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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br ISSN 1519 - 5759 [email protected] Publicação Semestral Universidade Federal de Juiz de Fora Departamento de História Arquivo Histórico da UFJF Editora da UFJF Clio Edições Eletrônicas Juiz de Fora - MG - Brasil Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 6 - Número 1 - Jan.- Jun. 2004 1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Prof a . Dr a . Maria Margarida Martins Salomão Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto Pró-Reitora de Pesquisa: Prof a . Dr a . Cláudia Maria Ribeiro Viscardi Revista Eletrônica de História do Brasil Editor Ronaldo Pereira de Jesus Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL) Departamento de História Campus Universitário 36036-330 Juiz de Fora - MG Fone: (32) 3229-3750 - FAX: (32) 3231-1342 Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores. Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa, desde que mantida sua integridade.

REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL - UFJF · Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Manolo Florentino ... História do Brasil, ... As questões políticas,

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REVISTA ELETRÔNICA DE HISTÓRIA DO BRASIL http://www.rehb.ufjf.br

ISSN 1519 - 5759 [email protected]

Publicação Semestral

Universidade Federal de Juiz de Fora

Departamento de História

Arquivo Histórico da UFJF

Editora da UFJF

Clio Edições Eletrônicas

Juiz de Fora - MG - Brasil

Revista Eletrônica de História do Brasil Volume 6 - Número 1 - Jan.- Jun. 2004

1. História do Brasil 2.Periódicos Eletrônicos: História

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA Reitor: Profa. Dra. Maria Margarida Martins Salomão

Vice-Reitor: Prof. Paulo Ferreira Pinto

Pró-Reitora de Pesquisa: Profa. Dra. Cláudia Maria Ribeiro Viscardi

Revista Eletrônica de História do Brasil Editor Ronaldo Pereira de Jesus

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF)

Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL)

Departamento de História

Campus Universitário

36036-330 Juiz de Fora - MG

Fone: (32) 3229-3750 - FAX: (32) 3231-1342

Os direitos dos artigos publicados nesta edição são propriedade dos autores.

Esta obra pode ser obtida gratuitamente no endereço web da revista, pode ser reproduzida eletronicamente ou impressa,

desde que mantida sua integridade.

Conselho Editorial

Presidente do Conselho ([email protected]) Dr. Ronaldo Pereira de Jesus Prof. do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Editora Executiva ([email protected]) Dra. Cláudia Maria das Graças Chaves Profa. do Dept. de Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa (UFV)

Conselho Prof. Dr. Alexandre Mansur Barata (UFJF) Profa. Dra. Carla Maria Carvalho de Almeida (UFJF) Prof. Galba R. Di Mambro (UFJF) Profa. Dra. Patrícia Falco Genovez

Conselho Consultivo

Adriano S. L. da Gama Cerqueira (UFOP) Américo Guichard Freire (CPDOC / UFRJ) Ângelo Carrara (UFJF) Beatriz Helena Domingues (UFJF) Carlos Fico (UFRJ) Cláudia Maria Ribeiro Viscardi (UFJF) Douglas Cole Libby (UFMG) Jairo Queiróz Pacheco (UEL) Manolo Florentino (UFRJ) Maria de Fátima Silva Gouveia (UFF) Maria Leônia Chaves de Rezende (UFSJ) Helen Osório (UFRS) Rodrigo P. Sá Motta (UFMG) Valéria Marques Lobo (UFJF) Vera Lúcia Puga de Souza (UFU) William Summerhill (UCLA)

Ficha Catalográfica

Revista Eletrônica de História do Brasil. v.1 / n.6, jan.-jun. Juiz de Fora: UFJF. 2004. Disponível em: http://www.rehb.ufjf.br 1. História do Brasil; 2. Revistas Eletrônicas

Webmaster & logo da REHB Márcio de Paiva Delgado

Bolsista do Departamento de História (UFJF)

SUMÁRIO

Apresentação 04 Artigos

Question agraire et Mouvement des Sans Terre (MST) : occuper, résister et produire 05 Dario Azevedo Nogueira Jr.

Brazil’s presence at the 1958 Brussels World’s Fair 27 Peter Daerden

Semente de favela:

jornalistas e o espaço urbano da capital federal nos primeiros anos da República: o caso do Cabeça de Porco 36

Richard Negreiros de Paula Política e educação na escrita legislativa dos anos 1920 54 André Luiz Paulilo

Sergio Buarque de Holanda: sobre o acalanto da palavra mágica 79 Marcus Vinicius Corrêa Carvalho Gatos e massacres simbólicos: ou algumas considerações sobre ab(usos) antropológicos na história 86 Robert Daibert Jr.

Iniciação Científica

A ciência na consolidação política do estado imperial do Brasil 93 Márcio de Paiva Delgado

APRESENTAÇÃO

O presente volume demarca a remodelação técnica e editorial

da Revista Eletrônica de História do Brasil (REHB), que a partir de

2004 passa a ser um empreendimento acadêmico que congrega o

Arquivo Histórico da UFJF e os Departamentos de História da

Universidade Federal de Juiz de Fora e Universidade Federal de

Ouro Preto.

Nesta nova fase, a REHB mantêm a centralidade de seu

compromisso com a divulgação de trabalhos científicos relativos à

História do Brasil, produzidos em âmbito nacional e internacional,

visando a difusão e a qualidade do ensino e da pesquisa histórica.

O elo fundamental de ligação entre as duas fases da REHB

evidencia-se na atuação do Professor Galba Di Mambro, seu

idealizador e empreendedor, pioneiro no universo dos periódicos em

suporte virtual no Brasil, sem o cuidado do qual também a nova

REHB não se poderia concretizar.

No atual volume, a REHB apresenta artigos que têm como

eixo comum a reflexão teórica e de história social e política,

distribuindo ênfase no chamado Brasil República.

Ronaldo P. de Jesus

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QUESTION AGRAIRE ET

MOUVEMENT DES SANS TERRE « MST » : occuper, résister et produire

Dario Azevedo Nogueira Jr. Doutor em Ciência da Informação e Comunicação IFP - Sorbonne

Prof. Adjunto da Universidade Federal de Viçosa Resumo: Este artigo trata da questão agrária no Brasil e do Movimento dos Sem Terra a partir de uma contextualização dos movimentos rurais no país. As questões políticas, sociais, econômicas e religiosas ligadas à resistência e produtividade agrícola são analisadas no processo de formação do mais importante movimento social rural do final do século XX. Palavras-chave: 1. Brasil; 2. Movimentos Sociais no Campo; 3. MST.

Absract: This article focuses the agrarian subject and the "Movimento dos Sem Terra" (MST) on the Brazilian rural movement context. The political, social, economic and religious issues were linked to resistance and agricultural productivity for analyzing the formation process of the most important agrarian movement at the end of the 20th century. Key words: 1. Brazil; 2. Brazilian Agrarian Moviment; 3. MST.

L’immensité et ses conséquences

Le Brésil, avec ses 8.500.000 km2, se trouve parmi les six plus grands pays du monde en

surface. Avec autant de terres, le Brésil possède néanmoins l'une des structures foncières les

plus concentrées du monde. Par exemple, en 1995 cette distorsion agraire brésilienne est visible

car le Brésil comprend 10,6 millions de "sans-terre"(Pereira, 1996: 18-24).

En cette même année, selon les données de l'I.N.C.R.A, on constatait que seulement vingt-

sept propriétaires de terres possédaient un total de 25.547.539 hectares, c'est-à-dire, une

extension faisant presque trois fois le territoire du Portugal, ou une surface équivalente au territoire

occupé par l'Etat de S. Paulo - 24.790.000 hectares (I.N.C.R.A., 1995).

Afin de mieux comprendre l'influence des médias dans la formation de la mentalité

collective brésilienne par rapport au mouvement des sans-terre, il est nécessaire que l'on fasse

une référence à propos de la structure foncière brésilienne et son développement qui, encore de

nos jours, empêche l'accès à la terre à la plupart des travailleurs paysans.

Selon Luiz Ablas (1995), professeur à la faculté d'économie de l'Université de Sao Paulo,

l'origine de la structure foncière en Amérique Latine se trouve dans les "Institutions Coloniales" -

"Encomiendas" et "Sesmarias". Dans ce sens, Juan Carlos Garavaglia (1975) souligne que " le

Paraguay fait partie d'un secteur de la réalité coloniale où les Encomiendas ( et sa variante, "

l'encomienda de service personale " ) continuèrent à exister encore pendant une bonne partie du

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XVIII siècle... Cette Encomienda a sans aucun doute quelques éléments de type féodal qui ont

rendu difficile sa parfaite compréhension." (Garavaglia, 1975: 456-457). Ablas, quant à lui,

considère que "dans l'Amérique portugaise, le processus était beaucoup plus évident, étant donné

que la Sesmaria avait déjà ses racines dans la propriété foncière dans toute son extension. Il a

donc fallu que l'octroi de la terre en sesmaria soit suivi d'une forte mise en valeur de celle-ci pour

qu'on assiste à l'affirmation du grand domaine terrien, au Brésil, au début de l'époque coloniale et

sa naturelle maturation dans les siècles suivants"(Ablas, 1995 : 108-109).

L'auteur constate encore que cette période de l'économie coloniale portugaise est

concentrée sur la culture d'exploitation de la canne à sucre et l'industrialisation de celle-ci. Ainsi la

"Sesmaria" et " l'engenho " sont les bases fondamentales de la société coloniale portugaise qui ont

entraîné la consolidation définitive du grand domaine terrien.

Pendant la ¨Republia Velha ¨ - 1889-1930 - la société brésilienne a vécu des modifications

profondes. L'une des plus évidentes est la fin tardive de l'esclavage. Il est pertinent de rappeler

que le travail esclave a pris un caractère globalisant dans l'agriculture brésilienne, laissant assez

d'espace à une force de travail libre. Dans le système esclavagiste, les blancs pauvres avaient

deux options: se soumettre au pouvoir d'une propriété voisine ou se restreindre à des activités de

subsistance, transférant la base de la plantation toutes les fois que la terre cultivée était devenue

attractive pour les grands propriétaires (Prado, 1963). D’autre part la substitution de l'empire par le

régime Républicain a mis en place un système de chemins de fer, facilitant le transport du café et

la communication entre les villes.

Dans l'agriculture il surgit des innovations technologiques au niveau de la production

agricole, parmi lesquelles, l'arrivée d'immigrants européens qui cherchent du travail dans les

plantations de café. Ces deux phénomènes ont lieu dans un environnement caractérisé par des

grandes propriétés rurales dirigées vers le marché international et basées sur l'utilisation de

systèmes de travail répressifs. Il y a eu, en effet, une modernisation au seul profit des grands

propriétaires terriens qui ont empêché une répartition égalitaire des bénéfices dûs aux

changements. Dans ce sens, la modernisation n'a pas signifié grand chose pour les paysans.

Après l'introduction de la main d'oeuvre européenne, les blancs pauvres et les ex-esclaves

ont été incapables de faire face aux immigrants européens. Les idées reçues des fermiers et

l'institutionnalisation d'un marché de transport pour les étrangers, ont laissé peu d'espace de

travail à ces deux catégories (les anciens esclaves et les blancs pauvres). Les anciens esclaves

se sont dirigés vers des espaces urbains dans la perspective de trouver un travail domestique qui

leur garantisse une subsistance (Reis, 1989: 281-301). Dans ce sens, comme le suggère

Galhoway (1971), l'abolition a représenté un problème financier, politique et émotionnel, mais pas

du tout un problème de manque de main d'oeuvre. En ce qui concerne les blancs pauvres, ils

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occupaient en général des activités de subsistance et étaient embauchés occasionnellement pour

des travaux temporaires dans les plantations.

Selon Elisa Reis (1989), l'option de la main d'oeuvre étrangère dans l'économie était

fortement conditionnée par des facteurs externes. L'expansion de l'Europe, pendant cette période,

a créé des dispersions significatives, ce qui a été décisif pour la politique brésilienne d'immigration.

Cependant, l'option des fermiers de Sao Paulo pour les programmes d'immigration

étrangère fonctionnait comme une coalition avec les élites du nord refusant aux ex-esclaves et

aux blancs pauvres l'accès au marché du travail, garantissant aux "Barons du café" la

suppression de la main d'oeuvre.

Ainsi, un grand nombre d'européens, surtout des Italiens, ont été attirés par les plantations

de café dans la perspective d'une vie meilleure. Toutefois, les mauvaises conditions de travail et

de séjour, malgré des loyers très faibles, ont montré le vrai visage de l'exploitation agricole

brésilienne.

Beaucoup d'immigrants partaient de leurs pays dans l'espoir de travailler et d'acheter des

terrains au Brésil. Mais quand ils arrivaient, ils étaient soumis à différentes formes de contrôle

social: dépendants financiè, obligation de rembourser tous les frais liés à leur venue et leur

présence souvent appliquée à travers des indemnisations aux propriétaires terriens, contrôle et

retard de paiements etc. (Hall, 1969).

Les données indiquent que la proportion de travailleurs étrangers qui abandonnaient les

fermes avant la fin du contrat atteignait presque 40% en 1910 et 62% en 1912 (Almeida, 1941 :

105-157). Pierre Denis (1977) a constaté qu'en moyenne, 1/3 des immigrants allaient

annuellement d'une ferme à une autre. En effet, la proportion d'étrangers dans la ville de Sao

Paulo a augmenté énormément car en « 1920 la population étrangère constituait 35,4% de la

population totale de la ville et la sortie d'étrangers du Brésil était aussi considérable que l'entrée,

allant, quelques années plus tard, jusqu'à dépasser le nombre d'entrées dans le pays » (Hall, 1969

:110).

L'une des preuves des abus infligés aux travailleurs immigrés, dans les plantations de café,

fut l'interdiction Italienne, en 1902, de l'immigration. En 1910 l'Espagne est entrée dans la même

voie (Reis, 1989 : 287).

Alors, les paysans illettrés vivaient dans de mauvaises conditions de logement et de santé

et sans possibilité de mobilisation sociale. D'autre part, l'abolition de l'esclavage n'a pas modifié

les conditions de travail, en maintenant les inégalités entre patrons et travailleurs. En 1920, 50%

des propriétés les plus petites ne correspondaient qu'à 3,8% de la surface agricole utile, tandis

que les 5% plus grandes couvraient 66% de celle-ci (Ablas, 1995).

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Encore dans la "Republica Velha", du faites des transformations socio-économiques de

cette période de l'histoire brésilienne, la population brésilienne est passée des 14 millions

d'habitants en 1889 à 37 millions en 1930. La distribution de cette population a changé de façon

significative. Alors que la population du pays a augmenté de 164%, celle de la région Sud (Rio

Grande do Sul, Santa Catarina, Parana et Sao Paulo) a augmenté de 275%, laissant apparaître

que cette région deviendrait le centre dynamique du pays. Bien que la population rurale dépasse

encore celle du milieu urbain, des villes émergeaient à des dimensions de métropoles, comme

c'est le cas de Sao Paulo, Rio de Janeiro et aussi Porto Alegre et Belo Horizonte.

D'autre part, les transports et les communications se sont répandus, le réseau des chemins

de fer, qui comptait 8000 Km au début de la République, a atteint 32000 Km en 1930. Dans cette

période s'est aussi développée l'instruction publique. Outre les traditionnels cours de droit et de

médecine, les cours de travaux publics et d'autres cours techniques sont apparus sur la scène

éducative.

Il est vrai que le changement le plus significatif a été la croissance de l'activité industrielle,

comme on peut noter dans les chiffres ci-dessous.

Année Nombre d’usines Nombre d’ouvriers

1899 900 54200 1907 3120 149000 1914 7430 154000 1920 13430 275500 1930 18800 450000

Source : (Carone, 1993: 70-86) :

Cette croissance avait pourtant ses limites, la plupart des usines étant textiles et

alimentaires. En outre, 55% de ces usines se concentraient dans la ville de Sao Paulo et Rio de

Janeiro. Malgré cela, l'importance de l'industrie dans l'économie brésilienne a augment de façon

significative.

Il faut souligner que dans les 30 premières années du XXème siècle, la production pour le

marché interne a augmenté plus que celle destinée à l'exportation. Comme toute la base de la

Republica Velha se faisait sur le système foncier exportateur, au fur et à mesure que les autres

secteurs gagnaient de l'importance, le domaine des oligarchies s'affaiblissait. Cela a produit des

changements dans la structure sociale brésilienne, comme on peut remarquer dans l'émergence

d'une bourgeoisie industrielle et financière qui a accumulé, à la fin des années 20, la richesse et

l'influence économique.

Dans les 30 premières années du XXème siècle, il y a eu également l'émergence d'une

classe moyenne représentative. Bien que la population urbaine soit restée faible pendant la

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Première République, la croissance s'est accélérée dans certaines villes, en particulier à Sao

Paulo et à Rio de Janeiro, accompagné du développement des activités industrielles, bancaires,

des transports et des services urbains en général, ce qui a conduit la classe moyenne à

développer à son tour un processus d'autonomie et d'affirmation par rapport à d'autres groupes

sociaux.

On peut aussi remarquer la croissance, depuis la fin du XIX siècle, de la classe ouvrière qui

au début était formée par une majorité d'étrangers immigrés, mais qui, à partir de la première

guerre mondiale a vu augmenter considérablement le nombre de travailleurs brésiliens, malgré

l'importance des immigrés qui ont continué à avoir une place importante dans l'ensemble de la

classe ouvrière. Il faut souligner que le grand nombre d'ouvriers étrangers a favorisé la pénétration

des idées anarchistes, socialistes et communistes au Brésil. Le Parti Communiste Brésilien, fondé

en 1922, a orienté la classe ouvrière vers des revendications salariales : la réduction de la journée

de travail, la protection du travail des femmes et des mineurs, les règles de sécurité dans le travail.

Cependant, même avec ces changements socio-économiques, selon Hervé Théry (2000)

"c'est dans le monde rural que sont toutes les bases de la croissance récente: les capitaux qui ont

édifié l'industrie de Sao Paulo venaient du café, les ouvriers des usines arrivaient des plantations

ou des campagnes nordestines, le pouvoir politique et les leviers de l'état fédéral ont longtemps

été partagés entre les barons du sucre, du café ou de l'élevage, et les classes montantes des

villes». Et l'auteur fait remarquer que l'économie agraire a été fondamentale pour la

compréhension du développement économique brésilien. On note en effet que de 1960 à 1980 la

part de l'agriculture dans le système productif brésilien baisse d'autant plus, que les autres

secteurs, tels que l'industrie et les services, montent. La croissance dans les secteurs industriels et

de services est accompagnée d'une relative diminution des activités agricoles. On pourra le

remarquer dans le tableau ci-dessous ces variations :

Part dans la population active (%)

Part du revenu intérieur (%)

Part du produit intérieur brut (%)

Agriculture 1960 53,7 1970 44,3 1980 29;9 Industrie 1960 13,1 1970 17,9 1980 24,4 Services* 1960 33,2 1970 37,8 1980 45,7

1959 20,2 1970 14,6 1980 13 1959 32,7 1970 33,3 1980 34 1959 52,7 1970 51,4 1980 53

1960 22,6 1969 17,1 1980 7,6 1960 25,2 1969 29,5 1980 38,1 1960 52,2 1969 53,4 1980 54,3

Source : (Théry, 2000). * Commerce, transports et communications

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Théry (2000) considère également que le Sud-est et le Sud sont les régions coeurs du

Brésil: " sur un peu moins de 18% de sa surface sont concentrés 59,5% de sa population, 65,9%

de sa production agricole, 66% de sa production minière, 89,2% de sa production industrielle ".

Les tableaux ci-dessous nous offrent une idée des données socio-économiques concernant les

régions sudeste et sud du Brésil:

Sud-est Sud Superficie 10,9 % 6,9 % Population (1999) 43,5% 16 % Emploi dans l’agriculture 20,4 % 20,8 % Valeur de la production agricole 33,4 % 32,5 % Emploi dans l’industrie 66 % 19,5 % Valeur de la production industrielle 73 % 16,2 % Emploi dans le service 50 % 19,2 % Valeur des services 63,7 % 20,2 % Emploi dans le secteur minier 47 % 19 % Valeurs de minerais 70 % 9 %

Source:(Théry, 2000).

Sud-este Sud Production d'electricité 69 % 13,1 % Consommatin d'electricité 68,5 % 12,5 % Consommation d'essence 59,5 % 18 % Publication de livres 83,7 % 9,3

Source:(Théry, 2000).

Par rapport à la question agraire dans les années 1960, Théry souligne encore que les

paysans obtiennent en 1963 la promulgation du statut du travailleur rural qui garantit le paiement

des salaires en espèces et non en bons d'achat dans le magasin du patron. Le droit au repos

hebdomadaire, les congés payés et une certaine couverture sociale sont acquis. C'est dans ce

sens que l'on peut remarquer une augmentation du coût de la main d'oeuvre à la campagne grâce

au " Statut du Travailleur Rural" (Sigaud:1993).

Ainsi, le Brésil, compte aujourd'hui 170 millions d'habitants vivant de plus en plus dans des

villes - 77% de la population est urbaine. Entre 1970 et 1990, 30 millions des travailleurs ruraux ont

immigré vers les villes et plus de 34 millions de brésiliens vivent dans la pauvreté absolue. 40% de

travailleurs gagnent moins d'un salaire minimum mensuel de 120 dollars. 50 % des plus pauvres

reçoivent 12% du revenu national, alors que 10% des plus riches possédants 51% du (PIB).

C'est dans cette ambiance anachronique que le Brésil est le deuxième pays du monde en

termes de concentration de terres, aussi bien qu'en termes de nombre de terres improductives.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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Pourcentage de la surface improductive dans chaque région du pays selon le « MTS ».

RÉGION TOTAL NON PRODUCTIF Immeuble (%) Surface(%) Immeuble (%) Surface(%)

Brésil 100 100 24 62 Nord 4 19 45 79

Nordeste 27 20 20 69 Sudeste 26 18 27 50

Sud 35 13 20 43 Centre-ouest 7 30 38 63

Source: "Jornal dos trabalhadores rurais Sem Terra”, Outubre/novembre, 1996.

La mobilisation syndicaliste agricole et la conquête sociale

Dans les années 1930, pendant la dictature modernisante, une législation a été approuvée

pour restreindre l'immigration étrangère, justifiée à l'époque par des raisons nationalistes. Mais en

réalité le taux d'augmentation de la population s'était élevée, la structure foncière fortement

concentrée et la puissante résistance politique envers n'importe quelle transformation structurale

laissaient figées toutes les structures de pouvoir à la campagne (Reis, 1989: 291).

Ainsi, il n'y avait pas d'espace pour la réforme agraire ou pour l'extension des garanties

sociales aux travailleurs ruraux. Les champs devaient fournir des aliments, la main d'oeuvre bon

marché et les matières premières pour le pôle dynamique et industriel de l'économie. "Les

relations de travail dans le milieu rural devaient continuer ainsi inaltérées, afin de répondre à cette

demande conservatrice de la coalition du pouvoir en place. Les paysans devaient être éloignés du

domaine politique " (Reis: 291).

Dans ce sens, la création des syndicats dans le contexte urbain a été stimulée pendant le

gouvernement de Getulio Vargas, mais en 1954 seulement cinq syndicats ruraux ont été

légalement autorisés à fonctionner au Brésil (Moraes, 1970: 453-501). Même avec cette structure

syndicale le Parti Communiste Brésilien fonde, en 1954, l'union des laboureurs et des travailleurs

agricoles brésiliens-ULTAB- Leonilde de Medeiros (1989) affirme que, jusqu'à la fin des années

1950 le PCB – Parti Communiste- sera le porte-parole des paysans. En 1955 on voit surgir des

conflits pour la terre à travers les ligues paysannes à Pernambuco. Ces ligues se répandent dans

le reste du pays entre 1955 et 1964 (Scherer-Warren, 1987 : 69). Il y a aussi, au début des années

1960, des organisations paysannes liées à l'église catholique. Dans le sud, après l'occupation

d'une ferme près de Sarandi, le Gouverneur du Rio Grande do Sul, M. Leonel Brizola, réussit à

exproprier une terre au profit de 3000 personnes. Mais trois ans plus tard, le mouvement des

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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agriculteurs sans terre (MASTER), est déclaré illégal par les militaires qui viennent de s'emparer

du pouvoir (Colombani, 1987).

Ainsi, en 1963, est fondée la « confédération nationale des travailleurs de l'agriculture » -

contag- faisant ressortir la structuration du mouvement agraire au Brésil. On voit surgir au cours de

cette période deux lois importantes pour le mouvement agraire - le statut du travailleur qui

réglementait les droits du travail et le statut de la terre.

Cependant, en 1964 sous l'installation du régime militaire, les dirigeants du mouvement

syndical des paysans et des travailleurs ruraux seront emprisonnés et torturés et la direction de la

contag sera remplacée par un représentant du gouvernement militaire permettant aux militaires

d'implanter un modèle agricole qui va bénéficier aux grands propriétaires fonciers et aux autres

fractions de la bourgeoisie brésilienne. Selon José de Souza Martins (1980) la Contag joue un rôle

révélateur et fondamental dans les luttes sociales des années 60 au Brésil. Pour l'auteur, la

Contag représentait dans cette période la possibilité d'unification des luttes à la campagne. Dans

le congrès de fondation de la Contag, en 1963, la confédération comptait 26 fédérations rurales

ayant droit au vote. Parmi ces fédérations, 10 ont suivi l'orientation du Parti Communiste, 8 celle

de l'Action Populaire, 6 étaient liées aux groupes chrétiens et deux autres courants se

dénommaient comme des "indépendants". Parmi les groupes organisés dans le milieu rural,

seulement deux ligues paysannes n'ont pas participé à la fondation de la Contag (Medeiros, 1989).

Un autre aspect important dans l’organisation rurale des années 1960 est le rôle joué par

l'église dans la formation du syndicalisme rural. Regina Novaes souligne que " même ayant

officiellement soutenu le coup d'état, l'église catholique n'a pas pu, ou n'a pas voulu, empêcher

l'intervention du Ministère du Travail dans la Contag. Elle a pu toutefois amenuiser les

interventions directes dans le syndicat considéré comme lié à l’église, même quand ceux-ci, dans

leurs pratiques syndicalistes, ne se distinguaient guère des autres syndicats classés comme "

communistes"(Novaes, 1991: 76).

En 1975 l’église a été créée la Commission Pastorale de la Terre, CPT, liée au

mouvement à « l'église de la libération» (la théologie de la libération) en devenant un important

canal de structuration de l'organisation des mouvements sociaux et de la formation de dirigeants

ruraux. Un facteur qui a permis l'augmentation du nombre des syndicats ruraux dans les années

70, et qui a été présent dans le discours du Ministre du travail à l'occasion du II Congrès National

des travailleurs ruraux - organisé par la Contag en 1973 - a été l'adéquation des conventions

assistentialistes des retraites, pensions, aides et services de santés - entre le pro-rural

(programme d'aide au travailleur rural) et les syndicats. A la fin du II congrès le ministre du travail ,

Julio Barata, dit que " le prorural est le renforcement des syndicats authentiques... parce qu'il s'agit

de syndicats qui sont aussi des prestateurs des services et non pas seulement des syndicats à

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caractère revendicatif" (Novaes, 1991: 78). Dans ce sens, Regina Novaes remarque que « dans

les années 70 ont été fondés 46% des 2.732 syndicats des travailleurs ruraux recensés en 1989 ».

La création du Prorural a permis une augmentation du nombre des syndicats ruraux. En

revanche, elle aurait transformé les syndicats ruraux en " postes de services médicaux " ou en

entités à travers lesquelles on acheminait les demandes de retraite et de pensions, en écartant les

syndicats de ses attributions propres. Ces faits nous permettent de mieux comprendre les critiques

que les organisations catholiques actives à la campagne avaient à l'égard des certains syndicats

ruraux de par leur conformisme. Les catholiques ne critiquaient pas la forme d'organisation

syndicale, mais les pratiques syndicales conformistes et peu revendicatives (Novaes, 1991 : 79).

Au III Congrès des travailleurs ruraux, en 1979, il était déjà possible de voir les nouveaux

personnages des conflits de terre qui comptaient sur l'aide de la CPT. Ainsi, au IV Congrès, en

1985, il était déjà évident, selon Regina Novaes, l'affaiblissement d'un modèle de syndicalisme

historiquement construit par le mouvement syndical des travailleurs ruraux. À l'occasion de ce

congrès, quelques syndicats liés à la CUT et le groupe des " sans-terre" se sont regroupés dans

l'opposition au positionnement de la Contag par rapport aux critères des élections syndicales des

bureaux des fédérations et de la Contag elle-même. La croyance en l'autonomie de la Contag

étant affaiblie, " était également affaiblie son efficacité en tant que coordination nationale des

travailleurs ruraux... après le congrès, la Contag n'avait plus de légitimité pour contenir l'avancée

des "sans-terre" qu’ont entamé une série d'actions d'occupation de terres non productives, ainsi

que des bureaux régionaux de l'INCRA " (Novaes, 1991: 188).

Le MST est donc " né à partir de la création, par les travailleurs ruraux sans terre, d'une

nouvelle perspective en vue de dépasser les organisations politiques qui ne répondaient pas aux

besoins et aux attentes de ces individus, comme par exemple, la solution des problèmes

structuraux, à savoir, la reforme agraire" (Martins, 1980: 11-12).

Le MST, " malgré son auto définition comme l'articulation des paysans dans le mouvement

syndical, aussi bien que par le fait d'être présent en plusieurs villes avec les syndicats, surtout

ceux qui ont subi le renouvellement de ce qu'on appelait l’opposition syndicale, était efficace et

dynamique grâce à sa forme d'organisation originale et au soutien qui lui était accordé par l'église.

Les relations entre le MST et les syndicats deviennent de plus en plus tendues. Les fédérations et

la Contag ont du mal à reconnaître un mouvement dont la lutte pour la terre ne se soumet pas à la

direction et à la discipline" (Grzybowski, 1937: 22).

Ainsi, pendant la dictature militaire brésilienne, " alors que les syndicats urbains s'étaient

développés sous la base de l'opposition gauche/état, le syndicalisme rural était plutôt axé sur une

opposition gauche/église, l'état se mettant à l'écart d'abord et, à la fin de cette période, essayant

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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de jouer un rôle de médiateur, en se positionnant pour l'une ou l'autre des forces en conflit"

(Palmeira, 1985).

La question agraire dans les années 1960-1970 Rose Marie Lagrave, citant Lefèvre, dit que la période de 1950-1960 révèle la montée de la

nostalgie. Selon l'auteur, pendant cette période " il y a une sorte de mouvement social caractérisé

par la séparation de l'homme et de la nature. Elle connaît surtout une accélération du processus

de migration du village vers la ville. Le monde rural est alors de plus en plus confronté à la société

globale et cesse d'être isolé" (La Grave, 1996: 9). Il est essentiel de noter qu'en 1950, 60% de la

population brésilienne, c'est-à-dire, 33 millions de personnes habitaient à la campagne (Pereira,

1996). Pendant cette période - 1950-1960 - différents pays de l'Amérique Latine subissent une

modernisation industrielle.

Selon Chonchol les années 1960 furent favorables, en Amérique Latine, aux

transformations des structures agraires. L'auteur justifie cette opinion signalant qu’après la

Révolution Cubaine les révolutionnaires ont implanté une réforme agraire des plus radicales qu'ait

connue l'Amérique Latine pendant le XXème siècle.

En créant une nouvelle idéologie à propos de la question agraire de l'Amérique Latine,

surgissent en fait d'autres points favorables: l'urbanisation accélérée et le développement de

l’agriculture. À cette époque-là il y avait des études du Conseil Économique et Social, F.A.O. et la

CEPAL qui montraient l'importance de la réforme agraire pour dépasser les obstacles

institutionnels qui freinaient le développement. Malgré cela les États-Unis, préoccupés par les

reflets de la Révolution Cubaine, appliquent une nouvelle politique d'aide économique aux pays

latino-américains. Il décide d'effectuer des changements structurels, parmi lesquels la reforme

agraire comme l'un des plus importants changements (Chonchol, 1995: 25-31).

La modernisation agricole brésilienne à partir de 1966 se résume en deux points: maintenir

les oligarchies régionales et élever le niveau technique et économique de l'agriculture sans

intervenir pour autant dans la structure agraire.

A cette même période, il y a eu un grand effort de la part du gouvernement afin d'entrer

dans le monde rural mettant en oeuvre des politiques intenses de modernisation, par exemple en

favorisant le crédit aux exploitations agricoles à grande échelle, transformant l'agriculture en

secteur de consommation de biens agricoles industrialisés. Dans les années 1970, il apparaît des

incitations pour coloniser la région de l'Amazone afin de diminuer les tensions agraires dans les

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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régions surpeuplées. Cependant l'option de l'exode de la région de l'Amazone de la part des

agriculteurs était incertaine et risquée.

