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Políca Econômica e Direito Econômico Revista da Fundação Brasileira de Direito Econômico – vol. 3 – nº 1 - 2011 1 FBDE Revista da NÚMERO SSN 2179-3654 Nº 3 2010/2011 3 FUNDAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO ECONÔMICO

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Políti ca Econômica e Direito Econômico

Revista da Fundação Brasileira de Direito Econômico – vol. 3 – nº 1 - 2011 1FBDE

Revista da

NÚMERO

SSN 2179-3654 Nº 32010/2011

3

FUNDAÇÃO BRASILEIRADE DIREITO ECONÔMICO

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AUTOR CORPORATIVO

FUNDAÇÃO BRASILEIRA DE DIREITO ECONÔMICO

CNPJ 16.590.804/0001-28

CONSELHO EDITORIAL

CAMILA BRUNA ZANETTI FABIANO GOMES DE OLIVEIRA

FLORIANO DE LIMA NASCIMENTO GIOVANI CLARK

LEONARDO ALVES CORRÊA SAMUEL PONTES NASCIMENTO

WILLIO CAMPOS ANSELMO WLADMIR TADEU SILVEIRA COELHO

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SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO. 07(Constituição formal e constituição material) EROS ROBERTO GRAU POLÍTICA ECONÔMICA E DIREITO ECONÔMICO 11GILBERTO BERCOVICI CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA E CONCORRÊNCIA 33LAFAYETE JOSUÉ PETTER O MERCADO DE JORNAIS IMPRESSOS NA JURISPRUDÊNCIA DO CADE 61RICARDO A. L. CAMARGO ASPECTOS CONTROVERTIDOS SOBRE A COMPENSAÇÃO FINANCEIRA PELA 67EXPLORAÇÃO DE RECURSOS MINERAIS (Royalties da Mineração) FERNANDO FACURY SCAFF UMA BREVE HISTÓRIA DA ECONOMIA OCIDENTAL: 99DO MERCANTILISMO AOS DIAS ATUAISFLORIANO DE LIMA NASCIMENTO A REGULAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 117GIOVANI CLARK AVENTURAS E DESVENTURAS DO ESTADO SOCIAL 139A. J. AVELÃS NUNES

Sumário

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Sobre a interpretação da Constituição (Constituição formal e Constituição material)

EROS ROBERTO GRAU1

Escrevendo em outra ocasião2 sobre a interpretação / aplicação do direito, observei que o significado válido dos textos normativos – É é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é uma mera dedução, mas processo de contínua adaptação de seus textos à realidade e seus conflitos; tem caráter constitutivo não meramente declaratório, pois – e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e dos fatos atinentes a um determinado caso, de normas jurídicas a serem ponderadas para a solução desse caso, mediante a definição de uma norma de decisão. Interpretar/aplicar é dar concreção [= concretizar] ao direito.

Neste sentido, a interpretação / aplicação opera a inserção do direito na realidade; opera a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção na vida. A interpretação/aplicação vai do universal ao particular, do transcendente ao contingente; opera a inserção das leis [= do direito] no mundo do ser [= mundo da vida]. Como ela se dá no quadro de uma situação determinada, expõe o enunciado semântico do texto no contexto histórico presente, não

1 Professor Titular da Faculdade de Direito da USP. Professor Convidado da Université Paris 1 (Panthéon - Sorbonne) (2.003-2.004). Ministro do Supremo Tribunal Federal.2 Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, 4a edição, Malheiros Editores, São Paulo, 2.006, pp. 59-60.

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Eros Roberto Grau

no contexto da redação do texto. Assim se opera também, em linhas gerais , a interpretação da Constituição. Força e compreendemos, ao interpretá-la, além dos seus textos, a realidade. Eis o ponto que desejo enfatizar: a interpretação da Constituição não é exclusivamente do texto da Constituição formal.

02. Se por um momento suspendermos a concepção de Constituição em sentido formal, substituindo-a por outra, realista, ela será entendida como manifestação de uma estrutura político-social concreta; escapará então ao plano do dever-ser, de sorte a passar a expressar o ser político do Estado; nesse sentido ela é a constituição política do Estado. A constituição de cada povo depende da natureza e da consciência desse povo, no qual – diz HEGEL no § 274 do Princípios da filosofia do direito3 – reside a liberdade subjetiva do Estado, e, portanto, a realidade da constituição.

A oposição entre o dever-ser constitucional [= concepção formal] e o ser constitucional [= concepção material] dá lugar à instalada entre a Constituição formal e a Constituição material. FERDINAND LASSALLE4 diz que a Constituição é a expressão escrita da soma dos fatores reais do poder que regem uma nação; incorporados a um papel, já não são simples fatores reais do poder, mas fatores jurídicos; são instituição jurídica. A Constituição escrita será boa e duradoura enquanto corresponder à constituição material e encontrar suas razões nos fatores reais do poder hegemônicos no país – onde a Constituição escrita não corresponder a Constituição material instalar-se-á um conflito no qual a primeira sucumbirá5. Lembre-se o que MARX ensina no conhecido trecho do “Prólogo” da Contribuição à crítica da economia política6: “Em um determinado estado do seu desenvolvimento, as forças materiais produtivas da sociedade entram em contradição com

3 Principes de la philosophie du droit, trad. Jean-François Kervégan, PUF, Paris, 2.003, p. 371.

4 A essência da Constituição, tradução original de Walter Stõnner, Editora Líber Júris, Rio de Janeiro, 1.985, pág. 19; a conferência Über die Verfassung foi também editada, em tradução de Walter Stõnner, pela Ka ir ó s Livraria Editora [2a edição em 1.985], sob o título Que é uma Constituição; a tradução, na edição de que me utilizo, é mais aprimorada.5 LASSALLE, ob.cit., pág. 41.6 Confrontei, para a tradução ao português, as seguintes edições: Zur Kritik: der Politischen Okonomie, Erstes Heft, Berlin, Dietz Verlag, 1987, pp. 12-13; A contribution to the critique of political economy, 5a ed., trad. de S. W. Ryazanskaya, Moscou, Progress Publishers; Contribuition à la critique de L’éco nomie p olitique, Paris, 1977, pp. 2-3; e Contribución a la crítica de la economia política, 2a ed., trad. de Léon Mames, México, Sigla Veintiuno, 1986, esta última veiculando injustificável erro do tradutor.

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Sobre a interpretação da Constituição

as relações de produção existentes ou - o que não constitui senão uma expressão jurídica delas - com as relações de propriedade no seio das quais vinham se movendo até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas que eram, essas relações se tornam entraves delas. Inicia-se então uma época de revolução social. A transformação da base econômica altera mais ou menos rapidamente toda a enorme superestrutura”. Cada povo, diz ainda HEGEL, tem a constituição que lhe convém e se lhe adéqua7.

03. A distinção entre Constituição escrita e Constituição material não e assumida pelo pensamento liberal, dado que a passagem de um para o outro plano importaria insuportável invasão da esfera de liberdade dos indivíduos – a Constituição serve para impedir que a liberdade individual seja violada: não pode, ela mesma, comprometê-la. Essa a razão pela qual a distinção foi relegada a segundo plano. A Constituição consubstanciando o m ai s conspícuo testemunho do liberalismo e do pensamento liberal, não há de exceder o plano do dever-ser. O pensamento liberal, predominante na instância da Dogmática Jurídica, conhece apenas a positividade da Constituição formal, colocando-se inteiramente à margem, de modo a ignorá-la, da constituição material.

04. O que contudo ora desejo observar e a circunstância de a Constituição – como o direito, no seu todo – demandar permanente atualização, sem a qual não obterá efetividade. O discurso do texto normativo está parcialmente aberto à inovação, mesmo porque o que lhe confere contemporaneidade é a sua transformação em discurso normativo, isto e, em norma [transformação do texto em norma]. Daí que ela há de ser atualizada pelos chamados intérpretes autênticos, os juízes, para que se apresente dotada de força normativa.

Por isso a interpretação não é apenas do texto da Constituição formal, mas também da constituição real, hegelianamente considerada. O intérprete da Constituição não se limita a compreender textos que participam do mundo do dever ser; há de interpretar também a realidade, os movimentos dos fatores reais do poder, compreender o momento histórico no qual as normas da Constituição são produzidas, vale dizer, momento da passagem da dimensão textual para a dimensão normativa.

7 § 274 do Princípios da filosofia do direito.

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Eros Roberto Grau

O fato e que, como observou percuciente e incisivamente o general Charles de Gaulle8, a Constituição é um envelope. O que está contido dentro dele surge no e do dinamismo da vida político-social. O intérprete há de ser capaz de apreender esse dinamismo. E de modo tal que, ainda que não tenha consciência disso, o movimento das coisas o conduzirá a essa apreensão.

05. A breve nota que assim aporto ao tema da interpretação da Constituição pode ser sintetizada na afirmação de que o seu intérprete não se movimenta no mundo das abstrações, frequentando intimamente a constituição do povo ao qual ela corresponde9. É assim que a práxis da interpretação constitucional praticada pelo Poder Judiciário ocorre no plano da realidade político-social, no qual a separação entre a dimensão textual e a dimensão normativa da Constituição desafia a generalidade das exposições hermenêutico-jurídicas ancoradas na teoria da subsunção. Ainda que afirmá-lo desafie a doutrina e escandalize nossos constitucionalistas m ai s bem- comportados, o fato é que a Constituição formal está sendo, enquanto norma, cotidianamente reelaborada, reproduzida. Adquire força normativa apenas na medida em que isso se dê.

8 Discours et messages - Pour l’effort (Aôut 1962 - Décembre 1965), Plon. Paris, 1.970, p. 453.9 Ainda que o faça sem plena consciência disso.

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Política Econômica e Direito EconômicoGILBERTO BERCOVICI10

1. INTRODUÇÃO

Em seu consagrado livro-texto, Economics, Paul Samuelson afirma que todas as economias de mercado enfrentam três grandes questões macroeconômicas: a) Por que as taxas de emprego caem e como seria possível reduzir o desemprego; b) Quais são as causas da inflação e como mantê-la sob controle; c) Como uma nação pode incrementar sua taxa de crescimento econômico. Estas grandes questões dão origem aos objetivos da política econômica: o crescimento da produção nacional, a manutenção de taxas elevadas de emprego e a estabilidade dos preços11. Ainda segundo Samuelson, os principais instrumentos da política econômica são a política fiscal, que abrange os gastos governamentais e a tributação, e a política monetária, conduzida por um Banco Central, que determina a oferta de moeda e as condições financeiras da atividade econômica12. Cabe, então, ao economista avaliar o sucesso da performance de um sistema econômico nacional a partir do modo, ou seja, a partir de quais são os meios utilizados para que esta economia tente alcançar os seus objetivos de política econômica13.

10 Prova de erudição do Concurso para Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, realizada em 23 de junho de 2010.11 Paul A. SAMUELSON & William D. NORDHAUS, Economics, 18ª ed, Boston/New York, McGraw-Hill, 2005, pp. 406-411 e 420.12 Paul A. SAMUELSON & William D. NORDHAUS, Economics, pp. 411-414.13 Paul A. SAMUELSON & William D. NORDHAUS, Economics, pp. 408 e 420 e Fritz VOIGT, Theorie der

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Gilberto Bercovici

A política econômica pode, nesta mesma linha de raciocínio, ser definida também como o estudo das formas e efeitos da intervenção do Estado na vida econômica visando a atingir determinados fins. Como bem destaca Carlos Lessa, essa concepção não passa da transposição da visão neoclássica exposta, entre outros, por Lionel Robbins, para a política econômica. O Estado é entendido como um ente que persegue fins e dispõe de meios escassos suscetíveis de usos alternativos para tanto. Forjada a partir da perspectiva microeconômica, esta concepção de política econômica vê o Estado apenas como um “mal necessário”, que deve garantir o livre jogo das forças de mercado, mas interferir o mínimo possível no sistema econômico. A opção pelos meios, “neutros” para estes autores, deve se dar de acordo com a melhor “técnica”, abstraindo da reflexão econômica a perspectiva histórica e a da totalidade em que se insere. Os fins são dados, e os meios são passíveis de serem indicados por critérios “técnicos”, “neutros”, “objetivos”. A questão da coordenação dos meios econômicos e a da própria atuação do Estado são, convenientemente, deixadas de fora. Boa parte dos autores adota esta concepção como se a complexidade da atuação estatal pudesse ser simplificada na relação fins/meios ou objetivos/instrumentos. Não por acaso, os instrumentos mais mencionados são os fiscais e monetários, geralmente mecanismos indutivos, como se a política econômica pudesse também ser reduzida a estas atuações pontuais, sem qualquer menção aos instrumentos de ação direta do Estado, como as empresas estatais, por exemplo. O Estado, assim, é entendido de modo unilateral, como um ente supra-social, não havendo qualquer espaço para a compreensão da historicidade, do conflito, das disputas sociais e da viabilidade real das recomendações de política econômica14.

Apesar das concepções dominantes na teoria econômica, a noção de política econômica exige uma aproximação um pouco mais detida e cuidadosa, desde as origens do sistema econômico capitalista e do Estado moderno.

Wirtschaftspolitik, Berlin, Duncker & Humblot, 1979, vol. 1, pp. 11-18.14 Carlos LESSA, O Conceito de Política Econômica: Ciência e/ou Ideologia?, Campinas, Instituto de Economia da UNICAMP, 1998, pp. 30-40, 61, 81-83, 104-105 e 213.

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Política Econômica e Direito Econômico

2. AS ORIGENS DA NOÇÃO DE POLÍTICA ECONÔMICA

José Luís Fiori descreve a formação do Estado moderno na Europa em conjunto com a adoção da idéia de um sistema econômico nacional, enfatizando as várias políticas agrupadas sob a denominação comum de “mercantilismo”. A partir do século XVI, com a consolidação dos laços de dependência mútua entre o jogo das trocas e o jogo das guerras, assim como a unificação monetária sob a égide e o monopólio estatal, formulou-se uma nova economia política do Sistema Mundial, partindo do momento lógico e histórico em que o poder político se encontrou com o poder no mercado e recortou as fronteiras dos primeiros Estados/economias nacionais. Afinal, como constatou Fernand Braudel, o capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando é o Estado. Juntamente com a nacionalização da moeda, das finanças e do crédito, criou-se um sistema de tributação estatal e se nacionalizaram o exército e a marinha, que passaram para o controle direto da estrutura administrativa. O verdadeiro significado estratégico do “mercantilismo”, para Fiori, foi o de um sistema de poder voltado para a unificação e homogeneização do mercado interno, ao mesmo tempo em que foi uma política e um instrumento de competição e de guerra entre os Estados, usado pelas principais potências européias da época15.

O autor da principal obra sobre o mercantilismo, o sueco Eli Heckscher, ao investigar a política econômica e as relações comerciais do período privilegiou as nações que se destacaram no comércio marítimo, como a Inglaterra, França, Holanda, Portugal e Espanha. Embora não muito destacada por Heckscher, a literatura alemã e austríaca, elaborada sob as concepções de Polizei e do Cameralismo, também possui importância para o desenvolvimento da noção de política econômica, dada sua utilização na racionalização e disciplinamento da vida social, assim como na estruturação do aparato administrativo dos Estados europeus nos séculos XVII e XVIII, conformando a ação dos governantes, cuja finalidade seria a “boa ordem” e a felicidade dos súditos16.

15 Fernand BRAUDEL, Civilisation Matérielle, Économie et Capitalisme, XVe-XVIIIe Siècle, reimpr., Paris, Armand Colin, 1993, vol. 2: Les Jeux de l’Échange, pp. 666-668 e 723 e vol. 3: Le Temps du Monde, pp. 49-53 e 787-789 e José Luís FIORI, O Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações, São Paulo, Boitempo Editorial, 2007, pp. 13-40.16 Eli F. HECKSCHER, La Época Mercantilista: Historia de la Organización y las Ideas Económicas desde el Final de la Edad Media hasta la Sociedad Liberal, reimpr., México, Fondo de Cultura Económica, 1983;

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Gilberto Bercovici

Resgatando argumentos dos cameralistas alemães e trazendo novas propostas, advindas do debate norte-americano, Friedrich List, com seu Das nationale System der politischen Oekonomie (Sistema Nacional de Economia Política, de 1841), é um dos pioneiros na crítica aos postulados liberais da Economia Política Clássica. List, exilado nos Estados Unidos, travou conhecimento com as obras de Alexander Hamilton (Report on the Subject of Manufactures, 1791)17, Mathew Carey (Essays on Political Economy, de 1822)18 e Daniel Raymond (The Elements of Political Economy, de 1823)19, que defendiam a adoção de políticas protecionistas à indústria. A partir destes pressupostos, List define a economia política como economia nacional, que deveria proteger sua indústria da concorrência britânica para que pudesse se desenvolver adequadamente. Para Friedrich List, cada Nação deveria seguir seu próprio curso ao desenvolver suas forças produtivas, ou, em outras palavras, cada Nação possuiria sua economia política própria20.

A Escola Histórica Alemã da Economia segue a mesma visão de List, ao negar a pretensão de se estabelecer leis econômicas universais. Além de negarem o individualismo metodológico, os seguidores da Escola Histórica Alemã da Economia, como Knies, Bücher e Hildebrandt, influíram sobretudo na relativização do rigor das leis econômicas, entendidas como provisórias, condicionais e contingentes. Eles estavam mais preocupados com o que chamavam de “leis do desenvolvimento”, isto é, com a regularidade com que, segundo eles, desdobrava-se a evolução histórica dos povos e das nações. A

Fernand BRAUDEL, Civilisation Matérielle, Économie et Capitalisme, XVe-XVIIIe Siècle, vol. 2: Les Jeux de l’Échange, pp. 653-660; Keith TRIBE, Strategies of Economic Order: German Economic Discourse 1750-1950, reimpr., Cambridge/New York, Cambridge University Press, 2007, pp. 11-22 e Airton Cerqueira Leite SEELAENDER, “A ‘Polícia’ e as Funções do Estado - Notas sobre a ‘Polícia’ do Antigo Regime”, Revista da Faculdade de Direito - UFPR nº 49, Curitiba, 2009, pp. 74-81.17 Alexander HAMILTON, Report on the Subject of Manufactures in Writings, New York, The Library of America, 2001, pp. 647-734. 18 Matthew CAREY, Essays on Political Economy or The Most Certain Means of Promoting the Wealth, Power, Resources and Happiness of States Applied Particularly to the United States, reimpr. da ed. de 1822, New York, Augustus M. Kelley Publishers, 1968.19 Daniel RAYMOND, The Elements of Political Economy, 2 vols, reimpr. da 2ª ed. de 1823, New York, Augustus M. Kelley Publishers, 1964. 20 Friedrich LIST, Das nationale System der politischen Oekonomie, ed. fac-similar de 1841, Düsseldorf, Verlag Wirtschaft und Finanzen, 1989, pp. VI-VII, LII-LX, 19-20, 183-200 e 477-481 e Keith TRIBE, Strategies of Economic Order, pp. 42-60.

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Política Econômica e Direito Econômico

estrutura econômica alemã, como Gabriel Cohn descreve em seu Crítica e Resignação, justificou a ênfase destes autores na peculiaridade do arcabouço institucional no qual se dá a atividade econômica21. Gustav Schmöller, principal economista da Alemanha imperial e líder da Escola Histórica, instituiu um programa de pesquisa, que, a partir do cameralismo, e passando por List, tentava criar os pressupostos de uma alternativa teórica à economia clássica e neoclássica. Schmöller repeliu tanto o marxismo como o liberalismo e as posições anti-reformistas e reacionárias, chegando a propor uma aliança entre a monarquia e as classes trabalhadoras, em moldes similares aos que propôs o seu contemporâneo e jurista Lorenz von Stein. Por causa da sua oposição feroz aos métodos neoclássicos de análise econômica, Schmöller travou com Carl Menger, fundador da Escola Neoclássica Austríaca, a célebre “Methodenstreit” (“Disputa dos Métodos”), que influenciaria profundamente, entre outros, Max Weber22.

Para os economistas adeptos das escolas neoclássicas, como Menger, Jevons e Walras, a concorrência deve assegurar uma alocação ótima dos recursos nos mercados que tendem naturalmente ao equilíbrio. O Estado deve apenas garantir uma estrutura jurídica que permita e assegure o respeito à propriedade privada e ao cumprimento dos contratos. A eficiência dos mercados funda-se na ausência de agentes econômicos dominantes, na livre circulação de informações, no mecanismo de ajuste dos preços e na mobilidade plena dos fatores de produção23.

No pós Primeira Guerra Mundial, no entanto, a evidência da necessidade da atuação estatal no domínio econômico obrigou os teóricos a adequarem suas concepções. Com Keynes, é consagrada a distinção analítica entre microeconomia e macroeconomia. O comportamento do agente econômico individual, base da microeconomia neoclássica, abre espaço para a análise dos grandes agregados macroeconômicos. Keynes tinha em mente uma maior participação do Estado na geração e no

21 Gabriel COHN, Crítica e Resignação: Max Weber e a Teoria Social, 2ª ed, São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp. 100-108.22 Keith TRIBE, Strategies of Economic Order, pp. 66-94 e Ernesto SCREPANTI Ernesto & Stefano ZAMAGNI, An Outline of the History of Economic Thought, 2ª ed, Oxford/New York, Oxford University Press, 2005, pp. 150 e 245-247.23 Frédéric TEULON, L’État et la Politique Économique, Paris, PUF, 1998, pp. 107-108.

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direcionamento dos investimentos, especialmente por meio do controle público sobre os meios de pagamento e da taxa de juros. Para ele, o Estado também deve intervir do lado da demanda, mediante o aumento dos gastos governamentais, especialmente nas épocas de crise, para manter ou elevar o nível geral de atividade econômica, formulando a idéia de política econômica anticíclica. A aceitação do papel estatal, a chamada “variável independente”, pelos economistas pós-keynesianos, no entanto, se dará a partir de modelos macroeconômicos que continuam a ter como pressuposto uma visão ahistórica e idealizada do Estado. A política econômica vai também ser tornada abstrata: ela deve ser uma política econômica racional, definida e planificada a partir das considerações técnicas e científicas dos economistas. A economia deve, portanto, dar base científica à política pública, articulando perfeitamente os macro-objetivos, os controles e instrumentos adequados, visando garantir o bom funcionamento do sistema econômico como um todo24.

Nicholas Kaldor, por exemplo, idealizou as grandes finalidades da gestão macroeconômica com a denominação de “quadrado mágico”: crescimento, emprego, estabilidade dos preços e equilíbrio externo25. Em termos de política conjuntural, ou seja, a ação de curto prazo dos poderes públicos para garantir as quatro grandes finalidades, os desequilíbrios podem ser internos (desemprego e inflação) ou externos (desequilíbrio da balança de pagamentos). Para enfrentar estes dois tipos de desequilíbrios, a política econômica deve adotar uma série de medidas de natureza orçamentária (manipulação das despesas públicas) ou tributária (política de arrecadação de receitas, cuja necessária vinculação aos valores presentes na sociedade é sempre destacada por Paulo de Barros Carvalho26) e medidas de natureza monetária (manipulação do custo e da quantidade de moeda posta à disposição dos agentes econômicos, política de juros, de crédito, etc)27.

24 Vide Carlos LESSA, O Conceito de Política Econômica, pp. 218-221, 247-251, 255-261, 264-266, 288, 292-314 e 326-327; Fritz VOIGT, Theorie der Wirtschaftspolitik, vol. 1, pp. 18-20 (aliás, adepto desta visão); Paul A. SAMUELSON & William D. NORDHAUS, Economics, pp. 405-406, 419; Robert SKIDELSKY, Keynes, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1999, p. 130 e Tamás SZMRECSÁNYI, “Introdução” in Tamás SZMRECSÁNYI (org.), John Maynard Keynes, 2ª ed, São Paulo, Ática, 1984, pp. 18-20.25 Frédéric TEULON, L’État et la Politique Économique, pp. 101-103.26 Paulo de Barros CARVALHO, Direito Tributário, Linguagem e Método, 2ª ed, São Paulo, Noeses, 2008, pp. 173-179 e 221-227.27 Frédéric TEULON, L’État et la Politique Économique, pp. 134-135 e 164-169.

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Política Econômica e Direito Econômico

Além das políticas conjunturais, há a política econômica estrutural, que pretende atuar por uma longa duração, visando preservar ou alterar estruturas mais profundas da formação econômica e social. Como exemplo de políticas econômicas estruturais, podem ser mencionadas as políticas de superação das desigualdades regionais, a política industrial, a política ambiental, geralmente ou pretensamente fundadas em alguma espécie de planejamento28.

Neste contexto, a obra célebre do holandês Jan Tinbergen, primeiro Prêmio Nobel de Economia, em 1969, pode ser entendida como o melhor exemplo. Política econômica, para Tinbergen, “consiste na variação intencional dos meios com o objeto de obter certos fins”29. O estudo da política econômica deve, utilizando-se de modelos, descrever o processo da política econômica, julgar a compatibilidade entre fins e os meios utilizados e indicar a política ótima para a obtenção de determinados fins30.

Ao estruturar essas tarefas, Tinbergen chega, inclusive, a propor um sistema econômico ideal, uma espécie de “capitalismo social”, de raízes solidaristas, fundado na idéia de economia social de mercado, a meio caminho entre o capitalismo e o socialismo, sendo um dos principais autores da chamada “tese da convergência dos sistemas”, em voga nos anos 1970 e criticada com propriedade por António José Avelãs Nunes em seu livro Do Capitalismo e do Socialismo, de 197231.

No entanto, boa parte dos especialistas em política econômica assumiu a perspectiva da tendência à convergência dos programas de política econômica, independentemente da matriz político-ideológica dos partidos políticos que governassem os seus países32. Esta concepção irá abrir o caminho para a legitimação das políticas ortodoxas de ajuste fiscal, preponderantes a partir do final da década de 1970, e que

28 Frédéric TEULON, L’État et la Politique Économique, pp. 253, 294-295 e 310-312.29 Jan TINBERGEN, Política Econômica: Princípios e Planejamento, 2ª ed, São Paulo, Nova Cultural, 1986, pp. 122 e 125.

30 Jan TINBERGEN, Jan TINBERGEN, Política Econômica: Princípios e Planejamento, pp. 107-110 e 121-138.31 António José Avelãs NUNES, Do Capitalismo e do Socialismo, Coimbra, Atlântida Editora, 1972, pp. 23-42, 91-117 e 152-188.32 Frédéric TEULON, L’État et la Politique Économique, pp. 105-107.

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Gilberto Bercovici

culminará na famosa frase atribuída à ex-Primeira Ministra britânica Margaret Thatcher: “There Is No Alternative” 33.

A adequada compreensão da política econômica exige que se assuma que economia e política (e, por que não, o direito, que, como demonstra Eros Grau, também é parte da realidade social34) estão intimamente associadas, que o processo político-econômico é resultado de uma complexa série de contraposições e conflitos de interesses distintos, que os vários grupos sociais e econômicos buscam influir sobre o Estado e que a política econômica não possui nem fins, nem meios neutros. Esta perspectiva, a perspectiva da economia política, a que historiciza e tenta compreender a dinâmica das relações sociais, abre a possibilidade, como enfatiza Carlos Lessa, da crítica às “doutrinas oficiais”35. E, seguindo aqui a célebre afirmação de Luiz Gonzaga Belluzzo, também enfatizada por Leda Paulani: “Hoje, mais do que nunca, a crítica da sociedade existente não pode ser feita sem a crítica da Economia Política” 36.

3. POLÍTICA ECONÔMICA E DIREITO ECONÔMICO

Na esfera jurídica, a necessária crítica da economia política deve ser empreendida por meio do direito econômico, compreendido como uma economia política da forma jurídica, ou seja, como uma disciplina capaz de, simultaneamente, esclarecer a origem social e teórica dos textos normativos, sua sistematização para a decidibilidade por parte da doutrina e da atuação dos chamados “operadores do direito”, sua capacidade de diálogo e de percepção de influências recíprocas em outros campos, disciplinas ou sistemas sociais e sua preocupação com quais as possibilidades abertas ou por se abrir de lutas sociais e as formas institucionais possíveis de serem adotadas por estes movimentos.

A REFLEXÃO SOBRE O DIREITO ECONÔMICO PROPRIAMENTE DITO

33 Leda Maria PAULANI, Brasil Delivery: Servidão Financeira e Estado de Emergência Econômico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2008, pp. 15-16, 28-30, 38-40 e 46-49.34 Eros Roberto GRAU, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, 5ª ed, São Paulo, Malheiros, 2003, pp. 44-59.35 Carlos LESSA, O Conceito de Política Econômica, pp. 347-350 e 400-401.36 Luiz Gonzaga BELLUZZO, “Prefácio” in Guido MANTEGA & José Marcio REGO, Conversas com Economistas Brasileiros II, São Paulo, Ed. 34, 1999, p. 25 e Leda Maria PAULANI, Modernidade e Discurso Econômico, São Paulo, Boitempo Editorial, 2005, pp. 184-187 e 206.

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SURGE APENAS COM A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL, A PRIMEIRA “GUERRA TOTAL” DA HISTÓRIA, UMA VERDADEIRA “GUERRA ECONÔMICA”, NOS TERMOS DE HERMES MARCELO HUCK. ISTO NÃO SIGNIFICA QUE O DIREITO ECONÔMICO ESTEJA VINCULADO APENAS AO DECLÍNIO DO LIBERALISMO OU À INTERVENÇÃO DO ESTADO. INTERVENÇÃO ESTA, ALIÁS, EM QUE AS PRÓPRIAS EXPRESSÕES “INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA” OU “DIRIGISMO ECONÔMICO” TÊM, INCLUSIVE, COMO PRESSUPOSTO A VISÃO LIBERAL DA EXISTÊNCIA DE UM DUALISMO ENTRE O ESTADO E A SOCIEDADE, OU ENTRE O ESTADO E O MERCADO.37

A QUESTÃO É MUITO MAIS COMPLEXA, POIS A ESPECIFICIDADE DO DIREITO ECONÔMICO DIZ RESPEITO, COMO AFIRMA CLEMENS ZACHER, À EMANCIPAÇÃO DE FORMAS TRADICIONAIS DO PENSAMENTO JURÍDICO. TODAS AS DIFICULDADES EM IDENTIFICAR O OBJETO E AS RELAÇÕES DO DIREITO ECONÔMICO GERAM A SIMPLIFICAÇÃO DE SUA CARACTERIZAÇÃO COMO MAIS UM “RAMO” DO DIREITO OU COMO UM CONJUNTO DE NORMAS E INSTITUIÇÕES JURÍDICAS QUE REGULAM E DIRIGEM O PROCESSO ECONÔMICO, PERDENDO ASSIM, SEGUNDO VITAL MOREIRA, A ESPECIFICIDADE DO DIREITO ECONÔMICO, QUE VEM DE SUA HISTORICIDADE. O DIREITO ECONÔMICO SÓ PODE SER COMPREENDIDO NO CONTEXTO EM QUE SURGIU E, NESTE CONTEXTO, ESTÁ VINCULADO TAMBÉM À IDÉIA DE CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA38.

Embora as constituições liberais dos séculos XVIII e XIX também contivessem preceitos de conteúdo econômico, como a garantia da propriedade ou da liberdade de indústria, o debate sobre a constituição econômica é sobretudo um debate do século XX. As constituições do século XX não representam mais a composição pacífica do que já existe, mas lidam com conteúdos políticos e com a legitimidade, em um processo contínuo

37 Reiner SCHMIDT, Wirtschaftspolitik und Verfassung: Grundprobleme, Baden-Baden, Nomos Verlagsgesellschaft, 1971, pp. 56-59; Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988 (Interpretação e Crítica), 8ª ed, São Paulo, Malheiros, 2003, pp. 62-65 e 82-83 e Hermes Marcelo HUCK, Da Guerra Justa à Guerra Econômica: Uma Revisão sobre o Uso da Força em Direito Internacional, São Paulo, Saraiva, 1996, pp. 4-6.38 Clemens ZACHER, Die Entstehung des Wirtschaftsrechts in Deutschland: Wirtschaftsrecht, Wirtschaftsverwaltungsrecht und Wirtschaftsverfassung in der Rechtswissenschaft der Weimarer Republik, Berlin, Duncker & Humblot, 2002, pp. 13-20 e Vital MOREIRA, Economia e Constituição: Para o Conceito de Constituição Económica, 2ª ed, Coimbra, Coimbra Ed., 1979, pp. 63-65.

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de busca de realização de seus conteúdos, de compromisso aberto de renovação democrática.

Não há mais constituições monolíticas, homogêneas, mas sínteses de conteúdos concorrentes dentro do quadro de um compromisso deliberadamente pluralista. A constituição é vista como um projeto que se expande para todas as relações sociais. O conflito é incorporado aos textos constitucionais, que não parecem representar apenas as concepções da classe dominante, pelo contrário, tornam-se um espaço onde ocorre a disputa político-jurídica.

Embora a primeira constituição deste novo tipo tenha sido a Constituição do México, de 1917, o principal debate se deu em torno da constituição alemã de 1919, a constituição de Weimar, que tem por fundamento a busca de um compromisso em uma estrutura política pluralista. As posições dos autores em relação à constituição alemã variaram muito, indo da defesa de Hermann Heller da utilização da constituição de Weimar como forma de luta política capaz de iniciar a transição para o socialismo à crítica feroz de Carl Schmitt ao caráter de compromisso contraditório da constituição alemã. Mas, a questão fundamental trazida pelo debate de Weimar é a da instauração de uma democracia de massas, ou seja, de uma democracia que deveria ser entendida na forma e na substância, pois importava na emancipação política completa e na igualdade de direitos, incorporando os trabalhadores ao Estado. Assim, na Alemanha, a igualdade política e o sufrágio universal geraram um parlamento com maioria de partidos que criavam a expectativa de uma transição democrática para o socialismo, ampliando a legislação econômica, o que aumenta a disputa do controle do Estado pelas várias forças econômicas e sociais.

A constituição de Weimar, como praticamente todas as constituições democráticas posteriores do século XX (por exemplo, a italiana de 1947, a indiana de 1950, as espanholas de 1931 e 1978, a francesa de 1946, a argentina de 1949, a portuguesa de 1976 e as brasileiras de 1934, 1946 e 1988), incorporou em seu texto os conflitos econômicos e sociais, chamando formalmente a atenção sobre estas questões e determinando a necessidade de se encontrarem soluções constitucionalmente adequadas. Isto é particularmente sensível e perceptível na chamada “constituição econômica”, ou seja, a Constituição política estatal aplicada às relações econômicas. Não por acaso, foi (e é) em torno da constituição econômica

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que se travaram os grandes embates políticos e ideológicos durante a sua elaboração. Também não por outro motivo é na constituição econômica que os críticos costumam encontrar as “contradições”, os “compromissos dilatórios”, as “normas programáticas”, buscando bloquear, na prática, sua efetividade.

A diferença essencial, que surge a partir do “constitucionalismo social” do século XX, e que vai marcar o debate sobre a constituição econômica, é o fato de que as constituições não pretendem mais receber a estrutura econômica existente, mas querem alterá-la. As constituições positivam tarefas e políticas a serem realizadas no domínio econômico e social para atingir certos objetivos. A ordem econômica destas constituições é “programática” neste sentido. A constituição econômica que conhecemos surge quando a estrutura econômica se revela problemática, quando cai a crença na harmonia pré-estabelecida do mercado. A constituição econômica quer uma nova ordem econômica, quer alterar a ordem econômica existente, rejeitando o mito da auto-regulação do mercado. E isto ocorre justamente, por causa da expansão do sufrágio e da incorporação dos setores economicamente desfavorecidos na esfera de atuação estatal39.

