre o exercício financeiro encerrado, a auditoria financeira e orçamentária exercida sobre as contas das unidades administrati­vas, que, para esse fim, remetem demonstrações contábeis para a realização das inspe­ções necessárias, a representação ao Poder Executivo e ao Congresso Nacional sobre ir­regularidades e abusos por ele verificados, a fixação de prazo razoável para que o ór­gão da administração adote as providências necessárias ao cumprimento da lei, caso ve­rifique a ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos, agindo, nesse' caso, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público ou das auditorias financeiras e orçamentárias e demais órgãos auxiliares, a sustação, se não atendido, da execução do ato impugnado, exceto em relação a contratos, a solicitação ao Legislati­vo, em caso ainda de contratos, para que lhes determine a sustação da execução, ou para que proponha outras medidas necessárias ao resguardo dos objetivos legais.

9. Aparência e realidade

A atribuição de atividade judicante ou jurisdicional ao Tribunal de Contas parte de duas falsas premissas, uma aparente, outra técnica. «Aparente» é a que examina co­notações externas, traços e terminologia que, realmente, induzem àquela colocação. «Técnica» é a que não leva em conta a diferença entre jurisdição e administração, entre «julgar» e «administrar», ou seja, entre «aplicar a lei contenciosamente» e «aplicar a lei de ofício, espontaneamente».

Examinemos, primeiro, o problema da aparência, dado externo e epidérmico, que tem levado, até especialistas, à confusão.

Todos os fatos do mundo e, pois, do mundo jurídico, devem ser examinados sob dois aspectos, o da aparência e o da realidade, o fenomênico e o numênico.

A Lógica, classificada em formal e material, mostra que os raciocínios, inúmeras vezes, formalmente incensuráveis, não resistem à análise «material», «substancial» ou «de conteúdo». A fórmula aristotélico-tomista e escolástica, que diz forma dat esse rei, a forma confere essência à coisa, não resiste, nos dias de hoje, a uma análise científica, porque a realidade, ao contrário do que diz essa fórmula, está, na maioria das vezes, oculta sob falazes aspectos formais, que a mascaram ou disfarçam. O que é certo, para a lógica formal, pode ser incorreto para a lógica material, que aprofunda a investiga­ção do «real», do «concreto», desmistificando os sofismas, tecnicamente bem cons­truídos sob o aspecto formal.

Kant, genialmente, dividiu os fatos do mundo em (<llumênicos» e «fenomênicos», assinalando que a coisa em si - a «Das Ding an sich» -, a veritas, é envolvida por traços aparentes, que escondem a realidade.

Desse modo, o Tribunal de Contas surge, no mundo jurídico, fenomenicamente, como um Tribunal Judiciário, que julga, que diz o direito, que aplica a lei, contencio­samente, ao caso concreto, mas o cientista do direito, deixando de lado o aspecto for­mal, fenomênico, procura atingir «a coisa em si», a realidade, a natureza real do cole­giado, afastando os indícios externos ou epidérmicos, que lhe dão aparência judiciária, mas que, analisados com exatidão, conduzem à tese oposta, à que permite ver a Corte de Contas como importante órgão administrativo, que verifica, aprecia, fiscaliza os di­ferentes tipos de aplicações do orçamento do Estado, erigindo-se, assim, como o preposto do Poder Legislativo, no controle dos dinheiros públicos.

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Examinemos agora o segundo aspecto, o problema da jurisdição que, na década de 1940, tanto preocupou os processualistas clássicos italianos, a saber, Carnelutti, Chio­venda, Calamandrei e Cristofolini.

Francesco Carnelutti, no «Sistema di Diritto Processuale Civile», Pádua, CEDAM, 1936, vol. I, pág. 226, com base no critério orgânico, bem como Piero Calamandrei, nas «Istituzioni di Diritto Processuale Civile», Pádua, CEDAM, Primeira Parte, 1943, pág. 70, criticando Carnelutti, e, por fim, Giovanni Cristofolini, na «Efficacia dei Provvedimenti di Giurisdizione Voluntaria Emesse da Giudice Incompetente», ensaio publicado nos «Studi di Diritto Processuale in Onore di Giuseppe Chiovenda», Pádua, CEDAM, 1927, pp. 393/394, estudaram profundamente a diferença entre jurisdição e administração, concluindo o último autor que essa distinção repousa menos sobre base lógica do que sobre base histórico-política, porque «administração é a atividade do Es­tado dirigida à consecução de seus fins, mediante a satisfação de interesses que o Esta­do considera seus, ao passo que jurisdição é a atividade do Estado dirigida para a con­secução do interesse coletivo tendente à composição das lides, mediante o estabeleci­mento de comandos concretos, dirigidos aos titulares dos interesses em litígio. A jurisdição incluiu-se, conceitualmente, na administração, de que se desmembrou pela exigência política de assegurar a necessária independência dos órgãos incumbidos de realizar esse importantíssimo interesse coletivo» (Cristofolini, «Efficacia dei Provvedi­menti», 1927, pp. 393/394).

Quando o Tribunal de Contas aprecia as contas ou examina a «concessão» - ou­tro termo que a EC n~ I, de 1969, emprega em sentido vulgar - inicial de aposentado­rias, pensões e reformas, de modo algum está exercendo «atividade dirigida para a con­secução de interesse coletivo tendente à composição de lides, mediante o estabelecimen­to de comandos concretos, dirigidos a titulares de interesses em litígio, em conflito» pa­ra usar as palavras técnicas e exatas de Cristofolini. Não. Nesses, e em todos os demais casos, o Tribunal de Contas administra, «aplica a lei de ofício», por que desempenha, também nas palavras precisas de Cristofolini, «atividade dirigida à consecução de seus fins, mediante a satisfação de interesses que o Estado considera seus», e não de interes­ses de duas partes que conflitam, solicitando ao Estado a prestação jurisdicional.

10. Conclusões

A terminologia, antes de tudo, é a responsável pela classificação do Tribunal de Contas, outorgando-lhe natureza jurisdicional, mas sabemos quão enganosas são as pa­lavras, f1atus vocis. Assim, os vocábulos «Tribunal», «julgar», «julgamento», «jurisdi­ção» induziram alguns juristas à tese que inclui a Corte de Contas entre os órgãos do Poder Judiciário; a seguir, concorre, ainda, para a malsinada indução, o atributo da vitaliciedade, conferido aos integrantes daquela Corte, Ministros e Conselheiros, quali­ficação da qual derivam os dois corolários, o da inamovibilidade e o da irredutibilidade de vencimentos, determinação constitucional que, apenas, quis dar aos apreciadores das Contas a necessária imparcialidade de verificá-Ias, com independência, quanto ao Po­der Executivo; depois, a aparência, a possibilidade da organização da Corte, que pode­rá ser dividida em Câmaras e criar delegações ou órgãos, destinados a auxiliá-Ia no exercício de suas funções e na descentralização de seus trabalhos, é outra aparência es­truturai que deforma a realidade.

Quando a Constituição Federal, art. 72, diz que o Tribunal de Contas, com sede no Distrito Federal, tem jurisdição em todo o País, a aludida «jurisdição» quer dizer «competência administrativa», mas o constituinte anônimo, empregando quanto às Cortes administrativas o vocábulo técnico da terminologia processual, em acepção vul­gar, concorreu para que os adeptos da colocação contrária à nossa, se apegassem a mais esse argumento acidental, para alinhá-lo em defesa da tese que sustentam.

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Em síntese, toda uma série de traços externos, de «aparência», epidérmicos, é que tem levado os estudiosos a outorgar aos Tribunais de Contas a função jurisdicional quando esta, no Brasil, em que não há o contencioso administrativo, mas onde impera o princípio da una lex una jurisdictio, é privativa do Poder Judiciário, cuja missão es­pecífica é a de aplicar contencíosamente a lei ao caso concreto, dirimindo controvérsias entre partes, dando a final a razão a quem a tem, ou seja, concretizando ao vencedor a entrega da prestação jurisdicional.

LIMITE DAS PENAS E SEUS EFEITOS

Damásio E. de Jesus

DAMÁSIO E. DE JESUS

LIMITE DAS PENAS E SEUS EFEITOS

SUMÁRIO

I. Sistemas penitenciários 2. Limite das penas privativas de liberdade 3. Unificação legal das penas 4. Posições doutrinárias 5. Unificação legal e seu limite: nosso entendimento 6. Conclusão

I. Sistemas penitenciários

Há três regimes clássicos de execução da pena privativa de liberdade:

I~) o de Filadélfia; 2~) o de Auburn; e 3?) o inglês ou progressivo. Nos termos do sistema de Filadélfia, o sentenciado cumpre a pena na cela, sem

sair, salvo em casos excepcionais. No regime de Auburn, cidade do Estado de Nova Iorque, durante o dia o conde­

nado trabalha em silêncio junto com os outros, recolhendo-se à cela durante a noite (<<silent system»).

No sistema progressivo ou inglês há um período inicial de isolamento. Depois, o sentenciado passa a trabalhar junto com os outros reclusos. Na última fase, é posto em liberdade condicional. Criado por Alexandre Maconochie e Walter Crofton, relaciona a duração do cumprimento da pena privativa de liberdade ao bom comportamento do condenado, estabelecendo o sistema de marcas ou pontos (<<mark system»), pelo qual a sua situação carcerária vai se atenuando de acordo com o seu trabalho e readaptação social.

O nosso CP adotou um sistema progressivo. Assim, o art. 33, § 2?, afirma que «as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado», princípio repetido no art. 112 da Lei de Execução Penal. A re­forma penal de 1984 disciplina três regimes: fechado, semi-aberto e aberto. Inicia-se com o regime fechado, podendo o condenado, de acordo com o seu mérito, alcançar o livramento condicional.

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No regime fechado o condenado inicia o cumprimento da pena em penitenciária (Lei de Execução Penal, art. 86), em estabelecimento de segurança máxima ou média (CP, art. 33, § I?, a). Considera-se regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola ou industrial (b). Por fim, no regime aberto a pena é cumprida em casa de al­bergado ou similar (c).

O sistema progressivo, como se verá, tendo por fundamento o princípio da indivi­dualização da pena, não pode ser desvinculado da justa retribuição.

2. Limite das penas privativas de liberdade Aflige o Direito Penal a correspondência entre a pena abstratamente cominada, a

imposta pelo Juiz e a efetivamente cumprida pelo condenado. Sua cominação legal, ju­diciária e executória tem se tornado um problema para os sistemas penais. Tratando do assunto, Gonzalo Rodriguez Mourullo, Presidente da Comissão de Redação do Ante­projeto de Código Penal espanhol de 1978, que comina o máximo abstrato de vinte anos de pena privativa de liberdade e excepcionalmente vinte e cinco (arts. 36; 79, § I?; e 84, § 2?), esclareceu que a idéia central foi partir da premissa segundo a qual a pena cominada deve ser, em princípio, a pena efetivamente cumprida. O critério estabelecido no anteprojeto, explicou, visa a eliminar a contradição freqüente em que incide a maio­ria dos sistemas: o desajuste entre o valor nominal da sanção, isto é, a quantidade apli­cada na decisão e a quantidade efetiva de cumprimento (<<Directrizes Politicocriminales dei Anteproyecto dei Código Penal», Buenos Aires, Depalma, DP, 1979, n? 2, pág. 573; cf. René Ariel Dotti, «Bases e alternativas para o sistema de penas», Curitiba, Editora Lítero-Técnica, 1980, pág. 353).

Daí as legislações estabelecerem limite máximo do efetivo período de cumprimento das penas detentivas, evitando a sentença indeterminada e a prisão perpétua.

3. Unificação legal das penas Entre nós, o art. 75, caput, do CP reza que «o tempo de cumprimento das penas

privativas de liberdade não pode ser superior a trinta anos». Significa que não há impe­dimento a que o sujeito seja condenado a penas cujo total exceda o limite dos trinta anos. O tempo de cumprimento é que não pode ser superior a esse período.

Prevê o § I? da disposição: «Quando o agente for condenado a penas privativas de liberdade, cuja soma seja superior a trinta anos, devem elas ser unificadas para atender ao limite máximo deste artigo». Pergunta-se: a unificação tem validade somente para a fixação do limite máximo do tempo de execução da pena detentiva ou para todos os efeitos, como livramento condicional, transferência de regime, etc.? Suponha-se o caso do réu condenado a quarenta anos de reclusão. Reincidente em crime doloso, para ob­ter livramento condicional deverá cumprir mais da metade dos trinta ou dos quarenta anos? E a transferência de regime prevista no art. 112 da Lei de Execução Penal: o cumprimento de um sexto da pena incide sobre o quantum da pena efetiva ou da unifi­cada?

4. Posições Doutrinárias Há duas posições a respeito do tema: I?) Os requisitos objetivos de certos benefícios, como o indulto, o livramento con­

dicionai, a remição, a transferência de regime, etc., deverão ser apreciados em conside­ração à pena legal unificada (trinta anos) e não ao total da pena efetiva (cf. Júlio Fab­brini Mirabete, «Manual de Direito Penal», São Paulo, Atlas, 1985, pág. 312).

Essa orientação traz como fundamento a circunstância de que, recaindo eventual apreciação de benefício sobre o total da pena, desprezando-se o quantum menor unifi­cado, de nenhum valor teriam determinados institutos, como, v.g., a remição. Se nesta a detração em razão dos dias de trabalho vier a recair sobre o total da pena (duzentos anos, por exemplo) e não sobre os trinta anos, nenhum estímulo terá o condenado. E o

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benefício da unificação, como diz a Exposição de Motivos do Projeto da Lei n~ 7.209/84, visa a alimentar no condenado a esperança da liberdade e a aceitação da dis­ciplina, pressupostos essenciais da eficácia do tratamento penal (n~ 61).

2~) A consideração de determinados benefícios, como a comutação, a remição, o livramento condicional,etc., deve ser feita em face do total da pena efetiva e não sobre o quantum unificado do art. 75 do CP.

É a posição que defendemos.

5. Unificação legal e seu limite: nosso entendimento Note-se que o § I ~ do art. 75 diz que as penas «devem ser unificadas para atender

ao limite máximo deste artigo» (grifo nosso). E a disposição cuida do «limite das pe­nas» (indicação marginal) para efeito do tempo de seu cumprimento, restringindo, se­gundo cremos, o âmbito de eficácia ~o benefício.

A disposição contempla um benefício sujeito à condição. Esta consiste no cumpri­mento dos trinta anos de pena privativa de liberdade. Quando isso ocorre, o Estado, satisfeito com o exercício do direito de punir, tem por realizada a pretensão executória, abrindo mão do tempo excedente. Para que esse benefício se concretize, entretanto, exige-se a realidade de um fato: o cumprimento dos trinta anos. Antes que isso aconte­ça não é possível extrair-se, de uma condição inexistente, múltiplos efeitos. Assim, não é correto, antes que o condenado satisfaça o requisito legal, beneficiá-lo com uma série de privilégios.

Além disso, a interpretaçã~ liberal equipara a situação do condenado a trinta anos a outro que sofreu imposição de pena de quantidade superior. Não podemos nos esque­cer do princípio da proporcionalidade da resposta penal. Como ensinava Battaglini, se a pena encontra seu fundamento em um princípio ético de justiça, nele deve conter seus limites. O condenado precisa sentir que existe um equilíbrio entre o dano que produziu e o castigo que a sociedade lhe inflinge, pois de outra forma o culpado se transforma­ria em vítima e o credor em devedor (<<Direito Penal», São Paulo, Saraiva, 1973, trad. de Paulo José da Costa Júnior e Armida Bergamini Miotto, 1I/608). Daí afirmar José Frederico Marques que «o princípio da retribuição equaciona o bem jurídico lesado pe­lo delinqüente com o bem jurídico cuja diminuição este vai sofrer, olhando ainda a for­ma pela qual ambos são atingidos. Essa proporcíonalidade, estabelecida em abastrato na cominação legal, alcança maior precisão no momento de ser imposta, pela sentença, a medida sancionadora» (<<Curso de Direito Penal», São Paulo, Saraiva, 1956, 11I/118, n~ 3). E, como se trata de proporcionalidade entre o dano produzido e a resposta pe­nai, deve ser guardada também na fase de execução. Caso contrário, estaríamos, em determinados casos e a partir de certa faixa, impondo a mesma quantidade da resposta penal a autores de danos de gravidade diversa, em prejuízo do princípio ético de justiça que informa a regra da proporção. Suponha-se o caso de o sujeito ter sido condenado, em processos diversos, a novecentos anos de reclusão. Se considerarmos somente a uni­ficação legal de trinta anos, poderá ser transferido para o regime semi-aberto (execução da pena em colônia agrícola, art. 33, § I'?, b, do CP) após o cumprimento de um sexto da pena, isto é, após cinco anos, com bom comportamento carcerário (Lei de Execução Penal, art. 112). E se ele trabalhar, aplicada a remição, bastarão três anos e nove me­ses ... Tal equiparação é injusta diante daquele condenado a trinta anos de pena detenti­va. Se o limite máximo da disposição incidir sobre todos os institutos penais, o conde­nado, a partir da imposição de tal pena, obtém um bill total de impunidade no tocante ao excesso. Significaria a intervenção do Direito Penal, com sua finalidade repressiva e preventiva, até o limite da imposição da pena de trinta anos de privação da liberdade. A partir daí, nenhuma conseqüência teriam outras condenações por crimes diversos e contemporâneos. Seria um estímulo à delinqüência múltipla. Para o criminoso, pouca diferença faria cometer dez ou quinhentos assaltos. Ora, se o § 2~ do dispositivo, que cuida da pena superveniente, procura evitar seja o condenado legalmente induzido a novas práticas delituosas, não poderia o § I~ encorajar o delinqüente a cometer, con-

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temporaneamente, uma infinidade de crimes, na certeza da impunidade parcial. E no tocante às infrações sucessivas, o condenado a trinta anos de pena detentiva poderia, no início de seu cumprimento, cometer quantos delitos quisesse, na certeza absoluta de que a resposta penal consistiria numa reação insignificante, não comprometendo seria­mente os benefícios advindos da sanção legal unificada. Dada a sua situação, seria, co­mo tem acontecido, transformado em carrasco de execuções sumárias em nossas peni­tenciárias, pois a ele pouca importância teriam as condenações supervenientes. Note-se que o art. 59, caput, do CP, ao tratar das circunstâncias diretivas da aplicação da pe­na, determina que ela seja fixada «conforme seja necessário e suficiente para reprova­ção e prevenção do crime». Adotou-se o princípio retributivo-preventivo. De modo que sua imposição não deixa de ser aflitiva e proporcional ao dano causado pelo delito.

A retribuição, conforme ensinava Bettiol, é a idéia central do Direito Penal. «A re­tribuição», dizia, «é uma das idéias-força de nossa civilização. Pode até dizer-se que a idéia da retribuição é própria de qualquer tipo de civilização que não renegue os valo­res supremos e se conforme com as exigências espirituais da natureza humana ... São os valores comunitários que fornecem um conteúdo, um sentido, uma justificação ao Di­reito Penal: assim, a pena retira a sua força moral e a sua justificação do fato de ser expressão daquela exigência natural, viva no coração de todo homem, operante em to­dos os setores da vida moral, pela qual ao bem deve seguir-se o bem e ao mal deve seguir-se o mal» (<<Diritto Penalle», Padua, 1976, págs. 691/693). O sentido retributi­vo, diz René Ariel Dotti, «é uma exigência jurídica que para cumprir os objetivos pro­postos pelo Direito Penal deve tender a compensar adequadamente a ofensa» (<<Bases e alternativas para o sistema de penas», Curitiba, Editora Lítero-Técnica, 1980, pág. 157). Essa compensação adequada entre o crime e a sanção penal prevista abstrata­mente no preceito secundário da norma penal incriminadora deve tornar-se concreta quando de sua execução, observados os princípios de humanismo e de prevenção espe­cial.

Como dizia Heleno Cláudio Fragoso, «no caso de condenação a várias penas, que excedam de 30 anos, fato, aliás, comum, o limite máximo fixado pela lei é aplicado de modo a impedir o livramento condicional, unificando-se as penas tão-somente para que seja observado o limite de 30 anos. Não há estímulo algum para os condenados a penas altas». E conclui: «É uma pena que a reforma da Parte Geral do nosso CP não tenha aproveitado as sugestões feitas (RDP 26/155), no sentido da unificação das penas dos condenados a mais de 30 anos, para que se observasse o limite máximo fixado, de tal modo que os conqenados a penas muito altas pudessem ter o livramento condicional se cumprissem 15 anos em condições satisfatórias» (<<Líções de Direito Penal», Rio, Fo­rense, 1985, 8:' ed., Parte Geral, págs. 306/7).

Realmente, comissão composta pelos profs. Heleno Cláudio Fragoso, Nilo Batista, Freitas Santos e Vicente da Costa Júnior apresentou proposta de alteração do primitivo art. 55 do CP, acrescentando-lhe o seguinte parágrafo:

«Se houver condenação a diversas penas privativas de liberdade, devem elas ser unificadas, observando-se os limites fixados, para todos os efeitos legais» (grifo nosso) (<<Revista de Direito Penal», Rio de Janeiro, 26/155).

Como se nota, a reforma penal não inseriu no texto a cláusula final genérica de extensão do princípio da unificação legal das penas «para todos os efeitos».

O art. 75 do CP não cria uma causa de extinção da pretensão executória no to­cante ao tempo excedente a trinta anos. Em atenção ao dogma constitucional da proibi­ção da prisão perpétua (Carta Magna, art. 153, § li), estabelece um limite máximo de execução efetiva da pena privativa de liberdade. De modo que o resíduo não pode ser considerado extinto e estéril.

O Ministro Moreira Alves, apreciando a espécie, disse que o antigo art. 55 do Có­digo Penal «não estabelece uma causa de extinção da punibilidade parcial (ou seja, do que, em face das condenações, excede a trinta anos), mas, apenas, um limite máximo

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de duração das penas privativas de liberdade, para que não se confundam, afinal, com prisão perpétua. E, por causa desse limite, cumpridos os trinta anos de prisão, tem-se como exaurida a pretensão punitiva do Estado, e não como extinta quanto ao tempo que excede a essa limitação» (<<Revista Trimestral de Jurisprudência» 91/464). Assim vencidos os trinta anos, vê-se o Estado satisfeito com o exercício da pretensão executó­ria, que se exaure. Mas não se extingue o excesso residual, de maneira que permanece produzindo efeitos. Em face disso, eventuais benefícios legais devem ser considerados em função do total da pena, uma vez que ela não sofre, na lição do Ministro Moreira Alves, extinção parcíal.

É certo que, nos termos do art. 11I da Lei de Execução Penal, «quando houver condenação por mais de um crime, no mesmo processo ou em processos diversos, a de­terminação do regime de cumprimento será feita pelo resultado da soma ou unificação das penas». A «unificação das penas», segundo cremos, não diz respeito à legal do art. 75, § I ~, do CP, mas à unificação judicial do art. 66, III, a, da Lei de Execução Penal. Na reiteração criminal, vg, dá-se o resultado pela «soma das penas». No crime conti­nuado, em outro exemplo, ocorrendo condenações em processos diversos, resulta a «u­nificação das penas».

Ao argumento de que a tese restritiva anima a desesperança da liberdade contrapõe-se a idéia de que o criminoso contumaz, autor de uma multiplicidade de cri­mes contemporâneos, deve aceitar de antemão os riscos resultantes de sua eficácia deli­tiva, a tornar mais severa a resposta penal e mais difícil a expiação de sua culpa.

6. Conclusão No concurso de penas privativas de liberdade, cuja soma seja superior a trinta

anos, a consideração dos requisitos objetivos de certos institutos, como o indulto, a re­mição, o livramento condicional, etc., deve ser feita em face do total da pena efetiva­mente imposta e não sobre o quantum unificado do art. 75 do CP.

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

Geraldo Ataliba

GERALDO A T ALIBA

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO a) República e estado de direito b) Princípio da legalidade c) Unidade de fontes do Direito d) Reserva de lei

11 - LEGALIDADE TRIBUTÁRIA a) Matéria constitucional b) Conteúdo c) Descentralização federal d) Conclusão

I - INTRODUÇÃO

a) República e estado de direito Três princípios devem ser considerados como fulcro em torno dos quais se ergue o

edifício das instituições republicanas, no Direito Positivo brasileiro, operando como suas premissas básicas. Ao mesmo tempo, ele é serviente dos valores neles encerrados, no contexto de uma relação indissociável de recíproca vocação.

São, com igual importância, os princípios da legalidade, da isonomia e da in tangi­bilidade das liberdades públicas, expandidos em clima no qual se assegura a certeza e segurança do direito. Tal é o grau de evidência da transcendência desses princípios, que facilmente se verifica estarem na base de república. Bem se vê que todos eles têm como ponto de partida a noção de representatividade, baseada na teoria da soberania popu­lar.

Deveras, a simples consideração destes princípios e sua importância na contextura do nosso sistema constitucional - que prescreve como funciona a República, no Brasil - já demonstra a proposta institucional do estado de direito que nossos constituintes republicanos tradicionalmente quiseram adotar.

É corrente a afirmação que estado de direito é o que se subordina à lei. Tal con­cepção, entretanto, é equivocada porque insuficiente. Equivocada, na medida em que se adequa à maioria dos Estados modernos, os quais sempre atuam de acordo com a lei.

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Santi Romano denunciou o equívoco consistente em supor-se, por haver uma lei designada Constituição, ipso facto já se estaria diante de um estado constitucional. E demonstrou a necessidade de que úm Estado adote os padrões do constitucionalismo, para ser qualificado como estado constitucional, no sentido rigoroso da palavra (v. «Princípios Gerais de Direito Constitucional Geral», trad. brasileira de Maria Helena Diniz, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1977, págs. 42 e segs.

Assim também, para que se repute um estado como de direito, é preciso que nele se reúna a característica da subordinação à lei, a da submissão à jurisdição, nos termos postulados por Giorgio Balladore Pallieri (v. «Diritto Costituzionale», 3~ ed., Milão, Giuffre, págs. 80 e segs., espec. 85).

Este notável publicista milanês insiste em que é possível reconhecer estado de direi­to onde: a) O Estado se submeta à jurisdição; b) a jurisdição deva aplicar a lei preexis­tente; c) a jurisdição seja exercida por uma Magistratura imparcial (obviamente indepen­dente) cercada de todas as garantias; d) o Estado a ela se submeta como qualquer pars, chamada a Juízo em igualdade de condições com a outra pars.

Só esta consideração - que tem, no Brasil, o suporte de Ruy Cirne Lima, Goffre­do Telles, Seabra Fagundes, Victor Nunes, Tercio S. Ferraz, Celso Antonio, Dalmo Dallari, Josaphat Marinho e outros publicistas de prol - já demonstra quão poucos são os Estados contemporâneos que podem receber a qualificação de estado de direito. Tal concepção corresponde ao princípio «rule of Law» - governo de lei e não dos ho­mens - que inspirou o Direito Constitucional anglo-saxão, na longa e árdua luta pela supremacia do direito e superação do arbítrio.

Assim, só se reconhecem afirmados os padrões do constitucionalismo onde o ideá­rio, das Revoluções Francesa e Americana se traduziu em preceito constitucional, em torno da teoria da tripartição do poder, fórmula empírica - resultante da experiência histórica - que assegura a independência do Judiciário e idoneidade dos meios e mo­dos de exercício da jurisdição. Aí onde prevaleçam os princípios informadores desse es­quema, haverá garantia dos supremos bens individuais e sociais, as liberdades públicas.

Como fórmula de proteção destes valores fundamentais - justificadores de todas as teorias políticas democráticas e inspiradores de todas as fórmulas estruturais de esta­do, propostas ao longo da evolução dos ideais constitucionalistas - surgiu, há muito, no Direito Público inglês, a cláusula «due process of law», entre nós tão bem exposta por A. R. Sampaio Doria e Adda Pellegrini Grinover (<<Princípios Constitucionais Tri­butários» e a Cláusula «Due Process of Law», A. R. Sampaio Doria, São Paulo, 1963; «As Garantias do Direito de Ação», Adda Pellegrini Grinover, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1973).

De acordo com os postulados resumidos nesta fecunda expressão, prenhe de con­teúdo constitucional, os direitos à vida, liberdade e propriedade são protegidos contra o poder, por um processo ordenado, leal e adequado, segundo o Direito; isto veio a sig­nificar, hodiernamente, processo contraditório, no qual as partes são tratadas com igualdade, na forma de normas adjetivas claras, aplicando-se lei prévia, mediante a au­toridade imparcial e independente de um Juiz natural. Tal é a garantia processual que nos oferece o Direito Constitucional Positivo brasileiro.

Deveras, a República que erigimos é a expressão concreta do estado de direito que a cidadania brasileira quis erigir, ao plasmar suas instituições. A partir da consciência cívica da titularidade da res publica e da convicção da igualdade fundamental entre to­dos os cidadãos, estruturou-se o Estado brasileiro na base da idéia de que o governo se­ria sujeito à lei e esta haveria de emanar do órgão da representação popular. Destarte, o formidável poder que os cidadãos conferiram ao Estado há de ser exercido por ór­gãos autônomos e independentes entre si, com função delimitada e jamais poderá ser exercitado (tal poder) de modo a sobrepassar certas barreiras, postas como seu limite, no próprio texto expressivo dessa manifestação de vontade criadora do Estado. Daí a isonomia que os cidadãos põem como premissa da própria disciplina do poder; subse-

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qüentemente o estatuto de legalidade e. por fim. a proteção às liberdades públicas. deli­neadas como direitos individuais. Implicada nesse contexto está a certeza do direito ob­jetivo e a segurança dos direitos. como condições de eficácia do sistema.

Ao plasmar nossas instituições. não fomos originais. Aliás. em rigor. nenhum po­vo pôde ser inteiramente original. salvo o inglês. Todos os demais valeram-se seja da experiência. seja das propostas e idéias uns dos outros. Antonio Roberto Sampaio Do­ria escreve: «em nossa pátria. a primeira Constituição Republicana. de 1891. é generoso e amadurecido fruto. colhido pela sábia mão de Ruy Barbosa. de uma árvore já secu­larmente provada ... » (<<Principios Constitucionais Tributários» .... cit. p. 14). dando a entender que seu texto aproveita a vivência constitucionalista brasileira anterior. bem como a experiência norte-americana e européia. então já secular. E enfatiza - cuidan­do agora da evolução posterior do nosso Direito Constitucional - a coerência essencial dos nossos sucessivos textos: « ... as demais Constituições brasileiras. conquanto forja­das no rescaldo de graves crises e revoluções. mantiveram-se estruturalmente fiéis ao tronco primitivo. desbastando-o. embora. de alguns esgalhamentos e enxertando-lhes outroS» (pág. 14).

b) PrinCÍpios da legalidade

Se o povo é o titular da res publica e se o governo. como mero administrador. há de realizar a vontade do povo. é preciso que esta seja clara. solene e inequivocamente expressada. Tal é a função da lei: elaborada pelos mandatários do povo. exprime a sua vontade. Quando o povo ou o governo obedecem à lei. estão. o primeiro obedecendo a si mesmo e o segundo ao primeiro. O governo é servo do povo e exercita sua servidão fielmente ao curvar-se a sua vontade. expressa na lei. O Judiciário. aplicando a lei aos dissídios e controvérsias processualmente deduzidas perante seus órgãos. não faz outra coisa sel\ão dar eficácia à vontade do povo. traduzida na legislação emanada por seus rep resen tan tes.

O evolver das instituições publicisticas que informam a nossa civilização culmina com a consagração do princípio segundo o qual «ninguém será obrigado a fazer ou dei­xar de fazer alguma coisa. senão em virtude de lei» (§ 2? do art. 153) que. no nosso contexto sistemático. aparece como a conjugação do princípio da supremacia da lei e exclusividade da lei como forma inovadora e inaugural (Oswaldo Aranha Bandeira de Mello) da vontade estatal. Daí que só a lei obriga e nada além da lei o possa fazer. Em conseqüência. nenhuma expressão de vontade estatal será compulsória se não amparada em lei. Se só a lei obriga. tudo que não seja lei não obriga. salvo as exceções expressas. que devem ser estritamente interpretadas. Mas. a lei. no nosso sistema. não é só o ato formal do Poder Legislativo. assim batizado. Para ser válida. a lei brasileira há de ser abstrata. isonômica. impessoal. genérica e irretroativa (quando crie ou agrave encargos. ônus. múnus).

Para compreender-se adequadamente o conteúdo. sentido e alcance do princípio da legalidade no Brasil. é imperioso compreender a tripartição do poder. que os Textos Constitucionais brasileiros tradicionalmente consagram - como princípio fundamental do nosso sistema jurídico. Esse encerra fórmula de contenção e disciplina do exercício do poder estatal e aparece como expressão funcional do princípio republicano. cujos postulados básicos encontram eficácia nessa formulação.

Ao fazê-lo. tem em mira não uma organização racional do aparelho estatal. mas sim evitar a arbítrio. assegurar o governo das leis e dar garantia à liberdade individual. Estes postulados - traduzidos em preceitos basilares de nossa ordem jurídica - repou­sam na distinção aristotélica entre normas gerais e atos de aplicação do Direito; no dis­cernimento tomista entre justiça distributiva e comutativa e nas concepções de Montes­quieu. informadoras do constitucionalismo. instaurado pelas Revoluções Francesa e Americana.

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Só nesse contexto se compreende a estima que, desde 1824, se tem entre nós pelo princípio da legalidade. Só com rigorosa consideração dessa motivação é possível co­nhecer adequadamente o sentido, conteúdo e alcance da legalidade no Brasil.

No nosso Direito, a lei não é simplesmente o ato inaugural e primeiro, inovador da ordem jurídica, emanado do Poder Legislativo, órgão vertical do Estado e titular da re­presentação popular por excelência (cf. Oswaldo A. Bandeira de Mello, «Princípios Ge­rais do Direito Administrativo», vol. I, pág. 260).

E mais que isso: a lei é, no Direito Constitucional brasileiro, necessariamente gené­rica, abstrata e irretroativa. Tal como prevista nos nossos sucessivos Textos Constitu­cíonais, ela é necessária, como a qualificou Cirne Lima, com isso querendo significar que nenhuma outra manifestação estatal, judicial ou administrativa lhe pode suprir a ausência, seja nos casos constitucionalmente explícitos, em que se a requer, seja para criar obrigação, dever, encargo ou ônus para os súditos do Estado (Rui Cirne Lima, «Princípios de Direito Administrativo», 4~ ed., pág. 37). A ela são submetidos não só os cidadãos e habitantes do território do Estado, mas também os governantes e o pró­prio Estado.

Dada a absoluta indelegabilidade das funções (art. 6?, parágrafo único, da Consti­tuição) do Estado, e os requintes do Texto Constitucional, o saudoso Pontes de Miran­da cunhou a expressão legalitariedade, para distinguir o suave e programático principio do Direito Constitucional Comparado e sublinhar a rigidez, estreiteza e imperatividade com que nós o consagramos (Comentários ... , Emenda 1/69, vol. I, pág. 272).

No contexto do nosso sistema constitucional, o modo exigente como foi posto o princípio da legalidade melhor faz valorizado o conceito de estado de direito, tal como concebido por Balladore Pallieri, ao defini-lo como «aquele que se submete à lei e à ju­risdição independente e imparcial» (<<Diritto Costituzionale», 3~ ed. Milão, Giuffre, pág. 85), lição que merece ser repetida.

Efetivamente - é observação do notável constitucionalista de Milão - de muito pouco valeria o Estado obedecer à lei, se pudesse manipulá-la seja na elaboração, seja na aplicação. Tanto mais inócuo seria o princípio, se não existisse o meca'nismo de con­trole jurisdicional de ação administrativa, como exposto magistralmente por Seabra Fa­gundes, com irrestrita adesão da doutrina.

Do que se vê que a existênçia de um Judiciário autônomo e independente (e, pois, imparcial) é consectário necessário da legalitariedade, por ser a única garantia de sua eficácia. É nesse contexto sistemático que se deve intentar alcançar a compreensão dos institutos de governo e seus instrumentos, tal como delineados no Texto Constitucional. Só assim compreender-se-á, em toda sua extensão, o significado do princípio, no nosso regime republicano.

Deveras, pelo princípio da legalidade, afirma-se, de modo solene e categórico, que sendo o povo o titular da coisa pública e sendo esta gerida, governada e disposta a seu (do povo) talante - na forma da Constituição e como deliberado por seus representan­tes, mediante solenes atos legais - os administradores, gestores e responsáveis pelos valores, bens e interesses considerados públicos, são meros administradores que, como tal, devem obedecer à vontade do dono, pondo-a em prática, na disposição, cura, zelo, desenvolvimento e demais atos de administração dos valores, bens e interesses conside­rados públicos (do povo).

Assim, a Constituição consagra o princípio segundo o qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer, a não ser em virtude de lei. Isto significa que, no Brasil, só lei obriga e nenhuma norma, a não ser a legal, pode ter força inovadora obrigatória (nis­so, o nosso regime é peculiar e mais estrito que a maioria do Direito Comparado). En­tre nós, todos os demais atos normativos, para terem força inovadora obrigatória, de­vem ser imediatamente infraconstitucionais, como acontece com a lei: só assim podem com ela ser postos em cotejo. Tais normas são excepcionais e, pois, só, as taxativa­mente previstas no texto constitucional: regimento do Supremo Tribunal Federal, lei

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delegada, decreto-lei. Estas normas, porém, são limitadas em seu âmbito e alcance e só são válidas observados os estritos pressupostos constitucionais, isto em contraste com a lei, de âmbito universal, incondicionada e independente de pressupostos.

As demais normas, para serem obrigatórias, não podem ser inovadoras, mas terão que ser implicitamente contidas em preceitos legais (ou pelo menos imediatamente in­fraconstitucionais). Sua obrigatoriedade, nesse caso, decorre não de virtude própria, mas de sua conformidade com a lei, esta sim, máxima expressão da vontade republica­na. O apanágio do cidadão, no regime republicano, está exatamente na circunstância de só obedecer-se a si mesmo, pelos preceitos que seus representantes, em seu nome, ha­jam consagrado formalmente em lei. Em suma, o dono da coisa pública, tem, na sua própria vontade, a fonte da força coercitiva que o obriga, por ato formal de seus repre­sentantes.

Via de conseqüência, mesmo as normas jurídicas mais solenes - como é o caso dos regulamentos, veiculados por decreto do Presidente da República, por força de uma competência especial e privativa, prevista no Texto Constitucional - somente são obrigatórias na medida em que rigorosamente fiéis aos textos legais. Por essa razão os regulamentos não obrigam originariamente, a não ser os servidores públicos hierarqui­camente subordinados ao chefe do Executivo. Para os cidadãos, em geral, o regulamen­to só obriga se integralmente apoiados em lei seus preceitos.

Assim como a supralegalidade constitucional é assegurada, no nosso contexto -pelo sistema de controle jurisdicional da constitucionalidade das leis - também há um sistema de controle jurisdicional da legalidade dos atos infralegais. Por tal procedimen­to, assegura-se a conformidade da lei à Constituição e a fidelidade do regulamento à lei, dando eficácia e consistência à hierarquia das fontes do Direito (<<O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário», Seabra Fagundes, 5~ ed., Rio, págs. 20 e 21 ).

c) Unidade de fontes do Direito

Uma notável garantia que aos administrados oferece nosso sistema constitucional está na objetividade com que trata da questão das fontes do Direito.

Resulta claro da leitura do Texto Constitucional - em benefício da segurança do cidadão e terceiros submetidos à ordenação estatal - que só o Legislativo pode emanar normas genéricas e abstratas contendo preceitos vinculantes. Por outro lado, a tessitura informativa do processo de formação das leis garante ampla discussão dos projetos, com sua conseqüente publicidade, com possibilidade de colaboração, crítica, advertên­cia e organização de movimentos de esclarecimento ou mesmo pressão sobre os legisla­dores. E o processo «contraditório» ou dialogal da elaboração do Direito, a que tão enfaticamente se refere Franco Montoro.

Isso se deve passar de tal maneira que jamais possam sobrevir surpresas, desigual­dade e menos ainda arbitrariedades, contidas no bojo das leis (v. Alberto Xavier, «Os principios da legalidade e tipicidade da tributação», Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1978). Completa o quadro a circunstância de haver um sistema estabelecido de controle judiciário da constitucionalidade das leis.

Por esse modo pretende-se ver realizado, na sua plenitude, o essencialmente postu­lado pelo princípio republicano, posto como rigidíssimo alicerce de todo o sistema (art. I ~, combinado com o art. 47, I ~).

Nesse contexto, ao administrado - para saber de seus direitos e deveres - basta estar atento às únicas fontes normativas do Direito: os órgãos legislativos, federal, esta­dual e municipal.

Quanto aos regulamentos, sabe-se que só as leis administrativas que os comportem ou requeiram poderão ser deles objeto; e, assim mesmo, só nos seus estritos limites.

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Nessa esfera objetiva, segura e simples, devia movimentar-se, desembaraçada e tranqüilamente, o administrado, exercendo sem risco de surpresa seus direitos concer­nentes à vida, liberdade e propriedade.

Operacionalmente, assim, a pedra de toque de sua tranqüilidade cidadã deve estar na unicidade de fontes normativas e conseqüente unicidade de normas delas promana­das (unicidade por pessoa jurídica de capacidade política): uma só fonte na União: o Congresso; uma só fonte nos Estados: Assembléia; uma só fonte no Município: Câma­ra de Vereadores, como expressões republicanas.

Durante o período de suspensão da Constituição, esses cânones foram violados e vive-se os padrões primários de uma sociedade rude, com regime totalitário. Nesse período, combatemos a multiplicidade das fontes do Direito, instauradora da insegu­rança jurídica, com outras palavras (que agora reiteramos como alerta contra os vícios que penetraram nossos hábitos e comprometeram nossa consciência jurídica).

O administrado se sente inseguro, indefeso. A multiplicidade o surpreende. Desa­parece toda veleidade de participação. Não há sequer aparência de lealdade do Estado no fazê-lo saber do que se trama, que se lhe pretende, que se lhe vai exigir.

Nesse clima, desaparece qualquer idéia de Direito. Não se pode falar em sistema. Não se cogita de coerência. Muita vez o administrado só toma conhecimento de uma pretensão administrativa, ao ser punido, por violação de um preceito de cuja existência nem sequer tinha possibilidade de desconfiar.

Com isso se inibe o produtor; castiga-se a iniciativa; sufoca-se a crítica; anula-se a simples vontade de colaboração. Assim aniquila-se a liberdade, precisamente o bem jurídico em torno do qual a própria noção de Constituição foi erigida.

A única certeza, nesse clima destruidor, é a do agigantamento do arbítrio, desen­voltura da prepotência, animação da desigualdade, da corrupção, da concussão, do pe­culato.

Nessa balbúrdia, a crítica, a colaboração não cabem. A deslealdade da autori­dade, acostumada à impunidade, se faz regra. Desaparece a legalidade, olvida-se a «re­lação de administração». Desvane-se o espírito republicano.

Nesse clima, o direito á informação - consectário da liberdade de imprensa -perde o sentido; o controle parlamentar perde eficácia; o contraste judicial se amesqui­nha.

Dar combate ao arbítrio, conter a força desregrada do Executivo, moderar a ação despótica da administração (tarefa hercúlea) parece impossível e inútil. Impossível pelo vulto, complexidade e penetração dos vícios. Inútil porque tudo isso é mera conseqüên­cia, simples sintoma.

O grande mal, fulcro de todo esse desconcerto, está na impunidade das usurpações primeiras, na acomodação do Legislativo, omisso no seu dever de vigilância, e na auto­castração do Judiciário, ao recusar-se a pôr em primeiro lugar, como de seu dever, o assegurar a supremacia da Constituição.

Cruas, porém argutas, as considerações que Agustin Cordillo tece sobre a «crise» do Direito Público que vamos conhecendo, tese essa que se desenvolve paralelamente à intensificação do despotismo e desenvoltura do arbítrio.

Sua meditação nos atinge a todos, cada qual na medida de sua responsabilidade. Por isso, atinge os Magistrados mais candentemente: eles têm maior responsabilidade nisso. Escreve ele, no seu «Princípios gerais de Direito Público», cuja tradução tivemos a honra de prefaciar:

«Neste aspecto pode encontrar-se amiúde - em livros, decisões, Acórdãos - va­riados reflexos de uma certa insensibilidade humana e uma certa insensibilidade em re­lação à Justiça. Quando quem analisa a controvérsia concreta entre o indivíduo e o Es­tado se deixa levar pela comodidade da solução negativa para o primeiro; quando na

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dúvida condena, resolvendo contra o particular ou administrado; quando na dificul­dade do problema jurídico se abstém de abordá-lo e o resolve, favoravelmente ao poder público, certo de que essa simples circunstância lhe dá alguma cor de legalidade; quan­do cria, propaga e desenvolve supostas «teorias» que sem fundamento nem análise dão estes e aqueles poderes ao Estado; quando desconfia, evita e nega os argumentos que em certo caso parecem reconhecer um âmbito de liberdade; quando, como os débeis, se inclina para o sol dos poderosos - no caso o Estado - então, está sendo destruída uma das mais belas e essenciais tarefas do Direito Público: a proteção da liberdade hu­mana».