Ainsi, alors que les mouvements des paysans étaient durement réprimandés sous le

régime militaire, le gouvernement faisait en sorte que la pénétration de l'État dans le milieu rural

soit possible. Ces facteurs ont toutefois introduit des changements radicaux dans la société rurale,

provoquant ainsi des nouveaux systèmes de réponses de la part des paysans.

Le mouvement des sans terre

Soulevés du sol (Poème de Chico Buarque sur une musique de Milton Nascimento)

« Comment donc? / Arrachés à la terre,

Comment ça? Soulevés du sol? Comme si la terre dessous le pied

S'écoulait comme de l'eau dans la main Comme en rêve courir le long d'une route

En glissant sur place Comme en rêve soudain perdre pied Et dans le creux de la terre sombrer Comment donc? Arrachés à la terre?

Comment ça? Soulevés du sol? Ou de la terre sous la plante des pieds

Comme de l'eau dans la paume de la main Habiter une boue sans fond

Comme s'étendre sur un lit de poussière Dans un bercement de hamac sans hamac

Voir le monde la tête à l'envers Comment ça? Un colon en lévitation?

Un pâturage volant? Une étable céleste? Un troupeau dans les nuages? Mais comment?

Un boeuf ailé? Un alezan sidéral? Quel étrange labour! Mais comment? Une charrue dans les airs? Vraiment Il pleuvra quelle orange? Quel fruit?

Des tranches? Du jus? De la grêle? Une manne? ».

La politique d’occupation efficace A partir de la décennie de 1970, le manque de terres représente un grand problème pour

les petits producteurs du sud du Brésil. L'un des facteurs qui conduit à cette situation est

l'expansion même du capitalisme dans le milieu rural, où les agriculteurs étaient confrontés à des

crédits agricoles, cédés par le gouvernement, qui primaient sur la monoculture exportatrice et sur

l'agro-industrie. A cela vient s'ajouter l'augmentation de la population et le manque de nouvelles

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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terres. A cette époque plusieurs petits producteurs perdent leurs terres afin de laisser place à des

travaux gouvernementaux (Itaipu/pr, Salto Santiago/pr, Passo Real/rs). Beaucoup de ces

travailleurs ruraux n'arrivent pas à obtenir de nouvelles terres pour travailler. Le gouvernement

essaye de régler la situation des conflits de terres dans le sud du pays, et il présente un projet de

colonisation de la région de l'Amazonie et du Mato Grosso. Mais ce projet n'assurait pas un

soutien aux paysans et il apparaissait ainsi une nouvelle catégorie sociale à la campagne: les

"sans-terre".

Cela a provoqué l'émergence d'un mouvement social qui s'est mis à l'écart des institutions

traditionnelles déjà existantes. "Pour ceux qui questionnaient l'aliénation et l'oppression, les

nouveaux mouvements sociaux ont suscité sous plusieurs angles l'admiration et l'étonnement ...

plusieurs chercheurs s'interrogeaient sur la signification, les origines et les objectifs de cette

expérience de base, d'autogestion et de contre aliénation" (Scherrer, 1987: 9). C'est le cas du

« MST », qui s'est fixé le but de lutter pour la terre, pour la réforme agraire, pour la conquête de la

terre à cultiver ainsi que pour la construction de sa catégorie, en créant ainsi de nouveaux espaces

dans un processus continu de luttes différenciées dans le temps.

On peut comprendre le développement de ce processus de lutte à travers l'évolution des

compositions des mots d'ordre du « MST ». Ainsi, de 1979 à 1986 le mot d'ordre était " réforme

agraire tout de suite"; de 1986 à 1989 " Cette lutte est la nôtre" ; de 1989 jusqu’ à nos jours le mot

d'ordre reste " occuper, résister et produire". La lecture de ces mots d'ordre reflète la matrice

discursive du « MST », qui nous fournit l'historique des moments politiques vécus par ces

travailleurs. De 1979 à 1986 les mots d'ordre représentent la lutte pour la conquête sociale du droit

à la revendication; de 1986 à 1989, c'est le renforcement de l'organisation des luttes pour

l'exécution du PNRA - Plan national de reforme agraire; de 1989 à aujourd'hui on voit représentée

la confiance en des stratégies politiques du mouvement, malgré les massacres de Corumbiara

(1995 ) et Eldorado dos Carajas ( 1996 ) ainsi que la reconnaissance de l'échec du gouvernement

par rapport à la mise en place du PNRA.

La forme de structuration du MST est basée sur l'organisation des campements,

« Assentamentos », des paysans installent tout auprès des grandes fermes en syntonie à lutte du

conquêt de terre. Le mouvement compte des représentants dans tous les états brésiliens - y

compris à Sao Paulo où fonctionne un bureau central et un bureau national. Les dirigeants sont

aussi campés ou " assentados " et ils ont une certaine expérience de la lutte pour la reforme

agraire. Cette structuration permet de rompre l'isolement géographique, social et culturel entre les

États, et favorise ainsi que l'échange d'expériences d'organisation des travailleurs, l'occupation de

terres et finalement la négociation avec les forces politiques concernées.

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Ainsi, la région de Ronda Alta est devenue un point de référence pour la construction du

« MST ». Cette région a été stimulée par le gouvernement afin de mécaniser la production de

grains et de fixer le prix du soja. Cela a favorisé la concentration de terres dans les mains des

grands propriétaires et a également permis qu'une grande partie des travailleurs ruraux de Ronda

Alta, Cruz Alta et Passo Fundo se retrouvent sans terre et sans emploi. Sans savoir où aller, les

travailleurs sans terre s'installent au bord des routes, initialement dans la région sud, en se tassant

dans des habitations précaires construites en bois, en plastique, voire à base de certains types de

végétation.

En Mars 1981, avec l'appui de la Commission Pastorale de la Terre, CPT, et le Mouvement

de justice et des droits de l'homme, environ trois cents à cinq cents familles de travailleurs ruraux

(ressortissants de Ronda Alta, Constantina, Nonoai, Rodeio Bonito, Planalto, Irai, Rondinha et

Liberato) se sont dirigées vers la localité de "Encruzilhada do Natalino" (Colombani, 1985).

Tout de suite après l'invasion du "Natalino", les "sans-terre" ont essayé de négocier avec

l'État. Cependant le gouvernement ne s'est prononcé que deux mois aprés l'invasion. A cette

époque, les travailleurs sans-terre ont fait plusieurs tentatives de négociation. Alors le

gouvernement du Rio Grande do Sul a offert du travail à un petit groupe d'agriculteurs dans les

stations expérimentales. L'I.N.C.R.A a fait à son tour une proposition afin de diviser le mouvement

et les amener vers la région nord du pays : Mato Grosso, Acre, Roraima et Serra do Ramalho à

Bahia.

Conseillés par la CPT, les travailleurs ont refusé les propositions du Gouvernement. Car les

travailleurs du sud , qui dans les années soixante-dix ont migré vers Mato Grosso et Goias, ont

perdu leurs terres et ont été à nouveau expulsés, après le travail effectué dans les fermes .

Pendant l'invasion du "Natalino", les conditions de vie des sans terres campés au bord de

la route étaient précaires. Voilà une description de cette période:

"(…) Le manque de logement et de nourriture provoquaient d'autres besoins tels que l'assistance médicale. L'hôpital de Ronda Alta, qui était le plus proche, se situait à 18 km du campement, et malgré cela, il n'y avait pas d'infrastructure pour tous les 'sans-terre'. Ainsi, les dirigeants sont allés négocier avec le gouvernement du Rio Grande du Sud l'installation d'un service médical sur place. Le campement s'organisait en commissions. La coordination était formée par six membres, et elle se réunissait tous les soirs pour organiser les informations et pour articuler les formes de pression visant à la négociation avec l'INCRA. La commission des dons recevait le matériel envoye par les organisations humanitaires et le distribuait entre les plusieurs familles campées. La commission sanitaire s'occupait de la distribuition de l'eau. Outre cela, le campement se divisait en petits groupes de discussion et de réflexion en prenant soin de noter sur un journal tous les événements du jour. Agissant ansi, les ' sans-terre' écrivaient leur propre histoire, au prix de la violente pression qu'ils subissaient" (Ioki, 1992: 47).

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Zilda Iokoi signale qu'avec l'appui de la CPT les "sans-terre" ont trouve une documentation,

confirmant que l'INCRA ne prétendait pas résoudre le problème. Pour exemple, le fait que le

gouvernement offrait des terres dans la localité de la Serra do Ramalho où des travailleurs de la

région étaient en train d'être expulsés face à la construction du barrage de Sobradinho (Ioki, 1992:

44-54).

En juillet, le gouvernement envoyait une troupe militaire sous le commandement du colonel

Curio afin de contrôler le mouvement, et de contrôler l'accès à la région.

" Le Colonel Curio, devant un bataillon de l'armée, ferme l'accès au carrefour de Natalino en exerçant plusieurs formes de répression et de dénonciation contre les participants du mouvement dans le but de les déstabiliser. Sous cette pression, environ 300 familles acceptent la proposition de colonisation du gouvernement dans d'autres états de la fédération. Toutefois, 200 familles résistent et restent dans le campement."

On y ajoutera la description, de cette période, par les sans terres:

" Le colonel Curio, avec sa troupe a fait en sorte que le campement soit devenu un camp de concentration. Les groupes solidaires ont été expulsés, les syndicats, la Contag, la Fetag, les communautés ecclésiastes de base, les associations, etc. Le gouvernement s’est résolu à intimider le mouvement, en prenant le contrôle de l'accès au campement, ainsi que les moyens de survie"1.

Cette militarisation du campement a forcé l'assemblé législatif du Rio Grande do Sul à

réaliser une enquête sur les zones de terres mises en vente dans l'état. Se Basant sur des

annonces dans les journaux et sur des appels téléphoniques à des agences immobilières, les

députés se sont rendus comptes que 123.437 hectares, c'est-à-dire, 0,5% des terres de l'état

étaient mises en vente.

Malgré l'armée, les sans-terres se sont maintenues dans le lieu occupé, et en 1982, l'église

a acquis cent huit hectares de terre près du campement, abritant deux cents sept familles et les

terres commençaient à s'appeler Ronda Alta. En 1983, le gouvernement de l'État du Rio Grande

do Sul achète quatre portions de terre dans le même État- ayant un total de 1870 hectares pour

placer les agriculteurs de "Nova Ronda Alta" (Scherer-Warren, 1985).

Cependant ce mouvement "Natalino/Ronda Alta" a eu des antécédents importants tels que

la conquête des terres du gouvernement. A partir de campements installés dans les fermes, les

familles ont été autorisées par le gouvernement de l'état à se maintenir sur place après des mois

1 Publié dans Bulletin " Sans-Terre", n. 4 et 10, Juillet/août 1981.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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de résistance de la part des paysans (Colombani, 1985).

Il y a aussi un groupe de sans-terre dénommés "Afogados" qui a accompagné le

campement des paysans de "l'Encruzilhada do Natalino" et qui plus tard, en attendant l'appui de la

CPT et des sans-terres, ont commencé à préparer l'invasion de la ferme Annoni.

Ce groupe des "Afogados" a eu ses terres envahies par les eaux du barrage du "Passo

Real". Ce barrage construit par l'Eletrosul, devait amplifier le système d'énergie électrique dans la

région et la compagnie a été responsabilisée par le logement des familles sans abri. Toutefois,

l'Eletrosul, se disant tout à fait incompétente à résoudre les problèmes des « afogados » a

renvoyé la question à l'INCRA, qui a pris deux ans pour définir la forme de l'expropriation et du

relogement. Finalement L'INCRA a exproprié la ferme de « Annoni ». Cependant les propriétaires

de cette ferme ont eu recours à la justice, en débutant un long procès. Étant donné que rien n'a

été résolu, la direction du mouvement a décidé l'invasion du lieu:

"C'est ainsi qu'en cette nuit d'octobre 1985, les paysans sans terre occupent finalement la ferme Anoni. Dans une action concertée, quelques 6.500 personnes, venues de quarante communes de la région, ont parcouru jusqu'à 350 kilomètres avec 150 camions, 20 autocars, 15 motos et plusieurs voitures. Leurs actions très organisées, ne rencontrent aucun obstacle, malgré la vigilance de la police, qui était censée veiller sur cette ferme. Les paysans étaient décidés à occuper cette ferme, déjà expropriée, malgré le litige encore en suspens” (Scherer-Warren, 1987: 51).

Mais, sur quoi alors se base le MST pour déterminer l'invasion d'un terrain? Selon l'article

184 de la constitution brésilienne, " il est de la compétence de l'Union de réquisitionner pour

l'intérêt social, dans le but d'organiser une reforme agraire, l'immeuble qui n'accomplit pas sa

fonction sociale"2. C'est le point légal de l'action du mouvement des travailleurs sans terre.

Cependant, le MST a aussi une prémisse politique. Il dénonce le gouvernement d'être le

représentant des élites, y compris des élites foncières, et par conséquent de ne pas vouloir

vraiment mettre en place un plan de réforme agraire, au moins dans le rythme voulu par le

mouvement. Le MST affirme donc que le gouvernement doit être mené à perfectionner, à élargir et

à accelerer la réforme agraire.

C'est justement basé sur ces prémisses que le MST justifie ses actions, représentées dans

le slogan " envahir, occuper, produire". En mettant l'accent sur l'occupation de terres, le

mouvement viole toutefois la constitution dans l'article 5, paragraphe 22, selon lequel est garanti

le droit à la propriété.

Pour faire face à cette contradiction, le MST et tous ceux qui soutiennent les invasions de

terres défendent une interprétation juridique selon laquelle l'occupation par un grand nombre de

2- Constitution du Brésil (1988).

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familles ne caractérise pas ce que les juristes appellent "esbulho possessoirio ". Cela s'explique

par le fait que l'objectif de l'invasion n'est pas de violer la propriété, mais faire en sorte que le

gouvernement la rende disponible pour la reforme agraire, étant donné que la terre est

improductive ou ' devoluta ', c'est-à-dire, qu'elle appartient à l'Etat et qu'elle est donc occupée

irrégulièrement par son propriétaire, le fermier.

À cette interprétation s'ajoute un discours idéologique: envahir n'est pas légal, mais c’est

légitime, puisque le peuple a faim, et que le pays a l'une des plus mauvaises et injustes

distributions de terre au monde.

Cela dit, le MST exploite cet argument comme l'essentiel de la question. La concentration

excessive des terres et des revenus est une réalité incontestable au Brésil. Selon les données de

l'INCRA, encore en 2002, 1% des propriétaires ruraux détiennent 44% des terres. Parmi les 400

millions, d’hectares de terres cultivables, seuls 60 millions sont productifs.

Le président Fernando Henrique Cardoso, quant à lui, a établi comme but la installation de

40 mille familles en 1995, 60 mille en 1996, 80 mille en 1997 et 100 mille en 1998, soit un total de

280 mil jusqu'à la fin de son mandat présidentiel. Le gouvernement affirme qu'il tiendra

rigoureusement sa promesse. Le MST affirme toutefois que la régularisation d'une partie de ces

familles avait déjà été définie par le gouvernement antérieur et que, quoi qu'il en soit, ces chiffres

ne seront pas encore suffisants. Selon le MST, il y aurait 4 millions de familles au Brésil sans terre.

Pour Ricardo Abramovay, " ces chiffres indiquent clairement que la réforme agraire n'est pas, pour

le gouvernement actuel, un moyen important de combattre la pauvreté rurale". L'auteur ajoute que

"les travaux les plus récents à ce propos montrent l'existence au Brésil de 3,2 millions de familles

rurales qui se trouvent en dessous du seuil de la pauvreté "(Abramovay, 2000), en renforçant la

thèse selon laquelle l'actuel gouvernement ne serait pas vraiment concerné par la pauvreté rurale.

"À ce rythme, si le nombre des paysans sans terre ne s'accroît pas, la réforme agraire ne devrait

s’achever qu'à la fin du XXI siècle"3.

Les buts de la réforme agraire du gouvernement Cardoso

1995

1996

1997

1998

Grandes

Regions

BUT

(FAM)

EXPROP.

(HA)

BUT

(FAM)

EXPROP.

(HÁ)

BUT

(FAM)

EXPROP.

(HA)

BUT

(FAM)

EXPROP.

(HA)

Brésil

40.000

1.760.000

60.000

2.640.000

80.000

3.520.000

100.000

4.450.000

3 Cahiers Frères des Hommes- (1997 : 6).

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

21

Nord

6.000

480.000

9.000

720.000

12.000

960.000

15.000

1.200.000

Nord-est

18.000

630.000

27.000

945.000

36.000

1.260.000

45.000

1.575.000

Sud-est

4.000

100.000

6.000

150.000

8.000

200.000

10.000

250.000

Sud

2.000

50.000

3.000

75.000

4.000

100.000

5.000

125.000

Centre-oueste

10.000

500.000

15.000

750.000

20.000

1.000.000

25.000

1.250.000

Source : (Abramovay, 2000). Sur 153 millions d'hectares improductifs, les expropriations ont concerné:

. 4,7 millions d'hectares, gouvernement Sarney (1985-1990)

. 0,02 millions d'hectares, gouvernement Collor (1990-1992)

. 1,46 millions d'hectares, gouvernement Itamar (1992-1994)

. 1, 73 millions d'hectares, gouvernement Cardoso (1995-juin1996) 4

Ces deux tableaux montrent les disparités du système agraire brésilien. Cependant, le 2

mai 1996 le gouvernement, en réunion avec la direction du mouvement national du MST, a affirmé

son but "d'assentar " 60000 familles dans cette même année et que, parmi ces familles, l'INCRA

se compromettait à " assentar " les 37573 familles qui étaient déjà campés, c'est-à-dire, les

familles qui avaient déjà envahi les terres improductives et qui attendaient la légalisation de ces

terres de la part du gouvernement.

Cependant, le MST, dans son journal mensuel (novembre/décembre 1996) souligne que le

gouvernement n'avait pas tenu sa parole jusqu'à ce moment-là, et qu’il avait propagé des

informations "irréelles" par rapport aux "assentamentos" de familles. "... Nous arrivons à la fin de

l'année et le gouvernement a menti en affirmant qu'il avait déjà procédé à la mise en place des

35000 "assentamentos" et qu'il avait donc accompli son but... le problème n'a pas été résolu et

s'est aggravé au point qu'on ait aujourd'hui dans le pays plus de 52000 familles sont campées au

bord des autorutes ». Ensuite, le MST diffuse également des données qui contestent les données

officielles.

4 Cahiers Frères des Hommes- "Terra: l'enjeu politique des Brésiliens", Paris:1997, P. 06.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

22

Comparaison entre des campements et des installations de familles "assentamentos" réalisés en

1996, selon MST

États (région)

Nombre de campements (1996)

Familles Familles "Assentadas" Janvier à Septembre 1997

Familles campées Septembre 1997

ACRE 1.517 AMAZONAS 2.924 AMAPA 534 PARA 3 3.041 5.345 1.500 RONDONIA 2 400 1.575 1.275 RORAIMA 2.431 TOCANTINS 898 NORTE 5 3.441 15.224 2.775 ALAGOAS 1 420 1.193 1.320 BAHIA 9 3.767 579 4.803 CEARA 5 750 1. 078 731 MARANHAO 5 1.190 5. 962 1.849 PARAIBA 10 1.258 870 195 PERNAMBUCO 11 4. 637 454 6. 992 PIAUI 7 636 1.321 431 RIO GRANDE DO NORTE 4 690 548 3.430 SERGIPE 6 1.400 141 4.484 NORDESTE 58 14.748 11.146 24.235 ESPIRITO SANTO 1 439 203 746 MINAS GERAIS 12 1.653 430 240 RIO DE JANEIRO 3 249 356 260 SAO PAULO 9 3. 540 1. 278 3.790 SUDESTE 25 5.881 2.267 5.036 PARANA 23 3.025 149 10.170 RIO GRANDE DO SUL 5 3.485 639 2.980 SANTA CATARINA 10 1.051 346 2.032 SUL 38 7.561 1.134 15.182 GOIAS 15 1.759 498 910 MATO GROSSO DO SUL 20 1.557 1.703 2.195 MATO GROSSO 7 2.626 3.085 2.534 CENTRO-OESTE 42 5.942 5.286 5.639 TOTAL 168 35.573 35.057 52.867

Source: M.S.T. 1998

En outre, afin de mieux caractériser les rapports de pouvoir et de domination à la

campagne, il faut signaler que les paysans qui ont besoin de terre pour travailler doivent affronter,

tout au long du mouvement, des situations de conflits violents avec la police. Ce fut le cas, avant le

massacre de Eldorado dos Carajas, de "Colorado do Oeste", en août 1995. Dans la région

amazonienne, en Rodonia, dix personnes ont été tuées, 125 ont été blessées, 9 sont portées

disparues, 355 ont été arrêtées, 120 ont été interrogées et 74 ont été mises en examen pour

cause de désobéissance et de résistance à la police. Ce conflit a été caractérisé par des tortures

suivies d'exécutions sommaires de quelques paysans. Comme cela a été le cas du paysan

nommé Odilon Feliciano, qui a reçu une balle dans la tête après avoir subi des humiliations et des

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tortures. L'autopsie a déclaré " mort dûe à un traumatisme crânien encéphalique produit par un

projectile tiré par une arme à feu, tiré à coup franc et à courte distance dans le sens postero-

antérieur». Un deuxième cas a été celui du paysan José Marcondes, 49 ans, qui après avoir été

battu par la police, a reçu de plusieurs coups de feu dans la tête , tirés d'une mitraillette. L'autopsie

souligne: « mort par traumatisme crânien encéphalique suivi de perte du tissu cérébral, absence

de l'os frontal, du temporal gauche, des deux globes oculaires et d'un grand nombre de

dents ».Après cette exécution, un autre paysan, Paulo Silva, a été forcé à manger des miettes

provenant de la masse encéphalique de José Marcondes5 .

Dans un autre conflit, celui-ci plus connu puisqu'il a été diffusé par les médias, 19 "sans-

terre" ont été tués. Il s'agit ici du conflit de "Eldorado dos Carajas", en avril 1996, dans la région

nord du pays, dans l'état du Para.

" Le 17 avril 1996, dans l'état brésilien du Para, près d'une localité du nom Eldorado dos Carajas ( Eldorado, comme le destin de certains mots peut être sarcastique...) cent cinquante-six soldats de la police militaire, armés de fusils et des mitraillettes ont ouvert le feu sur une manifestation de paysans qui bloquaient la route pour protester contre le retard des procédures légales d'expropriation des terres, prélude ou simulacre d'une soit disant réforme agraire qui entre avancées minimales et reculs dramatiques, a déjà pris cinquante années sans que ne soit jamais donné de réponse satisfaisante aux gravissimes problèmes de subsistance ( il serait très exact de dire , de survie ) des travailleurs agricoles. Ce jour-là, ce sont dix-neuf morts qui restèrent sur le sol d'Eldorado dos Carajas, sans compter les quelques dizaines de blessés. Trois mois après cet événement sanglant, la police de l'État du Para, s'érigeant en juge dans une cause où; de toute évidence, elle ne pouvait être que partie, déclara publiquement ces cent cinquante-six soldats innocents de toute faute. Alléguant qu'ils avaient agi en état de légitime défense et comme si cela lui semblait encore insuffisant, elle engagea un procès en justice contre trois des paysans, pour injures, coups et blessures, et détention illégale d'armes. L'arsenal guerrier des manifestants se composait de trois pistolets, de pierres et d'instruments agricoles plus ou moins maniables. Nous ne savons que trop que, bien avant l'invention des premières armes à feu, pierres, faux et piques avaient considérées comme illégales entre les mains de ceux qui, obligés par la nécessité de réclamer du pain pour manger et de la terre pour travailler, trouvèrent devant eux la police militaire de l'époque, armée d'épées, de lances et de hallebardes. Contrairement à ce qu'on essaie habituellement de faire croire, il n'y a rien de plus facile à comprendre que l'histoire du monde, que nombre de personnes illustres s'obstinent à affirmer être trop compliquée pour l'esprit fruste du peuple » (Salgado,1997).6

Et voilà aussi une description faite par un observateur qui était L’Eldorado dos Carajas, le

lendemain du massacre:

« À trois kilomètres de la ville on pouvait voir les baraques couvertes de paille détruites la veille. Dans ces ruines se trouvaient les protagonistes qui avaient été bloqués entre les deux colonnes des policiers militaires qui avaient ouvert le feu.Tout le monde voulait raconter sa participation au conflit et pleurer les morts. Il y avait encore du sang par terre

5-Données diffusées par le MST en 1995. 6- Extrait de l'introduction du livre " Terre " de Sebastiao Salgado, éditions de la Martinière, France, 1997.

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et la pluie s'occupait de nettoyer les vestiges. On regardait par terre en suivant les indications de quelqu'un et on pouvait voir des morceaux de chair humaine mélangés à la boue. Les plus jeunes disaient que la mandibule humaine trouvée par terre était encore là parce qu'il n'y avait pas de dent en or. De l'autre coté, on voyait les morceaux d'un cerveau dans une casquette. » 7

Ainsi, le mouvement des "sans-terre", en comptant sur le soutien de l'église catholique à

travers la Commission Pastorale de la Terra (CPT), dans ses 13 années d'existence, a réussi à

faire installer 139OOO sur 7,2 mille hectares de terre au Brésil.

Mais, quel serait l'intérêt de l'église d’appuyer le MST ? Selon Maria Esther Fernandes

(1996), à la fin des années cinquante « quelques secteurs de l'église et une partie de l'église

catholique se rapprochent des mouvements des classes défavorisées et des éléments qui se

battent contre les structures sociales en vigueur. Ces secteurs se définissent en allant de la

défense de la stabilité sociale, à la critique du statu quo». José de Souza Martins (1980) dit que

"l'église a réellement changé... et son avancée à propos du problème agraire est définitive".

Fernandes conclu qu' « elle est maintenant entrée dans une phase caractérisée par des liens

étroits avec les paysans de la classe ouvrière et les secteurs marginaux de la société brésilienne »

(Fernandes: 35-36).

Pour Luiz Inacio Gaiger (1995), la religion donne légitimité à la lutte pour la terre, à partir

du moment où le paysan la tient pour vérité religieuse, faisant en sorte que la religion soit une

condition indispensable au succès de n'importe quelle lutte, parmi laquelle la lutte pour la terre.

Gaiger signale également que la religion joue un rôle fondamental dans la mobilisation du

mouvement des sans-terres car la référence religieuse serait la base de la mentalité collective de

ces personnes. Cependant, l'auteur signale un peu plus tard, que d'une manière paradoxale il

existe une part échelonnée de l'influence du « religieux » vers la politique (Gaiger, 1995: 111-127).

Actuellement ce mouvement s'allie à la « centrale unique des travailleurs »-CUT et l'une

des justifications de cette alliance serait la représentativité nationale la CUT dans tout le pays.

Il convient de signaler que le CAMP (centre d'accessoire multi- professionnel) a été crée en

1983, à partir de la fusion de certains groupes d'intellectuels et d'autres spécialistes, qui rassemble

des agronomes, des économistes, des sociologues et des journalistes s'efforçant d'obtenir les

informations nécessaires au mouvement ( Colombani: 81-82).

De toute façon, quelle serait l'explication à donner à l'amour vis-à-vis de la terre de la part

de ces paysans? Selon Rose Marie Lagrave, « La conjugalité et l'amour du paysan pour sa terre,

tissent un lien indissoluble entre eux. Cet amour se nuance d'ailleurs de multiples manières, mais

requiert toujours la fidélité et le désir sexuel de possession. Les labours et les semailles

7- Récit recueilli à l'internet-Universo On-line (1997) - Fórum de debates sobre a caminhada dos sem terra em Brasília.

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notamment sont vécus comme un acte sexuel où séduction, pénétration et fécondation

correspondent aux différentes phases du travail... au centre de cet amour est la terre, unique objet

de passion du paysan » (La Grave: 79).

Ainsi, la date de la création du « MST », au niveau national, d'après les "sans- terre" a été

fixée lors d'un congres à « Cascavel », dans l’état du Parana en 1984. En 1995 le « MST » était

déjà organisé dans vingt-deux Etats du pays8. Il est important de souligner que les spécificités

régionales de la lutte pour la terre au Brésil sont prépondérantes pour la différenciation du « MST »

dans chaque état du pays.

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BRAZIL’S PRESENCE AT THE 1958 BRUSSELS WORLD’S FAIR

Peter Daerden

Royal Museum for Central Africa (Belgium) Resumo: Este artigo trata da participação do Brasil na Feira Mundial de 1958 em Bruxelas e os seus mais profundos objetivos. Os anos cinquenta eram uma época de otimismo no Brasil, um fato refletido na sua pavilhão. Também queremos investigar a presença do Brasil no contexto das suas relações com a Bélgica, o imagem do país no exterior, e mencionar algumas caraterísticas da cooperação no plano cultural e económico. Palavras chave: 1. Exposição Internacional; 2. Pavilhão Brasileiro; 3. Relações Internacionais .

Abstract: This article deals with Brazil’s participation at the 1958 Brussels World’s Fair and it’s larger background. The fifties in Brazil were rather an optimistic era, a fact that was clearly reflected in their pavilion. We will also examine Brazil’s presence in the context of its relations with Belgium, the image of the country abroad, and mention some facts about cultural and economic cooperation. Key words: 1. World Exhibition; 2. Brazilian Pavilion; 3. International Relations.

‘(...) deverá fazer uma estudo histórico de todas as anteriores participações do Brasil em Exposições e Feiras; reunir todos os documentos sobre as grandes exposições nacionais e estrangeiras, inclusive legislação, regulamentos, instruções de serviços, relatórios, publicações, enfim, um completo arquivo que será estudado por funcionários capazes, de forma a dispor a administração brasileira, a todo tempo, de informações seguras e rápidas sobre o assunto’1. Armando Vidal, General Commissioner of the Brazilian pavilion at the New York World's Fair of 1939

Despite the wish of Armando Vidal in 1939, such archive still does not seem to exist.

Indeed current knowledge of the history of Brazilian participation at universal exhibitions is rather

small. This lack in Brazilian historiography could be explained by the dispersed location of sources

(a large part of these being left in the country of exhibition). In fact the Brazilian pavilion in New

York, a construction by Lúcio Costa and Oscar Niemeyer, was one of the first great successes in a

long tradition of participations on such exhibitions2. There had already been Brazilian contributions

at the first two world exhibitions, but the country’s first official participation dates back from 1862 in

London. Since then the Brazilian government would be present at the most important expositions.

1 VIDAL, A. O Brasil na Feira Mundial de Nova York de 1940 [sic]. Relatório Geral 2. Rio de Janeiro, 1942, 658. 2 About the history of Brazil’s participation on world exhibitions: PEREIRA, M. C. da S. “A participação do Brasil nas exposições universais”. Projeto, CXXXIX (1991) 84-89.

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Universal expositions were not only meant to stimulate the cult of the new and the

modernity, but also to revalue the taste for the past and tradition. Modernity not being associated

with ‘Brazilianness’, this double perspective would cause a series of conflicts and impasses

between different groups of Brazilians. In this light, it is significant that until 1893, with only one

exception, all Brazilian pavilions or sections were built by foreign architects. The Lúcio Costa and

Oscar Niemeyer project of 1939 was finally seen as a more successful synthesis between past and

progress, an excellent solution out of the impasse between being ‘modern’ (or westernized) and

‘Brazilian’.

The Brussels Exhibition of 1958 would be the largest affair of its kind since the Second

World War. Brazil announced its candidature only at 20 August 1956. The government of Juscelino

Kubitschek clearly concentrated its expenditures on the Plano the Metas. Moreover Brazil had to

confront a growing crisis of inflation and foreign debts. Obviously the country did not want to take

any unnecessary financial risks. In fact a lot of Middle- and Latin-American countries would

abstention from the World Exposition because of similar financial troubles (each participating

country in Brussels had to construct and pay its own pavilion). Traditional ties of friendship with

Belgium could somehow have contributed in changing the minds of Brazil’s authorities. Brazil had

been the first Latin-American nation to establish diplomatic relations with independent Belgium.

Germany’s invasion of Belgium in the First World War had caused strong condemnation and

spontaneous solidarity in the country. Belgian king Albert I was the first foreign head of state to visit

Brazil in 1920. At Ipanema beach in Rio de Janeiro a statue representing Albert was erected and

an avenue in the same city still bears the name of his wife Elisabeth. Even in the postwar period

the Belgian king – who died in 1934 – was by many considered as an exemplary figure, if not a

kind of hero. Carneiro Leão dedicated his study about Belgian poet Emile Verhaeren to ‘the

memory of King Albert, to the King who gave the World one of the most generous examples of

history’3.