Com a constituição de Weimar e seu “Estado econômico” (“Wirtschaftsstaat”), para Ernst Rudolf Huber, a posição privilegiada do direito econômico teria se consolidado. Afinal, já em 1919, Walter Rathenau afirmava que “a Economia é nosso destino” (“Die Wirtschaft ist unser Schicksal”). Para ele, a partir da guerra, o Estado precisaria se pronunciar politicamente cada vez mais sobre a economia, que deixa de ser privada para se tornar um problema de toda a comunidade, com o objetivo final da democracia e da igualdade40.

A partir do século XX, portanto, as constituições passam a conter as normas atribuidoras de competência para a elaboração e a implementação da política econômica e estabelecem o fundamento jurídico para que os Estados tomem as medidas econômicas necessárias. A efetividade da política econômica torna-se, assim, também uma tarefa do direito, particularmente

39 Gilberto BERCOVICI, Constituição Econômica e Desenvolvimento: Uma Leitura a partir da Constituição de 1988, São Paulo, Malheiros, 2005, pp. 33-37.40 Walter RATHENAU, Der neue Staat, Berlin, S. Fischer Verlag, 1919, pp. 39-43 e 54 e Ernst Rudolf HUBER, Wirtschaftsverwaltungsrecht, 2ª ed, Tübingen, J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1953, vol. 1, pp. 6-7.

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do direito econômico, como enfatiza Fabio Nusdeo, em sua tese “Da Política Econômica ao Direito Econômico”41. Com esta incorporação da política econômica aos textos constitucionais, surgem autores como Reiner Schmidt, que, em sua obra Wirtschaftspolitik und Verfassung, chegam a elaborar uma definição jurídica de política econômica. Para ele, em termos jurídicos, política econômica é “o conjunto de medidas soberanas por meio das quais se determinam as condições a que estão submetidas as atividades econômicas privadas e se determinam fins a serem alcançados”42.

A incorporação da política econômica aos textos constitucionais reflete-se também na própria concepção de direito econômico, especialmente as noções elaboradas no segundo pós-guerra. Apenas para limitarmos esta investigação ao caso brasileiro, o fundador da disciplina do direito econômico entre nós, Washington Peluso Albino de Souza, por exemplo, defende a autonomia doutrinal do direito econômico como um “ramo” do direito, cujo objeto é a regulamentação da política econômica e que tem por sujeito o agente que dela participe43.

EROS ROBERTO GRAU VAI ALÉM DA CONCEPÇÃO DO DIREITO ECONÔMICO COMO “RAMO” DO DIREITO, ENTENDENDO-O COMO UM MÉTODO DE ANÁLISE DO DIREITO, A PARTIR DA COMPREENSÃO DO DIREITO COMO PARTE INTEGRANTE DA REALIDADE SOCIAL E INCORPORANDO ESSA REALIDADE E O CONFLITO SOCIAL NA ANÁLISE JURÍDICA, DESTACANDO SUAS POSSIBILIDADES TRANSFORMADORAS44.

E É NESTE MESMO CONTEXTO DE ENTENDER O DIREITO ECONÔMICO ALÉM DA VISÃO TRADICIONALISTA DOS “RAMOS” DO DIREITO QUE FÁBIO KONDER COMPARATO, EM SEU INFLUENTE ENSAIO “O INDISPENSÁVEL DIREITO ECONÔMICO”, ENTENDE O DIREITO ECONÔMICO COMO O DIREITO QUE INSTRUMENTALIZA A POLÍTICA ECONÔMICA: “O NOVO DIREITO

41 Reiner SCHMIDT, Wirtschaftspolitik und Verfassung, pp. 97-101 e 257 e Fabio NUSDEO, Da Política Econômica ao Direito Econômico, mimeo, São Paulo, Faculdade de Direito da USP (Tese de Livre-Docência), 1977, pp. 167-171.42 Reiner SCHMIDT, Wirtschaftspolitik und Verfassung, p. 60.43 Washington Peluso Albino de SOUZA, Primeiras Linhas de Direito Econômico, 3ª ed, São Paulo, LTr, 1994, p. 23.44 Eros Roberto GRAU, A Ordem Econômica na Constituição de 1988, pp. 130-132 e Eros Roberto GRAU, O Direito Posto e o Direito Pressuposto, pp. 44-59.

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ECONÔMICO SURGE COMO O CONJUNTO DAS TÉCNICAS JURÍDICAS DE QUE LANÇA MÃO O ESTADO CONTEMPORÂNEO NA REALIZAÇÃO DE SUA POLÍTICA ECONÔMICA” 45. PARA COMPARATO, O DIREITO ECONÔMICO VISA ATINGIR AS ESTRUTURAS DO SISTEMA ECONÔMICO, BUSCANDO SEU APERFEIÇOAMENTO OU SUA TRANSFORMAÇÃO. E, NO CASO DE PAÍSES COMO O BRASIL, A TAREFA DO DIREITO ECONÔMICO É TRANSFORMAR AS ESTRUTURAS ECONÔMICAS E SOCIAIS, COM O OBJETIVO DE SUPERAR O SUBDESENVOLVIMENTO46. ESTA É, ASSIM, UMA TAREFA PREPONDERANTEMENTE DO DIREITO ECONÔMICO, COM SUA CARACTERÍSTICA, DENOMINADA POR NORBERT REICH, DA “DUPLA INSTRUMENTALIDADE”47: AO MESMO TEMPO EM QUE OFERECE INSTRUMENTOS PARA A ORGANIZAÇÃO DO PROCESSO ECONÔMICO CAPITALISTA DE MERCADO, O DIREITO ECONÔMICO PODE SER UTILIZADO PELO ESTADO COMO UM INSTRUMENTO DE INFLUÊNCIA, MANIPULAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DA ECONOMIA, VINCULADO A OBJETIVOS SOCIAIS OU COLETIVOS, INCORPORANDO, ASSIM, OS CONFLITOS ENTRE A POLÍTICA E A ECONOMIA.

No centro do sistema econômico mundial, o direito econômico substituiu, de certo modo, o direito privado e a lógica da codificação como instrumento jurídico garantidor da estabilidade do sistema, circunstância, aliás, percebida por Orlando Gomes em vários de seus ensaios sobre as relações entre o direito civil e o direito econômico48. Por esta vinculação à preservação da estabilidade macroeconômica, inclusive, o direito econômico dos países centrais sofreu uma forte influência das concepções keynesianas. Já na periferia do sistema capitalista, o direito econômico se estabelece com o desenvolvimentismo e o início do processo de industrialização, na década de 1930. Não por acaso, Luiz Gonzaga Belluzzo afirma que o desenvolvimentismo da periferia nasceu no mesmo berço que produziu o

45 Fábio Konder COMPARATO, “O Indispensável Direito Econômico”, Revista dos Tribunais nº 353, São Paulo, RT, março de 1965, p. 22.46 Fábio Konder COMPARATO, “O Indispensável Direito Econômico”, pp. 20-22.47 Norbert REICH, Markt und Recht: Theorie und Praxis des Wirtschaftsrechts in der Bundesrepublik Deutschland, Neuwied/Darmstadt, Luchterhand, 1977, pp. 64-66.48 Orlando GOMES & Antunes VARELA, Direito Econômico, São Paulo, Saraiva, 1977, pp. 17-27, 71-128 e 167-176, entre várias outras passagens.

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keynesianismo no centro49. Exatamente por estar vinculado à industrialização e às transformações estruturais, a apropriação das idéias keynesianas pelos desenvolvimentistas latino-americanos, como Raúl Prebisch e Celso Furtado, entre outros, irá associar o keynesianismo a uma posição muito mais emancipatória e progressista do que a preponderante no centro do sistema. As recentes palavras de David Harvey, talvez, possam sintetizar esta recepção de Keynes na periferia latino-americana: “Sou a favor de estabilizar o capitalismo através de medidas keynesianas que se transformem em possibilidades marxistas” 50.

Do mesmo modo, o direito econômico também irá se vincular a esse projeto de transformação das estruturas econômicas e sociais visando a superação do subdesenvolvimento. E a política econômica incorporada ao texto da Constituição brasileira de 1988 consiste em um caso em que estas possibilidades emancipatórias encontram-se explicitamente inseridas nas normas constitucionais.

4. A POLÍTICA ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A Constituição de 1988 está estruturada também a partir da idéia da constituição como um plano de transformações sociais e do Estado, prevendo, em seu texto, as bases de um projeto nacional de desenvolvimento. Em termos de teoria constitucional, a Constituição de 1988 é o que se denomina de “constituição dirigente”, ou seja, uma constituição que estabelece explicitamente as tarefas e os fins do Estado e da sociedade.

Em 1961, ao utilizar a expressão “constituição dirigente” (“dirigierende Verfassung”), o alemão Peter Lerche estava acrescentando um novo domínio aos setores tradicionais existentes nas constituições. Em sua opinião, todas as constituições apresentariam quatro partes: as linhas de direção constitucional, os dispositivos determinadores de fins, os direitos, garantias e a repartição de competências estatais e as normas de princípio. No entanto, as constituições modernas se caracterizariam por possuir, segundo

49 Luiz Gonzaga de Mello BELLUZZO, Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX, São Paulo/Campinas, EdUNESP/Instituto de Economia da UNICAMP, 2004, pp. 38-39.50 David HARVEY, “O Neoliberalismo Não Acabou, Alerta David Harvey” - Entrevista concedida a IHU Online em 31 de março de 2009 e divulgada pelo site Carta Maior (www.cartamaior.com.br).

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Lerche, uma série de diretrizes constitucionais que configuram imposições permanentes para o legislador. Estas diretrizes são o que ele denomina de “constituição dirigente”. Pelo fato de a “constituição dirigente” consistir em diretrizes permanentes para o legislador, Lerche vai afirmar que é no âmbito da “constituição dirigente” que poderia ocorrer a discricionariedade material do legislador51.

A diferença da concepção de “constituição dirigente” de Peter Lerche para a consagrada com a obra, de 1982, do jurista português José Joaquim Gomes Canotilho, amplamente difundida no Brasil, torna-se evidente. Lerche está preocupado em definir quais normas vinculam o legislador e chega à conclusão de que as diretrizes permanentes (a “constituição dirigente”) possibilitariam a sua discricionariedade material. Já o conceito de Canotilho é muito mais amplo, pois não apenas uma parte da constituição é chamada de dirigente, mas toda ela52. O ponto em comum de ambos, no entanto, é a desconfiança do legislador: ambos desejam encontrar um meio de vincular, positiva ou negativamente, o legislador à constituição.

A proposta de Canotilho é bem mais ampla e profunda que a de Peter Lerche, inspirando-se na Constituição portuguesa de 1976, proveniente do processo político desencadeado pela Revolução dos Cravos. Seu objetivo é a reconstrução da Teoria da Constituição por meio de uma Teoria Material da Constituição, concebida também como teoria social. A constituição dirigente busca incorporar uma dimensão materialmente legitimadora para a política, estabelecendo um fundamento constitucional. O núcleo da idéia de constituição dirigente é a proposta de legitimação material da constituição pelos fins e tarefas previstos no texto constitucional. Em síntese, segundo Canotilho, o problema da constituição dirigente é um problema de legitimação53.

Para a Teoria da Constituição Dirigente, a constituição não é só garantia do existente, mas também um programa para o futuro. Ao fornecer linhas de

51 Peter LERCHE, Übermass und Verfassungsrecht: Zur Bindung des Gesetzgebers an die Grundsätze der Verhältnismässigkeit und der Erforderlichkeit, 2ª ed, Goldbach, Keip Verlag, 1999, pp. VII, 61-62, 64-77, 86-91 e 325.52 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador: Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas, 2ª ed, Coimbra, Coimbra Ed., 2001, pp. 224-225 e 313.53 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, pp. 13-14, 19-24, 42-49, 157-158, 380 e 462-471.

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atuação para a política, sem substituí-la, destaca a interdependência entre Estado e sociedade: a constituição dirigente é uma Constituição estatal e social. No fundo, a concepção de constituição dirigente para Canotilho está ligada à defesa da mudança da realidade pelo direito. O sentido, o objetivo da constituição dirigente é o de dar força e substrato jurídico para a mudança social. A constituição dirigente é um programa de ação para a alteração da sociedade54.

Esta dimensão emancipatória é ressaltada por todas as versões de constituição dirigente55. Seja a constituição dirigente “revolucionária”, como a portuguesa de 1976, em cuja versão original havia a consagração constitucional dos objetivos da construção de uma sociedade sem classes (artigo 1º) e da transição para o socialismo (artigo 2º). Seja a constituição dirigente “reformista”, como a espanhola de 1978 e a brasileira de 1988, que, embora não proponham a transição para o socialismo, determinam um programa vasto de políticas públicas inclusivas e distributivas, por meio de dispositivos como o artigo 3º da Constituição de 1988: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I — construir uma sociedade livre, justa e solidária; II — garantir o desenvolvimento nacional; III — erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV — promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Dispositivos como o artigo 3º da Constituição de 1988 são o que doutrinadores constitucionais como o espanhol Pablo Lucas Verdú denominam de “cláusulas transformadoras”56. A “cláusula transformadora” explicita o contraste entre a realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la. Deste modo, impede que a constituição considerasse realizado o que ainda está por se realizar, implicando na obrigação do Estado em promover a transformação da estrutura econômico-social. Sua concretização

54 José Joaquim Gomes CANOTILHO, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, pp. 150-153, 166-169 e 453-459.55 José Joaquim Gomes CANOTILHO, “Prefácio” in Constituição Dirigente e inculação do Legislador, pp. XXIX-XXX.56 Pablo Lucas VERDÚ, Estimativa y Política Constitucionales (Los Valores y los Principios Rectores del Ordenamiento Constitucional Español), Madrid, Sección de Publicaciones – Facultad de Derecho (Universidad Complutense de Madrid), 1984, pp. 190-198 e Pablo Lucas VERDÚ, Teoría de la Constitución como Ciencia Cultural, 2ª ed, Madrid, Editorial Dykinson, 1998, pp. 50-54.

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não significa a imediata exigência de prestação estatal concreta, mas uma atitude positiva, constante e diligente do Estado.

As normas determinadoras de fins do Estado dinamizam o direito constitucional, isto é, permitem uma compreensão dinâmica da constituição, com a abertura do texto constitucional para desenvolvimentos futuros. A sua importância está no fato de permitir, sem romper com a legalidade constitucional, avançar pela concretização de determinados objetivos que visam tornar real a supremacia do povo como sujeito da soberania, rechaçando a manutenção dos interesses privados de uma classe ou grupo dominante. O artigo 3º da Constituição de 1988 é um instrumento normativo que transformou fins sociais e econômicos em jurídicos, atuando como linha de desenvolvimento e de interpretação teleológica de todo o ordenamento constitucional.

Em termos de teoria da norma, não é uma “norma programática”, concepção conservadora e teoricamente equivocada que justifica a não-vinculatividade e a não-concretização dos dispositivos constitucionais. A norma do artigo 3º da Constituição de 1988 é uma “norma-objetivo”, nas palavras de Eros Grau, ou uma “norma-fim” (“norma di scopo”), ou seja, indica os fins, os objetivos a serem perseguidos por todos os meios legais disponíveis para edificar uma nova sociedade, distinta da existente no momento da elaboração do texto constitucional57. O Estado, assim, retira sua legitimidade de suas tarefas materiais. Neste sentido, o Estado deve ser entendido como o “portador da ordem social”, o que pressupõe uma vontade política disposta a colocar o programa constitucional em andamento. Isto, no entanto, não é suficiente. A constante pressão das forças políticas populares é fundamental para que o Estado atue no sentido de levar a soberania popular às últimas consequências.

Em uma perspectiva finalista, de acordo com o espanhol Oscar Asenjo58, a constituição econômica tem por funções a ordenação da atividade econômica, a satisfação das necessidades sociais e a direção do processo econômico geral. A estas funções pode ser acrescentada, no caso

57 Eros Roberto GRAU, Direito, Conceitos e Normas Jurídicas, São Paulo, RT, 1988, pp. 130-153.58 Oscar de Juan ASENJO, La Constitución Económica Española: Iniciativa Económica Pública “versus” Iniciativa Económica Privada en la Constitución Española de 1978, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1984, pp. 101-120.

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da constituição brasileira de 1988, a função de reforma ou transformação estrutural.

A função de ordenação da atividade econômica diz respeito à instituição da ordem pública econômica, ou seja, das regras do jogo econômico, especialmente as limitações à liberdade econômica. Como exemplo, pode-se mencionar a livre concorrência, a função social da propriedade, a defesa do consumidor e do meio-ambiente, a repressão ao abuso do poder econômico (artigos 170, III, IV, V, VI 173, §4º, entre outros, da Constituição de 1988).

A satisfação das necessidades sociais aparece de forma explícita na previsão de direitos sociais e econômicos e nos dispositivos relativos aos serviços públicos (artigos 6º, 7º, 8º, 9º, 21, X, XI e XII, 175, 178, 194, 196, 199, 201, 203, 205, entre vários outros).

A política econômica constitucional está incluída na função de direção do processo econômico geral, como, por exemplo, nos dispositivos relativos ao desenvolvimento (artigo 3º, II), pleno emprego (170, VIII), política monetária (artigos 21, VII e VIII, 164, 172 e 192) e distribuição de renda (artigos 3º, III, 21, IX, 170, VII, entre vários outros).

Finalmente, a função transformadora da constituição econômica está prevista nos objetivos da República (artigo 3º), na reforma urbana e na reforma agrária (artigos 182 a 191), entre outras disposições espalhadas pelo texto constitucional.

A constituição econômica de 1988 é, portanto, uma constituição econômica diretiva, ou seja, dotada de um programa explícito de política econômica incorporado ao seu texto.

5. A CRISE DA POLÍTICA ECONÔMICA

A partir da década de 1970, com a hegemonia neoliberal no mainstream econômico, se tornou costume decretar a morte da macroeconomia. Para os dirigentes políticos e economistas adeptos da perspectiva neoclássica ressuscitada com a ruptura dos Acordos de Bretton Woods e com a crise do petróleo, só haveria uma única política econômica racional, a política ortodoxa de ajuste fiscal e privatização, em que a busca do pleno emprego deixa de ser um objetivo a ser perseguido. Esta seria a única política econômica neutra, técnica, de validade universal. Deste modo, não haveria como partidos políticos de origens ideológicas distintas administrarem de

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forma diferenciada a política econômica. A expressão já referida aqui, da ex-Primeira Ministra Margaret Thatcher, “TINA” (“There Is No Alternative”) simboliza este momento da falta de reflexão sobre a política econômica59.

Corolário desta “morte” da política econômica é, como enfatiza Leda Paulani, a administração do Estado como se fosse um negócio, resultando geralmente na dilapidação do patrimônio público e no reforço do poder econômico privado60. Em termos de direito econômico internacional, não por acaso, como constata Hermes Marcelo Huck, há uma tentativa dos grandes players do comércio internacional em impôr a vinculatividade de uma nova lex mercatoria, longe dos controles e limitações das soberanias estatais61. Aparentemente, o “moinho satânico” de Karl Polanyi, ou seja, as engrenagens da economia capitalista que esmagam as condições de vida das pessoas em geral, parece estar atuando sem nenhum controle novamente62.

A imposição de uma única política econômica possível fundamenta também uma das principais críticas feitas à constituição dirigente brasileira, a direcionada ao suposto fato de a constituição pretender “amarrar” a política, especialmente a política econômica, substituindo o processo de decisão política pelas imposições constitucionais. Ao dirigismo constitucional foi imputada a responsabilidade maior pela alegada “ingovernabilidade” do país.

O curioso é que são apenas os dispositivos constitucionais relativos a políticas econômicas e direitos sociais que “engessam” a política, retirando a liberdade de atuação do legislador ou do governo. E os mesmos críticos da constituição dirigente são os grandes defensores das políticas de estabilização e de supremacia do orçamento monetário sobre as despesas sociais. Em relação à imposição, pela via da reforma constitucional e da legislação infraconstitucional, das políticas ortodoxas de ajuste fiscal e de liberalização da economia, não houve, paradoxalmente, qualquer manifestação de que se estava “amarrando” os futuros governos a uma única

59 Leda Maria PAULANI, Brasil Delivery, 15-16, 28-30 e 117-125 e Luiz Gonzaga de Mello BELLUZZO, Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX, pp. 101-104.60 Leda Maria PAULANI, Brasil Delivery, pp. 120-125.61 Hermes Marcelo HUCK, Sentença Estrangeira e Lex Mercatoria: Horizontes e Fronteiras do Comércio Internacional, São Paulo, Saraiva, 1994, pp. 116-122.62 Karl POLANYI, The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time, 2ª ed, Boston, Beacon Press, 2001, pp. 35 e 234.

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política possível, sem qualquer alternativa. Ou seja, a constituição dirigente das políticas econômicas e dos direitos sociais é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da “ingovernabilidade”.

Já a constituição dirigente invertida, isto é, a constituição dirigente das políticas neoliberais de ajuste fiscal é vista como algo positivo para a credibilidade e a confiança do país junto ao sistema financeiro internacional. Esta, a constituição dirigente invertida, é, pelo visto, a verdadeira constituição dirigente, aquela que vincula toda a política do Estado brasileiro à uma única política econômica: a da tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada63.

Este discurso de reforço do liberalismo é, como afirma Luiz Gonzaga Belluzzo, um método de bloquear o avanço das classes subordinadas na conquista dos seus direitos, constitucionalmente assegurados64. O método deste bloqueio é o apelo cada vez mais frequente ao que vários autores, como Paulo Arantes, Leda Paulani, Francisco de Oliveira e eu mesmo, denominamos de estado de exceção econômico permanente, ou seja a violação constante das regras para a manutenção do próprio sistema capitalista65.

Neste contexto externo desfavorável do estado de exceção econômico, faz sentido ainda falarmos em uma constituição dirigente, que incorpora uma série de políticas econômicas em seu texto?

A constituição tem vários significados e funções, como bem demonstrou a exposição célebre de Hans Peter Schneider. Dentre estas, no entanto, merece destaque a visão de Ulrich Scheuner, inspirada em Rudolf Smend, da constituição como um símbolo da unidade nacional. Herbert Krüger vai além, e entende a constituição como um projeto de integração nacional, o que, no nosso caso, seria interessante para compreender a

63 Gilberto BERCOVICI & Luís Fernando MASSONETTO, “A Constituição Dirigente Invertida: A Blindagem da Constituição Financeira e a Agonia da Constituição Econômica”, Boletim de Ciências Económicas, vol. XLIX, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2006, pp. 57-77.64 Luiz Gonzaga de Mello BELLUZZO, Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX, pp. 45, 63-65 e 117-120.65 Paulo Eduardo ARANTES, Extinção, São Paulo, Boitempo Editorial, 2007, pp. 34-35, 38-47, 61-70, 73-97, 102-134, 153-165, 176-178, 185-190 e 279-284; Gilberto BERCOVICI, Constituição e Estado de Exceção Permanente: Atualidade de Weimar, Rio de Janeiro, Azougue Editorial, 2004, pp. 171-180; Luiz Gonzaga de Mello BELLUZZO, Ensaios sobre o Capitalismo no Século XX, pp. 121-123, 125-129 e 135-138 e Leda Maria PAULANI, Brasil Delivery, pp. 137-138.

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Política Econômica e Direito Econômico

idéia da constituição como um projeto nacional de desenvolvimento66. O sentido da constituição dirigente no Brasil está vinculado, na minha visão, à concepção da constituição como um projeto de construção nacional.

Uma hipótese que defendo é a de que os Estados que buscam terminar a sua construção nacional, como o Brasil, acabaram adotando a idéia da constituição como um plano de transformações sociais, fundada na visão de um projeto nacional de desenvolvimento. Esta hipótese poderia explicar a concepção de constituição dirigente adotada pela Assembléia Nacional Constituinte de 1987-1988. E o corolário disto seria a visão de que a crise constituinte brasileira seria superada com o cumprimento do projeto constitucional de 1988, que concluiria a construção da Nação.

A constituição dirigente brasileira de 1988, portanto, faz sentido enquanto projeto emancipatório, que inclui expressamente no texto constitucional as tarefas que o povo brasileiro entende como absolutamente necessárias para a superação do subdesenvolvimento e para a conclusão da construção da Nação, e que não foram concluídas. Enquanto projeto nacional e como denúncia desta não realização dos anseios da soberania popular no Brasil, ainda faz muito sentido falar em constituição dirigente.

Desta forma, entendo que, nas atuais circunstâncias, cabe ainda mais ao Estado brasileiro, com os instrumentos constitucionais e jurídico-econômicos de que dispõe, atuar no sentido de transformar as estruturas econômicas e sociais para superar o subdesenvolvimento. Este é o “desafio furtadiano”, explicitado por Celso Furtado no livro Brasil: A Construção Interrompida 67. A grande tarefa do Estado brasileiro é a superação do subdesenvolvimento, da sua condição periférica.

66 Vide Hans Peter SCHNEIDER, “Die Verfassung: Aufgäbe und Struktur”, Archiv des öffentlichen Rechts, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), Sonderheft, 1974, pp. 68-75; Ulrich SCHEUNER, “Verfassung” in Staatstheorie und Staatsrecht: Gesammelte Schriften, Berlin, Duncker & Humblot, 1978, p. 174 e Herbert KRÜGER, “Die Verfassung als Programm der nationalen Integration” in Dieter BLUMENWITZ & Albrecht RANDELZHOFER (orgs.), Festschrift für Friedrich Berber zum 75. Geburtstag, München, Verlag C.H. Beck, 1973, pp. 247-249 e 272. Rudolf Smend defendia, no célebre Debate de Weimar, a constituição como uma realidade integradora, permanente e contínua. Cf. Rudolf SMEND, Verfassung und Verfassungsrecht in Staatsrechtliche Abhandlungen und andere Aufsätze, 3ª ed, Berlin, Duncker & Humblot, 1994, pp. 189-196. 67 Celso FURTADO, Brasil: A Construção Interrompida, 2ª ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992, p. 13 e Gilberto BERCOVICI, Desigualdades Regionais, Estado e Constituição, São Paulo, Max Limonad, 2003, pp. 35-44.

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Gilberto Bercovici

Esta tarefa está, como sabemos, constitucionalmente determinada, não apenas no artigo 3º da Constituição de 1988, que estabelece que o desenvolvimento nacional é objetivo da República, nem apenas no artigo 170, I da Constituição, que visa reafirmar a soberania econômica nacional. Há na Constituição, ainda, a previsão expressa da política de internalização dos centros de decisão econômica do país, no seu artigo 219, que determina que o mercado interno integra o patrimônio nacional e que deve ser incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País.

O mercado interno não é sinônimo de economia de mercado, como pretendem alguns. A sua inclusão no texto constitucional, como parte integrante do patrimônio nacional, significa a valorização do mercado interno como centro dinâmico do desenvolvimento brasileiro, inclusive no sentido de garantir melhores condições sociais de vida para a população. Este artigo reforça a necessidade de autonomia dos centros decisórios sobre a política econômica nacional, complementando os artigos 3º, II e 170, I da Constituição.

Em suma, a Constituição de 1988 prescreve como principal política econômica para o Brasil uma política deliberada de desenvolvimento, na qual a tarefa do Estado é superar o subdesenvolvimento, concluir a “construção da Nação”, nos dizeres de Celso Furtado. A reflexão sobre esta política também tem uma tradição nesta Casa, embora não seja uma tradição majoritária. Ela surge na tese Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, que foi apresentada no célebre Concurso de Cátedra de Economia Política desta Faculdade em 1954 por Caio Prado Jr, ou seja, trata-se da tese de cátedra com a qual Caio Prado tentou obter esta mesma cadeira que hoje está sendo submetida a concurso. Disse, em 1954, Caio Prado Jr, em um texto ainda repleto de marcante atualidade, que a tarefa do Estado brasileiro, portanto, a tarefa do direito econômico brasileiro, é justamente trazer “a libertação definitiva do nosso país e nacionalidade de seu longo passado colonial” 68. Este ainda é, em minha convicção, o tema central de toda e qualquer reflexão a ser realizada a partir do direito econômico e da economia política nesta Universidade.

68 Caio PRADO Jr., Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, mimeo, São Paulo, Tese de Cátedra (Faculdade de Direito da USP), 1954, pp. 236 e 240.

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Constituição Econômica e ConcorrênciaLAFAYETE JOSUÉ PETTER

1. INTRODUÇÃO

A expressão Constituição Econômica tem o significado de referir-se ao conjunto de normas constitucionais que, exclusivamente ou não, regulam fatos que repercutem no modo de ser econômico da sociedade. É a regulação jurídica da Economia no sentido mais amplo que esta afirmativa comporta. Neste sentido, preceitos outros, atinentes à ordem econômica, encontram-se não apenas no art. 170 e seguintes, mas em diversas passagens do texto constitucional. Exemplificativamente, o objetivo fundamental da República Federativa do Brasil de garantir o desenvolvimento nacional, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza e a marginalização e promovendo o bem de todos com redução das desigualdades (CF, art. 3º), por certo está umbilicalmente relacionado com os preceitos voltados para a atividade econômica (CF, art. 170 e ss.). Nesta toada, a falta de desenvolvimento, ou, dito de outro modo, o estado de subdesenvolvimento69, deve ser compreendida como a antítese do receituário constitucional, reclamando redobrados esforços de superação na atividade afeta a todos os operadores do Direito, v.g., impondo aos administradores públicos um mínimo

69 O subdesenvolvimento de nossos dias, a bem da verdade, apresenta características originais, inteiramente desconhecidas até o século passado. Países subdesenvolvidos não são totalmente ricos nem totalmente pobres, nem modernos, nem atrasados. Há, de fato, uma tensão entre o pólo rico e o pólo pobre, entre o moderno e o arcaico, abismo socioeconômico que se agudiza em quadros de concentração de renda, como é o caso do Brasil. O subdesenvolvimento importa numa dinâmica de desequilíbrio econômico e de desarticulação social.

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Lafayete Josué Petter

de programação de políticas públicas de longo prazo. O desenvolvimento, por outro lado, se liga diretamente à atividade econômica (num sentido amplíssimo), cuja ordenação é feita a partir do texto constitucional. Este, por sua vez, adota como fundamentos da ordem econômica a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa (CF, art. 170). Não haveria de ser de outro modo. Entre os próprios fundamentos do Estado brasileiro (CF, art. 1º) estão os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Daí se iniciarem estas anotações pela análise de tão relevantes fundamentos.

A análise das constituições econômicas brasileiras pretéritas dá conta de que determinados valores, ora assumem a qualificação de fundamento da ordem econômica, ora consubstanciam um princípio. Há de se tomar a ideia de fundamento como a causa da ordem econômica, ligando-se, portanto, ao próprio objetivo por ela pretendido, enquanto que os princípios serão os elementos pelos quais aquela ordem se efetivará, ou seja, o ponto de partida para esta efetivação, e que, portanto, não pode ser relegado. Como adverte Washington Peluso, fundamento, no sentido aristotélico, é tomado como causa no sentido de razão de ser. Já princípio caracteriza o ponto de partida de um processo qualquer. Um exame das constituições brasileiras revela que elas foram dúbias e inseguras na adoção destes elementos ora situando-os como fundamento ora como princípios. Como destaca o professor70, “um inegável empirismo semântico faz com que os termos fundamentos e princípios, em seu uso jurídico, adquiram um sentido mal definido, sendo por vezes assemelhado.” Para o exame pretendido no estudo, contudo, já fica assentado que a livre concorrência (inciso IV do artigo 170), por caracterizar um princípio, indica um caminho a ser percorrido para o atingimento do fim da ordem econômica, alicerçado em seus dois fundamentos, razão de ser da normalização do fenômeno econômico em sede constitucional.

O exame das disposições consagradas no título da ordem econômica nos indica a opção do constituinte por um modelo capitalista de produção, onde os agentes econômicos disputam livremente em uma economia de mercado. Curioso que o mercado só é referido na Constituição Federal no art. 219, dentro do Título VIII, que trata da ordem social, no capítulo

70 SOUZA, Washigton Peluso Albino de. Teoria da Constituição Econômica. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 115.