«Mais lamentável ainda é que essas atitudes não costumllm ser defendidas; ninguém diz abertamente que o Estado é tudo e o indivíduo nada; ninguém pensa assim, seria­mente; inclusive é possível que se expresse com veemência, sobre os abusos dos poderes públicos e o respeito às garantias individuais ... porém, de que vale essa eloqüência, se quando se trata de dar uma solução a um problema concreto - a uma pequena ques­tão que não decide a vida e a morte do indivíduo, mas que representa um verdadeiro conflito entre a autoridade e o indivíduo - são esquecidas as declarações e se resolve facilmente que esses indivíduos nesse caso não têm razão? De que valem aqueles «principios», se a seguir em cada matéria e questão de pormenor, se esquece, contradiz e destrói? Este é um dos principais problemas políticos que afetam o Direito Público».

«Contribuir para superar esses preconceitos, adversar os totalitarismos de todos os matizes, incentivar a meditação sobre as virtudes da democracia é o nosso fito. É preci­so vivificar as instituições republicanas. É imperioso dar eficácia a seus postulados. Isto só se obtém pelo esclarecimento, pelo debate, pela detida consideração de suas virtu­des».

O postulado básico da segurança do Direito, tal como posto pelos padrões do constitucionalismo, exige unicidade das fontes inaugurais do Direito, sob a Constitui­ção, e fidelidade das demais (fontes não inovadoras, quer dizer: não criadoras, não modificadoras, não extintoras de direitos), à lei.

A eficácia das propostas republicanas, adotadas por nossas Constituições, faz da segurança do Direito o necessário e impostergável pano de fundo que condiciona a inte­lecção do significado, conteúdo e alcance do principio da legalidade.

É o esforço que faremos, a seguir. d) Reserva de lei

A expressão «reserva de lei» vem do sistema constitucional francês e resultou do peculiar modo pelo qual se estruturam os poderes políticos do Estado francês, desde a Revolução.

No Brasil, a expressão não tem lugar. É imprópria, na sua relatividade, para des­crever nosso sistema. É que só se compreende «reserva» de lei, onde haja reserva de matérias para o Executivo. Ora, isto, entre nós, não há. No Brasil, «ninguém será obri­gado a fazer ou não fazer a não ser em virtude de lei» (art. 153, § 2~" da ConstituiçãO Federal). Não há nenhuma reserva de matéria para o Executivo, nem são possíveis as delegações (art. 6?, parágrafo único, da CF), salvo as leis delegadas, cujo conteúdo é absolutamente estabelecido, previamente, pelo Congresso Nacional (art. 52 da CF).

Melhor expressa-se a idéia que essa locução encerra, usando-se, com Pontes de Mi­randa, a palavra «Iegalitariedade», que traduz o sentido de estrita legalidade da tributa­ção. Pelos preceitos dos arts. 19, I e 153, 29, só a lei cria ou aumenta tributos.

Criar tributo significa descrever em lei a sua hipótese de incidência. É descrever le­gislativamente os fatos que se acontecidos e quando acontecidos fazem nascer as obri­gações tributárias. É estabelecer as coordenadas de tempo e de espaço que circunstan­ciam esses fatos. É determinar as pessoas que irão ser sujeitos das relações que desses fatos irão nascer. É estabelecer a base imponível (perspectiva dimensível da materiali­dade desses fatos) a que se aplicará a alíquota também legalmente fixada.

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Só e exclusivamente a lei pode dispor sobre essas matérias (arts. 19, I e 153, 29), Ipso facto, o decreto-lei não pode ter tal objeto. Aumentar tributo é alterar a base im­ponível de modo a alargá-Ia ou ampliá-Ia: ou ainda, incrementar a alíquota tributária. Isto só a lei pode. Deveras, entender que o Executivo pode instituir tributos (ou aumentar-lhes a carga) é repudiar tudo que de mais significativo tem o princípio repu­blicano como exigência.

Destarte, tanto a letra como o espírito do Texto Magno fixam, de modo peremptó­rio, o princípio da estrita legalidade da tributação.

A exata e cabal compreensão do princípio da legalidade, em todas suas exigências, no nosso sistema constitucional, marcadamente republicano, melhor se fixa, se exami­nado esse básico princípio (legalidade) em confronto com a competência regulamentar do Presidente da República.

O confronto das competências do chefe do Poder Executivo, com as do Poder Le­gislativo, iluminado pelas exigências do princípio republicano, deixa claro os pressupos­tos e inquestionáveis as conclusões.

A estrita disciplina que os nossos Textos Constitucionais tradicionalmente deram à faculdade regulamentar do Executivo decorre de rígida concepção da separação de po­deres, que entre nós sempre prevaleceu, certamente como reação aos abusos do arbítrio e onerosos erros que se ensejaram nos períodos discricionários que a história de nossas instituições conheceu.

Tanto isso é exato que toda constituinte democrática restaura o esquema, na sua pureza. E a deterioração do regime constitucional sempre se manifesta por dese­quilíbrios neste setor.

Não tolera a nossa Constituição, em princípio, que o Executivo exerça nenhum ti­po de competência normativa inaugural, nem mesmo em matéria administrativa. Essa seara foi categoricamente reservada aos órgãos da representação popular. E a sistemáti­ca é cerrada, inflexível. Se a tal conclusão não for levado o intérprete, pela leitura das disposições que delineam a competência regulamentar, certamente esbarrará no princípio da legalidade, tal como formulado: ninguém, nenhuma pessoa, nenhum sujei­to de direito poderá ser constrangido por norma que não emane do legislador.

Os atos do Executivo (com a estrita exceção do decreto-lei e da lei delegada) não obrigam senão aos subordinados hierárquicos da autoridade que os emanou. Tal siste­ma completa a tripartição do poder e fixa os confins - para reforçá-Ia - de sua eficá­cia, precisamente porque sublinha e reforça a legalidade, no sentido de legalitariedade, tal como exposta por Pontes de Miranda. O último desideratum do constituinte, nesse passo, foi o de assegurar a liberdade, pondo-a a salvo, fora do alcance do Executivo.

Assim, as diversas projeções da liberdade jurídica - tal como omnimodamente ga­rantida pela Constituição - ficam resguardadas contra os atos administrativos, que se hão de limitar à fiel, estrita, rigorosa e exata aplicação da lei.

Este é o querer inequívoco do constituinte. Tal desígnio claro e insofismável já tem tradição mais do que sesquicentenária, no Brasil.

Tudo que o contra venha é injurídico, é repugnante ao nosso sistema. Deve ser ig­norado pelos administrados, repelido pelos Tribunais, punido pelo Congresso (Assem­bléias Legislativas,· Câmaras de Vereadores) como agressão aos valores institucionais maiores consagrados na Constituição, especialmente o princípio republicano.

E tal é a força ideal, sociológica e política desses valores, que quando por desgraça tivemos que conhecer - ao longo de nosso processo histórico - atos de arbítrio prati­cados por grupos que empolgaram as alavancas do poder, estes sempre buscaram as aparências de legitimidade, a tolerância social aos esbulhos praticados, invocando esses mesmos valores e querendo fazer crer que em nome deles se propunha um hiato transi­tório à sua vigência.

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Com efeito, todos os golpes de Estado se pretendem justificar alegando seus pro­motores a necessidade de restauração plena dos valores constitucionais; e sempre se afirma a transitoriedade do período arbitrário. Não fossem instituições arraigadas no sentir popular (ainda que nem sempre plenamente consciente); não fossem instituições de valor absoluto, altamente estimáveis entre nós; não fossem expressões de nossa cul­tura e de nossa profunda e generalizada aspiração e certamente não teriam sobrevivido a tantas e tão desastrosas vicissitudes, ao longo destes 150 anos de Constitucionalismo e quase 100 de República.

Cumpre sublinhar que a disciplina constitucional tem em mira, precipuamente, li­mitar o Estado, contê-lo no exercício do poder, assegurar os direitos individuais e ga­rantir que o uso de suas competências, pelos órgãos públicos, se faça na forma do di­reito para busca das finalidades juridicamente previstas e promover os valores normati­vamente consagrados, principalmente a República.

E como fulcro de tudo - pedra de toque do sistema, chave de abóboda de toda a construção normativa - sempre está a liberdade humana, como direito fundamental do homem e do cidadão, com as denotações que a expressão veio ganhando ao longo dos dois séculos percorridos, desde que foi cunhada pelos revolucionários franceses.

Por todas essas razões, não é apropriado falar-se em «reserva de lei» no Direito brasileiro. Aqui há de falar-se em princípio da estrita legalidade da tributação.

II - LEGALIDADE TRIBUTÁRIA

a) Matéria constitucional Em países que adotaram os padrões do constitucionalismo - tal como concebido

universalmente, no mundo ocidental, a partir das Revoluções Francesa e Americana -a definição de tributo bem como a disciplina da competência tributária é matéria niti­damente constitucional. Em outros termos: estamos diante de Direito Constitucional Material, quando se trata de definir o perfil jurídico do tributo e as linhas essenciais de seu regime jurídico, bem como a latitude de abrangência do cônceito. Já foi visto que o estado de direito é «o que se submete à lei e à jurisdição. Esta lei, ao definir o tributo - e, portanto, a relação jurídica tributária - deverá pautar-se rigorosamente, quanto ao conteúdo, alcance e sentido, pelos preceitos constitucionais pertinentes, muito espe­cialmente aqueles delineadores do âmbito de abrangência dos conceitos de patrimônio e liberdade. Nem é de estranhar que - onde haja constitucionalismo verdadeiro - esta matéria seja eminentemente constitucional. E que, desde a Magna Carta de 1215, en­contramos no fulcro e cerne da disciplina constitucional as relações tributárias. Por es­sa mesma razão, também, o primeiro documento constitucional dos Estados Unidos da América - que é a sua Declaração de Independência - coloca, como motivação e fun­damento da própria edição, a resistência à Lei do Imposto do Selo.

Os problemas políticos que se põem no cerne neste tipo de relacionamento são vis­cerais para a definição do Estado Constitucional, razão por que essa matéria é constitu­cional.

Nem podemos nos esquecer, de que, no Brasil, um dos fortes motivos incentivado­res da Inconfidência Mineira foi a arbitrária cobrança do 'Quinto do Ouro', pelo go­verno português, animando a propagação de todo um ideário republicano, independen­tis ta e constitucionalista, com nítida influência norte-americana e iluminista européia, mas encontrando na proteção da liberdade e do patrimônio a sua pedra de toque.

Portanto, afirmar-se que o princípio da legalidade é um princípio do Direito Tri­butário é incidir em grave equívoco de focalização do problema: graves conseqüências doutrinárias e práticas disso decorrem.

Na verdade, o princípio da legalidade tributária é constitucional, da mesma forma que o princípio da legalidade dos delitos e das penas não é princípio de Direito Penal. Diga-se - aliás, em consonância com a melhor doutrina, da qual foi expoente Alfredo

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Augusto Bécker - que o Direito Tributário nem sequer pode ser considerado um ramo autônomo do Direito mas, como bem o demonstram os publicistas italianos, começan­do por Guido Zanobini e terminando por Renato Alessi, é mero capítulo do Direito Administrativo, já que a função exercida pela administração é, no caso, administrativa, regida pelos princípios do Direito Administrativo, sob as formas procedimentais admi­nistrativas. Todos os chamados princípios do Direito Tributário não são senão desdo­bramentos e refrações de exigências constitucionais essenciais e, portanto, princípios constitucionais.

b) Conteúdo do princípio A tributação acarreta limitações à liberdade e à propriedade individual, que só o

Poder Legislativo pode estabelecer. É este um princípio fundamental do estado consti­tucional e de direito com o qual concorda toda a doutrina atual. Com efeito, a emana­ção de normas jurídicas, genéricas e abstratas, com poder obrigatório geral, em qual­quer matéria, é atribuição própria e exclusiva do Poder Legislativo, não sendo possível, portanto, competir aos órgãos administrativos senão poder de categoria menor e grau inferior - excluído da esfera de inauguração - poder este que se convencíonou cha­mar de regulamentação.

O princípio da legalidade é dos princípios fundamentais do estado constitucional e de direito, sendo exigência elementar e natural do sistema constitucional vigente. Foi, entretanto - expressamente, para obviar dúvidas - sancionado pelo legislador consti­tuinte, no art. 153, §§ 2? e 29, e art. 19, I.

O preciso contéudo do princípio de legalidade consiste no seguinte: a lei, e só a lei deve estabelecer a descrição legislativa dos fatos que se acontecidos e quando aconteci­dos darão nascimento às obrigações tributárias individuais. A lei deve criar às tributos. Em outras palavras: a lei deve definir os quatro aspectos da hipótese de incidência (ma­terial, pessoal, especial e temporal) e prescrever a alíquota aplicável (ou, no caso de tri­buto fixo,o quantum devido).

Se qualquer desses dados faltar, não se reputa criado o tributo. Inexiste tributo. Nem mediante regulamento, nem por via de interpretação se pode suprir eventual defi­ciência legislativa, na matéria. Só o próprio legislador pode preencher tais lacunas.

Deste princípio constitucional decorre logicamente o princípio da impossibilidade de interpretação analógica - embora não a extensiva, dado que com a interpretação extensiva, não se submete a tributo situação de fato não prevista na lei, mas simples­mente se aplica imposto a situações já compreendidas no real conteúdo da norma, se bem que a inexatidão das expressões empregadas possa induzir a entendimento contrá­rio. (Amilcar Falcão, «Fato Gerador. .. », 5? ed., SP, pág. 51).

Já dizia Alberdi: «No hay poder donde no hay finanzas». Ao falar-se em Constituição, fala-se essencialmente na disciplina do exerC1ClO do

poder político que a comunidade e a cidadania republicamente conferem ao governo. Pois, é ainda Alberdi quem acentua:

«El poder de crear y manejar y de intervenir en el tesoro público es el resumen de todos los poderes»

Afirmação que bem demonstra a natureza eminentemente constitucional da disci­plina desta atividade do poder.

Deveras, o poder político - titularizado pelo Estado - é a soma de todos os po­deres e expressa-se pelas forças conjugadas (institucionalizadas, diria Santi Romano) deles (poder econômico, poder militar, poder social, poder religioso, poder psicológico, etc.).

Ora, dirigir o tesouro é controlar os instrumentos e meios de eficácia do poder político. Daí, além da evidente natureza constitucional da matéria, o nítido conteúdo

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patrimonial das relações jurídicas que emergirão do exercício desse poder, já que é for­ma de competência, num primeiro momento e de capacidade (poder-dever - Buscaretti Di Ruffia) jurídica, num segundo.

Daí o reconhecimento (Hector Villegas, Ramon V. Costa, Barros Carvalho) de que o instituto que operacionaliza a pretensão tributária abstrata (A. D. Giannini), ex­pressa na lei, é a obrigação tributária.

Ora, isto só instrumentaliza adequadamente aquela pretensão, se puder fazer-se líquida e certa, em termos objetivos. Pois, a objetivação desta liquidez e certeza -condição de sua exigibilidade - está na sua fiel subsunção à lei, somente visível se esta (a lei) fornecer expressa e exaustivamente os elementos hipotético descritivos, qualifica­dores do fato cujo acontecimento fenomênico, no mundo concreto, fará surgir a obri­gação.

Assim é a lei que diz que fato é esse, quais suas características materiais, que vínculos tem, com que sujeito (ativo e passivo), que compromissos temporais e espe­cais, e qual de suas perspectivas dimensíveis é qualificada para exercer a função de base tributável.

Por fim, também na lei, na sua parte mandamental, vai prescrever-se a alíquota que, aplicada à base, permita a determinacão do quantum debetur.

Ou todos esses critérios (Paulo Barros Carvalho) estão na lei ou não há obrigação (Sérgio Francisco de La Garza), porque não há como - na vigência do principio da le­galidade - suprir o aplicador administrativo da lei (Poder Executivo) eventuais lacu­nas. Matéria de direito estrito, não comporta discricionariedade administrativa.

c) Descentralização federal Nos Estados de estrutura federal - Estados formados pela associação foedus,

foederis de Estados - a questão hão se altera, nos seus aspectos essenciais. Sua pecu­liaridade está na coexistência, no mesmo território de três ordenações normativas dis­tintas: uma ordenação global (nacional), uma ordenação parcial central (da União) e diversas ordenações parciais periféricas ou regionais (dos Estados federados). Tal é a notável construção de Kelsen, explicativa - em termos jurídicos - da federação.

Daí a existência de leis tributárias federais e leis tributárias estaduais, como pecu­liaridade dos Estados Federais.

Não havendo, neles, hierarquia entre as leis federais e estaduais (v. nosso estudo «Leis federais e leis nacionais», in Revista de Direito Público, vol. X), elas são iguais: ficam no mesmo plano. Como as competências legislativas, tanto da União como dos Estados, derivam imediatamente do mesmo Texto Constitucional - que é a fonte des­sas competências - e como a federação caracteriza-se pela divisão de competências en­tre União e Estados, no próprio texto do tratado da associação (que é a Constituição Federal), o princípio jurídico básico informador da federação é a igualdade entre União e Estados «autonomia recíproca», na lição de Sampaio Daria).

Daí que, nas matérias de sua competência, cada qual seja absoluto e máximo, não dependendo do outro. Por isso, também em matéria tributária, as competências consti­tucionalmente estabelecidas são exercidas autonomamente pelos legisladores.

Três protótipos prevalecem, hoje, como os mais marcantes: o norte-americano, que admite competências legislativas concorrentes, em matéria tributária (com exclu­são dos tributos sobre o comércio exterior, privativos da União); o alemão, que nada tem de federal, em matéria tributária,já atribui supremacia à União sobre os Estados; e o brasileiro ou canadense, em que há separação constitucional de competências tributá­rias, de modo a evitar superposições tributárias (que seriam rigorosas bitributações).

A federação implica descentralização política. Em Direito, qualifica-se uma enti­dade estatal como «política» - em oposição a entidades «meramente administrativas» (Ruy Cirne Lima) - quando ela tem poder legislativo; quando pode «inovar originaria-

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mente a ordem jurídica» (O. A. Bandeira de Mello). Na federação podem editar leis tanto a União como os Estados. Todas são pessoas jurídicas de direito público com ca­pacidade política (vale dizer: legislativa).

O Estado unitário caracteriza-se pela centralização política. Só há uma «pessoa jurídica de direito público» com capacidade legislativa inaugural (inovadora). Há Esta­dos unitários, com certa descentralização política, porém não plena. O que caracteriza o Estado Federal - ao lado da isonomia jurídica absoluta das «pessoas políticas» - é a circunstância de o texto constitucional, de tipo rígido, assegurar: imodificabilidade do princípio federal; representação paritária das unidades federais, na Câmara dos Esta­dos; haver uma Carta Constitucional rígida, que garanta a supremacia do pacto federal foedus, foederis, contra qualquer norma ou ato que a viole e, por fim, a existência de uma Corte constitucional federal, que assegure a prevalência da Constituição Federal sobre todas as normas jurídicas.

d) Conclusão Onde se consagra o princípio da legalidade só o órgão legislativo pode inovar inau­

guralmente a ordenação jurídica, criando obrigações e deveres, dos cidadãos (e tercei­ros, nisso a eles equiparados) para com o Estado.

Sendo o tributo, juridicamente, uma «obrigação» (v. Paulo Barros Carvalho), esta somente pode ter nascimento por força da lei.

Como isso é um direito básico do cidadão, a legalidade estrita passa a ter o tom de um poder-dever (Santi Romano) ou dever-poder (Celso A. Bandeira de Mello) do Esta­do (manifestado pelo legislador). O contexto de estado constitucional de direito e o quadro de garantias dos cidadãos fixam o necessário corolário da tipicidade dessa lei (Alberto Xavier), dando ao regime o timbre das virtudes republicanas.

PROTEÇÃO AMBIENTAL E AÇÃO CIVIL PÚBLICA

Hely Lopes Meirelles

HEL Y LOPES MEIRELLES

PROTEÇÃO AMBIENTAL E AÇÃO CIVIL PÚBLICA

SUMÁRIO

1. Controle da poluição

2. Preservação dos recursos naturais 3. Restauração dos elementos destruídos 4. Ação civil pública para proteção ambiental

A proteção ambiental visa à preservação da Natureza em todos os elementos essen­cias à vida humana e à manutenção do equilíbrio ecológico, diante do ímpeto predató­rio das nações civilizadas que, em nome do desenvolvimento, devastam florestas, exau­rem o solo, exterminam a fauna, poluem as águas e o ar.

Essa ação destruidora da Natureza é universal e milenar, mas agravou-se neste sé­culo em razão do desmedido crescimento das populações e do avanço científico e tecno­lógico, que propiciou à humanidade a mais completa dominação da terra, das águas e do espaço aéreo.

Viu-se, assim, o Estado moderno, na contingência de preservar o meio ambiente' para assegurar a sobrevivência das gerações futuras em condições satisfatórias de ali­mentação, saúde e bem-estar. Para tanto, criou-se um direito novo - o direito ambiental2

- destinado ao estudo dos princípios e regras tendentes a impedir a destrui­ção ou a degradação dos elementos da Natureza. Daí o surgimento das limitações de proteção ambiental, sob os aspectos de: a) controle da poluição; b) preservação dos re­cursos naturais; c) restauração dos elementos destruídos; d) ação civil pública, como veremos a seguir.

1. Controle da poluição

O controle da poluição enquadra-se no poder de polícia administrativa de todas as entidades estatais - União, Estados-Membros, Municípios, Distrito Federal - compe­tindo a cada uma delas atuar nos limites de seu território e de sua competência, e, em conjunto, colaborar nas previdências de âmbito nacional, de prevenção e repressão às atividades poluidoras definidas em norma legal(J).

Em sentido amplo, poluição é toda alteração das propriedades naturais do meio ambiente, causada por agente de qualquer espécie, prejudicial à saúde, à segurança ou ao bem-estar da populaçào sujeita aos seus efeitos.

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De um modo geral, as concentrações populacionais, as indústrias, o comércio, os veículos motorizados, e até a agricultura e a pecuária produzem alterações no meio am­biente. Essas alterações, quando normais e toleráveis, não merecem contenção e repres­são, só exigindo combate quando se tornam intoleráveis e prejudiciais à comunidade, caracterizando poluição reprimível. Para tanto, há necessidade de prévia fixação técnica e legal dos índices de tolerabilidade, ou seja, dos padrões admissíveis de alterabilidade de cada ambiente, para cada atividade poluidora, não se compreendendo nem se legiti­mando as formas drásticas de interdição de indústrias e atividades lícitas, por critérios pessoais da autoridade, sob o impacto de campanhas emocionais que se desenvolvem em clima de verdadeira psicose coletiva de combate à poluição.

Indispensável é o levantamento técnico dos elementos poluentes e dos meios científicos de seu controle, com os padrões admissíveis catalogados em legislação fe­deral gera, uniforme e adequada ao controle das atividades poluidoras, em atendimento do preceito constitucional que atribui à União a edição de normas gerais de defesa e proteção da saúde (art. 8?, parágrafo único), e pouco sobrando ao Município neste campo normativo. Aqui, a atuação municipal será principalmente executiva, fiscaliza­dora e complementar das normas superiores da União e do Estado-Membro, no que concerne ao peculiar interesse local, e especialmente na proteção do ambiente urba­no(4) . Bem por isso o Supremo Tribunal Federal decidiu que: «A defesa do meio ambiente deve ser exercida com respeito à competência legislativa da União Federal». (5)

Mas a legislação federal é ainda dispersa e deficiente para o controle da poluição expressa num conglomerado de leis, decretos e portarias que mais confundem do que esclarecem os seus aplicadores, merecendo destaque a Lei n? 6.938, de 31-8-1981, que dispõe sobre a política nacional do meio ambiente, e defere competência ao Ministério Público «para propor ação de responsabilidade civil e criminal por danos causados:. ') meio ambiente» (art. 14, § I?), regulamentada pelo Decreto n? 88.351, de 1-6-1983, al­terado pelo Decreto n? 89.532, de 6-4-1984; a Lei Complementar n? 40, de 14-12-1981 (art. 3?, IlI); a Lei n? 7.347, de 24-7-1985, que disciplina a ação civil pública de res­ponsabilidade por danos causados ao meio ambiente, legitimando o Ministério Público para propô-Ia, bem como as entidades que especifica (arts. 5? e 6?), (O) como veremos adiante (item d).

No âmbito estadua!<') e municipal vêm surgindo tumultuariamente normas e órgãos de combate à poluição, mas todos eles sem arrimo em diretrizes federais e em padrões que deveriam orientar e uniformizar o controle das atividades poluidoras, dentro de cri­tério técnico que compatibilize a preservação do meio ambiente com os superiores inte­resses do desenvolvimento do País.

O mais sério problema a ser resolvido é o da preocupação de bairros ou áreas por indústrias e outras atividades poluidoras que, posteriormente, venham a ser considera­das em uso desconforme, diante da nova legislação para o local. Em tais casos não pode a administração paralisar sumariamente essas indústrias e atividades, nem reduzir­lhes a produção, porque isso ofenderia o direito adquirido em conformidade com as normas legais anteriores. Para a retirada desses estabelecimentos, a medida legal é a desapropriação. Poderá, ainda, a administração, nesses casos, impedir ampliações do que está em uso desconforme, e exigir equipamentos e tratamentos técnicos redutores da poluição, em prazos e condições razoáveis, incentivando a voluntária mudança de local. Somente os abusos da iniciativa particular é que devem ser coibidos pelo poder de polícia do Municipio, protetor do bem-estar da coletividade urbana, principalmente nas zonas estritamente residenciais. Nas zonas mistas há que se tolerar os incômodos da indústria e do comércio, desde que decorram do exercício legal e normal dessas ativida­des, e sejam produzidos unicamente no período diurno de trabalho; nas zonas comer­ciais e industriais os seus incômodos não são reprimíveis pela vizinhança enquanto se contenham nos limites da licença de funcionamento e não caracterizem abuso de direito do exercício profissional, pois que a delimitação dessas áreas e o confinamento das ati­vidades diversas de habitação erigem tais atividades em usos conformes para o local, e

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afastam qualquer possibilidade jurídica de impugnação ao seu exercício e às suas conse­qüências normais para a zona e suas adjacêncías, porque os que nela se localizam ou dela se avizinham sabem de antemão a destinação, o uso e a ocupação da área, e co­nhecem as suas conseqiiências molestas.

Daí a conveniência e as vantagens do zoneamento urbano, como medida prévia do controle da poluição, que deverá basear-se e diversificar-se segundo os usos de cada zo­na, para adequação das exigências municipais às diferentes áreas e atividades da cidade e de seus arredores. Impõe-se, ainda, a fixação de uma política geral de controle da po­luição, uniforme e realística, que leve em consideração não só a preservação ambiental, como também as determinantes do desenvolvimento local, regional e nacional, para a correta localização das atividades poluidoras, a situação das indústrias e do comércio já instalados, os meios técnicos de contenção ou eliminação dos elementos poluentes e os estímulos do Poder Público para o combate à poluição, a fim de obter-se o equilíbrio ecológico e econômico, num amparo recíproco dos interesses coletivos e dos direitos in­dividuais, protegendo a comunidade sem aniquilar a iniciativa privada propulsora do desenvolvimento nacional.

O zoneamento industrial está disciplinado pela Lei n? 6.803, de 2-7-1980, que esta­belece diretrizes para a sua implantação nas áreas críticas de poluição a que se refere o artigo 4? do Decreto-Lei n? 1.413, de 14-8-1975. Por essa lei, caberá exclusivamente à União, ouvidos os Governos Estadual e Municipal, interessados, aprovar a delimitação e autorizar a implantação de zonas de uso estritamente industrial que se destinem à lo­calização de pólos petroquímicos, cloroquímicos, carboquímicos, bem como as instala­ções nucleares e outras definidas em lei (Lei n? 6.803/80, art. 10, § 2?).

2. Preservação dos recursos naturais

A preservação dos recursos naturais, assim entendidos todos os elementos da Natu­reza que mantêm o equilíbrio ecológico e a vida em nosso planeta, é dever do Estado e apóia-se no domínio eminente que ele exerce sobre todas as coisas que se encontram em seu território. Mas, como domínio eminente não é domínio patrimonial, o Estado não tem direito de propriedade sobre todos os bens de seu território, podendo apenas condicionar o uso da propriedade particular para cumprimento de sua função social (Constituição da República, artigo 160, III), ou retirá-la compulsoriamente de seu do­no, por utilidade pública ou interesse social, através de desapropriação, com justa e prévia indenização (art. 153, § 22).

Assim, a preservação dos recursos naturais se faz por dois modos: pelas limitações administrativas de uso, gerais e gratuitas, sem impedir a normal utilização econômica do bem, nem retirar a propriedade do particular, ou, pela desapropriação, individual e remunerada de determinado bem, transferindo-o para o domínio público e impedindo a sua destruição ou degradação. Talo que ocorre com as reservas florestais, com as nas­centes e mananciais, com as águàs minerais, com os monumentos naturais e outros ele­mentos da Natureza em que o Poder Público tem interesse na sua preservação, para manutenção da flora e da fauna, da pureza das águas e do ar, ou mesmo para conser­vação estética de panoramas e recantos naturais de particular beleza (Constituição da República, art. 180, parágrafo único).

Os recursos naturais - terras, águas, jazidas, florestas, fauna e espaço aéreo -principalmente quando integrantes do domínio público, têm regime especial para sua utilização, sujeitando-se a normas e limitações administrativas próprias.

Todos esses elementos componentes do meio ambiente são preserváveis pela enti­dade estatal competente para sua regulamentação e administração, variando apenas as formas de preservação e os meios administrativos de efetivá-la, principalmente quando pertencentes a particulares amparados pelo direito de propriedade.

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No âmbito municipal essa preservação da Natureza é restrita aos elementos que in­teressem preponderantemente à comunidade local e em especial à vida urbana, tais co­mo as fontes e mananciais que abastecem a cidade, os recantos naturais de lazer, as áreas com vegetação nativa próprias para parques turísticos ou reservas da flora e da fauna em extinção, e outros sítios com peculiaridades locais.

É de observar-se que não só a iniciativa dos particulares como os empreendimentos do poder público devem respeitar as normas de controle da poluição e de preservação dos recursos naturais, sujeitando-se às respectivas limitações administrativas das entida­des estatais competentes. A propósito, Martín Mateo faz essa oportuna advertência: «Las técnicas interventoras dei Derecho Administrativo clássico están pensadas para acomodar las condutas de los particulares a los intereses públicos definidos por la ley. Es la Administración, pues, la que desempena el papel tutelar controlando y reprimien­do las actuaciones de los ciudadanos. Sucede, sin embargo, que en el campo de la de­fensa ambiental la Administración puede, aunque parezca p:;tradójico, aparecer como potencialmente agresora dei equilíbrio ecológico. Esta curiosa situación es fruto de la constatada amplicación de competencias públicas materializadas en proyectos e iniciati­vas de gran envergadura, de transcendencia para el medio y de la dispersión de respon­sabilidades en múltiples organismos y entes que pro pendem a defender celosamente sus funciones y a anteponer quizá los interesses que sectorialmente administran a los más amplios y globales que se concitan en la defensa dei ambiente». (8)

Ocorrendo essa conduta do poder público, caberá ação popular ou ação civil pública para invalidar o ato ilegal e lesivo ao meio ambiente.

3. Restauração dos elementos destruídos

Em muitos casos não basta o controle da poluição e a preservação dos recursos naturais para a completa proteção ambiental; torna-se necessária a restauração dos ele­mentos destruídos ou degradados pelo homem, ou pelos própriQs fenômenos da Natu­reza. Impõe-se, assim, o florestamento das áreas desmatadas, a recomposição dos ter­renos erodidos ou escavados, a recuperação das águas poluídas, a regeneração das ter­ras exauridas, a recriação de espécies silvestres e aquáticas em vias de extinção, e tantas outras medidas de restauração do meio ambiente para o reencontro do equilíbrio ecoló­gico e renascimento da vida animal e vegetal, de que depende a sobrevivência da huma­nidade.

Essas providências estatais para recuperação do meio ambiente destruído ou degra­dado são mais de incentivos ao administrado que de polícia administrativa, preventiva ou repressiva, pois o poder público só conseguirá os seus objetivos restauradores atra­vés do beneficiamento das propriedades particulares, o que indiretamente e de futuro irá refletir-se no bem-estar da coletividade,

Todavia, cabe ao poder público editar normas impositivas de restauração do meio ambiente destruído ou degradado, para recomposição da Natureza até onde for possível essa restauração, mas é indubitável que tais normas devem vir acompanhadas de apoio técnico e financeiro do governo, para que o particular possa atendê-Ias no tempo e nas condições necessárias à sua eficiência. Tais normas e providências competem preferen­temente à União, dado o predominante interesse nacional, mas podem ser supridas ou complementadas por disposições e medidas regionais e locais, dos Estados-Membros e Municipios particularmente interessados no assunto. (9)

No âmbito local, notadamente na área urbana e suas adjacências, o Município pode impor, por lei, a restauração de elementos destruídos e a recomposição de áreas escavadas em atividades extrativas ou construtivas, como ocorre na exploração de areia, argila, cascalho, e na abertura de estradas com cortes e aterros, que tanto desfi­guram a paisagem natural como alteram o relevo do solo, deixando abertas verdadei­ras crateras no perímetro urbano e em seus arredores, com malefícios de toda ordem para a comunidade.

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4. Ação civil pública para proteção ambiental

A proteção ambiental vem sendo tratada fragmentariamente pela legislação brasi­leira, só surgindo com relativa sistematização a Lei n? 6.938, de 31-8-1981 (regulamen­tada pelo Decreto n? 88.351, de 1-6-1983), que definiu a política nacional do meio am­biente, e, subseqüentemente, desenvolvendo o disposto no inciso lU do art. 3? da Lei Complementar n? 40, de 14-12-1981, a Lei n? 7.347, de 24-7-1985, disciplinou a ação civil pública (10) de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, legitimando precipuamente o Ministério Público para propô-Ia(">, como também as entidades esta­tais, autárquicas, paraestatais e as associações que especifica (art. 5?), sem prejuízo da ação popular (art. I ?). Estas duas ações têm objetivos assemelhados, mas legitimação de autores diferentes, pois a civil pública pode ser ajuizada pelo Ministério Público e pelas pessoas jurídicas acima indicadas, e a popular só pode ser proposta por cidadão eleitor (Lei n? 4.717/65, art. I ?)( 12). Ambas têm de comum a defesa dos interesses difusos(lJ) da coletividade e não o amparo do direito individual de seus autores.

A Lei n? 7.347/85 é unicamente de caráter processual, devendo o pedido e a condenação basear-se em disposição de alguma lei material da União, do Estado ou do Município, que tipifique a infração ambiental a ser reconhecida e punida judicialmente e independentemente de quaisquer penalidades administrativas ou de ação movida por particular para defesa de seu direito individual. Dentre as normas materiais de proteção do meio ambiente destacam-se a citada Lei n? 6.938/81 e os Códigos Administrativos que regem a utilização e preservação do solo, das águas, do ar, das florestas e da fau­na, ou a ordenação da cidade e de suas edificações, assim como as que normatizam, es­pecificamente, a implantação e o funcionamento das indústrias poluentes(14) e o empre­go de agrotóxicos que ponham em risco a saúde e a vida de pessoas e animais terrestres e aquáticos.

Segundo a Lei n? 7.347/85, a ação civil pública é de ser proposta no foro do local onde ocorrer a conduta ou a omissão prejudicial ao meio ambiente (art. 2?), para a condenação pecuniária do réu, ou a imposição de obrigação de fazer ou de não fazer (art. 3?). Embora seja uma ação de rito ordinário, admite a suspensão liminar do ato ou fato impugnado (art. 12), podendo ser precedida ou acompanhada de medida caute­lar nominada ou inominada, bem como de pedido cominatório para impedir ou mini­mizar o dano ecológico, assim como para preservar os bens de valor histórico, artístico, estético, turístico e paisagístico (art. 4?) ameaçados de destruição-ou depredação.

A responsabilidade do réu na ação civil pública é objetiva, pois independe de culpa no fato que a enseja (art. 14, § I?, da Lei n? 6.938/81), bastando que o autor demons­tre o nexo causal entre a conduta do réu e a lesão ao meio ambiente a ser protegido, e indique o dispositivo legal infringido. Se o fato argüido de lesivo ao meio ambiente foi praticado com licença, permissão ou autorização da autoridade competente, deverá o autor da ação - Ministério Público ou pessoa jurídica - provar a ilegalidade de sua expedição, uma vez que todo ato administrativo traz a presunção de legitimidade, só invalidável por prova em contrário.

A reparação do dano ambiental pode consistir na indenização dos prejuízos, reais ou legalmente presumidos, ou na restauração do que foi poluído, destruído ou degrada­do. A responsabilização do réu pode ser repressiva da lesão consumada, ou preventiva de sua consumação iminente. Melhor será, sempre, a ação preventiva visto que há le­sões irreparáveis in specie, como a derrubada ilegal de uma floresta nativa ou a destrui­ção de um bem histórico, valioso pela sua origem e autenticidade. Daí por que a lei da ação civil pública admite a condenação em obrigação de fazer ou de não fazer (art. 3?). Em qualquer hipótese, a responsabilidade do réu é solidária, abrangendo todos os que cometeram ou participaram do fato lesivo.

Proposta a ação civil pública, dela não pode desistir o Ministério Público, pois o seu objetivo é o amparo dos interesses indisponíveis da sociedade e a imposição da ob-

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servância da Constituição e das leis de ordem pública (art. 3?, inciso I, da Lei Comple­mentar n? 40/81) ('S).

A defesa do réu na ação civil pública é restrita à demonstração da inexistência do fato alegado na inicial ou da inocorrência de sua autoria ou co-autoria, bem como a le­gitimidade de sua conduta em face do ato administrativo que licenciou, permitiu ou au­torizou a prática do fato argüido de lesivo ao meio ambiente.

NOTAS

(I) Em urbanismo e ecologia as expressões «meio ambiente» e «ambienta!» correspondem no francês a «environnement», no inglês a «environment» e «environmenta!», no espanhol a «entor­no».

(2) Sobre direito ambiental, consultem-se, na doutrina estrangeira: Ramón Martin Mateo, «Derecho Ambienta!», Madri, 197'7; McNight. Marstrand & ~inclair, «Environmental Pollution Control», Londres, 1974; M. Girold, «Droit de la Protection de la Nature e de l'Environnement», Paris, 1973. -

No direito pátrio, vejam-se: Diogo de Figueiredo Moreira Neto, <<Introdução ao Direito Eco­lógico e ao Direito Urbanístico», Rio, 1975; Sérgio Ferraz, «Direito Ecológico - Perspectivas e Sugestões» na Revista da Consultoria-Geral do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1972, vol. 2, n? 4, pp. 4 e segs.; Eurico de Andrade Azevedo e Adilson Abreu Dallari, «Fundamentos Legais para o Combate à Poluição Ambienta!» no Boletim do Interior da Secretaria do Interior de São Paulo, vols. 16/30, pp. 185 e segs.; Hely Lopes Meirelles, «Aspectos Legais Relacionados com a Poluição do AD>, no Estudos e Pareceres de Direito Público, São Paulo, 1971, vol. I, pp. 125 e segs.; e «Fundamentos Legais para o Combate à poluição das Águas», na Revista de Direito da Procuradoria-Geral do Rio de Janeiro, 1965, vol. 14, pp. 56 e segs.; Eduardo Celestino Rodrigues, «Combate à Poluição Merece Profunda Revisão de Critério», no Estado de S. Paulo, de 31-8-1975, p. 58; Paulo Afonso Leme Machado, «Apontamento sobre a Repressão Legal da Poluição», RT 458/279; «Urbanismo e Poluição», RT 469/34; «Poluição por Resíduos Sólidos», RT 485/30; «Poluição por Pesticidas», RT 499/27; Helita Barreira Custódio, «Autonomia do Município na Preservação Ambienta!», São Paulo, 1976; Alcino Pinto Falcão, «Poder de Polícia e Poluição So­nora», RDP 16/73; Roberto Durço, «A Problemática da Poluição», na Justitia 100/19; Aristóte­les Atheniense, «Legitimidade e Conveniência da Repressão Judicial à Poluição Sonora», RT 457/289; Cid Tomanik Pompeu, «Regime Jurídico da Polícia das Águas Públicas: l. Polícia da Qualidade», Ed. CETESB, São Paulo, 1976 - «Saneamento Básico e Recursos Hídricos na Legis­lação Metropolitana», Revista DAE 100/42 - «Legislação Ambiental Aplicável às Grandes Re­presas», Revista DAE 116/58 - «Controle da Poluição Hídrica no Brasil», RDA 130/425; Ar­mando H. Dias Cabral, «Proteção Ambienta!», RDP 47-48/77; Vanda de Oliveira; «Poluição Ambiental - Competência Concorrente do Estado e do Município», RDP 64/225; Toshio Mukai, «Aspectos Jurídicos da Proteção Ambienta!», RDP 73/288; Estudos de vários colaboradores, na Justitia 113, volume dedicado ao meio ambiente.

Merece destaque a monografia de Paulo Afonso Leme Machado, «Direito Ambiental Bra­sileiro», Ed. RT, São Paulo, 1982, que nos dá uma visão panorâmica e sistemática da matéria, como também o «Direito Urbanístico Brasileiro», de José Afonso da Silva, Ed. RT,. São Paulo, 1981, pp. 434 e segs.

(3) O Brasil não_ possui ainda uma legislação orgânica e sistemática para o controle da polui­ção, nem para a proteção ambiental, tendo apenas normas esparsas que indicaremos adiante (ver nota 5), quando outros países já têm códigos e leis gerais sobre a matéria.

Nos EUA vigora o «National Environmental Policy Act», de 1969; na Inglaterra, o «Control of Pollution Act», de 1974; na Suécia, o «Código Ambienta!», de 1969; na Itália, a «Lei de Prote­ção Ambienta!», de 1966; no México, a «Lei Ambienta!» de 1971; na Colômbia, o «Código Am­biental Colombiano», de 1974; na Espanha, a «Lei Contra a Poluição», de 1972; na Romênia, a «Lei Concernente à Proteção do Meio Ambiente», de 1973.

(4) A «Declaração de Estocolmo», subscrita pelo Brasil, resultante da «Conferência das Na­ções Unidas sobre o Meio Ambiente», realizada em Estocolmo (Suécia), em junho de 1972, dentre

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outros princípios afirmou: «Aos governos locais e nacionais caberá o ônus maior pelas políticas e ações ambientais da mais ampla envergadura dentro de suas respectivas jurisdições» (item 7).

(5) STF, Representação de Inconstitucionalidade n? 1.007-4 - SP, ReI. Min. Cordeiro Guerra, RT 543/247.

(6) A legislação federal concernente ao controle da poluição, salvo erro ou omissão, é a seguinte: Lei n." 5.318, de 26-9-1967, que instituiu a Política Nacional de Saneamento e criou o Conselho Nacional de Saneamento, revogando expressamente as normas pertinentes anteriores (Decretos-Leis n?s 248/67 e 303/67); Decreto-Lei n? 1.098, de 25-3-1970, que veda aos navios a poluição das águas e o dano aos recursos do mar (art. 3?, § 2?); Decreto n? 7.030, de 30-10-1973, que criou a Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA; Decreto-Lei n." 1.413, de 14-8-1975, que dispõe sobre o controle da poluição industrial e atribui, com exclusividade, ao Poder Executi­vo Federal, o fechamento de indústrias poluidoras consideradas de alto interesse do desenvolvi­mento e da segurança nacional; Decreto n? 76.389, de 3-10-1975 (alterado pelo Decreto n? 85.206, de 25-9-1980), que dispõe sobre as medidas de prevenção e controle da poluição industrial de que trata o Decreto-Lei n? 1.413/75; Portaria n? 13/76, de 16-1-1976, do Ministério do Interior, que classifica as águas interiores; Portaria SEMA n? 2/77, de 19-1-1977, que homologa normas con­cernentes a padrões de emissão de fumaça por veículo automotor a óleo diesel; Portaria SEMA n." 3/77, de 19-1-1977, que impõe às empresas a observância de normas contra a poluição do meio ambiente; Decreto n? 79.367, de 9-3-1977, que dispõe sobre normas e padrões para a potabilidade da água; Decreto n." 81.107, de 22-12-1977, que indica as atividades do alto interesse para o desen­volvimento e a segurança nacional, para efeito do disposto nos arts. I? e 2? do Decreto-Lei n? 1.413/75; Portaria InterminÍsterial n? 1/78, de 23-1-1978, dos Ministérios das Minas e Energia, do Interior e dos Transportes, que recomenda a observância das normas federais no enquadramento dos corpos d'água, respeitando-se os usos outorgados pela União; Portaria Interministerial n? 90/78, dos Ministérios das Minas e Energia e do Interior, que institui o Comitê Especial de Estu­dos Integrados de Bacias Hidrográficas - CEEIBH; Portaria n." 442-Bsb-78, de 3-10-1978, do Mi­nistério da Saúde, que aprova normas para proteção sanitária de mananCiais destinados a abasteci­mento, que passaram a ser obrigatórias a partir de 6-10-1980; Portaria n? 323/78, de 29-11-1978, do Ministério do Interior, que proíbe o lançamento de vinhoto (restilo) nos corpos d'água; Portaria n? 2.010/78, de 26-12-1978, do Ministério das Minas e Energia, que sujeita os concessio­nários a apresentarem licença de funcionamento, .expedida pelo órgão estadual ou municipal res­ponsável pelo controle da poluição; Portaria SEMA n? 2/79, de 9-2-1979, que dispõe sobre a deri­vação de águas públicas federais para preservação ambiental; Portaria MINTER GM n? 53/79, de 1-3-1979, dispondo sobre o tratamento de resíduos sólidos (lixo); Decreto n? 83.540, de 4-6-1979, que dispõe sobre poluição por óleo no mar; Lei n? 6.662, de 25-6-1979, que dispõe sobre política nacional de irrigação; Portaria DNAEE n? 99/79, de 31-8-1979, que aprova normas para apresen­tação de projetos relativos á exploração de recursos hídricos; Decreto n? 84.017, de 21-9-1979, que aprova o regulamento dos parques nacionais; Portaria MINTER n? 92, de 19-6-1980, que dispõe sobre emissão de sons e ruídos; Lei n? 6.803, de 2-7-1980, que dispõe sobre zoneamento industrial; Portaria MINTER n? 100/80, de 14-7-1980, que dispõe sobre emissão de fumaça por veículos a óleo diesel; Decreto n? 84.973, de 29-7-1980, que dispõe sobre co-localização de estações ecológi­cas e usinas nucleares; Portaria MINTER GM n? 124/80, de 20-8-1980, sobre localização de in­dústrias e construções potencialmente poluidoras; Lei n? 6.902, de 27-4-1981, que dispõe sobre a criação de estações ecológicas; Lei n? 6.938, de 31-8-1981, que dispõe sobre o meio ambiente, re­gulamentada pelo Decreto n? 88.351, de 1-6-1983; e Lei n." 7.347, de 24-7-1985, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente.