Of course such sentimental feelings could not have been main reasons to participate.

Particularly economic perspectives will have persuaded the Kubitschek administration. It was

Kubitschek after all who in 1956, even before his official inauguration, had travelled to various

European countries, including Belgium, in search for foreign capital. Yet it has to be noted that the

Brussels Exhibition had more cultural intentions than purely commercial ones. General theme of

the Exposition was the collaboration between the people, the mutual assistance, and the

contribution of each nation to the universal patrimony. In any case in 1957 Brazil’s ambassador in

3 CARNEIRO LEÃO, A. O culto da Ação em Verhaeren. Rio de Janeiro, 1959, 3.

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Brussels Hugo Gouthier transmitted the Belgian-Brazilian Chamber of Trade the decision by

Juscelino Kubitschek that Brazil could not be absent of the manifestation4.

At the end of 1956 a commission was constituted to organize the Brazilian participation.

Ambassador Hugo Gouthier managed to convince Sérgio Bernardes to project the pavilion. João

Maria dos Santos, who had already renewed the interior of the Brazilian embassy in Brussels,

would take care of the decoration. To create a tropical garden into the pavilion Roberto Burle Marx

was engaged. At that time Burle Marx was already beginning to become renowned outside of his

country. Sponsored by the Brazilian Ministry of Foreign Affairs, he had visited London in 1955 and

subsequently traveled through a number of European countries.

The Brazilian government would only vote an insignificant amount of money for their

pavilion, and credits came only partially. In fact few Brazilian industries and private organizations

were really interested into the affair. On the other hand Brazil feared to be seriously disgraced if it

had to withdraw from the Exposition. So Sérgio Bernardes himself went to Brussels, staying there

one and half a month. After a series of arrangements and compromises, a Belgian firm started to

construct the pavilion in a hundred pre-established workdays. According to the review Arquitetura e

Enghenaria, ‘the individual enthusiasm surpassed, in Brussels, the governmental tardiness and

negligence’5. In his memoirs Hugo Gouthier tells: ‘We looked like a group of fanatics determined to

save the world, working night and day’6. It was almost a miracle to succeed within the boundaries

of their exiguous budget. The Brazilian pavilion would only cost five percent of the American one.

With some exaggeration a comparison could be made with Brasilia, built with a similar

perseverance in just a thousand days.

When Brazilian experts arrived at Brussels they saw the best grounds already being

occupied. The Brazilian pavilion had to be situated on a steep slope. It would inspire the architect

to a solution whereby the visitors entered the pavilion at the highest point of the site, being directed

along a curving ramp downward through the exhibition. The ramp moved one and a half turn,

around an oval tropical garden, and merged at the lower level into a wide exhibit area, containing a

bar-café and, in the rear, a movie theatre. To retain an impression of spaciousness and in order to

preserve an unobstructed view of the planting in the center, all display panels, showcases and

tables were perpendicular to the zigzag path of the visitor. A round opening in the center of the

suspended roof served as ventilation and roof drainage. The rainwater fell as cascade into the pool

of the tropical garden. On cold days, the opening could be closed by a large red balloon, floating as

a point of attraction above this pavilion located in the periphery of the Fair grounds. The balloon’s

shape symbolized the celestial sphere in the Brazilian national flag. Because it was structurally

4 Bulletin Belgo-Brésilien, 32/IX (1957) 279. 5 “Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Bruxelas”. Arquitetura e Engenharia, XLVIII (1958) 22. 6 GOUTHIER, H. Presença. Rio de Janeiro, 1982, 154.

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independent of the enclosing walls below, the hanging roof was by many people considered as one

of the most expressive characteristics of the whole Exposition.

Indeed a lot of visitors would praise the Brazilian pavilion as a beautiful, equilibrated and

elegant construction. Brazilian architectural reviews were almost unanimous in their pride.

Arquitetura e Engenharia expressed its satisfaction with ‘the choice of the Brazilian government to

show the world one of the forms of culture where we really find ourselves in the foreground – the

contemporary architecture’7. Also other reviews like Acropole, Módulo and Habitat considered a lot

of attention to the pavilion and were equally delighted by the result8. In 1998, exactly forty years

after the Exposition, Belgian researchers of the University of Ghent visited Sérgio Bernardes in Rio

de Janeiro and prepared and interesting publication about the Brazilian pavilion, which merely

emphasizes on strictly architectural aspects9.

Entering the pavilion the visitor was welcomed by the prophet Habacuque, a reproduction of

the statue by Aleijadinho. The exposition tried to offer a kind of historical synopsis of the Brazilian

progress, from the conquest to its actual expansion. On his way through the exhibition one could

follow this evolution in a more or less chronological order. Decorative panels portrayed the

embarking of the Portuguese in Brazil and display windows exposed products as cacao, coffee,

cotton, tobacco, sugar, precious stones, ores and radioactive metals. A large map of Brazil, raised

in the foreground, was encircled by colored slides of 1 m x 1 m, showing national landscapes.

Numerous panels informed about Brazilian folklore, indigenous populations and the country’s

economic cycles. In a next section, dedicated to urbanism, various panels showed the evolution of

the Brazilian city, accompanied by suggestive views on São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

the country’s modern architecture, tunnels and highways. Brasilia captured most attention; the still

to be inaugurated capital was represented by photographs and a scale model. In the transport

section the visitors could take knowledge of aviation, highway and railway transports in Brazil. A

section concerning the social assistance emphasized on Brazilian sanitary campaigns, like those

against the yellow fever, bubonic plague or tuberculosis. Another sector presented educational

topics. In the sector of graphic arts one could take notice of libraries and book industry. Brazilian

press, radio and television were as well represented. The pavilion also comprised information

about Brazil’s principal scientific institutions, museums, the country’s industry and other factors of

economic development10. In the movie theatre documentary films about Brazil were projected, but

7 See footnote 5. 8 WILHEIM, J. “A exposição mundial de Bruxelas”. Acropole, CCXXXIII (1958) 157-158. – “Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional de Bruxelas”. Módulo, IX (1958) 22-25. – “Pavilhão do Brasil em Bruxelas”. Habitat, XLIII (1957) 48. – “Pavilhão do Brasil na Exposição Internacional Universal de Bruxelas”. Habitat, XLVI (1958) 18-19. 9 MEURS, P., DE KOONING, M. and DE MEYER, R. Expo 58: the Brasil pavilion of Sérgio Bernardes. University of Ghent, dept. of Architecture and Urban Planning, 1999. 10 LUCCA JUNIOR, D. de. “Inaugura-se depois de amanhã a Exposição Universal de Bruxelas”. Folha da Manhã, 15 April 1958.

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it also served as an auditorium for folkloristic presentations. On 22 September Heitor Villa-Lobos

gave a symphonic concert at the pavilion, while at the same day an exhibition about Cícero Dias

was inaugurated.

In the bar of the Brazilian pavilion coffee and mate (practically unknown to Europeans)

could be tasted. While many Western European countries possessed a traditional beer and/or wine

industry and, due to American influence, cola had spread its popularity towards the other side of

the Atlantic Ocean, the Brazilians took the chance at the Brussels’ Fair for a vast publicity of their

coffee. Yet this was not a new or recent option. Already in nineteenth century expositions the

Brazilian pavilion served cafezinho to its visitors11. This kind of initiatives always turned out to be

very successful, and the 1958 Fair constituted no exception to this. According to a journalist of

Manchete twenty thousand cups a day were consumed12.

Clearly Brazil wanted to manifest itself as a tropical country. The large center garden had

extraordinary plants, imported from the Amazon planuras or the Brazilian planaltos. Thus the

visitor, following his one-way circulation, could notice how the Brazilians, through the ages, had

responded to this nature and geography. So Brazil was presented as a modern society in the

tropics. ‘The choice of this theme was imposed’, declared Edgard Baptista Pereira, organizer of the

pavilion, in a Belgian review. ‘We still are an unknown people, or badly known. Brazil is presented

in Brussels in order to prove that it has managed to construct a civilisation worth of its time’13.

Such tendency reminds of the work of Gilberto Freyre. In fact Freyre himself wrote about his

country’s participation in Brussels:

I am pleased about the initiative of the Brazilian Government and the installation of its pavilion at the Universal Exposition of Brussels, in order to provide a specimen of Brazil as a modern society in the tropics. Indeed it is an old idea of mine which comes to coincide with this initiative, and which for years I try to accentuate in my works: the fact that we are a tropical civilization is no reason to want this to dissimulate before the eyes of the foreigner, on the contrary, we have to show it ostensibly and with courage14.

Freyre’s point of view however does not seem completely corresponding with that of the

organizers. A few days before the inauguration of the pavilion, the already cited Edgard Baptista

Pereira said: ‘We Brazilians, are trying to build, under the tropics, a clearly western civilization. Our

pride is to be part of the western civilization. We don’t have anything to do with the East’15. Freyre,

11 For example at the International Exposition of Antwerp in 1885. Cf. KUHLMANN JUNIOR, M. As grandes Festas Didáticas. A Educação Brasileira e as Exposições Internacionais 1862-1922. Doctorate, University of São Paulo, dept. of History, 1996, 44-45. 12 MARTINS, “Talento, armado Brasil em Bruxelas”. Manchete, CCCXXXIX (1958) 106. 13 “Le Brésil à l’Exposition de Bruxelles”. Revue de la Société belge d’Ėtudes et d’Expansion, CLXXXIV (1959) 28-29. 14 Bulletin Belgo-Brésilien, 33/VIII (1958) 251. 15 Ibid., 32/X (1958) 107.

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on the contrary, was more likely to value oriental influences and even to adopt the idea of Brazil as

a ‘tropical China’16.

According to a poll17 the Belgian visitors of the pavilion said to have been most impressed

by the presentation of the futuristic capital. On the basis of the model and the images, as they were

presented in Brussels, the Belgian cultural review Streven esteemed Brasilia already as ‘(…) the

most modern and most efficient, yet also one of the most agreeable capitals beneath God’s sun’18.

When Belgian ambassador René van Meerbeke visited the building site of Brasilia in October

1957, his opinions could not have been more opposite: ‘One can wonder if the Brazilians, who are

rather unwilling towards austerity, will have the tenacity and the courage to install themselves into

the new capital, where one can expect an expensive standard of living, given the fact that

everything will have to be brought there from elsewhere’19. In fact van Meerbeke and his

successors were not very eager to leave their residence in Rio de Janeiro. Ironically enough it was

a Belgian engineer, Louis Cruls, who in 1892 had indicated the site for the future capital.

Apart maybe from Brasilia Belgian public opinion at the time was not particularly interested

into Brazil or Latin America in general. Press coverage about the continent was characterized by

its ‘impressionism’, a highly literary influenced style of commentary. Such writings could be

interesting, but certainly did not exceed the domain of the picturesque and the folkloristic. Only the

Cuban Revolution in 1959 would, in some cases, give birth to a more sociological approach. Also

in the literature about Brazil the sensational aspect often dominated; adventurous travelers for

instance described their experiences in the Amazon area. The majority of publications excelled in

fugitiveness and superficiality. Missionary reviews however paid more attention to Brazil. During

the second half of the 1950s some sixty to seventy Belgian priests lived in Brazil. In 1954 the

university town of Leuven saw the foundation of the Collegium pro America Latina. This college,

based on similar examples in Italy and Spain, had to prepare missionaries for the New Continent.

Camilo Torres, the Colombian priest who entered the college in 1954, would become one of their

more illustrious students. Indeed, unlike their colleagues in the Congo, a lot of Belgian priests in

Latin-America were politically engaged. Joseph Comblin and Eduardo Hoornaert, who both went to

Brazil in 1958, would become eminent figures in liberation theology. Jozef Cardijn, head of the

international JOC, made various journeys to Latin-America and became particularly popular in

16 Cf. FREYRE, G. New world in the tropics. The Culture of Modern Brazil. New York, 1959. Oddly enough translated into Portuguese only in 1971: Nôvo Mundo nos Trópicos. São Paulo, 1971, 233-257. 17 “L’Exposition de 1958. Son succès auprès des Belges. Opinions et vœux des visiteurs”. Institut Universitaire d’Information sociale et économique 1-2 (1959). 18 DEBLAERE, A. “Modern bouwen: Brasilia docet”. Streven, XII (1959) 441. 19 Letter from 24 October 1957. Archives of the Belgian Ministry of Foreign Affairs. Dossier 13094, Brésil, Dossier Général 1957.

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Brazil. A Belgian priest witnessed his arrival in 1956 in Rio de Janeiro. ‘People in Belgium’, he

wrote, ‘do not imagine the reputation of Cardijn and the jocism in Latin-America’20.

In both São Paulo and Rio de Janeiro some four to five hundred Belgians lived, the majority

of them industrialists or merchants. Already in 1911 a Belgian-Brazilian Chamber of Trade was

established (the first of its kind in Europe). At the time commercial relations between the two

countries flourished. Companies like Belgo-Mineira, ACEC, the Banco Italo-Belga, Solvay and

Franki would become evidence of the Belgian industrial activity in Brazil. After the Second World

War commercial relations and investments deteriorated. During the Vargas period foreign

enterprises had to face nationalist uprisings. At that time Belgian ambassador Marcel-Henri Jaspar

even discouraged Belgian capitalists to invest in Brazil21. Under president Kubitschek such

nationalist tendencies did not disappear completely; most investments became ‘brazilianized’, i.e.

enterprises with a major Brazilian interest. Apart from this, many Belgian industrialists could not

find their way at all to Brazil. Countries comparable in size like Switzerland and the Netherlands

were far more successful in their investments. Next to this, Belgium’s exportation market seemed

insufficiently adapted to the introduction of import-substitution in Brazil.

An important link in the relations between Belgium and Brazil was the Maison de l’Amérique

Latine in Brussels. This organized language courses, counseled businessmen and possessed a

library of some 12.000 volumes. Some people considered the Maison as one of the best

documentation centers on Latin-America that could be found in Europe. In the first half of the

1960s it would stagnate, to give birth to a more culturally oriented meeting point between

Europeans and Latin-Americans – still existing today. In order to improve cultural and scientific ties

Belgium’s minister of Foreign Affairs Pierre Wigny signed in 1960 a Belgian-Brazilian cultural

agreement in Rio de Janeiro. Already in 1951 a Union Brasilo-Belge had been founded, an

organization which tried to promote cultural and artistic exchanges between the two countries.

Such exchanges were on a low level and in most cases merely the result of purely personal

initiatives. In fact the Union Brasilo-Belge was a rather elitist organization. Nevertheless some

interesting contributions on the cultural level may be mentioned.

Belgian painting would always be well represented at the biennial of São Paulo. Some

Belgian poets and novelists, like Emile Verhaeren and Nobel Prize winner Maurice Maeterlinck,

were well known into Brazilian literary circles. Murilo Mendes for instance claimed to be very

20 CEULEMANS, A. “De Rio de Janeiro à Potosi. Journal de voyage”. La Revue Nouvelle, 12/VII-VIII (1956) 52-53. 21 In 1954 Jaspar wrote: ‘Il ne faut pas, à mon sens, encourager des capitalistes belges à investir des fonds au Brésil’. General State Archive, Archive Marcel-Henri Jaspar, 2329.

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influenced by Belgian literature and Flemish painting22. In 1958 Belgian poet Edmond

Vandercammen obtained the membership of the Academia Brasileira de Letras. Dramatist Maurice

Vaneau would gain a lot of success during the fifties and sixties in Brazil and already in 1956 he

was awarded as the most talented director in the country. Some Brazilian movies like O

Cangaceiro, Os três Garimpeiros or Orfeu Negro became known to a Belgian audience23. In

addition to this documentary films about Brazil were projected. We already referred to the movie

theatre in the Brazilian pavilion. A lot of schools and associations saw Aquarelas do Brasil, a

documentary film distributed by the Brazilian government. Belgian representatives in Brazil on their

side sent tapes with music by Belgian composers towards radio-stations like Radio Eldorado and

Teofilo Ottoni. Some Belgian musicians lived and worked in Brazil. Jean Douliez and Arthur

Bosmans for instance played a major role in the musical expansion of Minas Gerais. Both

composers contributed to the foundation of the Orquestra Sinfônica Mineira in Belo Horizonte. In

1954 Arthur Bosmans became appointed by governor Juscelino Kubitschek as artistic adviser for

the state of Minas Gerais. Douliez had already moved to Goiânia in 1952, where he established

the Conservatório de Música and, in 1960, founded a unique female symphonic orchestra. Douliez

was also professor at the faculty of Philosophy at the university of Goiânia. In 1957 the university

of Bahia invited Herman Coppens to teach at the Seminário de Música. Coppens became

appointed at the Instituto de Música da Bahia, renewed organ courses and founded a choir called

Os pequenos cantores da Bahia. Some Brazilian musicians, like Eleazar de Carvalho, came

regularly to Belgium. In 1959 there was an exhibition of Lasar Segall in Brussels. Most exuberant

Brazilian artists to visit Belgium were the country’s soccer players. Especially after the 1958 World

Cup victory teams like Santos or Botafogo would tour throughout Europe. João Havelange, at that

time president of the Brazilian Sports Confederation (and later on president of the World’s Soccer

Federation), was the son of a Belgian engineer.

The question is whether such initiatives really ameliorated knowledge of Brazil into Europe.

According to Edgard Baptista Pereira, the Brazilian participation in Brussels did give a great

impulse to the mutual understanding24. Indeed, daily eight to ten thousand people had visited the

pavilion. Various prizes were dedicated to it. The Brazilian participation was awarded for the

architecture of the pavilion, the decoration of its interior and the utilisation of space in the garden.

22 ‘A formação literaria dos homens de minha geração não foi estranha, de certo modo, à influencia da cultura belga, pois que a nossa adolescencia se impregnou, até certo ponto, dos livros de Verhaeren, Rodenbach, do teatro de Maeterlinck, alem de outros. Mas é principalmente através da pintura flamenga, que recebemos o impacto dessa cultura’. Murilo Mendes in Correio Paulistano, 29 June 1956. 23 A Belgian student wrote a thesis about the reception of Brazilian cinema into Belgium: HUYGENS, E. De Braziliaanse cinema en de weerklank in België: de Cinema Nôvo, Nelson Pereira dos Santos & Glauber Rocha. KULeuven, dept. of History, 1996. 24 Bulletin Belgo-Brésilien, 33/IX (1958) 265-267.

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Apart from such more symbolic rewards, Edgard Baptista Pereira confirmed that commercial

contacts too were established, with manufacturers and industrials from various European

countries. But even with these material gains the main significance of the participation at the

Brussels World’s Fair lies in the psychological field. As we saw the search for a balance between

modern and traditional was an important topic towards Brazilian public opinion. Now their pavilion

combined modern structural and design features with a distinctly national atmosphere. Buried were

the many clichés of inferiority and underdevelopment. In a modest way therefore, the pavilion

reflected something of the growing awareness of national pride and the optimism of the fifties in the

country.

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SEMENTE DE FAVELA Jornalistas e o espaço urbano da capital federal nos primeiros anos da

República – o caso do Cabeça de Porco

Richard Negreiros de Paula Universidade Federal Fluminense

Resumo: Este artigo pretende tratar da reação da imprensa carioca no final do século XIX à demolição do “Cabeça de Porco”, o maior cortiço da época, bem como dos primórdios do processo de “favelização” da cidade do Rio de Janeiro. Palavras chave: 1. Imprensa; 2. Habitação Popular; 3. Primeira

República.

Abstract: This article deals with the reaction of the press in Rio de Janeiro at the end of the XIX Century when “Cabeça de Porco”, the largest slum of that time, was demolished, as well as the early process of the growth of slums in Rio de Janeiro city. Key words: 1. Press; Popular Habitation; 3. First Republic.

Em linhas gerais, o Rio de Janeiro no final do século XIX acumulou as funções de grande

centro econômico e político do Brasil, emergindo como uma cidade inserida no, até então, restrito

conjunto das chamadas “grandes cidades”. Esta condição impôs aos governos a necessidade de

intervir no espaço urbano, levando a ordenar as condutas, normalizando as vidas e a sociedade.

Assim, a questão urbana surgiu como um problema derivado das transformações econômicas e

sociais, a ser, para os homens do Estado, de alguma maneira resolvida.

Diante deste problema, os homens responsáveis em transformar o espaço, o fizeram não

só fisicamente, demolindo e reconstruindo, mas também modificando o modo de enxergar e

pensar a cidade. Desta maneira, a “cidade desejo”, aquela imaginada pelos homens do governo,

empresários, engenheiros, médicos, arquitetos, e todos os outros responsáveis por sua mutação,

“realizada ou não, existiu como elaboração simbólica na concepção de quem a projetou e a quis

concretizar”.1

Essa operação realizada sobre o espaço urbano foi apropriada e interpretada pelos

diferentes homens que entraram em contato com a cidade. Ou seja, estes novos signos,

produzidos pelos que detinham o poder de projetar a cidade, foram inseridos no “vaivém dos

sentidos conferidos aos espaços e sociabilidades urbanas atribuídos pelos produtores e

consumidores da cidade”2. Entre os leitores da urbe, destaco a ação daqueles que podemos

1 PESAVENTO, Sandra Jatahay. Muito além do espaço: por uma história cultural do urbano. In Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, nº 16, 1995, p. 283. 2 Id. 284.

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chamar de ‘leitores especiais’, por possuírem a habilidade singular de esquematizar e registrar o

que foi lido.

No tocante a estes ‘espectadores da urbe’, há que distinguir entre o que se poderia chamar de ‘cidadão comum’ ou ‘gente sem importância’, que constitui a massa da população citadina, e os que poderiam ser designados como ‘leitores especiais da cidade’, representados pelos fotógrafos, poetas, romancistas, cronistas e pintores da cidade. Naturalmente, há uma variação de sensibilidade e educação do olhar entre os dois tipos de consumidores da urbe.3 Desta forma, não nego a capacidade que o cidadão comum possui de ler e interpretar a

cidade. Por outro lado, uma vez reconhecidas as diferenças que há entre estes e os reconhecidos

como “leitores especiais”, julgo ser as entrelinhas do que os jornalistas leram e traduziram para o

papel o campo que acredito como sendo fértil de interpretações sobre o espaço urbano e seus

componentes como um todo.

A realização de um estudo sistemático sobre a história da Imprensa no Brasil, no período

imediatamente seguinte à proclamação da República, que tenha como foco a cidade do Rio de

Janeiro, significa elucidar a história do desenvolvimento de sua sociedade no sistema capitalista,

dos embates das ideologias e da produção de opiniões neste espaço social delimitado, tendo em

vista suas interconexões com o reordenamento sócio-espacial desta cidade no período.

O primeiro questionamento que podemos levantar refere-se ao poder inerente à imprensa

no que condiz à memória. A construção da memória torna-se ainda mais contundente quando se

trata da forma de comunicação escrita, uma vez que codifica o acontecimento do presente para o

futuro. Esta talvez seja “a tradicional esfera de ação do historiador, as memórias e outros ‘relatos’

escritos (outro termo relacionado a lembrar, ricordare em italiano). Precisamos é claro, no lembrar

de que esses relatos não são atos inocentes da memória, mas antes tentativas de convencer,

formar a memória de outrem”4. Assim, a imprensa exerce seu papel de agente histórico, onde

estão registrados discursos e expressões de protagonistas da história que podem ou não vir a

causar algum tipo de ação nesta sociedade, como bem explica Pierre Bourdieu “(...) o fato de

relatar, to record, como reporter, implica sempre uma construção social da realidade capaz de

exercer efeitos sociais de mobilização (ou de desmobilização)”5.

Dando prosseguimento à discussão sobre a construção da memória, devemos lembrar que

esta pode ser construída de maneiras diversas. Ou seja, já é lugar comum dentro do métier dos

historiadores, o reconhecimento da existência de instrumentos de transmissão da memória que

vão além da forma de comunicação escrita. O espaço também pode vir a ser considerado um

3 I. 287. 4 BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p. 74. 5 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Jorge Zahar Editor, 1997, pp28.

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lugar de memória. De acordo com Peter Burke6, ao se explorar a associação de idéias dentro do

espaço, este se torna um eficiente meio de construção de memória.

Desta maneira, o principal objetivo deste artigo é analisar as representações elaboradas

pela imprensa carioca sobre o espaço urbano do Rio de Janeiro no final do século XIX. Ou seja,

qual interpretação – ou quais interpretações - que estes produtores de memória, os jornalistas,

elaboraram sobre uma memória já criada? Para facilitar o trabalho, podemos tecer nossas

considerações e conclusões sobre o assunto nos apoiando em três grandes jornais do período: o

conservador Jornal do Commercio; o moderado Gazeta de Notícias; e o Jornal do Brasil, opositor

ao regime republicano7.

A idéia de que a Capital Federal necessitava de reformas foi bastante recorrente durante o

momento analisado. Este pensamento ocupou as mentes de uma considerável parcela de

políticos, médicos, empresários e jornalistas, que visavam transformar a imagem da cidade porta

de entrada do país. Assim, questões como higiene pública, moradia popular, transformação do

espaço urbano e violência, fizeram parte do hall de notícias comuns entre os jornais cariocas no

último decênio do XIX. Exemplo disso foi a ampla ‘cobertura’ jornalística dedicada à demolição do

maior cortiço que o Rio de Janeiro já teve notícia: o Cabeça de Porco.

No dia 26 de janeiro de 1893, a cidade do Rio de Janeiro assistiu a demolição de seu maior

cortiço: o Cabeça de Porco. Este entrou para a história como sendo o marco inicial no processo

de transformação do tipo de moradia das camadas populares. À vista disso, pretendo focalizar

como tema central deste artigo os discursos sobre a demolição do Cabeça de Porco, veiculados

pelos jornais acima delimitados, bem como os temas adjacentes, tais como: salubridade e

segurança pública, necessidade de transformação da Capital Federal etc.

É possível compreender melhor a força motora da iniciativa de se derrubar este cortiço, se

entendermos o quadro político da cidade na época. Uma vez que a sociedade carioca estava

experimentando uma transformação radical no seu sistema político. Recém saídos do Império e

ingressando no sistema da República, a idéia da necessidade de substituir o velho (ligado ao

regime anterior) pelo novo (de acordo com as novas padronagens republicanas) tornou-se mais

forte e incisiva entre os responsáveis em pensar o espaço urbano. Da mesma forma que o

discurso médico organizou seu arsenal ideológico em prol de se realizarem mudanças cada vez

mais profundas sobre a configuração urbana do Rio de Janeiro. Sobretudo no que condiz à forma

de moradia da população pobre, considerada imunda e fonte de miasmas que a todos afetariam.

O Cabeça de Porco foi o símbolo do que deveria ser extirpado do Rio de Janeiro, pois

reunia todos os atributos que se chocavam com o ideal de urbanidade imaginada pelos

6 BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2000. 7 Para obter maiores detalhes sobre cada jornal, ver: SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil.Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976.

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encarregados de “pensar a cidade’. Local de moradia da camada pobre, tido, de certa forma,

longe do alcance do controle da República, além de seu ambiente que era possuidor das

características consideradas como insalubres pelos higienistas, representou um desafio a ser

vencido pelo governo.

Antes de dar prosseguimento a este trabalho, é importante compreendermos, ao menos

em termos gerais, os caminhos percorridos pelos jornalistas entre a coleta de informações (dos

fatos jornalísticos) até o momento em que transformam estas informações para o formato de texto

publicado no jornal.

Para Bourdieu8, o ato de codificar, pondo em termos generalizantes, implica em “colocar

na devida forma e dar uma forma”, ou seja, moldar algo que ainda não tem forma precisa, e que

por sua vez, implica em alguns casos o fato de objetivar. A objetivação, operada pela codificação,

introduz a possibilidade de um controle lógico da coerência, de uma formalização. Ela possibilita a

instauração de um normatividade explícita, assim, se dá uma oficialização/legitimação de certas

regras, uma legitimação de determinada visão de mundo ou acontecimento social.

Conseqüentemente, por ser instauradora de leis sociais, a codificação possibilita um sentido de

manutenção de ordem no nível da simbologia, pois cada símbolo corresponderá respectivamente

a um, e somente um, significado prático.

A codificação está intimamente ligada à disciplina e à normalização das práticas. Verifica-

se ao transportarmos essa definição para o terreno da informação, que o ato de pôr no papel

determinado movimento do mundo social, seja esse intelectual ou prático, implica na oficialização

e ordenação de idéias que até a pouco se encontravam de forma fluídica dentro da sociedade,

assim, é gerada uma determinada face ou interpretação ao objeto enfocado.

Bourdieu completa este raciocínio sobre codificação com as seguintes perspectivas de sua

conseqüência: tornar algo público, homologar e formalizar. A primeira perspectiva é explicada pelo

fato de que objetivar (conseqüente da codificação) é também tornar algo público, ou seja, à

disposição de todos, um autor no verdadeiro sentido é alguém que torna públicas coisas que todo

mundo percebia confusamente. Um determinado número de atos torna-se oficial a partir do

momento em que são públicos, publicados, assim, no caso da matéria jornalística essa se

constitui de uma oficialização de determinada realidade social que obedecerá sempre a

determinados condicionantes.

Quando quem escreve, seleciona determinados fatos em detrimento de outros, se vale de

uma forma de narrativa, define o lay-out de como o texto será impresso no jornal, ou quando

emprega recursos que sustentem suas idéias – como fotografias, transcrições de depoimentos,

8 BOURDIEU, Pierre. A codificação. IN: BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Brasiliense, 1988.

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etc – está, na verdade, fazendo o jogo dialético de lembrar e esquecer, fazendo com que perdure

para a memória escrita a sua codificação do acontecimento presente.

Já homologar, implica em imprimir significado único e comum a um determinado

objeto/sujeito, “assegurar que se diz a mesma coisa quando se dizem as mesmas palavras, assim

a publicação é uma operação que oficializa, e que, portanto, legaliza, porque implica a divulgação,

desvendamento em face de todo, homologação, e o consenso de todos sobre a coisa assim

revelada” 9. Portanto, a imprensa objetiva tornar a apreensão da realidade social única e de único

significado, produzindo com isso um nivelamento de idéias, que parte dela para a sociedade.

Assim, a formalização entra como a confirmação dessa teoria, pois codificar implica na

solidificação (em forma de senso comum) e, finalmente, no controle de idéias que se encontravam

antes, como referido acima, de maneira fluídica dentro da sociedade.

Todo o desenvolvimento teórico da codificação está dentro do contexto das lutas sociais,

pois a partir do momento que algo é codificado, ou seja, oficializado em uma determinada forma e

com isso apresentado ao público sem possibilidade de outras apreensões, há latente possibilidade

de embates que podem ter por motivo desde a construção da memória de um determinado grupo,

até o fato de determinada prática posta como código não ser reconhecida unanimemente.

Bourdieu10 dizia que parte das lutas sociais deve-se justamente ao fato de que nem tudo

está homologado e que, se há homologação, ela não põe fim à discussão, à negociação e até

mesmo à contestação. Assim, a imprensa também é um espaço de disputa de poder a partir do

momento, como referi linhas acima, vai dar forma específica aos conteúdos por ela elaborados e

com isso fazer valer determinadas visões de mundo, que estará representando os interesses (seja

eles quais forem) de determinado segmento ou grupo social.

Imediatamente após a derrubada do regime imperial e a instauração do sistema

republicano, havia no Rio de Janeiro uma imprensa variada e numerosa, composta principalmente

por pequenos e efêmeros jornais. No entanto, a situação tendia para a pequena imprensa ceder

seu lugar à grande. Cada vez mais os jornais assumiam o caráter capitalista/mercantil da

sociedade onde estavam inseridos. Os jornais que tinham capital suficiente modernizavam-se,

modificavam suas artes gráficas, adquiriam máquinas cada vez mais modernas e caras e, pouco a

pouco, assumiam o lugar das pequenas prensas.

O objetivo era aumentar a produção, baratear custos e atrair a atenção do leitor. Caso

notável, o Jornal do Brasil no início do século XX chegou a pôr em circulação 50.000 exemplares,

sendo superior a La Prensa de Buenos Aires, até então o que possuía maior circulação na

América do Sul11. Esta mudança na produção também vai afetar a relação entre jornal e

9 Id. 103 10 BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. SP: Brasiliense, 1998. 11 Sodré, 313.

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jornalistas, distribuição do material, anunciantes, governo, e leitores. Desta forma, com o

aprimoramento do seu papel de fazer circular suas idéias, podemos ter uma idéia de como foi

importante o papel desempenhado pela imprensa no exercício do poder sobre a populosa e

heterogênea sociedade do Rio de Janeiro de fins do XIX.