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Constituição Econômica e Concorrência

destinado à ciência e à tecnologia71. Mas, ultrapassada a concepção estritamente liberal de Estado, o capitalismo, hodiernamente, tem sido matizado por variados graus de intervencionismo estatal. Os limites da atuação interventiva do Estado, portanto, constituem parte essencial do estudo dedicado ao regramento jurídico da economia. Há de se rememorar que a partir da Revolução Industrial, no século XIX, caracterizada pela crescente concentração de capital e pelo aguçamento das desigualdades sociais, é que esta ação interventiva se potencializou, no intuito de corrigir as disfuncionalidades naturais que a ordem evolutiva espontânea da economia fez surgir no cenário socioeconômico real do nascente capitalismo. A história é reveladora da ideia de que a presença estatal – normativa e, portanto, exegética – haverá de ser graduada em sintonia e proporção às injustiças e abusos de toda ordem identificados na realidade socioeconômica72. Isto

71 Diz o referido artigo: “Art. 219 - O mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal”72 Extremamente instigantes e atuais são os ensinamentos contidos na Encíclica Papal Centesimus Annus, de sua Santidade o Papa João Paulo II, em homenagem centenária àquela que sempre é lembrada como inspiradora das primeiras constituições que trataram do tema econômico, a Rerum Novarum, de 1897, do papa Leão XIII, inspiradora da Constituição Mexicana de 1917 e da Constituição alemã de Weimer, de 1919. Disse o Pontífice, verbis: “Estas considerações gerais refletem-se também no papel do Estado no setor da economia. A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, o de garantir essa segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, conseqüentemente, sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica. Outra tarefa do Estado é a de vigiar e orientar o exercício dos direitos humanos, no setor econômico; neste campo, porém, a primeira responsabilidade não é do Estado, mas dos indivíduos e dos diversos grupos e associações em que se articula a sociedade. O Estado não poderia assegurar diretamente o direito de todos os cidadãos ao trabalho, sem uma excessiva estruturação da vida econômica e restrição da livre iniciativa dos indivíduos. Contudo isto não significa que ele não tenha qualquer competência neste âmbito, como afirmaram aqueles que defendiam uma ausência completa de regras na esfera econômica. Pelo contrário, o Estado tem o dever de secundar a atividade das empresas, criando as condições que garantam ocasiões de trabalho, estimulando-se onde for insuficiente e apoiando-a nos momentos de crise. O Estado tem também o direito de intervir quando situações particulares de monopólio criem atrasos ou obstáculos ao desenvolvimento. Mas, além destas tarefas de harmonização e condução do progresso, pode desempenhar funções de suplência em situações excepcionais, quando setores sociais ou sistemas de empresas, demasiado débeis ou em vias de formação, se mostram inadequados à sua missão. Estas intervenções de suplência, justificadas por urgentes razões que se prendem com o bem

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Lafayete Josué Petter

nos remete ao exame do princípio constitucional econômico da defesa da concorrência, como inserido na Constituição Econômica prevista no texto constitucional. Não se olvide: é na vivificação constitucional, sobremodo em sua principiologia, que se haverá de encontrar a legitimidade da aplicação das normas jurídicas, fundamento e limite das demais fontes normativas e ápice referencial de todo o agir hermenêutico. Há de se ter o cuidado para evitar-se significados excessivamente idealistas, pois conduzirão à utopia. E também significados que apenas e sempre traduzem o que já se encontra posto na realidade, pois neste caso conduzirão à inocuidade. A Constituição e o significado que ela traduz é o delicado ponto de encontro entre o real e o ideal de uma sociedade73.

comum, devem ser, quando possível, limitados no tempo, para não retirar permanentemente aos mencionados setores e sistemas de empresas as competências que lhes são próprias e para não ampliar excessivamente o âmbito da intervenção estatal, tornando-se prejudicial tanto à liberdade econômica como à civil. Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o “Estado do bem-estar”. Esta alteração deu-se em alguns Países, para responder de modo mais adequado a muitas necessidades e carências, dando remédio a formas de pobreza e privação indignas da pessoa humana. Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como “Estado assistencial”. As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio da subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum. Ao intervir diretamente, irresponsabilizando a sociedade, o Estado assistencial provoca a perda de energias humanas e o aumento exagerado do setor estatal, dominando mais por lógicas burocráticas do que pela preocupação de servir os usuários com um acréscimo enorme de despesas. De fato, parece conhecer melhor a necessidade e ser mais capaz de satisfazê-la quem a ela está mais vizinho e vai ao encontro do necessitado. Acrescente-se que, freqüentemente, um certo tipo de necessidades requer uma resposta que não seja apenas material, mas que saiba compreender nelas a exigência humana mais profunda. Pense-se na condição dos refugiados, emigrantes, anciãos ou doentes e em todas as diversas formas que exigem assistência, como no caso dos toxicômanos: todas estas são pessoas que podem ser ajudadas eficazmente apenas por quem lhes ofereça, além dos cuidados necessários, um apoio sinceramente fraterno” (PAULO II, João. Centesimus Annus. Carta Encíclica de João Paulo II. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 89/91).73 Como ensina Ernst Benda: “Independentemente de todos os matizes e modificações imagináveis e realizadas em diversos países sob as mais variadas formas, existem duas formas constitutivas puras entre as quais pode ser feita a opção: a) a economia de administração centralizada, que elabora o plano econômico central e o cumpre, e b) a economia de comércio ou de mercado, na qual a elaboração do plano está tão descentralizada, que em última essência cada empresa, e cada consumidor, toma para si a decisão que lhe cabe. A fim de realizar um destes tipos básicos ou mistos dos mais variados, a Constituição, como mais importante norma do ordenamento jurídico, tem um papel a preencher essencial, porém aqui também não um que lhe seja compulsório. O Direito Econômico e em especial a

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Constituição Econômica e Concorrência

Neste forma de pensar, foi extremamente cuidadoso o constituinte ao colocar num mesmo topos normativo – CF, art. 170 – princípios que brotam do espontâneo movimento de nossa realidade, exemplificativamente, livre iniciativa e propriedade privada, com outros, não menos importantes, mas não tão espontâneos assim, tais como função social da propriedade, redução das desigualdades sociais e regionais etc., somente concretizáveis através da necessária interferência estatal, no sentido normativo aqui desenvolvido, corrigindo rumos e conferindo significado à existência do próprio Direito. Toda esta principiologia atua na confecção final do significado da defesa e proteção da concorrência, que não deve ser analisada isoladamente, pena de se converter, num misto de idolatria e rigidez, desvirtuando o significado do todo normativo. Sob o olhar constitucional, aplicar a lei, mormente a Lei de Proteção da Ordem Econômica74 significa, pois, aplicar a alma hierárquica

Constituição econômica podem fixar diretrizes gerais no âmbito das quais o ordenamento econômico concreto pode se realizar. Não é certo entretanto se a Constituição deva regulamentar todos os detalhes dos pressupostos da ação econômica privada e pública. Quanto mais rígidas forem as imposições constitucionais, tanto menor será a mobilidade de adaptação da economia às transformações das situações e às necessidades. Uma economia de mercado pura pode comprovar ser incapaz para enfrentar crises que surjam repentinamente; toda economia planificada tende para uma burocratização dispendiosa e inflexível face a situações modificadas” (BENDA, Ernst. Op. cit., p. 242).74 “A Lei 8.884/1994, desde a sua aparição, tem sido designada pelo nome ‘lei antitruste brasileira’ ou ‘lei de defesa da concorrência’. Em nossa modesta opinião, tal ‘rotulagem’ não lhe cai bem. Apesar de evidenciar um dos mais relevantes fins que se lhe atribui – a defesa da concorrência –, ela é, na verdade, mais do que isso. Daí ser incorreto fundamentá-la, tão-somente, no § 4º do art. 173 da Constituição Federal, seu mais imediato e óbvio assento constitucional. Um exame detido da normatividade inserida em seu texto revela-nos ser ela uma valiosa ferramenta normativa à disposição dos operadores do Direito, pronta a proteger os princípios e valores inseridos nas disposições relativas à ordem constitucional econômica. Por exemplo, o abuso do poder econômico, a cada dia mais versátil e inovador em suas aparições na realidade fática, nem sempre adota a forma de uma ação anticoncorrencial. Ademais, a própria Lei 8.884/1994, logo no seu art. 1º, trata de esclarecer que a titularidade dos bens jurídicos tutelados pertence a toda a coletividade. A problematização e juridicização da realidade econômica do patamar e interesse da sociedade como um todo, que se impõe àqueles que vasculham os escaninhos da Lei 8.884/1994, além de corroborar o que acima se disse, afasta, por óbvio, estritos pontos de vista econométricos, comuns no trato das questões que a citada lei regula. Daí nossa preferência pela expressão “lei de proteção da ordem econômica”, mais apropriada para a grande missão reservada à Lei 8.884/1994. Também assim se posiciona Waldir Alves, fundamentando, inclusive, sua argumentação em Alexy. Disse o citado autor, verbis: ‘Quanto à denominação dada para a Lei 8.884/1994 (= Transforma o Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE em autarquia, dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica e dá outras providências), costumeiramente tratada de Lei Antitruste, oportuno que essa denominação seja objeto de reflexão, quer pelo fato de a própria lei não trazer essa denominação, quer por ser o seu objeto mais amplo do que somente a proteção do mercado contra o truste (trust – cartel, monopólio etc.), pois também protege outros valores como

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e finalística do direito, neste caso, a perseguição dos fins proclamados para a ordem econômica.

2. O FUNDAMENTO DA ORDEM ECONÔMICA VALORIZAÇÃO DO TRABALHO HUMANO

A inserção da valorização do trabalho humano como fundamento da Ordem Econômica nos remete à consideração do mesmo não apenas como fator de produção e que, portanto, deve ser trabalhado no âmbito da política econômica. Aqui sobreleva a consideração de aspectos qualitativos, evitando-se a adoção de visões demasiadamente patrimonialistas comuns no trato do tema. Destaque-se dois pontos nucleares. O primeiro deles, diz com o fato de que ele é muito mais do que um fator de produção. Diz respeito mesmo à dignidade da pessoa humana, merecendo, por tal razão, ser adequadamente compendiado. No primeiro aspecto, valorizar o trabalho humano, tem o significado de mais trabalho (mais postos de trabalho, mais oferta de trabalho), mas também melhor trabalho, nesta expressão se acomodando todas as alterações fáticas que repercutam positivamente na pessoa do trabalhador, O trabalho exercido com maior satisfação, com menor risco, com mais criatividade, com mais liberdade. Num segundo aspecto, que diz respeito ao mercado, marcado por ideologias indisfarçadamente liberais, onde se encara o trabalho preponderantemente como fator de produção e custo, este mesmo mercado não pode, e este o segundo aspecto, não pode prescindir das consequências da valorização do trabalho humano. Este um aspecto paradoxal75.

a liberdade de iniciativa, a propriedade e especialmente os consumidores, entre outros, o que nos leva a tratá-la como Lei de Proteção da Ordem Econômica. Adotaremos a denominação ‘proteção’ por exigir uma atuação positiva do Estado, enquanto a denominação ‘defesa’ pode ser interpretada em razão da sua utilização como se somente exigisse uma atuação negativa do Estado, conforme distinção apresentada por Robert Alexy ao tratar dos direitos fundamentais de proteção: ‘Los derechos a protección y los derechos de defensa han sido contrapuestos reciprocamente porque los primeros son derechos a acciones positivas y los segundos a acciones negativas’ (Alves, Waldir, Revista de Direito da Concorrência, nº 4, out. A dez/2004. Atuação do Ministério Público Federal junto ao CADE e nos processos cíveis e penais de infração contra a ordem econômica e as relações de consumo) in PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica. São Paulo: RT, 2ª ed, 2008, p. 329.75 Assim se pronuncia Geraldo Feix: “O mercado pode prescindir do trabalhador substituindo-o por capital, tecnologia, informação e escala, mas não pode sobreviver sem consumidores e sem ideologia. Sem trabalho, os homens perdem o referencial enquanto homens modernos e não sabem o que fazer das mãos e mentes desocupadas, e muito menos o que fazer para o sustento próprio e das suas famílias. O descarte do trabalho enquanto finalidade econômica e até mesmo enquanto fator de produção em

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Até os próprios trabalhadores, quando concentram muito poder, tendem a conspirar contra a liberdade de trabalho, desvalorizando-a. Lembremo-nos do exemplo dos serviços portuários, que ficaram organizados de tal forma que os trabalhadores já empregados, dada a concentração de poder que possuíam, chegavam a praticamente determinar as decisões da empresa no tocante à contratação de novos empregados e ao comportamento da mesma no mercado. Esta situação é incompatível com a liberdade de empresa – faceta da liberdade de iniciativa – e conspira contra a liberdade ao trabalho daquelas pessoas que não estão ainda contratadas.

Avançando no tema, a valorização do trabalho humano conecta-se ainda com vários outros pontos da constituição Federal como, v.g., ao usucapião pro labore e mesmo à temática do subemprego, do mercado informal, do trabalho escravo, da mão de obra infanto-juvenil, etc. Um tema candente e atualíssimo diz com a necessidade ou não da flexibilização da normas trabalhistas. Aqui cabem algumas considerações. Os atuais impulsos em direção à flexibilização das normas trabalhistas deve-se ao fato de serem consideradas, por muitos, rígidas e abstratas, o que impede ou dificulta em demasia potenciais espaços de negociação, tanto em nível coletivo como em nível individual. Certo é, entretanto, que o ordenamento, a principiar pelo texto constitucional, dá realce à proteção do trabalhador, e constitui tarefa difícil sinalizar em que medida a flexibilização conduziria ao escopo da valorização do trabalho humano. Espaços negociais maiores propiciariam uma certa personalização dos contratos celebrados, mas há de se admitir que o Direito do Trabalho, tal qual

setores genéricos da economia, se a curto prazo representa ganho na redução de custos e diminuição de preços, a médio e longo prazo gera o rompimento da precária homeostase do sistema, acirrando a competição entre grupos, nações e etnias. Por outro lado, a redução das pessoas empregadas faz reduzir, na mesma proporção, o potencial de consumo, desestabilizando social e economicamente todo o sistema. Durante séculos, por necessidade e por sobrevivência, mas também por prazer, inteligência, o ser humano ensinou a seus filhos e gerações que o trabalho era fonte da riqueza e da dignidade, modo de agradar a Deus e aos homens e de multiplicar os dons da natureza. Sem acenarem com qualquer alternativa ou salvaguarda, os economistas e estrategistas neoliberais deixam milhões de pessoas no vácuo econômico sem salário, emprego ou condição de sustento. A humanidade desenvolveu a agricultura. A agricultura propiciou a pólis. A pólis tornou possível a ágora e criou o mercado para trocar o produto dos camponeses. O mercado moderno asfixiou a cidade, os camponeses e os próprios mercadores, os comerciantes. Pode haver comércio sem compradores para as mercadorias? Pode haver consumidores sem emprego que os assalarie? O estágio atual do capitalismo asfixiou a pólis e o camponês, mas agora começa a asfixiar o próprio conceito e suporte do mercado, sem o qual não sobrevive” (apud CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Ordem jurídico-econômica e trabalho. p. 69).

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formulado, não admite facilmente doutrinas pertinentes ao enquadramento das figuras subjetivas levadas em consideração. Ademais, no equacionamento deste problema não se há de olvidar os efeitos da crescente globalização, onde se vai diluindo a capacidade de o Estado estabelecer unilateralmente normas de Direito do Trabalho, seja pela vigência de tratados internacionais, seja pela mútua influência estabelecida entre as economias dos diversos países, cujos desdobramentos econômicos estritos, seja da atividade econômica mundializada, seja da análise da legislação em vigor, estão na ordem do dia das decisões dos agentes, que espontaneamente adotam a lógica econômica e só coercitivamente perfilham condutas que incorram em maiores custos.

As reações à flexibilização das normas trabalhistas também têm por razão a baixa participação dos atores sociais interessados e diretamente atingidos na formulação das políticas públicas e normativas correspondentes. Este aspecto deve ser adequadamente enfrentado de modo a ser evitado, seja em homenagem ao princípio democrático, seja porque desta forma os ganhos de eficácia social de novos padrões de contratualidade, eventualmente estabelecidos, ganhariam adesão mais espontânea e voluntária. Entretanto, há de se ter presente a ponderação de que a descaracterização do princípio da proteção do trabalhador, que está na base do Direito do Trabalho, levaria, mais cedo ou mais tarde, a modificações significativas da própria disciplina. Esta constatação, por outro lado, não é impeditiva das adaptações que se fizerem necessárias, próprias da historicidade que marca o fenômeno jurídico em si. Mas não se há de confundir flexibilização com desregulamentação, esta de caráter mais devastador para a proteção do trabalho.

3. O FUNDAMENTO DA ORDEM ECONÔMICA LIVRE INICIATIVA

A livre iniciativa76 constitui o outro fundamento da ordem econômica. Pode ser traduzida no direito que todos têm de se lançarem ao mercado de

76 Falando sobre a liberdade de iniciativa econômica, assim leciona a doutrina: “A liberdade de iniciativa econômica é um quid pluris. Não se reduz à soma de outras liberdades, não se exaure no exercício do direito de propriedade e da liberdade contratual. É um poder de utilização de faculdades jurídicas, reconhecido tanto à pessoa natural quanto à jurídica, e, neste caso, manifesta-se principalmente na atividade coletiva da empresa, de acordo com o tipo societário escolhido” (AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A liberdade de iniciativa econômica. Fundamento, natureza e garantia constitucional. Revista de Informação Legislativa, a. 23, n. 92, p. 229).

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produção de bens e serviços por sua conta e risco. Livre iniciativa é a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.

No mercado, por outro lado, verifica-se que em muitos segmentos há a ocorrência do fenômeno da concentração do poder econômico, que fica, por assim dizer, assenhorado nas mãos de uns poucos, com ofensa à livre iniciativa, invocando a necessidade de tutela e intervenção do Estado, pena de aquela, literalmente, sucumbir. Então, ao contrário do que se poderia imaginar, a intervenção do Estado no domínio econômico, muito antes de limitar a iniciativa e a liberdade do particular, tem por fim, mesmo, preservá-la. Não se há de duvidar das imensas barreiras, para não dizer da impossibilidade, do ingresso de novos agentes, quando nos deparamos com um mercado com características monopolistas e de agente em posição dominante. A livre iniciativa dos demais não estaria materialmente ofendida? Faz-se, então, necessária uma atuação estatal, corretiva desta situação77.

Mas esta atitude positiva do Estado no enfrentamento de alguns efeitos nefastos gerados por agentes econômicos, que podem adotar condutas desbordantes do receituário jurídico-econômico constitucional,

77 “Não se pode negar que a partir do momento em que o Estado passa a ser “intervencionista” (e nessa expressão não vai qualquer carga ideológica) há uma modificação no próprio princípio da livre iniciativa que, há muito, deixou de ser correlato a uma política de laissez faire. A atuação do Estado sobre a economia, cada vez mais, não é tida como indesejável pelo sistema jurídico que, ao contrário, a institui e regulamenta. É bastante natural, entretanto, que quando nos referimos à “livre iniciativa”, tenhamos em mente o conceito tradicional de liberdade (sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e de resultado) e pensemos no agente econômico atuando no mercado, com o mínimo de “repressão” estatal. Mas – insistimos – essa visão livre iniciativa (ou da livre concorrência e mesmo da autonomia privada) não exclui outra que lhe é complementar, de que essa mesma livre iniciativa, para que continue existindo, deve ser não apenas regulamentada, mas também conduzida pela autoridade governamental. Assim, no princípio da livre iniciativa (e da livre concorrência) abriga-se, também, a atuação estatal no sentido de (i) disciplinar comportamentos que resultariam em prejuízos à concorrência e (ii) disciplinar a atuação dos agentes econômicos, de forma a implementar uma política pública. Em conclusão, quando a autoridade antitruste autoriza ou coíbe um determinado comportamento do agente econômico, está justamente atuando o princípio da livre iniciativa e da livre concorrência, tal qual modernamente concebidos” (FORGIONI, Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1998, p. 228-230).

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também importa numa postura, por assim dizer, negativa. Neste sentido, e de acordo com o ideário liberal, há mesmo razões de ordem econômica e jurídica a barrar desmedidas intervenções do Estado na economia, aspecto amplamente regulado na Constituição Federal de 1988, na chamada intervenção direta do Estado na atividade econômica (CF, art. 173).

Como a atividade econômica tem por fundamento a livre iniciativa, ou seja, a liberdade do agente econômico de trilhar os caminhos que bem lhe aprouverem dentro do balizamento normativo autorizado pelo sistema jurídico, o exercício desta liberdade sempre e a cada dia surpreende, caracterizando-se o mercado como o mais dinâmico e produtivo dos sistemas econômicos, mas, pelo mesmo motivo, aquele que mais tende a abusar do poder econômico conquistado dentro deste espaço de liberdade. Na verdade, há uma dialética relação entre liberdade e abuso.

Ao fundamento da ordem econômica livre iniciativa corresponde, dentre outros, o princípio da liberdade de iniciativa econômica (art. 170, parágrafo único). Ele constitui a marca e o aspecto dinâmico do modo de produção capitalista. Consiste no poder reconhecido aos particulares de desenvolverem uma atividade econômica. É mesmo uma fonte axiológica de liberdade do particular perante o Estado e até perante os demais indivíduos, um atributo essencial da pessoa humana em termos de realização direta de sua capacidade, suas realizações e seu destino. É correto dizer que a liberdade de iniciativa econômica é um dos mais caros princípios da ordem econômica. O objetivo fundamental do desenvolvimento é por ele mais bem viabilizado. Ao contrário, toda vez que esta liberdade se faz ausente, o caminho trilhado é o inverso do telos constitucional. Quando se fazem exigências desproporcionais para micro e pequenos agentes econômicos, sejam de ordem burocrática, fiscal etc., põe-se em risco, ao menos indiretamente, a liberdade de iniciativa econômica daqueles. Quando se procura evitar que o poder econômico abuse de sua condição, está sendo considerada a liberdade de iniciativa daqueles que estão alijados de um determinado mercado, ou que, mesmo nele inseridos, sofrem com a ilicitude derivada da atuação de outros. Ficam maculados em sua liberdade, com desprestígio para a teleologia adotada na ordem constitucional econômica.

A contribuição que um mercado pujante dá ao processo de crescimento econômico tem sido acertadamente destacada pela literatura. No entanto, examinar o mercado tão-somente pela cifras numéricas globais que produz

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e ressaltar apenas este aspecto não toma em conta a liberdade de troca e de transação que é ínsita ao seu funcionamento. Nesse sentido, a livre iniciativa, fundamento da ordem econômica, informa a indispensabilidade de sempre se estar vigilante em relação à preservação desta liberdade, tomando-se em consideração um ponto de vista equitativo, mais consentâneo com os ideais democráticos e de justiça social, também fundamentos do Estado brasileiro.

4. O FIM DA ORDEM ECONÔMICA EXISTÊNCIA DIGNA

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. Neste sentido, nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da Constituição do que o princípio da dignidade da pessoa humana. Adotada a noção de Direito como sistema, fácil notar a relevante função delegada ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois propiciador da necessária visão harmônica, unitária e coerente que se há de extrair do conjunto das normas jurídicas, onde coabitam valores e princípios que emergem da realidade social em que este sistema se insere e da qual, portanto, jamais podem ser desvinculadas, pena de se tornarem incompreensíveis.

O fim da ordem econômica existência digna está relacionado com o princípio da redução das desigualdades sociais e regionais, pois a devida atenção para a pobreza78 e para as exclusões sociais é derivada e tem como ponto de ligação o respeito e acatamento da dignidade da pessoa humana.

78 Discorrendo sobre uma ética da necessidade como emancipatória dos indivíduos, conferindo-lhes dignidade, assim se manifesta Cecília Maria Pires: “A indigência resultante da pobreza atinge o universo dos bens materiais e culturais. O sujeito desprovido desses bens apresenta, nos limites da sua carência, a não-realização de sua subjetividade”. (...) Quando os clássicos gregos anunciavam que a felicidade, a alegria, a prudência e a sabedoria eram componentes essenciais da natureza humana, estavam

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Ou seja, vê-se no princípio da dignidade da pessoa humana preceito que viabiliza pretensões relacionadas ao mínimo existencial, mas que não seria suporte para direitos outros, sem a necessária intermediação legal. Mas há de se advertir que há também um conteúdo básico, sem o qual se poderá afirmar que o princípio foi violado e que assume caráter de regra e não mais de princípio. Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da dignidade, é composto pelo mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade.

A conclusão é que a dignidade da pessoa humana atrai para si e para a ordem econômica a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões. Fica fácil assim perceber porque o constituinte reafirmou o princípio ao dispor sobre a ordem econômica. É que os direitos fundamentais, de um modo ainda bem mais concreto e eficaz que outros princípios, mormente os programáticos, que podem consubstanciar objetivos da ordem econômica ou que fixem diretrizes, objetivos e programas a serem realizados, defendem, no campo econômico, os indivíduos e as liberdades individuais a eles creditadas. Aliás, é necessário ter clareza sobre como é improvável concretizar o ideal da liberdade humana e da dignidade individual, quando a ordem econômica que elegemos as contradigam.

registrando a singularidade do humano face ao não-humano. É no vértice desse entendimento que se movimenta ou se constrói a razão ética, como uma razão do humano, característica essencial daquela espécie postuladora de valores e produtora de todas as dimensões organizativas da sociedade e tudo o que daí decorre. (...) O que desejo sublinhar é a relevância de pensar o sujeito, como condição primeira a ser considerada em qualquer sistema econômico e político, que decida pela relevância ética nas relações intersubjetivas. Penso que esta é a forma de reconstituir-se um humanismo crítico. (...) Reitera-se, de um lado, que a situação de pauperização e miserabilidade é uma ausência ética, é um escândalo na esfera da subjetividade (Ética da Necessidade e outros desafios. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, p. 16-18). “Os despossuídos procuram suprir suas faltas de modo imediato, sem atenção a um projeto maior que resgate uma ação cidadã e democrática. É uma ética que se pauta por valores da urgência social, que não tem o tempo da vida e da sobrevivência para se envolver com a formalidade, com o regramento convencional. Aparece, então, uma outra racionalidade subsidiada na lógica das carências e não na lógica das satisfações. Esse imaginário caótico que identifico me induz a postular o conceito de ética da necessidade. Esse imaginário se apresenta reduzido às circunstâncias da falta, cujo pressuposto são a imanência, a imediatidade, a percepção de que há um corpo-consciência faminto, excluído da vida boa e justa e excluído da vida feliz” (PIRES, Cecília Maria. Ética da Necessidade e outros desafios. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2004, p. 27).

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5. O FIM DA ORDEM ECONÔMICA JUSTIÇA SOCIAL

Se a expressão existência digna nos remete ao princípio da dignidade da pessoa humana, considerada, preponderantemente, na sua individualidade, a justiça social diz respeito a uma espécie de dignidade coletiva. Não basta alguém possuir digna existência se aquele que está ao lado não possui dignidade alguma. Por isso que a justiça social está relacionada com a correção das grandes distorções que ocorrem numa sociedade, diminuindo distâncias e diferenças entre as diversas classes que a constituem, favorecendo os mais humildes. Evitar que os ricos se tornem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e oferecer idênticas oportunidades a todos constituem variações semânticas do termo sob comento.

Anote-se aqui. Esta referência, contrária à situação individual de extrema riqueza, deve-se, senão por outros motivos, pelo menos a duas singelas razões: em primeiro lugar, à indisfarçável ameaça à concretização do mais caro princípio democrático – o de que o poder emana do povo e em seu nome será exercido; em segundo lugar, ao fato de que a realização de cada um e de todos prescinde da referida situação e, no mais das vezes, é apenas reflexiva da desproporcionalidade abissal que se vislumbra no comparativo dos benefícios atomística e individualmente amealhados na práxis socioeconômica no cotejo com as carências absolutas de grande parte de nossa população.

A busca de uma igualdade substancial e mesmo a abolição de injustificados privilégios de alguns, distribuindo equitativa e proporcionalmente os ônus, os favores e as riquezas da produção social, sem nos deixarmos cair num sociologismo divorciado da ideologia constitucionalmente adotada, eis aí alguns dos objetivos visados pela justiça social.

Haverá, então, de se compreender a expressão justiça social como indicativa de que a solução jurídica adotada para o caso concreto reafirme a efetiva participação de todos, de modo direto ou reflexivo, nos benefícios frutificados pelo convívio social, certo de que o malogro ou sucesso da vida em sociedade a todos envolve e a todos alcança. Daí não guardarem adequação ao ideal de justiça formas de desenvolvimento que sejam medidas exclusivamente em função do crescimento econômico. A centralidade da pessoa humana, em sua dignidade, como fonte inspiradora do agir hermenêutico, põe em destaque que o verdadeiro desenvolvimento há de

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significar a transposição de melhores condições de vida para todos, realizando a justiça social. O aperfeiçoamento institucional do Estado de Direito não se dá de forma plena sem a realização da justiça social. Neste sentido, ao tratarmos das significações concorrenciais, objeto desta reflexão, sempre e sempre dever-se-á estar atento à proteção dos consumidores e à potencial ameaça que a concentração econômica excessiva carrega consigo. A atuação do agente econômico e seus movimentos no mercado, quando examinados a partir da lei de proteção da ordem econômica e da constituição Econômica sempre deverão estar consorciado com o interesse da coletividade e da preservação da liberdade dos demais agentes econômicos.

6. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO DA LIVRE CONCORRÊNCIA

Para o pleno entendimento da análise deste princípio, principiemos pela noção de concorrência perfeita ou mercado idealizado. Nesta hipotética situação de mercado, as empresas competem entre si, sem que nenhuma delas goze da supremacia em virtude de privilégios jurídicos, força econômica ou posse exclusiva de certos recursos. Seriam muitos os vendedores e muitos os compradores e, isoladamente, nenhum deles teria poder suficiente para dominar o mercado. Neste mercado ideal, os compradores estão cientes das opções que possuem e podem exercê-las livremente. Um mercado pulverizado, a substitutibilidade dos produtos e a liberdade de iniciativa econômica para o ingresso neste mercado são suas mais importantes características Nessas condições, os preços dos produtos e serviços formam-se perfeitamente segundo a correção entre a oferta e a procura, sem interferência predominante de compradores ou vendedores isolados. Os capitais circulam livremente entre os vários ramos e setores, transferindo-se dos menos rentáveis para os mais rentáveis em uma conjuntura econômica. De acordo com a doutrina liberal, a livre concorrência entre capitalistas constitui a situação ideal para a distribuição mais eficaz dos bens entre as empresas e os consumidores. Mais tecnicamente: a atomicidade do mercado, a homogeneidade do produto, a livre entrada na indústria, a perfeita transparência do mercado (todos os participantes do mercado têm um conhecimento completo de todos os fatores significativos do mercado), e, por fim, a existência de uma perfeita mobilidade dos fatores de produção.

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Porém, à idealização desta descrição do mercado ideal opõe-se a realidade da vida, rica em exemplificar casos de monopólios, de oligopólios79, somado ao fato de que os produtos, em muitos casos, são apenas parcialmente substituíveis, o que nos reconduz ao mercado real, onde impera a concorrência imperfeita ou mesmo a ausência de qualquer ambiente concorrencial. Não se observa a homogeneidade nos produtos e serviços ofertados, existem empresas dominantes e a tendência à concentração está na ordem do dia do modelo econômico vigente. Com o surgimento de monopólios e oligopólios, a livre concorrência desaparece, substituída pela concorrência controlada e imperfeita ou mesmo pela completa ausência de qualquer ambiente concorrencial.

Como visto acima, o princípio constitucional econômico da livre concorrência tem mesmo um caráter instrumental, pois a concorrência não constitui um fim em si mesma. Ou seja, a análise do antitruste deve partir do prisma da Constituição Federal, da Constituição Econômica, visando a seus fins. Por isto que se diz que o antitruste há de ser entendido como “uma técnica de que lança mão o Estado contemporâneo para implementação de políticas públicas, mediante a repressão ao abuso do poder econômico e a tutela da livre concorrência”80.

O papel reservado ao poder público, neste particular, é o de fomentar a livre concorrência. As realidades e condutas que se mostrarem atentatórias ao princípio necessitam ser expungidas, pena de o poder econômico abusar de sua condição, com nefastos efeitos para os demais agentes, para os consumidores e para a sociedade em geral. Ao Estado, então, é deferida a relevante tarefa de velar pela regularidade do mercado, seja na análise das condutas adotadas pelos agentes econômicos, seja no exame das estruturas de mercado. Ao disciplinar normativamente a defesa da concorrência, deve mesmo estabelecer um conjunto de regras que tenham por objetivo a intervenção do Estado na vida econômica, de modo a garantir que a competição das empresas no mercado não seja falseada por meio de práticas colusórias ou abusivas ou mesmo adotadas isoladamente por um único

79 Oligopólios, que tem o significado de poucos vendedores no mercado, também ficam caracterizados quando, mesmo que haja numericamente cerca de, digamos, 100 vendedores, os 10 maiores detenham a quase totalidade da produção e oferta.

80 FORGIONI. Paula A. Os Fundamentos do Antitruste, 2ª ed. São Paulo: RT, 2005, p. 23.

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agente econômico quando se encontrar em situação tal que lhe confira uma posição dominante, facilitando-lhe a prática de atitudes monopolísticas.

Ou seja, o poder econômico constitui fenômeno normal dentro do processo de produção e circulação da riqueza. O que se tem em mente quando da abordagem da defesa e proteção da concorrência é qual o limite que o sistema jurídico impõe a este poder, para além do qual incorrerá em abuso, com prejuízo para a liberdade econômica e para a justiça econômica? Nunca é demais repetir: a livre concorrência foi alçada à dignidade de princípio constitucional pela primeira vez na presente Constituição, numa Constituição onde a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano são os fundamentos da ordem econômica e incluem-se entre os princípios fundamentais da República.

Como anota Peluso, “destacando-se nas “relações de poder” a modalidade do poder econômico, teremos aquelas relações jurídicas já permeadas de sentido de relações econômicas, cujas motivações deverão ajustar-se ao objetivo de justiça, sob pena de se contraporem aos direitos que devem assegurar. O exercício do poder econômico, portanto, far-se-á em obediência a um equilíbrio de interesses postos em jogo de acordo com uma linha traçada como delimitadora do justo e do injusto e que, traçada pela lei jurídica, coincidirá com o lícito e o ilícito”81.

Diferentemente da forma aberta e interrogativa que subjaz ao pensamento do economista antepõe-se uma forma de pensar mais dogmática do operador do direito e sua preocupação com a decidibilidade de conflitos judiciais. Assim que a análise circunstanciada em cálculos econométricos, tão-somente, é útil, mas por certo insuficiente para um juízo de valor definitivo.

Faz-se aqui pequenas anotações sobre o fenômeno da concentração econômica, que tem potencial infirmador da concorrência. A favor das concentrações econômicas sempre é lembrado que ela resultará em maior grau de eficiência econômica, propiciando o fomento de economias de escala, uma operosidade em maior eficiência com benefícios aos consumidores, redução de gastos e custos fixos e mesmo o aumento de

81 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Repressão ao abuso do poder econômico. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 28, n. 112, out.-dez. 1991, p. 187.

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competitividade no cenário globalizado. Entretanto, o grau de concentração pode levar ao comprometimento do normal funcionamento do mercado, pois o poder ficará concentrado em mão de poucos, que podem atuar monopolisticamente, ou seja, com indiferença e independência em relação aos demais agentes econômicos, com prejuízos para os consumidores, o que é de todo intolerável.

Além disso, dada a aproximação da relação entre poder econômico e poder político tem-se a preocupação da pulverização do mercado com o escopo de tutelar o processo democrático. Ou seja, ocorre mesmo um paradoxo na análise das concentrações pois, como adverte Forgioni, lembrando outro autor: “ao mesmo tempo em que a concentração de capitais é vista como indispensável ao progresso e mesmo à eficiência do sistema produtivo, é também fator de instabilidade desse próprio sistema. Por esse motivo, a discussão sobre a regulamentação das concentrações e seu controle por parte das autoridades antitruste lidará, sempre, com o dilema: concorrência atomística ou eficaz? Mercados concentrados ou pulverizados?”82. Uma forma mais eficaz de enfrentar estas dificuldades consiste em serem alteradas as análises efetuadas (econométricas, no mais das vezes) e ser enfocado o tema sob o ângulo da normatividade constitucional econômica e da constelação de valores que ela erige como significantes, perfazendo uma análise que, privilegiando esta ou aquela solução, não descure de nenhum dos princípios e valores insculpidos na Constituição Econômica, ao menos de modo absoluto. Estes temas, para nós, são tratados na Lei de Proteção da Ordem Econômica.

7. ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A LEI Nº 8.884/94

7.1 Um microssitema próprioA lei de proteção da ordem econômica - Lei nº 8.884/94 – constitui um

microssistema próprio. Esta conclusão deriva da análise de seus dispositivos. Um exame detido da normatividade inserida em seu texto revela-nos ser ela uma valiosa ferramenta normativa à disposição dos operadores do Direito, pronta a proteger os princípios e valores inseridos nas disposições relativas à

82 FORGIONI. Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: RT, 1998, p. 368.

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ordem constitucional econômica. Por exemplo, o abuso do poder econômico, a cada dia mais versátil e inovador em suas aparições na realidade fática, nem sempre adota a forma de uma ação anticoncorrencial. Ademais, a própria Lei 8.884/1994, logo no seu art. 1º, trata de esclarecer que a titularidade dos bens jurídicos tutelados pertence a toda a coletividade. A problematização e juridicização da realidade econômica do patamar e interesse da sociedade como um todo, que se impõe àqueles que vasculham os escaninhos da Lei 8.884/1994, além de corroborar o que acima se disse, afasta, por óbvio, estritos pontos de vista econométricos, comuns no trato das questões que a citada lei regula. Daí nossa preferência pela expressão “lei de proteção da ordem econômica”, mais apropriada para a grande missão reservada à Lei 8.884/1994. Trata-se de diploma singular, próprio da evolução da normatividade nacional no tema, que encontra inspiração nos sistemas europeu e americano, para fins de caracterização do ilícito pelo objeto ou efeito, mas supera tanto esta tradição quanto aquela norte-americana no que tange à tipificação dos atos. O artigo 20 e 21 são nucleares para a análise concorrencial. Lembre-se, no Brasil, toda a evolução normativa no setor sempre esteve diretamente conectada à defesa do consumidor e à economia popular. Quando se diz que a coletividade é a titular dos bens jurídicos protegidos pela lei, está a se referir a existência de valores pertencentes a todos, potencializados na concretização de um mercado regular, no sentido de conforme à Constituição.