(7) O Estado de São Paulo promulgou a Lei n? 997, de 31-5-1976, regulamentada pelo Decre­to n? 8.468, de 8-9-1976, dispondo sobre o controle da poluição em geral. Anteriormente, já havia editado a Lei n? 898, de 18-12-1975 e posteriormente publicou a Lei n? 1.172, de 17-11-1976, am­bas regulamentadas pelo Decreto n? 9.714, de 14-4-1977, disciplinando o uso do solo, para prote­ção aos mananciais da região metropolitana da Grande São Paulo, mas todos esses diplomas são deficientes e em alguns pontos invadem a competência da União (STF, RT 5431247). A Lei Com­plementar Estadual n? 304, de 28-12-1982 (Lei Orgânica do Ministério Público) defere ao Procurador-Geral da Justiça competência para designar, em cada Comarca, o Promotor de Justiça que se incumbirá da proteção do meio ambiente (art. 34, a).

(8) Ramón Martin Mateo, «Derecho Ambientah>, Madri, 1977, pág. 95. Este mesmo autor informa que nos EUA, qualquer projeto de empreendimento público que possa afetar significati-

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vamente o meio ambiente deverá ser previamente submetido à consideração da Environmental Protection Agency (EPA) , que pode vetá-lo, ficando então sujeito à apreciação judicial, nos ter­mos do já referido Environmental Policy Act. of. 1969.

(9) No RE n? 73.876 - SP, julgado em 6-3-1974, o STF reconheceu à municipalidade de São Paulo o poder de regular a escavação em margem de rio, na área urbana, para a retirada de areia e outros minérios, com a exigência de recomposição do meio ambiente, caução prévia para expedi­ção do alvará e multa por sua infringência.

(10) Sobre a ação civil pública, vejam-se: Antonio Augusto Melo de Camargo Ferraz, Édis Milaré e Nélson Nery Júnior, «Ação Civil Pública e Tutela Jurisdicional dos Interesses Difusos», Ed. Saraiva, 1984; e mais os artigos dos seguintes autores: Pedro Roberto Decomain, «O Ministé­rio Público e a Proteção do Meio Ambiente», in Revista de Informação Legislativa, 21/385; Paulo Afonso Leme Machado, «Ministério Público, Ambiente e Patrimônio Cultural», in Revista de In­formação Legislativa, 89/293 e também «Responsabilidade Civil e Dano Ecológico», in Anais do III Simpósio Nacional de Direito do Meio Ambiente. São Paulo, 1982, págs. 62 e segs.: Luiz Ro­berto Tomazzi, «Ministério Público e Defesa do Meio Ambiente», in Justitia 113/135; Sérgio Ro­xo da Fonseca, «O Ministério Público e o Dano Ecológico», in Justitia 113/143; Toshio Mukay, «Aspectos Jurídicos da Proteção Ambiental no Brasil», in Justitia 126/25; Rubens Naves, «Prote­ção Ambiental e Constituinte», in Anais do IV Simpósio de Direito do Meio Ambiente, Goiânia, 1984, págs. 5 e segs.

(11) Esta nova atribuição ao Ministério Público não suprime a sua legitimação para propor ações penais por contravenções e crimes contra bens públicos, definidos em outras leis, tais como o CÓdigo Penal (arl. 163), o Código Eleitoral (art. 328), o Código Florestal (arts. 26 e 32), o Có­digo de Caça (arts. 27 a 34), o Código de Pesca (arts. 35, c e d, e 61), etc.

(12) Veja-se nosso «Mandado de Segurança e Ação Popular», Ed. RT, São Paulo, 1985, págs. 79 e segs.

(3) Veja-se Ada Pellegrini Grinover, coordenadora da coletânea «Tutela dos Interesses Di­fusos», vários autores, Ed. Max Limonad, São Paulo, 1984, e também Toshio Mukai, «A Lei de Defesa dos Interesses Difusos», in Boletim de Direito Administrativo da Prefeitura de São Paulo, agosto de 1985, págs. 86 e segs.

(14) Veja-se a Lei n? 6.803, de 2-7-1980, que dispõe sobre as diretrizes básicas para o zonea­mento industrial nas áreas críticas de poluição, e a Portaria MINTER n? 124, de 20-8-1980, que dispõe sobre a localização de indústrias e construções potencialmente poluidoras.

(15) A Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo (Lei Complementar n~' 304, de 28-12-1982) compete ao Procurador-Geral da Justiça a désignação de um membro do Mi­nistério Público, em cada Comarca, para a proteção e defesa do meio ambiente e do patrimônio cultural e natural do Estado (arl. 32, inciso 34).

TUTELA JURISDICIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL

Humberto Theodoro Júnior

HUMBERTO THEODORO JÚNIOR

TUTELA JURISDICIONAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL

SUMÁRIO

I. História da proteção jurídica à propriedade industrial 2. Em que consiste a propriedade industrial 3. Como se protege o monopólio do titular da propriedade industrial 4. Ação proibitória 5. Ação de perdas e danos 6. Ação de reivindicação de patente 7. Ação de nulidade de patente 8. Ação de nulidade de registro de marca 9. Ação contra o abuso de patente lO. Mandado de Segurança 11. Ação Penal 12. Execução civil da sentença criminal 13. Medidas cautelares

I. História da proteção jurídica à propriedade industrial

O Brasil ocupa posição de destaque na história da proteção jurídica à propriedade industrial, cujo início remonta à legislação da Inglaterra do ano de 1623. Em seguida vieram leis similares nos EUA, em 1623, e na França em 1791.

O Brasil veio a legislar sobre a matéria em quarto lugar no mundo, através de al­vará de 28-4-1809, baixado pelo Príncipe Regente, que se destinou a proteger privilégios aos criadores de máquinas novas e de invenções nas artes.

A primeira lei específica sobre os privilégios de invenção foi editada pelo Impera­dor D. Pedro I, em 28-8-1830; e as marcas de indústria e comércio receberam sua pri­meira tutela normativa através do Decreto n? 2.682, de 23-10-1875, no Governo de D. Pedro 11.

Desde então sucederam-se inúmeros diplomas legais sobre o tema e, atualmente, vigora o Código da Propriedade Industrial baixado nos termos da Lei n? 5.772, de 21-12-71. A legislação repressiva de caráter penal, no entanto, continua regulada pelo Có­digo de 1945 (isto é, pelo Decreto-Lei n? 7.903/45), cujo Título IV foi mantido em vi­gor pelo art. 128 da Lei n? 5.772171.

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Pelo vigente Código de Propriedade Industrial protegem-se privilégios de invenção, modelo de utilidade, modelo industrial e desenho industrial, e ainda tutelam-se marcas de indústria e de comércio, sinais de propaganda, bem como regulam-se medidas de re­pressão a falsas indicações de procedência e de concorrência desleal.

2. Em que consiste a propriedade industrial Segundo a opinião clássica da doutrina, o direito do inventor seria um direito de

propriedade, embora incidindo sobre bem incorpóreo: a criação intelectual e imate­rial(').

Modernamente, todavia, surgiu nova concepção na doutrina que explica de manei­ra mais satisfatória a natureza dos direitos de propriedade industrial e intelectual.

Realmente, não se pode equiparar os privilégios do inventor ao domínio que se exerce sobre as coisas corpóreas, já que sua principal característica não é a dominação sobre um objeto determinado, mas sim o seu aspecto negativo, que é o de uma interdi­ção a que as demais pessoas concorram com o titular da patente no seu emprego eco­nômico.

A venda do produto obtido com o invento ou com a marca privilegiada produz a transferência de seu domínio para o comprador; mas este, embora dono do objeto, não pode reproduzi-lo em novas unidades sem autorização do titular do direito industrial.

Assim, o conteúdo do direito do inventor nada tem que ver com o objeto adquiri­do regularmente na comercialização. Seus elementos fundamentais são:

a) «o direito de realizar e explorar economicamente a invenção»; e b) «o direito de impedir que terceiros que compraram os bens referidos

possam, eles mesmos, reproduzir ou produzir»(2). Franceschelli, aliás, demonstra que esses direitos industriais e intelectuais «são

mesmo bem mais fortes que o direito de propriedade», porque permanecem retidos pe­lo dono até mesmo após a venda do objeto produzido (máquina, livro, mercadoria marcada, etc.)(').

Daí a conceituação moderna do direito do titular da patente «como direito do monopólio e não de propriedade, vez que, quando o bem privilegiado é alienado e ocorre mutação de propriedade, o titular da patente deixa de poder usar, fruir e dispor do mesmo. Entretanto, contiima a deter o direito de exclusividade na produção e repro­dução do bem alienado, um auténtico direito de monopólio de exploração, que nada tem a ver com a propriedade do bem que não mais lhe pertence»(4).

Trata-se, como se vê, de um direito sui generis de uma categoria nova no mundo dos direitos. Sua força típica é impedir que outros realizem certas atividades no plano das iniciativas econômicas; o monopólio consiste, precisamente, no «direito de exigir de outrem uma abstenção, quer dizer, a obrigação de não se colocar em situação seme­lhante àquela reservada exclusivamente aos privilegiados»(').

3. Como se protege o monopólio do titular da propriedade industrial A ordem jurídica protege os privilégios derivados da propriedade industrial, em

primeiro lugar, através de um serviço administrativo que controla e atesta a existência do direito subjetivo do inventor, a quem fornece uma patente, habilitando-o dessa for­ma a demonstrar sua posição jurídica, e a defendê-la quando necessário. O mesmo se passa com os titulares das marcas de indústria, comércio e serviços, que igualmente se registram no INPI.'

Quanto às transgressões dos privilégios industriais, a lei as coíbe mediante sanções civis e penais. '

No aspecto do Direito Criminal, as violações da propriedade industrial são defini­das como crimes que sujeitam os infratores a penas que vão desde as multas até a pri­vação da liberdade (arts. 169 a 188 do Decreto-Lei n? 7.903/45).

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No âmbito do Direito Privado, a lei coloca à disposição do titular da propriedade industrial violada ações civis exercitáveis perante o Poder Judiciário, para atuar sanções econômicas e interditais, com o fito de ressarcir-se de prejuízos sofridos e impedir a continuidade dos atos atentatórios de seu direito subjetivo intelectual, que, na lingua­gem jurídica, recebe a denominação de contrafação.

Principais ações manejáveis na defesa dos direitos industriais:

I. ação de proibição da contrafação (cominatória) 2. ação de perdas e danos 3. ação de reivindicação da patente de invenção 4. ação contra o abuso da patente.

Uma vez que a obtenção da patente ou registro pode incorrer em ilicitude e acarre­tar lesão a terceiros que já utilizam regularmente o invento ou a marca, existe, tam­bém, uma ação que, in casu, se destina a obter o cancelamento da patente: trata-se da ação de nulidade de patente.

Pode-se, ainda, utilizar o Mandado de Segurança, em alguns casos, e, freqiiente­mente, as medidas cautelares ou preventivas.

Há, por último, a Ação Penal, que é, geralmente, de iniciativa privada do ofendi­do e que tende à imposição das sanções criminais e ao confisco dos produtos criados com a infração cometida pelo contrafator.

4. Ação proibitória

o direito do privilégio industrial é o de usar, com exclusividade, o invento ou a marca, donde deriva, para o seu titular, o direito subjetivo de impor a todos os demais a abstenção em face de seu privilégio. .

A ação proibitória visa a fazer atuar concretamente esse direito subjetivo nos casos de violação, mediante uma sentença que proíba ao infrator a prática do ato incrimina­do, sob pena de multa (CPl de 1945, art. 189, em vigor de acordo com o art. 128 do CPl atual).

A multa (<<astreinte»), na espécie, é meio de coação, destinada a compelir o infra­tor a cessar a prática ilícita. Não tem caráter indenizatório, pelo que não exclui a obri­gação de indenizar o prejuízo da vítima.

O fundamento dessa condenação (obtida sob a forma de preceito cominatório) é a violação objetiva da patente. Para obtê-Ia, não precisa o autor provar nem a má-fé do contrafator (o réu) nem o prejuízo acarretado pela contrafação.

Ao pedido proibitório, todavia, pode ser cumulado o pedido de indenização de perdas e danos, caso em que, obviamente, terá o autor de provar, além da contrafação, o dano que essa lhe acarretou.

A legitimidade ativa da ação proibitória compete ao titular do privilégio industrial; e a passiva, ao infrator, que tanto pode ser pessoa física como jurídica.

A competência é da Justiça Comum e o foro o do domicílio do réu, segundo a re­gra geral do art. 94 do CPC.

O procedimento a observar é o comum, ou seja o ordinário ou o sumaríssimo, conforme o valor da causa (CPC, arts. 271 e 272). Trata-se, outrossim, de procedimen­to puramente civil, sem nenhuma dependência à ação penal.

A prova, a cargo do autor, deve compreender a patente (documento) e a perícia sobre a contrafação.

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A sentença que acolhe o pedido conterá: a) a declaração do direito de propriedade industrial do autor; b) a condenação do réu a cessar a infração; e c) a cominação de multa para assegurar a execução do julgado.

A multa é indicada pelo autor na petição inicial, mas ao Juiz cabe o poder de alterá-Ia na sentença(6).

Para executar a sentenca, tem o autor de provar que, após a condenação, o réu co­meteu nova violação do direito industrial protegido pelo decisório. Isto se faz por meio de liquidação de sentença por artigos (CPC, arts. 608 e 609).

A incidência da multa só atinge as infrações posteriores à sentença, pois ela só é realmente aplicada após a intimação do réu para cumprir a condenação(').

5. Ação de perdas e danos

Essa ação tem como objetivo impor ao infrator a condenação de indenizar o pre­juízo causado ao titular do privilégio industrial.

Seu fundamento legal é o art. 159 do Código Civil, que prevê a responsabilidade civil de todo aquele que, por ação ou omissão, causa dano a outrem.

A ação pode ser proposta pelo concessionário da patente, seus sucessores, ou pelo cessionário (total ou parcial), bem como pelo titular do registro de marca. Simples agentes comerciais, revendedores, etc., só podem atuar em Juízo, mediante mandato do titular da patente.

A legitimação passiva cabe ao violador do privilégio. A ação pode ser proposta contra o cessionário parcial, se houver abuso da cessão; e pode ser intentada até contra o próprio cedente do privilégio, se este, após a cessão, voltar a usar a invenção.

Quando a infração for praticada em nome de pessoa jurídica, os seus representan­tes ou prepostos, que agirem de má-fé, poderão ser, também, responsabilizados solida­riamente com a sociedade.

A competência é da Justiça Comum e o foro o do domícilio do réu (CPC, art. 94), admitindo-se a opção pelo foro do lugar em que ocorreu o dano (art. 100, V, a).

As provas devem demonstrar a patente em vigor, bem como a cessão, se for o ca­so, a violação do direito assegurado pela patente e o prejuízo sofrido pelo autor.

Os danos têm de ser provados durante a fase de instrução, antes da sentença. Não se pode relegar tal prova para a fase de liquidação da sentença, porque impossível é a condenação apenas à base de probabilidade. A sentença deve ser certa, mesmo quando genérica. Para a liquidação s6 pode ser relegada a apuração jo quantum do prejuízo, nunca sua própria existência.

Sem a prova do prejuízo, pode-se obter a proibição dos atos de contrafação (ação proibitória), mas não a indenização de perdas e danos.

A indenização, quando cabível, deve ser ampla, de modo a abranger tanto os pre­juízos já ocorridos (danos emergentes) como os lucros cessantes, além dos encargos da sucumbência: despesas processuais com custas, perícias, honorários de advogado, etc.

A forma normal de determinar o prejuízo é a de apurar o lucro que o infrator ob­teve com a utilização indevida do invento ou marca, posto que esse lucro, por direito, deveria ser do titular da propriedade industrial.

Quando o infrator não obtiver lucros, a prova pode ser feita na atividade do au­tor, de modo a determinar qual, em tese, foi a redução de seu lucro, por não ter reali­zado as operações que indevidamente efetuou o infrator.

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Em último caso, havendo impossibilidade de apurar-se, com precisão, os lucros ou prejuízos, pode-se lançar mão do arbitramento (Código Civil, art. 1.553; CPC, arts. 606 e 607).

O réu pode se defender, alegando, por exemplo, inexistência dos fatos arrolados pelo autor, inocorrência de infração da patente e nulidade ou caducidade da patente. Não pode, entretanto, alegar ignorância da patente, porque seus efeitos são erga omnes. A responsabilidade civil é, in casu, independente da responsabilidade criminal (CPP arts. 65 e 66; Código Civil, art. 1.525).

A prescrição opera-se em 20 anos (Código Civil, arts. 177 e 179). Essa ação só é possível após a obtenção da carta patente. Mas o cálculo da indeni­

zação pode retroagir para alcançar os atos praticados pelo contrafator no período com­preendido entre o depósito da invenção e a concessão da patente (CPI, art. 23).

6. Ação de reivindicação de patente

O direito de obter a patente é do inventor. Se alguém usurpa invenção alheia e a patenteia em nome próprio, comete violação ao direito intelectual do criador.

Daí admitir-se o direito do inventor de reivindicar a propriedade da invenção, me­diante sub-rogação na patente, que, assim, deverá ser transferida para seu nome, em execução de sentença(8).

Essa ação pode ser cumulada com a de perdas e danos. A prova há de ser a mais ampla possível a respeito da autoria da invenção e pode

ser feita por todos os meios em direito admitidos. O ônus é todo do autor. A boa-fé de terceiros adquirentes da patente não impede a reivindicação. Ressalva­

se, porém, o direito regressivo contra o cedente para executar a garantia da evicção. 7. Ação de nulidade de patente A obtenção da patente sujeita-se a requisitos formais e substanciais, cuja inobser­

vância pode conduzir à nulidade do privilégio irregularmente patenteado. Os casos de nulidade de patente estão enumerados no art. 55 do Código de Pro-

priedade Industrial. Compreendem: a) inexistência de invenção; b) falta dos requisitos da novidade e do caráter industrial; c) infração do art. 9?, que arrola várias hipóteses de invenções não privi­

legiáveis; d) preterição de direitos de terceiros; e) título de invenção diverso, com fim fraudulento, do seu verdadeiro ob­

jeto; f) omissão, no processamento, de qualquer das providências determina­

das pelo Código, necessárias à apreciação e expedição da respectiva carta pa­tente;

g) inobservância do disposto no § 3? do art. 40, em relação aos inventos realizados durante a vigência do contrato de trabalho destinado à pesquisa no Brasil (').

Para invalidar o privilégio indevido, os interessados poderão utilizar uma ação de procedimento ordinário, cuja sentença final declarará a nulidade da patente, fazendo com que a invenção caia no domínio público.

Esse procedimento judicial pode ser promovido pelo INPI, ou por qualquer pessoa que tenha <<legítimo interesse» (art. 57, Lei n? 5.772171).

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Os Procuradores da República não têm legitimidade para InICIar a ação, mas de­vem funcionar no processo como «assistentes» ou «litisconsortes», cabendo ao autor provocar tal assistência, mediante pedido de citação do Procurador da República na pe­tição inicial( '0).

Por pessoa que «tenha legítimo interesse» entende-se aquela que seja titular de um direito qualquer que esteja sendo prejudicado pela patente indevida.

Ao autor, portanto, incumbe o ônus de provar sua qualidade de «titular de um di­reito ou de uma situação jurídica incompatível com a patente ou por ela prejudicada»( ").

De uma maneira geral, diz Gama Cerqueira que legitimados ativos podem ser sem­pre «os concorrentes do titular do privilégio que se pretende anulam('2).

No pólo passivo da ação deve ficar o «titular do privilégio», ou seja, aquele em cujo nome se acha inscrita a patente. Terceiros cessionários poderão intervir no proces­so como «assistentes».

Essa ação não depende de prévio recurso administrativo.

A competência, por envolver ato de autarquia federal (INPI), é da Justiça Federal, devendo a ação de nulidade ser proposta no foro do Distrito Federal, ou da capital do Estado onde se situar o domicílio do réu. Se o réu for estrangeiro, o foro será o do do­micílio do procurador a que alude o art. 116 do CPI.

A petição inicial será instruída com certidão ou cópia autenticada da patente a anular. E o ônus da prova da nulidade é do autor.

Nessas causas todas as provas são admitidas, mas a perícia é que, geralmente, for­nece os elementos indispensáveis, dado o caráter eminentemente técnico da controvérsia em torno da invenção patenteada.

Sendo a ação de nulidade e não de anulabílidade, sua prescrição é a vintenária.

A sentença beneficia não apenas o autor, pois a anulação gera efeitos erga omnes, fazendo desaparecer o privilégio decorrente da patente inválida.

«Decretada a nulidade, a patente considera-se como nunca tendo existido». Após a sentença, a invenção caí no domÍnÍo público, «tornando livre a sua exploração» (IJ).

Se a sentença for de improcedência do pleito de nulidade, sua eficácia restringir-se­á às partes da relação processual. Não impedirá, portanto; que terceiros venham a abrir novos processos a respeito da mesma patente, nem obstará a que o próprio autor re­nove a demanda, desde que com outro fundamento.

O recurso da sentença, em qualquer caso, será para o TFR.

A execução da sentença que acolhe o pedido do autor far-se-á, após o trânsito em julgado, por meio de anotação nos registros do INPI.

É possível a acumulação da ação de nulidade da patente com o pedido de perdas e danos.

Adimite-se, também, que o cancelamento da patente seja pleiteado nas vias admi­nistrativas (CPI, art. 58). Isso, contudo, só será viável até um ano da concessão do privilégio.

8. Ação de nulidade de registro de marca

Nos mesmos termos da ação de nulidade da patente de invenção, pode-se manejar a ação de nulidade de registro de marca.

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As nulidades do registro de marca ocorrem, segundo o art. 98 do CPl: a) por impropriedade do objeto do registro, ou seja quando este «não

reúne os requisitos essenciais para que possa considerar-se como marca no sentido legal»;

b) por violação de proibição expressa da lei; c) por violação de proibição implícita na lei.

Além desses casos, há, ainda, nulidade do registro quando se preterem formalidades legais do ato, como as pertinentes a competência, publicidade, prazos, etc. ('4).

O rito processual é o comum, a competência é da Justiça Federal e a cumulação da anulatória com a indenizatória de perdas e danos é admissível.

A ação deve ser proposta no prazo de cinco anos da concessão do registro, sendo esse prazo de natureza decadencial {OS).

Tal como se dá com a nulidade de patente de invenção, também a nulidade de re­gistro de marca pode ser obtida por via administrativa. Mas o prazo, para tanto, é de apenas seis meses a contar do registro (CPl, art. 101, § I?).

9. Ação contra o abuso de patente

Como os direitos em geral, a propriedade industrial tem de ser utilizada sem abu­sos e desvios nocivos a legítimos interesses de terceiros.

Ocorre, por exemplo, abuso da patente quando o concessionário dá ao seu privilé­gio extensão maior do que realmente possui ou lhe empresta objeto diverso do que consta do título; e ainda quando o concessionário divulga, infundadamente, violação de sua patente, com o fito malicioso de perturbar os negócios e desviar a clientela de seu concorrente; e, outras vezes, passa-se por titular de uma patente apenas para inti­midar concorrentes e desestimulá-los da exploração projetada.

Os prejudicados, em tais situações, podem se proteger judicialmente por via de ação declaratória, prevista no art. 4?, parágrafo único, do CPC.

Com essa ação, conseguir-se-á uma sentença que interpretará a patente e determi­nará «a extensão dos direitos que ela assegura», ou, conforme o caso, declarará a exis­tência ou inexistência do privilégio, com reconhecimento do «direito em que o autor se sente prejudicado» (16).

10. Mandado de Segurança

O Mandado de Segurança é remédio processual de natureza constitucional destina­do a obter imediata tutela do direito individual líquido e certo, contra ato de abuso de autoridade.

Admite-se sua utilização em caráter repressivo e preventivo, ou seja, para revogar judicialmente o ato administrativo já praticado ou para impedir a prática do ato em vias de ser praticado pela autoridade pública.

Constitui uma ação civil porque protege os direitos individuais diversos da liber­dade de ir e vir, para os quais há o remédio penal denominado Habeas Corpus, tam­bém de origem constitucional.

Ao despachar a inicial do Mandado de Segurança, o Juiz tem poderes para suspen­der, liminarmente, o ato impugnado, sempre que se revelar relevante o fundamento da pretensão e houver risco de tornar-se ineficaz a medida se se tiver de aguardar a solu­ção final do processo (Lei n? 1.533, de 31-12-51, art. 7?, Il).

Em tema de propriedade industrial, os atos administrativos que podem ser ataca­dos são os pertinentes às patentes e registros de marcas, quando praticados pelo lnstitu-

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to Nacional da Propriedade Industrial, de forma irregular e em prejuízo de direito líquido e certo de outrem.

A ação de segurança é de competência da Justiça Federal e deverá ser proposta na circunscrição do Rio de Janeiro, onde se situa a sede da autarquia INPI (").

Tavares Paes cita, em sua obra sobre «Propriedade Industrial», três casos concre­tos de Mandado de Segurança contra atos do INPI: um em que a autarquia acolheu re­curso fora do prazo legal e revogou indevidamente concessão de registro de marca já consolidado pela «coisa julgada administrativa»; e outros dois em que vitorioso foi o INPI e que se situaram fia área de litígios sobre exploração de patente e de contrato de transferência de tecnologia ('8).

O STF, para fins de Mandado de Segurança, já decidiu que «constitui ilegalidade, e, pois, viola direito líquido e certo, o ato da autoridade administrativa que concede re­gistro a marca de fábrica em tudo idêntica a outra, já registrada para produto igual, ensejando a concorrência desleal» ('9).

O Mandado de Segurança, finalmente, está sujeito a um prazo de utilização, que é de 120 dias contados da ciência pelo interessado, do ato impugnado. Trata-se de prazo fatal, isto é, de decadência e não de prescrição. Quer isso dizer que não pode ser pror­rogado nem se sujeita a interrupção ou suspensão.

11. Ação Penal

A infração dos privilégios de invenção configura vários crimes, conforme os arts. 169 e segs. do CPI de 1945, ainda em vigor, na matéria.

Salvo nos crimes capitulados nos arts. 173, 179 e 187, a ação penal é privada, ou seja só pode ser movida mediante queixa da vítima.

Os delitos, in casu, pressupõem a contrafação, que se prova: a) pela existência de uma patente válida; e b) pela ocorrência de um fato material que constitua ofensa ao direito do

concessionário do privilégio. O sujeito passivo da ação penal é a pessoa que cometeu a infração. Se o fato ocor­

reu em nome de pessoa jurídica, o réu da ação penal será o dirigente que o ordenou ou o aprovou, assim como os empregados que o executaram.

São provas necessárias: a patente violada e o exame pericial da contrafação (auto de corpo de delito).

A competência é da Justiça Comum, no foro do lugar da infração. A vítima dos delitos da espécie deve iniciar o procedimento penal no prazo de seis

meses a contar do conhecimento da infração (CPP, art. 38). E quando houver necessi­dade de vistoria prévia, terá de requerer a medida preparatória dentro dos aludidos seis meses, e terá, a partir da homologação do laudo, 30 dias para oferecer a queixa-crime (CPP, art. 529) e°).

O auto de corpo de delito deve ser obtido em caráter preparatório da ação, através de peritos (dois) nomeados pelo Juiz. Essa diligência liminar compreenderá a vistoria e a apreensão dos produtos e objetos envolvidos na contrafação.

Não se deve, entretanto, interditar a empresa, se se tratar de estabelecimento legal­mente organizado e em funcionamento regular.

A perícia destina-se a apurar dados técnicos que autorizam o Juiz a decidir se houve ou não a violação da patente. Daí que só devem funcionar como peritos pessoas que possuam a necessária habilitação técnica.

A diligência é de caráter inquisitorial, de sorte que nem o requerente, nem o reque­rido, deve interferir na perícia. A discussão será feita no curso do processo principal, quando outras provas poderão ser produzidas e até mesmo nova perícia.

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Homologada a perícia prévia, pelo Juiz, terá o requerente trinta dias para propor a Ação Penal, contados da respectiva intimação (").

No início da vistoria liminar, devem ser apreendidas amostras dos bens contrafei­tos. Mas, uma vez comprovada a contrafação, todos os bens ilegitimamente produzi­dos, assim como as máquinas que contenham a indébita apropriação do processo in­dustrial patenteado, tornam-se passíveis de apreensão judicial.

A jurisprudência dominante, todavia, tem entendido que a busca e apreensão pre­paratória da Ação Penal nunca deve ser total, não passando dos exemplares necessários à apuração do crime contra a propriedade industrial (22). Nem deverá atingir a maqui­naria, para não paralisar a indústria(lJ). Assim, para interromper a contrafação, o in­teressado terá de promover ação civil e lançar mão de medidas cautelares dentro da sis­temática do CPC ('4).

Da procedência da Ação Penal, deve-se lembrar, decorre o definitivo confisco de todos os bens produzidos com a atividade delitual, assim como dos instrumentos utili­zados para a execução do crime (Código Penal, art. 100).

O requerimento de busca e apreensão, feito de má-fé, ou por espírito de emulação, mero capricho ou erro grosseiro, acarreta para o promovente a obrigação de indenizar perdas e danos ao prejudicado (CPI, de 1945, art. 187).

Em face da autonomia das ações civis e penais, a absolvição no Juízo Criminal não impede as ações proibitórias e indenizatórias no Juízo Civil (25).

12. Execução civil da sentença criminal

Após a condenação em processo criminal a vítima de delito contra a propriedade industrial não precisa de propor ação de indenização para obter a condenação do con­trafator.

É que a sentença penal condenatória trânsita em julgado tem força de título execu­tivo civil (CPP, art. 63; CPC, art. 584, lI). Nos termos do art. 91, I, do ~igente Códi­go Penal, é efeito automático da condenação, in casu, «tornar certa a obrigação de in­denizar o dano causado pelo crime».

Como, no entanto, a sentença penal não dispõe sobre o montante do prejuízo da vítima, esta, antes de iniciar a execução civil, terá de promover a liquidação por arti­gos, na forma do CPC, arts. 608 e 609.

O procedimento liquidatório, como é sabido, não enseja qualquer discussão em torno da obrigação de indenizar e apenas tem como objetivo a apuração do quantum do prejuízo que o delito acarretou à vítima do delito.

13. Medidas cautelares A patente, regulada pelo Código de Propriedade Industrial, tem o fito de garantir

a propriedade e o uso exclusivo do fruto da criação intelectual «ao autor de invenção, de modelo de utilidade, de modelo industrial e de desenho industrial» (art. 5?). E o mesmo ocorre com o registro de marcas de indústria e comércio e sinais de propaganda (art. 59).

Daí dizer-se, como aliás já o fizemos anteriormente, que a propriedade industrial confere ao titular um monopólio que lhe assegura poderes de:

a) impedir que outros usem o invento ou a marca; e de b) cobrar, do infrator, indenização toda vez que ocorrer uso indevido do

invento ou marca. Tanto para um como para outro fim, o dono da propriedade industrial violada

tem de agir através do processo judicial. E, assim, por meio de ações comuns logrará fazer cessar o atentado e obterá sentenças e mandados executivos que determinem:

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a) a proibição de atos contrários aos privilégios do titular do direito in­dustrial (CPI de 1945, art. 189); e

b) a apreensão dos bens produzidos na prática da contrafação, assim co­mo a destruição da marca falsificada (CPI, art. 184).

Os procedimentos ordinários da Justiça Civil, no entanto, são demorados, em ra­zão de sua própria estrutura de contraditório e defesa amplos. Como a solução e re­pressão do atentado ao direito industrial só ocorrerão, em caráter definitivo, após o trânsito em julgado da sentença de mérito, nesse como em outros casos, urge lançar mão de outros expedientes procedimentais, ainda que provisórios e em caráter precário, para evitar que situações perigosas se transformem em lesões definitivas e irreparáveis enquanto se aguarda o julgamento final da causa.

Essas providências denominam-se medidas cautelares, provisionais ou preventivas e são objeto de procedimentos sumários, baseados em simples aparência do direito da parte e visam preservar situações de fato e de direito, sem as quais, a sentença de méri­to se tornaria inútil ou, pelo menos, perderia consideravelmente sua eficácia prática em face do direito violado.

No caso das ações em torno da propriedade industrial, por exemplo, de nada vale­ria, ou pouco valeria proibir o uso do invento patenteado ou da marca registrada, se ao longo do demorado prazo da marcha processual o réu pudesse impunemente continuar a fazer o uso criminoso e a dispor livremente do produto de seu delito.

Diz, por isso, a lei processual que «poderá o Juiz determinar as medidas provisó­rias que julgar adequadas, quando houver fundado receio de que uma parte, antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de difícil reparação» (CPC, art. 798).

E, para evitar o dano temido, exemplifica o art. 799 do mesmo Código com as se­guintes medidas que o Juiz poderá tomar, além daquelas que são reguladas em porme­nores pela própria lei, como medidas cautelares específicas: autorização ou vedação da prática de determinados atos, ordem de guarda judicial de pessoas e depósito de bens e imposição de caução.

Assim, a continuidade da contrafação e a possibilidade da venda dos produtos ir­regularmente produzidos e marcados representam, sem dúvida, situação de perigo sério de danos ao titular da propriedade industrial, que, como tais, podem ser coibidos ou prevenidos por meio da atividade cautelar do Juiz da causa.

Note-se que, para a medida cautelar não se reclama nem a prova definitiva do di­reito do autor, nem a da responsabilidade cabal do réu por sua violação. Bastam «a plausibilidade do direito de propriedade e o fundado receio de que o uso que se afirma ilegal possa causar dano irreparável»('6).

Em Portugal, a legislação sobre propriedade literária, artística ou científica e sobre propriedade industrial admite, como medida cautelar em tais casos, o arresto ou a apreensão (").

Aqui, entre nós, o § 3? do art. 842 do CPC autoriza, expressamente, o emprego da busca e apreensão em casos de violação de direito autoral. E sendo o Direito de Pro­priedade Industrial da mesma natureza que o direito autoral, claro é que a busca e apreensão cautelar pode também a ele se estender, mormente em face dos termos am­plos com que os arts. 798 e 799 autorizam o poder geral de cautela.

No Direito Alemão, Rosenberg ensina que se podem tomar medidas provisionais não só a respeito da posse e propriedade das coisas corpóreas como também sobre os direitos protegidos por patentes e pela lei de propriedade intelectual ('8). E Goldschmidt acrescenta que as relações jurídicas geradas pelo direito de autor ou de invenção e pelo nome ou firma autorizam as medidas cautelares genéricas sempre que for preciso evitar perigo de danos graves e, em geral, para «prevención contra actos ilicitos e punibles» (29).

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Claro, portanto, que não se pode exigir do titular da propriedade industrial que cruze os braçõs diante do atentado a seu direito, que configura crime punido pela lei penal, e fique a aguardar a sentença de mérito para, só então, tomar providências con­tra a situação ilícita e perniciosa contra si instalada pelo contrafator.

Daí seu inegável direito de tomar medidas cautelares imediatas, mesmo antes do julgamento da ação principal, como a proibição de utilizar o invento ou a marca, e a apreensão dos produtos já elaborados em contrafação.

Se a força que se espera da sentença definitiva é a de apreensão do produto da contrafação para destruí-lo e eliminá-lo do mercado, a medida cautelar tem de ser tal que assegure, de modo prático, a exeqüibilidade futura do julgado de mérito. Daí o ca­bimento das medidas de busca e apreensão, que se mostram idôneas a semelhante desi­derato (lO).

OS procedimentos, in casu, são os comuns das ações cautelares, e especialmente aquele previsto no § 3? do art. 842 do CPC (nomeação de peritos para a diligência da busca e apreensão).

E essa busca e apreensão, diferentemente daquela destinada à perícia criminal (au­to de corpo de delito) tem de ser total, porque só assim se evitará a «continuidade da infração» e somente dessa maneira se fará com que «os direitos legitimamente adquiri­dos deixem de ser violados», na fiel observância do «exato princípio da lei» (JI).

Observe-se, outrossim, que o que se protege é o Direito Industrial, que, em si, ver­sa sobre coisas ou bens imateriais. Mas o que se apreende são as coisas corpóreas que o contrafator criou e vem utilizando em detrimento do direito imaterial privilegiado. As­sim, apreendidas as mercadorias identificadas com marca alheia, a medida cautelar se extinguirá no momento em que o contrafator concordar em inutilizar a marca indevida­mente utilizada.

O que, entretanto, não se concebe é a indiferença da Justiça p.erante uma violação continuada do direito do titular da propriedade industrifil, apenas porque ainda não se chegou à sentença de mérito trânsita em julgado.

A tutela cautelar engendrada pelo moderno Direito Processual existe justamente para coibir os riscos de dano enquanto pende o processo de mérito. Urge, pois, utilizar seus mecanismos, sem excessos, é claro, mas sempre com efetividade e energia, sob pe­na de tornar-se desacreditada a própria função jurisdicional no embate contra a ilid­tude e na tutela dos direitos subjetivos injustamente Íliolados.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

(I) COLIN et CAPITANT - «Cours Élémentaire de Droit Civil Français», vol. I, pág. 674; Dou-glas Gabriel Domingues - «Direito Industrial - Patentes», Ed. Forense, 1980, pág. 52.

(2) Douglas Gabriel Domingues - ob. cit., pág. 54.

(3) Remo Franceschelli - «Studi Riunitti di Diritto Industriale», Giuffre, Milano, 1972, pág. 75.

(4) Douglas Gabriel Domingues - ob. cit, pág. 65.

(5) Ferrara - «Trattato di Diritto Civile Italiano», Roma, 1921, pág. 373.

(6) Calmon de Passos - «Comentários ao Código de Processo Civil», Forense, 3~ ed., vol. III, n~' 145, págs. 254/255.

(7) Theotônio Negrão - «Código de Processo Civil e Legislação Processual'Civil em Vigof», RT, 12: ed., pág. 126; STF - RE n~' 94.966, in RTJ 103/774, e RT 560/255.

(8) Gama Cerque ira - «Tratado da Propriedade Industrial», RT, 1982, vol. I, n? 362, págs. 588/599.

(9) Gama Cerqueira - ob. cit., vol. I, n? 267, pág. 502.

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(10) Gama Cerqueira - ob. cit., vol. I, n? 283, págs. 521/526. (11) Machado Guimarães - «Comentários ao Código de Processo Civil», Ed. Forense, vol. IV,

n!' 390, pág. 384.

(12) Ob. cit., vol. I, n!' 280, pág. 517.

(13) Gama Cerqueira - Ob. cit., vol. I, n!' 293, pág. 534,

(14) Gama Cerqueira - Ob. cit., vol. li, n!'s 670 a 674, págs. 1.069/ 1.073.

(15) Douglas Gabriel Domingues - «Marcas e Expressões de Propaganda», Ed. Forense, 1984, pág. 451.

(16) Gama Cerqueira - Ob. cit., vol. I, n? 361, pág. 587.

(17) Tavares Paes - «Propriedade Industrial», Ed. Saraiva, 1982, n!' 67, pág. 100.

(18) Ob. cit., págs. 100/101, notas n!'s 3 e 4; «RD Com.» 37/173.

(19) STF - RMS n~' 9.592, Ac. de 18-7-62, ReI. Min. Pedro Chaves, in «Rev. Forense» 203/72.

(20) STF - REC n? 95.043, Ac. de 22-6-82, ReI. Min. Oscar Corrêa, in «RT» 569/411; RHC n? 57.352, Ao. de 20-11-79, ReI. Min. Rafael Mayer, in «RT» 548/425-426; RHC n? 59.573, Ac. de 12-2-82, Min. Moreira Alves, in «RT» 56.410.

(21) STF - RHC n!' 53.120. Segunda Turma, in «RT» 480/399. No mesmo sentido: «RT» 473/333.

(22) T. A. Crim. SP - Ac. de 14.10.80, in «RT» 547/333; TJSP - Ac. de 10-8-82, in «RT» 565/51; T. A. PR - Ac 29-12-80, in «RT» 557/388. No mesmo sentido: «RT» 460/351, 446/404,477/360,481/332,483/344,487/310.

(23) T. A. Crim. SP - Ac. de 23-3-82, in «RT» 561/346.

(24) «RT» 470/369.

(25) TJSP - Ac. in «Rev. Jur. TJSP» 10/195.

(26) Ovidio A. Baptista da Silva - «A Ação Cautelar Inominada no Direito Brasileiro», Ed. Fo­rense, 1979, § 46, pág. 373.

(27) José dos Santos Silveira - «Processos de Natureza Preventiva e Preparatória», Coimbra, 1966, págs. 105/106, apud Ovidio A. Baptista da Silva, ob. cil. págs. 373/374.

(28) «Derecho Procesal Civil», EJEA, Buenos Aires, 1955, vol. m, pág. 280.

(29) «Derecho Procesal Civil», Labor, Barcelona, 1936, págs. 763/764.

(30) Ovidio A. Baptista da Silva - ob. cil., pág. 375.

(31) José Carlos Tinoco Soares - «Comentários ao Código de Propriedade Industrial», São Pau­lo, 1981, pág. 343.

A JURISPRUDÊNCIA INTEGRATIVA E O IDEAL DE JUSTIÇA

Ives Gandra da Silva Martins

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

A JURISPRUDÊNCIA INTEGRATIVA E O IDEAL DE JUSTIÇA

H.L.A. Hart, em seu polêmico «The concept of Law», procura, a partir do exame de casos concretos e próprios da estrutura legal inglesa, em que a «common law» conti­nua a desempenhar decidida influência conformadora, descobrir os fundamentos do Di­reito, assim como a razão pela qual o homem obedece a ordem jurídica posta por quem detém o poder de impô-Ia(').

Embora considere relevante o hábito de obedecer, importante o ideal de justiça, in­fluente a moral dominante, como também não despiciendos a ambição pelo poder, a segurança da ordem e o benefício da relativa certeza que a força da lei propicia, chega a duas conclusões, que, embora não originais pelo seu entrelaçamento, permitem refle­xão fecunda sobre as dimensões do Direito, como elemento intrínseco à natureza huma­na e fundamental para que o homem se realize(').

A primeira delas é de que a lei não só oferta genenca - mas não específica -proteção ao indivíduo, sendo incapaz de abranger todas as hipóteses pretendidas pelo legislador, como a relatividade de sua aplicação - mesmo para os casos que, na apa­rência, foram particularmente normados - varia em função das circunstâncias, das au­toridades executoras e principalmente das autoridades julgadoras. A lei, portanto, so­bre possuir lacunas e ser de impossível extensão a todas as situações sociais, carece de instrumental executor capaz de uniformizá-Ia de forma absoluta, sendo cada caso um caso distintO e especiaIe).

(I) «Two principal devices, at first sight very different form each other, have been used for the communication of such general standards of conduct in advance of the sucessive occasion on which they are to be applied. One of them makes a maximal and the other a minimal use of general classifying words. The first is typified by what we cal! legislation and the second by precedent. We can see the distinguishing features of these in the fol!owing sim pie non-Iegal ca­ses. One father before going to church says to his son, «Every man and boy must take off his hat on entering a church». Another baring his head as he enters the church says, «Look: this is the right way behave on such occasions» (Ed. Claredon law Series, Oxford University Press, New York, 1961, London, pág. 121).

(2) «In civil cases, a similar conflict between justice and the general good is resolved in favour of the later, when the law provides no remedy for some moral wrong because to enforce compen­sation in such cases might involve great difficulties of proof, or overburden the courts, or un­duly hamper enterprise. There is a limit to the amount of law enforcement which any society can afford, even when moral wrong has been done» (obra citada, pág. 162).