A imprensa do início do século, havia conquistado o seu lugar, devido a sua função (...), significava muito por si mesma, e refletia, mal ou bem, alterações que, iniciadas nos últimos dois decênios do século XIX, estavam mais ou menos definidas nos primeiros anos do século XX.12 Evoluiu também a forma que se faziam os anúncios. Em meio aos avisos de chegada e

partida dos navios, é possível se perceber um maior capricho na elaboração da propaganda.

Exemplo disso foi a atuação de autores do nível de Olavo Bilac, que “recebia cem mil réis por uma

quadrinha proclamando a qualidade de determinada marca de fósforos”13. Isto significou um

incremento na rendas dos jornais, sendo um dos fatores de crescimento da circulação, da

necessidade de se modernizar, contratar mais jornalistas, de fazer com que o jornal abarque um

número cada vez maior de leitores.

Robert Darnton14 expõe que o jornalista desenvolve uma maneira de escrever ancorada na

linha editorial do jornal. Mas, além disso, este jornalista desde o momento que ‘escolhe’ uma

notícia e lhe dá a forma escrita, está sendo indiretamente influenciado por sua idade, estilo de vida

e formação cultural. Ou seja, como bem definiu Bourdieu15, cada jornalista possuía um “óculos”

que lhe permite enxergar o acontecimento que será lido e traduzido do mundo intelectual e/ou

prático para as páginas do jornal.

Sobre a inserção da opinião do jornalista no seu texto, Renato Ribeiro16 aponta que se

partir “do texto e não do [assim chamado] contexto”, tais documentos seriam convertidos apenas

em meros efeitos de um dado contexto, “quando muito são reflexos que exprimem tal ou qual

aspecto social”, neste sentido, em vez de pensar o que o texto retrata, ou como ele refrata uma

realidade ou problema, pensar o que ele concebe. Em outras palavras, busco descobrir quais

foram as opiniões dos jornalistas sobre o Cabeça de Porco, sua demolição e, principalmente

sobre seus proprietários e moradores.

O jornalista como leitor da cidade e protagonista da história. É sobre estes dois pilares que

organizo meus argumentos sobre a atuação do jornalista e do jornal na demolição do Cabeça de

Porco. Esclareço que embora um não exista sem o outro, há um limite que separa e regula a ação

do jornalista e do jornal como instituição. Ou seja, como dito linhas acima, as opiniões do jornalista 12 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil.Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1976. 13 Id. 322. 14 DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo, Cia das Letras, 1990. 15 BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Jorge Zahar Editor, 1997.

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estão atreladas aos limites editoriais impostos pelo jornal, e este, ao jornalista - leia-se como sua

competência, ética, formação, etc.

Para tentar compreender de que forma os jornais poderiam ter atuado como agentes na

demolição do Cabeça de Porco, recorro ao exercício de fazer um breve levantamento de suas

publicações precedentes à derrubada, analisando suas opiniões sobre os temas pertinentes a

este estudo, como: salubridade pública, remodelação urbana e o papel à ser exercido pela

administração municipal.

Entre janeiro e fevereiro de 1893 o Jornal do Brasil, que ainda podia ser considerado como

oposição ao governo e ao sistema republicano, elaborou uma série de artigos intitulados: A Tarefa

do Prefeito. Neles, o jornal desfiou suas convicções sobre como deveria agir o poder municipal na

resolução dos problemas que eram enfrentados na cidade. Cabia ao prefeito a ‘missão’ de “corrigir

os erros, os desmandos e a indisciplina”17 que imperavam na administração da cidade.

O JB alerta que o prefeito deveria respeitar a Constituição da República e a lei que

organizava o Distrito Federal. Segundo este, cabia ao prefeito o papel de administrador da cidade,

entendido como uma pessoa que assume o cargo de gestor do Distrito Federal sem, no entanto,

fazer política. Pois ele seria o responsável por “tornar profícua uma administração para que o que

seja precisa ver-se desembaraçada das rugas da burocracia do expediente”. Não é novo este tipo

de interpretação de como deveria agir um governante, “tal ordem de idéias iria saturar o

ambiente intelectual do país nas décadas seguintes, e emprestar suporte ideológico para a ação

‘saneadora’ dos engenheiros e médicos que passariam a se encastelar e acumular poder na

administração pública, especialmente após o golpe militar republicano de 1889”18.

Todavia, “a parte principal da tarefa do prefeito e, com ele, de todo o Conselho Municipal, é

sem dúvida a questão da habitalidade”19. Assim expressou o jornalista do JB na primeira linha do

A Tarefa do Prefeito de 31 de janeiro de 1893. A principal razão de se empreitarem mudanças no

que concerne à questão habitacional, segundo o próprio jornalista, está diretamente ligado à

necessidade do Brasil conquistar as “simpathias e bemquerenças” do estrangeiro, pois as capitais

seriam as “salas de visitas das nações”.

Com o Rio de Janeiro não havia de ser diferente, chegando a ser comparado com Viena,

Berlim, Londres, Nova York e, sobretudo, Paris. Afinal, era forte a idéia de que “esta capital pela

sua situação, pela sua importância comercial e política podia ser foco de atração para nacionais e

16 RIBEIRO, Renato Janine. Ao leitor sem medo: Hobbes escrevendo contra seu tempo. São Paulo, Brasiliense, 1984. 17 Jornal do Brasil – 22/01/1893. 18 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das letras, 1996, p.35. 19 Jornal do Brasil, 31/01/1893

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estrangeiros”20. Obviamente o autor não defendeu a vinda de nacionais e estrangeiros pobres,

pois a Capital Federal já estava repleta deles, a cidade deveria assim, melhorar para atrair mais

investimentos e riquezas internas e externas.

Quanto à massa pobre que reside na cidade, o autor reconheceu a falta de condições para

a digna sobrevivência destas pessoas.

Não só aos abastados devemos atender, e o bem estar das classes apenas remediadas ou mesmo de todo pobre deve merecer atenção e a solicitude dos poderes municipais. Ora, a essas classes, que formam a enorme maioria da nossa população urbana, principalmente não oferece esta capital as condições de conforto e bem estar relativos que deve aqueles poderes empenhar-se em dar-lhes21.

A constatação acima, nos abre duas chaves de leitura possíveis. A primeira refere-se ao

Estado, que deveria atuar mais decididamente na melhoria das condições da classe pobre para

mantê-la inserida no centro urbano. A outra leitura possível nos remete à possibilidade da retirada

dessas classes pobres para a periferia da cidade, distante do centro.

Dentro do panteão de reivindicações sugeridas pelo autor – alargamento de ruas,

rasgamento de avenidas, serviço eficiente de água e esgoto, dentre outras – existe uma em

especial, que nos abre uma pista sobre as chaves de leitura descritas acima. Segundo o mesmo

texto “os bondes fazem-nos perder um tempo precioso, perda tanto mais sensível quando

servindo aos arrabaldes deviam principalmente ser útil aos que fora da cidade procurassem

habitações e qualidade de vida mais barata”. Ou seja, cabia ao poder municipal tornar os

subúrbios viáveis à moradia da classe pobre, para assim, assegurar maiores possibilidades de se

retirar estes pobres do centro da Capital Federal.

O JB também argumentou que o prefeito iria “encontrar prevenidos e levantados contra si

mil interesses feridos pela sua decidida resolução de cortar os abusos que, desde muito, deram

triste fama à nossa municipalidade”22. Dessa forma, podemos crer que dentre os demais

interesses feridos, estão os dos donos dos cortiços.

Outro jornal que também deu início a uma campanha por mudanças no planejamento

urbano do Rio de Janeiro foi a Gazeta de Notícias, que no dia 18 de janeiro de 1893, deu início a

uma série denominada “Melhoramentos da Cidade”. Tratava-se de colunas publicadas na primeira

página, publicadas nos dias 18, 19, 22, 23, e 26 de janeiro de 1893. Todas sem assinatura do

autor – exceto a publicada no dia 22 de janeiro, que foi assinada pelo Dr. Sabino Pessoa,

representante da City Improvments – e, em geral, eram bem destacadas entre as demais colunas.

20 Jornal do Brasil, 31/01/1893 21 Jornal do Brasil, 31/01/1893 22 Jornal do Brasil, 22/01/1893.

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Na primeira edição, o autor foi enfático ao afirmar a necessidade do velho ser substituído

pelo novo. A cidade com características remanescentes do antigo regime deveria abandonar seu

primitivismo e adaptar-se ao novo: a República. “Estas ruas, já que é assim que chamam, são

ainda as da primitiva, quando esta capital era ainda um burgo colonial, sem sombra sequer da

importância colossal e do extraordinário movimento que o tempo lhe deu”23.

O autor incorporou o argumento higienista ao da necessidade de serem substituídas as

características da cidade ligada ao regime anterior com a civilidade oferecida pela “cidade

desejada” pelos republicanos. Com isso, ele adjetiva as ruas como “repugnantes” e “hediondas”.

Segundo a Gazeta, “fato e fato incontestável é que a nossa opulenta capital oferece,

particularmente no seu centro, um aspecto repugnante e hediondo, que não condiz com as nossas

pretensões de povo civilizado”.

As referências estrangeiras são amplamente utilizadas, tanto na Gazeta de Notícias quanto

no JB, o autor se vale da experiência de outros países para justificar a necessidade de

transformação. Berlim, Viena e Paris são novamente citadas como modelos de cidades

civilizadas. Esta última um caso especial, pois o autor aconselhou Barata Ribeiro a se espelhar

nos atos de Haussmann – “célebre prefeito do Sena” – para modificar a cidade.

Além disso, a Gazeta alerta sobre o perigo de haver mais demora em iniciarem-se as

obras, “porque cada dia se estão levantando novas construções custosas em ruas estreitas e

forçosamente condenadas; a demora portanto acarretará indenizações cada vez mais onerosas

para a municipalidade, e isto é preciso evitar”. Ou seja, o autor lança uma frontal investida contra

os princípios liberais vigentes durante o Império, que durante sua permanência enquanto sistema

de governo garantiu maiores direitos à propriedade privada. Desta forma ele defende uma maior

intervenção do Estado Republicano no que concerne ao espaço particular dentro da urbe do

Distrito Federal.

Quanto ao problema sobre a fonte de onde será extraída a renda necessária para

execução das obras, o jornalista da Gazeta crê que pela importância da cidade não faltarão

recursos. Porém, se acaso as somas forem insuficientes, ele aponta que “não há mal algum que

ela saque um pouco sobre o futuro”. Nesta questão, o exterior é novamente lembrado como

exemplo a ser seguido, pois “responderemos aos tíbios, que Haussmann em Paris também

encontrou a mesma objeção, e todavia ele venceu, e a França de hoje rende homenagens ao

célebre prefeito do Sena”24.

Seguindo em nossa análise, resta-nos avaliar a atuação do Jornal do Commercio, que

tinha como característica marcante a sua manifestação de apoio ao governo. Contudo, ao

23 Gazeta de Notícias. Ano XIX, 18/01/1893, FBN, CPR-SPR61. 24 Gazeta de Notícias. Ano XIX, 18/01/1893, FBN, CPR-SPR61.

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contrário dos outros dois jornais analisados anteriormente, o Jornal do Commercio não criou

colunas ou séries de reportagens voltadas para os temas explicitados acima: salubridade pública,

remodelação e o papel a ser exercido pela administração municipal. Ou seja, não criou meios para

publicar suas opiniões de forma sistemática. Mas, isso não quer dizer que não tenha tornado

públicas suas idéias sobre o assunto.

No dia 25 de janeiro de 1893, saiu à circulação sua matéria intitulada “salubridade pública”,

que ocupou a metade da coluna do canto direito. Nesta, o Jornal do Commercio, falando em nome

de toda a imprensa, e utilizando praticamente os mesmos argumentos do Jornal do Brasil e da

Gazeta de Notícias, deixou bem claro seu posicionamento político frente às ações

desempenhadas pelo governo.

A imprensa não põe dúvida que no centro da capital existam grandes focos de infecção; nunca se opôs a medidas, por mais enérgicas que fossem, tendentes a eliminá-las a bem da saúde pública. Pelo contrário, tem sido sempre solícita em chamar a atenção dos poderes competentes para este ponto e dando-lhes todo o apoio que careçam para cabal desempenho de suas tarefas. (...) E nesse empenho encontra a imprensa sempre do seu lado, pronta a apoiá-lo, desde que não saia da trilha traçada pelas leis, que tudo devem prever 25.

Dessa forma, o Jornal do Commercio, se posicionando como um ‘porta-voz’ de toda a

imprensa, expôs seu posicionamento e dos demais jornais em apoiarem as ações governamentais

“por mais enérgicas que fossem”, conquanto não extrapolem os limites da lei. Nesta guerra, os

jornais aqui analisados haviam escolhido o seu lado. Foi o lado do governo.

Enquanto os governantes elaboravam meios para lhes proporcionarem possibilidades de

ações mais enérgicas, a imprensa da época, transmissora de uma opinião que encarnava o papel

de visão legítima e, que funcionou como elemento de arregimentação de opinião pública,

reivindicou ações imediatas para modificações do ambiente urbano. De forma geral, os jornais

analisados leram a cidade como possuidora de uma arquitetura não compatível com a “cidade

desejo” da República, onde quase sempre lançavam mão do arsenal ideológico dos higienistas

como base para suas argumentações, vislumbrando cidades – bem como seus administradores -

do exterior, principalmente Paris, como exemplos de cidade ideal.

O Cabeça de Porco, maior cortiço, possuidor de todos os vícios veementemente

combatidos, antítese da forma de morar baseada na higiene e na disciplina, constituiu-se

marcadamente como um símbolo do que deveria ser eliminado e modificado. Exemplo concreto

do contra-senso que existia entre a cidade real e a cidade desejada pelos jornais e homens do

governo.

25 Jornal do Commercio, 25/02/1893, CPR-SPR0001 – FBN.

Revista Eletrônica de História do Brasil, v. 6 n. 1, jan.-jun., 2004

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Numa primeira leitura das fontes, temos a impressão de que a ação do governo estava

sendo executada pelo bem da salubridade coletiva, afinal, não foram poucas as vezes em que o

cortiço foi denominado de “foco de infecção”, cujas super habitadas “casinhas sem ar nem luz”

exalavam “miasmas mortíferos”. Afinal, foi a própria Inspetoria de Higiene a responsável pelo aval

da demolição do cortiço.

Porém, como quase tudo na História, esta idéia deve ser relativizada. As intenções pela

demolição iam muito além da vontade ‘puramente técnica’ de sanear a cidade, pois Barata Ribeiro

era um professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cuja tese de doutoramento

intitulava-se “Quais as medidas necessárias que devem ser aconselhadas para impedir o

desenvolvimento e propagação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro”, onde concluía que

o único destino a ser dado aos cortiços era a demolição, devemos voltar nossas atenções para o

fato de que os jornais deixaram transparecer os ganhos políticos que seriam obtidos com a vitória

sobre o Cabeça de Porco.

Podemos perceber, mesmo considerando que seja característica marcante do campo

jornalístico se constituir como um lugar de relações de força, que os três jornais foram unânimes

quanto às razões pelas quais pediram ações por parte do governo, pois os três se mostraram

diante de uma cidade insalubre e deficiente em atender as demandas geradas pela República.

Além dessas exigências, tanto o JB quanto a Gazeta de Notícias e o Jornal do Commercio, que de

acordo com as conclusões de Werneck Sodré eram marcadamente diferentes em suas linhas

editoriais, buscaram, de maneira bastante parecida, sensibilizar seus leitores quanto as

necessidades de se empreender tais transformações no espaço urbano do Rio de Janeiro.

Se quanto às razões sobre as transformações no espaço urbano, houve, de certa forma,

unanimidade entre os jornalistas, o mesmo não pode ser afirmado quando se trata das opiniões

destes sobre a força do governo. Por exemplo, no dia 26 de janeiro de 1893, poucas horas antes

de se executar a demolição do célebre cortiço, o Jornal do Brasil publicou nota sobre o assunto.

Nesta, o autor punha em xeque a realização das intenções do prefeito, pois

não [crê] na vitalidade das administrações que pretendem esmagar esta cabeça de porco, mais forte, mais escarninha que a cabeça da serpente. Mais uma vez o governo, eterno, representado nos seus representantes efêmeros, pretendeu decepar esta cabeça suinamente escandalosa. Mal formulava o desejo, sucumbia, em ânsias mortais o representante da autoridade (...) esta é a cabeça que nem a República pode decepar [grifos meus]26.

26 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN.

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Suas suspeitas da incapacidade de atuação do governo frente à força do Cabeça de Porco

não eram infundadas. Pois não foram poucas as tentativas dos governos em demolir o cortiço.

Todas sem êxito. Por outro lado, o Jornal do Commercio, devotando seu apoio ao governo

republicano do Distrito Federal, no dia 26 de janeiro de 1893 noticiou que “não podemos deixar de

reconhecer a atividade que tem desenvolvido o Dr. Barata Ribeiro no empenho de melhorar esta

cidade; mas S. Ex. não se deve arreceiar da imprensa como obstáculo desse desiteratum”27.

Mesmo com esta discrepância quanto a confiança na competência do governo, podemos

verificar a ocorrência de mais uma unanimidade na opinião dos três jornais analisados, e esta era

a idéia que talvez buscavam passar aos seus leitores. Segundo eles, o cortiço gracejava com a

ordem pública, não levava a sério os interesses da coletividade. Isto lhe conferia o caráter de ser

prejudicial a todos, levando crer que sua extinção fosse imprescindível, pois várias foram as vezes

que ele “zombou da administração pública (...)”28.

Os jornais, mesmo o JB, apresentaram a seguinte dicotomia: de um lado a entidade que

para eles representava o público, o bem da coletividade, ou seja, o governo, que buscava meios

de agir sobre o mal, os “proprietários e moradores do cortiço ‘Cabeça de Porco’ [que] zombarão

agora, como até então tinham zombado antes”29.

O cortiço agia de forma danosa contra o bem público, pois “sobre a ruína de muitos

governos mortos a Cabeça de Porco sinistramente ria, afirmando na sua gargalhada inalterável a

durabilidade do seu prestígio e a existência efêmera dos que tentavam destruí-la.”30. Passando a

idéia de ser “inacessível às influências externas” 31.

Podemos assim, estabelecer uma possível chave de leitura de existir no discurso dos

jornais um outro argumento para além da salubridade pública. Os mesmos jornais que opinavam

por uma administração apolítica, ou melhor, que exigiam uma maneira de administrar a cidade

calcada no empirismo, na ordem prática – como se fosse possível –, que deveriam deixar os

fatores políticos e históricos de lado, apelaram para o estabelecimento de uma argumentação com

raízes fundadas nos planos político e das idéias. A utilização da alegoria do deboche do Cabeça

de Porco frente à administração pública, antes do mais nada, representou uma ameaça à

legitimidade ao exercício do poder. O que causaria instabilidade aos grupos que estavam à frente

da administração do governo, pois o cortiço “tem zombado da polícia, da municipalidade e dos

ministros dos negócios interiores” 32.

27 Jornal do Commercio, 25/01/1893, CPR-SPR0001 – FBN. 28 Gazeta de Notícias Ano XIX, 27/01/1893, CPR-SPR61- FBN. 29 Jornal do Commercio, 27/02/1893, CPR-SPR0001 – FBN. 30 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN. 31 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN. 32 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN.

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Esta contradição pode ser visualizada no fato de que “ministro que visitava o Cabeça de

Porco era demitido poucos dias depois da sua visita”33. Ou seja, a permanência do Cabeça de

Porco representava o enfraquecimento, ou a queda, de quem estava no comando das ordens do

Estado, desta forma, o governante que conseguisse derrotá-lo iria angariar com esta ação um

excelente capital político. E, como veremos adiante, a imprensa rendeu à Barata Ribeiro os louros

da vitória sobre o Cabeça de Porco.

Não foram economizadas alegorias para adjetivar os atos que se seguiram,

invariavelmente apelando para a dicotomia entre o bem e o mal. O Jornal do Brasil demonstra o

desafio enfrentado pelas autoridades que “pretendem esmagar esta cabeça de porco mais forte e

mais escarninha que a cabeça da serpente. (...) o prefeito prometeu fulminar esta cabeça de

Medusa” 34. Assim, de acordo com Sidney Chalhoub:

em geral, as notícias sobre o episódio louvavam a decisão e a coragem do prefeito com alusões à mitologia greco-romana. Em estilo gongórico, bastante comum na imprensa do período, a Gazeta transfigurava o prefeito em Perseu, e o Cabeça de Porco em Cabeça de Medusa: assim, ficamos informados que a ação de Barata foi tão corajosa quanto a do filho de Júpiter, que viajou até as proximidades do inferno para dar cabo de um monstro de cabeça enorme e cabeleira de serpentes, temido pelo próprios imortais. Já no Jornal do Brasil, havia receio de que a estalagem fosse como “uma hidra igual à dos que nos fala a mitologia”. A hidra era uma serpente de múltiplas cabeças, cujo o hálito venenoso matava a todos os que dela se aproximavam. Se cortadas, estas cabeças tinham a propriedade de renascer. Ou seja, o Jornal do Brasil parecia temer que o Cabeça de Porco pudesse ressurgir. Na mitologia, a derrota da hidra foi um dos trabalhos de Hércules. A moral da história do JB é que o Barata Ribeiro, homem pequeno e magricela, devia ser um Hércules dos ‘novos tempos’, e sua missão era purificar a cidade, livrando-a definitivamente daquele mundo de imundície35. Os jornais buscaram apresentar o fato, a demolição, como uma cena de guerra. As

estratégias, as descrições sobre os cenários, todo o relato dos vencedores tentava transmitir a

sensação de uma batalha, que foi gloriosamente vencida pelos cidadãos que zelam pelo bem

público.

O cenário é marcadamente pintado pela presença de importantes autoridades. Além da

multidão que se dirigiu ao local para assistirem mais uma tentativa do governo em demolir o

célebre cortiço, junto com Barata Ribeiro temos “(...) dirigindo os trabalhos os Srs. Drs. Carlos de

Sampaio e Vieira Souto, auxiliados pelo capitão-tenente José Carlos de Carvalho”36, além deles,

temos outras autoridades que foram assistir pessoalmente a derrocada do cortiço: “os chefes de

33 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN. 34 Jornal do Brasil. 26/01/1893. CPRSPR9 - FBN. 35 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das letras, 1996, p.19. 36 Jornal do Brasil. 27/01/1893. CPRSPR9 - FBN.

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polícia Dutra e Cesário de Mello, os delegados auxiliares Osório e Martiniano, ajudantes de

ordens; intendente Dr. Américo de Mattos; oficiais da armada e do exército [e] engenheiros”37.

Antes de dar cabo às suas intenções, Barata Ribeiro se preveniu formulando estratégias

para que sua empreitada, a exemplo das administrações passadas, não se tornasse mais um

fracasso.

Primeiro, era necessário enfraquecer o poder de reação reduzindo o número de habitantes

no interior cortiço. O Jornal do Commercio dá pistas de como que o prefeito alcançou este intento:

“em dezembro findo conseguiu se fechar a ala da esquerda e duas casas da direita condenadas

pela Higiene, as demais foram condenadas em vistoria feita em agosto do ano passado pelos

engenheiros da municipalidade que pediram sua demolição”. Para nossa sorte, a Gazeta de

Notícias foi mais detalhista em sua descrição de como foi sendo reduzido o número de pessoas a

residirem no Cabeça de Porco. Neste cortiço “habitaram cerca de 4000 pessoas. Devido as

intimações das câmaras sanitárias e das Câmaras passadas, muitos moradores foram se

retirando. A ala esquerda condenada pela Inspetoria de Higiene estava toda fechada a cerca de

um ano, e atualmente era calculado em 400 o número de habitantes”38.

Ou seja, Barata Ribeiro conseguiu reduzir a quantidade de habitantes para 10% do original –

obviamente os números apresentados pelas fontes não são totais exatos. Esta estratégia talvez

tenha sido a chave para sua vitória, posto que seria, no mínimo, muito difícil expulsar de suas

casas o impressionante, até mesmo para os padrões atuais, número de 4000 mil pessoas.

Para assegurar sua vitória, Barata Ribeiro também se valeu de outras estratégias. Além de

ter possuído os dispositivos legais a seu favor, pois desde “27 de dezembro (de 1892, que) o

conselho de Estado optou pela ordem de demolição” o que no âmbito judicial derrotaria qualquer

reação dos donos do cortiço, o prefeito Barata Ribeiro, para ter certeza que iria demolir o cortiço

sem os empecilhos que poderiam surgir dentro da Intendência Municipal, em 26 de janeiro de

1893, “baixou um decreto permitindo a si mesmo dar combate aos cortiços. No mesmo dia

iniciava-se a demolição”39. Além das precauções legais, o prefeito havia tomado providências

também quanto ao uso da força necessária para lhe assegurar o sucesso dos seus atos.

Diante da multidão que se aglomerou na frente da principal entrada da estalagem, uma

força com 50 praças de infantaria da policia40 impediam a entrada e saída de qualquer pessoa no

cortiço. Um piquete de cavalaria guardava as ruas transversais, enquanto o morro nos fundos do

cortiço era ocupado por praças e agentes.

37 Jornal do Commercio, 27/02/1893, CPR-SPR0001 – FBN. 38 Gazeta de Notícias, 27/01/1893. 39 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. I, nº 2. Jan/abr 1986, p.33. 40 Jornal do Commercio, 27/01/1893

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Fortemente cercado pela polícia, com o número de moradores absurdamente reduzido -

sem levar em conta que boa parte era composta por mulheres e crianças - estando os donos

completamente derrotados judicialmente, caía o célebre Cabeça de Porco. Chalhoub sintetiza

magistralmente a derrota do Cabeça de Porco, pois para ele:

A destruição do Cabeça de Porco marcou o fim de uma era, pois dramatizou, como nenhum outro evento, o processo em andamento de erradicação dos cortiços cariocas. Nos dias que se seguiram, o prefeito da Capital Federal foi calorosamente aclamado pela imprensa – ao varrer do mapa aquela ‘sujeira’, ele havia prestado à cidade ‘serviços inolvidáveis’. Com efeito, trata-se de algo inesquecível: nem bem se anunciava o fim da era dos cortiços, e a cidade do Rio de Janeiro já entrava século das favelas41. Com o cortiço plenamente dominado, iniciaram-se os trabalhos. Com o auxílio de uma

bomba do Corpo de Bombeiros, enviada especialmente para aplacar a grossa poeira que se

resultaria da demolição, uma turma de mais de 100 trabalhadores da Intendência, junto com mais

40 homens da Empresa Melhoramentos do Brasil, começaram por destruir a ala esquerda, onde

se supunha não morar mais ninguém. Porém, o que se viu foi o desespero de mulheres, crianças

e homens que saiam aos prantos, carregando o que podiam, enquanto os animais, fonte de

sustento para muitos, fugiam em disparada pela rua. Estas pessoas iam implorar ao prefeito mais

um prazo, alegando que os proprietários não os haviam notificado.

A Gazeta de Notícias justifica a permanência destas pessoas, simplesmente por estarem

“habituados a ameaças de medidas nunca levadas a efeito, só deixavam seus aposentos quando

estes começavam a serem destelhados. (...) Muitas destas mulheres e algumas crianças

banhadas em lágrimas, retiravam as suas camas, cadeiras e outros objetos de uso”42.

A idéia de governo forte, aplicando a lei acima de tudo, foi, neste ponto, mostrada e

aplaudida pela imprensa. Pois, mesmo sob o apelo de mulheres e crianças banhadas em

lágrimas, o herói da mitologia greco-romana foi levar a cabo sua missão: fazer cumprir a lei e a

ordem. E, como dito acima, nos dias que se seguiram, o prefeito da Capital Federal foi

calorosamente aclamado pela imprensa.

A Gazeta de Notícias terminou seu artigo sobre a demolição do Cabeça de Porco

atestando que “o sr. dr. Barata Ribeiro pretende realizar no local desocupado o melhoramento

proposto pelo sr. dr. Carlos Sampaio ao Ministério do Interior, prolongando a rua dr. João Ricardo

por meio de um túnel até a Gamboa, e alargando ao mesmo tempo a parte mais estreita da rua

dos Cajueiros”.

Esta declaração do Gazeta de Notícias nos abre a possibilidade de uma outra

interpretação dos fatos. Além dos motivos políticos e sanitários, as motivações econômicas

41 CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo, Companhia das letras, 1996, p. 17. 42 Gazeta de Notícias, 27/01/1893.

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serviriam de incremento às suas convicções. O fator econômico já existia, principalmente pela

localização do cortiço, que era visado pelos empresários do setor imobiliário. Contudo, a proposta

de serem realizadas melhorias no local feita por Carlos Sampaio ao Ministério do Interior deve ser

analisada com um pouco mais de atenção.

Em pleno domínio da República, novembro de 1891, o Sr. Dr. Carlos Sampaio propôs ao Ministério do Interior prolongar a rua Dr. João Ricardo por meio de um túnel, destruindo o famigerado cortiço, levantando ali novas habitações com as necessárias condições de higiênicas e executando outros melhoramentos (grifos meus).43 A Empresa Melhoramentos do Brasil, a mesma que enviou 40 operários para auxiliarem na

demolição, tinha como diretores justamente o senhores Vieira Souto e Carlos Sampaio, que foram

assistir pessoalmente aos andamentos do trabalho. Esta empresa havia fechado acordo com a

Intendência Municipal para realizar as tais obras de melhorias, além de ser a responsável pela

abertura do túnel que cortaria o morro do Livramento até a Gamboa. Com isso, a Empresa de

Melhoramentos do Brasil adquiria o direito de exploração de carris nas ruas adjacentes, direito de

pedágio do túnel por mais trinta anos, desapropriação de prédios e terrenos, e cessão gratuitas de

prédios públicos.

Só depois de um célebre contrato feito pela Intendência com o Dr. Carlos Sampaio, para prolongamento das ruas João Ricardo e Cajueiros, com obrigação de indenizar as suplicantes e outros proprietários, contrato que deveria ser transferido ao Banco Evolucionista, e, de mandar este banco uma comissão orçar o valor das desapropriações a fazer, é que, por singular coincidência começaram os suplicantes e outros proprietários a serem incomodados. (...) conseguintemente é ilegal e atentório ao direito de propriedade qualquer ato da Intendência no sentido da demolição dos prédios das suplicantes44. Esta íntima ligação entre prefeitura e a Empresa de Melhoramentos do Brasil suscitou

desconfianças e foi o pivô da última tentativa de recurso das “duas principais proprietárias,

alegando irregularidade na atuação das autoridades municipais, prejudicando o interesse dos

proprietários e moradores e concedendo facilidades aos concessionários”45.

Com a queda do famoso cortiço, os jornais noticiaram as benesses deste feito, incluindo o

início das obras de construção do túnel e o prolongamento da rua João Ricardo. O breve início

seguiu o ritmo de muitos outros exemplos de obras do Brasil. O túnel foi aberto somente quase

trinta anos após a demolição, quando o prefeito era justamente o Dr. Carlos Sampaio. A semente

43 Gazeta de Notícias. Ano XIX, 27/01/1893, FBN, CPR-SPR61. 44 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. I, nº 2. Jan/abr 1986, p. 33. 45 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. I, nº 2. Jan/abr 1986, p. 33.

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estava plantada, “quase trinta anos haviam se passado após a preparação do terreno com a

demolição da estalagem” 46.

O objetivo deste artigo foi mostrar como a imprensa atuou em prol da demolição do

Cabeça de Porco, apresentando suas opiniões de forma dicotomizada pela luta entre o bom e o

mal, alegorizando o prefeito Barata Ribeiro como uma espécie de herói da mitologia greco-

romana, cujo o destino traçado pelos deuses era destruir o monstro, a fonte dos males: o Cabeça

de Porco.

O nosso cortiço podia até não ser um monstro, uma Górgone, porém, para os homens do

seu tempo, ele simbolizava o que deveria deixar de existir. Pelo menos nas ruas do centro da

Capital Federal. Somado a isso, a sua força de reação aos perigos externos representava uma

ameaça aos homens no poder. Ministros caíram tentando dobrá-lo, a polícia e a municipalidade

eram impotentes frente à sua força de reação. Mesmo sob poderosos ataques, ele resistiu.

Os jornais apresentam como boas as intenções do governo. Com a demolição seriam

realizadas importantes obras de melhorias, que iriam beneficiar a todos e tornariam a cidade mais

salubre e agradável. É o que procuram deixar claro. Porém, deixam transparecer nas entrelinhas o

ganho político que o prefeito vai obter com a demolição do Cabeça de Porco, o pouco caso com o

destino a ser dado aos moradores, assim como os interesses econômicos dos envolvidos na

reforma daquela área.