7.2 Infrações – algumas observaçõesA inserção da livre concorrência como princípio da ordem econômica

trouxe à concepção de abuso do poder econômico o sentido de uma infração contra o mercado. O centro da gravidade da infração deixa de estar na intencionalidade dirigida contra um concorrente, mas passa a localizar-se na significação objetiva da conduta para a manutenção da competitividade do mercado. Enfatizar este aspecto é importante, pois as primeiras leis sobre o abuso do poder econômico remontam à época do liberalismo clássico, baseadas na concorrência livre e na propriedade privada de todos os bens, quando, então, o abuso era entendido como ocorrente somente entre os agentes econômicos diretamente relacionados, numa visão privatista do fenômeno. Esta noção é distante da atual configuração de abuso, v.g.,

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via eliminação da concorrência, onde há de se ressaltar, numa linguagem econômica, que o prejuízo é de todos, pois a ofensa à livre concorrência ofende bem jurídico cuja titularidade pertence à coletividade em geral.

Entretanto, há de se lembrar que a competitividade no mercado, por mais importante que possa ser, não é um valor absoluto que justifique por si só o sacrifício de todos os outros relevantes valores que compõem a ordem constitucional econômica, dentre eles a própria expansão e universalização da dignidade entre as pessoas e a busca incessante da justiça social, fins constitucionalmente adotados e que não são meros preceitos enxertados em uma carta de intenções.

Por outro lado, é incorreto dizer que a Lei nº 8.884/94 possa pré-dizer, de antemão e independente de toda e qualquer circunstância, qual seja a resposta para um fato que subsuma-se à sua esfera de juridicidade. Discussões excessivamente gerais sobre os objetivos da Lei Antitruste, sem que seja determinada a lei e o momento de que se trata, são, de certa maneira, estéreis. Ela não pode ser subsumida em um único objetivo. Assim, “mais do que objetivos, estamos falando de relação entre instrumentos e objetivos possíveis. E, acima de tudo, estamos tratando com princípios”. Essas conclusões são indispensáveis “para que não se caia na tentadora armadilha da indiscriminada transposição das teorias econômicas para o campo do direito da concorrência”83.

Esta economização do fenômeno jurídico induz a crença de que possa existir um objetivo único e pré-determinado para qualquer situação, olvidando-se do contexto e dos conflitos de interesses existentes. E, pior, este modo de ver as coisas desvia do ponto fulcral da Lei Antitruste: de que ela é instrumental a uma determinada política econômica, possuindo, desta forma, objetivos bem próprios. Retomando a melhor doutrina84, “aparecem claras, então, as armadilhas que se colocam pelas fórmulas matemáticas: a aparente certeza e segurança jurídicas que proporcionam é afastada pelo comprometimento do sistema, que pode dar-se pelo seu indevido enrijecimento. Sua aplicação, portanto, deve ser temperada pelos princípios embasadores da Lei Antitruste. Buscar a concorrência, por si só, é uma

83 FORGIONI. Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: RT, 1998, p. 150 e ss.84 FORGIONI. Paula A. Os Fundamentos do Antitruste. São Paulo: RT, 1998, p. 136 e ss.

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função que não é dada ao antitruste. Bem assim, o antitruste não se resume a problemas relacionados com a eficiência econômica”.

É importante deixar consignado, também que mesmo que o agente econômico não esteja em posição de domínio, poderá incorrer em ato abusivo contra a ordem econômica, apenas sendo necessário para caracterizar tal situação a prática de atos em ofensa à livre iniciativa dos demais ou que de algum modo fique maculada a livre concorrência.

7.3 Lucro conveniente e lucro inconvenienteA incerteza econômica e o monopólio estão relacionados a fontes

de lucros. Daí o ditado popular, grandes lucros, grandes riscos. Das práticas monopolistas também acorrem uma significativa parcela de lucro. Basta verificar o preço de determinado produto que não possui substituto no mercado. Um agente econômico que tenha algum poder de monopólio atua com redução de riscos, indiferença e independência dos demais no mercado e assim aumenta e prolonga o lucro econômico. Também pode o lucro derivar de um ganho tecnológico importante que só ele possui e, com isso, ter um meio de se sustentar e de manter a situação de lucratividade.

Uma importante distinção que cabe aqui pontuar, diz com a origem da situação lucrativa. Arcar com o risco dos negócios e implementar inovações em um ambiente econômico incerto são funções socialmente convenientes. Contudo, obter lucro a partir do monopólio não é socialmente conveniente. Em geral, esse lucro é obtido a partir de produção reduzida, acima dos preços concorrenciais, e da ineficiência econômica. Ou seja, entre o lucro advindo da incerteza e o lucro obtido a partir do monopólio há muita distância no que se refere à conveniência social dessas duas fontes de lucro.

Certo é que a importância do lucro e seu efeito sobre a atividade econômica e mesmo sobre toda a sociedade implicam na necessidade de sua conformação jurídica. Ao afetar a coletividade em geral, extravasa as cercanias do meramente econômico, havendo de harmonizar-se com o projeto político maior, consagrado na Lei Suprema, de conseguinte, havendo de conformar-se à ideologia constitucionalmente adotada. Isso, como se verá, nada tem a ver com uma atitude desqualificatória em relação à situação de lucratividade ou aos fatos econômicos que a potencializam.

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8. EFETIVIDADE NA PROTEÇÃO À LIVRE INICIATIVA E LIVRE CONCORRÊNCIA

Dirigida a atenção para casos reais de flagrantes de abuso do poder econômico, é fácil notar, por sua extensão e complexidade, que a ilicitude que acompanha o respectivo fenômeno emana para todos os setores do Direito, público ou privado, com disposições específicas que se desdobram até no Direito Penal e, de um modo especial, na legislação antitruste. Ou seja, tendo o constituinte brasileiro optado por uma Constituição econômica de padrão social, no qual convivem, em harmonia, princípios e valores de inspiração liberal e de inspiração socialista, a esta opção fundamental somente um pluralismo metodológico permitirá conciliar, sem o sacrifício de qualquer deles, os valores da liberdade e da igualdade, de cuja síntese resultará, afinal, a concretização de uma ordem econômica inspirada nos valores da fraternidade e solidariedade, expressões que se aproximam da justiça social.

Ora, tomado em conta que a ordem econômica tem uma finalidade de justiça, a ser alcançada mediante a distribuição mais equânime dos resultados, de sorte a assegurar a toda a coletividade e a cada indivíduo condição digna de vida, e estando ela organizada numa formatação capitalista, com reconhecimento da primazia da atuação do privado, que opera em liberdade de iniciativa e onde a intervenção do Estado é admitida para corrigir abusos ou atuar diretamente em hipóteses especiais, fica patente o relevantíssimo valor que representa a preservação da livre concorrência, daí a sua inserção principiológica na ordem constitucional econômica. O que propõe, então, é dar-lhe mais e maior efetividade, cabendo um determinado papel a todos os atores sociais e mesmo aos agentes econômicos.

8.1 Papel do EstadoO Estado é parte indispensável ao funcionamento do mercado, daí por

que fica afastada a ilusão neoliberal em voga do chamado fundamentalismo mercantil. A expressão é de Celso Furtado e diz com a idéia de que a lógica do mercado é a medida de todas as coisas, convertendo-se na ética vigente. Para aquele autor, “delineia-se a idéia de que o mercado pode ser o cimento de uma sociedade. Assim, as relações mercantis são mais éticas do que qualquer das atividades realizadas pelo Estado”, caracterizando uma espécie de religião (FURTADO, Celso. Entrevista a Carlos Molloquin. O pensamento

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econômico latino-americano. Novos Estudos. CEBRAP, n. 41, p. 109). O Estado deve promover e garantir a concorrência, para que esta se estabeleça mais livre. Este papel está normatizado na Lei nº 8.884/94 e em todas as esparsas disposições nas leis fundantes das agências reguladoras, que também devem obrar para a preservação e mesmo avanço da concorrência nos setores específicos em que atuam, claro, sem embargo da atuação do SBDC no caso concreto (art. 15 da Lei nº 8.884/94). Devemos lembrar a importância da concorrência no contexto das políticas públicas. Uma política antitruste ativa é parte essencial de uma bem sucedida economia de mercado, constituindo-se em um instrumento complementar à abertura comercial, à privatização e à desregulamentação na promoção da eficiência econômica. Mas o mercado, tido como uma idealização das forças econômicas atuantes em regime de competição, na práxis, é mesmo, em boa medida, autofágico e concentracionista.

A idéia de livre mercado, sem um adequado acompanhamento do Estado, conduz a incomensuráveis injustiças e é mesmo antitética à idéia de Direito. O aparecimento de infindáveis crises no desenrolar histórico do modelo de Estado liberal fez ver a necessidade de maior atuação perante o fenômeno econômico, não só para conter os abusos que ali se manifestavam como para preservar os próprios modos de produção e circulação de riquezas. Esta característica tem se acentuado hodiernamente. A mundialização do fenômeno econômico tem aumentado as distâncias entre as pessoas e o mercado tem funcionado como o canal de comunicação que se interpõe entre elas. Assim, ninguém é responsável por nada, tudo é debitado ao mercado. O trabalho é solicitado onde é mais barato. Fornecedores não conhecem compradores. O capital migra para a região onde é mais bem tratado, independentemente de outras circunstâncias. A única chance de reversão desta desumanização do fenômeno econômico está no Estado-Direito, que tem o poder de reorganizar a Economia de modo a que todos possam participar dos benefícios da riqueza que o convívio social produz. Este é o papel que deve ser cumprido pelo SBDC, em especial ao CADE. Sempre se tendo em conta que as decisões que lá são adotadas comportam exame no Poder Judiciário85.

85 “Existe discricionariedade administrativa imune a controle? Existe ato exclusivamente político cujo controle seria defeso ao Poder Judiciário? Não, pois é inarredável a vinculação aos princípios e direitos fundamentais. Ao menos negativamente, o controle lato sensu precisa sindicar, em fundo calado, os vícios decorrentes

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A adoção de um sistema capitalista de produção tem na valorização da liberdade em geral e da liberdade de iniciativa econômica em particular um dos mais caros princípios, que haverá de ser de todo modo preservado na vigência daquele regime, mas, também, diferentemente do que se poderia pensar, a atuação estatal na e sobre a Economia, nos moldes da ideologia constitucionalmente adotada, muito antes de implicar em ofensa àquela liberdade, é mesmo um imperativo de que a atividade econômica seja orientada no sentido constitucionalmente desejado: existência digna e justiça social, fins da ordem constitucional econômica. É um modo de preservar o próprio capitalismo, entendido que o mercado, a par de ser o palco da busca do lucro privado, também é o espaço público onde interagem indivíduos, que realizam trocas com este mesmo mercado e que dele esperam melhores condições de vida, potencializando suas mais belas virtudes. Daí a alargada visão de desenvolvimento refletida na mais ampla liberdade dirigida ao maior número de pessoas, ou seja, liberdade para desejar e poder realizar o que de fato cada um e todos nós valorizamos.

8.2 Papel dos Agentes EconômicosA Lei nº 8.884/94 outorgou um importante papel aos próprios

agentes econômicos na vigília dos valores que a lei protege. Não bastasse a

de excessos, desvios e insuficiências no exercício das competências administrativas. Não fosse assim, o ato exclusivamente político e não-sindicável orbitaria no espaço do juridicamente irrelevante, o que se mostrou sem sentido. Nesses termos, o controle não será total, sob pena de ser usurpatório, mas os vícios decorrentes da inadequação sistêmica serão sempre controláveis (...) A sindicabilidade aprofundada dos atos administrativos há de ser preponderantemente principiológica, ultrapassadas, nesse importante aspecto, as antigas posturas decisionistas e enfatizada a insubsistência de atos exclusivamente políticos no âmbito das relações administrativas: tanto os atos vinculados como os discricionários precisam guardar vinculação com a Lei Maior. Todo poder precisa ser ‘constitucionalizado’. Na visão sistemática, o mérito do ato administrativo não deve ser invadido. No entanto, por via reflexa, pode ser inquirido, ao se efetuar o controle do ‘demérito’ ou da antijuridicidade, para além dos aspectos adstritos à legalidade. O controlador, nessa medida, faz as vezes de ‘administrador negativo’. O controle de proporcionalidade (inclusive das políticas públicas) passa a ser, nesse horizonte, realizado de modo mais ativo, pois se admite a discrição somente para que o agente providencie, com eficácia e eficiência, a realização das vinculantes finalidades constitucionais. (...) Com o aprofundamento da sindicabilidade dos atos administrativos, quer-se a administração pública zelosa de seus deveres para com o desenvolvimento humano, aquele que importa. Quer-se a administração pública que não se contenta em mediocremente tornar boas as más escolhas. A partir de agora, com metas democraticamente pactuadas e sem utopismo ingênuo, precisa-se praticar a nova gestão pública, com acesa imaginação e maior compromisso com a tábua de valores constitucionais. (FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros Editores, 2007, pgs. 123, 126 e 128.)

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legitimidade extraordinária dos ministérios públicos e entidades cujo objeto se amolde aos seus fins, o artigo 29 da lei prevê a possibilidade de os próprios agentes econômicos prejudicados pleitearem judicialmente a cessação de prática infrativa à ordem econômica. Ou seja, dada a importância do funcionamento regular do mercado, para o atingimento do fim da ordem econômica, todos os envolvidos estão legitimados a promover ações que resguardem sua regularidade, sua conformação constitucional. Assim é a redação do artigo 29, verbis: “Os prejudicados, por si ou pelos legitimados do art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, poderão ingressar em juízo para, em defesa de seus interesses individuais ou individuais homogêneos, obter a cessação de práticas que constituam infração da ordem econômica, bem como o recebimento de indenização por perdas e danos sofridos, independentemente do processo administrativo, que não será suspenso em virtude do ajuizamento de ação. Claro, a fragilidade do agente econômico que sofre o abuso e a continuidade das relações comerciais com o agente infrator, trazem dificuldades para a adoção destas atitudes.

8.3 Papel do Ministério Público BrasileiroAo Ministério Público, instituição permanente e essencial à função

jurisdicional do Estado, incumbe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Por ser uma instituição do Estado, deve promover a aplicação das leis para que suas normas estejam presentes na sociedade e não apenas nos textos legais. Daí ser um importante protagonista na tutela do princípio da livre concorrência. Trata-se da realização do Direito, explicitado pela materialização, no mundo dos fatos econômicos, do sentido normativo constitucional, de modo a aproximar o dever-ser jurídico ao ser da vida real. A própria independência do Ministério Público só se justifica para que o órgão possa se dedicar aos interesses socialmente relevantes, cujos titulares, inclusive por sua condição coletiva, não têm reais condições de fazê-lo por si mesmos.

Mesmo o agente econômico de dimensões consideráveis, que sofre a atuação de prática abusiva do poder econômico com o qual mantém estrita ligação tem dificuldades, na prática, de efetivar seus direitos. O acesso à justiça é princípio que não deve ser tomado apenas em sua faceta individual. Os interesses e direitos difusos e coletivos, neste caso expressos pelos bens

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jurídicos que a Lei 8.884/1994 visa proteger, também aqui ficam incluídos. Se o parquet é o protagonista de inúmeras ações em prol dos consumidores, baseado na legislação consumerista, o mesmo não se pode dizer da legislação de proteção da ordem econômica, à qual, também, é devida a merecida atenção.

Pois a titularidade atribuída pela lei de proteção à ordem econômica aos bens jurídicos que identifica não deixa margem a dúvidas (art. 1º, parágrafo único). À coletividade refluem todas as decisões e consequências verificáveis num negócio particular, nos contratos (públicos e particulares) e no comportamento de cada um de nós, mas, principalmente, nas decisões dos agentes econômicos. Portanto, é justo que aos integrantes da sociedade em geral tenha sido atribuída a titularidade jurídica dos bens de que trata a Lei 8.884/1994. Em face da transindividualidade de tais direitos, é dever do Ministério Público e das associações legitimamente constituídas desenvolverem considerável esforço para tornar a vida real mais próxima do discurso normativo. A constatação da história é reveladora das poucas iniciativas do Parquet no trato de tais questões, atualmente já com honrosas exceções – dão mostras do quanto se tem a realizar nesta área.

Ou seja: a) é função do Ministério Público, seja estadual ou federal, assim como de outros legitimados, velar pela integralidade dos bens jurídicos protegidos pela lei de proteção da ordem econômica, para, em assim procedendo, preservar os valores e princípios da própria Constituição Federal; b) cabe ao Poder Judiciário, no enfrentamento de questões potencialmente disciplinadas pela Lei 8.884/1994, adotar um posicionamento que se entremostre valioso para a preservação da ideologia constitucionalmente adotada no respeitante à ordem econômica; c) nem os Ministérios Públicos têm desenvolvido uma abrangente atuação no respeitante à matéria, nem o Judiciário tem se valido de tão importante diploma normativo para a solução de casos concretos. Este quadro tem se alterado nos últimos anos e uma maior sensibilidade para com o instrumental posto à disposição dos operadores do Direito têm produzido boas e novas ações na temática da Constituição Econômica. Certo é que como a atividade econômica tem esta característica de ubiquidade na vida de cada um e de todos, é forçoso concluir que tanto os ministérios públicos estaduais como o ministério público federal tem atribuições, deveres a cumprir nesta seara. Seria muito ruim para o país que uma lei viesse a retirar, seja um ou seja

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outro, do protagonismo que devem exercer na matéria. Este tema tem sido discutido no Congresso Nacional quando do exame dos projetos de lei que buscam aperfeiçoar a Lei nº 8.884/94.

8.4 Papel da JustiçaA jurisprudência mais tradicional reconhece a ausência de neutralidade

do capital em relação ao aspecto ético, e as oscilações em redor de soluções a serem dadas aos conflitos de interesse a ele relacionados prendem-se, basicamente, à preocupação com a preservação da propriedade privada e da liberdade negocial enquanto direitos fundamentais da ordem jurídica do capitalismo, a necessidade de que o Estado tenha força suficiente para a manutenção da ordem estabelecida, de tal sorte que, com este desiderato, se tornem legítimas algumas restrições aos direitos econômicos fundamentais do constitucionalismo liberal, a busca de um discurso legitimador que propicie a representação de uma igualdade em direitos para todos os súditos e, ipso facto, de oportunidades proporcionadas pelo sistema para que todos progridam. Mas é necessário avançar, ir além desta tradição.

Pois o Judiciário foi chamado a dar sua contribuição para a concretização e a efetivação dos direitos fundamentais, inclusive nas relações jurídico-privadas. Se as fronteiras entre o público e o privado já não são mais tão nítidas, se o direito público e o privado manifestam tendências convergentes, se o direito constitucional passou a tratar também de aspectos classicamente disciplinados pelo direito privado, enunciando princípios e consagrando valores que se aplicam também às relações entre os particulares – se tudo isso é verdade, como é, então parece claro que o juiz, no exercício de sua atividade jurisdicional, ao interpretar e aplicar o direito privado, deva também levar em conta as regras e os princípios constitucionais que tratam diretamente do tema objeto do litígio (FACCHINI NETO, Eugênio. Op. cit., p. 43).

No teatro da vida real interagem dialeticamente interesses coletivos e interesses privados em quase tudo o que diz respeito ao econômico e ao jurídico. Encontrar a justa medida – autorizada pelo sistema jurídico, mormente a partir da Constituição Federal – que dinamize um desenvolvimento tal qual previsto no texto maior requer razão e sensibilidade.

Isso não significa, contudo, e esta é uma das razões do capítulo introdutório, que o Direito, ao “interferir” na atividade econômica, tudo pode. Haverá de ser respeitado o modo de ser próprio do econômico. A

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alusão a uma certa tradicionalidade e obrigatoriedade na verificação das circunstâncias econômicas procurou demonstrar tal limitação. Daí que as leis que caracterizam os chamados “planos econômicos” nem tudo podem. Mas, por certo, podem muito.

Porém, talvez a maior contribuição que se procurou deixar registrado é que jamais, em hipótese alguma, poderá o Direito ser turvado em seus raciocínios pela estreiteza e parcialidade da absolutização de cifras e estatísticas econométricas, numa formulação jurídica, por assim dizer, matematizada. A lógica da vida moderna, rica em abordagens superficiais da realidade e robustecida pela positividade que marca a contemporaneidade, tem o perverso efeito de assim influenciar o raciocínio dos operadores do Direito. A esta visão opõe-se, com veemência, a teoria hermenêutica adotada e a circunstância de que qualquer caminho escolhido pelo ato interpretativo, sempre e sempre, terá feito uma escolha axiológica, hierarquizando valores e não números, portanto, distanciando-se da estreiteza da simbologia da ciência euclidiana, mas por certo a ela refletida. A justiça, enfim, não pode ser alcançada more geometrico, como puro ente da razão – eqüidistância formal –, sem a menor ligação com a sensibilidade valorativa. Ao contrário, o processo de economização das relações sociais (traduzido na economização do Direito) tem o perverso efeito de reduzir as alternativas de vida às opções que o mercado está disposto a ofertar, como se este fosse o mediador fundamental daquelas relações, por conseguinte, da própria vida.

Também foi nosso objetivo deixar consignado que existe um riquíssimo manancial normativo posto à disposição daqueles que se propõem à tarefa de bem juridicizar o entretecido e retesado choque que se estabelece na confluência dos interesses ocasionados na “cena econômica”. Os princípios constitucionais da atividade econômica bem dão conta desta tarefa (CF, art. 170), legitimam e fundamentam a exteriorização do fenômeno jurídico.

9. ALGUMAS OBSERVAÇÕES FINAIS

O lucro econômico é a principal fonte de energia da economia capitalista e acaba influenciando o nível de produção e a alocação de recursos entre usos alternativos. Sua expectativa induz inovações. A inovação estimula novos investimentos, aumentando a produção total e o emprego. É a busca do lucro que subjaz ao crescimento econômico. Sendo assim, a

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liberdade de iniciativa econômica está lastreada no desejo da obtenção do lucro, constando que a verificação da efetividade daquele princípio nos diversos mercados consiste em um importante aporte à retirada de obstáculos ao desenvolvimento. Este objetivo fundamental (CF, art. 3º, II) passa, necessariamente, pelo reconhecimento e aceitação jurídica do lucro, existindo nesta perspectiva um público e coletivo interesse, pois fomentador da atividade econômica em geral.

Não é desarrazoado aferir a legitimidade da economia e os bons frutos que tal ambiente potencialmente pode produzir ao tecido social na dimensão que a concorrência efetiva, leal e concreta toma nos setores específicos. Por isto que se diz que ela corresponde à defesa do consumidor no atacado.

A resposta jurídica no enfrentamento da regulação do econômico há de ser tal que a atividade econômica encontre um clima propício ao seu desenvolvimento. Entretanto, pela indissociabilidade dos efeitos ocasionados à coletividade em geral, a conformação jurídica haverá de se traduzir naquilo que é mais socialmente desejável, neste sentido, por vezes, preservando o estrito ponto de vista individual, por coincidente com os valores e princípios consagrados na normatividade, por vezes, coartando-o pela deletéria influência que exerce sobre o equilíbrio socioeconômico em geral, o que, a bem da verdade, desfavorece o florescimento da própria economia.

É claro, à potencialidade das opções interpretativas não se haverá de seguir uma indesejada insegurança jurídica. Os capitais (e as iniciativas particulares, motor da vida em sociedade e da vida econômica) são afugentados quando a insegurança prospera. Mas tal argumento não pode tornar inflexíveis situações injustas e antijurídicas, sob pena de subversão do que realmente importa. Há estreiteza de raciocínio na visão dos operadores do Direito que acreditam que nada ou muito pouco pode ser feito para nos afastar de uma realidade onde há ocorrência de tanta desigualdade e privação. Não se está a advogar uma singela visão igualitária de idêntica distribuição de rendas ou exegeses desenraizadas do fértil solo constitucional. Pessoas, no mais das vezes, se interessam em proporção diversa em relação a patrimônio, remuneração e rendimentos. Mas todo indivíduo tem direito a um mínimo – e aqui há de se recordar do fim da ordem econômica: uma existência digna para cada um e para todos. Eis aí um indicativo de justiça social, portanto, de desenvolvimento.

Por fim, a busca por justiça é mais do que a busca por eficiência.

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O mercado de jornais impressos na jurisprudência do CADE

RICARDO A. L. CAMARGO

No presente texto, pretende-se identificar o tratamento dado à concorrência no âmbito do setor jornalístico pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica.

Para a identificação do mercado relevante, em se tratando de jornais impressos não especializados, assentou o Plenário daquela autarquia:

São quatro os tipos de serviços ofertados pelos jornais impressos diários não especializados: venda de jornais diários impressos propriamente ditos, venda de espaço para publicidade em jornal diário impresso, venda de publicidade virtual e venda de espaço para anúncios classificados (Ato de concentração 08012.007261/2001-68. Relator: Conselheiro Thompson Andrade. http://www.cade.gov.br/temp/D_D000000200361866.pdf, acessado em 5 dez 2010).

No caso específico examinado, tinha-se a apreciação da aquisição do controle de uma empresa controlada por grande conglomerado de comunicações, dedicado não só à exploração da edição e comercialização de jornais impressos não especializados como também aos setores de jornais especializados, televisão aberta, TV paga, entre outros. Tomando em consideração os Estados em que ambas as empresas operavam e o grau de participação da empresa cujo controle seria adquirido nos mercados em que vendidos os jornais impressos diários, não se vislumbrou qualquer possibilidade de dano à concorrência, no caso.

A definição do mercado relevante a ser considerado, no que tange aos jornais impressos não especializados foi acolhida em parte, ao se examinar

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Ricardo A. L. Camargo

outro caso de aquisição do controle de empresa jornalística, tendo-se estabelecido uma distinção, quanto à venda de jornais diários impressos, entre a que se processa mediante assinatura e a que se processa mediante a oferta de exemplares avulsos. Emprestou-se relevância, ainda, relevância ao próprio conteúdo para a precisão dos efeitos concorrenciais das decisões das empresas interessadas:

Pela própria natureza do serviço comercializado pelos jornais, a delimitação do mercado relevante deve passar pela análise de conteúdo. A própria distinção entre diários especializados e não especializados vai ao encontro desse entendimento, dado que o conteúdo define, por vezes, o perfil do leitor. Segundo o método do monopolista hipotético, o mercado relevante seria definido a partir de um pequeno, porém, significativo, aumento de preços. Caso referido aumento enseje o desvio de demanda para outro produto, ambos se encontram debaixo do mesmo mercado relevante.

No jornalismo impresso não especializado, há uma sólida separação entre os jornais de grande circulação nacional, cuja procura além de seu âmbito de origem se deve em função da qualidade da cobertura das notícias nacionais e internacionais, e os demais periódicos, cuja procura se deve, precipuamente, em função do noticiário local. Essa complementariedade é bastante nítida fora do eixo Rio-São Paulo, onde estão os grandes jornais de circulação nacional e, por subseqüente, os cadernos de conteúdo local de tais periódicos têm particular utilidade.

(...)Com relação à definição do mercado relevante pelo produto jornal

diário não especializado, esclareço, adicionalmente, que este conselho tem demonstrado habitual preocupação quanto à divisão do mercado em função da forma com que os exemplares são adquiridos. Essa preocupação se motiva (i) na diferença entre os preços vendidos de forma avulsa ou mediante assinatura e que premia o consumidor cativo e (ii) no apresamento do consumidor durante a vigência do contrato. Por outro lado, é claro que, em se tratando do mesmo produto, se o diferencial de preço é incapaz de direcionar a demanda para a venda por assinaturas, a bipartição do mercado relevante muito possivelmente decorre da natureza eventual do consumo.

(...)Existe elevada flexibilidade na forma de pagamento das assinaturas,

incluindo o comprometimento mensal. Este dado, porém, não me parece

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O mercado de jornais impressos na jurisprudência do CADE

suficiente para elidir a separação do mercado em função de forma de aquisição – se avulsa ou por meio de assinatura. A assinatura, além de demandar o dispêndio de maior quantia no curto prazo, costuma implicar maior desconto no valor de capa em função do prazo de fidelidade a que se proponha o assinante – de tal sorte que a utilidade financeira da assinatura cresce proporcionalmente ao comprometimento do consumidor com a marca.

(...)Sustentam as requerentes que os investimentos para entrada no

segmento de jornais impressos é baixo, podendo a entrada de novo agente ser viabilizada em apenas três meses. Justificam que o s sunk costs ou custos irrecuperáveis com a constituição de parque gráfico e rede de distribuição próprios poderiam ser evitados por meio da terceirização dos serviços. (...)

A análise dos documentos juntados aos autos anteriormente à instrução complementar foi-me bastante para atestar ser factível entrar no mercado de jornais diários não especializados em período razoavelmente inferior ao lapso médio de dois anos habitualmente considerado para a análise concorrencial. Tais informações, contudo, pareceram-me insuficientes para assegurar que significativa parcela da demanda pudesse ser desviada dos jornais de maior tradição em período tão curto.

Pela própria essência do jornalismo, a confiança nas informações prestadas consiste no mais importante ativo da empresa, a qual tem o poder de formar opiniões. A construção desse status demanda certo tempo durante o qual deverão ser ponderadas as receitas em relação aos custos permanentes para operacionalizar o jornal. A alternativa de contratar profissionais há anos no mercado pode ser dispendiosa e constituir importante custo de entrada. Somem-se a isso as redes de contato e o acesso facilitado a informações com que contam os diários com extensa rede de funcionários e anos de experiência. Desse modo, embora os custos de entrada possam ser razoavelmente baixos para o jornal local, de baixa tiragem, podem ser reputados elevados a depender do grau de circulação a que visem os entrantes.

(Ato de concentração 08012.008790/2006-48. Relator: Conselheiro Luiz Carlos Delorme Prado. http://www.cade.gov.br/temp/D_D000000294121046.pdf , acessado em 5 dez 2010 )

A operação referida acima foi aprovada com restrição, tendo em vista a existência de cláusula de exclusividade imposta a anunciante, reportando-

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Ricardo A. L. Camargo

se ao que fora decidido pelo mesmo Conselho no Processo Administrativo 08000.000128/1995-98, relator: Conselheiro João Bosco Leopoldino da Fonseca.

Houve condenação,por parte do Conselho, a cartel formado por empresas jornalísticas no que tange à combinação de preço dos produtos por elas ofertados no mercado. Note-se que, a rigor, foi mais simples a identificação do abuso de poder econômico, na hipótese, por se tratar de uma prática que não se cinge ao setor jornalístico:

Essa estrutura de oferta concentrada demonstra a possibilidade de existência de poder de mercado suficiente para causar prejuízos à concorrência e aos consumidores, além de facilitar as negociações para a obtenção de um percentual comum de reajuste (n ocaso em tela, apenas três, uma vez que o “Extra” e “O Globo” são controlados pelo mesmo grupo).

Além disso, as barreiras à entrada no mercado são altas: investimentos iniciais elevados (compra de máquinas etc.); presença de custos irrecuperáveis (gastos com marketing, por exemplo) e necessidade de uma rede de distribuição capilar. Com isso , as empresas podem elevar seues preços sem temerem a entrada de novos concorrentes.

É interessante observar que o mercado relevante apresenta outras características que facilitam a ação coordenada entre os agentes: semelhança de custos de produção entre os jornais – o que facilitaria a obtenção de um acordo sobre o percentual de reajuste a ser praticado – e a existência de um sindicato – que possibilitaria a existência de interações e troca de informações entre os interessados.

(...)A receita de anúncios está diretamente ligada ao número de jornais

em circulação. Ao aumentar o preço do jornal, o número de exemplares vendidos diminui, e a receita com publicidade também. A empresa alega, portanto, que seria irracional, do ponto de vista econômico, um aumento concertado nos preços dos jornais, pois, embora uma elevação coordenada resulte em aumento nos lucros advindos da venda de jornal, a perda de lucros oriunda dos anúncios seria ainda maior.

Não se pode esquecer que, com a desvalorização do real em 1999, quase todos os setores da economia se depararam com um forte incremento em seus custos. As próprias representadas afirmaram, ao longo de todo o processo administrativo, que era necessário reajustar seus preços, em função

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O mercado de jornais impressos na jurisprudência do CADE

do drástico aumento nos preços dos insumos utilizados pelas empresas jornalísticas. Dessa forma, visto que todas as empresas necessitavam aumentar os seus preços, um aumento coordenado seria mais interessante, pois evitaria uma perda maior por parte dos jornais. Se apenas um jornal aumentasse os seus preços, ou se o aumento ocorresse em percentuais distintos, com certeza o jornal com o maior aumento seria prejudicado com uma redução dos exemplares vendidos.

É exatamente porque havia uma necessidade de repassar o aumento de custos para os consumidores que as empresas tiveram um incentivo para coordenar o aumento de preços, prejudicando a população e o bem estar social.

Mesmo levando em consideração que a maior parte da receita de um jornal advém de seus contratos publicitários e não da venda de jornais em banca, isso não impede que as empresas tenham combinado um aumento conjunto de preços dos jornais em banca, para poderem repassar os custos para o consumidor e, ao mesmo tempo, reduzir o impacto da queda de demanda, mantendo, assim, a receita com anúncios publicitários. (Processo Administrativo 08012.002097/99-81. Relator: Conselheiro Ricardo Villas Boas Cueva. http://www.cade.gov.br/temp/D_D000000223611731.pdf, acessado em 5 dez 2010).

Nota-se, pela jurisprudência colacionada, que mesmo consideradas as peculiaridades da atividade das empresas jornalísticas, em se tratando do mercado de jornais impressos não especializados que a identificação das situações de abuso de poder econômico fora do que constitua ponto em comum a outras atividades tem sido inçada de dificuldades – veja-se o exemplo da propriedade cruzada, que, em si e por si, mereceria um exame mui diverso daquele que seria adequado à generalidade das holdings.

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Aspectos controvertidos sobre a Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (Royalties da Mineração)

FERNANDO FACURY SCAFF

1. DAS DISTINTAS RELAÇÕES JURÍDICO-ECONÔMICAS ENVOLVIDAS NA EXPLORAÇÃO DOS RECURSOS MINERAIS. DELIMITAÇÃO DO TEMA.

1. Existem diversas relações jurídico-econômicas que envolvem a exploração dos recursos minerais brasileiros e que devem ser inicialmente expostos a fim de delimitar a análise do tema a ser enfrentado neste trabalho.

2. O primeiro deles diz respeito à distinção entre a propriedade do solo e a exploração dos recursos minerais. Esta distinção hoje é tratada pela Constituição Federal em seu artigo 176, verbis:

Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.

Verifica-se, portanto, que a União é a proprietária dos recursos minerais e que estes se constituem em propriedade distinta do solo, sendo garantido ao concessionário a propriedade do produto da lavra. Isto demonstra a distinção entre propriedade e atividade, que foi objeto de detida análise

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Fernando Facury Scaff

pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI 3273, cujo Relator para o acórdão foi o Ministro Eros Grau.

Esta distinção entre propriedade e atividade conecta dois outros artigos: o art. 20, IX, da CF, que estabelece serem bens da União os recursos minerais, inclusive os do subsolo; e também o art. 1.230, do Código Civil, ao dizer que “a propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais.” Ou seja, uma coisa é ser proprietário do solo, outra é desenvolver a atividade de exploração dos recursos minerais, estejam estes no solo ou no subsolo. Este tema dá ensejo a um interessantíssimo debate sobre a distinção entre propriedade (estática) e atividade (dinâmica), mas que refoge ao âmbito deste trabalho.