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A segunda diz respeito ao órgão que tem a última palavra sobre sua interpretação, ou seja, o Poder Judiciário. Cabendo-lhe a aplicação da lei genérica ao caso específico, sua função é, simultaneamente, de intérprete e criador da lei, posto que as pessoas en­carregadas de aplicá-Ia, sobre retirarem-na da abstração para a realidade cotidiana, dão-lhe a dimensão que lhes parece mais adequada à situação(4).

o pragmatismo de L.A.H. Hart não lhe permite posicionar-se sobre o ideal de jus­tiça, como o mais relevante elemento desta postura aplicacional do Direito, visto que sua preocupação maior está em definir as duas ordens normativas que conformam o Direito, ou seja, aquelas regulatórias do comportamento, sancionatórias ou não, e aquelas integrativas da execução do Direito, como as que definem, criam e esculpem os órgãos de sua aplicação. Aquelas são flexíveis, em razão de todos os elementos extra­jurídicos que influenciam os detentores do poder na execução ou aplicação do Direito. Estas inflexíveis, em sua concreção, posto que só pela mudança da lei ou por ruptura da ordem legal as normas de integração podem ser alteradas(').

Adaptando o pensamento de Hart a exemplo aplicável ao direito pátrio, o Supre­mo Tribunal Federal e o Tribunal Federal de Recursos, no momento, posicionaram-se, em posturas científicas distintas, no concernente à natureza jurídica das contribuições especiais, entendendo aquele que não têm natureza tributária e este que têm, pela maio­ria de suas turmas. Tais normas na aplicação do Direito, portanto, são mutáveis e ga­nharão conformação definitiva no momento da pacificação jurisprudencial(6). Nenhu­ma dúvida existe, entretanto, que os comandos constitucionais, que criaram o Supremo Tribunal Federal e compuseram-no com II julgadores e o Tribunal Federal de Recursos

(3) «On the one hand courts deciding a later case may reach an opposite decision to that in a pre­cedent by narrowing the rule extracted from the precedent, and admitting some exception to it not before considered, or, if considered, left open. This process of «distinguishing» the earlier case involves finding some legally relevant difference between it and the present case, and the class of such differences can never be exhaustively determined» (ob. cit., pág. l31).

(4) «A Supreme tribunal has the last word in saying what the law is and, when it has said it, the statement that the court was «wrong» has no consequences within the system: no one's rights or duties are thereby altered. The decision may, of course, be deprived of legal effect by legis­lation, but the very fact that resort to this is necessary demonstrates the empty character, so so far as the law is concerned, of the statement that the court's decision was wrong. Considera­tion of these facts makes it seem pedantic to distinguish, in the case of a supreme tribunal's decisions, between their finality and infallibility. This leads to another from of the denial that courts in deciding are ever bound by rules: «The law (or the constitution) is what the court say it is» (ob. cit., pág. 138).

(5) Nem por isto, Hart deixa de admitir um mínimo de ideal de justiça, ao considerar os cinco fundamentos comuns e naturais a toda a ordem jurídica, a saber: I) necessidade de proteção à vulnerabilidade humana; 2) a redução das desigualdades sociais; 3) a conformação do limitado altruísmo do ser humano, nem anjo, nem demônio; 4) a valorização dos recursos escassos de produção de bens na terra; 5) a criação de sistema sancionatório capaz de permitir o cumpri­mento das leis (ob. cit., págs. 190/195).

(6) RE n." 1 1 1.130-5 - SP - ReI.: O Sr. Ministro Aldir Passannho. Recte.: Inst. de Adm. Fi- '. nane. da Prev. e Assist. Social - lAPAS (Advs.: Cicínio Lemos Velloso e outro). Recdo.: I Calçados Wander S.A. (Advs.: Drs. Hilton Reynaldo Pires e outro).

Decisào: Não conhecido. Unânime. Segunda Turma, 14-10-86.

Ementa: Prescriçào. Contribuiçàes previdenciárias.

Período anterior à Emenda Constitucional n? 8/1977.

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com 27, possam ser contestados para se definlf se a autoridade, que seus Ministros re­ceberam, de dizerem o direito, admite negativa exegética(').

A mutabilidade jurisprudencial das primeiras e a invariabilidade das segundas são os sustentáculos do processo aplicacional do Direito, adaptando-o às realidades sociais, de forma, o mais das vezes, in traumática.

As considerações de Hart levam-nos à reflexão maior sobre a importância daquelas autoridades que dizem a forma definitiva do Direito. Leva-nos a repensar a necessidade de fortalecimento, na futura ordem constitucional, do poder a que, em última análise, é facultado o que não é 'facultado aos demais, isto é, julgar os outros poderes.

Adolfo Gabrielli, ex-Presidente da Supr~ma Corte da Nação Argentina, contava­nos, de certa feita, que em conversa mantida, em reunião social com o Presidente Vide­la, à época em que o Parlamento platino estava posto em recesso, o contestado Chefe do Executivo lembrara-lhe que os dois representavam os Supremos Poderes da Nação. A que ele retrucou: «Não, Excelência: eu represento, neste momento, o único poder ca­paz, dentro da ordem legal, de representar a Nação, pois posso julgá-lo e, se houver motivos, afastá-lo de suas elevadas funções, sem romper a ordem, e Vossa Excelência apenas poderá afastar-me, violentando o Direito».

Firmou-se a jurisprudência no sentido de que as contribuições previdenciárias, concernentes a perlodo anterior à vigência da EC n!' 8/1977, possuíam caráter tributário e, em conseqiiência, a prescrição sobre elas incidente é a qiiinq(ienal» (Dl de 14-10-86, pág. 22157) (os grifos são nossos).

«Apelação Clvel n!' IIJ .287 - SP (Reg. n!' 874. I IJ) - ReI.: O Sr. Min. Américo Luz. Remte.: Juízo de Direito da I: Vara de Jacareí - SP. Apte.: IAPAS/BNH. Apdo.: Bonanno Cruz e Cia. LIda. Advs.: Drs. Paulo de Oliveira Costa e outro.

Ementa: Execução fiscal. Contribuições para o FGTS.

Prescrição. Sua consumação no caso, pois entre a notificação do débito e o ajuizamento da execução transcorreu, duas vezes, o prazo previsto no art. 174 do CTN.

Honorários advocatícios razoavelmente arbitrados, em face do valor da dívida exeqiienda e do que dispõem os arts. 3?, alíneas, e 4? do ar!. 20 do CPC.

Apelação improvida.

Acórdão: Vistos e relatados estes autos, em que são partes as acima indicadas.

Decide a sexta Turma do TFR, por unanimidade, negar provimento ao apelo e á remessa oficial, na forma do relatório e notas taquigráficas constantes dos autos que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

Custas como de lei.

Brasília, 3-9-1986 (data do julg.)>> (Dl de \3-11-1986, pág. 22056).

(7) Os artigos 118 e 121 da EC n? 1/69 têm a seguinte dicção:

«Ar!. 118. O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da União e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de onze Ministros.

Parágrafo único. Os Ministros serâo nomeados pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos maiores de 35 anos, de notável saber jurídico e reputação ilibada.»

«Ar!. 121. O Tribunal Federal de Recursos compõe-se de 27 MinIstros vitalícIOS, nomea­dos pelo Presidente da República, sendo 15 destes Juízes Federais, indicados em lista tríplice pelo próprio Tribunal; 4 dentre membros do Ministério Público Federal; 4 dentre advogados que satisfaçam os requisitos do parágrafo único do artigo 118; e 4 dentre Magistrados ou membros do Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

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Embora em tom informal e em reunião social, em que certa descontração se fizera, a observação pertinente, corajosa e não desrespeitosa do Chefe do Judiciário argentino exteriorizara, em verdade, o perfil real daqueles que têm a obrigação de retirar o Direi­to de sua formulação abstrata para a concreção do cotidiano(8).

A evidência, tais considerações levam-nos à permanente discordância que se colo­ca, na Ciência do Direito, entre os formalistas, neles incluídos os conceptualistas, e os jusnaturalistas, aqueles defendendo uma ordem perfeita e orgânica, embora, em sua versão mais radical, com desconsideração ao conteúdo ético necessário ao regramento social, e estes procurando encontrar o ideal de justiça inerente à natureza humana nas normas produzidas(9).

É interessante, todavia, notar que mesmo os formalistas, que transplantaram para o Direito o positivismo filosófico, que tanto encantou gerações de cientistas sociais no século passado, inclusive no Brasil, enfrentaram problemas insolúveis na formulação de seu pensamento extratificado( '0).

Kelsen, por exemplo, na busca de um campo desconta minado para o Direito, dese­nha suas normas, que pretende purificadas pelo isolamento dos elementos pré e meta­jurídicos, a partir de um momento inicial e um momento final em que a pureza se des­faz.

No momento inicial, a busca de uma norma pressuposta, pensada, obriga-o a ofer­tar conteúdo não necessariamente jurídico àquela que precede a primeira lei escrita. Não obstante seu esforço para reduzir a norma fundamental a mera categoria ontogno­seológica, a necessidade de reconhecê-la na base do sistema constitucional não se coa­duna com a tentativa de pretendê-la desprovida de conteúdo ético-jurídico. Em ver­dade, não há norma fundamental que conforme a primeira norma escrita, que não re­presente a projeção dos elementos fundamentais dessa ordem que se cria e tais elemen-

§ I~' A nomeação só se fará depois de aprovada a escolha pelo Senado, salvo quanto a dos Juízes Federais indicados pelo Tribunal.

§ 2? A Lei Orgânica da Magistratura Nacional disporá sobre a divisão do Tribunal, po­dendo estabelecer a especialização de suas Turmas e constituir, ainda, órgão a que caibam as atribuições reservadas ao Tribunal Pleno, inclusive a de declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo.»

(8) Quando Shulgi (2094-2036 A.C.) codificou o Direito Elamita, código que serviu de base para o sistema jurídico formalizado por Hamurabi (1792-1750 A.C.), já revelou o perfil valorizado dos aplicadores da lei.

(9) Jeremy Bentham formula teoria conciliatória de um «mínimo ético», que embasa todos os sis­temas jurídicos, porém de natureza muito mais circunstancial e histórica do que inerente ao próprio ser humano (<<Uma introdução aos princípios da moral e da legislação», Ed. Abril, 1974, São Paulo).

(10) José Ca lo~ Graça Wagner, em inúmeros de seus artigos veiculados pelo jornal «O Estado de S Paulo» e 'dornal da Tarde», tem entendido que a desorganização política, econômica e social do País, na atualidade, decorre da permanência do pensamento positivista na «praxis» brasileira. De forma restrita, mantém a crítica no estudo «Os partidos políticos», publicado pela Revi,ta de Direito Constitucional e Ciência Política da Editora Forense, número espe­cial, 1986, págs. 349/410.

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tos são necessariamente jurídicos e contaminados pelas influências das demais ciências sociais( ").

Norberto Bobbio, em sua tentativa de conciliar as convicções jusnaturalistas acadê­micas com o encanto das teorias positivistas, ao ponto de pretender dividir o estudo do Direito em 3 compartimentos estanques, não deixa de reconhecer que as ciências sociais estão de tal forma interpenetradas que a pureza desejada pelo mestre de Colônia e de Viena é impossível(12). O próprio Kelsen reconhece a dificuldade, admitindo que a pu­reza pretendida pressuporia estabilidade social de tal nível que as regras fluiriam natu­ralmente( 13).

O segundo momento da dificuldade kelseniana reside no papel da jurisprudência, mais do que nas dificuldades que o Direito internacional oferta à categoria das normas primárias e secundárias, em face da relatividade das sanções neste campo de concreti­tude jurídica.

Apesar de desvestir sua norma pura de qualquer conteúdo ético, posto que para o Direito conceitos fluidos como justiça, bem comum, etc., são despiciendos e pertinentes às outras áreas do conhecimento, reconhece que a norma pura sofre, em sua aplicação pelo Poder Judiciário, as adaptações pertinentes à realidade, utilizando este de força discricionária de adequação vinculada a fatores que não são necessariamente

(11) «Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efectivamente estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais; e mediatamente se refere à ordem coercitiva criada de acordo com essa Constituição, também eficaz em termos globais, enquanto fundamenta a validade da mesma Constituição e a ordem coercitiva de acordo com ela criada. A norma fundamental não é, portanto, o produto de uma descoberta livre. A sua pressuposição não se opera arbitrariamente; no sentido de que temos a possibilidade de escolha entre diferentes normas fundamentais quando interpretamos o sentido subjetivo de um acto constituinte e dos actos postos de acordo com a ConstituiçãO por ele criada como seu sentido objectivo, quer dizer: como normas jurídicas objectivamente válidas. Somente quando pressuponhamos esta norma fundamental referida a uma Constitui­ção inteiramente determinada, quer dizer: somente quando pressuponhamos que nos devemos conduzir de acordo com esta Constituição concretamente determinada, é que podemos inter­pretar o sentido subjectivo do acto constituinte e dos actos constitucionalmente postos como sendo o seu sentido objectivo, quer dizer, como normas jurídicas objectivamente válidas, e as relações constituídas através destas normas como relações jurídicas» (<<Teoria Pura do Direi­to», Hans Kelsen, Ed. Armênio Amado, 4~ ed., 1979, Coimbra, págs. 2771278).

(12) «Teoria das Formas de Governo», Ed. UnB, 1976.

(13) «E isto sucede particularmente na nossa época em que a guerra mundial e as suas conseqüên­cias fizeram verdadeiramente saltar dos eixos, em que as bases da vida social foram profun­damente abaladas e, por isso, as oposições dentro dos Estados se aguçaram até ao extremo li­mite. O ideal de uma ciência objectiva do Direito e do Estado só num período de equilíbrio social pode aspirar a um reconhecimento generalizado. Assim, pois, nada parece hoje mais extemporâneo que uma teoria do Direito que quer manter a sua pureza, enquanto para outras não há poder, seja qual for, a que elas não estejam prontas a oferecer-se, quando já se não tem pejo de alto, bom som e publicamente reclamar uma ciência do Direito político e de exi­gir para esta o nome de Ciência «pura», louvando assim como virtude o que, quando muito, só a mais dura necessidade pessoal poderia ainda desculpar» (os grifos são nossos) (<<Teoria Pura do Direito», Hans Kelsen, 4:' ed., 1979, Ed. Armênio Amado, págs. 10/11).

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jurídicos('4). Sem convencer, entende ser inerente ao processo aplicacional do Direito tal flexibilidade decisória, que não contamina a norma que lhe diz respeito('S). Os fato­res, a nosso ver, extrajurídicos que terminam por influenciar a decisão levam à univer­salidade do Direito, como a verdadeira ciência de Integração Social, representando sua contaminação não a desvalorização da ratio legis ou da norma, mas sua valorização, visto que não constitui a postura elegante, distante e mutiladora do genial pensador, a representação da escultura maior do -Direito, que ganha sua dimensão mais dramática, porém mais autêntica, na realização jurisprudencial('6).

As perplexidades insolúveis dos formalistas, de certa forma, são equacionadas nas formulações jusnaturalistas, principalmente após a II Guerra Mundial, em que mestres, como Messner, Lec\ercq, Hervada, Izquierdo, Gomez, Cassin, Puy, ofertaram perfeito contorno do Direito, à luz de racional integração entre o Direito Positivo e o Direito Natural(I7).

(14) «Como o processo legislativo, especialmente nas democracias parlamentares, tem de vencer numerosas resistências para funcionar, o Direito s6 dificilmente se pode adaptar, num tal sis­tema, às circunstâncias da vida em constante mutação. Este sistema tem a desvantagem da falta de flexibilidade. Tem, em contrapartida, a vantagem da segurança jurídica, que consiste no facto de a decisão dos Tribunais ser até certo ponto previsível e calculável, em os in­divíduos submetidos ao Direito se poderem orientar na sua conduta pelas previsíveis decisões dos Tribunais. O princípio que se traduz em vincular a decisão dos casos concretos a normas gerais, que hão de ser criadas de antemão por um 6rgão legislativo central, também pode ser estendido, por modo conseqüente, à função dos 6rgãos administrativos. Ele traduz, neste seu aspecto geral, o princípio do Estado de Direito que, no essencial, é o princípio da segurança jurídica. Em completa oposição a este sistema encontra-se aquele, segundo o qual não existe tampouco um 6rgào legislativo central, tendo os Tribunais e os 6rgãos administrativos de de­cidir os casos concretos segundo a sua livre apreciação. A sua justificação está no suposto de que nenhum caso é perfeitamente igual a outro, de que, portanto, a aplicação de normas jurídicas gerais que predeterminam a decisão judicial ou o acto administrativo, e, assim, im­pedem o 6rgão competente de tomar na devida conta as particularidades do caso concreto, pode conduzir a resultados insatisfat6rios. É o sistema da livre descoberta do Direito, sistema que já Platão propôs para o seu Estado idea!>, (Hans Kelsen, ob. cit., pág. 345).

(15) «Se o 6rgão, perante o qual se apresenta o caso concreto a decidir, deve dar uma decisão «justa», ele somente o pode fazer aplicando uma norma geral que considere justa. Como uma tal norma geral não foi já criada por via legislativa ou consuetudinária, o 6rgão chama­do a descobrir o Direito tem de proceder pela mesma forma que um legislador que, na for­mulação das normas gerais, é orientado por um determinado ideal de justiça. Como diferen­tes legisladores podem ser orientados por diferentes ideais de justiça, o valor de justiça por eles realizado apenas pode ser relativo; e, conseqüentemente, não pode ser menos relativa a justiça da norma geral pela qual se deixa orientar o 6rgão chamado a decidir o caso concreto. Do ponto de vista de um ideal de justiça - apenas possível como valor relativo - a diferen­ça entre o sistema da livre descoberta do Direito e o sistema da descoberta do Direito vincula­da a lei ou ao direito consuetudinário reside no facto de o lugar da norma geral de Direito Positivo e da norma geral do ideal de justiça que orienta o legislador ser ocupado pela norma geral do ideal de justiça do 6rgão chamado à descoberta do Direito» (Hans Kelsen, ob. cit., pág. 346) (os grifos são nossos).

(16) A tese foi mais amplamente exposta em nosso livro «Teoria da Imposição Tributária», Ed. Saraiva, 1983.

(17) Johannes Messner (<<Ética Social, política y economica a la luz dei derecho natural», Rialp, 1967); Jacques Leclercq (<<Leçons de Droit Nature!>" Ed. Wesmael, Charlier, Namur, Belgi­que); Miguel Sancho Izquierdo e Javier Hervada (<<Compendio de Derecho Natural», Ed. Eunsa, 2 vols., 1980); Rafael Gomes Perez (<<Represi6n y Libertad», Eunsa, 1978); René Cas­sin (<<Human Rights since 1945: An Appraisa!>" The Great Ideas Today, 1971, Ed. Britanni­cal; e Francisco Puy (<<Lecciones de Derecho Natura!>" Ed. Porto, Santiago de Compostila, 1970).

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o Direito Natural, afastada a infeliz corrente dos racionalistas, que, ao pretende­rem considerar normadas pelo Direito Natural todas as situações sociais, criaram evi­dente conflito entre o Direito Natural e o Positivo, é conjunto de reduzido número de normas essenciais que cabe ao Estado, esculpidor das leis, apenas reconhecer.

O Direito Natural, na visão de Johannes Messner, que formula concepção triparti­da do Direito, mas com conteúdo unitário, vale dizer, não admitindo que o ato de va­lorar seja neutro, como Reale ou Goldsmith admitiram, em suas concepções tridimen­sional ou trialista, assim como na visão de Puy, Izquierdo e Hervada, possui normas essenciais, que regulam a ordem social, a qual só se justifica no plano do Direito, se for regrada de forma justa('R).

Assim sendo, o direito à vida, por exemplo, é direito inerente ao ser humano que o Estado não cria, mas apenas reconhece, posto que cada ser humano nasce com ele. Tal direito é intrínseco a todo homem, desde o momento da concepção(I9).

A função do Estado, portanto, para tais direitos, que são essenciais, reduz-se a reconhecê-los e nada mais, sendo que a violação dos mesmos, sobre tornar a ordem jurídica injusta, diminui também sua permanência no tempo, pela natural reação dos subordinados à ordem social iníqua('").

Não é sem razão que René Cassin, um dos autores da declaração universal dos di­reitos do ser humano, jusnaturalista convicto afirmava:

«não é porque as características físicas do homem mudaram pouco desde o começo dos tempos verificáveis que a lista de seus direitos fundamentais e li­berdades foi idealizada para ser fixada permanentemente, mas em função da crença de que tais direitos e liberdades lhe são naturais e inatos» (<<Human Rights since 1945: An Appraisal», The Great Ideas 1971, Ed. Britannica, pág. 5).

É interessante notar que todas as Constituições modernas reproduzem, no capítulo das garantias individuais, direitos que são naturais, supraconstitucionais, postados, pois, acima do poder criativo do Estado.

Os direitos essenciais, por outro lado, são imutáveis, razão pela qual as ordens jurídicas que os violentam, sobre durarem menos, quando alteradas, permitem seu rea­parecimento, em termos de sua essencialidade permanente, naquela que lhes sucede.

A par de tais direitos, há aqueles não essenciais, mutáveis, pertinentes a cada período histórico, direitos estes que cabe ao Estado criar. Tal é o campo específico de atuação do Direito Positivo, que, à evidência, não se conflita com o Direito Natural, mas, ao contrário, propicia a integração, que dará tanto mais alicerce à ordem jurídica

(18) Miguel Reale, na coletânea de estudos publicada pela Ed. Saraiva, 1985 (<<Direito Natural e Direito Positivo»), assim como nos livros «Lições Preliminares de Direito» (Ed. Bushatsky, 1973) e «Filosofia do Direito» (Ed. Saraiva, 1957) entende que o ato de valorar, em sua tridi­mensionalidade dinâmica, esgota a função do valor, ao lado do fato e da norma, ao contrá­rio de Messner que acrescenta à objetividade axiológica de agir a subjetividade de fazê-lo bem.

(19) O «Caderno n? I de Direito Naturab> (Ed. CEJUP, 1985) hospedou estudos de Luis Carlos de Azevedo, Walter Moraes e nosso sobre aspectos fenomênicos concernentes à composição da lei natural e lei positiva, todos os três autores entendendo que os direitos fundamentais pertinem ao homem e não são oferendas do Estado.

(20) Estendemo-nos sobre a matéria no estudo «Uma teoria de alcance sobre a legitimidade do po­der» (págs. 38/51 da Revista de Direito Constitucional e Ciência Política n? 2, Editora Fo­rense, 1986).

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quanto mais esta interpenetração das normas reconhecidas e das normas de criação possível se fizere').

Temos entendido que o campo dos direitos naturais essenCiaiS poderá crescer na medida em que a Ciência Jurídica avançar, detectando com a mesma perfeição das Ciências Exatas, aquelas leis naturais que regem os fenômenos químicos, físicos e bio­lógicos. O homem, todavia, deverá trabalhar para que o avanço se faça, aprofundar-se em seu conhecimento próprio, campo que estaria no estudo de outra ordem de coman­dos superiores não pertinente ao presente estudo, que é o da lei eterna(22).

Para efeitos do presente estudo, destinado à edição especial de Revista do Tribunal Federal de Recursos e às vésperas da elaboração de uma nova Carta Magna, tais consi­derações perfunctórias objetivam apenas realçar a importância que o Poder Judiciário assume, em uma ordem social justa, vale dizer, a necessidade de valorização dos pode­res judicantes, na futura Constituição para que aquelas autoridades encarregadas de re­tirarem a norma da abstração possam ter a força e os recursos necessários para concretizá-la.

(21) «Aqui cabe uma pequena consideração. Tem-se, no campo do Direito, contraposto a positivi­dade ao naturalismo, sem se perceber que, nos princípios essenciais, isto é, aqueles princípios jurídicos por necessidade, não acidentalidade, os campos da positividade normativa e do jus­naturalismo se integram.

As Constituições dos países desenvolvidos, quando dedicam especial capítulo às garantias individuais e aos direitos humanos, hospedam, em grande parte, princípios de Direito Natu­ral, que ganham foros de positividade jurídica, em linha de leis naturais humanas por necessi­dade.

Não há, pois, porque distinguir a positividade jurídica das leis naturais por necessidade, posto que não há formulações humanas e naturais opostas, mas compostas.

É bem verdade que não poucas vezes, o ordenamento jurídico de um país nega o dese­nho de tais direitos preexistentes, o qual passa a ser manejado por tiranos ou ditadores, na concepção moderna, mas tais ordenamentos não resistem muito tempo, por terem sua própria destruição intrínseca, desde o nascedouro, ou seja, a antinaturalidade. Platão, Aristóte­les, Políbio, Hobbes, Bodin, Montesquieu, Vico fartamente estudaram o problema das for­mas de governo injusto, não desconhecendo a semente de autodestruição que o ordenamento jurídico antinatural tem em seu bojo.

Não é, entretanto, este campo que gostaríamos de enfocar, mas o terreno próprio das normas jurídicas por acidentalidade, cuja opção formal pode ser variada, sem -afetar a área pertinente ao Direito Natural.

Os jusnaturalistas racionais entendiam que tal campo também não oferecia alternativas, sendo sempre possível a escolha da formulação legal que corresponderia à exata dimensão po­sitiva do Direito Natural, em contraposição aos cientistas do Direito Natural, que viam em tal positividade forma de complemento do ordenamento jurídico necessário a sua aplicação à sociedade.

A evidência, a postura tradicional, ofertando amplo espaço de atuação à positividade acidental, permitia uma composição plenamente entre o Direito Natural e o Direito Positivo, como, por exemplo, Francisco Puy (<<Lecciones de Derecho Natural», Ed. Porto, Santiago de Compostila, 1970) ensinava (nosso estudo inserto no «Caderno de Direito Natural n? 1», Ed. CEJUP, 1985, págs. 24/25).

(22) No referido esboço dissemos ainda: «O que nos parece possível encaminhar, todavia, em ten­tativa de conciliação de pensamento entre as duas correntes do Direito Natural e aquela dos culturalistas, que não se limitam ao estudo do fenômeno da norma pura na busca de um ideal de justiça, é a idéia de que nem sempre viável surge a descoberta de todas as leis natu-

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o ato de decidir, pela sua relevância, não pode, por outro lado, ficar na distante frieza da norma pura ou do formalismo conceitual, mas, contrariamente, deve repre­sentar o momento maior e mais dramático de realização do Direito. E para tais atos, definitivos na conformação e permanência da ordem jurídica, a distinção entre os direi­tos, que são inerentes ao homem - e que devem ser reconhecidos pelo Estado no for­mular a lei e pelo Magistrado ao aplicá-la - e aqueles outros circunstânciais de convi­vência, passa a ser o elemento crucial para que a ordem social possa permanecer justa ou vir a ser justa, se nascida injusta, pela ação saneadora da jurisprudência(23).

Acreditamos que a tradição do Direito brasileiro e a formação dos nossos Magis­trados, assim como a consciência dos futuros constituintes, l~varão o País a produzir uma carta soberana em que a relevância da atuação autonôma, independente e altanei­ra do Poder Judiciário, seja a nota dominante.

rais que regem o Universo. Mesmo no campo das Ciências Exatas ou Biológicas conseguimos apreender apenas um conjunto limitadíssimo de leis naturais, sendo compreensível que a com­plexidade da hospedagem, no campo das Ciências Sociais,é consideravelmente maior e, por­tanto, com margem de erro infinitamente superior.

Por essa linha de raciocínio, gostaríamos que meditassem todos se a melhor postura científica não estaria em aceitar a posição dos jusnaturalistas clássicos (princípios por necessi­dade), que não se opõem à positividade jurídica, sem afastar a escola racionalista, que en­tende haver leis naturais inclusive para os comandos por acidentalidade. O instrumental perti­nentemente utilizado pelos primeiros oferta-nos maior segurança, mas não se pode afastar, pela inexistência de mecanismo captador dos segundos, a idéia de que o Direito deva e tenha que estar necessariamente voltado para a justiça e que o ideal justiça seja, fundamentalmente, desiderato das, leis por necessidade, quanto daquelas por acidentalidade.

Eis porque, em rigorosa posição de pesquisa e indagação, que deve ser sempre própria de todos os juristas, não se pode afastar, conscientemente, o que ainda não se descobriu, posto que a busca de um ideal de justiça, pleno e incontrastável, é perseguido por jusnaturalistas clássicos, racionalistas ou culturalistas» (<<Caderno n? I de Direito Natura!», Ed. CEJUP, 1985, págs. 25/26).

(23) Luís Carlos de Azevedo leciona: «E, agora, quanto aos Juiz encarregado de decidir e julgar as causas, segundo as leis dispostas pela autoridade: também ele se acha sob o impacto do Direito Natural, quando se afirma que este é o fundamento do Direito Positivo. Assim, se a lei positiva contiver injustiça flagrante, não poderá o Juiz determinar a sua execução. Caber­Ihe-á resistir; ou deixar o cargo, porque não poderá pactuar com aquilo que a sua razão e consciência repudiam» (<<Caderno de Direito Natural n? I», Ed. CEJUP, 1985, pág. 35).

CONSIDERAÇÕES SOBRE A CAUSA DE PEDIR NA AÇÃO RESCISÓRIA

José Carlos Barbosa Moreira

JOSÊ CARLOS BARBOSA MOREIRA

CONSIDERAÇÕES SOBRE ACAUSA DE PEDIR NA AÇÃO RESCISÓRIA

I. Os nove incisos do art. 485' rdo Código de Ptotesso' Civil indicani, em enume­ração taxativa C), os fundamentos pelos quais se pode pleiteái: a rescisão de sentença de mérito, trânsito em julgado. :Para q'ue a Ação Rescisória seja admissível, cumpre que o autor invoque um (ou mais de um) desses fundamentos; para que o pedido de rescisão seja; procedente, é necessário que pelorrienos um deles realmente exista,mostrando-se de todo irrelevante, para tal fim, a eventual existência de fundamento contemplado na lei, mas não invocado pelo autor (l); Observe-se que o número de fundamentos típicos é maior que ode incisos:, alguns destes, na verdade, prevêem ,conjuntamente dois ou mais fundamentos: é o caso, porexemplo,do inciso I, que ,menciona três (prevarica­ção,concuSsão e corrupção do, Juiz que proferiu a sentença rescindenda)' e do inciso IlI, que aponta dois (dolo da parte vencedora e ,colusão (l!1tre as partes in fraudem legislo

, A cada fundamentO típico' (nãO a cada inciso) corresponde uma possível causa de pedir. O póntoé importante por vários ângulos:dacórreta identificação da causa pc;téndi(ou das causâe petendi), com efeito, depende a solução de questões de grande interesse prático. Quandoalguém pedearescisão de'senteliça com invocação de dois ou mais fundamentós,na realidade está propondo duas ou mais Ações Rescisórias cumula­das -'- o que pode vir a ser drcisivo,entre outras coisas, para aferir-se o cabimento de recurso contra o Acórdão que julgar o pedido, à luz de cada fundamento(').

1 , _ "

O conceito de causa de. pedir tem, sido expressado; na doutrina processual, por meio de fórmulas nem sempre coincidentes. Definições doutrinárias; quando não bali­zadas diretamente pela lei, repousam, como é notório, ao menos em certa medida, so-

(I) Ar taxatividade é communis opinio na dOl!lrina: Pontes de Miranda, ,«Comentário~ ao Código de Processo Civil» (de 1973), T. VI, Riode)aneiro, 1974, pág. 3.31; Barbosa Moreira, «Co­mentários ao Cqdigo de ProcessoCivjl», vol. V, y ed., Rio .de Janeiro, 1985, págs. 154/5; Humberto Theodoro Júnior, «Curso de Direito Proc,essual Civil», 2~ ed., Rio de Janeiro, 19116, ,vol. I, pág. 682; Rogério Lauria Tucci, «Curso de Direito Processual», São Paulo, 1976, pág. 180; Vicente Greco Filho, «Direito Processual Civil Brasileiro», 2? vol., São Paulo, 1984, pág. 368.

(2) Correto o Acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 3~5-1984, AR n? 1.037, in Diário da JU$tiça de 22-8-1986, pág. 14.519, " .

(3) Vide, ao propósito, Barbosa Moreira; <<Julgamento colegiado e pluralidade de causas de pe­dir»,iíi «Revista de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, vol. I, págs. 17/18, e in «Temas de Direito Processua/», Terceira Série, São Paulo, 1984, pág. 134. .

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bre uma componente convencional, a cujo respeito é ocioso discutir em termos de con­traposição entre verdade e erro. Mais frutífero parece fundar a escolha da convenção básica no critério da utilidade: será preferível o conceito que permita explicar com maior clareza o fenômeno jurídico de que se cogita. Vejamos como se põe o problema na matéria de que nos estamos ocupando.

2. Quem propõe ação quer que o órgão judicial reconheça ou produza, mediante a sentença, determinado efeito jurídico. Ora, todo efeito jurídico nasce da incidência de uma norma de direito sobre um fato (4). Ao Juiz compete aplicar a norma ao fato e enunciar sua conclusão sobre o efeito pretendido pelo autor. O mecanismo, bem se sabe, é a rigor mais complexo do que 'sugere essa esquemática descrição: a aplicação da norma não tem o caráter automático que em tempos idos se lhe atribuía, envolvendo, como envolve, operações valorativas e opções políticas (no sentido mais amplo da pala­vra) por parte do aplicador. Feita a ressalva, todavia; o exposto acima reproduz em substância, com razoável fidelidade, o que acontece na prática.

Norma e fato são, destarte, os dois elementos essenciais com que lida o Julgador. Depende de uma e de outro que se reconheça ou produza o efeito desejado: se este deve ser reconhecido ou produzido é porque (a) existe norma que o atribui ao fato do­tado de tais ou quais características; e (b) aconteceu fato cujas características coincidem com as do modelo normativo.

Em sistemas jurídicos do tipo do nosso, incumbe ao Juiz identificar a norma ade­quada, interpretá-la e aplicá-la, independentemente da respectiva invocação pelo autor; não lhe é dado, entretanto, levar em conta o fato supostamente gerador do efeito pre­tendido, senão quando o autor o haja invocado. Antes de ser utilizado pelo órgão judi­cial como fundamento da decisão, o fato é utilizado pelo autor como fundamento do pedido. A esse fato, visto precisamente enquanto fundamento do pedido, é que, em nosso entender, se deve aplicar a denominação de causa de pedir('). Ela designa, pois, o fato in statu assertionis, tal qual narrado - e, nessa perspectiva, sempre existente: a ninguém é lícito pleitear providência jurisdicional sem indicar o fato em razão do qual lhe parece que ela haja de ser concedida.

3. Do que ficou dito infere-se que as questões concernentes à causa petendi são consideradas, em qualquer caso, questões de fato, jamais questões de direito. A dife­renciação entre as duas classes, como todos sabem, é praticamente relevante de vários pontos de vista: as quaestiones iuris podem ser livremente apreciadas de ofício pelo Juiz, as quaestiones facti ner' sempre; aquelas não se subordinam ao mesmo regime de preclusões aplicável a estas (por exemplo: art. 517 do Código de Processo Civil); certos recursos, como o extraordinário, e incidentes, como o da uniformização da jurispru­dência, só podem versar sobre questões de direito - e assim por diante. Pois bem: no tocante à causa de pedir, quaisquer questões concebíveis submetem-se à disciplina pró­pria das questões de fato.

(4) CL Pontes de Miranda, «Tratado de Direito Privado», T. I, Rio de Janeiro, 1954, pág. 17: «a eficácia juridica provém da juridicização dos fatos (= incidência da regra juridica sobre os fa­tos, tornando-os fatos juridicos»). E ainda: «Toda eficácia juridica é eficácia de fato juridico; portanto, da lei e do fato, e não da lei ou do fato». Desnecessário precisar que a alusão do nosso texto a «um fato» deve ser entendida como alusão a «um fato ou a um conjunto de fa­toS».

(5) «La causa delJ'azione (causa petendi) e il fatto giuridico che I'attore pone a fondamento della sua domanda», ensinava Liebman, «Manuale di Diritto Processuale Civile, vol. I, 4~ ed., Mi­lão, 1980, pág. 173. CL, ainda no inicio do século, Zanzucchi, «Nuove domande, nuove ecce­zioni e nuove prove in appello», Milão, 1916, pág. 336: «La causa petendi ( ... l e quel fatto o complesso di fatli cile e necessario e sufficiente a dare la ragione della mia pretesa».

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Semelhante proposlçao é suscetível de despertar perplexidades com referência a mais de um fundamento previsto nos incisos do art. 485 do estatuto processual. É que, em vários deles, a lei se vale de conceitos jurídicos: prevaricação, concussão, corrup­ção, impedimento, incompetência absoluta, coisa julgada, etc. Apurar, V.g., se o Juiz da sentença rescindenda cometeu crime de prevaricação, ou se era absolutamente in­competente, pode exigir que se enfrentem e resolvam problemas relacionados com a in­terpretação de textos legais, com a respectiva vigência ou legitimidade constitutucional, e outros do gênero. Gritante entre todas é a hipótese do inciso V do art. 485, onde se diz rescindível a sentença de mérito que «violar literal disposição de lei»: deixando de lado, no momento, dúvidas atinentes à propriedade técnica da fórmula ("), pode soar na verdade estranho - forçoso reconhecê-lo - que se haja de enxergar questão de fato na pergunta: violou a sentença rescindenda «literal disposição de lei»? E tanto mais quanto se insiste, com acerto, em que apenas interessa, aí, o ius in thesi, a norma jurídica em si, não o resultado de sua aplicação in concreto (').

4. Socorre-nos, neste passo, a distinção entre dois possíveis modos de encarar a contraposição entre quaestiones iuris e quaestiones facti. Numa primeira aproximação, baseia-se o critério discretivo, pura e simplesmente, no objeto da questão - ou, se se preferir, na matéria sobre a qual ela versa. Assim, por exemplo, será classificada como de direito a questão de saber se torna nula ou anulável a venda feita por ascendente a descendenté a falta do consentimento expresso dos outros descendentes (Código Civil, art. 1.132), ao passo que se considerará de fato a questão de saber se os outros descen­dentes, in casu, expressaram ou não seu consentimento.

Acontece, no entanto, que, ao descrever a situação ou o episódio de cuja configu­ração in concreto surgirá tal ou qual efeito jurídico, a norma utilize na descrição um (ou mais de um) elemento que, longe de inscrever-se no plano da pura facticidade, já expressa o resultado de anterior fenômeno jurídico, por sua vez redutível à conjugação de outra norma com situação ou episódio que nela se previa como capaz de produzir este ou aquele efeito jurídico. Semelhante módulo pode (e costuma) reproduzir-se em cadeia, nada impedindo, em tese, que a reprodução se estenda ad infinitum.

Ora, se em determinado momento se cuida de saber se deve ser aplicada a norma N, tem-se de tratar de maneira homogênea todos os pressupostos da respectiva incidên­cia, quer se reduzam a dados puramente fáticos, quer não. Do ponto de vista funcional, quaisquer questões relacionadas com tais pressupostos serão consideradas como quaestiones facti e sujeitar-se-ão ao regime legalmente estabelecido para essa classe de questões.

5. A precedente observação nada tem de original. Mais de uma vez já se pôs em evidência a possibilidade de funcionar como quaestio facti uma questão que, olhada ex­clusivamente em seu objeto, mereceria inclusão entre as quaestiones iuris.

Vamos limitar-nos a recordar um exemplo (8). Discutiu-se na Itália, em certa épo­ca, se a prorrogação legal da locação, na pendência do processo, modificando o valor da causa, justificava ou não o deslocamento da competência. A jurisprudência da Corte

(6) Vide, ao propósito, Pontes de Miranda, «Comentários» cit., T. VI, págs. 288 e segs.; Barbosa Moreira, «Comentários» cit., vol. V, pág. \32.

(7) Pontes de Miranda, «Comentários» cit., T. VI, pág. 309.

(8) Colhido em Liebman, Proroga lega/e della locazione in corso di causa e competenza por valore, nota a Acórdão da Corte di Cassazíone, in Rívista di Diritto Processua/e, vol. VIII (1953), parte 11, págs. 167/9, e in Problemi dei Processo Civi/e, Nápoles, s/d, págs. 467/8.

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di Cassazione fixou-se no sentido afirmativo. De acordo com a regra do art. 5? do Codice di procedura civile, são irrelevantes, no tocante à competência, as modifica­ções do estado de fato supervenientes à propositura da ação; entendia a Corte que a prorrogação legal da locação, alterando a posição das partes a respeito do objeto da controvérsia, constituía modificação do estado de direito, e por isso, a contrario sensu, repercutia na competência.

A solução foi criticada pela melhor doutrina. Explicou-seque, para o fim em vis­ta, só representaria modificação do estado de direito a produzida por uma lei que mu­dasse os limites ratione valoris da competência ou os critérios estabelecidos para fixar o valor da causa. Diversamente, qualquer modificação da relação litigiosa, fosse qual fosse a respectiva origem, devia reputar-se atinente ao estado de fato, compreendido como o conjunto das circunstâncias que, segundo a lei, são relevantes para a determi­nação da competência. Nada importa - sublinhou-se - que essas circunstâncias, con­sideradas em si mesmas, sejam modalidades ou características de' uma relação jurídica e, por isso, elementos da situação de direito existente entre as partes: na aplicação das regras de competência, elas representam o dado de que se há de, partir para escolher o Juiz competente. Tampouco importa que a modificação de tais circunstâncias seja pro­duzida pela lei,ou por qualquer outro evento: será sempre modificação do dado, isto é, do estado de fato a que se devem aplicar as aludidas regras. Ora, a lei que prorroga a locação limita-se a alterar a duração do contrato e, por conseguinte, as circunstâncias de fato à luz das quais se fixa o valor da causa (9). Em semelhante perspectiva, toda questão suscitável acerca da prorrogáção legal da locação, ainda que a respectiva solu­ção dependesse do exame da lei, funcionaria como quaestio fac ti e teria de submeter-se ao regime .próprio dessa classe de questões.

6. É exatamente o que sucede, mutatis mutandis, com a violação de disposição legal, enquanto fundamento do pedido de rescisão, conforme o art. 485, inciso V, do Codigo de Processo Civil. Claro está que,para averiguar se o fundamento existe, e, portanto, se a sentença deve ser rescindida, o órgão julgador tem de partir da análise da lei que d autor aponta como violada, e apreciar questões qUe, em si mesmas, à luz do respectivo objeto, seriam classificáveis como quaestiones iuiis~ Ele b fará, porém, com a exclusiva finalidade de saber se há de aplicar ou não o próprio art. 485,n? V, rescindindo ou não a sentença. No caso afirmativo, a violação da lei, dada como exis­tente, será o, fato em que se fundará a rescisão. No processo da rescisória, portanto, funcionam como quaestiones facti, e assim se devem tratar, quaisquer questões que se necessite apreciar para apurar se foi ou não violada a lei a.que se refere.o autor.

Raciocinio análogo caberá com relação a todos os outros incisos do art. 485 que apresentem estrutura semelhante. Não sofre dúvida, V.g., que para saber se terá ocorri­do ofensa à coisa julgada (inciso VI), o órgão julgador da rescisória poderá ver-se for­çado a á'aminar questões atinentes à interpretação, digamos, do art. 469 do estatuto processual. Tais questões, no processo da rescisória, hão de ser encaradas como ques­tões de fato. O órgão julgador não. vai aplicar o art. 469, mas o art. 485, n? IV; só as questões relativas a este último é que constituirão, aí, quaestiones iuris. '

7,. ,As noções expostas são essenciais para o correto equacionamento de proble­mas que às vezes se suscitam e nem sempre se resolvem bem, a propósito da Ação Res­cisória. Tem-se ouvido dizer, por exemplo, que, se vige nesta matéria, como alhures, o princípio iuranovit curia, não seria imprescindível que o autor, invocando o inciso V do art. 485, indicasse a norma a seu ver violada pela sentença rescindenda; ou que o órgão julgador ficaria, em todo caso, livre de acolher o pedido de rescisão reconhecendo co­mo violada norma diversa da que o autor indicara.

(9) A passagem antecedente de nosso texto cinge-se a traduzir, com ligeiríssimas alterações, a parte. principal do trabalho de Liebman, cit. em a nota 8, supra.

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É manifesto o equívoco. A Ação Rescisória não escapa ao domínio do princIpIo iura novit curia; o que este significa, todavia, é que o Juiz não fica adstrito à iniciativa da parte na identificação ,da norma jurídica que lhe caiba aplicar. Mas, na rescisória por violação de lei, a norma, jurídica que ao órgão julgador cabe aplicar é a do próprio art. 485, n:' V; não a outra, de cuja violação se cogita. Logo, a indicação que se dis­pensa é a do art. 485, n:' V: pouco importa que o autor, na inicial, deixe de mencioná­lo, ou que, por, engano, ,mencione texto diverso.