O trabalho da imprensa, constantemente apresentou as ameaças que tais construções

representavam aos bons cidadãos; a demonstração de força empregada; a repercussão do

heroísmo do prefeito em fazer cumprir a lei acima de tudo, servira para atestar ao Cabeça de

Porco status de mito de origem às atuais formas de habitação popular, sobretudo no que diz

respeito às favelas. Num ato de magnânima bondade, o prefeito permitiu aos moradores

recolherem madeiras que sobraram sob os escombros, onde, sem demora, os moradores que não

conseguiram outros locais de moradia construíram barracos na encosta que ficava no fundo do

terreno, que ainda pertencia aos antigos proprietários do cortiço. Dessa forma, plantou-se um

núcleo de habitação no morro que pouco mais tarde, em 1897, seria ocupado pelos soldados que

retornaram de Canudos. Com a queda do célebre cortiço, o Rio de Janeiro presenciou o início da

transição de uma era, “‘a semente de favela’ saiu do cortiço, deixou a cidade e subiu o morro...”47.

46 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. I, nº 2. Jan/abr 1986, p. 33. 47 VAZ, Lilian Fessler. Notas sobre o Cabeça de Porco. In: Revista do Rio de Janeiro, Niterói, vol. I, nº 2. Jan/abr 1986.

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POLÍTICA E EDUCAÇÃO NA ESCRITA LEGISLATIVA DOS ANOS 1920

André Luiz Paulilo Doutorando da Faculdade de Educação - USP

Resumo: Este artigo situa o uso da escrita legislativa no quadro da produção intelectual de Oliveira Vianna e na reforma do ensino dirigida por Fernando de Azevedo. Depois de apresentar e classificar as posições em que aparecem, a discussão investiga os argumentos desenvolvidos em “O Idealismo da Constituição” e o programa do “Decreto n.º 3281” para compreender as relações que os dois intelectuais mantém com os critérios jurídicos e os ideais políticos republicanos. Palavras-chave: 1. História da Educação; 2. Instrução Pública; 3. Primeira República.

Abstract: This paper situates the use of legislative writing against the background of the main Oliveira Vianna´s intellectual production and in teacher reform managed by Fernando de Azevedo. After presenting and classifying the main positions in which show, a discussion make a inquiry the arguments with pervade “O Idealismo da Constituição” and the program of the “Decreto n.º 3281” to understand the relations it the both intellectuals maintains with the juridical criterion and the politic ideals republicans. Key words: 1. History of Education; 2. Public Instruction; 3. First Republic.

“A Nação Brazileira adopta como forma de governo, sob o regime representativo, a Republica Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpétua e indissoluvel das suas antigas provincias, em Estados Unidos do Brazil” 1

A aproximação entre o pensamento político e a prática educativa tem múltiplas faces nos

estudos históricos. A história das idéias, a história social, a história cultural e a história política são

áreas com uma importante historiografia sobre o tema. Seus resultados são conhecidos e

apontam circunstâncias de interseção e de interstício entre a configuração política da vida social e

o aparato educacional sobre o qual funciona. Assim, em meio a todas as possibilidades que essa

aproximação permite, gostaria de selecionar uma apenas: a escrita legislativa. Isso por dois

motivos. Primeiro, porque é a prática que mobiliza um imenso conjunto de discursos sobre a

educação. E, depois, porque é uma maneira de formalizar o pensamento educacional no interior

do aparelho de Estado.

Em especial, durante a Primeira República, essas duas justificativas foram assumidas

integralmente pelas responsáveis por quase todo tipo de reforma: desde a saúde até a educação.

A institucionalização do regime republicano ocorreu paulatinamente, com disputas diversas em

1 MAFRA, José Maria (org). Constituição dos Estados Unidos do Brazil promulgada pelo Congresso Nacional. 2ª edição. Rio de Janeiro, Livraria de J.G. de Azevedo, 1893, art. 01.p. 7.

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diversas áreas. Seu front mais importante foi sempre a letra da lei: aí esteve o objetivo mais

imediato das disputas governamentais e, sobretudo, a evidência mais nítida de uma vitória

política. De forma resumida é isto que se pode encontrar compendiado na historiografia sobre o

período. Não tenho a pretensão de avançar nessa discussão aqui. Ao contrário, minha ambição é

localizar o tema das reformas educacionais na lógica de funcionamento da escrita legislativa

durante os anos 1920. Isso se justifica quando se observa as inúmeras reformas que aconteceram

pela federação durante essa década. São Paulo, Ceará, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e

Distrito Federal são as mais conhecidas. Aqui vai se tratar apenas da reforma do Distrito Federal

entre 1927 e 1930. Nela estiveram presentes de forma um tanto dramatizada muitas das questões

postas nas outras reformas no país se bem que num âmbito bastante localizado. Situação, aliás

proporcionada pela própria constituição do período que consagrava a descentralização política

dos Estados da Federação.

Tendo em vista esses três condicionantes do objeto da análise optei problematiza-lo a

partir de um diálogo entre a reforma Fernando de Azevedo, cujo código de educação reformou o

ensino no Distrito Federal em 1928 e as críticas de Oliveira Vianna à Constituição de 1891,

publicada entre 1922 e 1937. Com essa opção quis circunscrever os dispositivos, os

procedimentos e as idéias que coagiram a elaboração jurídica do funcionamento escolar e do

pensamento político no período. Nesse sentido, a aproximação entre Fernando de Azevedo e

Oliveira Vianna permitiu perceber as questões da organização do poder do Estado, da formação

nacional e da inserção do país na modernidade em dois momentos diferentes de reconfiguração

institucional: a proposição e a crítica.

Por isso, a exposição do texto está dividida em três partes. Uma, que trata da crítica à

Constituição de 1891, está dedicada à obra de Oliveira Vianna. Outra, que analisa o Decreto que

reformou o ensino em 1928, está dedicada ao trabalho de Fernando de Azevedo e sua equipe na

Diretoria de Instrução Pública. Finalmente, elas se encontram num espaço de comparação que é

também um esforço de entendimento da proximidade dos enunciados pedagógico e político com o

discurso contido no domínio do direito. É dessa imbricação que o texto procura dar conta.

Representações sociais e ordenação nacional no idealismo da Constituição

Na lógica de funcionamento da escrita legislativa combinam-se todos os sinais de uma

retórica da impessoalidade e da neutralidade que, conforme as proposições de Pierre Bourdieu,

constituem-se através de um modo de pensamento e pela expressão de frases impessoais

próprios para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para construir o enunciador em

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sujeito universal, imparcial e objetivo.2 Esse discurso normativo, ainda segundo Bourdieu, produz

uma prática e um discurso propriamente jurídicos cuja lógica específica está determinada, por um

lado, pelas relações de força específicas que lhe conferem a sua estrutura” e, por outro, “pela

lógica interna das obras jurídicas que delimitam em cada momento o espaço dos possíveis”, ou

seja, a constituição do universo das soluções propriamente jurídicas.3

Utilizando a noção de habitus proposta por Bourdieu é possível dizer que o campo jurídico

é o lugar onde se disputa o direito de dizer a boa ordem através de sujeitos investidos de

competência social e técnica derivadas de sua capacidade, reconhecida, de interpretar de

maneira autorizada, um corpo de texto que consagra “a visão legítima, justa, do mundo social”.4

Dessa forma, o discurso jurídico participa, ao mesmo tempo, da lógica positiva da ciência na

medida que passam a se constituir complexas formas de categorização dos discursos possíveis

na sociedade5 através dos sujeitos investidos de competência para tanto, e da lógica normativa da

moral6 no momento em que o normal se converte em um critério que julga e que valoriza negativa

ou positivamente por meio de uma visão legítima e justa já sacramentada no corpus da lei. Boa

ordem, visão legítima e justa do mundo social, espaço do possível, as soluções jurídicas são as

expressões intemporais, derivadas de um trabalho legislativo de aquiescência do direito sobre a

história. Trabalho que ganhou uma significação propriamente liberal, na visão de alguns, na

Constituição Republicana de 1891. Forjava, por sua vez, uma ordem que ainda na década de

1920 se queria implantar.

A República Velha lançou mão de um discurso que criou um visão legítima de cidadania

exercida pela participação política através da partidarização ou por meio do voto, e estabeleceu,

jurídica e politicamente, a descentralização federalista do aparelho de Estado em benefício das

oligarquias estaduais confirmando uma ordem social brutalmente cindida entre proprietários e não

proprietários. A disposição das peças nesse quadro republicano restringiu os espaços possíveis

de articulação intelectual (geração de 1870), social (canudos, contestado, revolta da vacina),

militar (revolta da armada) espacial (urbanização do Rio de Janeiro e de São Paulo) a uma

organização pautada na disciplina social e na ordem política dos processos de

produção/reprodução da hierarquia e das representações simbólicas contidas nas exigências

funcionais do sistema republicano, por meio da instrumentalização jurídica da retórica republicana,

2 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989. p. 215. 3 Idem, p. 211. 4 Idem, p. 212. 5 Um exemplo dessa situação se encontra nos debates sobre o conceito de livre arbítrio no qual concepções diferentes entre o direito - que o conferia ao homem - e a medicina - que o negava de forma universalizante, restringindo-o apenas as raças superiores - provocou verdadeiros litígios entre esses dois campos disciplinares. Esse processo mostra de que forma um conceito jurídico pode influir na determinação de alguns pontos temáticos no universo de preocupação de outras disciplinas. 6 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 213.

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sem entretanto, cuidar de sua estruturação institucional.

Nessas condições, e tendo em vista o plano político, é possível notar que a Constituição de

1891 procurou determinar comportamentos novos que não encontraram repercussão imediata nos

indivíduos e nos grupos sociais cujos comportamentos se pretendia alterar. Segundo os

intelectuais da década de 1920 seria dessa situação que derivariam os diversos desajustes pelos

quais os sucessivos governos republicanos vinham passando até então. É possível, no entanto,

identificar outros sintomas de instabilidade e desajuste percorrendo os diversos discursos de

reforma presentes tanto nas representações utilizadas nos discursos quanto nas representações

criadas pelas formas de enunciação dos textos produzidos por esses mesmos intelectuais.

A ordem liberal sob a ótica de um conservador

A Constituição de 1891 foi um efeito das representações geradas segundo os esquemas

adequados às estruturas republicanas. Ela consagrou a ordem liberal. Determinou o sistema

representativo. Consolidou um governo com três poderes. Instituiu o sufrágio universal. Em fim,

sancionou e justificou novas classificações no direito civil manifestando-as na objetividade de um

discurso ortodoxo por um verdadeiro ato de criação que “proclamando-as à vista de todos e em

nome de todos, lhe confere a universalidade prática do oficial”7.

Crítico da ordem colocada pela Constituição republicana, Oliveira Vianna publicou, em

1927, a obra intitulada O Idealismo da Constituição8 na qual pontuou questões problemáticas dos

ideais veiculados e gerados pela propaganda republicana, criando, ou melhor, trabalhando com

outras representações de sociedade. Esse texto construiu um olhar crítico com relação ao

discurso jurídico vinculado à Constituição da República, permitindo procurar nele pontos de

inflexão do discurso republicano provenientes do campo jurídico e, portanto, de problemas de

legitimação das leis e normas para manutenção da estrutura do regime.

O Idealismo da Constituição é um texto em que a questão jurídica não esconde uma

disputa política maior que marcava os debates em fins da década de 1920. De um lado, os

“republicanos históricos” que pretendiam, segundo Oliveira Vianna, ser os artífices de um direito

7 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 238. 8 O Idealismo da Constituição tem editoração complicada Fica díficil dar-lhe uma data. A edição consultada foi a 2ª de 1939. No entanto é dificil precisar qual a primeira edição uma vez que em 1922 o que viria a ser seu primeiro capítulo “O Primado do Poder Moderador 1924-1889” havia sido publicado em separata pelo jornal O Estado de S. Paulo sob o título O Idealismo na Evolução Política do Império e da República e o segundo capítulo O Primado do Poder Legislativo, 1891-1930/1930-1937 havia sido publicado por Vicente Lícino Cardoso num estudo editado em À Margem da História da República em 1924 sendo aqui utilizado o seu título pela primeira vez. (IGLESIAS, Francisco., “Leitura Historiográfica de Oliveira Vianna”. Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p. 320).

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público ilustrado, moderno e universal à moda das constituições americana, francesa e inglesa

mas que trabalhavam numa sociedade embevecida num direito costumeiro que era refratária à

aplicação de princípios jurídicos emanados de outras realidades sociais, e, de outro lado, os

intelectuais que, ainda segundo Oliveira Viana, pretendiam fugir do artificialismo para descobrir a

realidade nacional e forjar a nacionalidade, e que, em conformidade com Rugai Bastos, criaram

um espaço de diagnóstico, em suas obras, da inadequação das instituições à realidade brasileira.9

No campo jurídico essa dualidade se manifestava nas formas de interpretação e escrita da

lei10. Segundo Oliveira Vianna, no “método clássico” (estreitamente ligada à figura de Rui

Barbosa) o sentido da lei deveria ser buscado por regras de interpretação que são abstratas, isto

é, que derivam do conceito gramatical e lógico da lei; da letra da lei. Já na concepção existente na

obra de Oliveira Vianna, representante aqui dos intelectuais acima referidos, o sentido de um texto

legal deveria ser entendido como coisa viva e, portanto, inseparável e adaptável ao tempo e a

realidade social do país. Nesse sentido, o traço mais distintivo da escola clássica, para Oliveira

Vianna

“era a crença no poder das fórmulas escritas. Para esses sonhadores, por em letra de forma uma idéia era, de si mesmo realizá-la. Escrever no papel uma Constituição era faze-la para logo coisa viva e atuante: as palavras tinham o poder mágico de dar realidade e corpo às idéias por elas representadas.

Dizia Ihering que ninguém podia mover uma roda lendo apenas diante dela um estudo sobre teoria do movimento. Os republicanos históricos, especialmente os constituinte de 91, dir-se-iam que estavam convencidos justamente do contrário disto - e que, pelo simples poder das formulas escritas, não só era possível mover-se um roda, como mesmo mover-se uma nação inteira. Neste estado de espírito é que elaboraram a Constituição de 24 de Fevereiro.”11

Nos textos de 1922 e 1924 reunidos em O Idealismo da Constituição, Oliveira Vianna

afirmou que desde a independência nossos legisladores desconhecem a realidade e se baseavam

em construções idealistas inspiradas em três conceitos: o parlamentarismo, o federalismo e o

racionalismo liberal que não serviriam de modo algum, segundo ele, às peculiaridades do povo

brasileiro:

“Realmente, todo o sistema político engenhado na Constituição assenta-se sobre um certo número de presunções, que, entre nós, não tem, nem podem ter, nenhuma objetividade possível. São presunções de natureza especulativa, inteiramente fora das condições reais da nossa vida coletiva.”12

9 RUGAI BASTOS, Élide. “Oliveira Vianna e a sociologia no Brasil.” Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p. 421. 10 GOMES, Angela de Castro. “A práxis corporativa de Oliveira Vianna.” Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993 , p. 49. 11 VIANNA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª edição, São Paulo: Cia Editora Nacional, 1939 p. 81. 12 Idem, p. 93-94.

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A Constituição de 1891, para Oliveira Vianna, foi fruto de um idealismo incapaz de

organizar o quadro dos poderes públicos do país por que feito para um “povo que não tinha -

porque não podia ter - nem espírito democrático, nem sentimento democrático, nem, portanto,

hábitos e tradições democráticas”.13 Para Oliveira Vianna, tratava-se de “cumprir a lei e não

apenas mudar-lhe a letra”14 por isso a insistência na situação real do país na formulação das leis.

Entendia que a Constituição, devido ao seu modelo, não era cumprida porque não representava

as necessidades derivadas dos hábitos e tradições da população. Assim, a identificação das

causas da impotência das leis e da inexpressiva cidadania brasileira contidas no O Idealismo da

Constituição se explicava pela concepção que Oliveira Vianna tinha de povo brasileiro.

O povo brasileiro

No primeiro volume de Populações Meridionais do Brasil (1920), obra inicial, Oliveira Viana

defende a idéia de que seria por meio da índole do povo que se alcançaria a explicação de que

aqui, apesar de todos mandarem em ninguém e ninguém obedecer, tudo vai bem.15 Em

Problemas de Política Objetiva (1930), Oliveira Vianna sustentou que haveria, ainda no povo

brasileiro, uma escassez de qualidades cívicas ao constatar que “não temos sequer espírito

municipal, que é uma de nossas ficções constitucionais” . Anotou, nesse aspecto, que o brasileiro

era desprovido do “sentimento dos grandes deveres públicos” e do “sentimento da hierarquia e da

autoridade” , não possuindo igualmente “o respeito subconsciente da lei” e “a consciência pública

do poder público como força de utilidade social”16.

Nesses termos Oliveira Vianna foi alternando suas preocupações com as características

do povo brasileiro e as formas de solidificação do poder público na fixação das normas e dos

padrões de conduta política e cívica dessa população. Preocupado em diferenciar o universo

privado do público através da concepção de Estado, Oliveira Vianna construiu formas de

organização política nas quais a figura do poder central ocupa um papel de proeminência na

constituição de suas idéias a respeito de organização social.

Para Oliveira Vianna, a instauração de uma ordem legal civilizatória passaria

necessariamente pelo “combate tenaz e vigoroso de luta árdua e brilhante, entre a caudilhagem

territorial e o poder público”17. O poder público era identificado como a representação da

13 Idem, p. 103. 14 MORAES, Joaquim Quartim de. “Oliveira Vianna e a democratização pelo alto”. Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, p. 117. 15 VIANA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil. 3ª edição, Vol. I. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1933 p. 409. 16 VIANNA, Oliveira. Problemas de Política Objetiva. 2ª edição. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1947 p. 48-49. 17 VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil, op. cit., p. 284

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autoridade central do Estado Nacional cuja tarefa primeira era a construção da Nação sob uma

autoridade pública centralizada. No seu entendimento, só a autoridade pública seria capaz de

instituir o povo como comunidade política, isto é, dotá-lo de capacidade de direção política.

Em Problemas de Política Objetiva, Oliveira Vianna desenvolveu a noção de povo-massa a

partir da constatação de um amorfismo social, presente nas formas de organização da sociedade

brasileira, que excluía, necessariamente, a capacidade de estabelecimento de laços orgânicos

fortes entre a população. Derivava daí sua concepção da necessidade de se fazer uma política

orgânica e nacional, cujas diretrizes só poderiam ser dadas por iniciativa do Estado.

O Estado e a lei

Assim é que, quanto à solução para os problemas nacionais, a alternativa possível, traçada

por Oliveira Vianna, era enquadrá-los organicamente na orbita de atuação do Estado. A

concepção que produzia a legitimidade dessas considerações era a idéia de que as esferas do

político e do jurídico só seriam eficazes se adaptadas às características do povo brasileiro cuja

natureza amorfa, não participativa e apolítica, seria forjada em moldes civilizados a partir da

autoridade estatal, proporcionada pela centralização, e compreendida por Vianna como única

instituição capaz de dar direção política e instituir laços sociais definitivos na população e

“a) neutralizar a ação nociva das toxinas do espírito das toxinas de clã no nosso organismo político - administrativo; b) quando não seja possível neutralizá-los, reduzir-lhe ao máximo a sua influência e nocividade.”18

Essa forma de realismo político, presente em O Idealismo da Constituição, apoiava-se

numa apologia da ordem e da disciplina. Sem isso qualquer forma política e institucional

fracassaria em virtude da formação histórica brasileira, dos seus padrões societários e políticos

que se produziram “impregnados de ausência do sentimento dos interesses gerais”19. Nesse

sentido, os princípios abstratos do liberalismo não vingariam no território brasileiro, ou, em outras

palavras, a constituição de 1891 não podia se transformar em coisa viva.

“(...) os republicanos da constituinte constituíram um regime político baseado no pressuposto da opinião pública organizada, arregimentada e militante. Ora, esta opinião não existia entre nós: logo, ao mecanismo idealizado pelos legisladores de 91 faltava o sopro inspirador do seu dinamismo. Daí a sua falência.”20

18 VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição, op. cit., p. 71-72 19 VIANNA, Oliveira. Idem. p.100 20 VIANNA, Oliveira. op. cit., p. 96

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Em Oliveira Vianna a reforma (institucional) se fazia presente com o condicionante de

demandar soluções realistas e compatíveis com os costumes e com a índole do povo brasileiro. O

livro O Idealismo da Constituição, ao rejeitar princípios universais, denominados, por Oliveira

Viana, princípios abstratos, rejeita também o princípio de cidadania política ao restringir a

participação popular à esfera social, ou melhor, da solidariedade social - trabalho de construção

da nacionalidade - na medida em que o Estado central estabelece as normas e diretrizes de

conduta e de participação nos processos de produção do poder e determina a direção política da

população.21 Nessa fórmula, o papel do legislador seria o de “antes de se mostrar homem do seu

tempo, mostrar-se homem da sua raça e de seu meio”22.

Nessa passagem, Leão Rêgo percebe em Oliveira Vianna uma clara concepção de

temporalidade histórica fundamentada num explícito determinismo de tipo físico e biológico.23

Tratava-se de orientar as “forças vivas” reais da sociedade no sentido de utilizá-las para

estabelecer instituições mais racionais, nas quais a normatividade da lei pudesse tornar estável

uma estrutura social compatível com as características do povo à qual se destinava. Tratava-se,

mais precisamente, de instaurar o governo da ordem e da lei, a sociedade da obediência e,

portanto, da disciplina.

Oliveira Vianna esforçou-se, no conjunto de sua obra, em propor o encaminhamento das

questões de governamentabilidade no sentido de constituir uma simetria entre governo central e

paz social que tinha como linha mediana uma escrita da lei que permitisse ao Estado deitar o

“peso disciplinar da mão de ferro da legalidade”24.

O Idealismo da Constituição partiu de considerações deterministas em relação a formação

do povo brasileiro para justificar a inadequação da letra da lei em relação a “realidade social

brasileira real” ao mesmo tempo em que produziu a necessidade de um poder central para dirigir a

situação política nacional com a finalidade de erigir a nacionalidade e o Estado brasileiro. Nos

espaços abertos por essas imagens Oliveira Vianna vinculou a funcionalidade institucional das

formas de controle do poder central à produção de um corpo de lei que fosse de encontro com as

características do povo brasileiro, ou seja, um Estado autoritário para um povo apolítico e um

21 RÊGO, W. G. D. L. “Oliveira Vianna e o Estado brasileiro no final do século XX.” Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p. 174. 22 VIANA, Oliveira. O Idealismo da Constituição, op. cit., p. 116 23 RÊGO, W. G. D. L. “Oliveira Vianna e o Estado brasileiro no final do século XX.” Org. RUGAI BASTOS, E. e MORAES, J.Q. O pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p., 174. Nesse momento deixarei apenas indicado esse aspecto da obra de Oliveira Vianna uma vez que em linhas gerais suas relações não constituem, para os meus intuitos, deslocamentos de conceito ou determinam dificuldades de compreensão aos fundamentos derivados do O Idealismo da Constituição que procuro desenvolver. 24 VIANNA, Oliveira. Populações Meridionais do Brasil, op. cit., p. 289.

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poder central para uma nação fragmentada pelo caudilhismo regional.

Oliveira Vianna justificou, pelo conhecimento da realidade nacional, a ascensão de novas

elites ao poder: “de todas as oligarquias possíveis em nosso país, a oligarquia do supremo - a

oligarquia da toga - seria a única realmente benéfica e liberal, a única cuja opressão não

humilharia - porque seria a opressão da lei e não do arbítrio”.25

Dessa forma, Oliveira Vianna submete a alteridade Estado/Nação aos regimentos da letra

da lei; concepção que se tornou pedra angular na produção de O Idealismo da Constituição. Se

por um lado ao Estado caberia dirigir a população amorfa nos seus destinos políticos com a

finalidade de forjar uma nacionalidade, e portanto uma Nação. Por outro, esse projeto só se

consolidaria se o Estado produzisse leis (única forma legítima de ordenação e opressão) que

trabalhassem com as características reais do povo e não com idealismos estrangeiros. As

representações assim trazidas ao texto de O Idealismo da Constituição funcionaram, nesse

sentido, de maneira a criticar a forma por excelência do discurso atuante: a lei, que por sua

própria força é capaz de produzir efeitos26.

Texto e contexto

Identificando/produzindo a necessidade de formar uma opinião pública organizada como

condição necessária para a montagem de um sistema democrático Oliveira Vianna notou que a

Constituição de 1891 instaurou um modo de funcionamento social que, no entanto, desprezava,

segundo as proposições de O Idealismo da Constituição, o fato de que, para ter validade, o corpus

de lei republicano deveria ter sido feito a partir da realidade social, condição da eficácia do

discurso jurídico. Assim, construindo a imagem de um povo-massa que ainda não teria evoluído

para a consciência abstrata da existência de interesses de grupo e de classes Viana trouxe ao seu

discurso uma sociedade despreparada, apegada aos únicos representantes do poder por ela

conhecido - os poderosos locais - e por isso incapaz de identificar formas de relações

equilibradas de poder.

A partir desses conceitos, formulados nas obras Populações Meridionais do Brasil,

Evolução do Povo Brasileiro (1923), Pequenos Estudos de Psicologia Social (1921) , Vianna, em

O Idealismo da Constituição, sistematizou suas críticas às fundações constitucionais da

República. Nos espaços do discurso de Vianna foi possível notar as formas pelas quais as

representações referentes à sociedade e às formas políticas se articularam no texto de O

25 VIANNA, Oliveira in ODALIA, Nilo. As formas do mesmo: ensaios sobre o pensamento historiográfico de Varnhagen e Oliveira Vianna. São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 1997 p., 155 26 BOUDIEU, Pierre. op. cit., p. 237

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Idealismo da Constituição de maneira a produzir novas categorias de percepção e apreciação com

relação à ordem estabelecida pela legislação em vigor. O Idealismo da Constituição foi uma obra

que, ao impor uma nova visão das divisões e classificações operadas pela discurso jurídico

republicano, procurou desqualificar a força simbólica presente no corpo de lei de 1891 utilizando-

se da estratégia de descortinar a incompatibilidade entre o ideal e o real intrínseco, segundo

Oliveira Vianna, à constituição de 1891.

O Idealismo da Constituição teceu um comentário universalizante que ao colocar em

evidência as regras e sobretudo os princípios do trabalho propriamente jurídico de codificação das

representações e das práticas éticas da Constituição republicana, aderiu aos fundamentos da

prática profissional do corpo dos juristas, a saber, a crença na neutralidade e na autonomia do

direito e dos juristas:

“Ora, nós não podemos continuar a cultivar este ingênuo estado d’alma de estetas das Constituições. O nosso objetivo não será a harmonia, nem a beleza, mas, sim a conveniência e a adaptação. O que devemos querer não são regimes belos ou harmônicos, mas sim regimes convenientes e adaptados ao nosso povo.”27

No entanto, pela racionalização e pela sistematização a que Oliveira Vianna submeteu o

corpo constitucional e as representações que o fundamentavam não deixou de conferir ao seu

discurso as formas políticas de crítica e de estruturação de propostas veiculadas a partir das

justificativas sócio econômicas pelas quais procurava o selo da eficácia simbólica.

“O erro destes espíritos teorizadores, ou antes a ilusão deles, está na convicção em que todos eles vivem - de que uma reforma política só é possível por meios políticos. Eles não concebem que haja outros meios capazes de modificar as condições da vida política de uma sociedade senão a modificação das suas instituições de direito público.”28

Assim, se a Constituição de 1891 contou com a universalidade prática do oficial para

instituir representações sociais ou políticas, em O Idealismo da Constituição, o imperativo do

ajustamento realista às estruturas objetivas não se colocou de forma menos importante às

representações de sociedade contidas na legislação. Pelo contrário, devido a sua forma

subversiva e anti-institucional, ao produzir novas categorias de percepção e de apreciação da

carta de 1891 e, ao veicular uma outra visão de suas divisões e classificações construiu

evocações criadoras fundamentadas em representações histórico-sociais funcionando, assim, nas

palavras de Pierre Bourdieu, como um oficial do registro civil.

27 VIANNA, Oliveira. O Idealismo da Constituição, op. cit. p.118 28 VIANNA, Oliveira. idem., p. 116-117

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Efeito de normalização e autoridade social na lei de reforma do ensino no Distrito Federal

Fernando de Azevedo tomou posse do cargo de diretor da instrução pública do Distrito

Federal no dia 17 de janeiro de 1927. Em seu discurso de posse, amplamente divulgado na

imprensa, procurou traçar um quadro interpretativo da educação na capital federal que viria a

servir-lhe como introdução ao conjunto de reformas a serem implantadas no Rio de Janeiro. O

plano de reforma elaborado por Fernando de Azevedo pretendia o aproveitamento, a reconstrução

e o aperfeiçoamento do que já existia no nível do ensino no Distrito Federal.

Assim, Fernando de Azevedo, na Diretoria Geral de Instrução Pública, apresentou um

projeto de reforma fixando suas premissas teóricas num corpo de lei: decreto 3.281 de 23 de

janeiro de 1.928. O objetivo confesso de Azevedo era “a articulação das diversas instituições

educativas e a concordância entre essas e a realidade social e os princípios modernos de

educação”29. Dentro desse critério insistiu ele, num discurso proferido no Conselho Municipal,

“Se antes de um contrato mais íntimo com o vosso aparelho pedagógico de institutos ainda em formação, justapostos e quase sempre estranhos uns aos outros, me é licito traçar um programa de idéias, nas suas linhas gerais, parece-me que este deverá começar pelo recenseamento escolar, indispensável para o conhecimento exato da situação. (...) Este trabalho fundamental, mais fácil do que se julgaria à primeira análise, deve acompanhar-se dos estudos de um plano geral de reformas para ser submetido ao exame e a aprovação dos poderes competentes tão empenhados como nós, pelo seu patriotismo, em dotar o Distrito Federal de uma organização pedagógica modelar. É preciso desprender da legislação escolar, fragmentária e confusa, os componentes eficazes de que se compõe e resumi-los todos num corpo sistemático de leis apropriadas, com espírito claro de finalidade educativa e social. A dispersão de esforços sem seqüência nem coordenação, só se poderá evitar mediante um plano capaz de de dar ao ensino o caráter de uma instituição social, real e viva, e o vigor e a harmonia de um sistema de construção em que as instituições, subsidiárias ou fundamentais (...) modeladas todas com idéias modernas de educação, não dissimulem (...), as relações recíprocas de coordenação e subordinação para um objetivo comum”.30

Diferentemente desse discurso em que Fernando de Azevedo assumiu a forma “de uma

luta propriamente simbólica de fazer ver e fazer crer, de predizer e de prescrever, de dar a

conhecer e de fazer reconhecer”31 a fim de convencer o Conselho Municipal da importância e

validade de sua proposta de reforma, a linguagem da qual se utilizou no projeto de lei reconheceu

uma retórica da autonomia32 determinante na elaboração de um corpo de regras e de

29 AZEVEDO, Fernando de. A instrucção publica no Districto Federal. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & Cia, 1927. p. 14 30 “A posse do novo director da Instrucção Municipal.” O Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 21 jan. 1927. 31 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p.174 32 idem., p. 216

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procedimentos com pretensão universalizante conferindo uma autonomia real dos pensamentos e

das práticas nela embutidas.

Como o objetivo desse ensaio é o de mostrar as nuanças do discurso jurídico dentro do

campo educacional, procurando suas semelhanças e influências, deter-me-ei na definição do

caráter e finalidade do ensino primário contidos na lei de 1928:

“Art. 45 – A escola primária será de tipo único, uniforme nas suas bases humanas e

nacionais e adaptada, a rigor, a realidade social. Parágrafo único – Sem quebra de sua unidade fundamental a escola primária

respeitará as diferenciações locais, amoldando-se à singularidade da região a que serve ( urbana, rural ou marítima).

Art. 46 – À escola primária compete, pelo seu ambiente, pela ação do professor e pela organização de seus programas, uma intensa obra de educação integral que se realizará:

a) pela educação física, generalizada e sistemática, segundo orientação científica; b) pela criação e desenvolvimento de hábitos higiênicos, em toda a população

escolar; c) pela educação intelectual, ativa e utilitária, que sirva ao desenvolvimento de

hábitos de raciocínio e observação e desperte a consciência da necessidade do trabalho e do esforço;

d) pela educação moral que utilize todos os meios de impressionar constantemente o espírito das crianças no sentido de gerar e despertar a consciência do dever;

e) pela educação cívica, pelo exemplo e pela realização de cerimônias capazes de estimular e desenvolver sentimentos de civismo, imprimindo-se ao ensino das matérias mais suscetíveis de recebê-lo um caráter marcadamente brasileiro.”33

A opção adotada por Fernando de Azevedo no Decreto 3.281 de 23 de janeiro de 1.928

dizia respeito à “nova concepção” e a “nova finalidade” a serem atribuídas à escola pela reforma

do ensino no Distrito Federal. Nesse sentido, a escola de tipo único - termo que Azevedo usou

para marcar uma ruptura de caráter social na legislação educacional - achava-se inscrita numa

formação discursiva maior, cujo mecanismo de funcionamento é necessário procurar mostrar, a

partir da análise do discurso de Azevedo.