3. Outra distinção há de ser feita entre o direito de exploração minerária - que pertence à União - e o direito de superficiário, através do qual a Constituição (§2º do art. 176) concede a quem for o proprietário do solo o direito de receber um valor em face da exploração econômica dos recursos minerais:

§ 2º - É assegurada participação ao proprietário do solo nos resultados da lavra, na forma e no valor que dispuser a lei.

A lei a que a norma constitucional se refere é a do Código Minerário, Decreto-lei 227/67, arts. 11 e 12, que corresponderá à 50% do que for pago à título de CFEM86. Existe norma específica quando a exploração minerária se referir a petróleo, que é o art. 52 da Lei 9478/9787, que estabelece um

86 Art. 11 - Serão respeitados na aplicação dos regimes de Autorização, Licenciamento e Concessão: b) o direito à participação do proprietário do solo nos resultados da lavra. §1º A participação de que trata a alínea b do caput deste artigo será de cinqüenta por cento do valor total devido aos Estados, Distrito Federal, Municípios e órgãos da administração direta da União, a título de compensação financeira pela exploração de recursos minerais, conforme previsto no caput do art. 6º da Lei nº 7.990, de 29/12/89 e no art. 2º da Lei nº 8.001, de 13/03/90. Art. 12 - O direito de participação de que trata o artigo anterior não poderá ser objeto de transferência ou caução separadamente do imóvel a que corresponder, mas o proprietário deste poderá: I - transferir ou caucionar o direito ao recebimento de determinadas prestações futuras; II - renunciar ao direito. Parágrafo único: Os atos enumerados neste artigo somente valerão contra terceiros a partir da sua inscrição no Registro de Imóveis.87 “Art. 52. Constará também do contrato de concessão de bloco localizado em terra cláusula que determine o pagamento aos proprietários da terra de participação equivalente, em moeda corrente, a

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percentual a ser pago ao superficiário entre 0,5 e 1% da produção de petróleo e gás natural.

4. Outra distinção a ser feita é a que envolve este “direito de superficiário” e os decorrentes da instituição de “servidão minerária”, nos quais o superficiário tem que ser possuidor ou proprietário para ter direito a indenização e renda, cujo amparo legal está no art. 59 e seguintes do Código Minerário (Decreto-lei 227/67) e que possui fundamento no instituto da responsabilidade civil88.

5. Existem outras incidências jurídico-econômicas que atingem a exploração dos recursos minerais brasileiros, em especial a produção de petróleo e gás.

Há o “bônus de assinatura”, que é o “lance” que cada concorrente oferece em leilão para arrematação de um bloco exploratório e é um dos requisitos na avaliação das propostas de exploração89.

Outra incidência é a das “participações especiais”, que são

um percentual variável entre cinco décimos por cento e um por cento da produção de petróleo ou gás natural, a critério da ANP. Parágrafo único. A participação a que se refere este artigo será distribuída na proporção da produção realizada nas propriedades regularmente demarcadas na superfície do bloco.

88 Art. 59. Ficam sujeitas a servidões de solo e subsolo, para os fins de pesquisa ou lavra, não só a propriedade onde se localiza a jazida, como as limítrofes. Parágrafo único. Instituem-se Servidões para: a) construção de oficinas, instalações, obras acessórias e moradias; b) abertura de vias de transporte e linhas de comunicações; c) captação e adução de água necessária aos serviços de mineração e ao pessoal; d) transmissão de energia elétrica; e) escoamento das águas da mina e do engenho de beneficiamento; f) abertura de passagem de pessoal e material, de conduto de ventilação e de energia elétrica; g) utilização das aguadas sem prejuízo das atividades pré-existentes; e, h) bota-fora do material desmontado e dos refugos do engenho. Art. 60: Instituem-se as Servidões mediante indenização prévia do valor do terreno ocupado e dos prejuízos resultantes dessa ocupação. §1º Não havendo acordo entre as partes, o pagamento será feito mediante depósito judicial da importância fixada para indenização, através de vistoria ou perícia com arbitramento, inclusive da renda pela ocupação, seguindo-se o competente mandado de imissão de posse na área, se necessário. §2º O cálculo da indenização e dos danos a serem pagos pelo titular da autorização de pesquisas ou concessão de lavra, ao proprietário do solo ou ao dono das benfeitorias, obedecerá às prescrições contidas no Artigo 27 deste Código, e seguirá o rito estabelecido em Decreto do Governo Federal. Art. 61. Se, por qualquer motivo independente da vontade do indenizado, a indenização tardar em lhe ser entregue, sofrerá, a mesma, a necessária correção monetária, cabendo ao titular da autorização de pesquisa ou concessão de lavra, a obrigação de completar a quantia arbitrada.89 Haroldo Lima, Petróleo no Brasil: A situação, o modelo e a política atual. RJ, Synergia, 2008, pág. 40. Lei 9.478/97, art. 46. “O bônus de assinatura terá seu valor mínimo estabelecido no edital e corresponderá ao pagamento ofertado na proposta para obtenção da concessão, devendo ser pago no ato da assinatura do contrato.”

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compensações extraordinárias pagas ao governo em caso de grande volume de produção ou de grande rentabilidade com relação a cada campo petrolífero de uma área de concessão.90

Focado na exploração petrolífera, existe a taxa de ocupação e retenção de área, que se refere à manutenção da concessão, com ou sem exploração91.

O presente trabalho não abordará estes temas.6. Relação jurídica distinta, que até serve de base de cálculo para

apuração do “direito de superficiário”, mas que com ele não se confunde, é a da CFEM - Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais, também chamada de royalty minerário.

A CFEM é devida à União, que a reparte com Estados e Municípios, como decorre de imposição constitucional constante do art. 20, §1º:

§1º - É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração.

A análise de alguns dos aspectos controvertidos da CFEM é o objeto deste trabalho, que centrará sua atenção na atividade minerária não-petrolífera, mencionando-a especificamente apenas quando couber.

90 Haroldo Lima, ob e loc.cit. Lei 9.478/97, “Art. 50. O edital e o contrato estabelecerão que, nos casos de grande volume de produção, ou de grande rentabilidade, haverá o pagamento de uma participação especial, a ser regulamentada em decreto do Presidente da República. §1º A participação especial será aplicada sobre a receita bruta da produção, deduzidos os royalties, os investimentos na exploração, os custos operacionais, a depreciação e os tributos previstos na legislação em vigor.”91 Haroldo Lima, ob e loc cit. Lei 9.478/97, “Art. 51. O edital e o contrato disporão sobre o pagamento pela ocupação ou retenção de área, a ser feito anualmente, fixado por quilômetro quadrado ou fração da superfície do bloco, na forma da regulamentação por decreto do Presidente da República. Parágrafo único. O valor do pagamento pela ocupação ou retenção de área será aumentado em percentual a ser estabelecido pela ANP, sempre que houver prorrogação do prazo de exploração.”

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2. ASPECTOS CONSTITUCIONAIS E LEGAIS DA CFEM.

7. A Constituição da República de 1988 prescreveu serem bens da União os potenciais de energia hidráulica e os recursos minerais, inclusive os do subsolo (art. 20, itens VIII e IX).

Ao lado disso, assegurou aos Estados, Municípios, Distrito Federal, bem como a órgãos da Administração Direta da União, uma compensação financeira pela exploração desses recursos minerais e hídricos, a ser paga por quem explorasse aqueles recursos naturais, na forma do art. 20, §1º, CF.

8. No final de 1989 foi editada a Lei 7.990, de 28-12-89 que estabeleceu o percentual de 3% sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral, obtido após a última etapa do processo de beneficiamento adotado e antes de sua transformação industrial (art. 6º). Todavia, todos os três parágrafos desse artigo foram vetados, o que impediu que fosse estabelecido o percentual de rateio dos recursos arrecadados.

O pagamento da CFEM deveria ser efetuado mensalmente, diretamente às unidades federadas beneficiárias e aos órgãos da Administração Direta da União, sendo vedado o uso desses recursos em pagamento de dívida e no quadro permanente de pessoal (art. 8º)92.

9. Nos 03 últimos dias do Governo José Sarney foi promulgada a Lei 8001, de 13-03-1990, que determinou a base de cálculo para a incidência da CFEM no caput do art. 2º, verbis:

“Art. 2º Para efeito do cálculo de compensação financeira de que trata o art. 6º da Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, entende-se por faturamento líquido o total das receitas de vendas, excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguros.”

92 Art. 8º O pagamento das compensações financeiras previstas nesta Lei, inclusive o da indenização pela exploração do petróleo, do xisto betuminoso e do gás natural será efetuado, mensalmente, diretamente aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e aos órgãos da Administração Direta da União, até o último dia útil do segundo mês subseqüente ao do fato gerador, devidamente corrigido pela variação do Bônus do Tesouro Nacional (BTN), ou outro parâmetro de correção monetária que venha a substituí-lo, vedada a aplicação dos recursos em pagamento de dívida e no quadro permanente de pessoal.

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Ao lado disso, no §1º desse mesmo artigo 2º, foi estabelecida uma espécie de seletividade na aplicação da CFEM, determinando alíquotas distintas para diferentes minérios93.

Esta “seletividade” também difere de incidência quando o material explorado é gás e petróleo, cujas alíquotas são reguladas pela Lei 9.478/97, art. 4794.

10. Aspecto de suma importância para a análise a ser desenvolvida é o do rateio dos valores arrecadados, que devem ser partilhados da seguinte forma, segundo a Lei 8001/90, art. 2º, §2º:

I - 23% (vinte e três por cento) para os Estados e o Distrito Federal;II - 65% (sessenta e cinco por cento) para os Municípios;

A parcela da Administração Direta da União posteriormente foi retalhada pela Lei 9993, de 24-07-2000, entre:

a) O Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - FNDCT, com 2% (dois por cento);b) O Ministério de Minas e Energia, que deve repassar integralmente ao Departamento Nacional de Produção Mineral - DNPM, 10% (dez por cento).

93 “I - minério de alumínio, manganês, sal-gema e potássio: 3% (três por cento); II - ferro, fertilizante, carvão e demais substâncias minerais: 2% (dois por cento), ressalvado o disposto no inciso IV deste artigo; III - pedras preciosas, pedras coradas lapidáveis, carbonados e metais nobres: 0,2% (dois décimos por cento); IV - ouro: 1% (um por cento), quando extraído por empresas mineradoras, isentos os garimpeiros”.94 Art. 47. Os royalties serão pagos mensalmente, em moeda nacional, a partir da data de início da produção comercial de cada campo, em montante correspondente a dez por cento da produção de petróleo ou gás natural. §1º Tendo em conta os riscos geológicos, as expectativas de produção e outros fatores pertinentes, a ANP poderá prever, no edital de licitação correspondente, a redução do valor dos royalties estabelecido no caput deste artigo para um montante correspondente a, no mínimo, cinco por cento da produção. §2º Os critérios para o cálculo do valor dos royalties serão estabelecidos por decreto do Presidente da República, em função dos preços de mercado do petróleo, gás natural ou condensado, das especificações do produto e da localização do campo. §3º A queima de gás em flares, em prejuízo de sua comercialização, e a perda de produto ocorrida sob a responsabilidade do concessionário serão incluídas no volume total da produção a ser computada para cálculo dos royalties devidos.

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11. Em 07 de fevereiro de 1991 foi editado o Decreto 001, que regulamentou as Leis 7990/89 e 8001/90, que em suas disposições transitórias estabeleceu a forma de pagamento dos valores arrecadados diretamente aos beneficiários95.

Ou seja, o pagamento direto deve se dar “mediante depósito em contas específicas de titularidade dos mesmos no Banco do Brasil S.A.”, cabendo ao DNPM expedir instruções complementares a esse Decreto nº 001/91, forma de seu art. 27.

12. A Lei 8876, de 02-05-1994 que organizou o DNPM como autarquia, atribuiu a este órgão a “finalidade promover o planejamento e o fomento da exploração e do aproveitamento dos recursos minerais, e superintender as pesquisas geológicas, minerais e de tecnologia mineral, bem como assegurar, controlar e fiscalizar o exercício das atividades de mineração em todo o território nacional, na forma do que dispõe o Código de Mineração, o Código de Águas Minerais, os respectivos regulamentos e a legislação que os complementa”.

No rol de atribuições que lhe foi concedido, consta, em especial (art. 3º, IX) a de “baixar normas e exercer fiscalização sobre a arrecadação da compensação financeira pela exploração de recursos minerais, de que trata o § 1º do art. 20 da Constituição Federal.”

13. Verifica-se, portanto, que esta compensação financeira pela exploração de recursos minerais foi instituída pela Constituição, como uma forma de compensar Estados e Municípios pela exploração de recursos naturais em seus territórios. As Leis de 7990/89 e 8001/90 determinaram alíquotas e base de cálculo para sua incidência, bem como os percentuais de partilha com as demais Unidades Federadas. Os valores deveriam ser pagos diretamente aos beneficiários, através de depósito no Banco do Brasil.

A gestão dessa arrecadação foi atribuída pela Lei 8876/94 ao DNPM, a quem compete baixar normas e exercer sua fiscalização.

95 “Art. 26. O pagamento das compensações financeiras previstas neste decreto, inclusive dos royalties devidos por Itaipu Binacional ao Brasil, será efetuado mensalmente, diretamente aos beneficiários, mediante depósito em contas específicas de titularidade dos mesmos no Banco do Brasil S.A., até o último dia útil do segundo mês subseqüente ao do fato gerador.”

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3. DA NATUREZA JURÍDICA DA CFEM

14. Logo após o advento da Constituição Federal e das duas leis que se lhe seguiram, acima mencionadas, o debate sobre a natureza jurídica da CFEM foi bastante intenso.

Houve quem lhe atribuísse característica de tributo, da espécie imposto, como Alberto Xavier96 e Adriano Daleffe97.

E houve quem lhe atribuísse a característica de uma receita patrimonial do Estado, tal como Aurélio Pitanga Seixas Filho98, Heleno Taveira Torres99, Reynaldo Andrade da Silveira100, Ricardo Lobo Torres101 e Luiz Emygdio Rosa Jr102.

Para um bom entendimento das duas teses vale relembrar algumas lições de direito financeiro, tomando por base a Teoria dos Ingressos, exposta por Aliomar Baleeiro, em sua excepcional obra Uma Introdução à Ciência das Finanças103.

Os Ingressos Públicos dividem-se em Movimentos de Fundos e em Receitas.

São singelos Movimentos de Fundos aqueles Ingressos que geram uma contrapartida de devolução dos valores arrecadados. Daí que os empréstimos ao Tesouro e sua restituição, bem como as cauções, fianças e depósitos se caracterizam por ser uma Movimentação de Fundo, não havendo um acréscimo de valor aos cofres públicos, em face de serem restituíveis.

Por outro lado, a Receita Pública caracteriza-se por ser um acréscimo de valor carreado aos cofres públicos, não sendo de sua essência a

96 Natureza Jurídica e Âmbito de Incidência da Compensação Financeira por Exploração de Recursos Minerais. Revista Dialética de Direito Tributário – RDDT, nº 29, pág. 10-25. SP, Ed. Dialética, 02/1998.

97 Ilegalidade da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais. Revista Dialética de Direito Tributário – RDDT, nº 33, pág. 07-15. SP, Ed. Dialética, 06/1998.

98 Natureza Jurídica da Compensação Financeira por Exploração de Recursos Minerais. In: Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, Valdir de Oliveira Rocha (coord.). SP, Ed. Dialética, 1998, págs. 29-37.

99 A Compensação Financeira Devida pela utilização de Recursos Hídricos, Exploração de Recursos Minerais ou Produção de Petróleo, Xisto Betuminoso e Gás Natural (art. 20, §1º, CF) – sua Natureza Jurídica. In: Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, Valdir de Oliveira Rocha (coord.). SP, Ed. Dialética, 1998, págs. 119-146.100 A Compensação Financeira: Receita Tributária ou Patrimonial? Algumas Questões. In: Ordem Econômica e Social. Fernando Facury Scaff (org.). SP, LTR, 1999, págs 331-336.101 Curso de Direito Financeiro e Tributário. RJ, Renovar, 12ª ed., 2005, págs 191-192.102 Manual de Direito Financeiro & Direito Tributário. RJ, Renovar, 2000, 14ª. ed., págs. 59-60103 RJ, Forense, 2004,16ª. ed. revista e atualizada por Dejalma de Campos, págs. 130 e ss.

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restituição. Divide-se em dois grandes grupos: as Receitas Originárias e as Receitas Derivadas.

As Receitas Originárias, como o próprio nome já indica, possuem sua gênese na exploração do próprio patrimônio do Estado. São as que decorrem da exploração de terras, dos recursos hídricos, dos recursos minerais, das instalações industriais e comerciais do Estado e por aí assim. Ou seja, a formação dos preços decorre de uma relação quase que “de mercado”, ou diria melhor, “de mercado regulado”. São transações contratuais do Estado fruto da exploração de seu próprio patrimônio.

Já as Receitas Derivadas, como o nome indica, derivam do poder de império do Estado. Daí surgem os tributos e as multas. Não decorrem de uma exploração de bens públicos, mas do exercício de poder; daí decorrerem de poder de império, e não de uma relação contratual.

A discussão acima, sobre a natureza jurídica da CFEM, parte da classificação acima efetuada, pois, segundo alguns autores, ela teria características de receita derivada (tributo), enquanto para outros sua configuração é de receita originária (patrimonial).

15. Expostos os limites do debate, filio-me à corrente que entende ser a CFEM uma receita originária do Estado, pois decorre da exploração de seu patrimônio minerário e hidráulico. Sua imposição não decorre do poder de império do Estado, mas da permissão para a exploração de uma parcela de seu patrimônio.

Sua natureza jurídica é semelhante, mas não idêntica, à da taxa de ocupação, também chamada de laudêmio ou aforamento, que a União cobra pelo uso de terrenos de marinha. Em ambos os casos o que é cobrado é um valor pela exploração de uma parcela do patrimônio público.

Nas receitas derivadas não se há de falar em exploração do patrimônio público. O que existe é uma imposição de arrecadação de valores em decorrência do poder de império do Estado. Qual exploração do patrimônio público existe na cobrança de Imposto sobre a Renda, Cofins ou IPTU? Nenhuma.

Desta forma, entendo que a CFEM não possui características de receita derivada, mas de receita originária, segundo a classificação acima exposta, pois sua exigibilidade decorre da exploração de recursos minerais que são de propriedade da União, conforme determina a Constituição Federal no art. 20, IX104.

104 “Art. 20. São bens da União: IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo;”

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A jurisprudência pátria adota hoje este posicionamento de forma pacificada, como pode ser visto pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal abaixo transcrito, dentre outros:

Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE“Bens da União: (recursos minerais e potenciais hídricos de energia elétrica): participação dos entes federados no produto ou compensação financeira por sua exploração (CF, art. 20, e § 1º): natureza jurídica: constitucionalidade da legislação de regência (L. 7.990/89, arts. 1º e 6º e L. 8.001/90).1. O tratar-se de prestação pecuniária compulsória instituída por lei não faz necessariamente um tributo da participação nos resultados ou da compensação financeira previstas no art. 20, § 1º, CF, que configuram receita patrimonial. 2. A obrigação instituída na L. 7.990/89, sob o título de “compensação financeira pela exploração de recursos minerais” (CFEM) não corresponde ao modelo constitucional respectivo, que não comportaria, como tal, a sua incidência sobre o faturamento da empresa; não obstante, é constitucional, por amoldar-se à alternativa de “participação no produto da exploração” dos aludidos recursos minerais, igualmente prevista no art. 20, § 1º, da Constituição. (RE 228800/DF, DJ 16-11-2001, pág. 21)”.

4. ASPECTOS FEDERATIVOS DA PARTIÇÃO DA CFEM

16. Alguns Estados estabeleceram que a parcela que lhe cabe da CFEM deveria ser-lhe paga diretamente pelos contribuintes, e não ao DNPM105.

Portanto, mesmo sendo uma receita originária do Estado (lato sensu e não no sentido de Estado-membro, fração da Federação), e devendo ser

105 No Pará, Lei 6.710/05. Normas semelhantes foram aprovadas em outros Estados da Federação, como o Rio de Janeiro.

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repartido o produto de sua arrecadação com outros entes federativos, deve-se perquirir se estes entes possuem competência ou capacidade para arrecadar e fiscalizar diretamente a parte que lhes cabe daquela receita.

17. É o art. 20, §1º da Constituição, acima transcrito, que estabelece o direito dos Estados e Municípios de receberem a CFEM.

Pode-se extrair dessa norma o entendimento de que existe uma titularidade direta dos entes federativos no recebimento da CFEM?

Entendo que não, porque a estrutura da referida norma é idêntica à das normas constantes dos arts. 157106 e 158107 da Constituição, que não concedem titularidade direta aos entes federativos para o exercício de arrecadação e fiscalização das receitas ali constantes.

Nestas duas hipóteses, o que existe é uma estrutura de fundos de repartição, através da qual algumas receitas são arrecadadas, mas não totalmente apropriadas pela Unidade da Federação que as arrecada, pois é repartida com os demais entes federativos, caracterizando-se como um federalismo participativo ou cooperativo e que não se refere apenas ao sistema tributário, mas ao financiamento do regime federativo brasileiro.

18. Observemos inicialmente como se comporta este sistema com referência aos tributos.

Existem duas espécies de redistribuição de recursos:A – Repartição Direta, através da qual se redistribui o que foi recebido

diretamente por uma unidade federada à outra:

106 “Art. 157. Pertencem aos Estados e ao Distrito Federal: I -o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; II - vinte por cento do produto da arrecadação do imposto que a União instituir no exercício da competência que lhe é atribuída pelo art. 154, I.”107 “Art. 158. Pertencem aos Municípios: I - o produto da arrecadação do imposto da União sobre renda e proventos de qualquer natureza, incidente na fonte, sobre rendimentos pagos, a qualquer título, por eles, suas autarquias e pelas fundações que instituírem e mantiverem; II - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto da União sobre a propriedade territorial rural, relativamente aos imóveis neles situados, cabendo a totalidade na hipótese da opção a que se refere o art. 153, § 4º, III; III - cinqüenta por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre a propriedade de veículos automotores licenciados em seus territórios; IV - vinte e cinco por cento do produto da arrecadação do imposto do Estado sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação.”

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1. Da arrecadação do ITR (patrimônio rural) a União transfere 50% para os Municípios onde estão localizados os imóveis.2. Da arrecadação do IOF (operações financeiras) sobre o ouro quando utilizado como ativo financeiro ou instrumento cambial, a União transfere: 70% para o Município de origem do metal e 30% para o Estado-membro onde está localizado aquele Município.3. Da arrecadação do IPVA (propriedade de veículos) os Estados-membro transferem 50% para os Municípios onde os veículos são licenciados.

B – Repartição Indireta, através da qual se redistribui o que foi recebido para outras unidades federadas, através de um sistema denominado de Fundos de Participação:

1. Da arrecadação do IPI (produtos industrializados) a União transfere: 21,5% para os Estados, 22,5% para os Municípios e 10% para os Estados Exportadores proporcionalmente ao valor de suas exportações.2. Da arrecadação do IR (renda) a União transfere: 21,5% para os Estados e 22,5% para os Municípios.3. Da arrecadação do ICMS (circulação de mercadorias) os Estados transferem 25% para os Municípios, sendo que 75% desse montante será distribuído de acordo com o valor adicionado, e os demais 25% de conformidade com lei estadual.4. A partir de dezembro de 2003, fruto da Emenda Constitucional 42, da arrecadação da Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico – CIDE incidente sobre a exploração e comercialização de derivados de petróleo, a União transfere: 29%108 para os Estados, os quais deverão repassar aos Municípios 25% do que receberem.

108 O percentual na EC 42 era de 25%, mas a EC 44, de 30-06-2004 aumentou este percentual para 29%.

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Este sistema de Fundos de Participação, ponto central do Federalismo Participativo, é definido por um conjunto de leis complementares que visa promover o equilíbrio sócio-econômico entre Estados e Municípios, e que toma por base a relação entre população e riqueza de cada ente federativo, visando redistribuir a arrecadação efetuada. Compete ao Tribunal de Contas da União proceder ao cálculo do valor a ser distribuído a cada ente federativo, através de um sistema de cotas.

19. Entende-se, portanto, que as leis que permitem arrecadar diretamente os valores da CFEM não possuem amparo constitucional.

Deve-se então, pari passu, verificar se a Lei federal 7.990/89 ampara a arrecadação direta da CFEM pelos Estados. A norma em questão é a do artigo 8º., assim lavrado, com as alterações efetuadas pelo art. 3º da Lei nº 8.001/90:

“Art. 8º O pagamento das compensações financeiras previstas nesta lei, inclusive o da indenização pela exploração do petróleo, do xisto betuminoso e do gás natural, será efetuado mensalmente, diretamente aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e aos órgãos da Administração Direta da União, até o último dia útil do segundo mês subseqüente ao do fato gerador, (...), vedada a aplicação dos recursos em pagamento de dívida e no quadro permanente de pessoal.”

Também aqui entendo não haver uma regra de competência ou de capacidade arrecadatória.

O que existe é a determinação de pagamento direto, e não através de fundos de partição, como acima referido para a distribuição do FPE ou do FPM. O rateio da CFEM possui uma relação direta de pertinência com a extração mineraria, não devendo haver uma redistribuição dos valores arrecadados.

Esta norma possui semelhança, no âmbito constitucional, com aquela estabelecida no art. 158, III, que determina caber ao Município onde for licenciado o veículo 50% do valor do IPVA, a despeito de ser um tributo estadual. Ou mesmo da norma que estabelece que 25% do ICMS será rateado com o Município em que ocorrer a circulação da mercadoria (art. 158, IV, CF/88, com a observação constante de seu parágrafo único).

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Teriam os Municípios direito a receber diretamente a parcela do valor que lhe é devido de IPVA ou de ICMS, tal como pretendem estes Estados a receber diretamente a CFEM das empresas minerarias, afastando o DNPM?

Entendo que em todos estes casos a resposta é negativa. O que a norma pretende regular é a forma de distribuição do rateio, que

deve ser direto - e não indireto - e através de depósito em conta do Banco do Brasil de cada qual das unidades federativas que têm direito a receber a CFEM. Entendo este seja o sentido da interpretação do art. 8º., da Lei 7990/89.

20. A CFEM, embora não seja uma receita tributária (receita derivada), mas patrimonial (originária), segue a regra de partição direta, sendo que, do montante arrecadado109:

I - 23% (vinte e três por cento) pertencem aos Estados (e ao Distrito Federal) de onde foram extraídos os recursos minerais;

II - 65% (sessenta e cinco por cento) pertencem aos Municípios de onde foram extraídos os recursos minerais;

III - 12% a órgãos da Administração Direta da União (FNDCT e DNPM).Trata-se de uma partição direta, e não indireta, dos valores arrecadados.21. Desse modo, a despeito da CFEM ser classificada como uma receita

originária do Estado (lato sensu), ela não se caracteriza como uma receita originária do Estado-Membro. Para os entes subnacionais (Estados-Membro, Distrito Federal e Municípios) da Federação, a receita da CFEM é uma receita transferida, pois decorre de uma arrecadação de valores efetuada por um ente federativo, no caso a União, através de uma autarquia federal (o DNPM) e a eles transferida.

Não se trata de receita originária dos Estados-Membro em razão de que a Constituição estabeleceu que os recursos minerais, inclusive os do subsolo, são bens da União (art. 20, IX). Logo, o que está sendo explorado não é o patrimônio dos Estados-membro ou dos Municípios, mas o da União. Para aqueles cabe o recebimento de uma parcela em dinheiro, paga a título de compensação financeira pela exploração de recursos minerais (art. 20, §1º).

Assim, compete à União a fiscalização e a arrecadação dos valores decorrentes da CFEM, cuja integralidade da receita é transferida para Estados-membro, Municípios e órgãos da Administração Direta da própria União.

109 A CFEM do petróleo e do gás possui outra forma de partição.

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22. Receita transferida é aquela que é arrecadada por um ente da Federação e repassada a outro, seja esta arrecadação de origem tributária ou não.

Regis Fernandes Oliveira e Estevão Horvath110 classificam este tipo de receita transferida como aquela que, “embora provindas do patrimônio particular (a título de tributo) não são arrecadadas pela entidade política que vai utilizá-la. (...) Assim, o dinheiro ingressa nos cofres públicos de Estados e Municípios, não em virtude de seu poder constritivo sobre o particular, nem por exploração de seus próprios bens. Recebe o dinheiro em decorrência do exercício de competência de outra entidade política que, por disposição constitucional, o transfere aos cofres de Estados e Municípios.”

A própria Lei 4.320/64, que estabelece Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal prevê esta modalidade de receita transferida e despesa transferida, basta ver seu art. 11, §4º e seu artigo 12, abaixo transcritos:

“RECEITAS CORRENTESReceita tributáriaImpostosTaxasContribuições de MelhoriaReceita PatrimonialReceitas imobiliáriasReceitas de valores MobiliáriosParticipações e DividendosOutras Receitas Patrimoniais

Receita IndustrialReceita de Serviços IndustriaisOutras Receitas Industriais

110 Manual de Direito Financeiro. SP, RT, 6ª. ed. revista, 2003, pág. 40.

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Fernando Facury Scaff

Transferências CorrentesReceitas DiversasMultasContribuiçõesCobrança da Dívida AtivaOutras Receitas Diversas

RECEITAS DE CAPITALOperações de CréditoAlienação de Bens Móveis e ImóveisAmortização de Empréstimos Concedidos

Transferências de CapitalOutras Receitas de Capital

DESPESAS CORRENTESDespesas de CusteioTransferências Correntes

DESPESAS DE CAPITALInvestimentosInversões FinanceirasTransferências de Capital”

É importante observar o alerta que Heleno Taveira Torres faz ao analisar a natureza jurídica da CFEM, concluindo por sua natureza de receita originária:

“Esquecem os tributaristas que a especialidade deles encontra-se encastelada numa plataforma mais ampla, a ‘atividade financeira do Estado’, objeto de estudo do ‘direito financeiro’, onde a contabilidade pública tem o seu relevo e importância, mesmo se o insistam em desconhecer, ou, quando menos, negar sua importância.”111

111 Ob. cit., pág. 137-138

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Desta forma, o que para a União (DNPM) é uma Receita Originária, transforma-se em Despesa Transferida para os Estados e Municípios, para os quais se torna uma Receita Transferida, pois, segundo as palavras de Oliveira e Horvath “o dinheiro ingressa nos cofres públicos de Estados e Municípios, não em virtude de seu poder constritivo sobre o particular, nem por exploração de seus próprios bens”112.

Logo, os entes subnacionais (Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) não podem arrecadar diretamente os valores que lhes são devidos pelo sistema de receitas transferidas, fruto do federalismo participativo ou cooperativo.

23. Cabe ainda mais uma observação sobre o tema. Mesmo as transferências de receita aqui determinadas podem ser

obrigatórias (constitucionais ou legais) ou voluntárias.São transferências obrigatórias aquelas determinadas pelos Fundos

de Participação (arts. 157 e 158, CF/88) e as da CFEM (art. 20, §1º, CF/88), dentre outras.

São transferências voluntárias, na determinação da Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 25, Lei Complementar 101/00), “a entrega de recursos correntes ou de capital a outro ente da Federação, a título de cooperação, auxílio ou assistência financeira, que não decorra de determinação constitucional, legal ou os destinados ao Sistema Único de Saúde”.

Logo, não se pode considerar que o sistema de transferências da CFEM seja “voluntário” ou que decorra de “benesse da União”, ou ainda que sua caracterização como tal decorra de “malabarismo nos códigos orçamentários”113. Não se trata de malabarismo. O Orçamento dos Estados contempla este tipo de Receita em seus Balanços, usualmente classificada como “Outras Transferências”.

É inegável que existe um desequilíbrio na estrutura federativa brasileira114 e que um dos objetivos da República Federativa do Brasil é a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III, CF/88). É também

112 Ob. e loc. cit.113 Parecer da Procuradoria Geral do Estado do Pará nº 018/2005, de 18-04-2005.114 Sobre este assunto ver: Fernando Facury Scaff, Aspectos Financeiros do Sistema de Organização Territorial do Brasil, Boletim de Ciências Econômicas da Universidade de Coimbra, Portugal, também publicado da Revista Dialética de Direito Tributário nº 112, págs. 16-31.

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inegável que existe um “mal-estar que a exploração hídrica e minerária causa no espaço dos demais entes (subnacionais), pois certamente a topografia geoeconômica e social é afetada desde antes do início de determinadas atividades, onde somente a expectativa criada na população é suficiente para que seja dado início a intensos fluxos migratórios de pessoas atraídas pela possibilidade de melhorar de vida.”115

Porém não será através de “golpes de caneta” que a realidade será modificada de forma progressiva e consistente.

4. DA COMPETÊNCIA CONCORRENTE SOBRE O DIREITO DE FISCALIZAR

24. É bem sabido que a Constituição estabeleceu ainda normas relativas à competência concorrente entre os entes federativos para algumas atividades, dentre elas a de registro, acompanhamento e fiscalização das “concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios”, conforme estabelece o art. 23, XI, da Carta de 1988116.

Aqui nos defrontamos com situações distintas, pois:a) Esta norma não diz respeito à arrecadação, mas à “registro,

acompanhamento e fiscalização”. Portanto, o verbo (que registra a ação a ser desenvolvida), não contempla a atividade pretendida pelo Estado, que é a de arrecadar, embora este verbo não esteja explícito no texto da lei estadual.

b) No mesmo sentido, o objeto da oração não alcança a CFEM, mas “a concessão” de direitos de pesquisa e a “exploração” de recursos hídricos. Não há nenhuma ilação acerca de “compensação financeira pela exploração”, objeto da CFEM.

c) Por fim, o parágrafo único, do art. 23, que prevê a edição de uma Lei Complementar para regular este tipo de cooperação federativa ainda não foi editada. O texto é cristalino: “Lei complementar fixará normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional”.

115 Parecer da Procuradoria Geral do Estado do Pará nº 018/2005, de 18-04-2005.116 “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: XI - registrar, acompanhar e fiscalizar as concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios;”

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Desta forma, argumentar sobre a competência estadual para arrecadação da CFEM tomando por base este artigo não tem como prosperar. Não há nenhuma palavra nesse preceito que permita atribuir aos Estados-membros o poder de arrecadar diretamente a CFEM. Trata-se de uma norma que rege as relações ambientais, e não as financeiras.

25. Poderiam os Estados-membros e os Municípios fiscalizar a arrecadação da CFEM?

Deve-se inicialmente diferenciar entre “arrecadar” e “fiscalizar a arrecadação”. Já foi visto anteriormente que não cabe aos Estados-membros a função de “arrecadar”. Caberia a de “fiscalizar a arrecadação”?

A resposta e esta pergunta é positiva, porém pendente de um Convênio a ser firmado com o DNPM nesse sentido, pois este é quem detém por lei a competência fiscalizatória (Lei 8876/94, art. 3º., IX) e sempre para a implementação das normas federais que regem a matéria.

Por outras palavras: Estados e Municípios não possuem direito autônomo à fiscalização da CFEM por falta de base legal que lhes atribua esta função. Sua atividade fiscalizatória decorre de um princípio de colaboração federativa, nos limites do que vier a ser conveniado com o DNPM, e para a implementação das normas federais que regem a matéria.