Precisa ele, ao contrário; indicar 'a norma (ou as normas) que, a seu ver, a senten­ça rescindenda 'violou, comoelemento(s) que é (ou são) da sua caUsa de pedir ('U). Se a inicial omite semelhante indicação, deve o relator da rescisória, ao despachá-la, deter­minar que ela seja completada no prazo de dez dias (art. 284); e, não cumprida a deter­minação, indeferir a inicial (art. 490, n? I, combinado com os arts. 284, parágrafoúni-' co, e 295, n? VI, fine). Não basta que o autor impute à decisão rescindenda'haver vio­lado '«a Constituição da República», ou «o Código Civil»: á' indicação tem de, ser es­pecifica, até para abrir ao 'rétia possibilidade de contraditar eficázmente 'a" alêgaçâ{Y;) Em compensação', o 'silêncio ou o erro quanto ao número do dispositil/blinâ:~'·j:lteji.JdlCá' a postulação,desdeque se cOnsiga identificar com segurançaa'tiôrilia: 'ã'ssim;tY'.g\,'$ê'ó' autor afirma' que a séltença rescindenda' violou a regra' c()n'stiti.ú~'iió'n:~Pd!e 'i!;9fi.9mi~,);l:!'m~i bora sem citar o art.153, § I?, da Carta da Répúbtica'!' oll/eitánl.l'&?éq'úlVéícâdafu'én'féll'ó art. 154 ou 6 art. '153, §2:'.. ' ,.'ill";:' '))1(;'"" r:hq )UII;i'"JI ',d) i)j'j('I,) n"IJWlO) )!;,'jfl

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A existência de Ação Rescisória em curso, com fundamento na violação da norma N, não cria empecilho a que se proponha outra rescisória, entre as mesmas partes, fun­dada na violação da norma N'. Não procederia a objeção de litispendência, porque di­ferentes as causas de pedir (cf. arL 301, §§ I? e 3?). As duas ações são, à evidência, co­nexas (art. 103), e em princípio devem reunir-se para julgamento simultâneQ{art._1D2t A semel\1ança do qu,esucede~ia se alegad'ls em conjl,mto desde o,ill,tcio,. q1.la,S vjql(!ções ~l'jstol é, ~ail'ÍÍJótfW: Ide"ê(Óilijul~~~/~:Iill:ipfl}#ty~' A~S":lt~~~Js'R'tW l,l:,'I:,'Jpp1, :5Ie~ !,ª9,fny~t~rW separadamente, em relaçào a cátia umàdas v'1Ol'açoesalegiWas, os votos dos membros d~ ç~!é~:~9'.)l:l~.g~qR.r b~-;I~ir)')I\ () ~'l (fui:.' [UI;I i')/.oIJq ::~ '.Hlp ?clJillro T)J;:" JU1'-;,'YH olqrrLl/] tf.! ~ __ -,--'---,,..--:,l'.;.HJl :HJn'-Hll:::. j_:O ~ú',·) f .Hl.!,C'1 ,:u';o ti~t'),r,)i"Ol )1; ),'.,\\/,\11,. '·,\1 Ú\l'> .. ~\ oi ,-!.Vl,r){>

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(11) Remetemos o leitor, no particular, ao nosso trabalho ,citJem!a, nota;r3;!supra;o I O'H .. :;[.(w]

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Procedente ou improcedente que seja o pedido de rescisão, formulado com apoio na violação da norma N, a coisa julgada que se forme só cobrirá essa causa de pedir. O autor permanecerá livre de pleitear de novo a rescisão da mesma sentença, alegando a violação da norma N', sem que lhe possa opor eficazmente a objeção do art. 301, n? VI.

9. Acrescentemos um tópico derradeiro às presentes considerações. Ficou dito que quaisquer questões relativas às causae petendl se consideram e se tratam como questões de fato. Não abrem exceção, ressaltou-se, as atinentes à(s) norma(s) cuja vio­lação se alega, na Ação Rescisória ex art. 485, n? V. Uma das conseqllências I: que não se pode põr tal violação como fundamento de Recurso Extraordinário contra o julga­mento da rescisória (D).

Suponhamos, por exemplo, que a sentença rescindenda houvesse realmente violado certa fIOrma constitucional, e na Iniciai se Invoque essa violação como causa de pedir, mas o óq.\ão jul~ador não a reconheça e jul~ue Improcedente o pedido de resclsiio. A filme vencida em viio recomm'l extraordinariamente, com base no art. 119, n\l IH, letra 11, da Carta da República, combinado com o art. J2S, n? I, do Re~lmento Interno do Supremo Tribunal Federal. A questão atinente à violação da norma constitucional não pode tornaNe objeto de reexame pela Corte Suprema, no jul~amento do Recurso Ex· traordinárlo, justamente por não ser ai questão de direito, senão de fato. Se a norma constitucional foi ou não foi violada, decide· o soberanamente o órgão jul~ador da res­cisória, em apreciação insuscetivel de controle pelo Supremo Tribunal Federal.

Poderia, sim, abrir-se a via do Recurso Extraordinário, caso o órgão julgador da rescisória, negando a violação afirmada pelo autor, apesar disso julgasse procedente o pedido de rescisão. Em tal hipótese, estaria configurado o erro na solução da quaestio iuris; o órgão julgador teria violado a norma que lhe competia aplicar, ou seja, o próprio art. 485, n? V.

Acertada é, na matéria, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Il), con­quanto nem sempre se expresse em fórmula de absoluto rigor técnico. A razão essencial da impossibilidade de remontar-se, no julgamento do Recurso Extraordinário, ao exame da violação alegada como fundamento do pedido de rescisão consiste em que es­sa questão, no processo da rescisória, funciona (e se trata) como quaestio facti e, en­quanto tal, escapa ao âmbito próprio do recurso, em que apenas se discutem e se resol­vem quaestiones iuris.

Fevereiro de 1987.

(12) Vide sobre a matéria, extensamente, Pontes de Miranda, «Comentários» cit., T. VI, págs. 442 e segs., e «Trat. da Ação Resc.» cit., págs. 549 e segs.

(13) Exemplo recente, entre muitos que se poderiam citar, é o Acórdão de 7-5-1985, RE n? 96.594, in Diário da Justiça de 25-10-1985, pág. 19.148. Lê-se na ementa: «Referentemente à alegada violação. de literal disposição de lei (art. 485. V, do CPC), trata-se, aí. de fundamen­to da Ação Rescisória, mas não, porém, do Recurso Extraordinário, pois, caso contrário, estar-se-iam examinando, no âmbito deste, os pressupostos da decisão rescindenda, e não os fundamentos do Acórdão recorrido».

DAS FORMAS DE EXPRESSÃO DO DIREITO

R. Limongi França

R. LIMONGI FRANÇA

DAS FORMAS DE EXPRESSÃO DO DIREITO

SUMÁRIO

'I -:- IMPORTÃNCIA DO'ESTÚDO DAS CHAMADAs «FONTES» DO DIREI­TO

'11 - NOTÍCIA SOBRE O ESTADO DA QUESTÃO DAs «FONTES» DO DI-REITO ,.

, '.8) ,Escolá hi$tófica b) Estudos con~çmporâneos especialmente importantes sobre a matéria c) A ()brade Gény d) Acontribuição doS publicistas ' e) Brethede la dressaye e Laborde-Lacoste , ,,' , ' ,"',

i 'II1 -:- SlJBSTITl)IÇÃODÁ IDÉIA DE «FONTE» PELA DE «FORMA» DO DIREITO POSITIVO

a) Impropriedade da expressão «fonte», para designar os modos de expressão do Direito

b) A idéia de «fonte formal» c) Ahrens e Fernandes Elias d) Nec~ssidade da distinção entre fonte e forma do Direito

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""~Ti'\d )"1 ?().i,II:J i () ~ .> !.>~. j ,lu') IV I _ CLASSIFICAÇÃO DAS FORMAS .lDEE'XF>'iÚ~sSÃÚ)DOnmEITO .. !bi I ;1, a) Introdução Ib),Fonteshistóricas ')1/\ ';:

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e) Formas de expressão do Direito. Class'ificíÚ;:ãb"segtlndo Oi critétioldan'atul'eza da cQer,~itiyid,ade .I U(í. ')iiH'\JÍ. rJ!w)nJi;·~{h;i Idi ')111',\1(', ~/U't:.!;;>'p;H

'f! Classificação segundo'o'critério'dlPimp'odãnCiiliestrutí1'râl ;;,,),;, :-: '''r'

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I - IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DAS CHAMADAS «FONTES» DO DIREI· TO

Fonte é o lugar de onde provém alguma coisa. Fonte do Direito seria, analoga­mente, o lugar de onde são oriundos os preceitos jurídicos.

Conquanto sc possa discutir a maior precisão e procedência desta idéia, é bastante que assim ela seja apresentada para que se possa aquinhoar a importância da matéria, tanto no que concerne à investigação pura e simples dos fatos jurídicos como no que tange à aplicação prática da norma jurídica aos problemas a ela atinentes, e que fluem necessariamente da complexidade da vida social.

Na verdade, não haverá profissão ou atividade na vida do Direito que não depen­da, para o seu desenvolvimento, de noções básicas relacionadas com o presente assun· to, nem questão de natureza jurídica que nas «fontes» não deva buscar e encontrar a necessária solução.

As I'Ilzões de um advogado, o parecer de um jurisconsulto, o libelo de um promo­tor, a stwtença de um Juiz, a prdeçiio de um catedrático, a Investigação de um cientista do Dlrlllto, jamais poderão prescindir do diuturno, constante e impostergável recurso aos elementos fornecidos pelas fontes das relaçOes jurídicas.

Não obstante, a bibllogl'llfia nacional atinente ao assunto é simplesmente paupérri­ma. Não deixa de versá-lo, evidentemente, a generalidade dos nossos tratadistas, che­gando a ser mesmo um lugar comum das obras de teoria geral do Direito Civil, como de introdução à Ciência do Direito. Entretanto, data venia, não se tem notado, por parte dos respectivos autores, qualquer esforço maior no sentido de uma revisão das doutrinas e conceitos sobre a matéria, sendo que tal, como adiante se verá, de há muito se vem fazendo mister.

Enquanto isto, em outros países o assunto tem sido objeto de refletidas pondera­ções, exaradas em monografias, de profundo valor filos6fico e jurídico, cujos resulta­dos apresentam um grande sentido para a reconsideração do tema, dando ao mesmo a possibilidade de um passo a mais nas conquistas da Ciência Jurídica.

Este trabalho, obviamente, não tem por fim o escopo de «preencher lacunas». Es­peramos, entretanto, conforme o nosso ardente desejo de sermos fiel ao espírito univer­sitário, possa pelo menos acenar com os elementos primeiros, os rudimentos, para que outros (quem sabe, no futuro, os nossos próprios alunos) possam realizar aquilo que, ao lado de muitas coisas, está faltando entre n6s, no caso, em estudo sério e acabado a respeito desse importantíssimo capítulo da propedêutica do Direito Civil e da Ciência Jurídica em geral.

11 - NOTÍCIA SOBRE O ESTADO GERAL DO PROBLEMA DAS FONTES DO DIREITO

a) A doutrina das fontes, segundo a Escola Histórica. Savigny e Puchta Foi, sem dúvida, com a Escola Histórica do Direito, florescida nos albores do sé­

culo XIX (') e cujos pr6-homens foram Savigny e Puchta, que se iniciaram, em profun­didade, os estudos relativos às chamadas «fontes» do Direito.

(I) A Escola Hist6rica, conforme demonstrou o preclaro mestre Alexandre Correia (<<A Concep­ção Hist6rica do Direito», págs. 10/22, e págs. 23/52, São Paulo, 1934), tem como pr6ceres Burke, na Inglaterra, e De Maistre, na França. Foi, entretanto, na Alemanha que encontrou os seus grandes realizadores, em meio aos quais avulta a figura gigantesca de Savigny, cuja obra foi secundada pelo seu discípulo Puchta.

Tão importante corrente do pensamento jurídico não é mais que um aspecto particular de toda uma concepção geral, a respeito do nascimento e da evolução das instituições humanas.

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Na verdade, antes da Escola Histórica e especialmente antes de Savigny, desde os romanos, o estudo das fontes se havia limitado à sua descrição externa, sem qualquer preocupação de perquirir origens e razões de ser (I).

É, por exemplo, o que se nota na obra de Heinecius, da chamada Escola dos Pós­Olosadores ('1), bem assim na dos jurisconsultos reinóis do século XVIII, entre eles a fi· gura respeitável de Mello Freire (4). A própria obra de Montesquieu, o celebérrimo tra· tado «De l'Esprit des Lois, que lhe valeu a posição de precursor da Escola Histórica i!), em suma, não obstante o reluzente valor literário, do ponto de vista cientifico não passa de desarticulado ensaio de um diletante do Enciclopedismo (I').

Savigny é realmente o primeiro grande autor a entrar a fundo no estudo das fontes do Direito. Por isso, os seus ensinamentos devem merecer nossa especial atenção, e, por uma questão de facilldade didática, tentaremos resumir em itens as linhas mestras das lições que expende sobre a matéria (~). Seriam as seguintes:

a) O autor dlstlnllue fontes das rl!!açõl!s jurldlcas particuJarl!s (contratos) das fontl!s da rtigra jurldlca 61!f[j1 (lei).

b) Dlscerne fontes do Direito, proprlaml!ntl! ditas, de fontes históricas (1).

e) São fontes do Direito o povo e o Estado, aos quais correspondem, respectiva· Mente, o Direito Consuetudinário e a lei.

d) Conslderll ainda, como fonte, o Qirl!Í(o CIentifico, ou Direito dos Jurisconsultos «duristenrecht»), que subdivide em tl!6rico e prático. Teórico, o que re·

Constitui, no panorama das idéias filosófico·jurldicas, uma reação contra a Escola do «Natur­recht», do Direito Natural Absoluto ou Jusnaturalismo, que campeou sobretudo no século XVIII.

Sua idéia central, segundo se observa no «Sistema do Direito Romano Atual», de Savigny (v. trad. de Scialoja, 1886) e no «Curso das Instituições», de Puchta (trad. de Turchiarulo, Napoli, 1854), está na negação da possibilidade de se deduzir o direito more geometrico, por um processo exclusivo de raciocinio, divorciado da realidade dos fatos. Antes, é tão-somente no envolver histórico da realidade das instituições juridicas, tal como se dá com o idioma, que encontramos a origem de todo o direito. Encontrando-se em estado latente na consciência do novo ou consciência nacional, tem como primeira manifestação o costume, cujo significado é o de um estágio anterior à lei.

Como a IIngua, o direito é diverso para cada povo, e deixa de ser direito quando deixa de exprimir a opinio necessitatis da consciência popular (§§ 7? 8?, 12 e 13. do «Sistema», de Sa­vigny; e §§ 10 a 21, págs. 7/15, do «Corso», de Puchta).

(2) Savigny, op. cit., págs. 115 e segs.

(3) Heinnecius, «Recitationes in Elemmenta Iuris Civilis secundum Ordinem Institutionum», §§ 44 e segs., Coimbra. 1817.

(4) Mello Freire, «Institutiones Iuris Civilis LusitanÍ». I. § 5? e sp., Coimbra, 1853.

(5) Montesquieu, «Do Espirito das Leis», Edições de Cultura, 1945; v. Edmond Picard, «o Direi· to Puro». pág. 183, ed. portuguesa, s/d.

(5a) «De nos jours, cependent, I'influence de Montesquieu décline; ou plutôt il resti un nom, iI cesse I'être un maitte. Une partie de son livre est devenue banale, en s'inscrivant dans les faits. Une autre est devenue fausse, ayant été démonstré par les faits. Au point de veu cienti· fiqque, I'insufisense de son observation, les fantasies de sa methode éclatent. Au point de vue politique, notre démocratie échappe de plus en plus à ses cadres e à ses formules» ... (O. Lan­son, «Hist. de la Litterature Français», pág. 725, Hachette, 1951).

(6) V. «Sistema», págs. 40 e segs.

(7) Vide, no mesmo sentido, Alexandre Correia e Oaetano Sciascia. «Manual de Direito Roma­no», pág. 12.

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sul ta da perquirição científica, pura e simples. Prático, o suscitado por problema jurídi­co concreto, aí inclusa, portanto, a jurisprudência, no sentido estrito do vocábulo(8).

e) Constitui nota marcante da doutrina de Savigny o fato de atribuir procedê'ncia ao costume sobre a lei, o que se explica em razão do seu historicismo.É de se ressaltar também a circunstância de considerar os juristas uma elite que representa o povo na elaboração do Direito. Todo Direito vem da consciência popular, mas os juristas, que são parte do próprio povo, vêm a ser os órgãos habilitados para elaborar o Direito em nome do povo.

Desse modo de pensar participou, desde 10gb, o seu discípulo Puchta, conforme se vê no seu «Curso das Instituições».

Daí para cá, de modo geral,' a doutrina das fontes tem sido exposta pelos juriscon­sultos dos diversos países ocidentais, mais ou menos ao modo de Savigny.

Felizmente, entretanto, autores houve que não se circunscreveram a esses limites e, num grande esforço de renovação, mais claras luzes trouxeram ao estudo do tema de que estaulOstratando. É o que procuraremos estudar em seguida.

b) Estudos contemporâneos especialmente importantes, realizados sobre a matéria De início, cumpre seja assinalada a grande importância de algumas monografias

que se publicaram, relacionadas com a matéria, entre as quais podemos citar, na Fran­ça, a de Henri de Page, «A Propos du Gouvernement des Juges»(9); na Itália a de Del Vecchio, «Os Principios Gerais de Direito»('O), e, na Espanha, o estudo recente de Puig Brutau, «La Jurisprudencia como Fuente dei Derecho»(").

Significado todo especial, para o aprofundamento do assunto, deparamos no «Re­cuei! d'Études sur les Sources du Droit en I'Honneur de Fra,nçois Gény»(I2), do qual participa uma plêiade de especialistas na matéria. A obra, em três volumes, enfeixa ex­celentes ensaios em torno de três temas fundamentais: I - Aspectos históricos e filosó­ficos; II - Fontes gerais dos sistemas jurídicos atuais; e III - Fontes dos diversos ra-mos do Direito. ' ,

c) Obra de Gény i I ' '

A maior obra, entretanto, que se escreveu até. hoje ?óbre matérilt f()i la cj'á'~ü~le' em cuja honra esses estudos foram publicados, o emim:hte"Pn\.nçoi's Óény, pOi :sin~1 o grande restaurador, no Direito Privado" da cOnCipçãoClassica çlo' Direito i 'Niitlj,ral. Denomina-se «Méthode d'Interpretation'et Sources en 'Droit,':hi,v,f:, Pç,~itW);, 2 volumes(I3), cujas conclusões foram posteriormente completadas por outra realIzação magistral, a «Science;e'i'T€cl\rtiêIue ,éh' Drbltp'fiYe 'Positif»; e'fi quatro Vdltllh'di(,4).

',\) ',' '!I,\ ,; '1 r' .'>"·.,~;'l[il,·~í.!.:i:'\:.';·, I,;',': r··-~· .. íl;,:),'H.:1~l·l\,i:'!·"

De profundo significado é a sua',éontribuiçã0,no setor da metodologia da interpre­tação das fontes, assim como da construção científica",&Ip Direito. Quantp, porém, A questão da identificação das fontes e da sua classificaçao, Gény fica no terreno tr'adi-~! .' ., I r )i;'; 'j ,~lh,'!;; ,;ki") ! r.qf",\ "l) :l'! ". ,_ .

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, J , " :~, ,1 J:, ,': 1 \,! '~1\-I: I ':.i lJ \ I r': i

(8), Na acepçãÇ>, decWl)un~o d~s ,prpnu%i;am,el1to~dqsn9rg~9,s; <;I~:'!IJlw.à~Hudic,af1\e:"

(9) Henri de Page, «A Prapos du Gouvernement des Juil"es»',cPiiHs;' 1'9:3 I'!" ;,' " ,',:

(1'0) 'Giorgi6 'dei' Ve,~éhi'b.' «Los Princípíl:is!Gêne'tal~s'del 'DetJcn'o»," trad,'de l.' Osor(o! Mórales; , ~~~f:~,~ú,h~'.j!':~~r\J·),' ',~'" t,,!,,~\·;~;l;::\':'~"!_J.;.\!.,r>~l,'," : ' .. ,,! ','.llll'/;'I'~)I'.i,.I,'.::·",/:·~ll:"l'·~':·\';.r

(11) J.Q.sé"rj.!ig~rut,~u, «La,f!lmiIiRruP~nci~S$\m(?,Fl;lent~ de! Oerec)1(1!l, ~l,lq:;çlol1a,M!d'."ii'P" (12) «Reéueil' diÉtudes SUfi les :Souriles .. du Dtoit'en,I'HonneuF de, Françoisl (JJény,>}jl3vols;j<JSjrey,

Paris, s/d, ").~;'.~\ f (' '!L,,'! Y,lllJ;',:')'! j ',;) \,'lIJ\\ il')~

(13) François Gény, «Méthode d'Interpretation et Sources du Orqit Pl'iVé. B0l1it,ifllí"41'I~d,,. 2 To.)

d'lm.p~JIP!~Fi~, J:? \ ?'(l iL,,;"·j ,\ .,;i':>f.:'}? (:1,;;: 3);1} 'J 'I .l\ Ij',: ';~J '.dJiV ;'\' (14) Idem, «Science et Téchnique en Orait Privé Positif», 4 vols., Paris, 1922/1924: I.',.',,! '''fi

TFR - 145 129

cional, distinguindo fontes substanciais de fontes formais, e, em meio a estas, a lei, o costume, a tradição e a autoridade, compreendidas aí a doutrina e a jurisprudência(IS).

Aliás, na nota I, pág. 239, do Tomo l, do «Méthode», é o próprio autor quem confessa l~ão poder fazer melhor que remeter o leítor aos autores de até então, a saber, Gierke, Korkounov, Charmont, Sternberg e Kohler('6).

d) A contribuiçâo dos publicistas

Diversamente, verdadeira revolução na matéria, se verificou em virtude das moder­nas teorias do Direito Público, professadas por Duguit, Jéze, Bonnard e outros, espe­cü!Imente no que se entende com a premissa pelos mesmos estabelecida, de que inexiste uma separação absoluta entre o Direito Público e o Direito Privado e de que nada pode haver de menos exato que a afirmação corrente de que <<!'esprit qui doit presider à I'é­tude du droit public n'est pas le même que celui qui doit inspirer .1'étUde de droit pri-Vé»('7). . .

A necessidade de comprovar esta afirmação básica levou esses autores a fazerem uma série de revisões nos conceitos tradicionais, entre os quais, para a matéria em fo­co., avulta em importância o que concerne aos atos jurídicos( 18).

Com efeito, Bonnard, embora afirme a diferença de conteúdo do Direito Público e do Direito Privado, não deixa de reconhecer que «en ce qui concerne I'activité de l'État deses organes, on pounait à la rigueur concevoir que les régles du droit privé leur soiente appliquées. Les actes juridiques de I'État séraient accomplis suivant les mêmes régles queceux des particuliers»('9).

Assim, foi possível chegar-se a uma concepção monista do ato jurídico, passando a c()nsiderar-se tal a lei, o ato jurisdicional, o ato regulamentar, etc. Ora, isto posto, se atos como a lei e o jurisdicional constituem atos jurídicos, com relação à matéria de fontes do Direito, as idéias tradicionais não puderam deixar de ser revistas, porque, nestas condições, a rigor, a verdadeira· fonte do Direito passaria a ser o pr6prio ato jurídico, em cujo conceito estariam abrangidas as mais importantes das fontes segundo a doutrina corrente.

e) Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste O esmiuçamento concreto e sistemático destas noções, em matéria de fontes do Di­

reito, foi levado a efeito de modo excelente por Brethe .dç la Gressaye e Laborde­Lacoste, .em sua obra «lntroduction Générale à l'Étude du Droit» , onde se passaram a distinguir! duas espécies fundamelltais daquela categoria jurídica: fontes atos e outras fontes. Fontes atos, a lei, o Direito Corporativo, o ato jurídico individual e o ato jurisdicional. E outras fontes, a saber, o costume, os princípios gerais de Direitos e a doutrina ("').

O conceito de lei dispensa explicações maiores. Seria o ato jurídico legislativo. Direito Corporativo, o especial conjunto de normas que regem as instituições sociais.

(15) V. «Méthode», I, págs. 237 e segs.

(16) «Méthode", I, págs. 239, Nota I.

(17) Léon Duguit, «Manual de Droit Constitutionnel», pág. 66, Paris, 1907.

(18) Ato jurídico, conforme o art. 81do Código, é «todo o ato lícito, que tenha por fim imediato adquirir, resguardar, transferir, modificar ou extinguir direitos».

(19) Roger Bonnard, «Précis de Droit Public», pág. I, Paris, 1939. Cf. Duguit, op. cit., págs. 67/69.

(20) Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste, «Introduction Générale à ('Étude du Droit», pág. 179, v. págs. 169 a 196.

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Ato jurídico individual os contratos, os testamentos etc. Ato jurisdicional, a jurispru­dência ('0").

Também as outras fontes, a esta altura, prescindem de esclarecimentos mais esmiu­çados, pois a elas voltaremos no envolver deste trabalho.

Convém fique assinalado, por uma questão de justiça, que a idéia dos atos jurídi­cos, como fonte de Direito foi, entre nós, divulgada por Orlando Gomes, em sua «In­trodução ao Direito Civil», cuja exposição está intimamente entrosada com os capítulos sobre a matéria, de Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste (li).

III - SUBSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE «FONTES» PELA DE «FORMA» DO DIREITO POSITIVO

a) Impropriedade da expressão «fontes», para designar os modos de expressão do Direito

O exame dos diversos autores que, de Savigny para cá, trataram do problema da especificação e classificação das «fontes» do Direito, mostra ainda um certo progresso, nem sempre intencional, referente à gradativa substituição da noção de «fonte» pela de «forma» do Direito Positivo.

Na verdade, servindo a palavra «fonte» para designar o fulcro gerador de alguma coisa, o seu uso neste capítulo do Direito tem dado azo a uma série de confusões, pois o objeto que se tem pela frente são antes os modos, as formas de expressão do Direito e não as suas fontes de produção, como se vê esclarecido em alguns autores.

Com efeito, a lei, o costume, etc., não geral, não criam, não produzem o Direito. O que gera o Direito são as necessidades sociais e a vontade humana. É esta que, to­mando conhecimento das imposições inadiáveis da realidade sócio-jurídicas, se serve da organização política da nação, o Estado, para criar as leis. Do mesmo modo, já no ter­reno dos fatos (em contraposição ao do Direito, constituído) é ainda a vontade huma­na, conglomerada na consciência popular (22) que cria o costume.

Assim, realmente, as fontes do Direito propriamente ditas são o arbítrio humano e o Direito Natural. O Estado e a consciência popular (ou o povo) são apenas as causas instrumentais da elaboração do Direito. Ao passo que a lei, o costume, etc., são os mo­dos, as formas, os meios técnicos de que lança mão a vontade humana para, através do Estado e da consciência popular, dar a conhecer, objetivar o direito suscitado pelas im­posições naturais da vida em sociedade.

b) A idéia de «fonte formal» Esta noção encontramos esboçada em muitos autores, entre eles François Gény,

Trabucchi, Bonnecase (23) Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste. Entre nós, pode­mos referir Paulino Neto (24), Serpa Lopes (25), Orlando Gomes (26) e Vicente Ráo (27).

(20a) É importante notar-se, neste particular, a sabedoria dos Romanos, que, num único conceito, o de lex, faziam abranger estas três categorias. Havia assim a lex privata, que era a cláusula contratual, p. ex., lex venditionii, a lex collegii, das associações, e a lex publica, que era a lei propriamente dita, conforme a noção moderna. (V. A. Correia e G. Sciascia, «Manual», pág. 14).

(21) Orlando Gomes, «Introdução aO Direito Civil», págs. 59-62; cf. Brethe de la Gressaye e Laborde-Lacoste, op. e loc. cits.

(22) Usamos a expressão para exprimir a unidade moral, das vontades individuais, e não a idéia de um ser autônomo conforme o ensinamento da Escola Histórica (v. Alexandr,e Correia, «Concepçào Histórica do Direito», págs. 114/128).

(23) Julien Bonnecasse - v. «Supllément», ao «Tratatto Teorico-Pratico» de Baudry­Lacantinerie, T. I, págs. 396 e sp., Paris, 1924; V. tb. «Introduction à l'Étude du Droit», 19, Paris, 1939.

(24) Paulino Neto, «Cadernos do Direito Civil», I, pág. 35, Rio, 1934.

(25) Serpa Lopes, «Curso», I, pág. 65, 2~ ed., Rio, 1957. (26) Orlando Gomes, op. c:it., pág. 39.

(27) Vicente Ráo, «O Direito e a Vida dos Direitos, I, pág. 275, São Paulo, 1952.

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Com efeito, esses jurisperitos, de modo geral, adotam a divisão de François Gény, que, como vimos, distingue fontes substanciais de fontes formais do Direito. Fontes substanciais seriam os elementos, os dados do Direito - materiais, históricos, racionais e ideais - aos quais as fontes formais - lei, costume, tradição e autoridade, - dão uma expressão apropriada. Ora, como se vê, os chamados elementos substanciais po­dem perfeitamente reduzir-se ao Direito Natural, enquanto as chamadas «fontes for­mais» não passam de mero modo de exteriorização dos preceitos da Justiça aplicados à solução dos problemas sociais.

Por isso, a expressão, «fonte formal», segundo nos parece, é duplamente impró­pria, porque, ou encaramos a lei, o costume, etc., do ponto de vista do seu conteúdo, e são o próprio direito já constituído, e não a sua fonte; ou os consideramos segundo o mero prisma da forma e, em tal caso, constituiriam apenas o modo pelo qual o Direito se positiva, se externa, se exterioriza ('8).

c) Ahrens e Fernandes Elias Dois autores do passado tiveram a nítida idéia disto que estamos expondo. São

eles o clássico Ahrens, autor de «Cours de Droit Naturel», e Fernandes Elias, juriscon­sulto espanhol, entre cujas obras se conta o «Tratado dei Derecho Civil Espanol». Com efeito, são do primeiro estas palavras que convém sejam transcritas no original:

«Tout droit se manifeste dane dans la vie réelle dans des formes, soit dans des for­mes générales de naissance, comme les coutumes et les lois, soit dans des formes spécia­les dans toutes les mati<:res particulieres» ('9), No mesmo diapasão, ensina-nos o outro autor: «Téngase muy en cuenta que nosotros aceptamos como fuentes dei Derecho y de la ley a la legislación, la política u la jurisprudencia, sola y exclusivamente en eI terreno material, prático y formularia, porque el Derecho y la ley no tienen. no pueden tener otras fuentes que la razon, la voluntad, la libertad y el bien y la justicia» ('0).

d) Necessidade da distinçào entre «fonte» e «formas» do Direito Com efeito, esta distinção não é ociosa nem desnecessária. Por três razões, que ire­

mos examinando à medida que as indicarmos. Primeiro, ela corresponde à realidade dos fatos. Como vimos, a lei, o costume,

etc., na verdade não geram o Direito. São apenas modos de expressào do Direito. Segundo, evita uma série de erros e imprecisões em matéria de especificações des­

sas categorias jurídicas. Na verdade, a confusão entre as noções de «fonte» e de «forma» do Direito,

parece-nos ser o móvel principal de enganos como, por exemplo, o de se considerar a eqüidade como o que os autores denominam «fonte formal». Como se sabe, a eqüi­dade, em si, é um principio semelhante ao da Justiça, e, assim, só pode ser fonte gera­dora, e nunca formal; do ponto de vista da ética, é uma virtude, e, evidentemente, ne­nhuma virtude se considerará, a rigor, modo de expressão do Direito, senão apenas um hábito prático capaz de proporcionar a efetivação daquilo que é bom. Está longe, pois, de se ajustar à noção de forma de expressão do Direito.

Outro exemplo de equívoco, data venia, parece encontrar-se em alguns mestres quando consideram o Estado «fonte formal» do Direito. A despeito das distinções que se procuram fazer, o fato é que o Estado não passa de instrumento de efetivação da forma positiva (").

(28) Por outro lado, a expressão é híbrida, pois «fonte» é causa eficiente, e «formal», como o nome está dizendo, diz respeito a causa formal, que com a primeira não se confunde.

(29) Henri Ahrens, «Cours de Droit Naturel», I, pág. 174, Leipzig, 1875.

(30) Fernandes Elias, «Curso», I, pág. 58, Madri, 1880.

(31) Vicente Ráo, op. cit., pág. 277.

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A definição rigorosa dos conceitos referentes à forma do Direito Positivo parece capaz de evitar todas essas falácias, por isso que elucida bem a idéia de que, na maté­ria, o estudioso deve ater-se tão-somente aos modos exteriores do Direito.

Terceiro, ao invés de ficarmos na preocupação de e.xcluir algumas formas e aceitar outras, com uma visão excessivamente restrita do assunto, deparamos que, graças a esse expediente da ànálise jurídica, o campo que se nos abre é muito mais vasto, pois, como será visto, há uma grande série de atos e fatos humanos que podem ser encara­dos como formas de expressão do Direito, do mesmo modo que coordenados segundo os principias de uma mesma sistemática. .

Na verdade, além da lei,. do costume, da jurisprudência', da doutrina, como habi­tualmente enumeram os autores, são ainda modos através dos quais o direito se revela, para integrar o conjunto das relações sócio-jurídicas, o Direito Estranho, os Princípios Gerais de Direito, o Direito Estatutário, os Atos Jurídicos Particulares, o «Standard», etc.

Como a árvore que, em virtude da poda nacional, é desvencilhada dos ramos des­necessários, este capítulo da Ciência Jurídica, ao invés de diminuir, cresce em harmonia e substância.

A seguir, tentaremos mostrar como, precisarias estas noções, passa a ser possível, de modo mais claro e mais completo, toda uma classificação geral das fontes e formas do Direito Positivo.

IV - CLASSIFICAÇÃO DAS fORMAS DE EXPRESSÃO DO DIREITO

a) Introdução

A definição do conceito de forma de expressão do Direito, diverso daquele que diz respeito às suas fontes propriamente ditas; seja dito desde logo, não estabelece um sec­cionamento dessas categorias jurídicas, de. modo a deverem ser considerados em planos totalmente separados. Embora, a nosso ver, como esperamos haver exposto acima,. a análise jurídica deva realizar a sua precisa distinção para melhor conhecimento do efeti­vo conteúdo das respectivas noções, força é reconhecer' a sua interdependênCia, e como a elucidação de uma não pode prescindir do esclarecimento das demais.

O capítulo das fontes do Direito, propriamente ditas, concerne ao que poderíamos chamar a etiologia jurídica; ao passo que aquele que se ocupa das formas de expressão, dos modos pelos quais o direito, latente na .natureza das coisas, por um ato da vontade hUmana passa a tornar-se objetivamente definido e coercitivo (32), seria o da morfologia do Direito. .

Mas é bem de ver que. a forma, por si mesma, não tem maior importância, se não vem acompanhada da matéria, do conteúdo que objetiva e define. E é evidente que esse conteúdo, para chegar a adquirir forma, passou necessariamente por um largo processo de elaboração, cujo estudo respeita exatamente ao capítulo das fontes do Direito pro­priamente ditas.

Eis porque, a despeito da distinção, para nós indispensável, entre fonte e forma do Direito Positivo, retomando algumas noções acima já esboçadas, tentaremos precisar bem a distinção entre as diversas fontes do Direito, para só depois classificarmos as suas formas de expressão, impropriamente chamadas fontes formais.

(32) Cf. Alexandre Correia e Gaetano Sciascia, «Manual de Direito Romano», I, pág. 12.

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Assim, quatro seriam as espécies de fontes de Direito, a saber: as fontes históricas, as fontes genéticas, as fontes instrumentais, e as assim chamadas fontes formais, para nós, simplesmente formas de expressões do Direito.

b) Fontes históricas Em mais de um sentido se pode tomar a expressão fonte histórica. Uma delas en­

contramos em Savigny - a acepção de conjunto de documentos que servem de base para a elaboração da Ciência Jurídica (32a). Outra semelhante a esta, mais vulgarmente utilizada, é a proposta por Correia e Sciascia, segúndo a qual «se entendem por fontes de Direito os documentos através dos quais chegamos a conhecer o direito de determi­nado POVO» (JJ).

De nossa parte, temos a observar que esses seriam tão-somente modos externos de conceituar fontes históricas. Uma outra maneira de encará-las também haveria, esta de natureza interna, conforme a qual por essa expressão seria entendido o processo histórico de elaboração da norma jurídica.

Esse processo histórico poderia subdividir-se em próximo e remoto. Próximo, o re­lativo às condições de natureza sócio-jurídica que em dado meio e momento deram azo à elaboração da lei ou outra forma de expressão do Direito. Remoto, o que se entende com as origens históricas da instituição jurídica que a norma visa a regulamentar. Sob este prisma, o estudo das fontes pode remontar aos mais longínquos (e nem sempre me­nos importante) fatores da formação de um povo ou de uma cultura.

O estudo das fontes históricas das instituições jurídicas é indispensável ao seu efeti­vo conhecimento. Como observa Sternberg, «aquele que quisesse realizar o Direito sem a História não é jurista, nem sequer um utopista, não trará à vida nenhum espírito de social consciente, senão mera desordem e destruição» (34).

No que concerne à sua correlação com o estudo das demais espécies de fontes, é de se assinalar que é a história do Direito que possibilita o melhor conhecimento das con­dições relativas às suas fontes, quer genéticas, quer instrumentais.

c) Fontes genéticas Por fontes genéticas do Direito, entendemos o Direito Natural (35), e o arbítrio

humano. Quanto ao que chamamos de Direito Natural, cumpre sejam oferecidos alguns es­

clarecimentos. Primeiramente, tomamos a expressão no seu sentido clássico, no sentido

aristotélico-tomista, e não naquele utilizado pelos Jusnaturalistas, de Grotius a Rous­seau. Segundo estes autores, o Direito Positivo não deveria ser mais do que a projeção de uma ordem preestabelecida na própria natureza das coisas, levada a efeito, a rigor,

(32a) Savigny, «Sistema», I, pág. 41.

(33) Correia e Sciascia, op. cit., pág. 12.

(34) Theodor Sternberg, «lntroducción a la Ciencia dei Derecho», pág. 32, 2? ed., Labor, 1940.

(35) Sobre o conceito de Direito Natural, v. especialmente a tese do Prof. Alexandre Correia, «Há um Direito Natural? Qual o seu conceito»-l<JI7; do mesmo autor, v. ainda «Concepção To­mista do Direito Natural», in «A Balança», Tomo lI, n? 32. V. Cathrein, «Philosophia Mo­ralis», n?s 295/297, Barcelona, 1945, etc. V. tb. nosso estudo «Direito Natural e Direito Po­sitivo», in «Estudos Jurídicos» comemorativos do cinqiientenário da Revista dos Tribunais.

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independentemente do arbítrio humano, que, na confecção das leis, não passaria de mero instrumento desse Direito Natural determinista, necessário e imutável (36).

Já conforme a concepção clássica do Direito Natural, este direito, embora se esta­beleça sobre princípios estáveis, não pode deixar de sofrer uma constante mudança, conforme as condições de meio e de momento. Assim, enquanto o Jusnaturalismo criou um Direito Natural substancialmente cerebrino, dedutível more geometrico, de acordo com a Escola Clássica, o Direito deve ser elaborado de acordo com a realidade dos fatos (37).

Outra distinção a ser feita é a referente ao fato de tomarmos o Direito Natural na acepção lata. Num conceito estrito, o Direito Natural se reduz aos princípios primeiros da Justiça; de um ponto de vista mais largo, o Direito Natural envolve não apenas es­ses princípios estáveis, como ainda as necessidades sociais que, atendidos os imperati­vos oriundos desses princípios, emergem do próprio evolver da existência e da cultura humana.

Com efeito, as mutações do processo, as transformações da ciência, a transmuda­ção acidental das mentalidades, vão criando uma série de necessidades cujo atendimen­to deve ser levado a efeito sem prejuízo dos imperativos da Justiça.

Algumas instituições exigem transformações radicais, outras desaparecem pelo de­suso, outras ainda se criam e é preciso regulamentá-las. Eis aí, portanto, as necessida­des sociais, as necessidades que, em virtude da própria natureza do homem e das coi­sas, é mister sejam supridas - a gerarem a regra de Direito Positivo.

Por outro lado, essa regra não se exprime por si mesma, nem pode ser idêntica em diferentes lugares e momentos. Cumpre, pois, aquilatar as conveniências da sua aplica­ção deste ou daquele modo, ou ainda se não fora melhor deferir a sua promulgação pa­ra ocasião mais opor,tuna. Ponderações desta natureza são, em suma, aquilo que respei­ta à parte do arbítrio humano na gênese do Direito Positivo, muito embora esse mesmo arbítrio deve ficar subordinado aos princípios primeiros da Justiça, bem assim à condi­ção do atendimento efetivo das exigências jurídico-sociais.

d) Fontes instrumentais Ora, a vontade humana, embora conserve sempre o seu essencial de vontade

individual, para realizar a coercitividade da lei ou outro preceito jurídico necessita de atuar através dos órgãos que personalizam a organização social de um povo, ou dos povos no seu conjunto universal. Esses órgãos, a nosso ver, são de duas naturezas, uma jurídica, na sua acepção estrita, outra, de fato, sustentada apenas pelas imposições da própria realidade social.

No plano jurídico, o órgão dessa natureza que representa a unidade é o Estado; no plano dos fatos, a consciência nacional. Projetados no campo das relações entre os povos, ao primeiro corresponde a 'sociedade política das nações, e, ao segundo, uma como que consciência social universal.

(36) Hugo Grotius, «De Iure BeBi ac Pacis», Prolegom 6-11; Capo I, X, 1-7; I, XIV; I, I, 1-5, etc., ed. de Telders, Haia, 1948; Rosseau, «Contrato Social», LI, Ed. Cultura, 1944.

Na Economia Política, o Jusnaturalismo encontra sua manifestação na Fisiocracia, de Quesnay e Turgot. O primeiro, por sinal, é autor de um tratado de Direito Natural (v. Papa­terra Limongi, «Economia Política», pág. 119, 5~ ed., 1959).

(37) V. as obras citadas de Alexandre Correia e Cathrein. V. também Sto. Thomaz de Aquino, «Suma teológica», la., I1ae. Q. XCV. Arts. 111 e IV; do mesmo autor, V. «In Aristotelis Sta­rigitae Libros Nonnullos Commentaria», V. lec. 12, in «Thomae Aquinatis Opera Omnia», vol. XXV, pág. 460, Paris, 1875; Jacques Maritain, «Humanismo Integrab>, págs. 16 e segs.; José Pedro Galvão de Souza, «O Positivismo Jurídico e o Direito Naturab>, São Paulo, 1940.

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Tais entidades morais seriam a rigor as verdadeiras fontes instrumentais do Direito Positivo, aos quais corresponderiam, de modo precípuo e genérico, a lei e o costume, inclusive os usos internacionais.

Além disso, uma terceira categoria poderíamos alinhar ao lado dessas, a saber, o acordo das partes, que, realmente, é o meio de que lançam mãos os interessados para criarem obrigações e direitos, no plano dos negócios particulares (38).

Exposta a noção destas fontes do Direito, na acepção própria do termo, podemos passar agora às fontes impropriamente ditas, ou formas de expressão do Direito Positi­vo, objeto precípuo deste trabalho.

d) Fontes formais (impropriamente chamadas) ou formas de expressão do Direito. Classificação segundo o critério da natureza da coercitividade

Se é certo que as fontes históricas no seu aspecto interno constituem a imensa cal­deira de cujas complexas ebulições emergem as necessidades sociais; se é verdade que são essas necessidades, consideradas e manipuladas pela vontade humana, que geram a norma jurídica; se é patente que para objetivarem os vínculos do Direito os homens o fazem por meio de entidades hábeis a tornarem esses vínculos eficazes, claro também se nos antolha que todos esses momentos do surdo e multifário processo de elaboração do conjunto das relações positivas, vai encontrar o acabamento definitivo nas formas atra­vés das quais o Direito se revela e adquire capacidade coercitiva.

As mencionadas formas, segundo o critério que poderíamos chamar da natureza da coercitividade, podem inicialmente ser classificadas em três: I~) a dos atos jurídicos; 2~) a dos atos sociais de fato, com força jurídica; e 3~) a das conclusões da ciência jurídica.

I~) Atos jurídicos. Com a expressão atos jurídicos queremos não apenas significar os negócios particulares ( 9

), mas o ato jurídico na sua acepção ampla, conforme o en­sinamento dos publicistas (40).

Assim, aí estariam incluídos: a) a lei; b) o ato jurisdicional particularmente consi­derado; c) o Direito Corporativo ou Estatutário; d) o Direito Estranho; e) o ato jurídi-co administrativo; e 1) os atos jurídicos individuais. .'

Lei, por sua vez, é aí entendido no sentido largo (41), de modo a abranger também os decretos, os regulamentos e os atos administrativos, como portarias, circulares, reso­luções, ordens de serviço, etc., que visem a solucionar injunções de" caráter geral, ainda que dentro de um setor particular (4').