A escola única, a realidade social e a educação integral

A escola única ao conceder “um ponto de partida comum para todos, mais ou menos

extenso (5, 7 ou 9 anos) conforme as condições econômicas do meio”34 tornou-se o fundamento

da educação numa democracia social na medida em que contribuiu para o deslocamento da

33 DISTRICTO FEDERAL. Lei e Regulamento do Ensino (decretos ns. 3281 de 23 de janeiro de 1928 e 2940 de 22 de novembro de 1928. Rio de Janeiro: Escola Alvaro Baptista, 1929, p. 22-23. 34 AZEVEDO, Fernando de. “A Escola Nova e a Reforma”. Boletim de Educação Pública. Rio de Janeiro jan./mar. 1930. p. 7.

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competência da iniciativa da instrução das crianças da família para o Estado de maneira que esse

pudesse exercer um programa de formação de uma cidadania que assegurasse a unidade social.

Para garantir esse dilatamento do público escolar a legislação utilizou-se de dois outros

princípios complementares ao conceito de escola única: a obrigatoriedade e a gratuidade.35

Nos dois casos a legislação criou a relação de interesses entre Estado e Nação. A escola

única serviria primordialmente aos interesses do Estado pois assumiria a função de garantir a

organização social vigente na medida em que pela convivência entre ricos e pobres procurava

diluir as diferenças de classe numa consciência política homogênea que promoveria uma unidade:

(desta vez) a nacional.

A uniformidade nacional e social encontraria seus meios de realização nos métodos

pedagógicos presentes na instituição do “exercício normal do trabalho” e na adoção do princípio

da escola comunidade. Esses dois momentos da concepção metodológica distinguem-se, do

ponto de vista discursivo, pelo fazer conotativo36 que veiculava no primeiro caso uma idéia

individual e no segundo uma função social.

Em um texto de 1928 intitulado A socialização da escola, Fernando de Azevedo colocaria

como princípio das atividades sociais o conceito de trabalho. Para ele a sociedade apoiava-se na

organização do trabalho. A partir dessa leitura Azevedo concebe a escola como um instrumento

de reorganização econômica através do qual

“A educação não deve apenas basear-se nas leis psicológicas elementares do pensamento, da ação e da conduta individuais, mas nas tarefas ideais das sociedades humanas, em vista das quais os indivíduos tem o dever de formar-se, e às quais as condutas particulares devem subordinar-se e adaptar-se. Ora, as atividades sociais apresentam-se com esse caráter de cooperação, em sociedades cooperativas de produção e de consumo, na formação de classes e sindicatos, e, enfim, na organização científica do trabalho em que um interesse coletivo orienta, harmoniza e disciplina os esforços e interesses individuais, quase sempre incoerentes, dispersos e contraditórios.”37

Azevedo conformou suas concepções ao mundo moderno, da indústria, das classes,

concluindo que era preciso organizá-lo e que a escola do trabalho produziria a harmonia e a

cooperação, evitando os conflitos e os males do capitalismo e assegurando uma ordem que

acreditava democrática, porque via sindicatos e associações, a maioria da população participaria

das decisões. Saía, assim, da lógica individual do ensino e defendia sua dimensão coletiva, para o

35 PILETTI, Nelson. “Fernando de Azevedo: a educação como desafio.” Prêmio grandes educadores brasileiros: monografias premiadas 1985. Brasília: INEP, 1986. p. 112. 36Para Greimas trata-se daquilo que era dado inicialmente como a possibilidade de uma solução e passa, depois da integração do nível cognitivo, a tornar-se apreensão, em forma de traços comuns, da relação de semelhança entre dois discursos. GREIMAS, A. J. “Acidentes nas ciências ditas humanas”. Org. GREIMAS, A J.; LANDOWSKI, E. A análise do discurso em Ciências Sociais. São Paulo: Global, 1986 p.64. 37AZEVEDO, Fernando de. “ A socialização da escola”. Boletim de Educação Pública. Rio de Janeiro, abr./jun 1930. p. 172.

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que requeria mudanças profundas: os conflitos modernos eram, na sua compreensão, coletivos,

então as instituições, os métodos, as instâncias e as representações escolares também deveriam

sê-lo:

“Interessar as crianças na conservação e no desenvolvimento constante do pequeno meio social, que é a sua escola, é habituá-las ao governo, isto é, a pensar e agir em função do bem coletivo; é despertar e desenvolver o sentimento de responsabilidade e de disciplina social; é criar a consciência da função social da riqueza, ou, por outras palavras, da necessidade de se por em benefício da sociedade parte da fortuna, cada um na medida de seus recursos.”38

Veiculando uma idéia de escola avessa ao individualismo, a concepção de escola

comunidade levou a uma configuração política do espaço escolar que voltava sua atenção para o

potencial de dissolução social, preocupação também presente nos discursos de intelectuais como

Oliveira Vianna, por exemplo.

Ao meu ver, Fernando de Azevedo imprimiu, dessa forma, um “móvel moderno” com a

preocupação de superar o “amorfismo individualista” configurando a escola nas/das corporações.

Essa solidariedade era a do sentido público, da impessoalidade, do interesse geral - que

precisava ser inventada para gerar uma nação organizada e unificada.

Fernando de Azevedo dedicou-se com determinação a demonstrar os meios pelos quais a

escola atingiria suas finalidade. Nessas demonstrações alternavam-se, ou melhor, mesclava-se

arrazoados universalizantes e particularistas bem como deixava entrever intenções políticas na

obra modernizadora da escola com a pregação de uma escola adaptada ao meio social, como no

discurso proferido em setembro de 1927 no qual afirma que “a educação pública, que é uma

instituição social, deve integrar-se no quadro geral do sistema social, e trazer, assim, vincada no

cunho do meio e do tempo, a expressão viva e palpitante que é suscetível de assumir.”39

Torna-se possível, portanto dizer que a reforma do ensino, atuando a partir da realidade

social deveria atuar no sentido de construir a nacionalidade. Processo em que, uma vez

diagnosticada a inadequação das instituições à realidade brasileira, buscava-se a formação da

nacionalidade (porque, acreditava-se, não havia uma) através da reforma das instituições e das

bases humanas da nação: a população. Deriva dessa concepção a valorização da comunidade,

dos valores e interesses coletivos, a ênfase nas idéias de povo, coesão, unidade de território

(física), de pensamento (intelectual) e de espírito (sentimentos) na reforma do ensino público.

Percebia-se, nesse processo, a orientação da reforma no sentido de estabelecer uma

harmonia entre os diversos aspectos do desenvolvimento humano: físico, intelectual, moral e

cívico. Baseava-se nesses princípios a educação integral na nova escola que se queria instituir:

38 idem, p. 173 39 AZEVEDO, Fernando de. A instrucção publica no Districto Federal. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & C., 1927. p. 14-15

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“A escola nova se propõe a uma ‘educação integral’. A escola nova não é apenas um ‘aparelho de instrução’: tem por fim dar uma educação integral orientada para um fim determinado e em harmonia com novos ideais. Afim de preparar o aluno para o trabalho, deve dar-lhe hábitos higiênicos, despertar e desenvolver-lhe o sentido da saúde e enrijar a sua resistência, para que ele encontre, na sua própria vitalidade e na higiene do trabalho, a alegria de viver.”40

Para novos ideais e novos fins, novos meios. A legislação elaborada por Azevedo trouxe

novas preocupações para o espaço escolar que, segundo os educadores, deveria se ajustar à

realidade brasileira com a finalidade de formar um cidadão preparado para a vida moderna; para

viver o seu tempo.

A educação física

As reformas educacionais realizadas em diversas unidades da Federação, de 1920 a 1928,

contemplavam a educação física como componente curricular do ensino primário.41 Entendida de

forma ampla, como uma atividade educativa a influenciar outras áreas do ensino. Sua presença

particular no Distrito Federal se efetuou no sentido de implantar amplos espaços adequados às

atividades físicas nas escolas cariocas.

Essas reformas, sem dúvida, tiveram muito a ver com os esforços das primeiras décadas

do século de assegurar a saúde e o vigor dos corpos, aumentar a produção e longevidade dos

indivíduos, incrementar a população do país e melhorar os costumes privados42. O objetivo seria o

de acelerar o progresso, mas manter a continuidade social e econômica num tempo em que

“(...) à ação múltipla dos progressos técnicos e industriais se acrescentaram a volta à idéia do indivíduo como um todo, a crença na unidade do ser humano e na possibilidade de formação do homem completo e a exaltação dos valores biológicos e vitais, provenientes do naturalismo e ligados a nova forma de civilização, -- industrial, de base científica e técnica, [viabilizando] o complexo das influências que mais concorrem para a expansão dos esportes e das atividades físicas.” 43

Para Fernando de Azevedo, a educação física era entendida como um elemento de

extrema importância para forjar o indivíduo forte, saudável, indispensável a implementação do

processo de desenvolvimento do país. Nessa compreensão dos fatos juntavam-se os médicos

que, mediante uma ação baseada nos princípios da medicina social de índole higiênica,

40 AZEVEDO, Fernando de. “A Escola Nova e a reforma.” Boletim de Educação Publica. Rio de Janeiro, jan./mar. 1930 p. 19. 41 CASTELLANI FILHO, Lino. Educação física no Brasil. A história que não se conta. Campinas: Papirus, 1994 p. 102. 42 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. 3ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 1989. p. 227. 43 AZEVEDO, Fernando de. Da educação física. Obras Completas ,Vol. I. São Paulo: Melhoramentos, 1960, .p. 15.

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encarregaram-se da tarefa de incutir na sociedade, através da instituição familiar, os fundamentos

próprios ao processo de reorganização dessa célula social.

Juntamente com a educação física a educação higiênica tinha um papel substancial na

criação do corpo saudável, robusto e harmonioso organicamente, ou seja, constituir o indivíduo

nos moldes do corpo social que se queria para a constituição da nação.

A educação higiênica, enquanto procurava alterar o perfil sanitário da família, procurava,

também modificar sua feição social. Nesse sentido, Fernando de Azevedo em discurso proferido

em setembro de 1927 dirigiu-se, ao referir-se sobre as finalidade da educação sanitária, à platéia

nos seguintes termos:

“Eu falo em nome das crianças dos meios rurais e operários, filhos da rua e da miséria, brotadas em lares onde escasseia o pão e sobram as provações e onde o agasalho do corpo e a própria subsistência não provém do salário certo, mas de expedientes aleatórios. Eu falo em nome dessas crianças enfezadas e anêmicas, quase maltrapilhas que enchem grande número de escolas públicas, bem perto do bulício e do fausto dos grandes centros da cidade, e trazem na tristeza apática, nas olheiras fundas e no olhar sem brilho, quando não nas escolioses e em toda espécie de estigmas, a marca do meio social em que definham, e todos os sinais de debilidade congênita agravada pelas taras hereditárias e pela penúria de meios malsãos, e oferecida como presa fácil à contaminação ambiente.”44

O envolvimento dos higienistas com a educação escolar dar-se-ia, portanto, dentro de um

quadro de entendimento em que a educação sanitária apresentava-se de maneira extensiva a

educação familiar.

É possível identificar, na reforma da instrução no Distrito Federal, uma preocupação em

adequar a educação aos novos padrões de conduta - balizados pelos higienistas - suscetíveis de

serem incorporados pela família carioca, como condição básica para o desenvolvimento de um

perfil de sociedade.

A educação moral e cívica e os planos de estudo

Num outro sentido, o discurso pedagógico procurou incrementar a educação cívica das

novas gerações como forma de colocar a educação na direção anunciada nos discursos político-

sociais mencionados na República Velha. Surgiu, portanto, ao lado da educação física e corporal,

como elos da mesma corrente, a Educação Moral e Cívica. Esse componente, mais programático

do que curricular, procurou articular a prática educacional à conotação almejada pelas

44 AZEVEDO, Fernando de. A instrucção publica no Districto Federal. Rio de Janeiro: Mendonça, Machado & C., 1927. p. 23

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concepções de nação e cidadania definidas pela política republicana.

No entanto, se a educação física encontrou lugar específico nos currículos da escola

primária, a educação moral e a educação cívica seriam integradas ao currículo através das

diversas áreas do conhecimento de forma a estarem presente em todas elas, uma vez que

“Incutir no espírito do aluno a consciência do dever (para com a pátria) e da responsabilidade (moral); formar-lhe o caráter; criar e desenvolver o espírito de brasilidade, despertar-lhe a consciência dos deveres de cidadão, não é, pelo seu alcance tarefa de um ou vários mestres, mas de todo o corpo de professores, unidos por um ideal comum e empenhados por um profundo sentimento cívico, em preparar o cidadão capaz de amar a sua terra e revelar, como a prova maior desse amor, o espírito de sacrifício, o desprendimento pessoal, a disciplina e o hábito do trabalho, em uma palavra: o cumprimento do dever.”45

Assim, se por um lado a promoção da disciplina moral da nova geração impunha-se com a

preocupação em formar individualmente o espírito da criança no sentido de gerar e despertar a

consciência do dever, por outro - de forma complementar - a formação cívica, efetivada pelas

cerimônias, eventos de promoção do nacional e pela arquitetura escolar, afinava-se com a

necessidade sentida de condicionar o indivíduo ao cumprimento dos seus deveres com o

desenvolvimento e constituição de uma nacionalidade brasileira, assumindo desse modo, um

caráter eminentemente social.

Para Fernando de Azevedo, não se poderia considerar a educação como um mero reflexo

conceitual de uma determinada situação. Sua ação seria bem mais ampla já que, interagindo nos

diversos níveis da estrutura social, poderia se tornar um meio de transformações positivas (ou

negativas) conforme os objetivos propostos. A educação teria a função de não somente justificar e

manter situações mas ainda de mobilizar para a ação e de transformar além de unir os homens

entre si e cada um à função que exercia na sociedade.46

Nesse sentido, não só o problema dos fundamentos metodológicos da educação seria um

dos aspectos do problema pedagógico geral das relações e das ações do professor com o aluno,

como também a própria formação intelectual adquiriria função específica no discurso de

renovação na medida em que a realidade social, sempre carregada de uma constituição

simbólica, necessitava de uma interpretação em imagens e representações, do próprio vínculo

social do aluno, e mesmo do professor, para com a nação, o mercado, a política e o progresso.

Preocupado com essa questão e tendo em vista as concepções pedagógicas que

centravam no aluno o eixo principal do processo ensino aprendizagem, Fernando de Azevedo, em

artigo publicado em 1929, pelo Boletim de Educação Pública, reconhecia que

45 AZEVEDO, Fernando de. “A Escola Nova e a reforma.” Boletim de Educação Publica. Rio de Janeiro, jan./mar. 1930 p. 20. 46 “A transição pedagógica no Districto Federal” O Jornal, Rio de Janeiro, 26 dez. 1928.

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“A escola nova pode e deve, no entanto, ter um “plano de estudos”. Os programas, de acordo com a nova concepção, não podem nem ser tão rígidos e limitados, que tornem a sua aplicação “quase mecânica” (seria substituir uma rotina por outra), nem tão amplos, que tornem, em um sistema de organização escolar, impossível ou difícil o controle rigoroso do ensino e de seus resultados. Os programas não podem fixar a “matéria a ensinar”, senão em torno de três ou quatro grandes centros de interesse ( por exemplo: a natureza; o trabalho; a sociedade), à volta dos quais o conhecimento se desenvolvam e se alarguem, como uma “idéia em marcha”, partindo do particular para o geral, das coisas mais elementares e concretas para as idéias abstratas.”47

A legitimidade e a necessidade dos valores transmitidos pelo processo educativo seriam

resultantes de um trabalho baseado em leis e procedimentos psicológicos, que aproximavam as

crianças aos grandes centros de interesse do Estado Republicano (nação, produção, cidadania)

por meio de determinações dos padrões de comportamento para o corpo individual e a formação

de uma base de conhecimentos que consubstanciassem a substituição de hábitos influenciados

pelo “meio social” pelo desenvolvimento de inclinações consideradas boas, positivas, válidas, no

que dizia respeito aos costumes sociais, políticos e culturais do corpo social.

Por essas características é possível compreender que a ação educativa presente nas

concepções da instrução pública por meio do Decreto 3.281 proporciona condições para uma

prática pedagógica intimamente ligada à uma estrutura social, com a qual interagia continuamente

no sentido de consolidar nas crianças os valores políticos econômicos, culturais, as instituições,

os costumes, os hábitos da República e de uma nação nos moldes idealizados pelo liberalismo de

parte das elites brasileiras.

O teor das normas jurídicas, na medida que traduzia essa visão seletiva de sociedade,

privilegiando alguns setores sociais ou hábitos individuais e estigmatizando outros sancionava o

comportamento das pessoas atingidas. O poder exercido pela DGIP-DF (baseada na lei de 1928),

por subsistir justamente no controle da estrutura administrativa das escolas propiciava-lhe o

exercício do domínio dos processos produtivos da escola. Logo, a lei inicialmente procurou

controlar a apropriação, a produção e a divisão do conhecimento e das representações que a

escola veicularia aos (e pelos) quadros sociais nesse momento.

À título de conclusão seria possível dizer que o discurso jurídico tornou eficaz “um modo de

produção” do pedagógico, garantido pelo poder formal, intervindo diretamente na regulação das

concepções das relações de ensino e aprendizagem ou sociais do espaço escolar, e fixando os

métodos necessários para efetivação dessas relações, por meio de instituições e prescrições que

47AZEVEDO, Fernando de. “A Escola Nova e a reforma.” Boletim de Educação Publica. Rio de Janeiro, jan./mar. 1930 p. 17.

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não se situavam necessariamente no âmbito da escola, mas que invadiam outros setores da

normatividade.48

Produção histórica e social das formas políticas e jurídicas do discurso

O trabalho de racionalização produzido pelo fazer ascender ao estatuto de lei uma

concepção político social de educação determinada pelos parâmetros teóricos de uma pedagogia

que se pretendia renovadora e que, por isso, derivou mais das atitudes éticas dos sujeitos

implicados no processo que às normas puras do direito conferiu-lhe uma eficácia simbólica que

“reside, pelo menos em parte (...) na impressão de que a necessidade lógica sugerida pela forma

tende a contaminar o conteúdo”49 Na lei de reforma do ensino elaborada por Fernando de

Azevedo as representações sociais contidas na sua forma de escrituração adquiriram essa

eficácia simbólica pelo efeito que a ordenação jurídica do corpo de idéias educacionais presente

na concepção da reforma produziu no comportamento social da população da capital federal.

Quero aqui apenas sugerir a relação entre ordenação jurídica e comportamento social pois

pretender a analogia entre uma e outra, seria, contradizer as condições de produção presentes

em Oliveira Vianna, na medida em que O Idealismo da Constituição, embora incorporando a

norma da lei ao falar sobre ela, construiu uma retórica que não legitimava as representações

veiculadas pela Constituição de 1891.

Não quero aqui tecer uma discussão sobre ciência jurídica mas apenas apontar, seguindo

as indicações de Paolo Semana, como característica do direito, um conjunto de normas capazes

de regular as relações sociais de modo a aumentar o número de relações desejadas

reconhecendo, no entanto, que em certos casos tenham uma função perturbadora (como as

sugeridas por Oliveira Vianna frente a Constituição de 1.891) e que a ordenação de leis e

disposições objetivam reduzir ao mínimo as perturbações da ordem veiculada pelas suas

proposições (situação exemplificada pelos dispositivos ativados pelo Decreto 3.281 por Fernando

de Azevedo com a finalidade de garantir o ensino primário obrigatório).50

Em contrapartida gostaria de demonstrar que o objetivo da enunciação jurídica em

Fernando de Azevedo ou da crítica ao direito público em Oliveira Vianna foi o de produzir

representações pedagógico-sociais e político-sociais. Foi dentro desse esquema de compreensão

48 escotismo, clínicas hospitalares, liga da bondade, as inspetorias médica e dentária e a psicologia aplicada só para citar alguns exemplos. 49 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 225. 50 SEMANA, Paolo. Linguagem e poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. (coleção pensamento político) p. 107.

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que procurei analisar as obras de Oliveira Vianna e o conjunto de trabalhos composto por

Fernando de Azevedo, o projeto de reforma do ensino e os discursos e artigos que circularam pela

sociedade do Rio de Janeiro.

Nesse sentido, a análise não busca as falhas argumentativas ou analíticas dos autores,

mas a sistematização das idéias e conceitos existentes em Oliveira Vianna e Fernando de

Azevedo com o intuito de perceber (1) as representações políticas referentes a organização do

poder e às relações entre Estado e sociedade e (2) os caminhos destacados nas preocupações

com a história, a nacionalidade e o caráter nacional presente em ambos os autores.

Examinando a obra O idealismo da Constituição cuja primeira edição data de 1927, ano

em que Fernando de Azevedo foi convidado para ocupar o cargo de diretor geral da instrução

pública do Distrito Federal e o Projeto de Reforma do Ensino n.º 109, elaborado por Azevedo, e

transformado em lei no ano seguinte foi possível perceber que ambos trabalhavam com uma

norma de comportamento social pautada na produção científica do indivíduo cujos enunciados,

tratando com diretrizes destinadas ao corpo social no primeiro caso ao corpo individual no

segundo, colocaram-se em condições de produzir representações eficazes nos sujeitos a que se

destinavam.

No entanto, foi preciso reconhecer a obra de Oliveira Vianna e a de Fernando de Azevedo

como produtos permitidos dentro do universo de preocupações dos quais trataram. Esta claro que

o processo de construção e divulgação da lei de reforma foi mais complexo que o comentário

tecido por Oliveira Vianna referente ao texto constitucional, mas, no entanto ambos serviram para

demonstrar como as representações sociais, retiradas da lei no comentário e de um ideário de

reforma na Lei Fernando de Azevedo, se fizeram, por um lado, presentes, e por outro, foram

(re)trabalhadas segundo novas concepções ideológicas ou lógicas no sentido de forjarem novos

enunciados possíveis e/ou permitidos.

O problema da organização social e da nacionalidade foram centrais nas críticas de

Oliveira Vianna e nas propostas de Fernando de Azevedo. No entanto, se as críticas de Oliveira

Vianna para com a Constituição se associaram à concepção de poder centralizado na autoridade

estatal como forma política de administração da sociedade, o corpus de lei, presa numa

linguagem de conformidade com o passado e inscrita numa lógica da conservação51 veiculou, sem

negar a necessidade da centralização do poder e a autoridade do estado, concepções

democráticas de educação da população de modo a criar as bases sociais da administração

política do Estado.

No primeiro caso, experimentou-se o simples desejo de criar pressupostos para que certas

relações humanas se tornassem estáveis através de normas outras que pudessem reconfigurar a

51 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 245.

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Constituição, isto é, para que se produzisse uma nova concepção de direito e se implantassem

novas instituições de administração públicas. No segundo, o discurso inscreve um sentido de

verdade lógica e um conjunto de verdade fatual no contexto de políticas sociais, culturais

institucionais a serem reformadas.

Formas e caminhos diferentes que, no entanto, trabalhavam com uma representação do

passado, do caráter e da nacionalidade que produziram uma busca de possibilidades

materializada em projetos que, criticando ou erigindo a realidade jurídica, encerravam uma ânsia

pela construção do por vir expressas no campo por excelência do dever ser.

Foi no âmbito de propostas para reformas institucionais que ambos os enunciados

manifestaram modelos políticos consistentes, não pela mera funcionalidade, mas como

decorrentes de um imperativo histórico para a época: a modernização. O campo comum em que

transitavam era a modernização brasileira em suas diferentes dimensões (política, social,

econômica e cultural). Oliveira Vianna e Fernando de Azevedo, com conteúdos específicos

guardavam como traço unificador a preocupação de através da construção de novas

representações, responder, ideologicamente ou concretamente, às questões presentes do seu

tempo.

Para isso, procuraram aproximar o pensamento àquilo que julgavam ser a realidade na

tentativa de tornar o país contemporâneo de seu tempo. Nesse sentido, pode-se identificar em

Oliveira Vianna e Fernando de Azevedo os temas que segundo Guilherme Piva seriam básicos no

pensamento brasileiro em fins da década de 1920: capitalismo, nacionalismo, federalismo ou

centralismo, militarismo ou civilismo, democracia ou autoritarismo, nação, raça e tradição.52

De fato, trabalhando com o discurso jurídico por meio do qual “se exerce a dominação

simbólica ou se, se prefere, a imposição da legitimidade de uma ordem social”53 Fernando de

Azevedo e Oliveira Viana estariam tentando, o primeiro com os conceitos educacionais e o

segundo com as formas políticas, articular condições para o advento do Brasil moderno: um pela

codificação das representações e das práticas o outro pelo trabalho de formalização da doutrina

jurídica.54

Ianni aproximou a transição traumática do fim da sociedade agrária monárquica e

escravocrata e o colapso que cobre o período entre a primeira guerra mundial e a quebra da Bolsa

de Nova York em 1929, com o empenho da sociedade brasileira “em resolver os impasses de não

contemporaneidade” e “colocar-se no tempo do seu tempo, em dia com a história codificada pelas

52 Foram perspectivas e impasses que vinham, segundo Luiz Piva desde a proclamação da república, passando pela imigração e pelas crises do café. PIVA, Luiz Guilherme. Ladrilhadores e semeadores: a modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte. São Paulo: 1986. (Tese de doutoramento) FFLCH/USP. 53 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p.246 54 idem., p. 244

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nações mais avançadas” 55. Em tal idéia Piva identificou um momento em que se formularam

problemáticas acerca do atraso e da modernidade a partir da comparação com os países

desenvolvidos não só por imitação de um modelo aspirado, ou por dedução das diferenças de

desenvolvimento mas “principalmente porque se estava analisando um país realmente atrasado,

com condições de vida, de produção econômica, de difusão cultural, de organização política de

fato precárias”.56

Portanto, segundo esses autores, a atenção central dos diversos discursos presentes na

década de 1920 foi a modernização. Com várias configurações a idéia de modernização recobriu

vários outros temas do pensamento brasileiro. Destacaria aqui, a título de exemplo, a maneira

como o discurso da modernização do ensino segundo o qual a alfabetização da população

eqüivaleria a construir a nação, formou um quadro em que ninguém propôs ou admitiu, sequer

como hipótese de raciocínio, a nação organizada, unificada, soberana, porém pobre e analfabeta.

O tema da modernização, pela importância do atraso no imaginário de uma sociedade

como a brasileira, contaminou muitos outros temas. Assim, no O Idealismo da Constituição,

Oliveira Vianna, ao considerar o direito como um conjunto de normas que deveriam ser capazes

de regular as relações sociais de modo a aumentar o número de relações desejáveis socialmente,

direcionou sua análise para o campo estritamente político no qual consolidou uma proximidade

entre a noção de centralidade do poder e a necessidade da substituição das elites dirigentes, a

alteração no sistema de eleição e representação política vigentes na legislação constitucional.

Para a extração mais adequada de quadros capazes de implementar as políticas que o

país supostamente reclamava, o ideário escolanovista contido no Decreto 3.281 interfiria

diretamente no campo sócio-cultural, de maneira a alvejar a ignorância, o analfabetismo, a falta de

cultura, a barbárie e a incapacidade social ou racial que segundo os reformadores, encontravam-

se na maioria da população. Condenavam, também, o beletrismo improdutivo do bacharel e a

cultura idealista de parte das elites em detrimento da eficiência técnica e cientifica caracterizada

com a noção de modernidade.

Nos dois casos a questão que movimentava os argumentos e as disposições eram a

organização e a unidade nacionais, a consolidação de um poder central e de um Estado nacional.

Providências entendidas como necessárias para a superação da desordem e para a adoção de

políticas civilizatórias para com o espaço social.

A elaboração de propostas de transformações que assegurassem ao país um futuro

melhor foi outro aspecto presente em Oliveira Viana e Fernando de Azevedo. O historicismo

presente nas análises sociais que procuravam buscar nas origens da formação brasileira suas

55 IANNI, Octavio. “Estilos de Pensamento”. In. RUGAI BASTOS, Élide; MORAES, João Quartim (orgs). O Pensamento de Oliveira Vianna. Campinas: Editora da Unicamp, 1993. p.430. 56 PIVA Luiz Guilherme. op. cit., p. 24.

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características nacionais, fundamentavam os projetos de reforma veiculando a crença de que o

futuro era previsível e que, portanto, poder-se-ia trabalhar no sentido de corrigir-lhe o prumo, de

acertar-lhe o caminho.

Nesse sentido a lei de 28 pode ser interpretado como um sistema de normas revelador da

condição cultural da sociedade carioca de fins da década de 1920. A Diretoria Geral de Instrução

Pública trabalhou para a adequação do projeto de reforma às novas concepções educacionais

existentes nos enunciados que circulavam nas associações educativas cariocas e nacionais, nas

diversas reformas implementadas em outras unidades da federação e enfim na dinâmica de

relações concretizadas por conferências, congressos e associações.

O trabalho de provocar comportamentos um mínimo compatíveis com os interesses

teóricos sistematizados na Lei, procurou o máximo de eficácia na divulgação das representações

sociais consagradas em forma de um conjunto formalmente coerente de regras oficiais e por

definição sociais e universais e que, por essa razão, e de acordo com Bourdieu, (o trabalho e o

conjunto de regras) veicularam princípios práticos do estilo de vida simbolicamente dominante.

Ao definir currículo, classificar alunos, sistematizar as promoções dos professores tendo

em vista configurar os princípios práticos do estilo de vida simbolicamente dominante na

população escolar, o Decreto 3.281, determinou efeitos de normatização que concorreram para

conferir eficácia prática à coerção própria do discurso jurídico.

Já Oliveira Viana, em sua crítica a legislação republicana, denunciou o direito estabelecido

na constituição de 1891 como uma escolha política cuja conveniência foi amplamente criticada em

termos de eficácia. O Idealismo da Constituição utilizou o conceito de solidariedade social para

definir as formas nas quais se poderia falar em uma comunidade nos termos de ser ou não ser

uma nação. A palavra solidariedade se opunha, nesses termos, a qualquer outro sentido que não

fosse fundamentado no interesse coletivo de forma que, dessa perspectiva, a Constituição

republicana, em Oliveira Viana atendendo aos interesses das oligarquias, foi colocada como

incapaz de formar uma Nação.

Deslocamento engenhoso que pôs em causa a lógica formal das representações nas quais

o poder do Estado encontrava sua validade no momento de produção da organização social, na

medida que, destituía a legislação republicana de qualquer possibilidade de operar dispositivos

para a construção e consolidação do nacional. Nesse sentido, O Idealismo da Constituição

procurou descrever os critérios de legitimidade das vantagens existentes em generalizar conceitos

como democracia, sufrágio universal e federalismo para determinar pontos de inflexão entre o

discurso jurídico da legislação e a realidade social brasileira. O produto desse trabalho crítico foi

evidenciar de maneira evidente os meios de circulação dos dispositivos “econômicos e sociais” de

compreensão do trabalho jurídico para, a partir disso, efetivar propostas de construção do Estado

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Nação e da manutenção da ordem social definida na lei através da superação dos espaços vazios

entre o direito (Constituição) e o fato (sociedade).

Na verdade, O Idealismo da Constituição teve na sua origem um projeto que tendia “a

fazer do direito um instrumento de transformação das relações sociais”57. Fundamentando uma

série de termos úteis à análise dos processos sociais relacionados a lei republicana em lugar da

interpretação e da aplicação da linguagem jurídica, Oliveira Viana, operou algumas classificações

que, procedendo na direção jurídico-lógica, mais do que lógico-jurídica, trouxeram consigo

elementos empíricos dos quais derivaram algumas possibilidades notáveis de interpretar

analiticamente se não as normas, pelo menos, alguns elementos distintivos da linguagem jurídica

presentes na Constituição.

As representações sobre educação e sociedade produzidas e reproduzidas pelo discurso

jurídico da lei de 1928 e as apropriações e ressignificações gerenciadas por Oliveira Vianna das

formas jurídicas presentes na Constituição de 1891 demonstraram que os textos aqui analisados

foram construídos a partir da rejeição/incorporação de representações sociais, políticas, e

culturais.