26. Portanto, chega-se às seguintes conclusões:a) Estados-membros e Municípios não possuem autorização

constitucional para arrecadar a CFEM por singela carência de norma que os autorize;

b) O art. 23, XI, da Constituição não concede aos Estados-membro e Municípios o direito de legislar sobre a CFEM, mas apenas de legislar sobre registro, acompanhamento e fiscalização das concessões de direitos de pesquisa e exploração de recursos hídricos e minerais em seus territórios. Não existe nenhuma possibilidade interpretativa que valide a arrecadação direta da CFEM pelos Estados-membro a partir desse dispositivo, que, aliás, ainda encontra-se pendente de regulamentação através de Lei Complementar.

c) a atuação estadual e municipal no mister fiscalizatório é subsidiária condicionada à autorização do DNPM, o que somente pode se dar através de convênios específicos para esta atividade, e para a implementação das normas federais que regem a matéria.

27. Deve-se ainda diferenciar o que seja “fiscalização” das empresas minerárias e da “fiscalização” dos recursos transferidos para os cofres

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públicos. Ou seja, uma é a relação que se poderia chamar de “Fisco-contribuinte”117; outra é a relação interna corporis do Estado, decorrente do controle dos gastos dos valores já arrecadados.

Esta segunda relação de fiscalização, interna corporis, já foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal, no MS 243.121, em que foi Relatora a Ministra Ellen Gracie, julgado em 19-02- 2003, na qual foi reconhecida a competência do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro para a fiscalização da aplicação dos recursos oriundos dessa exploração no território fluminense, a despeito da exploração de recursos minerários ser de competência da União.

5 - DO PRAZO PRESCRICIONAL PARA COBRANÇA DA CFEM

28. Outro aspecto a ser discutido, bastante debatido em face da divergência na interpretação das normas, diz respeito ao prazo prescricional para a cobrança da CFEM.

Existem Estados que se julgam competentes para legislar sobre prazo prescricional de cobrança de créditos não-tributários.

Este assunto circunscreve-se no âmbito do direito processual, cuja competência é exclusiva da União, de conformidade com o art. 22, I, da Constituição.

Não se trata de matéria administrativa, como poderia parecer de início, por aparentemente se tratar do pedido de apresentação de documentos para fins de fiscalização. Isto porque a busca é no sentido de fiscalizar para cobrar, em caso de inadimplemento. Quem fiscaliza o pagamento de valores pedindo documentos referentes há 10 anos passados, é porque pressupõe poder impor penalidades pelo descumprimento da obrigação de pagar, e cobrar o valor que não tiver sido pago, pelo mesmo período. Seria inócuo fiscalizar o pagamento de um período que não pudesse ser cobrado. Por tal fato, esta matéria não se caracteriza como de direito administrativo.

Pelas mesmas razões este debate sobre prazo prescricional não se circunscreve à matéria de direito financeiro ou de finanças públicas. A relação entre Estado-membro e contribuintes na presente situação é de direito financeiro, porém as normas referentes ao prazo para sua cobrança não se

117 Usa-se a expressão entre aspas, pois não se refere a uma relação tributária.

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inserem nesse capítulo da matéria jurídica como competência concorrente dos Estados-membros.

29. Afastada a hipótese de competência concorrente para dirimir a matéria e ficando assente a competência exclusiva da União para legislar sobre o tema, resta verificar se existem normas federais que regulem o assunto.

Uma das normas mais invocadas é o art. 205 do novo Código Civil, o qual determina que “a prescrição ocorre em 10 anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”. Todavia, entende-se ser esta norma inaplicável, pois o Código Civil regula as relações de direito privado, que vincula entes privados. O caso em apreço é uma relação de direito público, vinculada ao direito administrativo e financeiro, não podendo ser regulada por normas de direito privado.

Para espancar qualquer dúvida a respeito do tema, leia-se o artigo 206 do Código Civil, que regula algumas das exceções à regra da geral da prescrição civil, e verificar que nele somente são mencionadas pessoas privadas em relações de direito privado. Basta conferir para ter certeza:

§1º Usa-se a prescrição de 01 ano em relações privadas específicas: de hospedeiros, de seguros, de tabeliães, auxiliares da justiça, serventuários judiciais, árbitros e peritos de credores.§2º Usa-se a prescrição de 02 anos em caso de prestações alimentares.§3º Usa-se a prescrição de 03 anos em relações privadas específicas: aluguéis, prestações vencidas de rendas temporárias ou vitalícias, juros, dividendos ou prestações acessórias, ressarcimento decorrente de enriquecimento sem causa,reparação civil, restituição de lucros ou dividendos recebidos de má-fé, pretensão fundada em violação da lei ou do estatuto, por parte de sócios ou acionistas, recebimento de título de crédito, beneficiário contra segurador§4o Usa-se a prescrição de 04 anos em caso de aprovação de contas em caso de tutela civil.§5o Usa-se a prescrição de 05 anos: para a cobrança de

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dívidas líquidas, para a cobrança de honorários profissionais e para a cobrança de custas judiciais e extrajudiciais.

Como acima referido, todas as normas do art. 206 do Código Civil, que tratam de exceções à regra do art. 205, mencionam relações de direito privado entre pessoas privadas.

Logo, incabível o uso do Código Civil nas relações de direito público, tal como as que ora são mencionadas, especialmente em tema de prescrição.

30. Por outro lado, a União não dispõe de normas referentes à prescrição da dívida ativa não-tributária, mas dispõe de normas para prescrição de dívida passiva não-tributária, que é o Decreto 20.910, de 06-01-1932.

O texto da norma é o seguinte:

Art. 1º. As Dividas Passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originarem.

Verifica-se, portanto, que a despeito de não existir norma para regular a dívida ativa não tributária, existe norma para regular a dívida passiva não-tributária. É o caso de utilização por analogia, o que é permitido pelo art. 4º da Lei 4657/42118.

Miguel Reale, em suas Lições Preliminares de Direito119, ensina que “a analogia não se reduz a um mero processo lógico-formal, inserindo-se, ao contrário, no processo axiológico ou teleológico do sistema normativo, em virtude de algo mais profundo, ligado à estrutura da experiência jurídica, e não apenas como conseqüência formal de semelhança entre um caso particular e outro. (...). Quando recorremos, portanto, à analogia, estendendo a um caso semelhante a resposta dada a um caso particular previsto, estamos, na realidade, obedecendo à ordem lógica substancial ou à razão intrínseca do sistema.”

118 “Art. 4o Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.”119 SP, Saraiva, 1973, págs. 334-335.

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E com arrimo nas normas acima mencionadas e nestas lições sobre analogia que o Superior Tribunal de Justiça vem adotando o entendimento que nas situações em que se discute a dívida ativa não-tributária, o prazo prescricional deve ser o mesmo que o das dívidas passivas não-tributárias. Transcreve-se dois acórdãos nesse sentido:

Ministra ELIANA CALMONADMINISTRATIVO - CONTRATO DE OBRAS FIRMADO COM O ESTADO – PAGAMENTO FEITO A MENOR - PRESCRIÇÃO - ART. 1º DO DECRETO 20.910/32 – SÚMULA 456/STF E 106/STJ.1. Em se tratando de contrato administrativo firmado com o Estado do Rio de Janeiro, a prescrição é qüinqüenal a teor do art. 1º do Decreto 20.910/32 e não vintenária, nos termos do art. 177 do CC.2. Conta-se o prazo de cinco anos do pagamento feito “a menor”.3. Conhecido o especial e decidida a tese jurídica, em atenção à Súmula 456/STF, aplica-se o direito à espécie.4. Proposta a ação no prazo fixado para o seu exercício, a demora na citação por motivos inerentes ao mecanismo da Justiça, não se decreta a prescrição (Súmula 106/STJ).120

Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINSProcessual Civil. Recurso Especial. Apelação. Ausência de Revisão. Nulidade. Art. 551 do CPC. Precedentes. Prescrição Configurada1. Rejeitada, por maioria, a preliminar de nulidade do acórdão por violação do art. 551/CPC, vencido o Relator.2. Reconhecida a prescrição qüinqüenal do direito do BACEN de cobrar multa administrativa por infração cambial ocorrida há mais de uma década.121

120 REsp 514221 / RJ ; DJ 11.10.2004 p. 273 .121 REsp 380006 / RS; DJ 07.03.2005 p. 134.

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Desta forma, embora não exista uma norma que reja diretamente a cobrança da dívida ativa não-tributária, por analogia, deve-se utilizar o prazo estabelecido pelas normas que regem a cobrança da dívida passiva não-tributária, e que estabelecem um prazo de 05 anos.

6. DA BASE DE CÁLCULO DA CFEM

31. Para que seja possível analisar os argumentos em debate neste tópico, é imprescindível que se transcreva as normas pertinentes ao tema em apreço.

Estabelece o art. 6º da Lei 7.990/89:

“Art. 6º A compensação financeira pela exploração de recursos minerais, para fins de aproveitamento econômico, será de até 3% (três por cento) sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral, obtido após a última etapa do processo de beneficiamento adotado e antes de sua transformação industrial.”

Em seguida foi editada a Lei 8.001/90 que detalhou o que se deveria entender por “faturamento líquido”, base de cálculo da CFEM:

“Art. 2º Para efeito do cálculo de compensação financeira de que trata o art. 6º da Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, entende-se por faturamento líquido o total das receitas de vendas, excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguros.”

Observados estes parâmetros122, constata-se a seguinte base de

122 A despeito de estar necessariamente subordinado às Leis que regem a matéria, o Decreto 001, de 1997, assim estabelece a base de cálculo da CFEM: “Art. 13. A compensação financeira devida pelos detentores de direitos minerários a qualquer título, em decorrência da exploração de recursos minerais para fins de aproveitamento econômico, será de até 3% (três por cento) sobre o valor do faturamento líquido resultante da venda do produto mineral, obtido após a última etapa do processo de beneficiamento

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cálculo, também chamada de base imponível para a CFEM: Faturamento líquido correspondente “ao total das receitas de vendas” abatidos os “tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transportes e as de seguros”.

A partir dessa norma seria suficiente identificar em concreto, para a determinação do fato imponível, quais são:

i) Os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineralii) As despesas de transportes a serem abatidas eiii) As despesas de seguros a serem abatidasiv) Recortando ainda, dentro da cadeia produtiva minerária, até

quando estas despesas devem ser computadas:a. Após a última etapa do processo de beneficiamento adotado eb. Antes de sua transformação industrial.32. Na sequência, no âmbito interno do DNPM, foi estabelecido pela

Instrução Normativa n.06/2000 outro entendimento sobre o que seria esta base de cálculo:

“Art.1º. Para os efeitos previstos no inciso II e no § 2º, do art. 14, do Decreto nº 1/91, somente são consideradas parcelas dedutíveis para obtenção do faturamento líquido sobre as operações de venda do produto mineral, mesmo que este esteja submetido a qualquer forma de acondicionamento ou embalagem:I – IOF – Imposto sobre operações financeiras: Aquele incidente nas operações de venda de ouro como ativo financeiro, efetivamente apurado, conforme constar de escrituração fiscal federal referente ao mês de ocorrência do fato gerador da CFEM;II – ICMS – Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação: Aquele efetivamente apurado, conforme constar de escrituração fiscal referente ao mês de ocorrência do fato gerador da

adotado e antes de sua transformação industrial.”

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CFEM;No caso de ICMS Substituição, aquele apurado na venda de água mineral, conforme constar de escrituração fiscal referente ao mês de ocorrência do fato gerador da CFEM. Este ICMS substituição deverá ser considerado no valor total da nota fiscal;III - PIS – Programa de integração social e COFINS – Contribuição para o financiamento da seguridade social: Aquele efetivamente apurado, conforme constar de escrituração fiscal federal, referente ao mês de ocorrência do fato gerador da CFEM, correspondente, unicamente, às receitas oriundas da venda do produto mineral;IV - Transporte: Aquele incidente e destacado no preço de venda do produto mineral, posto no local determinado pelo comprador;V - Seguro: Aquele incidente e destacado no preço de venda, relativo ao transporte do produto mineral, posto no local determinado pelo comprador;”

E, posteriormente, o Manual de Cobrança e Arrecadação do CFEM, criado pela Portaria 340/2006 veiculou a seguinte norma:

“Para efeito de cálculo da CFEM, considera-se faturamento líquido o total das receitas de venda, excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguro.”

Nota-se, de forma translúcida, pela simples leitura das normas acima transcritas, que a Instrução Normativa 06/2000 restringiu o alcance do texto legal, o que não poderia fazer.

Afinal, em concreto, na identificação do fato imponível, nem sempre se verifica identidade entre o que a Instrução Normativa e a Lei estabelecem como valor do transporte, seguro e tributos:

a. Na Instrução Normativa o custo de transporte e de seguro serão considerados apenas quando “incidente e destacado no preço de venda do produto mineral, posto no local determinado pelo comprador”, e

b. Na Lei, estes custos serão considerados até a “ultima etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”.

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Ou seja, a Instrução Normativa está preocupada com a forma (“incidente e destacado”) e a Lei foca sua atenção nas fases do processo de industrialização minerária (daí o uso de expressões que denotam as etapas de produção).

Basta verificar a existência de situações onde existe transporte dentro da mina, retirando o minério da cava e transportando-o até o local onde ele será retirado pelo adquirente.

O custo com este tipo de transporte interno deve ser incluído ou excluído da base de cálculo da CFEM? Pela Lei, por certo, trata-se de um custo a ser computado, reduzindo a base imponível da CFEM; pela Instrução Normativa 06/2000, trata-se de um custo que não permite a redução.

O mesmo argumento pode ser utilizado acerca do “seguro” e dos “tributos incidentes sobre a comercialização”. O texto da Instrução Normativa 06/2000 reduz o alcance do texto das Leis 7990/89 e 8001/90 e do Decreto 01/97.

33. Demonstram-se 03 diferentes argumentos em prol da exclusão dos custos de transporte e de seguro da base de cálculo da CFEM, sem as limitações impostas pela Instrução Normativa 006/2000:

a) Pelo Princípio da Hierarquia das Leis, as Leis se sobrepõem aos Decretos, que lhe devem obediência, e as Instruções Normativas são normas de inferior estatura, que devem obedecer às Leis e aos Decretos.

Desta forma, a norma da Lei 8001/90, ao determinar que ficam “excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguros” deve se sobrepor à Instrução Normativa 006/2000.

Observe-se que a norma legal não fez nenhuma ressalva sobre quais os gastos de transporte ou de seguro deveriam ser considerados. O abatimento é integral referente às “despesas de transporte e as de seguro” alcançando até “a última etapa do processo de beneficiamento adotado” e “antes da transformação industrial”.

Assim, quando a Instrução Normativa 006/2000 delimitou quais seriam estas despesas, o fez de forma contrária à Lei, ou seja, de maneira ilegal, devendo prevalecer o que a Lei determinou - a exclusão plena desses custos reduzindo a base de cálculo da CFEM.

b) Pelo Princípio de que Norma Posterior Derroga Norma Anterior, constante do art. 2º, §1º da Lei de Introdução ao Código Civil, constata-se

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que mesmo no âmbito administrativo não mais pode vigorar o disposto na Instrução Normativa 006/2000, pois a Portaria 340 de 2006 derrogou o que era disposto pela IN, uma vez que trata da mesma matéria de forma diversa.

E ainda mais, acatando o que prescreve a Lei 8001/90, o que a Instrução Normativa 006/2000 não faz, pois viola o Princípio da Hierarquia das Leis acima descrito.

Logo, o texto da norma mais recente (Portaria 340/2006) revogou o que dispunha a norma mais antiga, de idêntica hierarquia (IN 006/2000).

Também sob este ponto de vista, não pode ser aplicada a IN 006/2000, pois derrogada (revogação parcial do que for conflitante) no ponto específico que trata da composição da base de cálculo da CFEM.

Desta maneira, hoje vige plenamente o Decreto 340/2006 no que tange à base de cálculo da CFEM.

c) Por fim - e aqui vamos nos referir a um procedimento metodológico utilizado pela fiscalização do DNPM para a identificação da base imponível –, pelo Princípio da Especialidade, constata-se que a base de cálculo da CFEM não é idêntica à base de cálculo do ICMS.

A base de cálculo do ICMS toma por base o valor das vendas realizadas.A base de cálculo da CFEM adota o valor das vendas realizadas, com

exclusões, em face do que determina a Lei 8001/90, reproduzida pela Portaria 340/2006.

Quais são estas exclusões?- O valor dos tributos incidentes sobre a comercialização;- As despesas de transporte e- As despesas de seguro.É usual que seja ajustada a base de cálculo de uma determinada

receita pública, seja ela tributária ou não-tributária. Basta ver que o Imposto sobre a Renda se caracteriza como um tributo sobre as rendas e proventos obedecidas certas exclusões de sua base de cálculo.

O mesmo ocorre com a CFEM, pois o “o valor total das receitas de vendas” deve ser ajustado, de tal modo que algumas despesas sejam afastadas da base de cálculo da CFEM, tal como determinado pela Lei 8001/90 e pela Portaria 340/2006.

34. Assim, deve-se identificar no caso concreto, os custos com transporte, seguro e tributos referentes à “ultima etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”, a fim de excluir estes valores da apuração da base de cálculo da CFEM.

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Aspectos controvertidos sobre a Compensação Financeira...

Desse modo, caso exista uma grande distância entre o local de extração do minério e o local de entrega do produto, correspondente à “ultima etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”, todos os custos envolvidos na operação (incluindo seguro, transporte e tributos) devem ser computados para a redução da base de cálculo da CFEM.

35. A esta altura da exposição cabe trazer à colação a decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 756.530-DF, cujo relator foi o Ministro Teori Zavascki, por maioria, onde foi adotada a diferença entre os conceitos de “substância mineral”, “recurso mineral” e “produto mineral” para decidir sobre a base de cálculo da CFEM.

No voto do Ministro Zavascki é feita a seguinte distinção:a) “Substância mineral” é gênero, que congrega duas espécies:

“recurso mineral” e “produto mineral”;b) “Recurso mineral” é espécie que designa o minério no local onde se

encontra, antes de sua extração ou de qualquer beneficiamento; ec) “Produto mineral” é espécie que designa o minério já lavrado

(“produto da lavra”), tendo sido beneficiadas as substâncias minerais úteis, destinadas à distribuição, comércio e consumo.

Decidiu então a Primeira Turma do STJ, ancorada no voto do Ministro Zavascki, que o correto é computar os custos da venda do “produto mineral”, e não dos “recursos minerais”, pois esta é a dicção do art. 2º., da Lei 8001/90123 e do art. 14, II, do Decreto 01/91124.

Ou seja, o ponto central em debate, sobre a composição da base de cálculo, não foi mencionado. Cingiu-se o Tribunal, por sua douta maioria, centrar sua atenção na questão terminológica, ao invés de fazê-lo na identificação da base imponível da exação.

As fragilidades da decisão, que merece respeito e deve ser acatada, mas não é imune a críticas doutrinárias, são as seguintes:

1) Concede mais atenção ao nomem juris do que à exata dimensão da

123 “Art. 2º Para efeito do cálculo de compensação financeira de que trata o art. 6º da Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989, entende-se por faturamento líquido o total das receitas de vendas, excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguros.”124 “Art. 14. Para efeito do disposto no artigo anterior, considera-se: II - faturamento líquido, o total das receitas de vendas excluídos os tributos incidentes sobre a comercialização do produto mineral, as despesas de transporte e as de seguro”;

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Fernando Facury Scaff

base imponível da CFEM. Fosse matéria tributária – que, como visto acima, não é –, poder-se-ia invocar o art. 4º., I, do CTN125. Porém, mesmo não sendo matéria tributária, a crítica permanece válida, pois não se pode dar maior atenção aos elementos formais do que aos elementos materiais, qualquer que seja a exação a ser realizada.

2) A ser possível se adotar o critério formal, do singelo nomem juris poder-se-ia alegar que a CFEM quer dizer “Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais” e não de “Produtos Minerais”. Logo, cobrar sobre “Produtos” quando até mesmo o nomen juris menciona “Recursos” vai de encontro ao argumento expendido na referida decisão.

3) Por outro lado, como se trata de uma compensação pela exploração de Recursos Minerais, deve haver uma correlação entre a base de cálculo estabelecida na norma e sua exata dimensão, pois a base de cálculo deve identificar-se com o objeto da exação. O que se explora são “Recursos Minerais”, e não “Produtos Minerais”. “Produto” é o que resulta da exploração dos “Recursos”.

4) Correlato com o que foi exposto mais ao norte, sobre a possibilidade de ajustes na composição da base de cálculo das exações publicas - foi mencionado os ajustes que devem ser efetuado à “renda” para a composição da base de cálculo do imposto de renda -, entendo que não há nenhum óbice em usar o preço dos “Produtos Minerais” ( - fruto dos “Recursos Minerais” explorados) como base de cálculo da CFEM, desde que sejam efetuados os ajustes legais, quais sejam: o expurgo da base de cálculo dos custos com transporte, seguro e tributos, computados até a “ultima etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”.

Cabe observar que não são todos os custos que devem ser abatidos, mas apenas os legalmente determinados, ou seja, não deve ser abatido o custo com pessoal, com encargos trabalhistas, e outros semelhantes.Do mesmo modo, nos custos tributários, devem ser afastados da base de cálculo todos aqueles que se referirem à comercialização do produto mineral, ou seja, ICMS, PIS, Cofins e outros correlatos. Não é necessário que sejam destacados na nota fiscal, basta que incidam sobre a comercialização.

Em apertada síntese, a base de cálculo da CFEM é o preço do “Produto

125 “Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-la: I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;”

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Aspectos controvertidos sobre a Compensação Financeira...

Mineral”, abatidos os custos para sua transformação de “Recurso” em “Produto”. E não se trata de abater todos os custos, mas apenas aqueles que se referem a transporte, seguro e tributos, até a “ultima etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”, independente de terem ou não sido destacados na nota fiscal.

Na Lei não foi estabelecida nenhuma condição para aproveitamento desses custos visando a redução da base de cálculo, tal como faz a Instrução Normativa 06/2000, ao exigir destaque do valor do transporte “no preço de venda do produto mineral, posto no local determinado pelo comprador;”, ou ainda para seguro, como sendo apenas aquele “incidente e destacado no preço de venda, relativo ao transporte do produto mineral, posto no local determinado pelo comprador”. Estas condicionantes estabelecidas pela Instrução Normativa são reducionistas e devem ser afastadas, a fim de que prevaleça a Lei em toda sua plenitude.

7. CONCLUSÕES

36. Uma vez que o presente trabalho foi elaborado com horizontalidade a fim de debater “aspectos controvertidos” acerca da CFEM, suas conclusões são necessariamente pontuais, identificadas com cada item abordado.

Desse modo, conclui-se afirmando que:a) A CFEM não possui natureza jurídica tributária, caracterizando-

se como uma compensação pela exploração de recursos minerais, com natureza jurídica de direito econômico e financeiro.

b) Os valores arrecadados pela União (DNPM) a título de CFEM são partilhados com Estados e Municípios, na forma da Lei, não caracterizando com isso uma receita própria desses entes subnacionais, mas receita transferida, na forma da Lei 4.320/64. Assim, não é possível aos entes subnacionais arrecadar diretamente a CFEM – transformandoa em receita própria - pois se trata de uma receita transferida, a ser arrecadada pelo DNPM e transferida aos demais entes subnacionais.

c) Mesmo sendo receita transferida, existe a possibilidade de os entes subnacionais fiscalizarem a arrecadação efetuada pelas empresas minerárias atinente à CFEM, desde que seja firmado um Convênio com o DNPM, pois este é o órgão legalmente encarregado da arrecadação e da fiscalização dessa exação. No que tange à fiscalização sobre a utilização dos recursos

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arrecadados interna corporis a cada ente subnacional, é competente o Tribunal de Contas de cada Estado ou dos Municípios para sua efetivação.

d) Não existe prazo prescricional para a cobrança dos créditos públicos não-tributários. Por tal motivo, deve-se usar por analogia a lei que determina o prazo prescricional de 05 anos para a cobrança da dívida pública não-tributária, qual seja, o Decreto 20.910, de 06-01-1932.

Descarta-se o uso das normas do Código Civil em razão de que estas são aplicáveis a relações entre pessoas privadas.

e) Para apuração da base de cálculo da CFEM deve-se apurar o preço do “Produto Mineral”, abatidos os custos para sua transformação de “Recurso” em “Produto”, quais sejam: transporte, seguro e tributos, até a “última etapa do beneficiamento adotado” e “antes de sua transformação industrial”.

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Uma breve história da economia ocidental: do mercantilismo aos dias atuais

FLORIANO DE LIMA NASCIMENTO

“Se não existisse em cada homem a tendência para a troca e para a compra, este ver-se-ia obrigado a produzir todas as coisas necessárias e úteis para a sua vida. Todos teriam os mesmos deveres e realizariam o mesmo trabalho; nessas condições, nunca poderia existir a enorme diferença de ocupações que, por si só dá origem à diversidade das aptidões.” Adam Smith

1. DO MERCANTILISMO AO FISIOCRATISMO

Tem ocorrido, desde o final do século XX, um emprego ambíguo dos termos Liberalismo e neoliberalismo. Esse imbroglio conceitual dificulta a compreensão de momentos distintos na história das doutrinas políticas e econômicas produzidas no Ocidente e complica consideravelmente o debate contemporâneo sobre as opções básicas do Estado, no que se refere à ordem jurídico-econômica. Queremos, em poucas palavras, opinar sobre o relevante e momentoso assunto, à luz das doutrinas em vigor nos últimos séculos.

A Escola Liberal tem origem no grupo dos economistas franceses que reunia, entre outros, La Riviére, Dupont de Nemours e Turgot, sob a liderança

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Floriano de Lima Nascimento

de François Quesnay, por sinal, médico de Luis XV. Na expressão laisser-faire et laisser-passer, le monde s’en va de lui même (deixe fazer, deixe passar, o mundo caminha por si mesmo), cunhada por Quesnay, encontrou o grupo o seu lema, ainda evocado nos dias de hoje.

Os fisiocratas, ao tomar a produção agrícola como a principal fonte geradora de riqueza, com base no tableau economique, ultrapassaram as toscas concepções do Mercantilismo, que chegou ao apogeu no período renascentista, assentando os fundamentos do Liberalismo Econômico e da própria Ciência Econômica.

1.1 Concepção econômica rudimentarPor Mercantilismo se entende a doutrina econômica que caracterizou

a época da Revolução Comercial, entre os séculos XVI e XVIII. Ocorreu nesse período a desintegração do Feudalismo, seguida pela formação dos Estados Nacionais. Tratava-se de um “conjunto de concepções desenvolvidas, na prática, por ministros, administradores e comerciantes, com objetivos não só econômicos, como também político-estratégicos. Sua aplicação variava conforme a situação do país, seus recursos e modelos do governo vigente (...) O Mercantilismo inglês foi reforçado pelo Ato de Navegação de 1651. Os mercantilistas, limitando sua análise ao âmbito da circulação de bens, aprofundaram o conhecimento de questões como a da balança comercial, das taxas comerciais e dos movimentos de dinheiro.”* Ao cabo, a concepção mercantilista conduzia, por um lado, a um intenso intervencionismo estatal e, de outra parte, a presença de uma autoridade central, tida como essencial para a expansão de mercados e a proteção de interesses comerciais.

Os principais representantes da doutrina eram: Barthélemy Laffermas e Antoine Montchretien (franceses seguidores de Colbert na época de Henrique XIV) e o italiano Antonio Serra.

Os princípios básicos do Mercantilismo eram:1. O Estado deve incrementar o bem-estar nacional, ainda que em

detrimento de seus vizinhos e colônias;2. A riqueza da economia nacional depende o aumento da população

e do aumento do volume de metais preciosos de país;3. O comércio exterior deve ser estimulado, pois é por meio de

uma balança comercial favorável que se aumenta o estoque de minerais preciosos;

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Uma breve história da economia ocidental: do mercantilismo...

4. O comércio e a indústria são mais importantes para a economia nacional do que a agricultura.

Deve-se mencionar que, descoberto em 1500, o Brasil foi colonizado dentro da visão mercantilista, atenuada, nos séculos seguintes, ao influxo do que se passava na Europa.

2. O SURGIMENTO DO LIBERALISMO CLÁSSICO

Partindo do mesmo ponto de vista dos fisiocratas, contudo, aprofundando a reflexão econômica e produzindo novas teorias, o inglês Adam Smith escreve o livro “A Riqueza das Nações” (An inquiry of the wealth of nations). Suas idéias são acolhidas por pensadores e economistas como Malthus, Jean Baptiste Say, David Ricardo e John Stuart Mill. Nasce aqui o Liberalismo Clássico, que se desenvolveu ao longo do século XVIII, estribado no Estado do laisser-faire e no livre jogo das forças do mercado. Deve-se notar que os registros históricos do Estado Liberal radicam na Revolução Francesa, com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Para se aferir a importância da aragem liberal no campo político, há que levar em conta os seguintes fatores:

a) Como doutrina, foi o substrato ideológico das revoluções anti-absolutistas que ocorreram principalmente na França e na Inglaterra nos séculos XVII e XVII, bem como da luta pela independência dos Estados Unidos;

b) Expressando os anseios de poder da burguesia, que se consolidava diante de uma aristocracia em queda, amparada no Absolutismo Monárquico, o Liberalismo propugnava por ampla liberdade individual e por uma democracia representativa com separação e independência entre os três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário;

c) O direito inalienável à propriedade;d) A livre iniciativa e a concorrência;e) O princípio do laisser-faire;f) O direito à propriedade privada.A doutrina econômica liberal constitui-se a partir do século XVIII. Mas, em meados do século XIX, em plena Revolução Industrial, os

princípios e a prática do Liberalismo, em meio à aguda crise social, começaram

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Floriano de Lima Nascimento

a ser contestados. Juntamente com a pregação socialista, surgem as doutrinas historicistas e intervencionistas. Tentando evitar a revolução social que estava nas ruas, os liberais admitem que o Estado retome, gradualmente, a postura de intervenção, para “equilibrar o jogo”, combatendo o abuso do poder econômico e empenhando-se em atenuar as injustiças sociais. Nascia aí, no findar do século XIX, o Estado neoconcorrencial ou intervencionista, que evoluiu, com o tempo, para as democracias sociais da Europa.

Observe-se que o intervencionismo é inteiramente incompossível com a onda neoliberal surgida recentemente no Ocidente, revigorada pelas teorias de economistas como Friedrich Hayeck e Milton Friedman (os dois últimos, mentores da “Escola de Chicago”). A essência dessas teorias – o que ficou sobejamente comprovado na orientação seguida pelos governos Reagan e Bush, nos EUA, e pelo de Margareth Thatcher, na Inglaterra - é, sob muitos aspectos, a retomada do Liberalismo Econômico do séc. XIX, com o Estado reduzido a uma atuação mínima, no melhor estilo do laisser-faire.

É um grande equívoco denominar-se Liberalismo um fenômeno típico do final de século XX, surgido por entre os escombros da derrocada socialista. O Neoliberalismo não tem e nunca pretendeu ter, a não ser na aparência, os fundamentos do Liberalismo Clássico que vicejou no século XX.

As grandes transformações ocorridas no mundo, no final do século XX, modificaram também as concepções políticas. O Estado Liberal entrou em crise em pleno século XIX; o Estado Socialista desmoronou; o Estado Intervencionista viu-se forçado a mudar, no entrechoque das novas idéias. Para onde caminharemos? Como será, no futuro, o relacionamento entre sociedade e Estado? Que papel terá o mercado? Viveremos em uma sociedade de mercado, ou em uma sociedade com mercado? São indagações pertinentes, que os estudiosos devem procurar responder, em um mundo marcado por instabilidades políticas e desequilíbrios econômicos de alcance global.

3. SURGIMENTO, APOGEU E CRISE DO LIBERALISMO ECONÔMICO

Cícero via na História, a par da luz dos tempos, uma testemunha fiel e auxiliar da verdade, afirmação que, decorridos muitos séculos, continua atual.

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Uma breve história da economia ocidental: do mercantilismo...

Para se entender o que tem ocorrido na economia ocidental, é preciso recuar pelo menos aos primórdios do Liberalismo Econômico, que sucedeu às práticas rudimentares do Mercantilismo, predominante na época dos grandes descobrimentos.

No início do século XVI, encabeçados por um médico chamado François Quesnay, surgiram os fisiocratas, um grupo responsável por idéias econômicas que, mesmo rudimentares, vieram a constituir as bases teóricas da economia moderna. Para eles, a terra era a base da produção econômica, pois da atividade agrícola se gerava o “produto líquido”, conceito em uso até os dias atuais. Partindo daí, um grupo de estudiosos franceses e, mais tarde, ingleses, criou os fundamentos do liberalismo clássico e da própria ciência econômica. Partindo do mesmo ponto de vista dos fisiocratas, mas aprofundando a reflexão econômica e descortinando novas teorias, o inglês Adam Smith escreveu a obra clássica “A Riqueza das Nações” (An Inquiry of the Wealth of Nations). Suas idéias influenciaram pensadores como Malthus, Jean Baptiste Say, David Ricardo e John Stuart Mill. O Liberalismo Clássico consolidou-se, desenvolveu-se ao longo do século XVIII e chegou ao apogeu no século XIX, estribado no Estado do laissez-faire e no livre jogo das forças do mercado.

As novas teorias levaram até as últimas conseqüências o dístico “laissez-faire, laissez-passer. le monde s’en va de lui même” (”Deixe fazer, deixe passar, o mundo caminha por si mesmo”). Preconizava-se a liberdade econômica absoluta, sem intervenção estatal. Esse liberalismo, tendo impulsionado a vida da Humanidade no século XVIII, entrou em declínio nas centúrias seguintes, provocando, em toda a Europa, o primeiro grande conflito entre capital e trabalho.

Mais ou menos na metade do século XIX, as práticas liberais (já agora sob a égide do Liberalismo Econômico), num contexto de aguda crise social, começaram a sofrer profunda oposição. Junto com a doutrina socialista, entraram em campo as correntes historicistas e intervencionistas. Os liberais no poder aceitaram que o Estado assumisse gradualmente a atitude de proteção, combatendo abusos econômicos e esforçando-se para reduzir injustiças sociais. Nasciam aí, por um imperativo de justiça, as políticas intervencionistas do Estado.

Grandes mudanças políticas e econômicas marcaram o orbe nas últimas décadas. Depois da crise do Liberalismo Econômico, no século XIX,

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que resultou na intervenção do Estado, ocorreu, com a queda do Muro de Berlim, o naufrágio do chamado Socialismo Real. O Neoliberalismo, que pretendeu, nos termos da chamada “Nova Ordem”, ditar as regras do jogo econômico, viu caírem por terra as suas equivocadas teorias. O que virá em seguida?

O Fisiocratismo, que constituiu as bases do pensamento econômico do Século XVIII e o Liberalismo Clássico, desenvolvendo plenamente as teses implícitas no laissez-faire, laissez-passer, cedeu lugar, no Século XIX, ao Liberalismo Econômico. Aos que não conhecem os meandros da história econômica, a mudança pode parecer irrelevante, mas, na verdade, não foi assim. Para marcar bem a diferença, pode-se afirmar que o Liberalismo Clássico plasmado a partir do século XVIII, em pleno Iluminismo, por filósofos e teóricos econômicos de grande inteligência e talento, tinha ideais generosos, em sintonia com um ideário filosófico que estava no auge. Já o que ocorreu no século XIX representou uma deturpação do ideário liberal, pois, paralelamente aos horrores da colonização, então praticada pelos países mais desenvolvidos da época, as condições de trabalho, na Europa e em outras partes do mundo, eram absolutamente desumanas. Isso, sem falar no capítulo vergonhoso da escravidão colocada em prática pelos colonizadores – uma mancha perene na História da Humanidade.