Os atos jurisdicionais são aqueles efetivados pelo Poder Judiciário, à face de um problema jurídico, de caráter contencioso. Na verdade, as sentençaS' e os Acórdãos, em virtude das propriedades da res judicata, que pro veritate accipitur (43), são uma das

(8) Observe-se, com efeito, que o próprio Código Napoleào consagrou o principio geral de que «Ies conventions légalement formées tiennent lieu de LOI à ceux qui les ont faites» (ar!. (134). Por outro lado, vimos a moderna tendência, no sentido de considerar os atos jurídicos em geral como «fontes» do Direito. Finalmente, vimos (nota 20a) como os Romanos denomi­navam leges privatae às cláusulas contratuais.

(39) Serpa Lopes, «Curso de Direito Civil», I, págs. 39 e segs., 2~ ed., 1957.

(40) V. Duguit, «Cours de Droit Constitutionnel», págs. 64 e segs.; Bonnard. «Précis», pág. I; v. ainda, de Duguit, «Les transformations du Droit Public», págs. 75/146, Paris, 1921.

(41) V. Chironi, (dstituzionÍ», I, pág. 19.

(42 Por exemplo, o regimento interno de setor de benefícios das autarquias da Previdência So­cial. Inclui de caráter geral, dentro de um setor particular.

(43) «Digesto», Livro XVII, 207, frag. de Ulpiano.

136 TFR - 145

formas de que se reveste o Direito, uma vez que tais atos, embora subordinados ao di­reito preexistente, são capazes de definir situações jurídicas anteriormente dúbias e que, a partir dos mesmos, passam a reger uma parte do complexo geral das relações sócio­jurídicas.

Por Direito Corporativo ou Estatutário compreendemos o conjunto das relações jurídicas que regem as pessoas morais ou corpos sociais intermediários entre o in­divíduo e o Estado. Apresenta uma natureza especial porque, na terminologia de Cath­rein (44), essas sociedades são imperfeitas, incapazes de se bastarem a si próprias.

Não se incluem aí as impropriamente chamadas autarquias paraestatais, ou departamentos, do Direito Francês, porque as consideramos órgãos do próprio Estado, mero fruto da descentralização administrativa, do mesmo modo que as províncias cons­tituem o resultado da descentralização político-territorial.

Abrange não apenas as sociedades de Direito Privado, civis e comerciais, como as do Direito «Social», quais os sindicatos e as associações profissionais. A estes se vêm ainda estritamente ligados atos jurídicos como os contratos coletivos de trabalho, que Duguit entende pertencer à espécie das chamadas leis-convenções (45).

São ainda atos jurídicos aqueles que concernem ao que denominamos Direito Estranho. Este Direito, subdividimos em: Direito Romano, Direito Canônico e Direito das Nações Modernas, expressão esta utilizada pela Lei da Boa Razão (46) e adotada pelos civilistas do passado (47).

Embora, como a expressão o diz, se trate de direito diverso do nosso, produzido por poderes que se não confundem com o do Estado nacional, abrange leis que, ainda hoje, embora menos que antanho, integram o nosso sistema de Direito Positivo. E se tal se dá é principalmente por terem sido criados como direitos atuantes nas respectivas sociedades a que correspondem ou corresponderam.

Quanto ao ato jurídico administrativo, é de se considerar que em muito diferem dos regulamentos e outras normas de caráter geral, de igual natureza. Na verdade, com esta expressão queremos expressar, de modo específico, os atos administrativos particu­larizados, como os despachos exarados nos processos administrativos, os contratos em que o Estado intervém, etc. No conceito dos mesmos incluímos os atos de jurisdiçào voluntária, em que não existe açào, propriamente dita, senão mero pedido, não há par­tes (autor e réu), mas interessados; não há lide e sim negócio (48).

Finalmente, ainda dentro do conceito amplo de ato jurídico, como forma de ex­pressão do Direito, aparece o conjunto dos negócios jurídicos particulares que, eviden­temente, não traçam normas de caráter geral; mas, fazendo lei entre as partes, encer­ram, na sua enorme massa, uma trama de complexíssimas relações em cuja base se as­senta todo o conjunto das situações que a lei supõe como hipótese geral, mas às quais só esses atos podem emprestar vivência concreta e atuante.

São, portanto, igualmente, formas através das quais o Direito se revela. E, particu­lares embora, restritas que sejam às partes contratantes, no seu acervo imenso, é sem

(44) Cathrein, «Philosophia Moralis», § 511, pág. 355.

(45) Duguit, «Les Transformations du Droit Public», pág. 129.

(46) De 17 de agosto de 1769, inspirada por Pombal.

(47) V. p. ex. Coelho da Rocha, I, pág. 22.

(48) V. José Frederico Marques, «Ensaio sobre a Jurisdição Voluntária», pág. 200, 1952; Gabriel de Rezende Filho, «Curso de Direito Processual Civil», I1I, pág. 58, § 853, São Paulo, 1946; v. também, nessa monografia, «Do Nome Civil das Pessoas Naturais», págs. 392 e 417, notas 644 e 684.

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dúvida dos modos mais importantes por meio dos quais o Direito é objetivado e assume força coercitiva.

Passemos agora àquela categoria que propomos denominar atos sociais de fato com força jurídica, ou simplesmente atos com força jurídica.

2:') Atos sociais de fato, com força jurídica. O porquê dessa denominação e do agrupamento de tais atos numa espécie particularizada - eis o que tentaremos explicar preliminarmente.

Com efeito, examinando a classificação das «fontes formais», proposta por Brethe de la Grassaye e Laborde-Lacoste, conquanto tenhamos averiguado a sua genérica pro­cedência, notamos que, na verdade, não se cingem os autores a um critério único, ou melhor, não completam a classificação conforme os ditames do critério adotado.

Realmente, como foi visto, dividem as fontes em fontes-atos e outras fontes, aqui incluídos o costume, os princípios gerais de Direito e a doutrina.

Ora, de nossa parte, com a devida vênia, assinalamos que, tomando-se como pon­to de partida o ato jurídico, o que bem procede, porque o Direito é efetivamente fruto de um ato gerado pela vontade humana, cumpre ver nessas «outras fontes» aquilo que elas apresentam de comum com o ato jurídico, bem assim o que revelam de disseme­lhante, para desse modo podermos chegar a uma classificação quanto possível acabada.

Daí a nossa proposta de se distinguirem em meio às «outras fontes» um grupo es­pecífico que seria dos atos sociais de fato, com força jurídica, a saber, o direito costumeiro, de modo geral, o costume judiciário (diverso do ato jurisdicional puro e simples) e o «standard» jurídico.

Atos sociais, porque valem na medida em que são gerados pela consciência nacional, visando à solução de problemas próprios da vida do homem em sociedade.

Atos sociais de fato, para se contraporem aos atos jurídicos, pois enquanto estes trazem a sanção do ordenamento, aqueles exercem a força coercítiva por mera questão de opinio necessitatis.

Atos sociais de fato com força jurídica, porque, muito embora não sejam objeto de norma jurídica específica, são capazes de atuar ao modo do de verdadeira regra le­gal.

Nesse grupo de atos, como foi visto, incluímos desde logo, por excelência, o Direito Consuetudinário, criação típica da vontade popular, para a solução imediata, anterior ou complementar à da lei, dos problemas sócio-jurídicos que esta não prevê e que no entanto precisam de estribar-se numa regra geral.

A seguir alinhamos o costume judiciário ou jurisprudência, diverso do ato juris­prudencial particularmente considerado. Com efeito, enquanto este último constitui um ato jurídico na sua precisa acepção, o costume judiciário passa a ter eficácia coativa por mera questão de opinião coletiva de necessidade em meio aos julgadores. Não há lei, em países como o nosso, que ampare o valor vinculativo geral das decisões juris­prudenciais; no entanto, se um modo de decidir se repete com religiosa constância, anos a fio e na generalidade dos Tribunais, força é convir que dificilmente um Magis­trado ou colégio judicante ensaiará, sem maiores razões, afastar-se dessa orientação.

Da mesma natureza reputamos o «standard» jurídico, categoria importada da «Common Law», e que consiste num critério básico de avaliação de certos conceitos jurídicos indefinidos, variáveis no tempo e no espaço (49). O «standard», ou diretiva jurídica, pode ser legal, como o do § 6? do art. 15 da Lei do Inquilinato, que inclui na expressão uso próprio a obrigatoriedade de permanecer o proprietário pelo menos um

(49) P. ex. o conceito de boa-fé, de bonus pater famílias, de prudente arbítrio etc. No Direito PÚ­blico, o de necessidade social, utilidade pública, necessidades normais do trabalhador etc. (v. Constituição, arts. 141 e 157, etc.).

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ano no imóvel despejado. Poder ser jurisprudencial, como a orientação segundo a qual se considerava abuso de direito a purgação da mora, da parte do locatário, por mais de três vezes. E pode ser simplesmente costumeiro, como a generalidade dos costumes de natureza interpretativa (secundum legum).

O «standard» legal, em suma, é lei por natureza. Mas o jurisprudencial e o sim­plesmente costumeiro não passam de meros atos de fato com força jurídica.

Passemos agora à última das espécies de forma de expressão do Direito, segundo o critério da natureza da coercitividade.

J~') As conclusões da Ciência Jurídica. Efetivamente o Direito que os cientistas perquirem nas bibliotecas não apenas informam a lei, os costumes, a jurisprudência, etc. como ainda possui o seu valor próprio como forma de expressão do Direito latente na natureza das coisas.

Savigny, não sem uma forte razão, considerou a Ciência Jurídica qual uma varie­dade do Direito Consuetudinário. Preferimos, porém, situá-la em apartado, devido ao seu especial modo de elaboração e à sua preeminente importância como principal intér­prete do Direito justo.

Na verdade, se de um lado as leis injustas não são propriamente leis, mas meros atos discricionários de poder (-'0), que não obrigam em consciência, de outro, para se alcançar a lei justa é preciso auscultar com exatidão os reclamos das necessidades so­ciais, sob a égide da Justiça, trabalho esse que só aos especialistas da Ciência do Direi­to é dado realizar com a indispensável segurança.

No Direito Cientifico incluimos os Principios Gerais de Direito e os Brocardos Jurí­dicos, porque é a Ciência Jurídica que define tais princípios: principios esses que, por sua vez, se vêm expressos não raro através de parêmias ou brocardos (").

Ao critério adotado para a classificação que acabamos de ensaiar denominados, da natureza de coercitÍvidade. A razão disso, como a esta altura já se pode observar, está na circunstância de que enquanto a eficácia vinculativa dos atos jurídicos provém de modo imediato, sanção estatal, a dos atos sociais de fato, com força jurídica, de flui de fatores outros, qual seja, p. ex., no caso do costume, a opinio necessitatis.

Por seu turno, o Direito Científico passa às vezes a impor-se ao modo de verdadei­ro preceito, em virtude do consenso dos doutores (communis opinio doctorum) e da sua correspondência com a verdade jurídica.

Outros critérios, porém, podem ser utilizados para a classificação das formas de expressão do Direito, como, p. ex., o da importância que apresenta na integração do sistema jurídico. Desse ponto de vista, distinguir-se-ia inicialmente a lei, que é a forma fundamental ("), considerando as demais - formas complementares entre elas - o costume, a jurisprudência, o Direito Científico, os Princípios Gerais de Direito e os Brocardos Jurídicos.

(50) Sobre a questão das leis injustas, v. Cathrein, op. cit., pág. 182; Roubier, «Théorie Générale du Drait», pág. 323, 2~ ed., 1951; Georges Rennard, <<introducción ai Estudio dei Derecho», vol. I, pág. 142; François Gény, «Science et Téchnique», vol. lI, pág. 348.

(51) \'. de nossa autoria «Dos Princípios Gerais de Direito», 260 págs., 1963, e «Brocardos Juridicos - As Regras de Justiniano», 160 págs., 1961, ed. da Revista dos Tribunais.

(52) \'. arl. -1:' da Lei de Introdução ao Código Civil; v. também art. 141, n? 2, da Constituição Federal.

NEGÓCIOS PREPARATÓRIOS

Orlando Gomes

I. Classificação

NEGÓCIOS PREPARATÓRIOS

SUMÁRIO

2. Proposta irrevogável 3. Opção 4. Contrato preliminar unilateral 5. Apreciação geral

I. Classificação

ORLANDO GOMES

A formação dos contratos pode ser precedida de declarações preparatórias ou pre­cursoras tendentes à sucessiva vinculação definitiva do declarante ou dos declarantes.

Interessa definir e distinguir tais figuras jurídicas para estabelecer, com exatidão, as respectivas qualificações e para determinar a natureza e os efeitos que cada qual pro­duz.

Os vínculos preparatórios que demandam breve exame são: a) a proposta irrevogável; b) a opção; e c) o contrato preliminar unilateral.

2. Proposta irrevogável

O proponente de um contrato pode se obrigar a não revogá-Ia, mantendo-a firme por certo tempo. Tem, ao contrário, a faculdade de retratar-se, impedindo que o con­trato se forme.

A natureza da obrigação ou compromisso de mantê-Ia tem construção doutrinária que se bifurca: segundo uma corrente de doutores, a promessa irrevogável consiste nu­ma declaração única e unitária; segundo a outra, compreende duas declarações, uma de proposta, a outra, do compromisso de não revogá-Ia ('). Para os primeiros, sendo a de­claração de irrevogabilidade acessória da proposta participa da sua natureza de atro pré-negociaI. Para os outros, a declaração de irrevogabilidade é um negócio unilateral de renúncia.

(I) G. Mirabelli, «Dei Contratti in generale», Torino, UTET, 1961, pág. 50.

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A promessa irrevogável ou promessa firme tem de constar de uma declaração ex­pressa e requer a aposição de um termo. O prazo da irrevogabilidade é de preceito.

Não se trala de um ato simplesmente vinculante, mas de uma promessa unilateral com força obrigatória, dado que o proponente se auto-obriga na mediada em que criou, para ele próprio, a obrigação de não revogá-la.

São efeitos principais da proposta irrevogável: a) a ineficácia da revogação;

b) a permanência da proposta. Nenhum efeito produz a declaração revocatória, emitida na vigência da cláusula de

irrevogabilidade, não impedindo, portanto, que o contrato se forme. Do mesmo modo, continua válida e eficaz a proposta mesmo que sobrevenha a incapacidade do propo­nente, ou sua morte. Este efeito pode ser afastado expressamente pelo autor da propos­ta ou resultar das circunstâncias, como por exemplo, se de contrato íntuitu personae se trata.

Não se deve confundir proposta irrevogável com proposta obrigatória. Toda pro­posta obriga o proponente, se o contrário não resultar dos seus termos da natureza do negócio, ou das circunstâncias do caso (Código Civil, art. 1.080). O Código Civil dis­crimina, ademais, casos em que deixa de ser obrigatória a proposta (art. 1.081).

A distinção entre proposta irrevogável e opção, bem como entre proposta irrevogá­vel e contrato preliminar, será feita adiante.

A resposta ao quesito demanda concisa apreciação da figura jurídica da opção à luz dos ensinamentos da doutrina moderna.

Mister se faz defini-la, determinar sua natureza, examinar seus efeitos e fixar as conseqíiências de sua revogação.

3. Opção

A opção é um contrato em virtude do qual uma das partes faz uma proposta irre­vogável de concluir ulterior contrato e a outra parte declara aceitá-la, tornando este contrato perfeito e acabado e).

São dois contratos sucessivos que se travam entre as partes. O primeiro - o de opção - e preparatório do segundo e se apresenta no iter de sua formação, tendo a função de suscitá-lo. A parte favorecida com direito de opção tem a faculdade de pro­vocar a conclusão do contrato definitivo, que pode ser a venda, a locação ou outro contrato bilateral, ou deixar de exercê-la, hipótese em que o contrato preparatório se desfaz sem conseqüências patrimoniais para qualquer das partes. O segundo, é definiti­vo no sentido de que se torna perfeito e acabado no momento em que se verifica a de­claração positiva do optante. Conquanto sejam contratos coligados, são autônomos, sujeitando-se, um e outro, às normas relativas aos contratos bilaterais.

Tal como a proposta irrevogável, o contrato preliminar unilateral e o pacto de preempção, a opção apresenta-se sob três aspectos básicos: I ~') o da preliminariedade e

(2) A. Von Thur, «Tratado de las obligaciones», trad., Madrid, Reus, 1934, T. I~'; Mirabelli, «Dei Contralti in Generale», Torino, Utet, 1961; Tamburrino, «( vincole unilaterali nella for­mazione progressiva dei contralto», Milano, Giuffré, 1954; Gorla, Note sulla distinzione fra opzione e proposta irrevocabile in Riv. Dir. Civib>, 1962, I, págs. 213 e segs.; Sconamiglio, «Contralti in Generale», Milano, Vallardi, 1961; F. Bena Schmidt, «Le Contrat de Promesse Unilaterale de Vente», Paris, L. G. D. J., 1983; de minha autoria, «Novas Questões de Direito Civil», pág. I.

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da preparatoriedade dos seus efeitos; 2~') o da autonomia em relação ao contrato prin­cipal; e J~') o da unilateralidade dos efeitos e). Com efeito, no pacto de opção, as par­tes não visam à criação de uma situação jurídica definitiva, mas, sim, à criação de uma situação jurídica preparatória da definitiva; o contrato de opção tem estrutura, nature­za e efeitos próprios e seu fim é constituir uma relação jurídica cujo objeto é a irretra­tabilidade da proposta; o vínculo surge exclusivamente com a aceitação do optante (.).

O regime jurídico do contrato de opção é explicado por duas teorias distintas: pela primeira, é um contrato perfeito e acabado sujeito à condição mista de aceitação pelo destinatário da proposta; pela segunda, é um contrato pendente (em formação) subor­dínado á condicio juris da aceitação, - contrato que se aperfeiçoa com a aceitação da proposta por seu destinatário (').

A essas teses, acrescentou-se a teoria segundo a qual o contrato de opção é mera fase do contrato definitivo, que por este acaba absorvido. A primeira e a terceira teo­rias são inaceitáveis; a primeira, porque considera existente um contrato antes que se tenha verificado o encontro das duas necessárias declarações de vontade (6); a terceira, porque sacrifica a autonomia do contrato de opção quando, na verdade, é indepen­dente um do outro, por ter objeto distinto, do contrato principal.

Nascida de um contrato, a opção é algo mais do que a simples irrevogabilidade, por isso que gera um direito com um conteúdo prático consistente, segundo Gorla, em que o termo fixado não é para o destinatário responder se aceita a proposta, mas, sim, para que exerça o direito (de opção) (').

Uma vez exercido o direito de opção, o contrato definitivo nasce, como se fosse fruto de um contrato preliminar unilateral, muito embora, segundo alguns, o sujeito que se vincula na opção não estipule um contrato, eis que apenas mantém a expectativa de que o optante venha a terminar a sua formação ("). Nem por isso a disciplina das duas figuras jurídicas deve ser diferente quando um contrato definitivo começa a ter vi­da. É que, como explica G. Gabrielli, em monografia excelente ("), as relações prepara­tórias ou negócios jurídicos dessa espécie constituem uma categoria e são considerados como momentos de um processo complexo de formação progressiva do contrato. Dis­tintos, que sejam, a proposta irrevogável, o pacto de opção e o contrato preliminar, a diferença é, sob certos aspectos, irrelevante. Não se ignora a dissimilitude de estrutura, nem que o interesse de ambas as partes no negócio preparatório de opção constitui uma sujeição, enquanto, no contrato preliminar, estabelece uma obrigação.

Pelo visto, a diferença é também funcional, mas não se projeta nos efeitos do con­trato principal, como quando se trata, por exemplo, de um negócio preparatório de venda. Tanto o contrato preliminar unilateral como o pacto de opção conduzem à rea­lização de um negócio translativo, que requer novo consentimento no contrato prelimi­nar e observância de forma própria no contrato de venda resultante da manifestação optativa. A recusa do novo consentimento e dessa atuação da vontade do vendedor dão lugar à execução coativa dos dois contratos, sob forma coativa.

Essa construção doutrinária tem respaldo na melhor doutrina.

(.1) Tamburrino, PaliO di opzione, verbo in Novissimo Digesto Italiano, XII, pág. 725.

(-I) Autor e trab. às.

(.'i) G. 1\lirabelli, «Dei Contratti in Generale», Torino, UTET, 1961, pág. 57.

(6) Autor supracitado, pág. idem.

(7) Note sulla distinzione fra opzione e proposta irrevocabile, in Rivista di Diritto Civile, Ano VIII, 1962, Primeira Parte, pág. 221.

(8) Fran,oise Benac Schmidt entende que a promessa já é um contrato sob condição suspensiva. Op. cit., pág. 30.

(9) 11 Rapporto giuridico preparatorio, Milano, Giuffré, 197-1.

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Citando Forchielli (li'), que aproxima o pacto de opção do contrato preliminar uni­lateral, informa Mirabelli que essa aproximação deu lugar ao aparecimento da questão da aplicabilidade à opção da execução especifica e que a orientação em sentido afirma­tivo dos tribunais italianos ("). No mesmo sentido, o ensinamento de Messineo: <di pat­to di opzione é (como il preliminare) suscetibile di adempimento coatto in forma speci­fica» (12). Isso significa, segundo o autor citado, que o optante pode, se a contraparte não cumpre o contrato, provocar, mediante ação judicial, a prolação de uma sentença especial que faça as vezes e produza os efeitos do contrato definitivo, isto é, que, no caso de opção - no qual, como visto, o contrato definitivo já está formado -, a exe­cução especifica é deste contrato. Assim é porque o objeto do contrato principal é a transferência da propriedade imóvel e o proprietário renitente ou impudente pode recusar-se a outorgar a escritura pública, obstando-a com eSSél. atitude. Nesse caso, deve o Juiz prolatar a sentença se o autor da ação houver realizado sua prestação -inadimpIenti non est inadimplendum. A execução coativa em forma especifica aplica-se quando a obrigação de dar coisa determinada está no patrimônio do devedor e lhe cumpre entregá-la mediante o cumprimento de uma obrigação de fazer que nasce de uma relação real de propriedade. Como em nosso Direito, o contrato não transfere o domínio das coisas, o modo de aquisição recusado pela outra parte (o vendedor) é su­prido pelo Juiz, a requerimento do comprador e adquirente.

Todos esses ensinamentos colhidos na doutrina ítaliana podem ser aproveitados en­tre nós já que o Direito Brasileiro os absorveu no Código de Processo Civil. No art. I? da Lei n~) 6.014, de 27-12-73, manteve-se, sob rito sumaríssimo, a ação de adjudícação compulsória, destinada a materializar o direito do compromissário-comprador quando o compromitente-vendedor se recuse a outorgar a escritura definitiva de compra e ven­da. Nos arts. 639, 640 e 641, no capítulo da execução das obrigações de fazer e de não fazer, explicitou o codificador as três situações reunidas no art. 1.006 do código revo­gado ('3). Ao contrário da Lei n? 6.014, que restringe a sua aplicação ao compromisso de venda, o Código de Processo estende as suas disposições às obrigações de fazer em geral. Ora, venha de onde vier, a obrigação de outorgar a escritura para a transferência da propriedade de coisa determinada é desenganadamente uma obrigação de fazer. Tendo, como tem, essa natureza, quem pode exigir o seu cumprimento tem direito, em caso de recusa, a obter sentença judicial que produza o mesmo efeito do fato irrealiza­do (a declaração de vontade ou a outorga da escritura) - arts. 639 e 641.

No caso concreto, a necessidade de obter a escritura não visa à conclusão do con­trato, como sucede na promessa irretratável de venda e, por isso mesmo, autoriza a propositura da ação de adjudicação compulsória. No caso concreto, o contrato de compra e venda já foi celebrado com a declaração de vontade do optante (consulente), precisando apenas ser executado. A sua execução requer, entretanto, a assinatura do in­dispensável instrumento público, uma vez que o contrato preparatório foi feito por ins­trumento particular. Tal como sucede com o contrato preliminar, o contrato preparató­rio de opção não precisa ter a forma do instrumento definitivo. Desse princípio resulta que na opção para a compra de um bem imóvel não é necessária a escritura pública, embora a exija o contrato definitivo. Formado este no mesmo momento em que se ex­tingue o contrato preparatório, o instrumento privado é válido porque permitido, mas

(10) Contratto preliminare unilaterale e patto d'opzione.

(11) Op. cit., pág. 59.

(12) Como o preliminar, pacto de opção é suscetível de execução coativa em forma específica: «Manuale di Diritto Civile e Commerciale», 9: ed., Milano, Giuffré, 1959, volume 3?, pág. 610.

(13) Alcides Mendonça Lima, «Comentários ao Código de Processo Civil>" vol. IV, Tomo lI, Rio de Janeiro, Forense, 1974, pág. 755.

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sua eficácia dependerá da outorga da escritura pública como se fosse um compromisso de venda, quando menos por efeito de conversão (").

4. Contrato preliminar unilateral

o contrato preliminar unilateral ou a promessa unilateral de contrato é uma decla­ração de vontade tendente a constituir novo vínculo contratual, determinando, de logo, seus elementos subjetivos e objetivos.

São seus elementos: o acordo das duas partes, o objeto e a causa. Como negócio preparatório, deve conter todos os dados do contrato definitivo. Tem como objeto a conclusão de outro contrato chamado principal ou definitivo, e como causa, a sua pre­paração. O efeito capital do contrato preliminar unilateral é uma obrigação de fazer cujo objeto consiste em prestar o consentimento para a formação do contrato definiti­vo. A obrigação de prestar o consentimento resulta, para o promitente, de sua assun­ção no contrato preliminar.

Descumprida que seja, a contraparte pode, segundo alguns autores, exigir o ressar­cimento dos danos que sofrer em conseqüência do seu inadimplemento ou, segundo ou­tros, promover a execução específica, a fim de obter a efetivação do contrato definitivo e a produção de todos os seus efeitos. Entre nós, a segunda solução é preferível com o aproveitamento da experiência de sua aplicação à promessa bilateral no modelo do compromisso de venda.

O contrato preliminar unilateral distingue-se da opção e da proposta irrevogável. Da opção distingue-se porque requer a conclusão de outro contrato, o definitivo,

com prestação de novas declarações negociais por ambas as partes. Um contrato preli­minar unilateral implica um pacto de contrahendo e uma coligação funcional entre dois vínculos contratuais, o preparatório e o definitivo. No preparatório, a outra parte não se obriga a comprar, tendo, por isso mesmo, a liberdade de concluir o definitivo, ou não. Por fim, como esclarece Tamburrino, o contrato preliminar deve conter os ele­mentos essenciais do contrato definitivo, bem como os que podem influir na vontade e intenção de alcançá-lo (").

Como na opção, o beneficiado pode obter, mediante sentença constitutiva, os mes­mos efeitos do consentimento e pode ter o intento de procrastinar a redação do contra­to definitivo, a fim de realizá-la na forma solene exigida para o contrato solene.

Da promessa irrevogável distingue-se pela estrutura. Promessa irrevogável é um ato unilateral, enquanto o contrato preliminar unilateral, tal como sua denominação tra­duz, é, na sua formação, um negócio bilateral, sendo unilateral nos efeitos, eis qu'e só obriga ao promitente. A proposta irrevogável tem a natureza de uma declaração pré­negociaI.

5. Apreciaçào geral

Se bem que o Código Civil seja omisso praticamente quanto à disciplin~ desses ne­gócios preparatórios, o respeito à autonomia privada respalda sua utilização no comér­cio jurídico; principalmente nos tempos presentes, apesar de se tlistanciarem daquele voluntarismo individual que marcou incisivamente uma fase próxima da evolução do Direito. Persiste, sem embargo disso, com limitações, a liberdade de contratar e se di­fundem certas técnicas na prática mercantil, principalmente na periferia do contrato de compra e venda, que reclamam uma revisão em tema de formação dos contratos. A

(14) Sobre a figura da conversão do contrato nulo v. Messineo, op. cit., pág. 617.

(15) I vincoli unilaterali nella formazione progressiva dei contrato, Milano, Giuffré, 1954, pág. 68.

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intromissão do Estado na vida econômica para regular inclusivamente interesses mera­mente privados passou a ser justificada à medida que declinava o respeito à palavra da­da, à fé jurada. A formação dos contratos deixa de ser uma operação simples e tanta é a facilidade de romper os compromissos no período pré-contratual que numa tese de doutorado, sua autora registra significativa transformação na garantia das promessas feitas. Nossa época - adverte Françoise Benac Schmidt ('6) - «não tem mais confian­ça total no Poder Judiciário; prefere-se hoje a garantia do poder regulamentar àquela do Juiz». O Judiciário deixa de ser, assim, a garantia dos compromissos assumidos. Daí a premência de norma que bem configure e melhor disponha sobre essas figuras preparatórias, sem esquecimento de que são muito importantes, bem assim, na prote­ção ao consumidor.

(16) Le Contrat Unilaterale de Promesse Unilaterale de Vente, Paris, L.O.D.J., 1983, pág. 30.

o MÉTODO TÓPICO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Paulo Bonavides

PAULO BONAVIDES

O MÉTODO TÓPICO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Com a tópica inaugurou-se para a hermenêutica contemporânea uma direção indu­bitavelmente renovadora. A retomada desse caminho cognitivo no campo jurídico se deve a Theodor Viehweg com a publicação em 1953, de «Tópica e Jurisprudência» (<<Topik und Jurisprudenz»). Motivou esse livro reflexões profundas sobre o Direito, o Estado e a Constituição, a partir de uma concepção metodológica, se não desconheci­da, pelo menos desde muito abandonada(').

Com efeito, o pensamento tópico fora familiar a Aristóteles, que já o contemplava como um meio de lograr o consenso ou a evidência da verdade, ou seja, «o que a to­dos, ou à grande maioria ou aos doutos se lhes afigurava verdadeiro».

Com Vico, na idade moderna, a tópica se viu preservada e defendida contra a on­da de cartesianismo e a manifesta preferência dada aos métodos matemáticos ou científico-naturais, tão em voga no século XVII e durante a primeira metade do século XVIII.

(I) Foi Nicolai Hartmann o pensador que no campo filosófico contrapôs modernamente duas modalidades fundamentais de pensamento: o sistemático e o aporético (N. Hartmann, «Dies­sets von Idealismus und Realismus», Kantstudien XXIX, 1924, págs. 1601206). Abriu ele as­sim caminho à restauração da tópica, como aconteceu, com mais vigor na esfera da ciência jurídica, a partir da década 50, graças à obra de Viehweg, conforme vimos.

A caracterização do raciocínio sistemático se reveste em Hartmann da seguinte feição: «O pensamento sistemático parte do todo. A concepção é aqui primordial e permanece domi­nante. Não buscamos aqui o ponto de vista senão que o presumimos ... Conteúdo de proble­ma que não se compadece com o ponto de vista é recusado» (<<Systematische Denkweise geth vom Ganzen aus. Die Konzeption ist hier das Erste und bleibt das Beherrschende. Nach dem Standpunkt wird hier nicht gesucht, er wird zuallererst eingenommen ... Problemgehalte, die sich mit dem Standpunkt nicht vertragen, werden abgewiesen»). N. Hartmann, ob. cit. pág. 163.

Quanto ao pensamento aporético, escreve ele: «O modo aporético de pensar em tudo procede de forma' diferente. Os problemas antes de mais nada se lhe afiguram sagrados. Não conhecem nenhum fim da pesquisa que não seja o da investigação do problema mesmo ... O próprio sistema não lhe é indiferente, mas vale para ele apenas como idéia, como perspectiva. Não põe ele em dúvida a existência do sistema, apenas encontra o que o determina latente em seu próprio pensamento. Disso está certo, ainda quando o não compreenda» (<<Aporetische Denkweise verfahrt in aliem umgekehrt. Ihr sind die Problem vor aliem heilig ... Sie kennt keine Zwecke der Forschung neben der Verfolgung der Probleme selbst ... Das System selbst ist ihr nicht gleichgiiltig, aber es gilt ihr nur ais Ausblick. Sie zweifelt nicht daran, dass es das System gibt, nur das es vielleicht in ihrem eigenen Denken latent das Bestimmende ist. Darum ist sie seiner gewiss, auch wenn sis es nicht erfasst». N. Hartmann, ob. cits. pág. 164).

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Em «De Nostri Temporis Studium Ratione», mostrou-se o pensador italiano um enérgico defensor da «ratio studiorum» dos antigos, volvida para a prudência e a sa­piência, em contraste com a inclinação dos contemporâneos que, empregando o método «crítico», cultivavam a ciência e faziam profissão de fé nos conceitos racionais com os únicos que deveriam abrir as portas de acesso à verdade. Mas Vico não evitou que a tó­pica caísse em esquecimento, como decorrência do prestígio das posições cartesianas no domínio filosófico.

Ocorre, porém, que a exaustão posterior do positivismo racionalista, a par da des­crença generalizada em suas soluções, fez inevitável a ressurr.eição da tópica como mé­todo. Tal se verificou na esfera do Direito há mais de vinte anos, graças a Theodor Viehweg, em razão justamente da insuficiência do método «científico» dos naturalistas e também do malogro das correntes idealistas que procuraram por outras vias resolver com exclusividade o problema do método, afastando-se dos esquemas clássicos de ins­piração objetiva ..

«O pensamento jurídico é tópico» - foi o lema do novo combate que iria refazer toda a discussão sobre a metodologia contemporânea do Direito. A obra de Viehweg causou na Ciência do Direito sensação igual à de David Easton na Ciência Política, de que ambos se tornaram os respectivos renovadores.

O prestígio da tópica em toda a Alemanha logo se fez sentir com a adesão de três civilistas eminentes - Wieacker, Esser e Coing - seguida do apoio de constitucionalis­tas de peso, como Schneider e Ehmke, relatores do tema «Princípios de Interpretação Constitucional», exposto na assembléia de 1961 dos professores de Direito Público na­quele país. Inclinaram-se também para a tópica, nomeadamente para uma teoria mate­rial da Constituição, construindo estradas próprias com o propósito de alcançar objeti­vos semelhantes, juristas da envergadura de Martin Kriele, Peter Heberle, Friedrich Mliller e Konrad Hesse.

«Pensar o problema» constitui o âmago da tópica em suas considerações acerca do método. Novo estilo de argumentação e acesso à coisa, a tópica não é uma revolta con­tra a lógica, conforme se pretendeu equivocadamente inculcar. Busca, em primeiro lu­gar, conforme ressaltou Esser, demonstrar que o argumento dedutivo não constitui o único veículo de controle da certeza nacional, pelo menos o único que não se engana(').

Contudo, tanto em Viehweg como em Esser, parece haver lugar para um confron­to entre o pensamento «tópico» (idêntico ao «aporético», em Viehweg, como assinala Kriele) e o pensamento «sistêmico», na acepção que lhe foi conferida por Nicolai Hart­mann, segundo observa ainda o mesmo Krielee).

O pensamento sistêmico seria por excelência um pensamento «dedutivo», ao con­trário da tópica. Como técnica jurídica da práxis, estaria esta última sempre volvida para a determinação do «respectivamente justo», ou seja, para a solução peculiarmente adequada a cada caso, pensado como um problema em toda a sua complexidade. «A situação - diz Esser - deve ser compreendida em toda a sua complexidade, a fim de problematizar-se o ideal de uma solução»(4).

Definindo os «topoi», ou <doci», Esser os reputava «pontos de vista pragmáticos de justiça material» ou de «estabelecimento de fins jurídico-políticos» ou ainda, segun­do a acepção clássica, pontos retóricos de partida para a argumentação do problema(5).

(2) lasef Esser, «Varverstandnis und Methadenwahl in der Rechtsfindung», Frankfurt am Main, 1972, pág. 155.

(3) Martin Kriele, «Thearie der Rechtsgewinnung», Zweite Auflage, Berlin, 1976, pág. 117.

(4) lasef Esser, ab. cit., págs. 156/157.

(5) lasef Esser, «Grundsatz und Narm», 3., unveranderte Auflage, Tübingen, 1974, pág. 44.

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o contraste tópica e sistema reaparece em Schneider, termino10gicamente dissimu­lado, quando ele estabelece a distinção entre «elementos cognitivos e volitivos» do co­nhecimento jurídico. O volitivo é aí um instrumento do método tópico e o cognitivo um dado característico de inquirição dedutiva, lógica e sistemática(6).

Com a intervenção crítica de Martin Kriele se esclareceu posteriormente que a anti­nomia tópica-sistema não tinha a procedência de início vislumbrada, repousando, por­tanto, num equívoco. O brilhante jurista na terceira e quarta tese sobre a tópica como método jurídico demonstrou ser ela cabalmente destituída de fundamento.(')

Caracterizou Viehweg a tópica como uma «técnica de pensar o problema», ou se­ja, aquela «técnica mental que se orienta para o problema»(B).

Atualizou o jurista uma velha fórmula, tendo em vista a solução de problemas concretos na esfera do direito.

Da tópica clássica, concebida como simples técnica de argumentação, a corrente restauradora, encabeçada por aquele jurista da Mogúncia, compôs um método fecundo de tratar e conhecer o problema por via do debate e da descoberta de argumentos ou formas de argumentação que possam, de maneira relevante e persuasiva, contribuir pa­ra solucioná-lo satisfatoriamente.

Trata-se de uma técnica de chegar ao problema «onde ele se encontra», elegendo o critério ou os critérios recomendáveis a uma solução adequada.

«Os limites da tópica - escreve Zippelius - se encontram já na sua função instru­mental. Ela é uma técnica que simplesmente ajuda a descobrir que conhecimentos e in­terrogações podem em cada caso desempenhar determinado papel, sem, contudo, por si mesma - como simples técnica de debate - oferecer sozinha o suficiente fundamento da, solução»(").

Sem embargo da sensação que provocou como um modismo feliz da metodologia contemporânea, a tópica foi de certo modo o coroamento de preocupações que já se podiam pressentir desde a velha jurisprudência dos interesses, de Philipp Heck, também volvida para a consideração de problemas, tidos como «questões abertas» ao pesquisa­dor('O).

(6) Veja-se Peter Schneider: «Constitui hoje uma evidência que o «conhecimento judicial» possui elementos tanto cognitivos como volitivos e que esse «conhecimento» equivale à pretensão de validcz da sentença» (<<Es gehort heute wohl zu den Selbstversüindlichkeiten, dass dem rich­terlichen «Erkenntnisd» kognitiva wie volitive Elemente eignen und das «Erkenntnis» mit dem Geltungsanspruch des Urteils gleichgesetzt wird», Peter Schneider in «Prinzipien der Verfassungsinterpretation», VVDStRL, Heft 20, Berlin, 1963, pág. 34, e Martin Kriele, ob. cit. pág. 118).

(7) M. Kriele, «Theorie der Rechtsgewinnung», ob. cit. pág. 150.

(8) T. Viehweg, «Topik un2. jurisprudenz», Mlinchen, Auflage, 1963, pág. 167.

(9) Reinhold Zippeliu, «Problemjurisprudenz und Topik» in Neue juristisch Wochenschrift, Heft 48, 1967, pág. 2.233.

(10) «O pesquisador, a seguir, procura compreender o problema como uma questão aberta, tanto quanto possível. Depois, a partir dessa posição, extraem-se e examinam-se as imagináveis so­luções e fundamentações para cada problema. A conclusão se forma pela avaliação das fun­damentações dos prós e contras das distintas soluções e desse modo se chega à decisão final» ou «Os problemas se nos oferecem como complexos de problemas e as decisões como grupos de decisões» (<<Der Forscher sucht zunachst das Problem moglichst bestimmt ais offene Frage zu erfassen. Dann werden von dieser Gundhaltung aus die verschiedenen denkbaren Losungen und die Anhaltspunkte flir jede von ihnen hervorgeholt und angeschaut. Den Schluss bildet die Abwagung der Anhaltspunkte flir und wider die verschiedenen Losungen und dadurch die schliessliche Entscheidung» ou «Die Probleme begegnen uns ais Problemkomplexe und die Entscheidungen ais Entscheidungengruppen in Philipp Heck, «Begriffsbildung und Interessen­jlirisprudenz», 1932, págs. 149 e seguintes).

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Diante desses obstáculos, só a tópica, como hermenêutica específica, estaria ade­quada metodologicamente a resolver dificuldades inerentes à Constitução nos seus fun­damentos.

Com a tópica, a norma e o sistema perdem o primado('B). Tornam-se meros pon­tos de vista ou simples <dopoi», cedendo lugar à hegemonia do problema, eixo funda­mentai da operação tnterpretativa.

Todos os métodos clássicos são igualmente rebaixados à condição de pontos de vis­ta ou «topoi», a saber, instrumentos auxiliares que o intérprete em presença do proble­ma poderá empregar ou deixar de fazê-lo, conforme a valia ocasional eventualmente oferecida para lograr a solução precisa.

Sendo a Constituição aberta, a interpretação também o é. Valem para tanto todas as considerações e pontos de vista que concorram ao esclarecimento do caso concreto, não havendo graus de hierarquia entre os distintos <doci» ministrados pela tópica.

A Constituição com a metodologia tópica perde até certo ponto aquele caráter re­verencial que o formalismo clássico lhe conferira. A tópica abre tantas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material da Constituição, tornando-se, quer se queira, quer não, o elemento predominante, tende a absorver por inteiro aspecto for­maI.

A invasão da Constituição formal pelos <dopoi» e a conversão dos princípios cons­titucionais e das próprias bases da Constituição em pontos de vista à livre disposição do intérprete, de certo modo, enfraquecem o éaráter normativo dos sobreditos princípios, ou seja, a sua juridicidade. A Constituição, que já é parcialmente política, se torna por natureza politizada ao máximo com a metodologia dos problemas concretos, decorrente da aplicação da hermenêutica tópica. .

Todos os meios interpretativos, segundo a nova escola, podem ser utilizados desde que convenham ao esclarecimento e solução do problema. A abertura metodológica é completa e a argumentação persuasiva terá por ponto de apoio essencial o consenso, e por ponto de partida uma espécie de «compreensão prévia» (<<VorversHindnis»), tanto do problema como da Constituição.

Nessa compreensão prévia e nesse consenso se acham talvez as bases de estabili­dade e também de legitimidade da nova metodologia que, abalando a estrutura jurídica formal, de certo modo menospreza os cânones clássicos da interpretação e dissolve o formalismo da Constituição. E o dissolve naquela camada de elementos materiais e concretos, em cujo âmbito o problema é posto.

O consenso, que serve de pedestal ao decisionismo do caso concreto, não é das no­ções mais claras da tópica constitucional. Horst Ehmke o explica como aquela força de convicção que não emana dos Tribunais (referia-se diretamente ao «Bundesverfassungs­gericht» de Karlsruhe), mas de «todos os que pensam com justeza e sensatez» (<<ver­nünftig - und Gerscht-Dekenden») e que vêm a ser, segundo eles os nomeia, os mes­tres do direito e os juízes, aqueles que fazem a «doutrina dominante» e a «jurisprudên­cia pacífica». Caso faltem, Segue-se-Ihe ainda o consenso da comunidade inteira('9).

A tópica representa, enfim, o tronco de onde partem na Alemanha, as direções e correntes mais empenhadas em renovar a metodologia contemporânea de interpretação das regras constitucionais.

(18) Veja-se Ernst-Wolfgang Bockenferde, «Die Methoden der Verfassungsinterpretation­Bestandaufnahme und Kritik», in Neue Juristische Wochenschrift, Heft 46, 1976, pág. 2.092.

(19) Horst Ehmke, VVDStRL 20, 1963, págs. 71/72.

Conferência pronunciada a 15-11-1981.

A POSITIVIDADE NO DIREITO

Paulino Jacques

PAULlNO JACQUES

A POSITIVIDADE NO DIREITO

SUMÁRIO

I. Conceito de Direito 2. Conceito de positividade 3. Formas específicas de Direito Positivo 4. Conclusão

I. Conceito de Direito

Ao conjunto das normas de organização do convívio humano e de conduta do ho­mem dentro desse convívio denomina-se direito.

É óbvio que ditas normas apresentam, conteúdo (matéria) e continente (forma) va­riados. Estão aí as normas internacionais (tratados, convenções e acordos) e as normas constitucionais (emendas, leis complementares e leis ordinárias), entre outras, para comprová-lo.

Sejam «normas abstratas ou gerais» (as normas civis ou penais), sejam «normas concretas ou particulares» (as sentenças e os contratos) - todas elas, independente­mente de seu conteúdo ou de seu continente, estruturam o convívio humano, a socie­dade política, e traçam o comportamento do homem.

Quanto a isso, não divergem as escolas filosófico-jurídicas. A divergência, entre­tanto, ocorre no que diz respeito à natureza do fenômeno da juridicidade.

Para os jusnaturalistas, por exemplo, o direito é produto da «natureza divina» (São Paulo, Santo Agostinho e São Tomás) ou da «natureza humana» (Aristóteles, Cícero e Grotius); para os juscontratualistas, fruto do «contrato social» (Hobbes, Locke e Rousseau); para os jusracionalistas, obra da «razão humana» (Kant, Hegel e Kelsen); para os jushistoricistas, «determinação da história» (Hugo, Savigny e Puchta); para os jussociologistas, «emanação dos grupos sociais» (Jhering, Gierke e Duguit); e para os jusaxiologistas, «criação dos valores eidético-fenomenológicos (Radbruch, Stammler e Cossio).

Assim, considerado o direito como produto da natureza divina ou humana, ou da razão ou do contrato, ou, ainda, da história ou do agrupamento social, ou, por fim, da axiologia - o que, realmente, importa é a sua positividade no convívio humano.