Os movimentos de objetivação das respostas, as questão da organização do poder do

Estado, da formação nacional ou da inserção na modernidade, presentes nos discursos utilizados

por Oliveira Viana e Fernando de Azevedo permitiram uma aproximação de sentido e de forma

entre os enunciados pedagógico e político e o discurso contido no domínio do direito. Isso ocorreu

na medida que procuraram, por um lado, constituir uma crença no verossímil e a consciência

daquilo que seria não enunciável nesses dois campos. E, por outro, quando quiseram transformar

as bases do contrato enunciativo da verdade política ou pedagógica pela circulação de

representações produzidas, reproduzidas, apropriadas e ressignificadas. permitiram uma

aproximação de sentido e forma, entre os enunciados pedagógico e político e o discurso contido

no domínio do direito, De certa modo o que fizeram foi modificar um discurso intrinsecamente

poderoso como é o discurso enunciado pela lei. Isto é, modificaram as condições de passagem do

estado de ortodoxia, crença correta explicitamente anunciada como dever ser, ao estado de doxa,

adesão imediata ao que é evidente, ao normal58 e inscrita dentro da ordem, dos “discursos que,

indefinidamente, para além de sua formulação” 59, foram ditos durante a década de 1920.

57 BOURDIEU, Pierre. op. cit., p. 249. 58 idem. 59 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 22

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SERGIO BUARQUE DE HOLANDA: sobre o acalanto da palavra mágica

Marcus Vinicius Corrêa Carvalho

Doutor em História - UNICAMP Resumo: Este artigo enfoca a inserção de Sergio Buarque de Holanda nos grandes debates intelectuais do Brasil com o objetivo de compreender sua trajetória profissional e política, bem como pretende analisar como essa inserção auxiliou na prática intelectual no país através de seu legado. Palavras-chave: 1. Historiografia Brasileira; 2. Sergio Buarque de Holanda.

Abstract: This article focuses the participation of Sergio Buarque de Holanda in the great intellectual debates in Brazil. Our goal is to understand his political and professional trajectory as well as intend to analyze how this insertion helped the intellectual Brazilian practice through his legacy. Key words: 1. Brazilian History; 2. Sergio Buarque de Holanda.

Nascido no bairro da Liberdade em meados de 1902 e falecido em abril de 1982, o escritor

Sergio Buarque de Holanda participou de alguns dos principais debates intelectuais desenvolvidos

no Brasil do século vinte, tencionando um fio próprio de pensamento. Atentar para sua reflexão

constante sobre a atividade intelectual pode auxiliar a compreensão do desenvolvimento de sua

trajetória profissional e política, além de apontar para questões que tangem a própria inserção

social da prática intelectual no país.

A temática da atividade intelectual o acompanhou desde seu primeiro artigo dado a público

em 1920, quando o polígrafo paulistano contava ainda pouco menos de dezoito anos.

Em “Originalidade literária”1, o escritor estreante discutia a relação entre “emancipação

política” e “emancipação intelectual”, associando-as à possibilidade da “consumação espiritual” da

nacionalidade brasileira. Para ele, que repisava, então, os passos de José Veríssimo e Silvio

Romero, a primeira tentativa de realizar uma “literatura nacional” dera-se com o “indianismo”

romântico, apesar de sua “falsa” caracterização étnica de “nossos selvagens”. Naquele momento,

Buarque de Holanda entendia como inevitável a realização de uma literatura propriamente

brasileira, desde que os esforços nesse sentido fossem marcados pela “inspiração em assuntos

nacionais, o respeito de nossas tradições e a submissão às vozes profundas da raça”.

Vinte e sete anos depois, Buarque de Holanda foi eleito presidente da seção paulista da

Associação Brasileira de Escritores. No ano seguinte, 1948, quando retomava a crítica literária

nas páginas do Diário de Notícias, ele publicou “Missão e profissão”2. Nele, Sergio Buarque fazia

1 Sergio Buarque de Holanda. “Originalidade literária”. Correio Paulistano. São Paulo, 22 de abril de 1920. s/p. 2 Sergio Buarque de Holanda. “Missão e profissão”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 22 de agosto de 1948. In: Sérgio Buarque de Holanda. O espírito e a letra: estudos e crítica literária II, 1948-1959. Org.: Antonio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 35-40.

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um balanço dos “sinais de transformação” que discernia no “horizonte intelectual” brasileiro neste

quarto de século.

Com certo tom de denúncia, Buarque de Holanda referia-se ao que chamou de “vício de

nossa formação brasileira”, que ele afirmava combater em sua própria produção. Referia-se

àquele constante fiar-se no “poder mágico” da palavra, escrita ou falada, alimentando um

“complexo folclore dos civilizados”. Forjado na valorização das aparências ornamentais da

expressão, este vício faria do “brilho da forma”, da “espontaneidade lírica ou declamatória”, da

“virtuosidade”, da “vivacidade da inteligência”, da “agilidade do espírito” e da “erudição decorativa”

alguns dos parâmetros para clivar “uma espécie de padrão superior da humanidade”. Assim,

fiados no “poder mágico”, pretendia-se a “profissão do escritor”, sobretudo, como uma “forma de

patriciado”3.

Duas seriam as fontes dessa pretensão, que Buarque de Holanda rejeitava. Por um lado, o

“preconceito romântico”, que conferia ao letrado uma “dignidade de exceção”. Por outro, agia uma

“peculiaridade de nossa formação histórica”, que fomentava essa excepcionalidade ao privilegiar

profissões liberais e empregos públicos, em detrimento daquelas profissões e empregos que

sujam as mãos e degradam o espírito. Ofícios, portanto, hierarquicamente desprezíveis em

sociedade oriunda de senhores e escravos4.

Nessa medida, o papel do “autêntico escritor” – assim definido por uma espécie de dom de

nascença – teria prerrogativas particulares. Naqueles dias, afirmava Sergio Buarque, insistia-se

nas “obrigações e responsabilidades dos intelectuais”. Definia-se para eles uma “missão”, que não

teria um caminho cor-de-rosa ou de ouro, impondo deveres dos quais não se poderia fugir “sem

grande perda de dignidade”. A “sagrada missão” do intelectual seria, então, a de elucidar os que

não sabem ver por inocência, e denunciar os que não querem ver por conveniência, as fórmulas

que, eles afirmavam, poderiam solver “os problemas universais”. Os escritores deveriam

mobilizar-se espontaneamente “em benefício de alguma causa”, em nome da “dignidade

profissional”. Convertiam, desse modo, dizia Holanda, aquele patriciado em “milícia”5.

Sergio Buarque sugeria o reconhecimento de um “campo particular” para as atividades

literária e cultural, entretanto, sem pretender fazer das “‘elites’ da inteligência” um clericato

displicente e egoísta. Ele considerava excelente que “homens de boa vontade”, entre eles os

escritores, se congregassem e colocassem suas capacidades ao serviço de alguma causa de

interesse coletivo. Entretanto, afirmava dispensável que falassem do “alto da torre da dignidade

profissional” – tão vaidosa e inútil como qualquer torre de marfim6.

3 Idem, ibidem. 4 Idem, ibidem. 5 Idem, ibidem. 6 Idem, ibidem.

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Buarque de Holanda via naquele empenho de valorizar a profissão do escritor um alvo

mais político que intelectual. Contudo, reconhecia nele conseqüências valiosas e plausíveis na

medida em que trazia realidades antes indiferentes. Ele, que havia sido representante no Rio de

Janeiro da revista modernista Klaxon, destacava que o movimento de 1922 já tinha caminhado

para esse rumo. Ele considerava que era seguir nessa direção opor ao verso alexandrino ritmos

inumeráveis e à “solenidade parnasiana” o prosaico, o coloquial, e o anedótico. Holanda fazia ver,

porém, que a opressão contra a qual se levantaram aqueles modernistas se constituía não pelo

rigor, mas antes pela “rotina”, não deixando de reconhecer que a generalidade das figuras do

movimento “submeteu-se ao acalanto da palavra mágica”7.

Por esse motivo, considerava que os escritores da “geração de 45” que se contrapunham,

em missão, à “herança de 22”, não eram capazes de perceber que apenas seus “epígonos

secundários” cultivaram atitude meramente negativista – incorrendo no risco de gerar uma “nova

rotina” com sua “liberdade sem rumo”. A demanda exigente desse “grupo de escritores novos” da

década de 1940, segundo Sergio Buarque, deveria precaver-se contra a cega adesão às

“doutrinas salvadoras”, sob pena de aquiescer a algum “código exterior, arbitrário e caprichoso”8.

De modo geral, Buarque de Holanda percebia, naquele momento, a capacidade de

comportar disciplinas intelectuais feitas de “modéstia, inquirição metódica e perseverança”.

Ressaltava, nesse sentido, a influência crescente do ensino universitário, em especial das

faculdades de filosofia, fazendo crescer a desconfiança diante do “autodidatismo” e do

“personalismo exacerbado” – elementos que ele dizia novos na literatura brasileira, “tão amiga das

excitações líricas e das exaltações retóricas”9.

No ano de 1950, em que foi eleito pela segunda vez presidente da seção paulista da

Associação Brasileira dos Escritores, Sergio Buarque voltou a considerar as objurgatórias daquela

nova geração de escritores contra a “herança de 22”. No artigo “Retórica e poesia”10, publicado no

Diário de Notícias, ele voltava a alertar para a docilidade com que eram abraçadas aqui as idéias

de aparência prestigiosa. Segundo dizia, havia uma “vontade insistente” de ultrapassar as formas

literárias mais generalizadas na geração que precedeu aqueles novos escritores, mas não tanto

por um ato de superação, que Buarque de Holanda julgava desejável. Antes, seu triunfo seria o de

uma espécie de “parnasianismo latente”, que prevalecia apesar de aparências exteriores diversas.

Sergio Buarque admitia ser louvável converter em bandeira de um movimento renovador

da poesia brasileira uma campanha contra os “clichês modernistas”. Todavia, entendia como

simples transigência com o “nosso latente parnasianismo” voltar-se contra o prosaísmo

7 Idem, ibidem. 8 Idem, ibidem. 9 Idem, ibidem. 10 Sergio Buarque de Holanda. “Retórica e poesia”. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 1950. In: ob. cit. pp. 165-169.

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modernista. Nessa medida, Buarque de Holanda aconselhava aos partidários das críticas àqueles

de 22 que começassem por uma redefinição precisa do que seriam realmente “o poético e o

prosaico”. Afinal, dizia ele, o prosaísmo poderia servir para intensificar a linguagem poética11.

Outro ponto que Sergio Buarque destacava na oposição desses novos poetas de 1945, em

relação a seus predecessores modernistas, era a necessidade que eles assinalavam de voltar

consistentemente às preocupações formais e formalísticas. Na perspectiva do historiador e crítico

paulistano tal exigência de rigor técnico não seria mais que um argumento polêmico para ser

utilizado como “arma de combate”. Ela serviria, assim, apenas para alimentar aquela perspectiva

de exceção do papel do escritor. Portanto, não seria lícito crer que tais exigências fossem geradas

por necessidades ou que significassem mais que “mero artifício ornamental”. Enfim, não tendo

delimitado o que seria o prosaico e o poético, e sem ter definido um código formal ou uma doutrina

estética bem fundada, Sergio Buarque não via naquelas restrições nada além de argumento

polêmico e “retrocesso às posições combatidas pelos modernistas de 22” – ainda que ressaltasse

o perigo de generalizar tais considerações para toda aquela geração de novos poetas12.

Naquele mesmo ano de 1950, Sergio Buarque foi convidado para conferenciar no Clube de

Poesia de São Paulo. Lá reproduziu, em linhas gerais, os argumentos desses dois textos já

publicados no Diário de Notícias. Não parece ocioso frisar que aquelas palavras foram registradas

na Revista de Poesia e Crítica, em 1982, no texto que se intitulou “Literatura e poesia”13 e foi o

último artigo desse escritor dado a público, conforme atesta uma nota em seu final comunicando o

falecimento de Sergio Buarque quando a revista já se encontrava em provas finais.

Buarque de Holanda iniciou sua conferência ironizando o fato de nunca ter escrito sequer

uma linha de poesia, afirmando ser esta “uma singular anomalia entre escritores brasileiros”.

Nesse mesmo tom comentava o prazer que significava para “o espírito poder descansar” nas

rígidas delimitações que costumam antagonizar poesia e crítica como manifestações radicalmente

afastadas14. Ao se referir à poesia naquele encontro Buarque de Holanda lançava-a como uma

espécie de paradigma para a concepção deturpada do escritor e do ato da escrita, que pretendia

denunciar.

Sergio Buarque destacava que, para os surrealistas, o “genuíno poeta” dispensava

“qualquer colaboração da inteligência discriminadora e discursiva”. Não admitindo, portanto, a

intrusão da crítica, da razão, do discurso e das abstrações intelectuais na elaboração poética, os

surrealistas não realizariam mais do que as pretensões do romantismo “em suas expressões mais

típicas”. Quer dizer, apenas intencionavam realizar a poesia em sua “essência misteriosa e única”,

11 Idem, ibidem. 12 Idem, ibidem. 13 Sergio Buarque de Holanda. “Literatura e poesia”. Revista de Poesia e Crítica. Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Ano VI, no 8, setembro de 1982. pp. 2-12. 14 Idem, ibidem.

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valorizando a “espontaneidade criadora”, a “sagrada inspiração” e o “transe divino”. O poeta,

então, se descolaria do mundo exterior, não vendo mais com os olhos, mas apesar deles15.

A oposição entre as duas espécies literárias, poesia e crítica, procedia, segundo Holanda,

de uma simplificação didática, correspondente ao “intelectualismo exacerbado” do século vinte,

em que as idéias suplantavam os fatos e os conceitos formados da realidade a substituíam.

Sergio Buarque era categórico, “na vida cotidiana, nada existe isolado, nada tem por si só

significação plena”, não havendo lugar para os “quadros fixos, imutáveis e irredutíveis” –

“apanágio do mundo das idéias”16.

O primeiro passo da crítica confundir-se-ia, dizia Buarque de Holanda, na elaboração

poética. Apenas os passos seguintes seriam a manifestação que a poesia iria encontrar no público

ledor. Nesse sentido, a “grande função” da crítica estaria na parcela decisiva com que poderia

colaborar para aquele esforço de recriação, dilatando no tempo e no espaço “um elemento vital do

próprio processo de elaboração poética”. Nessa medida, a crítica poderia ser dita

“verdadeiramente criadora”17.

Com isso em mente, Sergio Buarque voltava a destacar o papel dos modernistas de 22,

em sua luta contra a “rotina” na reprodução de padrões poéticos sem deixar de apontar o risco de

uma “nova rotina” gerada pela liberdade sem peias – talvez, mais perigosa porque “irresponsável”.

Em contraponto, fazia ver como os poetas da geração de 45 valorizavam o “labor constante e

ativo” para a constituição da “verdadeira arte”, preocupando-se com o formalismo e os problemas

de técnica18.

Contudo, como fizera nos artigos já comentados, Holanda denunciava a fonte dessas

preocupações em impulso exterior e a prevalência de um “parnasianismo latente”, voltando a

insistir que as críticas dos novos poetas contra o prosaísmo daqueles de 22 não passavam de

artifício ornamental. Ele voltava a exigir dessa nova geração um código formal, ou, uma doutrina

estética bem fundada, não para contribuir com a poesia propriamente, porém, pelo menos, em

“benefício da própria coerência”19.

Ao encerrar suas reflexões, Buarque de Holanda referia-se, mais uma vez, à

“superestimação” da atividade literária e poética apresentada como fim exclusivo do “verdadeiro

autor”, reproduzindo suas críticas sobre a dignidade profissional do escritor traduzida em

patriciado ou em milícia. Ele finalizava sua palestra reiterando a necessidade de se afastarem do

15 Idem, ibidem. 16 Idem, ibidem. 17 Idem, ibidem. 18 Idem, ibidem. 19 Idem, ibidem.

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“ideal negativista”, dos “delírios da sagrada liberdade” e da “ignorância criadora”, afirmando

“mister uma vontade vigilante e um obstinado rigor” para dominar o inesperado20.

Note-se que, se em seu texto “Originalidade literária” a atividade intelectual ainda não era

compreendida como sendo forma de inserção social de um grupo específico – mas, como atributo

genérico de um “povo” –, a temática romântica e a necessidade de se ater às demandas e

manifestações nacionais próprias já marcavam uma posição fundante para a possibilidade de

estabelecer um pensamento crítico não apenas no nível da produção literária, mas também

cultural.

Com a apresentação dessas idéias de Sergio Buarque de Holanda sobre a atividade

intelectual pretendo sugerir que sua perspectiva sobre o tema é indispensável para compreender

muitas de suas interpretações sobre a formação social, política e cultural do Brasil. Na verdade,

crucial, no sentido, de ser um ponto de entrecruzamento de muitas das clivagens de seu

pensamento historiográfico.

Em uma entrevista concedida por Sergio Buarque e seu companheiro Prudente de Moraes,

neto, ao Correio da Manhã, em junho de 1925, eles enfatizavam: “modernismo não é escola: é um

estado de espírito”21 – e sobre a obra de arte: “não exprime nunca uma solução, mas

simplesmente uma atitude”. Eis o ponto. Buarque de Holanda antes de assumir aquilo que se

estabelecia como segurança para as reflexões sobre o Brasil, parecia pretender aprofundamentos

contínuos, pautados pela exploração crítica.

Outro aspecto que merece relevo é o da noção de espírito como referência ao romantismo

em formulação bastante ampla. Buarque de Holanda era cônscio do nascimento da crítica neste

ambiente de reflexão e das suas vastas influências, tanto que reconhecia seus limites, tentando

superá-los em seu próprio pensamento.

O interesse deste artigo se deve também ao valor que imputo à necessidade de explorar a

constituição de um espaço específico para a intervenção social de escritores brasileiros no

período entre as décadas de 1920 e 1940. Afinal, a delimitação de um espaço próprio para esta

intervenção a partir das práticas sociais de produção intelectual de então, parece ter sido

determinante na elaboração de projetos sociais, políticos e culturais para a nação brasileira, além

de dar azo ao processo mesmo de profissionalização desses escritores. Nesse sentido, sugiro a

importância de contemplar como nexos identitários entre escritores, dos mais diversos matizes

ideológicos, a ancoragem no romantismo, como temática generalizada e fonte de critérios críticos,

e um modo operante de suas relações que designo como estrutura de querelas, referente aos

seus embates intelectuais que moldam uma rede cada vez mais complexa de difusão de idéias.

20 Idem, ibidem. 21 Prudente de Moraes, neto e Sergio Buarque de Holanda. “Modernismo não é escola, é um estado de espírito”. Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1925. s/p.

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Proponho que a noção de intelectual possa considerar todos aqueles que lêem, escrevem e

difundem textos sobre o moderno, o nacional e o popular no Brasil de então. Enfim, atenho-me à

convicção de que, na desigualdade da sociedade brasileira, um dos índices de clivagem marcante

é a possibilidade de realizar o ato da leitura, que determina a exceção de um número diminuto de

pessoas constituintes da entidade nacional. Exceção esta ampliada quando se leva em conta a

utilização da escrita como manifestação expressiva e que se torna ainda mais intensa, e

definitivamente restritiva, ao se considerar o acesso à difusão de textos.

Sobre o autor: Doutor em História Social da Cultura, pelo Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas, tendo defendido a tese “Outros Lados: Sergio Buarque de Holanda, crítica literária, história e política (1920-1940)”, sob a orientação da Professora Doutora Silvia Hunold Lara. Atualmente, atua como professor substituto no Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, ministrando as disciplinas Teoria da História e Historiografia Brasileira. E-mail: [email protected].

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GATOS E MASSACRES SIMBÓLICOS ou algumas considerações sobre ab(usos) antropológicos na história

Robert Daibert Jr.

Resumo: Este texto procura refletir sobre os limites disciplinares entre a história e antropologia. Os métodos compartilhados levaram a um importante avanço nos dois campos de conhecimento, bem como produziram algumas distorções e excessos que, no limite poderiam levar à perda gradual de suas identidades. Palavras-chave: 1. História; 2. Antropologia.

Abstract: This text tries to discuss about the disciplinary frontier between History and Anthropology. The shared methods led these areas to a great progress in both knowledge fields as well as produced some distortions and excesses that could take a gradual loss in their identities. Keywords: 1. History; 2. Anthropology.

A busca de parceria com disciplinas vizinhas tem sido constante nos trabalhos de inúmeros

historiadores ao longo do tempo. Em especial o diálogo da História com a Antropologia tem se

mostrado persistente. Marc Bloch e Lucien Febvre, os chamados pais fundadores dos Annales,

aplicaram suas leituras de Frazer e Lévy-Brulh ao escreverem sobre a mentalidade medieval e

seiscentista. Braudel fundamentou sua discussão sobre fronteiras e intercâmbios culturais a partir

da obra de Marcel Mauss. Já na década de sessenta, Georges Duby, valeu-se de Mauss e

Malinowiski, buscando entender a História econômica da Baixa Idade Média. Por caminhos

distintos e com demandas variadas, muitos historiadores desenvolveram um diálogo em que

expressavam o desejo de sobrevoar a disciplina vizinha, na busca de novos conceitos. 1

Entretanto, nas últimas décadas, esta procura tem assumido grandes proporções e suscitado

muitos debates, sobretudo no que diz respeito à aproximação da História com a Antropologia

Cultural ou Simbólica. Sem a pretensão de esgotar as atuais discussões em torno deste

intercâmbio, buscaremos delas nos aproximar detendo-nos numa discussão específica relativa às

divergências em torno da aplicação das noções de símbolo na História. Questões que ganharam

maior repercussão a partir do debate travado entre os historiadores Robert Darnton e Roger

Chartier.

Na introdução de O Grande massacre dos gatos, Darnton apresenta-se como um

historiador etnográfico. Diferencia-se do historiador das idéias por não estudar a filiação do

pensamento formal e sim a maneira como as pessoas comuns entendiam o mundo. “Tenta

descobrir sua cosmologia, como organizavam a realidade em suas mentes e a expressavam em

seu comportamento Não tenta transformar em filósofo o homem comum, mas ver como a vida

comum exigia uma estratégia.” Para Darnton, as pessoas comuns não tiram conclusões lógicas

1 BURKE, Peter. A escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1991, p. 94.

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como os filósofos em vez disso “pensam com coisas, ou com qualquer material que sua cultura

lhes ponha à disposição, como histórias e cerimônias.” 2 Darnton define sua pesquisa como uma

História Cultural, na medida em que aborda “nossa própria civilização da mesma maneira como os

antropólogos estudam as culturas exóticas.” 3 Caberia, portanto, a esta História de tendência

etnográfica analisar o documento onde ele se mostra mais opaco. Isto é, a estranheza causada

por um provérbio antigo, um ritual ou um poema pode constituir-se num indício de que se está

descobrindo um sistema de significados portador de uma visão de mundo pouco familiar. É esta a

maneira pela qual deve-se ler um ritual, uma cidade, um conto popular ou um texto filosófico:

buscando “o significado inscrito pelos contemporâneos no que quer que sobreviva de sua visão de

mundo.” 4 Para se ter acesso a um universo mental estranho deve-se aplicar o método

antropológico da História, começando com a

premissa de que a expressão individual ocorre dentro de um idioma geral, de que aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura. Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro ... 5

De acordo com Robert Darnton as culturas formulam maneiras de pensar levando-nos a

operar dentro de coações culturais e a nos deparar com a estrutura externa da significação. 6 No

cerne de tais proposições é que podemos localizar a influência de Clifford Geertz, antropólogo que

inspira Darnton através de sua concepção semiótica de cultura, entendida como “um padrão de

significados transmitidos, incorporados em símbolos, um sistema de conceitos herdados

expressos em forma simbólica por meio dos quais os homens comunicam, perpetuam e

desenvolvem seu conhecimento sobre as atitudes em relação à vida”. 7 O símbolo, por sua vez, é

definido por Geertz como “qualquer objeto, ato, evento, ou relação que sirva como veículo para

uma concepção.” Tais proposições são tomadas por Darnton como um instrumental que pode

perfeitamente ser aplicado à pesquisa histórica. O contato com estes referenciais o leva a

acreditar na existência de uma gramática geral que seria partilhada por todos como a linguagem

que falamos. Isto é, os símbolos estariam disponíveis “como o ar que respiramos”. 8 É assim que,

para interpretar o massacre de gatos executados por operários de uma gráfica parisiense no

século XVIII, Darnton faz uma longa investida em documentos esparsos. Para identificar o

2 DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2 ed. Rio de Janeiro : Graal, 1988, p. XIV. 3 Ibidem, p. XIII. 4 Ibidem, p. XV-XVI. 5 Ibidem, p. XVII. 6 Ibidem, p. XVII-XVIII. 7 GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. 8 DARNTON, Robert. Op. Cit, p. 333.

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significado que aqueles tipógrafos atribuíam aos gatos, faz uma incursão em contos populares,

provérbios, lendas, superstições e outras fontes que vão da Idade Média ao século XVIII. Trata da

simbologia dos gatos de modo extremamente amplo e pouco preciso, identificando uma

continuidade estática nos significados encontrados. Mas como afirmar que os tipógrafos que

haviam se deliciado daquele cruento massacre na Rua Saint-Séverin teriam à sua disposição uma

atmosfera de costumes e crenças portadoras de tais significados? Ou ainda, como estar certo da

persistência daquela simbologia ao longo do tempo?

Um questionamento sistematizado a respeito do trabalho de Darnton e seu relacionamento

com a Antropologia Simbólica foi publicado por Roger Chartier no Journal of Modern History. 9

Chartier afirma ser arriscado falar que os símbolos são “compartilhados com o ar que respiramos”.

Alerta, ao contrário, para a instabilidade e mobilidade de suas significações. Além de equivocas,

elas “não são sempre facilmente decifráveis e nem sempre bem decifradas.” O autor questiona

ainda a possibilidade de que as formas simbólicas sejam organizadas em um sistema. Tal fato

exigiria uma coerência e uma interdependência entre elas, e consequentemente a existência de

um universo simbólico compartilhado e unificado. Chartier considera duvidosa a existência de

uma cultura simbólica que poderia englobar as descontinuidades de culturas particulares

marcadas por diferenças de idade, sexo, status, profissão, religião, residência, educação e etc.

Em sua concepção, seria improvável que uma cultura simbólica unificada e estática pudesse

ultrapassar as fragmentações provenientes das múltiplas clivagens sociais e propor um sistema

de símbolos aceitos por todos. 10

Chartier considera a noção de símbolo sustentada por Darnton extremamente ampla e não

operacional. E, recorrendo ao Dicionário Furetière de 1727, busca a definição de símbolo tal como

entendiam os contemporâneos. Neste dicionário, a palavra é definida como “signo, tipo de

emblema ou representação de alguma coisa moral, pelas imagens ou as propriedades das coisas

naturais. Pintura ou imagem que sirva para designar algo, seja por meio de pintura ou escultura,

ou por discurso. O leão é o símbolo do valor; a bola, o da inconstância; o pelicano o do eterno

amor.” 11 Para Chartier

o símbolo é um signo, mas um signo específico e particular, que implica uma relação de representação – por exemplo, a representação de uma abstração por uma figura. Para ser qualificada como ‘simbólica’, a relação entre o signo e o que o torna conhecido para nós, que é invisível, supõe que este signo é colocado no lugar da coisa representada, que ele seja representante. (...) Ainda que símbolos sejam signos, contudo, nem todos os signos

9 CHARTIER, Roger. “Text, symbols and frenchness” Journal of Modern History, n. 57, 1985, pp. 682-695. Utilizamos a tradução em português publicada em História: Questões e debates. Curitiba, v. 13, n. 24, jul-dez. 1996, p. 5-27. 10 CHARTIER, Roger. Textos, símbolos e o espírito francês. In: História: Questões e debates. Curitiba, v. 13, n. 24, jul-dez. 1996, p. 18. 11 Ibidem, p. 16.

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são símbolos, na medida em que a relação que os liga às coisas das quais eles são a ‘indicação’ ou a ‘marca’ não é necessariamente uma representação. 12

De acordo com Roger Chartier, as diferentes condições de uso de um signo

acompanhadas por diferentes compreensões sustentadas pelos grupos é que podem ou não

investi-lo com uma função simbólica. Os símbolos “necessariamente exigem uma relação de

representação entre o signo visível e o referente significado.” 13 E, neste sentido, aponta para

necessidade de se discernir a carga semântica do vocabulário dos artesãos parisienses no início

do século XVIII. Questiona que esta cultura específica estivesse jogando com um repertório

completo de crenças, ritos e comportamentos que os permitisse transformar o massacre em uma

encenação que conjugava três temas cerimoniais e simbólicos como a feitiçaria, um charivari e um

julgamento de farsa carnavalesca. As imagens e idéias não provocavam necessariamente as

mesmas associações ao longo dos séculos, uma vez que “as palavras são tão móveis quanto os

símbolos e são carregadas de significados em graus diferenciados.” Deve-se considerar a

polissemia dos símbolos entre os séculos e não encará-los como portadores de um significado

único. Deste modo, os trabalhadores da gráfica não poderiam organizar sua cultura a partir de um

repertório simbólico documentado entre os séculos e em vários lugares. 14 O historiador

interessado pelos aspectos ou elementos simbólicos de uma sociedade deve atentar para as

convenções e interpretações próprias de um tempo ou de uma comunidade, conscientizando-se

da heterogeneidade, historicidade e descontinuidade dos funcionamentos simbólicos. 15

Em sua resposta ao texto de Roger Chartier, publicada no mesmo Journal of Modern

History, 16 Darnton defende-se dizendo que nem todos os operários extraíram o mesmo o sentido

do episódio. 17 Afirma que o massacre dos gatos deve ser visto como a encenação de uma peça:

“podia ser interpretada de maneira diferentes pelas pessoas diferentes, atores e igualmente

espectadores.” A princípio, Darnton concorda com Chartier a respeito da polissemia dos

símbolos, mas ao fim, acaba por reafirmar sua posição anterior. Após considerar a multivocidade

dos rituais, defende a interferência de restrições internas. Ou seja, modelos estabelecidos de

comportamento que impõem um leque dado de sentidos. Cabe ao historiador “explorar esse leque

12 Ibidem, p. 16-17. 13 Ibidem, p. 17-18. 14 Ibidem, p. 18 e 24. 15 CHARTIER, Roger. Pouvoirs et limites de la représentations: sour l’oeuvre de Louis Marin. In: Annales: histoire et sciences sociales. 49e année, n.2. Paris: École des Hautes Études en Sciences sociales, novembre-décembre, 1994, p.415. 16 DARNTON, Robert. “The symbolic element in History” . Journal of Modern History, n. 58, 1986, pp.218-234. Utilizamos a tradução em português, publicada em DARNTON, Robert. História e antropologia. In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, pp. 284-303. 17 O debate entre Chartier e Darnton teve desdobramentos posteriores através das intervenções de Dominick La Capra e Philip Benedict. Mas Infelizmente não conseguimos localizar tais textos que poderiam enriquecer em muito a presente reflexão.

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e mapeá-lo com uma certa precisão, mesmo que não tenha como saber exatamente quais os

usos feitos dele.” 18

Darnton coloca os símbolos como dados e captados de uma continuidade cultural mas não

se preocupa com o modo pelo qual um significado é construído. Como um determinado símbolo é

apropriado e resignificado por um determinado grupo. Antes, entende que as conexões feitas

pelos operários “fazem parte de um sistema de relações ou (...) de uma estrutura. A estrutura dá o

quadro para cada narrativa e se mantém constante, ao passo que os detalhes variam em cada

relato.”19 Tal concepção, parece ser fruto de uma aplicação problemática de noções

antropológicas tomadas de Clifford Geertz, a quem Darnton agradece por estar aprendendo a

maior parte de tudo que sabe sobre Antropologia. 20

Aproximando-se de uma interpretação hermenêutica, Geertz, diferencia-se de Lévi-

Strauss por entender que “os símbolos e os significados são partilhados pelos atores (os

membros do sistema cultural) entre eles, mas não dentro deles. São mais públicos que privados.”

Assim, apreender “uma cultura é portanto estudar um código de símbolos partilhados pelos

membros dessa cultura” 21 Entretanto, apesar de rezar em uma cartilha de diferente tradição, 22

Geertz acaba por aproximar-se de uma análise cultural tão estática quanto qualquer

estruturalismo, na medida em que valoriza as “teias, não o ato de tecer; a cultura, não a história; o

texto, não o processo de textualização (...).” 23

Em Geertz, o “estudo do significado fixado é separado dos processos sociais que o fixam.” 24 E é justamente esta uma das mais problemáticas concepções tomadas por Darnton. Segundo

Giovanni Levi, o livro O grande massacre dos Gatos perde o sentido do que seja relevante.

Pequenos episódios tornam-se aparentemente importantes porque já conhecemos o esquema global no qual inseri-los e lê-los: a pesquisa não encontra nada que já não conheça, ou confirma debilmente e de modo supérfluo. (...) As relações entre mestres e trabalhadores, o simbolismo dos gatos, a visão de mundo do povo e da burguesia estão dados, contexto imóvel que não é modificado; aquilo que o artigo explica é então a morte violenta de algum gato, em um quadro já conhecido de cultura carnavalesca e de revolta operária, conhecido através de estudos bem mais importantes e inovadores.