Escritores europeus filiados à tendência realista deixaram registros impressionantes do que ocorria na época. Charles Dickens, em muitos dos seus escritos, narra a precariedade das condições de trabalho, denunciando o que ocorria nas minas de carvão inglesas, nas quais crianças adoeciam e morriam, submetidas a rotinas desumanas, que estavam acima das suas forças.

No romance “Germinal”, o escritor Zola desnudou a situação miserável em que viviam os trabalhadores franceses. No século XX, chegaram às telas dos cinemas, entre outros, os filmes “1900”, do italiano Bernardo Bertolucci e “Germinal”, de Zola, levando ao público imagens impressionantes de uma época de transição na História.

O quadro geral da relação capital/trabalho naquele período era efetivamente deplorável: os trabalhadores ainda não gozavam de benefícios como jornada fixa de trabalho, salário-mínimo, previdência e outras conquistas que, no século XX, tornaram-se quase universais. As condições de trabalho eram as piores possíveis, o que provocou, em toda a Europa, rebeliões violentas, que resultaram na primeira grande crise do Liberalismo Econômico. Para evitar uma reação de conseqüências imprevisíveis, os

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dirigentes políticos e os empregadores tiveram o bom-senso de conceder aos trabalhadores direitos que hoje fazem parte dos benefícios sociais a eles reconhecidos em todas as nações desenvolvidas. Organização em sindicatos, jornada fixa de trabalho, férias, assistência médica, salário-mínimo capaz de lhes assegurar vida digna, (em contraste com a teoria da “lei de bronze”, largamente utilizada na época, pela qual o ganho deveria ser apenas suficiente para que os operários não morressem de fome) tudo isso se incorporou às conquistas trazidas pelo Estado Social, que diluiu a crise entre capital e trabalho naquele século, evitando que houvesse um confronto como o que, no Século XX, ocorreria na Rússia, onde eclodiu um dos conflitos mais violentos na história de um povo.

O século XX, como se sabe, acabaria pagando um preço amargo por suas contradições, que se manifestariam de maneira violenta em dois conflitos mundiais, sem falar na chamada “Guerra Fria”, que prejudicou profundamente o desenvolvimento da Humanidade. À luz desses fatos, que cobrem um grande período da História, é espantoso observar como as crises se repetem, mostrando que, em muitos casos, a mente humana, na ausência de novos paradigmas (ou talvez, na falta de progresso moral), reproduz as mesmas contradições do passado, discriminando e invectivando nações e grupos humanos, produzindo conflitos, dificultando o alcance da paz mundial e ensejando novas tragédias. Com a repetição das crises econômicas globais e das tensões entre países que, até recentemente, pareciam ter sepultado suas divergências, voltam a criar-se, de quando em quando, cenários de incerteza.

4. O ESTADO SOCIAL

A crise do Liberalismo Econômico no século XIX não se limitou a debates parlamentares e a discussões teóricas, mas provocou sérios confrontos entre patrões e trabalhadores, com quebradeiras, atos de sabotagem e mortes, como mostraram Charles Dickens, Zola, Thomas Mann e outros escritores em suas obras. Isso porque, enquanto a industrialização criava riqueza e fartura para os grandes senhores, ocorria o empobrecimento extremo dos trabalhadores submetidos a condições precárias de labor, transformados praticamente em “bens de produção”. Esse quadro criou uma situação social explosiva, inspirou críticas radicais ao capitalismo liberal, feitas por teóricos

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como Karl Marx, Proudon e outros. Também a Igreja Católica, até então indiferente ao problema, veio a público, por intermédio do Papa Leão XIII, que, na Encíclica Rerum Novarum, defendia a causa operária, exortando os donos do capital a lhes concederem condições dignas em suas atividades. Benefícios como moradia, previdência e assistência médica passaram a ser dispensadas à categoria. Como resultado das pressões, condições insalubres de trabalho e emprego de menores em atividades árduas como a mineração foram proibidas. Isso amainou o ímpeto revolucionário entre os trabalhadores europeus, abrindo caminho, naquele Continente para o surgimento do Estado Social ou Intervencionista, que sobrevive até hoje, nas democracias sociais européias. Na Rússia dos czares, não houve qualquer mudança no comportamento do governo e dos dirigentes, o que causou diversas revoltas e, em 1917, uma revolução que se espalhou por vários países, estabelecendo repúblicas socialistas que, algumas décadas depois, sucumbiram diante de suas próprias e insuperáveis contradições – as mesmas contidas na ideologia neoliberal. O resultado, como não poderia deixar de ser, foi uma nova crise no Século XX, agora dos mercados, que, completamente descontrolados e entregues à irresponsabilidade de aventureiros insensíveis às exigências sociais, transformaram a economia mundial em um cassino global, no qual a esperteza e a ganância triunfaram sobre a boa-fé e a moderação.

A derrocada da União Soviética, levando de roldão a “Cortina de Ferro” e o Muro de Berlim foi um dos momentos mais importantes na História Humana, pois colocou termo à sinistra ideologia das ditaduras coletivas. Infelizmente, ao fim da opressão exercida pelas ditaduras proletárias, não se seguiram práticas políticas e econômicas inteligentes e generosas, capazes de recuperar valores genuínos, como a justiça, o desenvolvimento econômico e a convivência pacifica entre os povos. Arquitetado por políticos e economistas imbuídos das idéias de Ludwig von Mises, Gustav Hayek e Milton Friedman e efetivado sob os auspícios dos governos de Ronald Reagan (EUA) e Margareth Thatcher (Reino Unido) o Neoliberalismo emergente colocou em prática políticas previstas no “Consenso de Washington” entre as quais a redução drástica da presença do Estado na economia, o abandono das políticas sociais, o fim da estabilidade no emprego e da aposentadoria por tempo de serviço na iniciativa privada, além da privatização pouco criteriosa de empresas estatais. Algum tempo depois, Stanley Fisher, então homem

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forte do FMI, afirmou que as políticas então praticadas foram responsáveis pelo aumento da pobreza no mundo, atestando a falência neoliberal.

4.1. O “new deal” e o intervencionismo varguista O chamado “Estado Social” marcou a trajetória de vários países na

primeira metade do século XX. Nos Estados Unidos, a crise da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, a qual se seguiu um enorme desastre econômico (Grande Depressão) levou o presidente Franklin Delano Roosevelt, entre os anos de 1933 e 1945, a tomar iniciativas corajosas para recuperar a economia e o estilo de vida americano. O Jornal do Brasil de 12 de abril de 1945, ao noticiar a morte do estadista, destacou a importância das políticas colocadas em prática por ele: “Quando assumiu o Governo, os Estados Unidos estavam mergulhados no 4º ano da Grande Depressão, cuja a partida foi dada pelo crack da Bolsa de Nova York, em 1929. Para tirar o país da crise, Roosevelt criou o New Deal, uma série de programas destinados a recuperar a economia e gerar empregos. Com o sucesso do projeto, em 1935, os Estados Unidos já mostravam sinais de recuperação e Roosevelt caía nas graças do povo, sendo reeleito em 1936, 1940 e 1944.”

No Brasil, depois da Revolução de 30, o governo do Presidente Getúlio Vargas implementou a política de intervenção do Estado na economia, que alcançou resultados expressivos, mudando a face agrícola e industrial do país e criando condições para o desenvolvimentismo dos anos “JK”, quando o presidente Juscelino Kubitschek colocou em prática a tentativa de fazer o Brasil crescer “50 anos em 5”. Outros países buscaram o mesmo caminho, merecendo destaque as políticas implementadas na Índia, sob a liderança de Gandhi e Nehru. De então até os nossos dias, o papel do Estado como impulsionador da economia, com ênfase maior ou menor, sempre fez parte dos planos de governo, como tem acontecido no Brasil.

4.2. O Fim do “Wellfare State”?Cabe ainda assinalar, a respeito do Estado Social, também chamado

de “wellfare state”, que se trata de um sistema sócio-político-econômico baseado na livre-empresa, admitindo, mão obstante, grande participação do Estado na promoção de benefícios sociais, com o objetivo de proporcionar aos cidadãos, como um todo, padrões de vida equilibrados, produzir bens

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e serviço sociais, equilibrar a economia e ajustar a produção. Não se trata de economia estatizada; as empresas privadas responsabilizam-se pelo incremento e realização da produção, cabendo ao Estado aplicar políticas fiscais, visando possibilitar a execução de programas de moradia, saúde, educação, previdência social, seguro desemprego, e ainda garantir uma política de pleno emprego. Corresponde às diretrizes estatais aplicadas nos países desenvolvidos por governos social-democratas. Nos Estados Unidos da América a implementação das políticas do bem-estar desenvolveram-se particularmente durante a vigência do “New Deal”. Do ponto de vista teórico o “wellfare state” foi sempre apoiado por intelectuais e políticos como Bismark, A. C. Pigou, John strachey e Gunnar Myrdal, para quem, embora seja ainda um objetivo futuro, o Estado Social virá a ser uma sociedade “onde se torne possível a realização dos princípios de fraternidade, liberdade e igualdade, prometidos pela revolução francesa...” No futuro, corresponderá ao reino da felicidade com o qual tanto sonharam. Por isso mesmo, causam-nos perplexidade notícias publicadas na imprensa, no final do ano de 2010, segundo as quais crescem, na Europa, a crença de que não há mais como manter em funcionamento o “wellfare state”, a concepção mais avançada a que já se chegou, nos campos políticos e sociais. Preferimos acreditar que não se deve mais tolerar a mediocridade de políticos, intelectuais e tecnocratas que, no cipoal confuso da História, ainda não conseguiram visualizar, com clarividência, o caminho da dignificação e da libertação humanas.

5. A AURORA DO DESENVOLVIMENTISMO

Quando terminou a Segunda Guerra Mundial, o cenário, nos países devastados pelo conflito armado, era de morte e desolação. Em Berlim e em outras cidades da Europa, as ruínas e os cadáveres estavam por toda a parte. O Japão, depois das bombas arremessadas sobre Hiroshima e Nagazaki, era uma sombra de si mesmo. Chegava ao fim uma era de terror na história dos povos (ainda não sabíamos que outros horrores estavam por vir, pondo termo à ingênua crença de que a Humanidade, tendo enfrentado provações, não mais se enveredaria pelo mesmo caminho). De qualquer modo, os Estados ocidentais vencedores, imbuídos de espírito de generosidade (para muitos, puro interesse, mas passaremos ao largo dessa discussão), deram aos vencidos a oportunidade de reconstruir dignamente seus países e suas vidas.

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Interventor no Japão, o General Douglas McArthur liderou o esforço de reconstrução, merecendo por isso, até hoje, o respeito daquele povo. Para a Europa, foi concebido o Plano Marshall, que permitiu ao Continente, em poucas décadas, recuperar-se dos prejuízos materiais provocados pela guerra. Os danos morais e espirituais deixaram seqüelas que se prolongam até os nossos dias, como o ateísmo (principalmente por parte dos jovens), mas isso é outra história.

Preocupada com o que se passava nos países da Ásia e da América latina, a ONU, criada pelos países vencedores, colocou em funcionamento a Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), com a missão de assessorar os países pobres no esforço para romper as barreiras do subdesenvolvimento. Datam daí os estudos sobre a questão do desenvolvimento econômico que subsidiaram os esforços de países europeus (exceção feita aos países situados na parte Leste do Continente, porque o ditador Stálin os proibiu de receberem qualquer ajuda). A Europa, pouco a pouco, conseguiu recuperar-se e, mesmo em outros continentes, países como Brasil, Argentina, Índia e México fizeram esforços desenvolvimentistas que produziram razoáveis resultados.

O Brasil, na verdade, havia-se antecipado nessa corrida, pois o processo de intervenção do Estado no domínio econômico, somado à estruturação política do Estado brasileiro, promovido por Getúlio Vargas, marcou a entrada do país no mundo moderno. Juscelino Kubitscheck, com o Plano de Metas, dentro de um novo enfoque, soube tirar proveito do protecionismo e da implantação das indústrias de base do período anterior e priorizar a modernização econômica do Brasil. Essas circunstâncias favoreceram a introdução e o desenvolvimento no Brasil do Direito Econômico, disciplina que tem como objeto a regulamentação da atividade exercida pelos mercados. No Brasil, o pioneirismo na adoção da disciplina coube ao Professor Washington Peluso Albino de Souza, que a introduziu no currículo da Faculdade de Direito da UFMG, em Belo Horizonte, em 1972.

6. O NEOLIBERALISMO

Depois do Mercantilismo, do Fisiocratismo, do Liberalismo Econômico, do Estado social e do Socialismo, surgiu, na segunda metade do século XIX, um movimento denominado Neoliberalismo, cuja orientação

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básica era a retomada do liberalismo econômico puro do século XIX, destituído das concessões que humanizaram aquela doutrina, evitando que se estabelecesse o caos em toda a Europa. Reside nesse ponto, segundo entendemos, a fragilidade de uma opção a que faltaram a inteligência e o amplo descortino de teóricos como Quesnay, Adam Smith e outros.

Pretenderam os ideólogos neoliberais inculcar, nos menos atentos, que o Neoliberalismo seria a retomada do Liberalismo Clássico, mas, na verdade, o que se estava recolocando em cena eram os valores e a ideologia do impiedoso Liberalismo Econômico que havia deturpado a doutrina desenvolvida no século XVIII. O pano de fundo do novo estágio da economia era o fenômeno que recebeu o nome de Globalização: a idéia de fundo era transformar o planeta em um grande mercado, no qual as empresas e as mercadorias se movimentariam livremente, com um mínimo de encargos possíveis. Teve início aí, sem dúvida, a intensificação da dominação da natureza, que significa explorá-la desapiedadamente, o que levou a problemas como a escassez de água em muitas regiões do Globo e ao surgimento do efeito estufa, que ameaça a normalidade climática do Planeta.

Diferentes da visão social, estribada em sólido conhecimento, que dera origem ao laisser-faire, os propósitos neoliberais começaram a tomar forma com a tentativa de se colocar um freio no que se afigurava aos seus seguidores uma socialização crescente da Inglaterra, depois da chegada dos trabalhistas ao poder, após o término da Segunda Guerra Mundial.

A partir de então, empenharam-se em expungir do Liberalismo a sua face social, incorporada a partir da crise européia, afastando ao mesmo tempo qualquer veleidade de intervenção do Estado na economia, como defendiam Ludwig von Mises e Gustav Hayeck, da Escola de Viena, e o norte-americano Milton Friedman (que se tornaria famoso, mais tarde, como mentor da Escola de Chicago) entre outros.

Desenvolvido durante os governos de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e de Margareth Thatcher, na Inglaterra (e introduzido no Brasil pelo governo Collor), esse pensamento chegou ao ponto mais alto com a derrocada do Socialismo Real na ex-União Soviética e nos países do Leste Europeu. Entre as diretrizes baixadas pelo movimento neoliberal, no bojo da “Nova Ordem” e da globalização, podem ser mencionadas as que preconizam o Estado mínimo, a abolição de qualquer regulamentação da

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atividade econômica, a redução drástica de políticas sociais, a privatização de empresas estatais, a não-intervenção do Estado na economia e outros itens alinhavados dentro do chamado Consenso de Washington.

Apoiada em fundamentos frágeis, como o poder ilimitado do mercado e a completa abstenção do Estado no tocante à vida econômica, a prática se mostrou inadequada, com o poder público sendo obrigado, nos últimos tempos, a intervir para corrigir os efeitos nefastos de uma crise econômica que só encontra parâmetro no desastre de 1929. Há menos de um ano, assistimos ao desastre econômico nas bolsas de valores de Wall Street e de outros países do mundo desenvolvido, que levou empresários dos países atingidos a buscarem ajuda dos governos locais, para não naufragarem na crise. É interessante notar que essas mesmas pessoas exigiam, há poucos anos, apoiadas no decálogo do “Consenso de Washington”, que o Estado se afastasse inteiramente da economia. Será que aprenderam a lição da História?

6.1. O neoliberalismo de regulaçãoNo artigo “O Neoliberalismo de regulação como intervenção do

Estado – a regulação e a constituição brasileira de 1988”, o presidente da Fundação Brasileira de Direito Econômico e professor de Direito Econômico nas Faculdades de Direito na UFMG e da Pontifícia Universidade Católica – Giovani Clark notou que, “nas três últimas décadas do século XX, e no início do século XXI, diversos estudiosos e políticos pregavam a saída dos Estados do domínio econômico e social como solução para debelar as crises cíclicas das economias de mercado, minimizar o flagelo social contemporâneo e liquidar os déficits orçamentários dos estados sociais, consolidados ou não”. Tanto os Estados Unidos como a Inglaterra puseram em prática políticas econômicas voltadas para esse fim, disseminadas, mais tarde, para outros Estados nacionais. Acrescenta o autor que, ao encontrar ambiente mundial e expectativa disponível dos capitais, a retração estatal da vida econômica fortaleceu-se até se consolidar como regulação, ou neoliberalismo de regulação, logicamente no intuito de se diferenciar do neoliberalismo anterior, chamado de regulamentação, acrescenta o autor, “usa-se aquela nomenclatura (regulação), inclusive porque a forma de atuação dos poderes públicos é distinta”.

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7. SURGIMENTO, APOGEU E CRISE DO NEOLIBERALISMO NO BRASIL

O Brasil está entre os países que, desde as primeiras décadas do século XX (mais especificamente a partir dos anos 30), realizou um esforço continuo e sistemático para alcançar o desenvolvimento econômico, por meio da intervenção do Estado nesse domínio. É importante notar que a iniciativa antecedeu até mesmo o New Deal do presidente Roosevelt, nos Estados Unidos, conforme ele mesmo reconheceu, e as ações de vários países, assessorados pela Cepal (Comissão Econômica para a América latina e o Caribe), criada pela ONU no pós-guerra. Entre 1930 e 1954, em dois períodos governamentais descontínuos, o governo Getúlio, a despeito de ações polêmicas, entre elas a decretação da ditadura do Estado Novo, não apenas organizou o Estado Brasileiro, como criou a infra-estrutura industrial que permitiria períodos de desenvolvimento e crescimento nas décadas seguintes.

Do ponto de vista econômico, a economia do Brasil evoluiu, entre 1930 e 1954 (época marcada pela organização política, pela modernização agrícola, pela implantação das indústrias de base dos dois governos de Getúlio Vargas, permeados pelo governo Dutra) do estágio agro-pastoril para o industrial. A partir daí, foi possível ao governo de Juscelino Kubitscheck realizar uma administração marcada pelo desenvolvimentismo, com a proposta de crescer 50 anos em 5. As conquistas então obtidas tornaram possível, poucos anos depois, a ênfase dada ao crescimento econômico durante os governos militares, quando a economia brasileira, expandindo-se com velocidade maior que a do Japão, conquistou o 8º lugar do mundo, apesar da crise social.

Sob a égide da Constituição de 1988, que havia entrado em vigor durante o governo de José Sarney, marcando a redemocratização do país, o Brasil foi colhido pela vaga neoliberal que invadiu o Ocidente, com a ascensão dos governos Reagan, nos EUA, e Margareth Thatcher na Inglaterra.

Mais ou menos nessa época, uma emissora brasileira de televisão exibiu um documentário em que, ao presidir uma reunião ministerial, a Dama de Ferro abriu um livro escrito pelo teórico neoliberal Friedrich Hayeck e disse aos presentes: “Quero adotar em meu governo o que está escrito aqui”. No Brasil, chegava ao poder o governo Collor de Mello. Em sua primeira viagem ao exterior, ele se encontrou, em Washington, EUA,

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com líderes políticos e autoridades monetárias e, em Londres, Inglaterra, fez questão de posar ao lado da primeira ministra inglesa. O Neoliberalismo chegava ao Brasil, mas, devido à crise que estremeceu Brasília, foi posto em quarentena. Findo o governo de Itamar Franco, que completou o mandato do presidente afastado, o modelo foi aqui adotado, dentro das diretrizes emanadas do Consenso de Washington, acolhidas, em muitos pontos, pelo governo seguinte.

Foi uma era marcada pela não intervenção do Estado na economia, seguida pela privatização da maior parte das empresas estatais, o que impediu avanços econômicos e conquistas sociais no Brasil.

8. O ESTADO NEOSSOCIAL

Como parte das comemorações realizadas no Brasil pelo transcurso dos 20 anos da Constituição de 1988, realizou-se no Rio Grande do Norte, congresso internacional dedicado ao cinqüentenário da publicação do livro “Do Estado Liberal ao Estado Social”, de autoria do constitucionalista Paulo Bonavides, professor emérito da Universidade Federal do Ceará, doutor honoris causa na Universidade de Lisboa, presidente emérito do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional e autor, entre outras obras, da “História Constitucional do Brasil”. “O que poderia parecer ato póstumo de liturgia política para deplorar uma forma de Estado quase desaparecida, depois de legar à democracia constitucional os direitos da segunda geração (a saber, os direitos sociais) veio a ser, no seu significado mais alto, a festa de uma ressurreição”, observou o estudioso.

Comentou ainda o jurista que, tendo assistido à derrocada das Bolsas de Valores e às intervenções bilionárias dos Estados Unidos para impedir o caos em sua economia, “o mundo vê desfazer-se em frangalhos a ilusão neoliberal que decretara o fim das ideologias, em um cenário em que todos os sistemas econômicos e financeiros jazem sob a égide da globalização.”

Com o seu amplo descortino, estribado em sólida cultura jurídica e filosófica, o mestre vê renascer, “numa alvorada de esperanças”, o Estado Social, que o Neoliberalismo supunha morto e sepultado no sarcófago da História. Por outro lado, atento ao risco potencial de se radicalizarem posições teóricas e pragmáticas, alerta para o perigo de um erro histórico que gerou o neoliberalismo do Estado mínimo vir, com a maré intervencionista atual, a

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“gerar também o Estado máximo, tão aparentado aos modelos autocráticos do passado”. Admirável lição de sabedoria de um mestre de gerações que, aos 83 anos de idade, continua a pensar, a ensinar e a escrever, com a lucidez de um intelectual plenamente sintonizado com as ideias do seu tempo! Por isso mesmo ele esposa a idéia de que o único regime vazado na legitimidade dos valores representados pelos direitos fundamentais, junto às novas dimensões em que a democracia e a paz surgem como direitos no pensamento jurídico contemporâneo, é o Estado Social.

Manifesta, mais adiante, de maneira enfática, a sua crença de que “o porvir da humanidade no mundo convulsivo de nossos dias há de pertencer a uma sociedade de inspiração emancipadora, volvida para concretizar valores postergados da justiça, da liberdade, da democracia, da fraternidade”.

Diferente da primeira globalização, selvagem, que menosprezou o Estado, a segunda, civilizada, deverá orientar o Estado Neossocial “que caminha para o futuro e, não, para o passado”, pontifica, em tom profético, o jurista brasileiro.

A derrocada do socialismo coletivista no século XX e o desastre do Neoliberalismo, neste início do século XXI, devem merecer, por parte dos políticos e dos intelectuais, uma análise serena, para que se possam erigir as bases de uma era marcada pela racionalidade e pelo humanismo, recuperando-se valores acumulados em dois mil anos de evolução.

9. REFERÊNCIAS

NASCIMENTO, Floriano de Lima. O Desafio do Desenvolvimento Econômico. Revista da Fundação Brasileira de Direito Econômico. 2008/2009.

SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6ª Edição. São Paulo: Malheiros, 1999, 871p.

Tópicos do Curso de Direito Econômico ministrado pelo autor na Faculdade de Direito Milton Campos nas duas últimas décadas do Século XX.

Notas do Curso de Direito Econômico frequentado na Faculdade de Direito da UFMG (Graduação e Pós-graduação).

Smith, Adam e Ricardo. Coleção “Os Pensadores”. Abril Cultural. 1978.

Dicionário de Economia. Abril Cultural. Consultor: Paulo Sandroni.

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CLARK, Giovani. O Neoliberalismo de regulação como intervenção do Estado - A regulação e a Constituição Brasileira de 1988. In Lusíada. Economia & Empresa. Universidade Lusíada. Lisboa.

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988GIOVANI CLARK

1. INTRODUÇÃO

Nas três últimas décadas do século XX e no início do século XXI diversos estudiosos e políticos pregaram a saída dos Estados do domínio econômico e social como solução para debelar as crises cíclicas das economias de mercado, minimizar o flagelo social contemporâneo e liquidar os déficits orçamentários dos Estados sociais consolidados ou não. Nesse sentido, políticas econômicas foram postas em prática, iniciando-se nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas disseminadas posteriormente por outros Estados nacionais.

Em ambiente mundial propício e conforme os anseios do capital, a badalada “retração” estatal da vida econômica ganhou força no mundo e obteve algumas denominações, até “consolidar-se” como regulação, ou neoliberalismo de regulação. Logicamente, no intuito de diferenciar do neoliberalismo anterior, chamado de regulamentação, usa-se aquela nomenclatura (regulação), inclusive porque a forma de atuação dos poderes públicos é distinta.

Porém, a realidade desses nossos tempos nós apresenta outra, ou seja, a presença do Estado na vida econômica (mão visível) continua intensa em inúmeras esferas, seja através de incentivos à agricultura, na política estatal de crédito e de câmbio ou nos reajustes de tarifas pelas agências de regulação. Também existem atitudes estatais, inclusive cobradas pelos ardorosos defensores da regulação, em casos de abusos do poder

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Giovani Clark

econômico, promovido pelos cartéis; ou na execução de obras de infra-estrutura em setores vitais, a fim de alcançar o crescimento modernizante ou o desenvolvimento sustentável.

Não restam dúvidas, porém, que, na ordem de valores actualmente aceite no espaço cultural ocidental europeu, a intervenção do Estado na sociedade se afirma como um dado palpável e adquirido. Efectivamente, o retorno a uma absoluta não intervenção do Estado no social e, especificamente, no econômico (<<regresso a Adam Smith>>), inspirado nas teses neo-liberais dos economistas de Chicago, como o conhecido Milton Freidman, não corresponde em parte alguma a uma realidade. (...) É que a opção que hoje se apresenta aos cidadãos (eleitores) não aparece em termos dilemáticos absolutos (intervenção ou absoluta não intervenção), mas em termos gradualísticos (maior ou menor intervenção) (VAZ, 1998, p. 63).

A realidade fática do século XXI é bem distinta da propaganda pelos teóricos da regulação, inclusive quanto aos seus efeitos, perversos nos Estados em desenvolvimento e nas populações pobres, visto que os poderes públicos não saíram de cena da vida socioeconômica, alias, pelo contrário, apenas apresentaram uma técnica diferenciada de ação.

Encarnando a face contemporânea do neoliberalismo e seguindo a batuta do capital, sobretudo do financeiro, realizamos, no Brasil, significativas mudanças em nossa Carta Política de 1988, como também fizeram os portugueses na Constituição de 1976, bem como outras Nações, implantando comandos constitucionais viabilizadores da regulação.

Obviamente a nossa legislação infraconstitucional foi modificada freneticamente, a fim de moldar-se a nova forma de atuação estatal, determinada pela Lei n.º 8.987 de 13/02/1995 (Dispõe sobre a Concessão e Permissão de Serviços Públicos), Lei n.º 9.472 de 16/07/1997 (cria a Agência Nacional de Telecomunicação – Anatel), Lei Complementar nº 101 de 04/05/2000 (Fixa Normas de Finanças Públicas voltadas para a Responsabilidade na Gestão Fiscal), Lei n.º 11.079 de 30/12/2004 (Normas Gerais de Parceria Publica-Privada), etc.

2. A REGULAÇÃO ENQUANTO TÉCNICA DE INTERVENÇÃO

A mitológica da retirada estatal da vida econômica e social, ou seja, o retorno do “paraíso perdido” do laissez faire de Adam Smith na

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contemporaneidade, teve como principal base teórica às idéias da Escola americana de Chicago, liderada por Milton Friedman. Aquelas fincaram os alicerces do neoliberalismo de regulação.

Sobre as premissas de uma mínima ação do Estado na realidade socioeconômico foi construído o Consenso de Washington em 1990, norteador das políticas econômicas voltadas a tais fins, denominadas reguladoras, que se baseava na suposta eficiência da iniciativa privada no mercado e na pseudo incompetência gerencial do Estado social na economia. A bandeira da ilusão era menos Estado e mais mercado.

Para tanto, deveria criar-se um Estado mínimo com restritas funções no âmbito da prestação dos serviços públicos e das atividades econômicas, deixando as forças do mercado regê-lo, digo, os poderes econômicos privados impondo as normas para o processo produtivo e social. Em síntese, substituir, ao máximo, o Estado pelo setor privado.

A implantação do neoliberalismo de regulação pelo mundo contou com alterações dos textos constitucionais, privatizações e desestatizações das empresas estatais, redução de direitos sociais, facilitações para a movimentação de capitais, criação de agências reguladora, reestruturação do comércio internacional, etc.

Na realidade a chamada saída do Estado do domínio econômico e social como se propagou na mídia, jamais aconteceu, e não era o objetivo da regulação. Essa nada mais é do que uma técnica de intervenção estatal na vida socioeconômica com as mutações ditadas pelo capitalismo contemporâneo.

Estas transformações têm vindo a atravessar todo o sistema mundial, ainda que com intensidade desigual consoante a posição dos países no sistema mundial. As implicações destas transformações para as políticas económicas nacionais podem ser resumidas nas seguintes orientações ou exigências: as economias nacionais devem abrir-se ao mercado mundial e os preços locais devem tendencialmente adequar-se aos preços internacionais; deve ser dada prioridade à economia de exportação; as políticas monetárias e fiscais devem ser orientadas para a redução da inflação e da divida pública e para a vigilância sobre a balança de pagamentos; os direitos de propriedade privada devem ser claros e invioláveis; o sector empresarial do Estado deve ser privatizado; a tomada de decisão privada, apoiada por preços estáveis, deve ditar os padrões nacionais de especialização, a mobilidade dos recursos, dos investimentos e dos lucros; a regulação estatal da economia deve

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ser mínima; deve reduzir-se o peso das políticas sociais no orçamento do Estado, reduzindo o montante das transferências sociais, eliminando a sua universalidade, e transformando-as em meras medidas compensatórias em relação aos estratos sociais inequivocamente vulnerabilizados pela actuação do mercado (SANTOS, 2002, p. 35).

Os Estados nacionais foram criados para possibilitar o desenvolvimento do mercado e o fortalecimento do capital. Aqueles sempre agiram na vida socioeconômica, seja no mercantilismo do século XVIII, no neoliberalismo de regulamentação do século XX, e até mesmo no liberalismo do século XIX (AGUILLAR, 2006).

Dentro da própria ideologia liberal, outrossim, partindo do pressuposto da escassez dos bens e da configuração da propriedade como justa recompensa aos laboriosos, o Estado se colocava como o principal garante da situação dos poucos beneficiados contra a inveja dos muitos que nada tinham, para utilizar a expressão de Adam Stmith (CAMARGO, 2007, p.33).

Diverso do senso comum, no liberalismo os Estados agiam na vida econômica, seja limitando a importação de certos produtos em nome da proteção da indústria nacional, seja fragilizando as corporações de oficial em prol do mercado trabalho. Por sinal, um dos pais do liberalismo, Adam Smith, em sua obra “A Riqueza das Nações”, admite a ação estatal no curso natural da economia (oferta e procura), sobretudo para alimentar os trabalhadores e fornecer carvão para as maquinas (COELHO, 2007). Outrossim, em caso de desinteresse, omissão e incapacidade do setor privado, os liberais admitiam a intervenção estatal na economia.

Reforçando o pensamento anterior, bem lembra o autor lusitano Boaventura Santos da criação das instituições públicas no Estado de Direito e de sua legislação econômica e social a fim de implementar o liberalismo. E arremata o citado jurista português: “Isto significa que as políticas do laissez faire foram aplicadas, em grande medida, através duma activa intervenção estatal. Por outras palavras, o Estado teve de intervir para não intervir” (SANTOS, 2005, p. 119).

Assim sendo, não passa de uma ilusão a completa omissão do Estado (mão invisível) na vida econômica e social. Estudos sobre as políticas econômicas estatais através dos tempos comprovam o contrário (HUBEMAN, 1986). Sempre existiu uma densa participação dos órgãos públicos em diversos setores, inclusive no atual neoliberalismo de regulação, porém,

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em moldes diferenciados, como por exemplo, na regulamentação, onde o Estado se fazia presente através das empresas estatais, o chamado Estado empresário (intervenção direta), e das normas legais (intervenção indireta), incluindo as de planejamento.

O neoliberalismo, novo pacto, foi uma solução para a crise do liberalismo enfrentada a partir das 03 primeiras décadas do século XX. A nova técnica de ação regulamentadora do Estado no domínio socioeconômico teve como marcos históricos o New Deal americano e as ações estatais durante e após as guerras mundiais.

Aquele é um velho conhecido, não nasceu no final do século passado, como querem transparecer alguns, e um dos seus grandes teóricos foi John Maynard Keynes, defensor da planejada ação estatal na vida econômica. Portanto, o neoliberalismo possui duas fases distintas, o da regulamentação transcorrido em boa parte do século XX e o de regulação dos dias atuais.

No neoliberalismo de regulação possuímos as agências de regulação (intervenção intermediaria), estabelecendo normas jurídicas produzidas simultaneamente aos comandos estabelecidos pelos Estados comunitários (União Européia), entes internacionais (Organização Mundial do Comércio, Fundo Monetário Internacional) e empresas transnacionais. Paralelamente, os poderes públicos também agem por intermédio da legislação advinda dos Poderes Legislativo e Executivo, fixando impostos, derrubando barreiras comerciais, estabelecendo investimentos, etc.

3. A ESCOLA DA ANÁLISE ECONÔMICA DO DIREITO

As teorias sobre a regulação foram abraçadas e construídas pela Escola da Análise Econômica do Direito (AED). Esta possui como premissas as idéias da Escola de Chicago e os questionamentos de seus estudiosos sobre os altos custos da intervenção estatal na vida socioeconômica e de sua eficiência na promoção do bem estar social.

No pensamento da dita Escola, o Direito não deve moldar imaginariamente a vida econômica, mas sim os fatos e atos econômicos devem fixar os comandos normativos para aquela. Nesse caso, o vetor prevalente é o desenvolvimento eficiente da economia pelo seu curso “natural” ditado pelo mercado (oferta e procura), cabendo ao Direito moldar-se à necessidade daquele.

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Em síntese, é a adoção das teses jurídico-econômicas ultraliberais de Richard Posner, dentre outros, do Estado mínimo e da regulação econômica e social. Preleciona a Prof. Guiomar T. Estrella Faria, em sua obra “Interpretação Econômica do Direito”, a respeito de uma das linhas de raciocínio teórico da Escola da Análise Econômica do Direito, partindo da obra Roscoe Pound:

Ao longo das trinta páginas de seu artigo, como já foi analisado acima, a maior preocupação do renomado jurista americano foi demonstrar a não interferência das condições econômicas das partes e dos julgadores no caráter e no sentido das decisões dos casos concretos no sistema do common-law. Esse ângulo de observação da teoria estudada torna evidente ter o comentarista considerado a Interpretação Econômica do Direito como uma maneira de, criando a norma concreta para o caso, atender a fatores econômicos, ou seja (como já assinalamos na Introdução deste trabalho), ao deduzir a norma para o caso, atender a fatores metajurídicos, pertencentes ao universo econômico, vale dizer, a análise do caso, pelo juiz, sob um enfoque econômico (FARIA, 1994, p. 28-29).