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2. Conceito de positividade A qualidade do que é positivo denomina-se positividade. Positivo - na concepção

de Comte - é tudo que se funda em fatos, em fenômenos suscetíveis de observação e experimentação. É a chamada realidade fenomênica ou fática.

Embora a positividade seja multiforme - a «experimental», de Bacon; a «utilitá­ria», de Dentham; a «sensualista», de Locke; a «pragmática», de William James -basta, para este nosso estudo, que a consideremos como tal, isto é, a positividade em si mesma, independentemente de sua natureza.

Também, a nossa conceituação é ampla, de modo a abranger as diferentes formas por que a positividade normativa se apresenta na sociedade política: costume, lei, juris­prudência, doutrina e ajustes particulares.

3. Formas específicas de Direito Positivo

o Direito Positivo, que é o Direito Objetivo vigente - o que atua no convívio hu­mano - manifesta-se sob forma variada.

O costume é a «longa diuturna et inveterata consuetudo» no conceito famoso de Ulpianus. Tanta força tinha, como jus non escriptum, nesses velhos tempos romanos, que, segundo Ahrens e Mommsen, as leges não prevaleciam contra ele. Pode dizer-se que revogava as leis que não se acomodassem aos seus ditames. E isto porque o cos­tume era como que manifestação da vontade dos Deuses, que lhe imprimiam cunho de sacralidade. Daí, o antiquíssimo brocardo nulla lex sine moribus, e a necessidade em que se encontrou o Imperador Constantino I (306 a 337 DC) de proibir, em sua Constitutione, que o consuetudo revogasse as leges.

Também, na antiga Germânia, o costume revogava as leis, à maneira romana, na lição de Ahrens.

E, em todos os tempos, na Grã-Bretanha e na Hungria, o costume teria força de lei, ainda que não possa revogá-Ia (v. de Paulino Jacques, «Curso de Introdução à Ciência do Direito», 4~ edição, Forense, 1971, Capo XXVIII). Tal ocorre em outros países.

Contudo, sempre se estabeleceram requisitos para que o costume constituísse Direi­to Positivo. Na velha Roma, a opinio juris ac necessitatis; na Grã-Bretanha, o reconhe­cimento pelos Tribunais Judiciários; e em outros países, como observa Dabin, inclu­sive, no Brasil, o registro da sentença de reconhecimento no órgão estatal competente (Código de Processo Civil Brasileiro, de 1939, art. 262).

Demais, no Brasil, o Código Comercial, de 1850, vigente ainda hoje, contém vá­rios dispositivos que mandam aplicar «o estilo, o uso ou o costume, inexistindo lei ou ajuste das partes» (arts. 130, 133, 154, 169, 176 e 186, entre outros). Também, a nossa Lei de Introdução ao Código Civil autoriza o Juiz a decidir «de acordo com o costu­me» (art. 4?), tanto quanto a nossa Consolidação das Leis do Trabalho (art. 8?).

Daí porque andou acertado o Mestre Haroldo Valladão, quando incluiu o costume entre as fontes positivas do Direito (Anteprojeto de Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas, Rio, 1964, ~rt. 6?). Vale transcrever na íntegra dito texto:

«Art. 6? O Juiz e as autoridades não se eximem de sentenciar, despa­char ou providenciar por ser a lei silenciosa, obscura ou ambígua.

«Aplicam as disposições concernentes aos casos análogos; o direito costu­meiro; as normas estabelecidas pelos indivíduos e pelas pessoas jurídicas em atos, contratos, convenções coletivas, estatutos, regimentos, que não ofendam a ordem pública (art. 12 desta Lei); os princípios gerais de Direito; a jurispru­dência assente e a doutrina aceita, comum e constante, dos jurisconsultos».

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«Art. 12. Não terão eficácia quaisquer declarações de vontade que vi­sem a modificar a constituição da família ou que ofenderem a soberania na­cional, a ordem pública, a eqüidade, a moral e os bons costumes».

Bem se percebe que o Mestre Valladão, além do costume, refere outras fontes po­sitivas do Direito, a saber:

a) as normas estabelecidas pelos indivíduos, que não ofendam a ordem pública; b) as normas estabelecidas pelas pessoas jurídicas em atos, contratos, convenções

coletivas, estatutos e regimentos, que não ofendam a ordem pública; c) os princípios gerais de Direito; d) a jurisprudência assente; e) a doutrina aceita, comum e constante, dos jurisconsultos. a) As normas estabelecidas pelos indivíduos. São aquelas que as pessoas físicas es­

tabelecem nos contratos que celebram entre si, para regular os seus negócios ou interes­ses legítimos. Constituem, sem dúvida, «Direito Positivo», que o Mestre Valladão de­nomina «Direito particular». O Código Civil de Napoleão considera o «contrato indivi­duai» lex inter partes, desde que não ofenda a «Lei Maior», que é o mesmo código. A essas normas denominamos «atípicas secundárias», em face da singularidade de sua ela­boração e da sua hierarquia inferior (v. de Paulino Jacques, ob. cit., Capo XIX, n? 46).

Contudo, é necessário que esse «direito particular» (Valladão), para a sua legitimi­dade, não ofenda apenas a «ordem pública», mas também «a constituição da família, a soberania nacional, a eqüidade, a moral e os bons costumes» (art. 12, supra transcrito do Anteprojeto da Lei Geral de Aplicação das Normas Jurídicas.

b) As normas estabelecidas pelas pessoas jurídicas. São as constantes de atos, con­tratos, convenções coletivas, estatutos e regimentos, que não ofendam a (<ordem públi­ca». O Mestre Valladão eleva, com razão, a «ordem pública» à alta categoria de pa­drão de legitimidade, com a qual essas normas atípicas hão de harmonizar-se, sob pena de ilegitimidade e ineficácia.

Aliás, com relação aos estatutos ou regimentos das pessoas jurídicas, o Mestre Val­ladão esgotou o assunto, no «memorial» que ofereceu ao nosso Supremo Tribunal Fe­deral, em grau de «Recurso Extraordinário», em 1960, onde examinou, com a sua ha­bituai profundidade e amplitude, a força de lei interna, dos Estatutos ou Constituição da Ordem Maçônica do Brasil, denominada Grande Oriente do Brasil, que prevalecia sobre as normas das unidades maçônicas federadas (as Lojas Maçônicas), adstritas aos mandamentos legais e administrativos da entidade de hierarquia superior. A tese do in­signe Mestre foi vitoriosa naquele Tribunal, que, aliás, já havia formado jurisprudência a respeito.

No que concerne às convenções coletivas do trabalho, basta lembrar que, no mun­do inteiro, têm elas força de lei, integrando as normas atípicas primárias (v." de Pauli­no Jacques, ob. e capo cits.).

A essas normas, estabelecidas por pessoas físicas ou jurídicas, o Mestre Valladão denomina-as de «Direito Voluntário», porque livremente estabelecido pelas partes, e a que Geny chama de «droit libre».

O Mestre Valladão observa, acertadamente, que «nenhum sistema jurídico pode fi­car estanque a essa fonte convencional, ampla e presente sempre na vida social, e que impera, livremente aceita, «quando não se torna incompatível com os princípios de or­dem pública» (in ob. cit., pág. 47, in medio). E refere que são expressas, neste particu­lar, a Legislação Civil na URSS, art. 4?; a Consolidação das Leis do Trabalho do Bra­sil, art. 8?; e o Estatuto do Trabalhador Rural, também do Brasil, art. 9?

Entre as pessoas jurídicas públicas externas, figuram a ONU, a OEA, a OIT, a UNESCO, a Corte de Justiça Internacional e a OACI - cujos Estatutos ou Regimen­tos têm força normativa reconhecida internacionalmente.

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Também, entre as pessoas jurídicas públicas externas, referimos às igrejas (Católi­ca, Protestante, Bramânica ou Budista), com o seu direito próprio (códigos, estatutos ou regimentos).

No âmbito interno, vale destacar as entidades paraestatais ou autárquicas, como os Institutos de Previdência e Assistência ou os de Economia e Finanças ou, ainda, os de Ciência e Tecnologia - todos com a sua ordenação jurídica peculiar.

E, igualmente, as recentes empresas multinacionais ou, mais exatamente, transnacionais - que vêm se multiplicando. Elas revelam um tipo novo de «colonialis­mo» ou «imperialismo», o de natureza econômico-financeira ou científico-tecnológica - com a sua normatividade singular.

E, por fim, os «partidos políticos», que, no âmbito interno ou externo - qual o Partido Comunista, soviético ou o chinês - cujos estatutos pairam acima das Consti­tuições dos Estados em que atuam, numa subversão da hierarquia dos valores jurídicos tradicionais.

c) Os princípios gerais do Direito. São aqueles que «informam o direito e se alçam pela generalização crescente» (Del Vecchio) - razão por que ostentam «validez univer­sal absoluta, verdadeiros princípios de Direito Natural» (Legaz y Lacambra). Daí a ob­servação esclarecida do Mestre Valladão de que «os princípios gerais do Direito trans­cendem o âmbito nacional: são a ponte para os mais altos cimos da jurisprudência, as grandes soluções aceitas universalmente, derivadas dos valores supremos da Justiça, da eqüidade, da moral, do Direito Natural» (op. cit., pág. 48, in principio. Do Direito Na­tural, sim, porque, como ensina Del Vecchio, ele é «ínsito no Direito Positivo», sendo que este só é válido - nos ensinamentos de São Tomás e Suarez - na medida em que se harmoniza com aquele, sob pena de não merecer respeito.

Por isso, observa, com a sua habitual sabedoria, o Mestre Valladão, que «o Direi­to Natural paira acima de todas as fontes; é freqüentemente invocado através dos princípios gerais de Direito e da eqiíidade, que estão acima do Estado, de regimes, de políticas; porém, a verdade é que o Direito Natural está presente sempre na sua função grandiosa de farol inapagável da Justiça» (op. cit., pág. 50, in fine). E arremata esse passo, com sua conhecida eloqüência: «Mas acima de tudo, e inspirando legisladores, cientistas e, sobretudo, os Juízes, nas horas tão freqüentes, em que falham as diversas fontes, em que todas as luzes se apagam, está o Direito Natural, que é como a luz e o calor artificiais» (ib). Mas, não deixa de referir casos em que Tribunais brasileiros e franceses decidem fundados no Direito Natural - o que, efetivamente, consagra a po­sição luminosa do insigne Mestre Valladão.

d) A Jurisprudência. É o «conjunto dos estilos dos Tribunais» - no conceito con­ciso do saudoso Queirós Lima. Ela revela o sentido e o alcance da lei, tornando esta «viva e real». Para alguns autores americanos, como Gray e Brown, a lei só é direito depois que os tribunais a reconhecem como tal. Trata-se de posição eidética extremada, que não pode ser aceita. Mas, revela, indubitavelmente, o prestígio da jurisprudência, que o Mestre Valladão entende, com a sua habitual argúcia e singularidade, ser «a tá­bua de logaritmos dos juristas» (ob. cit., pág. 48, in principio). E isso porque «a juris­prudência dos Tribunais superiores, as regras jurídicas proclamadas em reiteradas deci­sões, constitui nos países de língua inglesa uma fonte positiva expressa, e noutros, de­claradamente, uma fonte teórica, mas, de fato, também uma fonte positiva» (ib). Po­rém, continua o Mestre, «forma-se, ao lado da lei, um direito jurisprudencial, mas moldável, reformável pelos Tribunais, mais vivo, particularizado, e que é o Direito Po­sitivo corrente» (ib). Ao concluir o seu percuciente raciocínio, o Mestre afirma que «o direito jurisprudencial une o direito presente ao futuro, a ponte entre o jus constituto e o jus constituendo» (ib). Lembra, por fim, o Mestre Valladão, os assentos da Casa de Suplicação de Lisboa (Portugal), que eram dotados de força normativa, no Reino Uni­do de Portugal, Brasil e Algarves, e mesmo depois da Independência de nosso País, em face do Decreto Legislativo n? 2.684, de 23 de outubro de 1875. Com a República bra­sileira, surgiram atenuados esses assentos o «Recurso Extraordinário», no âmbito fe-

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deral, e o «prejulgado», no estadual. Contudo, a partir de 1964, o nosso Supremo Tribu­nal Federal instituiu as súmulas, que correspondem, até certo ponto, aos referidos assentos lusitanos.

Efetivamente, não foi sem razão que Del Cueto disse que «a lei reina, mas a juris­prudência governa».

e) A doutrina. É o complexo dos princípios que informam as instituições jurídicas. A communis opinio doctorum. Como ensina o Mestre Valladão, ela apresenta três di­mensões - a História do Direito, o Direito Comparado e a Filosofia do Direito - que constituem o «direito científico», consubstanciando os «ideais jurídicos, o direito futu­ro» (op. cit., pág. 49, in medio).

A «História do Direito» é a narrativa sistemática dos sistemas e instituições jurídi­cas dos povos, em todos os tempos. Tem a finalidade de apontar-lhes o processo causa­tivo e teleológico, tal como o fizeram, Coulanges, Glotz, Mommsen, Ahrens e Homo, entre outros.

O «Direito Comparado» é o estudo paralelo dos sistemas e instituições jurídicas, em determinados povos e em certos períodos de sua história. Tem por fim .determinar­lhes as semelhanças ou dessemelhanças, visando a uma possível uniformização institu­cion,al. Assim o perquiriram Sumner Maine, Lambert, Di Ruffia, René David, Garcia Pelayo e Haroldo Valladão, entre tantos.

A «Filosofia do Direito» é o estudo das causas primeiras e dos efeitos últimos da fenomenocidade jurídica - no entendimento de Hegel, Jhering, Stammler, Del Vecchio e Legaz y Lacambra, entre muitos.

É, incontestavelmente, fonte positiva do Direito - com amplitude a profundidade apreciáveis - no ensinamento do Mestre Valladão.

Demais, a doutrina manifesta-se - na lição do insigne Mestre - nos trabalhos es­pecializados:

a) individuais, como aulas, artigos, pareéeres e obras, de professores, jurisconsul­tos e advogados esclarecidos;

b) coletivos, quais estudos, debates e conclusões de associações, congressos e con­ferências de juristas dedicados à matéria (ib).

A doutrina, seja qual for a sua forma, é a mais pura fonte do Direito - porque brota espontaneamente das idéias, sentimentos e volições dos estudiosos.' A sua influên­cia é tradicional: na Roma antiga, os pareceres dos insignes jurisconsultos, como Quin­tus Mucius Scaevola, Servius Sulpicius e Marco Tullius Cicero, tinham força de lei, de acordo com os decretos dos Imperadores, como Augustus (63 a 14 A.C.) e Valentinia­nus III (425 a 455 D.C.), E, em outros povos, em todos os tempos, e ainda hoje, os Tribunais, na inexistência de lei, costume, jurisprudência ou outra fonte, invocam a doutrina já consagrada pela própria Filosofia do Direito, com as chamadas escolas de «direito livre» (Geny, Ehrlich e Kantorowicz): (V. de Paulino Jacques, «Curso de In­trodução à Ciência do Direito», cit., Caps. LXVI e LXVII).

4. Conclusões

De todo o exposto é de concluir-se: a) que o Direito Positivo é o conjunto das normas jurídicas, imperativas e obriga­

tórias, que estruturam o convívio dos homens e lhes estabelecem os padrões de condu­ta;

b) que o Estado contemporâneo não tem mais o monopólio de edição das normas jurídicas - salvo em alguns Estados totalitários - porque entidades supra-estatais (ONU, OEA, OIT, etc.) e infra-estatais (Institutos de Previdência e Assistência ou Ins­tituições Econômico-Financeiras, etc.) exercem função normativa secundária, editando as suas normas estatutárias ou regimentais;

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c) que os indivíduos humanos, dentro do seu conVlVlO, também estabelecem nor­mas jurídicas, atípicas, para reger os seus negócios ou interesses, as quais constituem o chamado «direito particular ou concreto»;

d) que o costume - jus non scriptum -, outrora norma preponderante, hoje atua subsidiariamente, atendidas as exigências legais, para suprir omissões ou insuficiências do jus scriptum.

e) que a jurisprudência - conjunto de decisões uniformes dos Tribunais sobre ca­sos idênticos - continua a revelar o Direito Positivo, sem ofensa aos textos legais;

f) que os «princípios gerais de Direito» - aqueles que informam os sistemas ou os institutos jurídicos - valem como fontes positivas de Direito, especialmente o «di­reito natural», que é o núcleo de toda a normatividade positiva;

g) que a doutrina - a communis opinio doctorum - em todas as suas dimensões - História do Direito, Direito Comparado e Filosofia do Direito - exerce grande in­fluência no processo de elaboração, interpretação e aplicação do Direito;

h) que, assim, está definitivamente consagrada a pluralidade de fontes positivas do Direito, que são todas as acima aludidas;

1) que, em conseqüência, todas essas formas normativas supra-examinadas (cos­tume, contratos, convenções, estatutos, regimentos, constituições, jurisprudência, princípios gerais e doutrina em suas diferentes manifestações) integram, em toda a ple­nitude, o Direito Positivo.

DANO PROCESSUAL

Roberto Rosas

ROBERTO ROSAS

SUMÁRIO

I. Exercício da demanda. Conduta do demandante 2. Má-fé e conduta indevida 3. Demanda temerária 4. Deveres das partes e procuradores 5. Atuação do advogado. Lealdade processual. Abuso do direito de demandar 6. Condições profissionais. Defesa 7. Poderes do Juiz 8. Conceito de abuso de direito 9. Teoria do sistema brasileiro

10. Exercício anormal do direito 11. Projetos brasileiros na parte sobre abuso de direito 12. Critério objetivo do abuso de direito 13. Direito Comparado

I. Muitas vezes o demandante, a pretexto de exercer o direito de ação, excede-se no seu direito subjetivo causando prejuízo ao demandado. Esses prejuízos podem ser materiais ou morais. Materiais porque acarretam dano ao patrimônio com a contrata­ção de advogado, indisponibilidade de bens, e o aspecto moral - alguém ser chamado a Juízo, somente por vingança ou mero capricho.

2. O Estado mantém o sistema judiciário para atender às postulações daqueles que se acham prejudicados em seus direitos, instituindo-se o Juiz natural (Constituição, art. 153, §4?).

Em decorrência, há a observar-se o respeito à legitimidade da postulação, para que não se torne maléfica à outra parte, porque o abuso também atinge o Estado, como observa Lopes da Costa (<<Direito Processual Civil», I, n? 312), a invocação injustifica­da ou maliciosa dos órgãos jurisdicionais autoriza reprimir-se o abuso de direito (José Olímpio de Castro Filho, «Abuso do Direito no Processo Civil», pág. 33; Planiol­Esmein, n? 582; Mazeaud, I, n? 591) e Jean Carbonnier chama de obsessão processiva. O litigante vai a Juízo sabendo não existir razão.

O Código de Processo Civil de 1939 considerou abuso de direito a demanda por espírito de emulação, mero capricho, ou erro grosseiro, bem como a oposição maliciosa de resistência injustificada ao andamento do processo (art. 3?). O atual código não re-

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petiu as mesmas expressões, porém, ampliou o conceito de má-fé do litigante (art. 17). De qualquer forma, unem-se as duas características básicas do abuso de direito.

A má-fé está enleada com o dolo, isto é, o vício da vontade judicial, como diz Carnellutti, ou ato praticado com intenção de causar dano ao adversário (Oscar da Cunha,«O dolo e o Direito Judiciário», pág. 79).

O mero capricho vai da puerilidade à teimosia, desta à maldade insistente, à cruel­dade (Pedro Batista Martins, «Denunciação caluniosa - Responsabilidade Civil dela decorrente - Abuso do direito de estar em Juízo», RF 68/745).

O erro grosseiro pertence à ignorância indesculpável, dada a matéria da lide e as ocupações ou especialidades do autor. O fazendeiro, habituado a alienar as terras, ao discutir as dimensões das suas glebas, confundindo alqueire paulista com alqueire mi­neiro; o economista, a respeito de fatos econômicos, etc., são situações in desculpáveis. Muitas vezes, no erro grosseiro, o abuso verifica-se sem intenção (José Olímpio de Cas­tro Filho, ob. cit., pp. 29 e 97). O erro grosseiro denuncia temeridade (STF - RF 133/118). Nem todo erro gera responsabilidade processual. A propositura de uma pos­sessória em vez de outra (CPC, art. 920). O erro não se confunde com o engano da parte (STF - RF 148/179). O erro de direito pode conduzir ao abuso, no entanto, há que se perquirir sobre o alcance desse erro (José Olímpio de Castro Filho, ob. cit.,pág. 133).

A violência, mais rara no âmbito processual, caracteriza-se pelo pedido de força dispensável, quando a parte tem meio mais brando para solver a questão.

3. A demanda temerária é fruto do abuso, da exorbitância, que causa prejuízo ao demandado. É a atitude do improbus litigator, o litigante vai a Juízo sabendo não exis­tir razão (José Olímpio de Castro Filho, ob. cit., pág. 91; Jean Carbonnier, «Droit Ci­vil», vol. 4, n? 97). Eduardo Espínola admite a indenização decorrente da lide temerá­ria, quando a vítima é levada à Justiça por queixa ou denúncia caluniosa, cuja inocên­cia foi proclamada (<<Lide temerária ou abuso de direito», Pandectas Brasileiras - vol. 1, pág. 193). Há que se cuidar dessa tese radical. Nas questões calcadas em crime con­tra a honra, os seus efeitos são perniciosos ao acusado. No entanto, não se pode tirar ao autor da medida a mácula deixada pela atitude do sujeito ativo do crime. O Tribu­nal de Justiça de São Paulo não considerou abusiva a representação à autoridade poli­ciai, apontando fato verificado em sua materialidade, indicando os responsáveis apa­rentes pela sua prática. A absolvição final não indicou qualquer procedimento aleivoso ou imprudente (RTJSP 9/53; Acórdão do TJRJ, REPRO 9/289).

Em todos os casos, há necessidade de procurar-se a intenção do agente (José Olímpio de Castro Filho, pág. 29; Paul Roubier, «Droits subjectifs et situations juridi­ques», 1963, pág. 338).

Infelizmente, aumenta o número de demandas e defesas, levando o Juiz a colabo­rar contra essas atitudes, o que impõe a condenação do abuso do direito de demandar (João Carlos Pestana de Aguiar, «Comentários ao CPC», Ed. Revista dos Tribunais, 2~ ed., pág. 121, 1977).

Em relação ao arresto, afirma Pontes de Miranda: «Cabe, pois, a ação de perdas e danos pelo abuso de direito, segundo os princípios, e pela inovação de um direito que se não tinha» (História e Prática do Arresto, 1929, pág. 196).

Amaral Santos teve ensejo de abordar a relação entre demanda regular e lide teme­rária: «Os Acórdãos apontados como divergentes, concluem que só o fato de decair da demanda, regularmente processada, não fica o vencido sujeito à satisfação dos danos que andam anexos a todos os direitos, cumprindo que, a fim de a isso esteja sujeito, haja prova de sua má-fé ou da demanda (CPC, art. 3?) se caracteriza pelo dolo, no sentido de intenção de prejudicar, ou erro grosseiro, ou pelo espírito de aventura ou te­meridade» (RE n? 69.439 - RTJ 56/129).

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Diversa é a situação da demanda para cobrar dívida já paga, ocorrendo casos ex­cepcionais, como o pagamento feito por terceiro e a cobrança ser feita novamente pelo credor (RE n? 62.673 - RTJ 43/420), ou a execução de títulos substituídos por outros de vencimentos posteriores (STF RE n? 88.IOJ, RT J 92/224). Não é aplicável, ao caso, o a'rt. 1.531 do CC que diz: «Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas, ou pedir mais do que for devido, fi­cará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, segundo o equivalente do que dele exigir salvo se, por lhe estar prescrito o direito, decair da ação».

No Tribunal Federal de Recursos, o Ministro José Néri da Silveira, em aresto inci­sivo, abordou a questão do abuso de direito de demandar, na busca de um direito líquido e certo: «Mandado de Segurança. Abuso do direito de postular em Juízo. Para os efeitos do art. 63 e seu § 2?, do CPC, configura procedimento ilegal e temerário de juizar o impetrante, no mesmo foro, à mesma época, petições de igual teor, sobre idên­tica matéria, tentando obter distribuição a Vara de sua preferência, desistindo de ime­diato, do pedido, nas demais Varas, após logrado o intento» (AMS n? 66.783 - Dl de 22-11-71, pág. 6527).

o Supremo Tribunal examinou interessante questão, onde um devedor argüia abu­so no exercício da demanda por parte do credor (RE n? 62.339 - ReI.: Min. Aliomar Baleeiro). Tratava-se de empréstimo garantido pelo penhor pecuário, que somente foi cobrado após insistentes providências do credor, diante da inércia do devedor e do des­calabro na condução dos negócios realizados com o empréstimo. O devedor argüiu má­fé, sem dizer em que ela consistia. Não se caracterizava a demanda por espírito de emulação, mero capricho ou erro grosseiro. Também não valia a derrota do credor em processo de reajustamento pecuniário, pois, como afirmara Pedro Batista Martins, não basta a circunstância de decair da ação. É preciso que se demonstre o concurso de cer­tas circunstâncias de fato, transparecendo a intenção de prejudicar (dolo), o erro gros­seiro ou o espírito de aventura ou temeridade do autor (Pedro Batista Martins, «Co­mentários ao CPC», vol. I, n? 22, I ~ ed.; «Abuso de direito no exercício da deman­da», Caio Mário da Silva Pereira, RF 159/106; Sílvio Rodrigues, «Dos Vícios do Con­sentimento», Saraiva, 1979, pág. 275 - Coação para exigir o indevido).

Invocou-se, na oportunidade, outro Acórdão do Supremo Tribunal onde repeliu-se a consideração de abuso de direito, se há direito aparente, propiciando uma demanda, se há o fumus boni iuris, uma aparência de direito, logo não há abuso do direito de de­mandar ... (ERE n? 35.414). Em outra decisão, a Suprema Corte considerou o abuso de direito de demandar, conseqüência de dolo ou culpa anterior ao ingressar da parte em Juízo, antes da constituição da relação processual e da lide. É sanção impo~ta ao autor movido por emulação, mero capricho ou erro grosseiro (RE n? 52.083, Dl de 22-8-63, pág. 763).

4. No atual Código de Processo Civil, o capítulo dos deveres das partes e de seus procuradores impõe comportamentos explícitos. Elas deverão proceder com lealdade e boa-fé; não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento. São condutas éticas inerentes à demanda, balizando o direito das partes. O fato do direito de demandar não permite à parte desregramentos nem abusos.

O pleito de má-fé acarreta indenização por perdas e danos dos prejuízos sofridos (art. 16). O Código de Processo Civil de Portugal (1961) considera o litigante de má-fé não só o que tivesse deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ig­norava, como também o que tivesse conscientemente alterado a verdade dos fatos ou omitido fatos essenciais e o que tivesse feito do processo ou dos meios processuais o uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal ou de entor­pecer a ação da Justiça ou de impedir a descoberta da verdade (art. 456).

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5. A atuação do advogado no processo impõe determinadas regras de ordem téc­nica e ética. Como diz Calamandrei, a parcialidade dos patronos das partes acaba por tornar-se, no processo o mais eficaz instrumento (Roberto Rosas, «O advogado no Có­digo de Processo Civil», Revista da Faculdade de Direito de Uberlândia, 5/259; Istitu­zioni, parte 11, pág. 253; Arruda Alvim, «Código de Processo Civil Comentado», vol. 11/153).

Da boa conduta do advogado surgirá a extirpação dos maus conceitos que possa sofrer a classe. O código impõe ao advogado o emprego de expressões condignas e não injuriosas, sob pena de advertência (art. 15). A má conduta acarretará as sanções disci­plinares previstas no Estatuto, além das impostas pelo Código de Processo. A conduta ética do advogado, postulando pelo bom direito, encaminha o cliente para não pleitear de má-fé, se o fizer, o cliente é passível de responder por perdas e danos (art. 16). Mas o advogado também responde por despesas e perdas e danos se não ratificar os atos praticados sem procuração (art. 37, parágrafo único) (José Olímpio de Castro Filho, ob. cit., pág. 36; Jorge Americano, «Do Abuso do Direito no Exercício da Demanda», 1932, pág. 26; Arruda Alvim, «Código de Processo Civil Comentado», 11/263; Yussef Said Cahali, «Responsabilidade do litigante temerário pelo dano processual», Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo 11/351).

Esse princípio da lealdade processual não permite a alteração intencional dos fatos, nem a má-fé, previstas nas mais diversas legislações. Assim, o Código de Processo Ita­liano impõe a lealdade e probidade (11 dovera di comportarsi in giudizio con lealtá e proibitá, art. 88, J. J. Calmon de Passos, «Responsabilidade do exeqüente no novo Código de Processo Civil», RF 246/169). O Código procura prevenir o abuso do direito por quem tenha interesse em protelar o desfecho das causas, antes de pleitear um direi­to com honestidade (Alcides de Mendonça Lima, «Probidade Processual e Finalidade do Processo», Vitória, pág. 66).

Tema envolvente do âmbito processual está no silêncio da parte, em razão da obri­gação de falar, como observa Serpa Lopes. A existência da abstenção culposa depende da preexistência da obrigação de agir (O silêncio como manifestação da vontade nas obrigações, 2:' ed., pág. 148).

O atual Código de Processo Civil, ao tratar de depoimento pessoal da parte, consi­dera confissão se a parte comparecer, recusando-se a depor (art. 343; art. 229 do CPC de 1939), porque compete á parte comparecer em Juízo, respondendo ao que lhe for in­terrogado (art. 340, I). Se é requerida medida cautelar ao abuso, responderá pelos pre­juízos, independente da prova da má-fé (CPC, art. 311, I, e RTJ 87/665).

O fato do silêncio da parte não deve conduzir á confissão. Sabiamente o Código de Processo Civil de Portugal deixa ao Tribunal a apreciação da conduta da parte que não compareça (art. 357, n? 27). Vale, ainda, e com aplausos doutrinários, a sentença de São Paulo - quem cala, não confessa, apenas não nega (qui tacet non utique fatetur sed tamen verum est non negare - D. Reg. iuris, XVII, L. 142). A decorrência do si­lêncio não é absolutamente a confissão. Se a parte pode silenciar, e isto é permitido aos profissionais por motivos éticos, o Juiz deve sopesar essa recusa. Apenas levará em conta o real abuso do direito de silenciar (v. Moacyr Amaral Santos, «Comentários ao CPC», 2~ ed., Forense, vol. IV, pág. 96).

A condenação em custas e honorários advocatícios cobriria o dano causado pelo abuso do direito de demandar? Não, já o afirmara Jorge Americano. Essa condenação é forma de ressarcimento do efetivamente gasto na demanda. Os outros prejuízos cau­sados não são atingidos por essa condenação. Se há dano, então cabe o ressarcimento e não a exacerbação dos honorários, mesmo porque verbas distintas, inclusive limitada a 200/0 (STF - RE n? 90.089, RTJ 88/364).

O abuso do direito de demandar traduz-se na pretensão obsessiva de postular con­tra tudo e contra todos. Vale lembrar, Ihering: «Essa mania de demandas não é mais do que um desvario que causa a desconfiança ao seu sentimento de propriedade e que se-

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melhante àquele que o ciúme produz no amor, dirige suas armas contra si mesmo e faz perder preciosamente o que se queria conservar» (A Luta pelo Direito, capo IV).

6. Ao advogado são dadas condições para o exercício profissional. No entanto, essas não podem se tornar excessivas, sob pena de converter-se em abuso. Os poderes concedidos ao advogado derivam do mandato judicial, cuja procuração, com a cláusu­la ad judicia, habilita o advogado a praticar todos os atos judiciais (art. 70, § 3?, da Lei n? 4.215).

Portanto, os limites do mandato judicial permitem ao advogado o livre exercíco profissional, considerando-se então a responsabilidade derivada do mandato, porque bem acentuou Jorge Americano, «os efeitos danosos das práticas do advogado racaem sobre o patrimônio do cliente» (<<Do Abuso do Direito no Exercício da Demanda», 2~ ed., pág. 57).

Por isso, o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil prevê série de penalida­des, dentre as quais, as relativas ao abuso de direito do advogado.

O advogado que retiver abusivamente autos com vista ou em confiança, será ape­nado com suspensão (art. 103, XX). Não é crível que o advogado prejudique seu cliente não devolvendo os autos no prazo fixado, ou os retendo além de período razoá­vel, ou ainda prejudicando a outra parte.

O direito de recusa ao patrocínio é cristalizado na atividade do advogado, por con­vicções religiosas, morais, etc. Não poderá recusar-se a prestar, sem justo motivo, assis­tência gratuita aos necessitados, quando nomeado pela Assistência Judiciária (art. 103, XVIII).

O Código de Processo Civil impõe às partes e aos seus procuradores (art. 14 C.C.

17) p'rocedimento com lealdade e boa-fé; nem formular pretensões, nem alegar defesa, cientes da falta de fundamento.

A defesa não poderá exceder-se nem com palavras ou escritos. As expressões inju­riosas poderão ser rejeitadas pelo Juiz, quer nas petições ou na defesa oral (art. 15).

No § 226 do CC alemão, estabelece-se a inadmissibilidade do exercício de um direi­to para causar prejuízo. Na vida judiciária alemã aplica-se a regra à atividade advo­catícia que tenha por finalidade retardar uma solução judiciária (Schikamenpara­graph).

7. O Juiz, investido dos poderes decorrentes da função jurisdicional, na decisão da lide, não pode abusar do reto caminho indicado pela lei, pois a função judicial é uma das três funções do Estado que organiza a Justiça a fim de dirimir os conflitos en­tre os indivíduos e grupos, através da situação do direito objetivo e a dissipação das contendas.

A parte poderá, através do Recurso Extraordinário (art. 119, lI, CF), levar ao STF a constatação de inconstitucionalidade de lei ou ato de governo local, no entanto, não poderá descumprir a lei sob pena de antinomia diante da Constituição, porquanto o re­médio será a Representação do Procurador-Geral da República argüindo a inconstitu­cionalidade. Entretanto, o Governo, interessado na aplicação do texto legal, poderá suspender sua eficácia até o pronunciamento da e. Corte. Assim, decidiu-se na Repre­sentação n? 699, da Guanabara.

O poderes delegados ao Juiz na relação processual são limitados, por isso, seu exercício há de ser cautelado, mas as variadas formas desses poderes constituem tam­bém numa multiplicidade de classificação entre os processualistas.

Dois gêneros distinguem-se: poderes jurisdicionais e poderes de policia. Os primei­ros são exercidos pelo Magistrado na prática da função jurisdicional, como participante da relação processual. Dentre os jurisdicionais destacamos os ordinários expressados em decissões destinadas ao encaminhamento processual (conhecimento executivo ou cautelar - art. 112 do CPC). Os instrutórios baseados no exame da prova e dos fatos

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e o recolhimento destes para formar a convicção em que se baseará a decisão e decisões finais. Os poderes de polícia são aqueles exercidos na organização dos trabalhos foren­ses, através da disciplina dos atos exteriores ao processo, mas com ele relacionados. Pa­ra isso, o CPC e o CPP insculpiram normas estabelecendo competência aos Magistra­dos para a manutenção da ordem, inclusive requisição de Força Pública, posta à sua disposição, impondo respeito e disciplina às audiências e sessões judiciárias. O Código de Processo Civil dá ao Juiz poderes para conduzir a audiência, dizendo que o Juiz exerce o poder de polícia (art. 445) para manter a ordem e o decoro na audiência e ou­tras providências.

A expressão «poder de polícia» equipara-se àquela do Direito Administrativo? En­tendemos não. O Código quer referir-se à condução da audiência, e obviamente quem conduz e disciplina deve ter poderes suficientes para manter a ordem. Portanto, essa expressão é indevidamente empregada no Código de Processo Civil (v. José Moura Ro­cha, «Há Poder de Polícia no art. 445 do CPC?», Recife, 1976).

Desses poderes concedidos ao Juiz na audiência podem decorrer abusos que devem ser repelidos.

Verificamos desta rápida digressão sobre os poderes do Juiz a tutela jurisdicional, condicionando os atos do Magistrado. Ao Juiz é dado um poder de polída processual distinto do disciplinar, porque este exerce-se «exclusivamente com pessoas ligadas ao Juiz, por um vínculo de dependência particular». No entanto, não se negará às partes o acesso à demonstração cabal de seu direito, o Juiz não impedirá, do contrário abusa do poder inerente à função judicante.

O excesso de poder dar-se-á quando o Magistrado ultrapassar a sua competência ou função ao manifestar-se além do legal, de que lhe é cometido pela sistemática jurídi­ca, ultrapassando os limites legais. Vale afirmar a parêmia: potestas judicis ultra id quod in judicium deductum ut nequaquam potest excidere. Calamandrei adverte para o abuso de poder do Juiz quando pretende exercer atribuições legais reservadas à admi­nistração (<<Diritto Processuale Civile», vol. lI, § 83).

Já o abuso de poder ocorrerá quando o Juiz, usando a lei, não fixa normas ou de­cide de acordo com os mandamentos legais, porém, abusando de seu poder ou facul­dade atribuída por esses mandamentos (José Raimundo Gomes da Cruz, «Justa Causa e Abuso de Poder Referentes à PiOpositura da Ação Penal», Justiça 58/53; «Correição Parcial na Justiça Federal», art. 6?, l, da' Lei n? 5.010 c.c. decreto-lei de 28-2-67).

O Magistrado moderadamente disporá do poder discricionário colocado à sua dis­posição, porém, não poderá exercê-lo arbitrariamente (Raselli, «lI Potere Discrezionale dei Giudice»). Como exemplos, citaremos a atribuição dada ao Juiz para a fixação dos honorários advocatícios, segundo os termos do art. 20 do CPC, quando o Magistrado, abusando do poder conferido para o arbitramento da verba advocatícia, usa imodera­damente do poder legal. Outro exemplo apontamos no referente à assinação de prazo para apresentação de documentos em Juízo, e, se porventura o Magistrado fixa o prazo de 48 horas para a apresentação de documentos que se acham no estrangeiro? Eviden­temente, é impossível a apresentação dos mesmos no exíguo prazo. Mas, o Juiz está usando do poder conferido pela lei, porém, abusando do mesmo. Discordamos de Pi­menta Bueno, quando define o abuso de poder do Magistrado, quando este pratica o mau uso da jurisdição, ordenando ou permitindo o que a lei proíbe. Parece-nos eviden­ciar aí a ilegalidade e não abuso de poder (<<Apontamentos sobre as Formalidades do Processo Civil», pág. 51).

Quanto ao poder discricionário do Juiz, acentuou com precisão Alessandro Rasel\i que: «l'essenza dei potere discrezionale consiste nella mancanza di agire in determinati casi puó essere riconosciuto soltanto mediante criteri di convenieza» (<<Il Potere Discre­zionale dei Giudice Civille», pág. 21; Celso Agrícola Barbi, «Os Poderes do Juiz e a re­forma do Código de Processo Civil», RF 206/13; José Carlos Barbosa Moreira, «Res­ponsabilidade das Partes por Dano Processual», Rev. Processo 10/15).

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8. Estabelecidas essas linhas sobre a ocorrência do dano processual, faz-se neces­sário o exame do conceito e do alcance do abuso de direito.

9. É indubitável o acolhimento da teoria do abuso de direito pelo Código Civil Brasileiro. Contestou-se a existência desse agasalho, porém, Clóvis Bevilácqua profli­gou a negação, ao mostrar que o art. 160 já falava em exercício normal de direito, Io­ga, ao revés, o exercício anormal do direito era o ato abusivo de um direito. Se havia anormalidade causadora de dano, então, haveria o ressarcímento do dano.

Para definir o exercício anormal do direito, alguns atendem à intenção do agente, o prejuízo deliberado a terceiros (Demogue, Henri Lalou). Jean Carbonnier assinalou que o critério para a verificação do abuso de direito pode ser tirado do fim perseguido. Há abuso se o titular do direito exerceu-o com o fim de causar dano a outros, sem in­teresse (<<Droit Civil», vaI. 4, 1969, pág. 337).

O Código de Processo Civil abraçou a teoria do abuso do direito de demandar, ao considerar a responsabilidade das partes por dano processual, quando o art. 16 im­põe: responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou in­terveniente, e cuidadosamente limita o conc-eito de litigante de má-fé, às hipóteses elen­cadas pela Lei n? 6.771, de 27-3-80, que deu nova redação ao art. 17 do CPC: «I -Deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; 11 -Alterar a verdade dos fatos; 111 - Usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV - Opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V - Proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI - Provocar incidentes mani­festamente infundados».

10. Numa orientação mais moderna, o exercício anormal do direito pode se carac­terizar sem a intenção de prejudicar. Não havendo proveito próprio, ou intenção de prejudicar, não há anormalidade (orientação de Saleilles e Josserand), ou como diz Santiago Dantas: o abuso é qualificado pelo aspecto objetivo do ato. Se este patenteia a sua anti-socialidade existe abuso e cabe repressão (<<O Conflito de Vizinhança e sua Composição», 2~ ed. pág. 105).

Saleilles foi o criador da teoria do exercício anormal do direito, repelindo o crité­rio psicológico do Código alemão, no qual, o exercício de um direito é inadmissível se ele tiver por fim, somente, causar dano a outro (BGB - § 226), em contraposição a outro dispositivo do BGB, que impõe a indenização do dano a quem, de modo atenta­tório contra os bons costumes, cause, dolosamente, dano a outro (BGB - § 826). Sa­leilles, em face da autonomia desses dispositivos, proclamou a teoria objetivista da des­tinação social e econômica do direito. Para ele, o abuso de direito consiste no exercício anormal do direito, exercício contrário à destinação econômica ou social do direito subjetivo, exercicio reprovado pela consciência pública (<<Théorie Générale de l'Obliga­tion», 2~ ed., pág. 371). Mas o próprio Saleilles alterou o seu pensamento para adotar a teoria subjetivista (<<De D' Abuse du Droit»). A melhor orientação está na fusão das duas doutrinas formando a chamada doutrina mista.

O Código Civil Brasileiro adota a linha Saleilles, quando exclui dos atos ilícitos, o exercício normal do direito, isto é, os praticados no exercício regular de um direito (art. 160, 1). Clóvis Bevilácqua foi criticado porque não arrostara o problema do abuso do direito, e o Código nascia velho (ver Alvino Lima, «Abuso de Direito», Repertório En­ciclopédico, dirigido por Carvalho Santos, I). Mostrou o insigne jurista que a contrario sensu, se não constitui ato ilícito o praticado no exercício regular de um direito reco­nhecido, logo o praticado em exercício não regular de um direito constitui-se abuso. O projeto seguia as pegadas de Saleilles para quem o abuso de direito está no uso anor­mal desse direito. Como frisou Clóvis, a consciência pública reprova o exercício do di­reito do indivíduo, quando contrário ao destino econômico e social do direito, em ge­ral.

Ao interpretar o dispositivo do Código brasileiro, expõe Pontes de Miranda: «A regra jurídica brasileira impõe-se ao intérprete como regra jurídica preexcludente: se há

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dano, o que exercia direito comete ato ilícito, salvo se «regularmente» o exercia, donde o ônus da prova, no direito brasileiro, ir ao culpado do dano, e não ao que sofreu, pois a esse somente incumbe provar o dano e a culpa, apontando a contrariedade a di­reito» (<<Tratado de Direito Privado», vol. 2, § 185).

Comparando com o direito alemão, coteja Pontes de Miranda: «O que alega ter sido o ato praticado no exercício regular do direito é que tem de provar esse exercício e essa regularidade. É exatamente o contrário do que ocorre no direito alemão: nesse, o que prova ter exercido direito, causando dano (ao lesado prová-lo, como em direito brasileiro), não precisa provar que tal exercício foi regular» (Tratado, loc. cit., pág. 291 ).

11. No Anteprojeto de Código de Obrigações (1941) estabeleceu-se a reparação do dano causado por excesso no exercício de direito, excesso dos limites do interesse protegido ou da boa-fé (art. 156). Seguiu-se a linha do direito italiano onde não se faz menção ao abuso de direito como espécie de ato ilícito, isto porque o direito subjetivo correspondente à boa-fé e à correção, ao contrário, não constituem direitos subjetivos, estão fora do direito, e por isso são ilícitos (Roberto Goldschimidt, «A teoria do abuso de direito e o Anteprojeto brasileiro de um Código das Obrigações», RE 97/22). No entanto, o Projeto de Código Civil (1975) aproxima-se desta orientação, ao considerar ato ilícito quando o titular exerce o seu direito, excedente dos limites impostos pela boa-fé (art. 185). É a teoria do excesso no exercício do direito, e não o abuso, aliás já expressa no Brasil, na Consolidação das Leis Civis, de Carlos de Carvalho (art. 1.029). Os atos que não correspondem à boa-fé não estão contidos no direito subjetivo, por isso, constituem um excesso do Direito, como bem explica em relação ao direito italia­no - Santoro Passarelli (<<Doutrine Generali dei Diritto Civile», § 16). Em última aná­lise, é a idéia moral da solidariedade humana, a ser preservada num recuo a Cícero -summum jus, summa injuria.

O Projeto do Código Civil (1975) inscreveu no capítulo dos atos ilícitos a repressão ao abuso de direito. Diz o art. 185: «Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes».