O problema, como se vê, reside na adoção de uma percepção estática no relacionamento

entre estrutura e evento, entre convenções determinadas e ações inventivas. E não na adoção de 18 Ibidem, p. 300. 19 Ibidem. 20 DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa, p. XI. 21 LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p. 64. 22 Enquanto a Antropologia Estrutural de Levi-Strauss nutre uma pretensão à universalidade objetiva, a Antropologia Interpretativista postulada por Geertz adota um ponto de vista e assume uma intersubjetividade. Cf. ECKERT, Cornélia. A antropologia na atualidade. Revista Anos 90: Porto Alegre, n. 2, maio 1994, p. 16. 23 BIERSACK, Aletta. Saber local, História local: Geertz e além. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo : Martins Fontes, 1992, p. 108. 24 LEVI, Giovanni. Os perigos do geertzismo. Tradução de Henrique Espada Rodrigues Lima Filho (UEPa) mimeo, p.4-5.

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instrumentais antropológicos, que em si, podem ser frutíferos quando bem aplicados.

Contemporaneamente, as proposições de Marshall Sahlins têm indicado possibilidades de um

relacionamento proveitoso entre a História e a Antropologia. Ao pensar a relação entre estrutura e

evento em termos dialéticos, este antropólogo tem contribuído de modo especial para um melhor

entendimento deste dilema. Critica o modo pelo qual se tem pensado a cultura no Ocidente

através das oposições entre: estabilidade e mudança, estático e dinâmico, estado e ação, real e

ideológico, história e estrutura. Propõe que a cultura funciona como uma síntese entre estas

categorias, síntese esta que deve ser descoberta.25 Para Sahlins, há uma interação dual entre a

ordem cultural constituída na sociedade e a ordem cultural vivenciada. Afirma que “se por um lado

a cultura é historicamente reproduzida na ação, por outro lado ela é alterada historicamente na

ação.” 26

O debate, levantado em torno das divergências ligadas à aplicação das noções de símbolo

na História, constitui-se um importante espaço para a reflexão de um relacionamento possível mas

delicado entre as disciplinas. Sobretudo se considerarmos o risco de que uma provável integração

poderia levar à perda gradual de suas identidades. Embora tal integração não tenha se efetivado,

um debate difícil e instável permanece aberto. Assim, as condições de possibilidade de um

intercâmbio devem assegurar ‘diferenças de potenciais’ que permitam uma circulação baseada

na autonomia e nas diferenças dos procedimentos. 27 Não se quer aqui condenar o diálogo entre

disciplinas, que podem enriquecer-se mutuamente em profícuos debates, mas alertar para os

problemas do uso irrestrito de noções emprestadas sem maiores cuidados. Afinal de contas, já

reza o provérbio inscrito provavelmente na longuíssima duração: Devagar com o andor que o

santo é de barro! Clio certamente agradece.

Bibliografia

BIERSACK, Aletta. Saber local, História local: Geertz e além. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo : Martins Fontes, 1992.

BOUTIER, Jean. & JULIA, Dominique (orgs.) Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Editora FGV, 1998.

BURKE, Peter. A escola dos Annales: a revolução francesa da historiografia. São Paulo: Editora da UNESP, 1991.

CHARTIER, Roger. Textos, símbolos e o espírito francês. In: História: Questões e debates. Curitiba, v. 13, n. 24, jul-dez. 1996, p. 5-27.

25 SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990, pp. 179-180. 26 Ibidem. pp.7 e 10. 27 REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: uma confrontação instável. In: BOUTIER, Jean. & JULIA, Dominique (orgs.) Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Editora FGV, 1998, p. 87.

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CHARTIER, Roger. Pouvoirs et limites de la représentations: sour l’oeuvre de Louis Marin. In: Annales: histoire et sciences sociales. 49e année, n.2. Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales, novembre-décembre, 1994, pp. 407-418.

DARNTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

---------------. História e antropologia. In: O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

ECKERT, Cornélia. A antropologia na atualidade. Revista Anos 90: Porto Alegre, n. 2, maio 1994. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989. HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo : Martins Fontes, 1992. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. LEVI, Giovanni. Os perigos do geertzismo. Tradução de Henrique Espada Rodrigues Lima Filho (UEPa)

mimeo, p. 4-5. REVEL, Jacques. História e Ciências Sociais: uma confrontação instável. In: BOUTIER, Jean. & JULIA,

Dominique (orgs.) Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ/Editora FGV, 1998.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

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Iniciação científica:

A CIÊNCIA NA CONSOLIDAÇÃO POLÍTICA DO ESTADO IMPERIAL DO BRASIL

o Imperial Observatório e o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro

Márcio de Paiva Delgado Universidade Federal de Juiz de Fora

Resumo: O objetivo deste texto é identificar no processo de formação e de legitimação do Estado Imperial Brasileiro a contribuição das ciências e suas instituições de pesquisa como peças importantes da propaganda política, já que o Positivismo e o Cientificismo garantiram o espaço privilegiado para as ciências valendo-se de instrumentos como a política. Escolhemos duas instituições cientificas, fundadas nas primeiras décadas do Império para analisarmos seu papel nessa construção “publicitária”: “Observatório Imperial” de 1827 e o “Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro” de 1938. Palavras-chave: 1. Estado Imperial; 2. Positivismo; 3. Cientificismo; 4. Observatório Imperial; 5. Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Abstract: The purpose of this paper is to identify the contribution of the sciences and institute of research in the formation process and the legitimacy of the Brazilian Imperial State as an important part of the political advertising. Since the Positivism and Scientificism assured a privileged space among the sciences through political instruments. In this article, we choose two scientific institutions founded during early Brazilian Empire: the Imperial Observatory (1827) and Brazilian Historic and Geographic Institute (1838). Keywords: 1. Brazilian Imperial State; 2. Positivism; 3. Scientificism; 4. Imperial Observatory; 5. Brazilian Historic and Geographic Institute

Introdução1

O mundo ocidental liderado pelos EUA, até meados dos anos 60 do século XX, assistia

assombrado aquilo que para eles, naquela situação, era a supremacia do bloco comunista

representado pela URSS.

A “vitória” na Corrida Espacial, até aquele momento, pelos russos com seus satélites e

seus cosmonautas, desfilava pelo mundo como a “prova” de que o comunismo era capaz de gerar

uma sociedade melhor e mais poderosa do que aquela do mundo capitalista. O equilíbrio de poder

que havia sido configurado, no pós-Segunda Guerra e em 1949 quando a URSS conseguiria

construir sua primeira arma atômica, estava sendo quebrado, mas não por fatores bélicos,

territoriais ou explicitamente econômicos. O fator de desequilíbrio era a ciência.

1 Trabalho de avaliação da disciplina “Fontes Historiográficas” do Curso de História da UFJF no segundo semestre de

2002.

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A ciência não era – e nunca foi – apenas encarada como uma forma de desenvolver

tecnologicamente processos de produção e de manutenção e melhoria da vida da sociedade

industrial do pós-guerra. A ciência, neste caso, representada na prática pelos avanços

tecnológicos, era uma poderosa arma de “propaganda” dos regimes beligerantes. O célebre

astrofísico da NASA, Carl Sagan, profundo defensor de pesquisas para o projeto espacial,

reclamava em entrevistas em sua célebre série de divulgação científica para TV chamada

COSMOS, que graças à corrida propagandista da Guerra Fria utilizando a ciência como parte da

estratégia, acabou abreviando a chegada do homem à Lua por mais de duas décadas, com pouca

aplicação prática, custos exorbitantes e, portanto, com prejuízos à “ciência pura”. Segundo Sagan,

a pressa em mostrar resultados para serem utilizados em propaganda acabou por gastar bilhões

de dólares (de ambos os lados) de forma “irracional” e com um resultado prático ínfimo para o

avanço da ciência aeroespacial e biosférica.

Utilizamos o exemplo bem facilmente identificado como o da Guerra Fria no século XX

para constatar que a ciência, quase sempre financiada diretamente pelo poder Estatal, nem

sempre era fomentada em virtude de seu caráter prático e teórico da chamada “Ciência Pura”. As

ferramentas de propaganda para um regime político, que engloba desde os econômicos, sociais,

culturais e bélicos (este intimamente ligados com a tecnologia), também contavam com as

ciências para contribuir para a construção de uma imagem, tanto no plano externo quanto no

interno, que o consolidasse e que ajudasse a o legitimar.

Apresentadas tais considerações iniciais, nosso intuito, portanto, apesar de termos

começados este artigo nos referindo ao século XX e no plano internacional, é voltarmos a linha no

tempo para o século XIX e nossos olhos para o jovem e independente Brasil Imperial.

Procuraremos identificar que no processo de formação e de legitimação do Estado Imperial

Brasileiro, as ciências e suas instituições de pesquisa também foram peças importantes como

forma de propaganda política, já que o Positivismo e o Cientificismo, por sua vez, garantiram o

espaço privilegiado para as Ciências valendo-se de outros instrumentos como a política.2

Para tal objetivo, escolhemos duas instituições cientificas, fundadas nas primeiras décadas

do Império para analisarmos seu papel nesse “projeto publicitário”: o Observatório Imperial

institucionalizado em 1827 e o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro – IHGB – criado em 1938.

Ambos, fundados em momentos distintos da Coroa de Bragança no Brasil, mas intimamente

ligados a uma construção de um discurso conveniente para a consolidação política do Regime

Monárquico no Brasil, tanto internamente quando externamente. Portanto, nesta abordagem,

iremos tratar da importância da ciência como ferramenta política e observaremos que as duas

2 FIGUERÔA, Silvia F. de M. “Para pensar as vidas de nossos cientistas tropicais”. In: Ciência, civilização e império nos

trópicos. Org. HEIZER, Alda & VIDEIRA, Antônio Augusto Passos. Rio de Janeiro: Access, 2000, p. 237.

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instituições escolhidas procuravam, dentro de suas características metodológicas e alcance

prático, representar e construir um novo país reconhecido tanto interno, como é mais fortemente o

caso do IHGB; quanto externamente em relação às nações civilizadas européias (e ainda a

educação e formação de uma elite nacional), como foi caso mais marcante do Imperial

Observatório no Rio de Janeiro.

Além da concepção política da aplicabilidade da ciência, partimos da historiografia

produzida nos últimos vinte anos no Brasil. Nesta, o período Imperial passou a ser reconsiderado

em sua importância e em suas especificidades e não apenas relegado ao “conjunto do atraso” do

período Colonial, como era feito através da historiografia dos anos 60 e 70 do século XX; e de que

a ciência é parte da cultura de uma sociedade como qualquer outra manifestação3. A obra mais

tradicional acerca da História das Ciências no Brasil data de 19554 e trata a produção científica no

Brasil de forma irrelevante no século XIX considerando apenas a partir de 1930, quando

aparecem as primeiras Universidades no Brasil. Entretanto, ao desvalorizar a produção cientifica

no Império, o mesmo trabalho supervaloriza a criação das inúmeras instituições científicas no

Brasil através do esforço e do patrocínio do Estado.

Portanto, refutando este paradoxo, assim como assinala Maria Amélia Dantes5, partiremos

de uma concepção mais modernizadora e menos retrógrada do governo brasileiro. Durante o

Império em relação às ciências e sua aplicabilidade – como retratado no importante trabalho de

Ilmar de Matos, com o livro “O Tempo Saquarema” – houve uma forte difusão pelo território

nacional de valores das nações civilizadas6. Através disto, mostraremos também que, apesar do

aparentemente interesse “insólito” do Imperador D. Pedro II em relação às ciências, havia uma

elite nacional numerosa que valorizava, participava e ajudava a patrocinar tais instituições.7

As instituições científicas na primeira metade do século XIX no Brasil

O século XIX, segundo David Knight, foi o “Século das Ciências”, onde a ciência passou a

ser “assunto comum entre homens bem educados”.8 O mundo “civilizado europeu” do século XIX,

fruto do empirismo do século XVII aliado ao Iluminismo do século XVIII, produziu transformações

3 DANTES, Maria Amélia M. “As Instituições Imperiais na Historiografia das Ciências no Brasil”. In: Ciência, civilização e

império nos trópicos. Op. Cit., p. 243. 4 AZEVEDO, Fernando de. As Ciências no Brasil. Edições Melhoramentos, 1955, vol. 1e 2. 5 DANTES, Maria Amélia M. Op. Cit., p. 225-226. 6 MATTOS, Ilmar. O Tempo Saquarema. São Paulo: HUCITEC, 1987. 7 DANTES, Maria Amélia M. Op. Cit., p. 227. GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos”.

In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1. 1988. 8 SCHAWRCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São

Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 29.

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na política, na sociedade e nos modos de produção que transformariam a “Ciência” como um fator

primordial para qualquer nação atingir o grau de desenvolvimento econômico e social tido como

ideal.

Seja por incentivo direto do Estado ou por iniciativas privadas garantidas pelo governo de

seu país, inúmeras nações se engajaram no processo de “modernização” da sociedade e da

econômica através da produção científica; do desenvolvimento dos direitos do cidadão e de seu

papel político; e também a sua expansão territorial sob a forma de áreas de influência em países

“periféricos”. Portanto, segundo os fins de estudo deste artigo, para um país se constituir como

nação soberana e capaz de prover o bem estar de seus cidadãos – ou parte daqueles

interessados –, uma das principais ferramentas políticas era a ciência, tanto por seu caráter

prático quanto por seu ideal de modernidade.

Desde seus tempos de Colônia sob o domínio de Portugal, o Brasil era um dos principais

destinos de pesquisadores naturalistas e viajantes vindos da Europa. Com a independência, o

novo governo continuaria sua política de abrir as portas do Brasil à comunidade científica

européia9. Em virtude da exuberante fauna, flora e geografia brasileira, eram produzidos e

publicados na Europa inúmeros trabalhos provenientes de pesquisas científicas feitas por

viajantes, botânicos, químicos, geólogos, ornitólogos e zoófilos em geral. Era importante para o

novo governo “criar uma tradição” científica no Brasil como forma de ajudar a inserir o país nos

laços científicos europeus. Apesar dos primeiros trabalhos nestes ramos terem sido produzidos

por estrangeiros, a criação de inúmeros institutos educacionais e científicos nas primeiras

décadas do Império mostra que a constituição de uma prática científica nacional era fator

importante para a formação do país.

O século XIX foi palco também o processo de “cientifização” de diversos ramos de

atividade especulativa10, dentre ele as ciências naturais, a ciências físicas e matemáticas e

inclusive a história11. O Brasil, apesar da realidade monárquica, escravocrata e conservadora, não

ficou totalmente alheio a este processo. Dentre as inúmeras instituições científicas e de educação

que foram criadas na primeira metade do século XIX destacaremos neste artigo o Imperial

Observatório e o IHGB, ambos na Corte.

9 DOMINGUES, Heloisa M. Bertol. “Viagens científicas: descobrimentos e colonização do Brasil no século XIX”. In:

Ciência, civilização e império nos trópicos. Op. Cit., p. 56-57. 10 GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. “Para reescrever o passado como História”. In: Ciência, civilização e império nos

trópicos. Op. Cit., p. 1. 11 IDEM p. 2.

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Inaugurando um novo império – o imperial observatório do Rio de Janeiro

Em dezembro de 1822, o agente diplomático da Áustria no Brasil escrevia em um ofício a

seu governo que “tudo está por fazer. Não há Constituição, códigos legais, sistemas de educação;

nada existe exceto uma soberania reconhecida e coroada”.12 Fica claro, portanto, que faltavam

ainda três pontos fundamentais para a construção do novo Império: o reconhecimento

internacional; a manutenção da unidade territorial em torno do governo do Rio de Janeiro e a

construção de uma identidade brasileira. O reconhecimento da independência seria conquistado

diplomaticamente nos anos seguintes na Europa e na América do Norte graças, em grande parte,

a pressão inglesa junto a Portugal e sua mediação junto à negociação de uma indenização que o

Brasil deveria pagar à antiga Metrópole.13 Porém, a discussão de uma definição da identidade

nacional foi bastante debatida durante os anos da Regência, depois da abdicação de D. Pedro I

em 1831, e será tratada posteriormente neste artigo.

O Imperial Observatório foi criado por decreto de D. Pedro I em 15 de outubro de 182714.

Entre suas finalidades estava a orientação e estudos geográficos do território brasileiro, como a

delimitação das fronteiras; orientar estudos geodésicos; e o ensino da navegação15 para a Escola

Militar e “das suas vantagens em se ter uma Instituição de pesquisa astronômica no Brasil

naquele momento”.16 Somente com a Proclamação da República, em 1889, o Imperial

Observatório do Rio de Janeiro passou a se denominar Observatório Nacional, cujo nome

permanece até hoje.

Pode-se perceber que, além dos objetivos práticos das pesquisas que seriam produzidas

pela nova instituição e pelo caráter de formação técnica da Escola Militar, havia também uma

tentativa de reconhecimento do Brasil, não apenas no campo diplomático e econômico, mas

também como uma nação moderna, civilizadora e herdeira da civilização Européia apesar da

mácula da escravidão. O Imperial Observatório seria o segundo observatório criado no Hemisfério

Sul, sendo que o primeiro, construído na Austrália em 1821, era parte do Império Britânico.

Portanto, cabe mencionar a importância política e científica para um jovem país monarca na

América do Sul, cercado por “repúblicas caóticas”.17 Porém, apesar das expedições patrocinadas

12 NEVES, Lúcia Maria Bastas P. & MACHADO, Humberto Fernandez. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova

Fronteira, 2001, p. 101. 13 IDEM, p.102-104. 14 No portal oficial do Observatório Nacional se encontra uma cópia digital do documento assinado por D. Pedro I.

Disponível em: http://www.on.br/institucional /portuguese/criaon1.html. Acesso em 03/01/03 15 O conhecimento das costas e das bacias hidrográficas no Brasil, até fins do século XVIII, era bastante imperfeita,

além de suas fronteiras naturais e políticas com os países vizinhos. AZEVEDO, Fernando de. Op. Cit, p.120. 16 IDEM. 17 AZEVEDO, Fernando de. Op. Cit., p. 121.

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junto com o futuro IHGB, fundado em 1838, as fronteiras ainda demorariam algumas décadas

para serem consideradas consolidadas18.

Todavia não se pode falar do Imperial Observatório e sua importância política e científica

sem remetermos ao seu principal entusiasta dentro do governo: o próprio Imperador D. Pedro II.

Em seu famoso trabalho “As Barbas do Imperador” 19, a antropóloga Lílian Schwarcz faz um

excelente estudo acerca da construção da imagem feita ao redor do Imperador. O monarca era

reconhecido, dentro e fora do país, como um homem profundamente comprometido com as

ciências, as artes e a erudição. “A Ciência sou eu” 20 – referência clara a Luiz XIV – foi uma frase

proferida durante uma seção no IGHB pelo Imperador e que acabou por sintetizar uma

característica marcante de seu reinado. Sabe-se que D. Pedro II mantinha contato estreito com

muitos nomes ilustres da época, como Camille Flamarion e Victor Hugo, com os quais dividia a

paixão pela astronomia. O mesmo fundou bibliotecas, museus, jardins botânicos, observatórios

astronômicos e meteorológicos em várias partes do país, algumas vezes mantendo-os com

recursos pessoais21.

Como já foi dito, o Imperial Observatório do Brasil havia sido criado por decreto em 1827

por D. Pedro I, mas só começara ganhar mais importância vinte anos depois com D. Pedro II

cedendo os próprios instrumentos que utilizava em seu observatório particular na Quinta da Boa

Vista. O Imperador nunca escondeu o desejo de contar com um observatório astronômico

moldado nos mais modernos estabelecimentos existentes na época na Europa. Em Janeiro de

1887 o próprio Imperador faria estimativas do comprimento da cauda de um cometa, como ficou

registrado na revista francesa "L'Astronomie" publicada até hoje.22

Portanto, apesar do entusiasmo do Imperador, o Imperial Observatório só passou a ser

realmente valorizado como instituição científica com a entrada do francês Emmanuel Liais (1870 –

1881) e do belga Luiz Ferdinando Cruls (1881 – 1908) no cargo de Diretores do Observatório.23

Foi graças à exigência de Liais junto ao Imperador, que o Imperial Observatório passou a ser uma

instituição científica de fato. Este observatório passara a desvincular sua subordinação a Escola

Militar – tirando assim seu caráter de formação de oficiais e transformando o em centro de

pesquisa – e também a receber recursos específicos para a compra de equipamentos e

contratação de pessoal24. Quando da sua nomeação, Liais dissera que “era humilhante para o

Império o saber-se que o Chile e a Confederação Argentina possuíam observatórios superiores ao

18 VAINFAS, Ronaldo. Dicionário do Brasil Imperial. São Paulo: Objetiva, 2002, p. 301-302. 19 SCHAWRCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Passim. 20 IDEM, p. 126. 21 COSTA, J. R. V. Astronomia no Brasil. Disponível em: http://www.zenite.nu/index.htm. Acesso em 18/12/2002. 22 IDEM. 23VIDEIRA, Antonio Augusto Passos. “Luis Cruls e a astronomia no Imperial Observatório do Rio de Janeiro 1876-1889”.

In: Ciência, civilização e império nos trópicos. Op. Cit., p. 124. 24 AZEVEDO, Fernando de. Op. Cit., p. 126-127.

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nosso e dirigidos por pessoal eminente”.25 Era, portanto, questão de honra – a palavra

“humilhante” deixa isso bem claro – para o Brasil voltar a ser referência nas ciências astronômicas

do tempo que era o único país da América do Sul a ter um observatório.

Para os efeitos de propaganda política do regime monárquico, foi durante as

administrações de Liais e Cruls que o Observatório atingiria um verdadeiro reconhecimento

internacional e passava a ter uma publicação própria, a Revista do Observatório, editada dentro e

fora do Brasil26. Contando com inúmeros artigos científicos produzidos pelo Observatório no

exterior, o Brasil foi incluído no exclusivo rol de nações modernas comprometidas com a

astronomia e a geodésica. Tais projetos colocaram o Império como membro votante em diversas

conferências mundiais sobre o tema, como por exemplo, a realizada em Washington em 1884

para estabelecer o meridiano de Greenwich como meridiano universal (Brasil e França se

absteram da escolha)27.

Outra participação importante do Brasil junto à comunidade científica européia foi com a

expedição sub-antártica (na cidade de Punta Arenas, no extremo sul do continente) e as Antilhas

em 1882 da ocasião da passagem do planeta Vênus diante do disco solar. Totalmente

patrocinada pelo Tesouro Imperial (num montante de 120 mil contos de réis), a expedição contaria

ainda com dois navios da marinha brasileira – o Parnahyba e o Thala Dan – chefiados por Luiz

Cruls e o Barão de Teffé, respectivamente, e vários cientistas estrangeiros e de pessoal do

Observatório do Rio de Janeiro. O excelente resultado das medições brasileiras foi publicado com

louvor na Europa e com mais acerácea e antecedência do que as outras aferidas pelas demais

expedições realizadas pelos outros países componentes do projeto (Inglaterra e França).28

Consolidando um império – o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro

Em sua época, o dia 7 de abril de 1831 entrou para o rol de “datas cívicas” junto a

historiografia de cunho nacionalista por representar para muitos o começo da “nossa existência

nacional”.29 A abdicação de Dom Pedro I ao trono brasileiro em favor de seu filho, Pedro de

Alcântara, com então apenas cinco anos, acabou por agravar a instabilidade política no Império.

Apesar da relativa tranqüilidade política com o fim da Confederação do Equador em 1825,

a questão da identidade nacional ainda era um sério problema para a consolidação do Brasil como

25 IDEM, p. 128. 26 IDEM, p. 137. 27 IDEM, p. 137. 28 CAPOZOLI, Ulisses. Antártida, a última Terra. São Paulo: Edusp, 1995, p. 22-24. AZEVEDO, Fernando de. Op. Cit.,

p. 132-137. 29 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit. p. 14

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uma nação. Já foi dito várias vezes na historiografia que o Brasil como país nasceu antes da

nação brasileira. O conceito de ser brasileiro não era claramente identificado e o fato da Coroa

ainda pertencer à família de Bragança e ser ocupada por um português criava grandes tensões no

Primeiro Reinado.30

O conjunto de crises orçamentárias e políticas entre o Trono e o Senado; as críticas da

imprensa liberal acerca da perda da Cisplatina em 1828; a ojeriza e a xenofobia dos políticos e

militares exaltados brasileiros frente aos estrangeiros portugueses – ligados a Escola de Coimbra

e comprometidos com um ideal de um Império Luso-Brasileiro – e que resultou em episódios

violentos como a Noite das Garrafadas em 1831; e a questão da sucessão em Portugal em virtude

da morte de D. João VI – que ameaçava a coroação de sua filha, Maria da Glória – criaram um

clima de insatisfação popular que culminaria na sua abdicação.

Com o fim do Primeiro Reinado, começa-se, portanto, o período conhecido na História do

Brasil como a Regência (1831-1840). Durante a conturbada quarta década do século XIX, o

período da Regência foi marcado por inúmeras revoltas por todo o Império31. Refletindo a

instabilidade política e suas especificidades regionais, frutos de uma ampla diversidade cultural e

social, as revoltas eram também reflexos evidentes da questão da identidade e da unidade

nacional. Dentre as várias frentes de ação instituídas pelas elites nacionais conservadoras para

conseguir a unidade do Império, que vão desde a criação da “Guarda Nacional” em 1831; o

projeto centralizador com o “Ato Adicional” de 1840; e até o chamado “Golpe da Maioridade” onde

o adolescente Pedro de Alcântara fora coroado com apenas quinze anos; a criação do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro pode ser facilmente englobada nesse projeto político de

consolidação política do Império.

Seguidor dos ideais iluministas do Institut Historique de Paris32 e influenciado pelo

Romantismo do século XIX, o IHGB, criado em outubro de 1838 através de iniciativa da chamada

Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional fundada em 1827, se propunha – além de “coletar,

organizar e armazenar” documentos referentes à história da ex-colônia – produzir uma história

oficial que justificasse e enaltecesse a Monarquia.33 Era, portanto, uma história teleológica, linear,

sem conflitos, lusófila, enaltecedora do elemento civilizador branco, idealizadora do elemento índio

– influência do romantismo – e desqualificadora do elemento negro, classificando-o como

“obstáculo ao processo de civilização”.34

30 IDEM. 31 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit., p. 622-624. 32 GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. “Nação e Civilização nos Trópicos”. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 1.

1988, p.9. 33 IDEM. Passim. 34 SCHAWRCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Op. Cit., p. 106-113.

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Neste contexto, percebe-se que uma das maiores motivações para a criação desta

instituição – formada em sua grande maioria por membros diretamente ligados ao aparelho do

Estado e de origem portuguesa (na sua primeira geração) e referendados principalmente por

fatores sociais e políticos35 – era justificar e consolidar a Monarquia, e ajudar a construir,

principalmente dentro da elite intelectual brasileira, uma “Identidade Nacional” usando como

veículo uma publicação trimestral de cunho científico: a Revista do IHGB.36 Conhecida como a

“Revista do Instituto”, ela era praticamente voltada para biografia de “grandes vultos” da história

nacional; ensaios acerca da formação política e racial brasileira – valorizando “grandes

acontecimentos” e a colonização portuguesa –; e biografia de seus principais membros e

beneméritos, fazendo assim a reprodução de uma instituição hierarquizada social e politicamente

em sua produção.37

Entretanto, a História não seria a única ferramenta da “ciência do IHGB” para a construção

deste discurso. Seus trabalhos etnológicos, arqueológicos e geográficos, quase sempre

financiados por verbas estatais – em seus primeiros anos de funcionamento, as verbas do

governo significavam cerca de 75% do seu total38 – completavam seu programa de propaganda

do regime através do discurso científico. A questão das fronteiras do Império, tratadas aqui

anteriormente junto à criação do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, ainda nos primeiros

anos de funcionamento do IHGB, era também alvo das pesquisas do instituto que procurava

através da investigação arquivística de antigos tratados na Europa e de expedições geográficas,

delimitar os limites da influência da coroa brasileira.39

Nas décadas seguintes a sua criação, o IHGB, assim como aconteceu ao Imperial

Observatório, tornou-se fruto de um profundo interesse do Imperador D. Pedro II – construído e

conhecido como o “Micenas das Ciências no Brasil” ainda durante seu Reinado. A instituição o

tinha como seu principal membro. D Pedro II era freqüentador assíduo de suas reuniões – sua

freqüência ao Instituto era bem mais percebida do que seus compromissos políticos no Paço

Imperial, provocando críticas por parte da Imprensa da época e de seus adversários políticos40. O

próprio Imperador se tornara também seu maior benemérito41. Percebe-se, portanto, a utilização

de uma instituição cientifica – porém não a única como foi o caso do Imperial Observatório – por

parte da coroa, personificada pelo próprio monarca, uma política de caracterizar o Imperador – e

conseqüentemente o Estado Brasileiro –, como um elemento profundamente vinculado ao ideal de

35 IDEM. 36 IDEM, Ibidem. 37 IDEM, Ibidem. 38 GUIMARÃES, Manoel Luis Salgado. Op. Cit., p. 9. 39 VAINFAS, Ronaldo. Op. Cit., p. 380-381. 40 SCHAWRCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador. Op. Cit., p. 157. 41 __________, O Espetáculo das Raças. Op. Cit., p. 102.

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modernidade e dos avanços no âmbito da ciência seguindo o exemplo das nações européias

procurando criar uma nação civilizada e herdeira do mundo europeu.

Entretanto, não estamos aqui colocando qualquer dúvida sobre a real empatia que o

Imperador nutria pelas ciências e sua importância, mesmo porque as fontes consultadas não

tratam do assunto. O Imperador não foi apenas movido pelos “dividendos” políticos, frutos desta

relação com as “ciências”. Porém, a importância da nossa questão levantada é que tal relação foi

sem dúvida alguma canalizada para o aparelho de propaganda, tanto externa como internamente.

Conclusão

Procuramos identificar neste artigo a utilização da ciência como uma ferramenta de

propaganda para a formação, legitimação e consolidação do Estado Imperial no Brasil.

Identificamos essa política desde seus primeiros anos após a Independência até a sua utilização

por Dom Pedro II como forma de caracterizar a figura do Imperador perante a elite brasileira e o

mundo. Neste quadro, tanto as Instituições de Ciências e Educação - como o Imperial

Observatório e o IHGB - quanto a figura “institucionalizada” no Imperador foram exemplos de

como se construiu uma imagem e um discurso.

A escolha de dois institutos de pesquisa aparentemente diferentes em seu método e objeto de

estudo foi proposital. Tanto o então Imperial Observatório, quanto o Instituto Histórico e

Geográfico Brasileiro, fizeram parte do um projeto Imperial que visava, além de produzir ciência

para a sua aplicação “prática” na constituição e organização do Estado, a criação de um discurso

de propaganda. Tal discurso pode ser analisado em duas formas distintas, mas não excludentes.

A motivação para a criação do Imperial Observatório não foi apenas para a produção de

conhecimento científico, como se poderia esperar de uma instituição de influência iluminista. O

simples fato de se ter um observatório imperial, que se propunha ter os mesmos moldes dos

observatórios da Europa, colocava o Brasil como uma nação “moderna” e civilizatória dentro da

“anarquia de repúblicas” da América Espanhola. As contradições políticas, econômicas e sociais

do Brasil monárquico, agro-exportador e escravista eram colocadas em confronto com uma nação

legítima da tradição européia e moderna em relação à ciência do século XIX. A criação do IHGB,

durante os momentos conturbados das revoltas regenciais, procurava da mesma maneira, criar

um discurso que legitimasse o Estado Imperial Brasileiro para uma elite brasileira, pela

continuidade da herança portuguesa e pelas origens aristocráticas européias.

Portanto, podemos agora também, sob a luz da História, constatar que o projeto político de

unidade através da ciência e educação das elites obteve um grande êxito. É fato de que a porção

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continental territorial se manteve unida sem que o Estado realmente tivesse meios materiais

efetivos para tanto e o Império perdurou até o final do século XIX e se mantém no imaginário de

alguns setores até os dias de hoje no Brasil. Contudo, além do êxito político, grande parte das

instituições científica e de educação criadas no período Imperial obteve êxitos em suas propostas

“práticas”. Verifica-se, ainda hoje, a importância destas instituições, desmentindo a tese de

simples “esvaziamento” que teriam recebido com o advento da República. Podemos apontar o

caso do próprio Observatório Nacional no Rio de Janeiro – que mudo de nome com a República –;

o IHGB; o Colégio D. Pedro II; algumas Academias Militares; e outras de origens mais remotas

como o Jardim Botânico no Rio de Janeiro, o Museu Nacional e a Biblioteca Nacional.

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