Essa redação sofreu críticas de Caio Mário da Silva Pereira: «Pretendendo ser avançado, mostrou-se em verdade tímido. Abraçou, sem dúvida, a idéia de repressão ao abuso de direito, que entretanto é muito mais amplo do que o excesso praticado em relação ao fim econômico ou social, à boa-fé e bons costumes. A noção de abuso de direito, cujas raízes se implantam no Direito Romano, na idéia de um enunciado que faz do summum jus o equivalente a summa injuria, tende a expandir-se, merecendo a repressão da Justiça (Revista do Instituto dos Advogados Brasileiros 20/22).

É a orientação de Saleilles, o definidor do abuso de direito como o exercício anor­mal do direito, em oposição à destinação econômica ou social do direito subjetivo (Sa­leilles, «Étude sur la théorie générale de l'obligation d'aprés le premier projet de CC pour l'empire allemand», 1914, nota 310). Nessa linha, o Projeto de Código Civil Bra­sileiro (1975) tende a Saleilles, por uma parte, e pela outra ao Código suíço, (art. 2?) e Código português (art. 334). O Código Civil da Rússia, de 1923, art. I? - expressava o abuso quando os direitos fossem exercidos num sentido contrário ao seu fim econô­mico e social.

Deste ponto, Louis Josserand construiu a teoria do abuso de direito. O titular vio­la o anormal exercício desse direito, raiando pela ilegalidade. Há necessidade de examinar-se o escopo pretendido pelo titular, se ele é legítimo, normal o exercício. Se há afastamento, então haverá o abuso. Aí está em remate Josserand (De I'esprit. .. ).

A concepção teleológica, contraposta à objetiva, pode conduzir ao subjetivismo do exame da ação do titular, tanto que o Código Civil italiano abandonou essa posição.

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12. A teoria da aemulatio, de grande voga no direito medieval, caracterizava ato emulativo o praticado no exercício do próprio direito, com a finalidade de causar pre­juízo a outrem, sem proveito para o agente (Coelho da Rocha, «Direito Civil Portu­guês, § 49). Baseava-se num critério subjetivista, onde a intenção maliciosa era a carac­terística.

Essa tendência cedeu posição para o critério objetivista do abuso do direito, que suplantou a teoria da aemulatio (Orosimbo Nonato, «Da coação como defeito do ato jurídico», 1975, pág. 166).

13. No Direito Comparado, o Código Civil Português (1966) anda nas linhas de Saleilles, para considerar ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou econômico desse direito (art. 334). Também a Constituição japonesa não está longe da idéia de exercício, em norma programática, assegurando a liberdade e os direitos, abstendo-se o povo de qualquer abuso dessas liberdades e direitos, e sempre se respon­sabilizará pela utilização dos mesmos em prol do bem público (art. 12).

Para o direito português, adotou-se a concepção objetiva do abuso do direito. Co­mo acentua Almeida Costa, não é preciso que o agente tenha consciência da contrarie­dade do seu ato à boa-fé, aos bons costumes, basta que esse ato se mostre contrário. O titular do direito deve ter exercido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício (Direito das Obrigações, Coimbra, 1968, p. 29).

Não se confunda ilegalidade e abuso de direito. No primeiro caso caracteriza-se a violação da lei, ao passo que no abuso do direito há exercícío do direito, de modo anormal.

Ripert assinalou a distinção pelas características de cada caso: o abuso de direito é a intenção delitual que motiva o ato, enquanto a ilegalidade é o ato contrário à lei (<<O Regime Democrático e o Direito Civil Moderno», ed. bras., 1937, pág. 230: v. Gior­gianni, «L 'abuso dei diritto neUa norma giuridica», Milano, 1963; Rescigno, «L 'abuso dei diritto», Rivista Diritto Civile, 1965, 1, pág. 205; Natoli, «Note preliminari ad una teoria deU 'abuso dei diritto neU'ordinamento giuridico italiano,» R.ivista trim, diritto e procedura civile, 1958, pág. 18).

Exemplifiquemos: a lei limita a cobrança de juros a 120/0. Acima desse limite há ilegalidade. Suponhamos que a lei fosse revogada, e houvesse liberação dos juros, e o mutuante cobrasse 30% ou 40%. Aí haveria abuso.

Para o Digesto, aquele que usava de seu direito não causava dano a alguém (nuUus videtur dolo facere qui suo jure utitur). Mas Cícero apostrofava: summum jus, summa injuria.

Na Lei das Sete Partidas outra não era a orientação: «non face tuerto a OtTO quien usa de su derecho» (Alvino Lima, «Abuso de Direito», Repertório Enciclopédico, diri­gido por Carvalho Santos, vaI. 1, pág. 193; Everardo da Cunha Luna, «Abuso de Di­reito», Forense, Rio).

A responsabilidade do agente baseada no aspecto subjetivo vai ser caracterizada pelo abuso do direito, quando o seu exercício caracteriza-se pela intenção de prejudicar (Bufnoir, Baudry-Lacantinerie, Demolombe).

Se o exercício do direito é levado a causar dano a alguém, ainda que o seu exercício não se destinasse a isso, o dano causado deve ser indenizado, independente de pesquisar-se a vontade do agente. O caráter objetivo impõe a obrigação de indenizar (J osserand; Saleilles).

Um terceira corrente justapõe os dois elementos: subjetivo e objetivo. O objetivo causa prejuízo, com a intenção (Chironi, Huc).

Como acentua Adriano de Cupis, o exercício abusivo do direito, em realidade, de­signa uma forma de ilícito (<<li Danno», 1, 2~ ed., pág. 32).

CONSTITUIÇÃO NO PAÍS DA EPIDEMIA DAS NORMAS

Ruy Barbosa Nogueira

RUY BARBOSA NOGUEIRA

CONSTITUIÇÃO NO PAÍS DA EPIDEMIA DAS NORMAS

Hoje (18-9-86) alcançou sua qüingentésima (500~) reunião de estudos a Mesa de Debates do IBDT/USP, que se realiza às quintas-feiras, das 8 às IOh, na velha e sem­pre nova Academia de Direito do Largo São Francisco. Sua finalidade é o estudo da evolução científica da tributarística dentro do universo, da unidade e da estabilidade dos princípios fundamentais do Direito, procurando examinar perante o Direito Tribu­tário Comparado as inovações da doutrina, da legislação e da jurisprudência brasileira.

Estranhamente, mais difícil do que estudar os princípios fundamentais e estáveis dos sistemas tributários dos demais países cultos tem sido acompanhar a velocidade das inovações, marchas e contramarchas da legislação interna do Brasil. Eis uma triste constatação dos participantes desta Mesa que, já durante mil horas não conseguem tempo para o estudo, meditação e conhecimento sistematizado da legislação de seu pró­prio País!

O que vem acontecendo com as legislações federais estaduais e municipais do Bra-sil?

Os Governos desta continental Federação cada vez mais pensam que governar con­siste apenas e tão-só expedir, todos os dias, senão todas as horas, normas de toda e qualquer hierarquia, até com efeitos retroativos, de tal sorte que não podem os estudio­sos, e menos ainda os obrigados, ter tempo material para conhecer seus termos e muito menos compreender seus conteúdos.

Pior ainda vem sendo a destruição da hierarquia vertical das leis. Perante tal deses­trutura não só ficam perplexos os intérpretes, mas sobretudo as autoridades, tanto as autoras como as incumbidas da fiscalização e da aplicação dessas normas excessivas, conflitantes ou incongruentes.

Ninguém pode mais saber, dentro da legislação interna, quais as normas vigentes, válidas ou eficazes, porque elas, intrínseca e extrinsicamente, se atropelam.

Quando o genial Mestre europeu Tullio Ascarelli aportou ao Brasil com sua baga­gem de cultura e experiência e começou o estudo da legislação brasileira, não posso me esquecer quanto, dentro de nosso escritório comum se espantava com o jorro de normas e nos dizia que nunca vira um país substituir tanto a função de governar pela de «decretar», como se a norma tivesse a virtude miraculosa de, por si só, resolver tu­do.

Na verdade, o que mais vem impedindo o desenvolvimento do Brasil é a exacerba­ção de atribuições «legiferantes» a centenas de órgãos de toda e qualquer hierarquia, enquanto os Poderes Legislativos se omitem ou, pior ainda, vão delegando competência ou placitando inconstitucionalidades e ilegalidades.

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Quer o leitor comprovação experimental de que esses jorros e instabilidade são uma das causas mais deletérias e impeditivas do ensino, do progresso científico e sobre­tudo da produtividade da Nação? Comprovação paciente, reiteradamente captada den­tro do tempo calendário e do tempo intencional que é o dedicado ao desenvolvimento do conhecer - do estudo e do aprendizado?

Se achar que mil dessas horas são suficientes para comprovar este sentir e sofrer de todos os brasileiros que tentam produzir, aqui estão, como se diz no Direito anglo­saxão, as evidências ou certezas manifestas:

As quinhentas reuniões semanais desses estudos voluntários já consumiram a maior parte dessas mil horas para tomar conhecimento de milhares de normas de toda espé­cie, tão efêmeras que, antes de seu estudo e compreensão já estão modificadas, contra­ditadas ou atropeladamente revogadas.

A compulsão do tempo é tal, que a Mesa se vê sempre na contingência de ler e de­bater com os textos provisórios da imprensa diária. Ao aguardar as publicações nos Diários Oficiais para poder, com segurança, apreciar sua forma e conteúdo perante o contexto legal, a imprensa já noticia republicações retificativas e/ou novas normas e al­terações.

Assim, antes de os próprios obrigados diretos terem tomado conhecimento oficial de tais normas, elas já estão modificadas ou abaladas em suas futuras eficácias.

Se nem os especialistas, intérpretes, assessores ou aplicadores conseguem tomar co­nhecimento e alcançar o sentido e conteúdo de tão velozes quanto efêmeras normas, que se sucedem como as quedas das cataratas, qual será a situação dos diretamente obrigados e submetidos a penalidades?

Ninguém pode ser obrigado ao impossível e esta avalancha não pode ser conceitua­da como «legislação» cumprível ou executável.

Dentre as características fundamentais da lei ou norma como proposição jurídica, estão a simplicidade, a praticabilidade e a estabilidade.

Como acentua o grande Mestre Georges Ripert, «é necessário que o legislador dê o bom exemplo». «Que a simplicidade e a estabilidade das leis fiscais introduzam uma ordem que, finalmente, se imponha ao respeito de todos. Se a regra fiscal revestir todos os caracteres da lei, terá direito ao apoio que a Moral traz à organização social».

Entretanto, tal situação advinda das várias ditaduras continua se agravando todos os dias em nosso País. Ao invés de ser freado ou estancado esse jorro, ele não só vem sendo acelerado, mas ainda multiplicadas as espécies de normas que agora já são Cons­tituição, emenda constitucional, lei complementar, lei delegada, decreto legislativo, decreto-lei, decreto, portaria, circular, ordem de serviço, ato normativo, parecer nor­mativo, ato declaratório normativo, instrução normativa, telegrama, telex, etc., como geometricamente multiplicado o número de órgãos e de funcionários emissores desses atos.

Agravando ainda essa já caótica situação, o Governo vem fabricando os chamados «pacotes» de decretos-leis para que os legisladores não disponham de tempo para estudá-los conscientemente e por simples decorrência de tempo escasso se considerem aprovados. Para os obrigados e sujeitos a penalidades dentro desse descomunal atolei­ro, mais do que a imoralidade a que se refere Ripert, constitui irrisão, senão tortura mental de sibilina ditadura normativa.

Quase ninguém tem mais coragem de contestar tantas normas ou lutar pelo seu di­reito que também é o da sociedade. Primeiro porque não chega a tomar ciência e mui­to menos consciência de seus direitos, dentro dessa mutabilidade; segundo porque os órgãos administrativos e o Poder Judiciário já estão abarrotados e a demora do proces­so, as despesas e o desperdício de tempo se tornam crucificantes. Enfim, porque essa instabilidade legiferante é muitas vezes retroativa ou de contramarcha, retirando dos le-

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sados tanto a confiança como a possibilidade de êxito, especialmente do ponto de vista econômico ou financeiro, porque a maioria das vitórias se transforma na de Pirro.

Ao invés de lealmente constatarem e reconhecerem essa muralha, muitos dos auto­res ou defensores de tais normas se aproveitam para proclamar que tais atos não seriam ilegítimos ou ilegais, porque poucos reclamaram ou contra eles se defenderam! Eis mais uma irrisão.

Diante de tal situação só resta, sociologicamente, ao povo contribuinte, a repulsa coletiva e unânime que vem expressando nos apodos de «pacotes» e cada vez mais con­tundentes com os de «entulhos» e finalmente «embrulhos» para significar que, ao invés de legislações, passamos a ter nesses conteúdos «imbroglios», em cuja aparência formal de normas os lesados vão sendo inapelavelmente «embrulhados».

As irrisões não param aí. Logo que são expedidos os tais pacotes elaborados «intramuros» e lançados de

surpresa, antes que possam ser lidos, seus próprios autores, que dispõem ainda das re­publicações com inovações e novas alterações, antevendo as impossibilidades ou impra­ticabilidades por parte dos obrigados (pessoas físicas ou jurídicas), ameaçam a todos os cidadãos contribuintes, em entrevistas públicas, soltar nessa arena o Leão do Imposto de Renda, rever ou cortar créditos e lavrar autos de infração.

Em que país estamos? O que somos cada um e todos como jurisdicionados e sub­metidos a esta «legiferação» do Brasil?

Quando o Pequeno Príncipe questionou o rei absoluto do Planetóide 325 se ele te­ria competência para reduzir o tempo necessário ao pôr-do-sol, e observou que o mo­narca capciosamente consultava o calendário, evolou-se daquela jurisdição, não acei­tando ministério nem embaixada, onde o tempo seria encurtado por engodo.

Tércio Sampaio Ferraz Jr., em artigo publicado na Folha de São Paulo de 12-8-86, pág. 3, sob o título «A Dra. Alice no País da Lei, Ora a Lei», com seu domínio tópico da concreção jurídica, demonstra, filosófica, científica e artisticamente, que estamos vi­vendo ou convivendo, dentro do «país da lei, ora a lei», num eterno pesadelo.

O Estado de S. Paulo de 19-6-86, à pág. 3, também denuncia aos brasileiros, com a responsabilidade, peso e relevância de seus editoriais e capacidade crítico-valorativa de seu autor, sob o título «Sinal de Alerta!», essa solerte desestabilização jurídica que, cada vez mais está destruindo a legislação do Brasil, a hierarquia vertical das leis e a di­visão e independência dos poderes.

As Leis e demais atos normativos não são, nem podem ser, panacéia e muito me­nos jorradas ou modificadas a jato.

Ao invés de termos legislação como um sistema orgânico ou harmônico de normas simples, transparente e cumpríveis ou executáveis, estamos dentro de uma verdadeira parafernália.

Antes de exigir o impossível ou impraticável, os governos federal, estaduais e mu­nicipais precisam se convencer de que esta desenfreada mania de expedir, incessante e velozmente, atos normativos de toda espécie, não é só causa de todo esse sufoco, mas está destruindo a ordem e acarretando a estagnação do progresso deste País continen­tal.

Nem agora, nem nunca, adiantará a Constituição da República estatuir princípios básicos da orgânica deste Estado, dos direitos humanos, de que «todo o poder emana do povo e em seu nome é exercido», «dos direitos e garantias individuais» «da ordem econômica e social» dentro da qual proclama assegurar a «liberdade de iriiciativa», a «valorização do trabalho como condição da dignidade humana» e tantos outros, se os governantes e funcionários, por meio do jato e mutabilidade de normas de toda espé­cie, continuarem a não dar tempo aos jurisdicionados, para entenderem e poderem cumprir normas autênticas e estáveis.

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As leis e atos normativos não podem ser feitos de afogadilho, intramuros e exclusi­vamente por leigos da Ciência e da Técnica do Direito.

Em face da estrutura pentadimensional do Direito fato-norma-valor-espaço-tempo, evidentemente todos devem colaborar nas informações e esclarecimentos das relações fáticas (dados), mas a elaboração da norma como a valoração jurídica prévia ou poste­rior são atribuições, deveres e encargos dos jurisperitos ou juristas que, para isso, pas­sam suas vidas estudando a Ciência do Direito e se habilitando na Técnica Jurídica. Daqueles que, além de terem conquistado títulos, tenham comprovado sua idoneidade e saber no exercício dessa profissão regulamentada.

Por mais inteligente que possa ser alguém, se não aprendeu a dirigir aviões, será um inconsciente ou louco se, não tendo essa integral «habilitação», levantar aeronaves. Fatalmente conduzirá seus passageiros ao desastre.

A lei ou norma é ato da maior reaponsabilidade de quem a elabora e da mais am­pla ou geral conseqüência para a sociedade. Como já acentuara Santo Tomás de Aqui­no na Suma, Volume das Leis, o legislador julga em geral e para o futuro; enquanto o Juiz julga cada caso e para o presente.

Se para ter competência específica para julgar cada caso particular e presente são exigidos todos os requisitos formais e habilitações jurídica do Juiz togado, como se pode, no Brasil, virem sendo postos à margem os Poderes Legislativos, os jurisperitos e sem o seu concurso serem expedidas tantas injurídicas e contraditórias normas elabora­das por curiosos ou leigos, apenas porque estejam estes investidos de Poderes Executi­vos ou administrativos?

Não estamos contestando esse estado de coisas sem fundamento, sem vivência ou sem longa e persistente experimentação. Há muitos anos vimos acompanhando essa or­gia «decretativa» e apreciando-a na prática e, muito especialmente, nestas mil horas, na Mesa de Debates, ao lado de tantos qualificados e habilitados concidadãos. Tais desen­freadas «decretações» e modificações não são por si só desperdícios, mais distorções que vêm consumindo o tempo de trabalho produtivo de toda a coletividade do Brasil.

Nunca neste nosso País os governos tiveram a preocupação de fazer um levanta­mento para apurar os danos e prejuízos que cada alteração errônea - falso experimen­to em cobaias - acarreta para os obrigados e para a Nação. O que mais falta é a par­ticipação da sociedade, por seus representantes legais nas sedes decisórias do poder, pa­ra a maior prudência no exercício deste.

Desenvolvimento pressupõe planejamento, praticabilidade e estabilidade. Norma de conduta social, seja Constituição ou o mais inferior dos atos normatizantes, são co­mandos para alcançar objetivos previamente valorados, julgados e autorizados para, conclusivamente, atingirem os fins necessários e suficientes. São atos sérios, de muita responsabilidade por suas conseqüências sociais. Não podem ser elaborados e emitidos por órgãos ou autoridades incompetentes. Exigem não só habilitação prévia ou com­provada capacidade científico-técnica-legislativa da competência formal e material dos Parlamentos. Até o decreto autêntico, de competência monocrática do Presidente da República tem apenas a natureza de ato declaratório da lei. Sua normatividade é ape­nas secundária ou de regulamentação do conteúdo e polaridade normativos da lei, tan­to assim que a Constituição Federal estatui e delimita o alcance do decreto, nestes ter­mos:

Art. 81. Compete privativamente ao Presidente da República: UI - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, expedir decretos e re­

gulamentos para a sua fiel execução. Portanto, a estatuição de normas criando, alterando ou extinguindo direitos e obri­

gações é função tópica e privativa dos Poderes Legislativos. Não dos Poderes Executi­vos e muito menos dos multifários órgãos administrativos que, sem competência e sem efetiva responsabilização vêm, diariamente e com usurpação de poderes legislativos, emi-

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tindo tantos e tão pretensos atos de criação, modificação ou extinção de direitos e obri­gações, cujos órgãos ou funcionários chegam a qualificá-los, nominativamente, de «normativos», neles incluindo até sanções!

Se para impor o cumprimento de obrigações são ilegítimos a violência, a força bruta ou o excesso de poder, são ridículas as ameaças destes dentro do estado de direi­to. Tanto mais o serão quanto coatores de atos ilegais, expedidos a jatos intermitentes e supressivos do tempo.

Todos esses «legiferadores» até hoje não tomaram «ciência» e muito menos «cons­ciência» do que se encontra estatuído erga omnes na Constituição da República:

Art. 153. . ............................................................. . § 2? Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se­

não em virtude de lei. Se essa desobediência ou vício constitucional, como verdadeira mania ou moléstia

contagiosa inoculada pelas ditaduras e disseminada na expressão «lei, ora a lei», não for extirpada, nem mesmo adiantará a tão ansiosamente esperada Nova Constituição.

Os brasileiros continuarão sob o jugo dos autores desse cataclismo de «normas» velozes, efêmeras ou diabólicas que, no espaço do Brasil, vem suprimindo o tempo cro­nológico e o tempo intencional que Deus deu ao ser humano para que ~ste, dotado de inteligência também os previsse nas leis humanas, como estão ínsitos nas Leis de Deus.

A supressão do tempo calendário e do tempo de reflexão, das leis do Brasil, não pode haver dúvida, são artimanhas do demônio, mais danosas do que as contratadas com o Fausto de Goethe. A Fausto dava mais tempo de vida para tentar tirar-lhe o tempo intencional ou de reflexão e levá-lo para o inferno, o que não conseguiu (vide págs. 529/541 do vol. 3, «Direito Tributário Atual»). Das leis e normas do Brasil vem suprimindo ambos e infernizando, aqui mesmo, a vida de todos os brasileiros. Neste pesadelo só está faltando reaparecer Mefistófeles para concluir a danação do povo bra­sileiro: «Constituição, ora a Constituição - não acredite nisso, ela é obra de fé, de or­dem, de solidariedade, de direito, de justiça e demais coisas incutidas por Deus na hu­manidade. Siga o meu lema que é o caos».

Se esses diabólicos ou cancerosos vícios não forem extirpados, nunca viremos a ter, em nosso País, autêntica, estável, respeitável, cumprível ou executável legislação, fiel à Constituição.

Se antes de ser substituída a vigente Constituição, arauto do Poder Executivo, se permitiu qualificá-Ia «moribunda», será que os futuros constituintes não perceberão que a viabilidade e supremacia da nascitura está precisamente em ser imunizada contra essa epidemia, essa alucinante mania «legiferante» do Poder Executivo e dos seus mul­tiformes órgãos administrativos?

Ninguém pode mais duvidar, em nosso País, de que fora os «golpes de Estado» e até como uma das causas destes, foram e continuam a ser os indigitados, atípicos e inu­meráveis «atos normativos» inoculados, sorrateira e diariamente na ordem jurídica do Brasil, as principais causas eutanásicas da ineficiência e da morte das Constituições.

Oxalá a estrutura da Nova Constituição, como a dos autênticos Estados de direito democráticos consiga essa tranqüilidade, para a ordem e o progresso do Brasil.

AS AÇÕES DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA E SUA PRESCRIÇÃO

Wagner Barreira

WAGNER BARREIRA

AS AÇÕES DE ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA E SUA PRESCRIÇÃO

SUMÁRIO

I. Fato comum às antigas promessas de vendas de terrenos a prestações 2. O alcance exato da nova referência ao direito real 3. A verdadeira significação do compromisso e os direitos por ele assegurados ao

compromissário cumpridor do que prometeu 4. A execução compulsória da obrigação do compromitente vendedor 5. Tempo dentro do qual o compromissário comprador deverá ajuizar a ação de

que é titular 6. Caso excepcional, que a prática poderá registrar

I. Até o advento em dezembro de 1937 do Decreto-Lei n? 58 as alienações de ter­renos para construção a agrupamentos de adquirentes separados eram freqüentemente feitas no Brasil através de promessas de vendàs destituídas de garantias sérias para os compromissários compradores. A estes era comum satisfazerem em dia o pagamento das prestações e encargos a que estavam obrigados. Mas, quando se apresentava o mo­mento de receberem o lote do imóvel objeto de sua pactuação, nem sempre ele lhes era entregue. Não raro, com efeito, viam-se diante de compromitentes vendedores desprovi­dos de escrúpulos e mais atentos à letra da lei que à fé da obrigação assumida. Muitos deles, apegando-se ao texto do art. 1.088 do Código Civil, em lugar de entregar os ter­renos negociados, propunham-se a fazer em favor do co-contratante cumpridor em dia de suas obrigações o pagamento da indenização que lhes deveria pela inexecução con­tratual.

Assim, muitas vezes, se passavam as coisas porque do contrato preliminar havido entre as partes só iriam nascer direitos reais após a escritura definitiva, em que o ven­dedor se obrigava a transferir a propriedadde do bem que lhe servira de causa. Desse modo, evitado que fosse o ato tabeliônico, o que restava entre os contratantes eram vínculos pessoais, ou obrigações de fazer, cujo descumprimento só podia dar lugar à condenação em perdas e danos.

A economia do País ja vinha se preparando, porém, para uma nova etapa. A for­ça de trabalho nas grandes comunidades estava contando com a participação de um operariado urbano, formado na sua maioria de gente de fraco poder aquisitivo, deslo­cadas das zonas interioranas para as capitais. Para elas era imperioso criar proteção.

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Na primeira linha desta inseriam-se as medidas destinadas a tornar segura a even­tualidade de um abrigo para a família, nos casos em que fosse feito o sacrifício do pa­gamento de prestações para adquiri-lo. Daí nasceu a idéia de ao mesmo tempo dar estímulos aos processos dos loteamentos e discipliná-los com a necessária rigidez. Ca­bia, de fato, empreendê-los, mas em termos que amparassem os compradores, mesmo sem prejudicar aos vendedores. Exatamente com essa dupla finalidade foram postas a atuar as regras em diversos sentidos corretivas do texto legislativo a que de início se aludiu.

2. Entre as principais inovações do mencionado Decreto-Lei n? 58 situa-se, real­mente, a criação por ele feita em benefício dos compromissários compradores do cha­mado «direito real oponível a terceiros». Para estabelecê-lo, dispôs o texto de seu art. 4~' que «nos cartórios de registro imobiliário haverá um livro auxiliar, no qual se regis­trarão por averbação os contratos de compromisso de compra e venda». E indicando o fim a que essa prática cartorária iria dar lugar, preceituou em seu art. 5? que «a aver­bação atribui ao compromissário direito real oponível a terceiros, quanto à alienação ou oneração posterior, e far-se-á à vista do instrumento de compromisso de venda, em que o oficial lançará a nota indicativa do livro, página e data do assentamento».

Como se vê, aquele direito real oponível a terceiros não representa espécie nova de direito real, a ser acrescida àquelas emergentes dos atos, fatos e negócios de que trata o art. 674 do Código Civil. Foi criado para funcionar como expediente de segurança. Ou como meio, de que o legislador se serviu, para garantir, na aquisição do terreno nego­ciado, o compromissário comprador. Darcy Bessone expressou-se bem quando sobre o assunto afirmou ser «nítido o caráter acessório do direito real instituído pelo art. 5~'.» A relação principal - explicava ele - «exprime-se na promessa de outorgar a escritura de compra e venda, logo que se complete o pagamento do preço avençado. É esta a fi­nalidade do contrato: o contrato é o seu próprio objeto. O direito real se forma apenas para impedir que alienações ou onerações posteriores venham a afetar a finalidade de tal objeto» (v. «Da Compra e Venda», n? 68, pág. 177).

A partir de então, de fato, nos terrenos loteados não mais poderia o compromi­tente vendedor em favor de terceiro alienar (por compra e venda, permuta, daçilo em pagamento, etc.) ou onerar (com hipoteca, anticrese, etc.) o imóvel negociado. Preci­samente porque a tanto se oporia o compromissário comprador cuja escritura prelimi­nar constasse de averbação feita no Registro de Imóveis. Pois ele legalmente a averbara em tal registro para garantia sua. Ou para ficar habilitado a fazer aquele oposição, co­mo ficou dito na lei de modo expresso, «quanto à alienação ou oneração posterior». O seu direito real não lhe conferia a propriedade do terreno. Esta só lhe .era dada quando estivesse pago todo o preço. Mas sem dúvida alguma, já existia, funcionando para obs­tar a alienação ou oneração do imóvel a terceiro, contra o qual poderia ser oposto.

E, para esse efeito, sua criação se mostrou tão útil que a ulterior disciplinação le­gai da matéria, advinda com a Lei n? 6.766, de 19 de dezembro de 1979, já declara ir­retratáveis os contratos registrados que conferem esse direito real oponível a terceiros (art. 25).

3. Forçoso é salientar, contudo, que essa feliz iniciativa do legislador de 1937 não colocou os compromitentes vendedores dos terrenos objeto de loteamento - ou parce­lados -, em posição desvantajosa, relativamente aos compromissários compradores que fazem a averbação de seu contrato. Pois o registro deste não modificou sua índole de negócio jurídico bilateral. Ou de ato negociai que enseja direitos aproximadamente equivalentes e que obriga as partes nele interessadas com igual força e intensidade.

São conhecidas as críticas que na Câmara dos Deputados o jurista Levi Carneiro, ao tempo, formulou ao vocábulo compromisso, com o qual Waldemar Ferreira desig­nara o contrato preliminar de que tratava seu projeto que depois inspirou o Decreto­Lei n? 58. «Preferia dizer sempre» - foram as suas palavras textuais - «promessa si-

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nalagmática de compra e venda». Era esta, segundo o seu modo de ver, «a expressão de que se deve usar, não só no art. I? como nos demais do projeto, em que se encontra aquela outra designação».

Waldemar Ferreira, como fora de esperar, defendeu convenientemente seu texto. Invocou em apoio a este a linguagem usada pelo Código Civil entre outros nos seus arts. 1.086 e 1.512. «Comprometer-se, diante desse útlimo dispositivo», dizia ele, «é contrair obrigação de fazer o prometido. Dúvida é inadmissível» - acrescentou literal­mente - «sobre os foros técnicos da expressão com esse significado. O ato de comprometer-se é o compromisso. De onde se conclui, sem mais ambages, ser o com­promisso, em linguagem jurídica, a convenção de um contrato futuro, a despeito de de­signar, também, o ajuste por que as partes se louvam em árbitros que resolvam os seus dissídios em Juízo ou fora dele; e esse contrato futuro pode ser o de compra e venda ou outro qualquer. Nesta hipótese, o compromisso contém uma promessa sinalagmática e a exprime com justeza, mercê de sua etimologia» (Cf. seu «Loteamento e a Venda de Terrenos a Prestações», Ed. Rev. dos Tribs., vol. I, págs. 134/5).

De fato, assim como vedou a lei ao compromitente vendedor que fizesse outra alie­nação ou qualquer oneração do terreno prometido à venda, assegurando-lhe o direito de receber as prestações a ele devidas pelo compromissário comprador, obrigou ela a este pelo pagamento daquelas prestações e pela satisfação de qualquer outro encargo assumido, para conferir-lhe o direito à outorga final da escritura definitiva da venda. Esse direito, aliás, figura como principal dos que são assegurados ao compromissário e, em geral, deve ser exercido após a ultimação do pagamento. E como a antecipação deste não acarreta nem podia acarretar prejuízo ao com promitente vendedor - o qual deve ter seu imóvel como já alienado - ocorreu ainda ao legislador conceder mais ao compromissário comprador direito de antecipar ou ultimar os pagamentos das mensali­dades a que se obrigou, se estiver em dia com os outros encargos acaso assumidos no compromisso.

Foi isso o que constou da regra inserta no art. 15 do Decreto-Lei n? 58. Primitiva­mente, com efeito, estava ele concebido assim: «Os compromissários têm o direito de, antecipando ou ultimando o pagamento integral do preço, e estando quites com os im­posto"S e taxas, exigir a outorga da escritura de compra e venda». Quando, no entendi­mento da lei, poderia o comprador antecipar o pagamento das prestações? Claro é que, em qualquer momento em que já houvesse pago alguma delas, desde que então esti­vesse quites com os pagamentos de impostos e taxas que se houvesse obrigado a pagar por sua promessa. E quando ele ultimaria aquele pagamento? Quando fosse devedor apenas de uma prestação, e do mesmo modo houvesse antes pago as taxas e impostos.

Ocorrendo-lhe querer antecipar ou ultimar aquele pagamento, nos dois casos ci­tados, em regra não poderia a ele o promitente vendedor recusar a escritura. Pois em favor do compromissário comprador estava estabelecida a possibilidade de pedir a exe­cução forçada da obrigação de seu co-contratante. Era por esses termos, na verdade, que dispunha o art. 16 do citado Decreto-Lei n? 58: «Recusando-se os compromitentes a passar a escritura definitiva no caso do art. 15, serão intimados, por despacho judicial, a dá-Ia nos dez dias seguintes à intimação, correndo o prazo em cartório.»

Como era então fácil de prever, podia também o compromissário, depois de se achar o preço pago, recusar-se a aceitar a escritura. A hipótese, por isso mesmo, foi àquele tempo prevista pelo legislador. Preceituava este no art. 17 do mesmo Decreto­Lei n? 58 que «pagas todas as prestações do preço, é lícito ao compromitente requerer a intimação judicial do compromissário para, no prazo de trinta dias, que correrá em cartório, receber a escritura de compra e venda».

Menos de dois anos depois de haver editado as normas aludidas no citado Decreto­Lei n? 58, a algumas delas trouxe alterações o Código de Processo Civil aprovado pelo Decreto-Lei n? 1.608, de 18-9-1939. No seu Livro IH, consagrado ao processo ordiná­rio, dedicou o Título IX alguns artigos à matéria «Loteamento e Venda de Imóveis a

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Prestações». E em seu art. 346 deixou expresso que, «recusando o compromitente a ou­torgar escritura definitiva de compra e venda, será intimado, se o requerer o compro­missário, a dá-Ia nos cinco dias seguintes, que correrão em cartório.

§ I? Se o compromitente nada alegar, o Juiz, depositado o restante do pre­ço, adjudicará o lote ao comprador, mandando: a) que se consignem no termo, além de outras especificações, as cláusulas do compromisso; b) que se expeça a carta de adju­dicação, depois de pagos os impostos devidos, inclusive o de transmissão; c) que se cancele a inscrição hipotecária relativa aos lotes adjudicados.

§ 2~ Se, no prazo referido neste artigo, o compromitente alegar matéria rele­vante, o Juiz mandará que o compromissário a conteste em cinco dias.

§ 3~ Havendo alegações que dependam de prova, proceder-se-á de conformidade com o disposto no art. 685.

§ 4~ Estando a propriedade hipotecada, será também citado o credor para auto­rizar o cancelamento parcial da inscrição, quanto aos lotes comprometidos.»

Por aí pode-se ver que as alterações trazidas ao assunto pelo legislador do Estatuto Processual do ano de 1939 tiveram importância escassa. Não foram elas além: a) da realização do prévio depósito do «restante do preço», a ser feito em Juízo pelo com­promissário b) da redução para 5 (cinco) do prazo de 10 (dez) dias, antes dado ao com­promitente para outorga da escritura que a ele incumbia fazer.

Quanto à exigência aludida na alínea a, deverá ser esclarecida uma circunstância particular. É que, constando ela de regra especial sobre a matéria - loteamento e ven­da de imóveis a prestações - não se lhe aplica a regra geral inserta no parágrafo único do art. 1.006 do mesmo código, segundo o qual «os efeitos da declaração de vontade que dependa do cumprimento de contraprestação ficarão em suspenso, até o cumpri­mento desta». Porque a contraprestação do depósito do preço, no caso, há de ser feita antes da sentença, como ficou visto.

Cabe tambem lembrar que o atual Código de Processo Civil - aprovado pela Lei n? 5.889 de 11-1-1973 - não inseriu qualquer regra nova no tocante à matéria. Sobre esta, realmente, seu art. 1.218 proclamou que continuavam em vigor os procedimentos disciplinados pelo Código de Processo Civil de 1939 e «concernentes: ao loteamento e venda de imóveis a prestações (arts. 345 a 349)>> (v. o cit. art. 1.218, inc. 1). Entretan­to, isso não significa que todos os preceitos acima invocados do Código de Processo Civil anterior permaneçam como nele elas estavam. Mesmo porque, antes de ser posto em vigor o código novo, a Lei n? 6.014, de 27-12-1973, a ele adaptou diversas normas, que alterou, encontrando-se entre elas a de que se está tratando.

De qualquer modo, no tocante à posição do compromissário comprador com refe­rência à sua escritura definitiva, cabe lembrar que a ela o Supremo Tribunal Federal dedicou sua Súmula n? 413. Nesta, deixou assentado que «o compromisso de compra e venda de imóveis, ainda que não loteados, dá direito à execução compulsória, quando reunidos os requisitos legais».

4. Obtém presentemente o compromissário comprador a execução forçada do compromisso - consoante resulta da citada Lei n? 6.014, que adaptou o Decreto-Lei n? 58 ao atual Código Processo Civil - propondo contra o promitente vendedor a «a­ção de adjudicação compulsória». Fácil é de entender que tal ação só será ajuizável pe­lo compromissário comprador que averbou previamente no Registro de Imóveis o com­promisso de que participou. Só assim constitui ele em seu favor o «direito real oponível a terceiros», a que já aludia o art. 5? do Decreto-Lei n? 58. Se não houve de sua parte a averbação, e se ela não teve lugar de outro modo, mesmo depois de haver pago todo o preço do imóvel, o que lhe cabe é ajuizar contra o promitente vendedor a ação ordi­nária em que pode pedir, anternativamente, a outorga da escritura definitiva da venda ou o pagamento das perdas e danos cabíveis pelo não cumprimento, no caso, de obri­gação de fazer.

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Essa distinção foi formulada no julgado com que o Tribunal de São Paulo decidiu, no ano de 1953, sua Apelação Cível n~ 62.581 (v. págs. 286/288 do vol. 157 da Revista Forense) e tem toda razão de ser. Com rigorosa pertinência, aliás, a jurisprudência su­mulada do Tribunal de Justiça do Ceará em seu verbete n? 145 faz ver que «só quando inscrita no Registro de Imóveis é que a promessa irretratável da venda de um bem de raíz confere ao promissário comprador um direito real sobre a coisa vendida cujo con­teúdo é a oponibilidade erga omnes e a possibilidade de alcançar a adjudicação com­pulsória» (v. seu Ementário, vol. I, págs. 64/65).

Mas, se cabível for a Ação de Adjudicação Compulsória ainda é de ver que ela, se­gundo a adaptação empreendida pela Lei n? 6.014, «tomará o rito sumaríssimo». E não será acolhida - ficou dito na atual redação que passou a ter o art. 16 do Decreto­Lei n? 58 - «se a parte, que a intentou, não cumprir a sua prestação, nem a oferecer, nos casos e formas legais». Está assim evidenciado que somente pleiteia em Juízo a ad­judicação do imóvel objeto do compromisso o compromissário comprador que, nas hi­póstes e pela forma prevista, também cumpriu as prestações a que se obrigou, ou que ao menos as ofereceu.

É óbvio que, nessa parte, o legislador da citada Lei n? 6.014 inspirou-se no texto do art. 640 do Código de Processo Civil vigente. Neste, com efeito, se lêem estas pala­vras textuais: «Tratando-se de contrato, que tenha por objeto a transferência da pro­priedade de coisa determinada, ou de outro direito, a ação não será acolhida se a parte, que a intentou, não cumprir a sua prestação, nem a oferecer, nos casos e forma legais, salvo se ainda não exigível».

Nestas condições, desde que o compromissário comprador deu execução fiel às obrigações a que se vinculou, tendo levado ao registro imobiliário a escritura da opera­ção que pré-contratou, na hipótese de haver seu co-contratante descumprido a obriga­ção que tinha, a sua Ação de Adjudicação Compulsória tem vez e deverá ser julgada procedente.

5. Caberá a essa altura indagar se o com promitente comprador tem prazo para trazer a Juízo esse seu procedimento adjudicatório, e, em caso afirmativo, que prazo é esse.

Parece fora de dúvida que esse ponto está ligado à natureza que seja emprestada à ação. Se ela for considerada uma ação pessoal, seu prazo prescritivo será o de 20 (vinte) anos, consoante a conhecida regra do art. 177 do Código Civil. Será ela contudo de 10 (dez) anos (no caso do ajuizamento contra pessoa residente na mesma circunscri­ção territorial do autor), ou o de 15 (quinze) anos, se tiver de ser movida contra pessoa ausente de tal circunscrição, na hipótese de ser havida como ação real (v. o cito art. 177).

Constitui a ação de adjudicação a que se vem aludindo uma ação pessoal? - Não é fácil de declarar-se que sim, apesar de farta jurisprudência de alguns Tribunais do País, dando a matéria como incontroversa. Em tese, com efeito. as ações fundadas em contrato, ou em declarações unilaterais da vontade, são pessoais. Clóvis Bevilácqua, com seu inimitável espírito de síntese, já afirmava terem essa natureza as ações «-qu~ tendem a exigir o cumprimento de uma obrigação» (<<Código Civil Comentado», vol. I, pág. 482 da 7~ Ed., de 1944). E a verdade é que, no remate das Ações de Adjudicação Compulsória, caso ela haja sido julgada procedente, ter-se-á dado cumprimento ou exe­cução a uma obrigação contratual, qual seja, na espécie, a de entregar o imóvel, a que o procedimento intentado era alusivo. A partir de tal raciocínio, a que se tem rendido a jurisprudência citada, poder-se-ía dar tal ação como de natureza pessoal por levar ela ao cumprimento da obrigação nascida do contrato de promessa de compra e venda.

Mas, não há como esquecer que em tal ação o que obterá seu autor é a adjudicação da coisa, fundado no direito real que de certo modo tinha sobre ela. Tanto que, sem esse prévio direito real, oponível a terceiros, e nascido da averbação no Regis­tro de Imóveis do pré-contrato de promessa de venda, não pode haver o pedido de ad-

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judicação e, conseqüentemente, a ação que o assegura. Longo, não há erro em sustentar-se que tal ação se funda no direito real, criado pela averbação imobiliária in­dicada. E desde que a ação real é a que se funda em direito real, como igualmente ensi­na a lição referida de Bevilácqua, mais adequado se afigura sustentar-se ser a Ação de Adjudicação Compulsória, mencionada pela primeira vez na redação que ao art. 16 do Decreto-Lei n? 58 deu a Lei n? 6.014, de 27-12-1973, uma ação real.

Como ação real, já se viu prescrever ela em \O (dez) ou em 15 (quinze) anos, con­forme o ponto em que no espaço se localize o respectivo réu. E a partir de quando pa­ra ela se contam esses dois prazos, de \O (dez) e de 15 (quinze) anos?

Não há dificuldade alguma em responder. Eles se contam a partir, para cada caso, do momento em que nasce o direito à ação. Corre o período prescricional de toda e qualquer ação, como é sabido, a começar do momento em que o direito do autor pode ser postulado na Justiça.

Quando, portanto, o promitente vendedor recebe do compromissário comprador a parte final do pagamento que este último se obrigou a lhe fazer, torna-se obrigado, ipso facto, pela outorga da escritura definitiva: E se de sua parte há recusa em outorgá­la, no momento mesmo em que tal recusa se verifica, nasce para seu co-contratante o direito de contra ele ajuizar sua Ação de Adjudicação Compulsória. Com' o nascimento do direito nasce, ao mesmo tempo, a contagem do período prescritivo, se ele o tem. É, como ninguém ignora, o que se tem chamado de principio da actio nata. O qual sem­pre regulou a matéria.

6. Há, contudo, uma situação especial, muito fácil de acontecer na dinâmica do dia a dia. É ela a do compromissário comprador que, após haver levado à averbação seu pré-contrato no registro imobiliário, nos loteamentos para pagamento parcelado, dei­xa de pagar suas prestações. Sabido é que, para tal caso, e na hipótese de não se colo­car o faltoso em dia com seu pagamento, tem o promitente vendedor à sua disposição dois meios capazes de conduzir à rescisão da promessa feita. Um deles interpelar o co­contratante em atraso, dando-lhe prazo razoável para purgar sua mora. E o outro -nos casos de haverem sido emitidas notas promissórias representativas das mensalidades - é o de fazer apontar para protesto os títulos vencidos, perante o Oficial para isso competente.

Admita-se, porém, que não adote o promitente vendedor na conjuntura nenhuma das duas medidas indicadas. Em tal situação - pergunta-se - continua vivo o direito do compromissário inadimplente? E em caso afirmativo, por qual tempo?

Já se mostrou que a averbação do pré-contrato no Registro de Imóveis assegura ao compromissário comprador um direito real, que na verdade não é definitivo. Mas, ape­sar de não sê-lo, e de se destinar a impedir que o promitente vendedor aliene ou onere a coisa prometida a terceiros, sua existência não pode ser negada. Assim, se o promi­tente vendedor, nos casos em que tem possibilidade para fazê-lo, nada faz capaz de extingui-lo, ele será capaz de produzir efeitos jurídicos. E baseado nele, o compromis­sário comprador que mesmo precariamente o vem detendo dispõe, sem dúvida, dos prazos de 10 (dez) ou de 15 (quinze) anos, contados do momento de seu nascedouro, ou da data da averbação feita, para ajuizar contra o promitente vendedor sua Ação Real Imobiliária da Adjudicação Compulsória. Para trazê-Ia a Juízo somente dois re­quisitos são exigidos: I ~» que efetue o pagamento integral do que deve ao futuro réu; 2:') que este, pago do que lhe é devido, se recuse à outorga da escritura da venda. Na ocorrência desses dois pressupostos, a propositura da Ação é cabível, e ela haverá de ser decidida em favor da parte que a ajuizou.