A Escola da Análise Econômica do Direito, apesar de suas variações doutrinárias (FLORES FILHO, 2006), fundamenta teoricamente no âmbito do Direito as teses do Consenso de Washington de 1990, digo, a regulação. E em regra, ela resultou somente efeitos positivos aos donos do dinheiro e aos Estados desenvolvidos.

É importante ressaltar que as Emendas Constitucionais, à Carta Magna Brasileira de 1988, voltadas para a inserção do neoliberalismo de regulação, em meados dos anos 90, foram escoradas, logicamente, nas argumentações jurídicas da Escola da Análise Econômica do Direito.

4. A REGULAÇÃO NO BRASIL

Apesar de algumas tentativas anteriores, como a criação do programa nacional de desestatização (Lei n. 8.031 de 12/04/1990), a implantação da regulação no Brasil efetivou-se na prática com o “Plano Real”, datado de 1994, que objetivava a priori combater as pressões inflacionárias. Como escreve Batista Jr. (2005), no referido “Plano” abriu-se de forma indiscriminada, as portas para a entrada dos produtos importados, estabeleceu a paridade cambial entre o dólar e o real, facilitou a entrada de capital estrangeiro, entre outras medidas.

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Tivemos a queda da inflação, mas paralelamente conquistamos a redução do tamanho da indústria nacional, sobretudo das pequenas; aceleramos o desemprego estrutural; aumentamos o déficit da balança comercial e aprofundamos a nossa dependência econômica. Era a chegada do neoliberalismo de regulação, antes mesmo de qualquer alteração na Carta Política de 1988.

No Brasil, o processo de imposição da ordem neoliberal foi mais complexo e tardio. As lutas sociais, desde o final dos anos 1970, estavam na base da derrubada da ditadura militar e da construção de instrumentos políticos e organizativos – o PT em 1980, a CUT em 1983, o MST em 1984 – que buscavam a transformação social do ponto de vista democrático e popular. Assim, o que foi implantado em vários países da América do Sul, nos anos 1980, versões do neoliberalismo na periferia, no Brasil foi interditado, em grande medida, até o inicio dos anos 1990. Mesmo a vitória de Collor, em 1989, não significou a imposição do conjunto do ditador neoliberal. O neoliberalismo instalar-se-á no Brasil, com todas as suas conseqüências, em 1994 (PAULA, 2005, p. 32).

Não tardaram muito as alterações na Constituição brasileira atual, por intermédio das emendas, a partir de 1995, a fim de enraizar a implantação da regulação. Todavia, contrariou a ideologia constitucional adotada (SOUZA, 2005) em nossa Carta Magna, “liquidando” o nacionalismo existente, em virtude do término da distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira de capital nacional (Emenda Constitucional n.º 06 de 15/08/1995); do fim da restrição de exploração da pesquisa e lavra de recursos minerais e o aproveitamento de potenciais hidráulicos, mediante autorização ou concessão pela União, a brasileiros ou a empresa brasileira de capital nacional (Emenda Constitucional n.º 06 de 15/08/1995).

E ainda, dentre outras alterações, quebrou-se o monopólio da empresa estatal - Petrobrás - sobre o petróleo (Emenda Constitucional n.º 09 de 10/11/1995); retirou-se a exigência da predominância dos armadores nacionais e navios de bandeira e registros brasileiros no transporte de cargo no país (Emenda Constitucional n.º 07 de 15/08/1995); e em anos mais recentes, exterminamos a fixação dos juros reais de 12 % ao ano (Emenda Constitucional n.º 40 de 29/05/2003).

Em síntese, as citadas emendas, assim como outras, realizaram uma parcial desconstrução (SCAFF, 2004) da Constituição Econômica original,

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chocando-se com os fundamentos, fins e princípios da mesma (art. 170 da CR126), revogando seus limites implícitos (CLARK, 2001) e impossibilitando a eficácia da Carta Política brasileira de 1988, sobretudo no tocante à execução dos comandos destinados à mutação de nossa realidade socioeconômica perversa, injusta e autoritária.

Também as privatizações e a desestatização de serviços públicos e atividades econômicas geridas pelo Estado, em regime de monopólio ou de concorrência, foram colocadas em prática. As empresas estatais detentoras daqueles serviços e atividades foram transferidas ao capital privado, internacional, em regra, por preços vis e pagas em moedas podres (parcialmente), sem qualquer preocupação com os ditames da Constituição Econômica brasileira.

No fim do século XX e no início do século XXI, as políticas neoliberais de regulamentação passaram a restringir a expansão e a mobilidade do capital. O novo ambiente mundial de fim da guerra fria, queda do socialismo real e de alta evolução tecnológica resulta em pressões por outras políticas econômicas ao gosto dos donos do capital. Os Estados nacionais passam a executar o neoliberalismo de regulação, transferindo serviços e atividades à iniciativa privada (via privatização e desestatização) agora, atraentes ao capital, em face dos avanços científicos e da “redução” dos ganhos com a indústria bélica da guerra fria. Á tecnologia tornou lucrativos setores que anteriormente tinham baixa lucratividade, ou não tinham, e estavam nas mãos do Estado (CLARK, 2006, p. 241).

As vergonhosas privatizações nacionais, por exemplo, sempre maculadas por suspeitas, desrespeitaram o mandamento constitucional de soberania econômica (art. 170, I da Constituição da República) “transferindo” as riquezas nacionais ao capital estrangeiro, inviabilizando assim a nossa autodeterminação sobre aquelas (preços, exploração, preservação), enfraquecendo a posição brasileira nas trocas internacionais, porque não temos mais o controle exploratório dos nossos principais produtos de exportação (recursos naturais). Diferentemente, as nações desenvolvidas continuam com os segredos dos cadeados das caixas pretas de suas tecnologias, principal produto de exportação daqueles países.

126 CR signifi ca Consti tuição da República Federati va do Brasil de 1988. CR significa Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

A defesa do consumidor (Art. 170, V da CR) também foi deixada de lado, dentre outros comandos constitucionais. Diante dos diversos oligopólios privados, dos antigos serviços estatais, os consumidores possuem seus direitos aviltados, seja pela duvidosa qualidade dos serviços prestados, ou seja, pelas escorchantes tarifas cobradas pelos mesmos. Logicamente, tudo com o beneplácito das agências reguladoras que deveriam coibir quaisquer abusos.

As políticas econômicas regulatórias não se limitaram a transferir cobiçadas atividades e serviços estatais, via privatização e desestatização, para a iniciativa privada, criou ainda “novos mercados” para ela, dilatando os seus lucros. Os setores que continuaram nas mãos dos poderes públicos, digo, não sofreram claras ações de privatização, exemplificando, no caso brasileiro, as áreas de educação, saúde, previdência social e segurança pública, tiveram seus serviços sucateados e desprovidos dos investimentos governamentais, ampliando, ainda mais, os mercados para os donos do dinheiro.

Portanto, o Estado Democrático de Direito, com suas políticas econômicas de regulação, não só transferiu diretamente seus serviços e atividades econômicas ao setor privado, mas, também, age concomitantemente precarizando e reduzindo a sua inserção em setores de sua responsabilidade. Todavia, a iniciativa privada “atende”, apenas, aos consumidores capazes de pagarem os preços exigidos por ela, ficando os sofridos serviços públicos para as camadas pobres e miseráveis da população.

5. A REGULAÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DE 1988

A regulação é uma técnica de intervenção estatal na estrutura econômica e social adotada na contemporaneidade e assim sendo, deve seguir as normas fixadas pela Carta Magna brasileira de 1988. Portanto, as ações e programas executados pela União, Estados Membros, Distrito Federal e Municípios devem estar dentro dos parâmetros de planejamento constitucionalmente previstos (art. 174, Caput da CR), destacando-se nesse sentido, a Lei do Plano Plurianual (art. 165, I da CR), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (art.165, II da CR) e a Lei do Orçamento anual (art. 165, III da CR).

As diversas formas de intervenção, sejam elas diretas, indiretas, ou intermediárias, se apresentam no Brasil como mecanismos de atuação pública na vida econômica, mesmo nesses tempos de regulação (adota preferencialmente as duas últimas). Essas modalidades de ação estatal

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apresentam-se no Texto Constitucional brasileiro de 1988, principalmente, nos arts. 173, Caput e 175, Caput da CR (direta); arts. 174, Caput e 173, § 4 da CR (indireta) e arts 21, XI; 175 e seu § único da CR (intermediária).

Em nosso território detectamos a intervenção indireta (produção de normas jurídicas do Legislativo ou do Executivo) quando a União produz lei para viabilizar as pequenas empresas no mercado, criando ambiente para sobrevivência das mesmas (Lei Complementar n.º 123 de 14/12/2006); ou então, algum município renuncia parte do imposto sobre propriedade predial e territorial urbana (art. 156, I da CR), desejando a revitalização/reforma do patrimônio histórico da cidade em mãos dos particulares, buscando o progresso do turismo.

Em relação à ação direta, atuação estatal via empresas que operam no mercado em regime de monopólio ou de concorrência, continuamos com algumas, tais como: Banco do Brasil, Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, Companhia Energética de Minas Gerais, etc. Essas podem fortalecer o mercado interno e democratizar o consumo de bens e serviços.

As políticas econômicas de regulação no Brasil por diversos motivos, entre eles, pelas pressões dos movimentos sociais, não conseguiram liquidar por completo as empresas públicas e as sociedades de economia mista que representavam, fundamentalmente, o Estado empresário. Após as privatizações nacionais, restaram, ainda, minguadas empresas estatais produtoras de bens e serviços. Por vezes, até se cria alguma, como é o caso da Empresa de Pesquisa Energética (Lei n. 10.847/2004) datada de 15 de março de 2004.

Quanto à intervenção intermediária no Brasil, uma das festejadas pelos defensores da regulação, esta é representada pelas agências reguladoras, ensina Souza (2005). Nela cria-se o ente estatal, a agência, e ela possui, ainda, a competência legal para editar “normas técnicas” de qualidade, quantidade e expansão, bem como para definir reajustes de tarifas, fiscalizar e punir, administrativamente, a iniciativa privada sujeita aos seus marcos regulatórios.

É importante ressaltar que as agências possuem poder distinto das empresas estatais para influenciar no mundo dos negócios e nos destinos das nações, no caso, bem mais tênue, porque elas apenas regulam, não produzem bens e nem serviços como o Estado empresário. Este sim possuía uma força executória e capacidade realizadora maior na estrutura produtiva e no tecido social.

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

Sem qualquer incompatibilidade com as modalidades de intervenção apresentadas (direta, indireta e intermediária), ao contrário, articulam-se, apresentaremos outras, a fim de aprimorar o estudo do tema proposto.

Seguindo o ensinamento de Savy (1977) e também os nossos escritos (CLARK, 2001), temos ainda a intervenção geral e a setorial, previstas na Carta Magna brasileira de 1988. Também admitidas no neoliberalismo de regulamentação e de regulação.

O texto da Constituição da República Federativa do Brasil possui comandos, principalmente na Constituição Econômica, redigidos dentro dos moldes do Standard Jurídico (SOUZA, 2005), admitindo no plano teórico, somente, a adoção das técnicas intervencionistas de regulamentação ou de regulação, apesar das modificações constitucionais promovidas serem no sentindo de implantar essa última.

Na intervenção geral, encontramos a política econômica conjuntural (política fiscal e orçamentária, política de moeda e crédito, política de preço e a política externa), a política econômica a médio prazo (política de concorrência, política de emprego e política de rendimento) e a política econômica estrutural (investimentos). Já a intervenção setorial é quando se adota uma política econômica específica envolvendo um ou mais segmentos econômicos, independentemente ou não da intervenção geral.

Ressaltamos, novamente, que o Texto Constitucional de 1988 impõe o poder/dever da União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios de realizarem suas políticas econômicas inseridos na racionalidade do planejamento. Não é por outro motivo a imposição dos mandamentos, dentre outros, dos arts. 21, IX; 25, § 3; 30, VIII; 48, IV; 84, XXIII; 165; 166; 174, Caput e § 1 da Constituição da República, articulando-se a intervenção geral (art. 174, Caput e § 1º da CR) com a setorial (art. 187, Caput da CR).

Portanto, o neoliberalismo de regulação no Brasil deve agir no domínio socioeconômico nacional seguindo as normas legais de planejamento (Lei do Plano Plurianual, principalmente), viabilizando os fins e materializando os princípios da Carta Magna.

Na política econômica conjuntural, inicialmente temos a política fiscal e orçamentária onde a União, Estados e Municípios agem assiduamente no domínio econômico e social. O aumento, a diminuição ou criação de impostos, exemplificando, podem resultar na expansão do setor de serviços ou na retração da indústria de móveis. Assim como a elevação acentuada da

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carga tributária a determinados contribuintes pode ajudar a dilatar os gastos públicos com a dívida social, fazendo, paralelamente, a justiça distributiva. Outrossim, o mesmo remédio, acréscimo de tributos à população em geral, pode levar a estagnação econômica.

A Carta Política brasileira atual, no capítulo do Sistema Tributário Nacional (arts 145 a 162) impõe aos poderes públicos a missão de atuar na vida socioeconômica através dos tributos. A União (arts 153 e 154 da CR) pode agir via os impostos de exportação e de importação, aumentando o primeiro e diminuindo o segundo, sufocando inflação sazonal de demanda; ou então, reduzindo o imposto incidente sobre determinado produto industrializado ecologicamente correto (chuveiro com energia alternativa).

Os Estados-membros (art. 155 da CR) manejam os impostos sobre circulação de mercadorias e sobre propriedade de veículos automotores, por exemplo, podendo, portanto, induzir ou inibir um setor econômico (de bens recicláveis), conforme a alíquota do primeiro tributo; ou ainda, estimular a compra de veículos automotivos alternativos (uso de combustíveis renováveis), em face da baixa tributação dos referidos impostos.

Os Municípios (art. 156 da CR) também intervêm na vida econômica por intermédio dos tributos, reduzindo, temporariamente, para algumas espécies de imóveis, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana, a fim de estimular novas edificações e automaticamente estimular o turismo de águas marinhas. O poder local tem ainda a possibilidade de taxar os serviços de qualquer natureza e, através dele, ampliar o número de empresas prestadoras de serviços, diminuindo o desemprego na cidade.

Apesar de termos um federalismo perverso e centralizado, onde a União concentra a maioria das competências tributárias e o maior volume de sua arrecadação, tanto a União quanto os Estados e Municípios atuam no âmbito econômico e social, através da política fiscal. Isso independentemente dos tributos terem uma destinação “originariamente” fiscal ou extra-fiscal, eles realizam tal missão.

Ademais, a Carta Magna brasileira de 1988, quanto impõe a seletividade dos produtos industrializados (art. 153, § 3, I da CR) e de circulação de mercadorias e serviços (art. 155, § 2, III da CR) em função da essencialidade dos mesmos, explicita, mais uma vez, o papel intervencionista dos poderes públicos, especificamente da União e dos Estados, respectivamente, nos exemplos em tela.

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

Outrossim, não se pode pensar em política fiscal desvinculada da orçamentária. Essa é uma peça fundamental na vida das nações e dos negócios privados, estando configurada fundamentalmente na Lei orçamentária anual (art. 165, III da CR) entre nós. A mesma é elaborada pelos Municípios, Estados e pela União, seguindo os comandos legais estabelecidos pela Lei do Plano Plurianual (art. 165, I da CR) e pela Lei de diretrizes orçamentárias (art. 165, II da CR), podendo causar inflação, por exemplo, devido à falta de investimentos em setores de energia e transportes, vitais para a produção agrícola e industrial; ou então, gerar retração econômica, proveniente de gastos públicos excessivos no pagamento das dívidas governamentais previstas no orçamento, em detrimento de investimentos estatais em infra-estrutural básica. Logicamente, as leis de orçamento não podem escapar dos limites ditados pela Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar n.º 101/2000).

Ainda dentro da política econômica conjuntural, temos as políticas de moeda e a crédito. Elas são de competência da União (arts. 21, VII e VIII; 22, VI e VII da CR) e influenciam no dia a dia das empresas e dos cidadãos. O volume de moeda (papel, metálica ou plástica) no mercado gera inflação, em caso de excesso, resultando na limitação do consumo de bens à população; ou ainda, na deflação, originada pela pequena quantidade de moeda no mercado, levando a redução dos preços dos produtos, abaixo de seus valores de custo, causando o desaparecimento dos bens e a possível falência dos fornecedores.

A política de crédito pode ser manejada, dentre outras maneiras, através da concessão de dinheiro mais barato a micros e pequenos negócios existentes no país, reduzindo-se o imposto sobre operações de crédito (art. 153, V da CR), aquecendo assim a oferta de bens e serviços no mercado consumidor e dilatando a criação de empregos formais. Pode, a União, acarrear recursos de seus bancos oficiais para as classes não abastadas do país adquirirem, ampliarem e reformarem suas propriedades rurais ou urbanas.

Logicamente, todas as ações acima irão influenciar o setor financeiro e obviamente a atuação dos bancos privados, levando os mesmos a diminuírem seus ganhos com os juros, devido à oferta de crédito acessível à população e as empresas pelo Estado.

Já em relação à política de preço, a nossa Constituição de 1988 estabelece poderes para a União e os Estados legislarem concorrentemente sobre Direito Econômico, produção e consumo (art. 24, I e V da CR). Outrossim, os Poderes Locais também podem legislar sobre as mesmas

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matérias (CLARK, 2001), quando aquela possibilita aos Municípios a atuarem sobre assuntos de interesse local e suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, I e II da CR).

No preço está embutida a margem de lucro do setor, pode o primeiro possibilitar o consumo a inúmeras classes sociais ou apenas das mais ricas. A União pode estabelecer preços máximos a certos bens no intuito de controlar as margens de ganho de setores oligopolizados; aos Estados é permitido garantir preço mínimo aos produtores de leite, em face do poderio econômico das indústrias processadoras e da importância do alimento na dieta das crianças. Os Municípios podem, ainda, fomentar o preço pactuado, via seu Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, onde os diversos segmentos sociais estão representados, garantindo a manutenção do valor de determinado serviço, por um ano, por causa da inflação setorial.

Finalmente, em relação à política de preços, existe ainda a possibilidade da União lançar mão da Lei Delegada nº 04 de 26/09/1962 para tabelar preços e serviços em virtude de alta dos mesmos, provocada pela ditadura dos cartéis, monopólios e oligopólios privados, em instante de crise na economia de mercado, buscando a consagração do consumo popular. Aliás, o Supremo Tribunal Federal julgou a constitucionalidade da dita Lei Delegada, apoiando-se, fundamentalmente, nos arts. 173, § 4 e 174, Caput da Carta Constitucional brasileira (SOUZA e CLARK, 2008).

Ainda, quanto à política econômica conjuntural, temos a política externa onde a União (art. 22, VII da CR) atua no domínio econômico e social pelos mecanismos de entrada e saída de bens, serviços, capitais e tecnologia. Conforme as políticas econômicas desenvolvidas no Brasil no comércio internacional, teremos maior ou menor independência perante os fornecedores estrangeiros e a efetividade da soberania econômica ditada pelo art. 170, I da Constituição de 1988.

Dessa forma, a União pode incentivar a importação de alguns produtos destinados a inibir o uso do tabaco, preservando a saúde dos brasileiros fumantes e não fumantes e diminuir os gastos públicos com os efeitos negativos produzidos por aquele; também é possível desestimular a exportação de bens em alta de preços no Brasil, refreando o dragão da inflação. Na execução de tais medidas, em ambos os casos, podemos abrir linhas de crédito especiais ou reduzir as barreiras burocráticas.

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

Em relação à entrada e saída de capitais (art. 172 da CR), a União pode seduzir investimento estrangeiro em alguns setores produtivo, alargando o percentual de remessa de lucros ao país da empresa investidora, mas paralelamente vincular uma maior absorção de mão de obra formal. Nada impede que se adotem medidas tributárias para desestimular os nacionais a aplicarem no exterior.

No campo da tecnologia (art.s 218 e 219 da CR), essência no mundo do século XXI, para findar com a espoliação das nações desenvolvidas e de seus capitais sobre as Nações em desenvolvimento e suas populações, e não mais continuarmos adquiri-las no exterior, como fazemos a mais de 500 anos, devemos mudar a rota, como por exemplo, reforçar os caixas das instituições públicas e comunitárias de pesquisa e ensino, objetivando produzir tecnologicamente endogenamente ou em conjunto com outras Nações em desenvolvimento.

Outrossim, o Texto Constitucional de 1988 determina aos poderes públicos a missão de promover e incentivar a ciência e a tecnologia, possibilitando claramente, ainda, a aplicação de recursos dos Estados-membros e do Distrito Federal no setor (art. 218, § 5º da CR).

Saindo da política econômica conjuntural, onde o Estado atua de forma instantânea na estrutura econômica e social, através das ações supra citadas, passaremos para a política econômica á médio prazo (política de concorrência, de emprego e de rendimento). A política de concorrência é cogitada pela Carta Magna de 1988, em seu art. 173, § 4º, estabelecendo: “A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.

A Lei nº 8.884 de 11/06/94, que dispõe sobre a prevenção e repressão às infrações contra a ordem econômica, impondo ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia federal, a missão de punir administrativamente (multas, cisão da empresa, publicação da condenação em jornal de circulação) os infratores da ordem econômica, podendo ser eles pessoas físicas e/ou jurídicas. No âmbito penal, temos a Lei n.º 8.137 de 27/12/90, definidora dos crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo, fixadora das sanções penais aos seus transgressores. Em matéria de abuso do poder econômico podem existir conjuntamente as sanções administrativas e penais, bem como a responsabilidade civil dos infratores.

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Como em todo mundo capitalista, no Brasil, a legislação, como a acima referida, não veda à existência do poder econômico, apenas limita a sua atuação e o uso ilegal de seu poder no sistema econômico. Assim sendo, quando agimos de forma contundente e eficaz na prevenção e repressão dos atos de abuso do poder econômico por intermédio de políticas públicas cumpridoras das leis existentes, estaremos inviabilizando os altos preços exigidos pelos cartéis e ampliando o poder de compra dos consumidores.

Infelizmente, no Brasil vivemos em estágio de Fetiche das Leis (SOUZA e CLARK, 2008), no tocante ao abuso do poder econômico. A completa falta de eficácia daquelas gera entre nós o paraíso dos oligopólios e o inferno dos consumidores.

Dentro da política econômica a médio prazo, possuímos ainda a política de emprego. É de competência da União, legislar sobre direito do trabalho (art. 22, I e XVI da CR) e sua intervenção indireta (via normas jurídicas) nas relações laborais pode ser no sentido de reduzir a jornada de trabalho amainando o subemprego e o desemprego; criar incentivos tributários em busca do citado objetivo; ou fixar “reajustes” anuais nos salários dos trabalhadores da iniciativa privada, recompondo as perdas da inflação, acrescidos de aumentos reais, buscando assim maior justiça na eterna disputa desigual entre capital e trabalho.

Apesar dos Municípios e Estados-membros não possuírem competência para atuarem no direito do trabalho, estes devem, juntamente com a União, agir para garantir o pleno emprego (art.170, VIII da CR), via suas políticas econômicas dirigidas ao turismo, à agropecuária, ou à indústria, seja através de linhas de créditos, renúncia tributária ou de obras de infra-estrutura, onde a expansão do emprego esteja embutida em suas finalidades.

Finalizando, na política econômica a médio prazo temos a política de rendimento. Ela versa sobre as diversas formas de distribuição dos ganhos, digo, de remuneração dos “fatores da produção” (SOUZA, 2005), ou seja, o salário advindo do trabalho, a renda auferida das propriedades, o lucro surgido da produção e os juros originados do capital.

No campo do salário, tipo de remuneração estabelecida ao trabalhador possuidor de emprego, uma das espécies de trabalho, temos o salário mínimo e o salário família, garantidos constitucionalmente (art. 7º, IV e XII da CR), que devem ser usados pelos governantes para valorizar o trabalho humano (art. 170, Caput da CR) e viabilizar o direito ao trabalho

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(art. 6º da CR). Conforme os valores fixados para aqueles (salários mínimo e família), pela União (art 22, I da CR), em sua política salarial, se efetiva os ditames acima do Texto Constitucional, remunerando corretamente os trabalhadores pelos serviços prestados e lhes possibilitando uma vida digna, ou se perpetuará o aumento dos lucros.

Uma das formas de auferir ganhos é por intermédio de renda originada dos aluguéis de imóveis urbanos e rurais ou de máquinas. Mesmo a nossa Carta Política de 1988 garantindo o direito à propriedade privada (arts. 5, XXII e 170, II da CR), sobre ela recai uma função social, tanto as de consumo (art. 5º, XIII da CR), como as de produção (art. 170, III da CR). Dessa forma, diante das dificuldades habitacionais vividas em nosso país, marcante nos grandes centros urbanos, a União atua de forma indireta (Lei 8.245 de 18/10/1991) estabelecendo parâmetros legais para os locadores de imóveis residenciais requererem os mesmos sem motivação (30 meses) e veda os reajustes dos aluguéis vinculados às variações do salário mínimo ou do câmbio.

O Estado, ao desenvolver políticas de renda (impositiva), interferindo na propriedade residencial, cuida da distribuição dos ganhos e da justiça social, logo não deve permitir o desestimulo dos proprietários, motivado pelos baixos valores dos aluguéis, nem o esmagamento dos inquilinos, devidos aos valores proibitivos daqueles.

O lucro é adquirido por todo aquele que reúne os fatores da produção (capital, matéria prima, trabalho e organização). A Constituição de 1988 permite o mesmo, mas veda o seu aumento de forma arbitrária (art. 173, § 4º da CR). No capitalismo o lucro é um “plus” conquistado pela empresa ou pelo empresário pelo seu “esforço de empreender uma atividade”.

No caso do lucro, a política econômica pode taxar fortemente um segmento poluidor através do imposto sobre a propriedade industrial de competência da União (art. 153, IV da CR), a fim estimular o uso de energia limpa, ou ainda tabelar preços de alguns bens via a Lei Delegada n.º 04/1962, dominado por oligopólio praticante de cartel, possibilitando o consumo do trabalhador. Em ambas as hipóteses, iremos restringir os lucros, mas, com outras medidas, poderíamos ampliá-lo.

Já em relação aos juros (arts. 21, VIII e 22, VII da CR), apesar da lastimável revogação do comando constitucional que o taxava em 12% ao ano (Emenda Constitucional n.º 40 de 29/05/2003), qualquer tipo de propriedade, inclusive a do capital, está sujeita a uma função social (art.

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170, III da CR). Assim sendo, a política econômica destinada aos juros deve perseguir os fins da Constituição econômica, não podendo ampliar extraordinariamente os ganhos dos bancos nem, muito menos, empobrecer e subordinar os que dependem de seus empréstimos e serviços.

Quando a União aumenta a emissão de títulos da dívida pública no mercado, tais títulos governamentais irão concorrer com a necessidade dos particulares em obter dinheiro, resultando em uma maior demanda por capital e, conseqüentemente elevando o montante de juros pagos aos banqueiros. A União, também, pode incentivar a compra a crédito de imóveis, ofertando empréstimo com juros baixos nos bancos oficiais, dilatando assim o volume de recursos destinados ao setor, reduzindo, por conseguinte, a margem de ganho do sistema financeiro em virtude da concorrência.

Por derradeiro, dentro da política econômica geral, possuímos a política estrutural, nela o Estado (União, Estados-membros, Municípios) investe recursos originados de seu orçamento ou dos ganhos das empresas estatais em fundos de desenvolvimento, obras de infra-estrutura, compra de bens tecnológicos, interferindo em todo o sistema econômico, gerando desenvolvimento sustentável ou o crescimento modernizante. Pode contar, ainda, com recursos privados de pessoas jurídicas, por intermédio de aplicações direta, em parceria com o Estado (Lei n.º 11.079/2004 da Parceria Público-Privada).

Algumas obras estatais em ferrovias e portos podem diminuir o custo da produção, agilizando o transporte dos bens e aumentando o seu consumo, motivado pela redução dos preços. Investimentos governamentais em regiões pobres podem resultar em redistribuição da população urbana e melhor nível de vida, a criação de uma empresa pública, por exemplo, transformadora do lixo pode alimentar as indústrias de matéria prima reciclada, trazendo mutações no processo produtivo e no tecido social.

A política econômica setorial é a ação estatal em um ou mais setores da vida econômica e social, seja na produção de frutas, no turismo regional ou na indústria de base. Ela deve ser coerente e harmônica com a política econômica geral e as três esferas de poder territorial (União, Estados-membros, Municípios) podem executá-la.

A política econômica setorial pode exigir obras de infra-estrutura, criação de empresas estatais, estatização de empresas privadas, incentivos tributários, fundos de investimentos, concessão de terras públicas e todos

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

os demais mecanismos acima descritos de atuação governamental, a fim de efetivar a justiça social fixada pela Constituição brasileira atual.

Resumidamente, em nossa Nação a ação estatal no domínio econômico e social deve ter como base constitucional os comandos referidos acima. Logicamente, outros tipos de atuação são protagonizados com base em outros artigos de nossa Lei Máxima, seja na produção, na circulação, na repartição ou no consumo.

Contudo, a regulação no Brasil significou, a partir da última década do século XX, o manejo “contido” das políticas econômicas, como assenta o capital privado e organismos internacionais (Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial, etc) às Nações em desenvolvimento. Aquela se exprime como uma atuação estatal conservadora por intermédio da política econômica conjuntural, prioritariamente, “esquecendo-se” das políticas econômicas de médio prazo e das estruturais.

Em detrimento do Texto Constitucional brasileiro atual e embasado nas teses da Escola da Análise Econômica do Direito, deixamos ao sabor dos donos dos dinheiros a política de concorrência, fundamental para repreensão ao abuso do poder econômico; a política de repartição, essencial na distribuição dos ganhos entre capital e trabalho; bem como a política estrutural, por deixarmos de fazer investimentos em setores estratégicos na miragem de saldar uma dívida pública secular e não auditada.

Inclusive, na atualidade (anos de 2008 e 2009), o neoliberalismo de regulação demonstra objetivamente, mais uma vez, o seu lado destruidor, seja no Brasil ou nas demais Nações. Em virtude da “contida” atuação estatal no domínio econômico, todavia sempre em prol da multiplicação dos ganhos do capital, instalou-se uma aguda crise socioeconômica mundial iniciada nos setores imobiliário e financeiro dos Estados Unidos. A irresponsabilidade e a ineficácia das políticas econômicas reguladoras públicas e privadas estão resultando em recessão, dilatação dos níveis de desempregados e em mortos, ou seja, na “pandemia reguladora”.

6. CONCLUSÕES

A regulação é uma técnica de intervenção estatal na vida socioeconômica imposta à economia de mercado do século XXI, perpetuadora do modelo pós-colonial para as chamadas Nações em desenvolvimento, como o Brasil,

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Giovani Clark

e multiplicadora de poderes e ganhos ao mega capital internacional “global”.Realizamos uma série de alterações (emendas) no texto da Constituição

brasileira de 1988, apesar de seus comandos possuírem uma redação genérica (Standard Jurídico), sendo teoricamente (somente) admissíveis à regulamentação e a regulação; aprimoramos suas normas à segunda, já que o mesmo foi construído dentro de uma realidade de regulamentação.

Contudo, o neoliberalismo de regulação mostrou-se incompatível para a efetivação de nossa Carta Magna, ou seja, de seu preâmbulo; dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1 da CR); dos objetivos fundamentais da República (art. 3 da CR); e ainda com os fundamentos, fins e princípios da Constituição Econômica (art.170 da CR), porque retira a força executória e a capacidade realizadora estatal no sistema produtivo e no tecido social, como exigem os ditames constitucionais e a própria realidade nacional.

Tendo em vista as raízes históricas brasileiras, de Nação colonizada e explorada, inclusive nesse século, é de fundamental importância a atuação estatal nas estruturas socioeconômicas, através de seu poder econômico e do aparato institucional legal.

Não temos uma visão romântica do Estado como ente isento e de condutas racionais, mas sim uma visão dialética, já que os poderes públicos possuem suas ações ditadas pelos conflitos de classes e pelos interesses antagônicos de uma sociedade complexa. Assim sendo, quando a regulação restringe a atuação estatal e repassa o regramento social para o mercado, digo, ao poder econômico privado, refreia e amaina as demandas e pressões sociais, junto à máquina governamental, pelo cumprimento dos ditames constitucionais mudancistas, bem como esvazia um dos espaços de conquistas sociais (o Estado).

O Texto Constitucional de 1988 impõe o poder/dever do Estado em agir no domínio econômico e social de forma planejada, a fim de transformar o nosso oceano de injustiças e materializar plenamente o desenvolvimento sustentável, a existência digna, a função social das propriedades, a soberania nacional, a defesa do consumidor, etc. Por conseguinte, o neoliberalismo de regulação colide com tais comandos.

Portanto, a regulação no Brasil, assim como nas demais nações, não significa a não ação governamental no sistema econômico e social. Isso é um mito. Como no passado, atualmente os poderes públicos (União, Estados-

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A Regulação e a Constituição Brasileira de 1988

membros e Municípios) agem constantemente nas realidades, através de investimentos, legislação e agências de regulação.

Por fim, na efervescência da crise econômica internacional, novamente todos os Estados nacionais são chamados para salvar o capitalismo, e prioritariamente o grande capital, modificando as suas formas anteriores de atuação no processo econômico. Até alguns meses atrás o aparato estatal era incompetente, caro e “rechaçado” da vida econômica. Agora é o Príncipe Salvador que estatiza bancos, concede empréstimos milionários ao setor automobilístico, reduz tributos, realiza obras indutoras a fim de estancar os efeitos da crise e evitar a convulsão social. Em síntese, o neoliberalismo de regulação também é incompatível para a continuidade do capitalismo no tempo e no espaço.

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Aventuras e desventuras do Estado Social127

A. J. AVELÃS NUNES

1. DO ESTADO DE DIREITO LIBERAL AO ESTADO FASCISTA

1.1 O estado de direito liberal.As representações liberais do estado e do direito reduziam o estado

ao papel de defensor da ordem, cometendo ao direito a função de sancionar as relações sociais decorrentes do exercício da liberdade individual.

Talvez possamos admitir que o estado de direito assenta sobre três princípios essenciais: 1) o princípio democrático, que, por oposição ao princípio monárquico do estado absolutista, pressupõe a soberania popular; 2) o princípio liberal, implicando a ideia da separação entre o estado e a sociedade (a sociedade civil, no seio da qual se desenvolve a economia, como actividade que apenas diz respeito aos privados); 3) o princípio do direito, que implica a sujeição do estado ao direito, i.é, às leis aprovadas no parlamento.

Daqui decorre o estatuto constitucional dos direitos fundamentais, nomeadamente a liberdade e a propriedade (talvez na ordem inversa, porque a propriedade é o fundamento da liberdade e só o proprietário é um verdadeiro cidadão), sendo que a liberdade é a liberdade de adquirir e possuir sem entraves, a liberdade do indivíduo enquanto agente económico, enquanto sujeito (privado) da economia. Na ordem liberal, os direitos fundamentais destinam-se a garantir aos indivíduos a defesa contra a ‘agressão’ do estado.

127 Texto escrito para um livro de homenagem ao Prof. Doutor Fábio Konder Comparato.

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A. J. Avelãs Nunes

Daqueles princípios decorre também a reserva da lei, a legalidade da administração, a separação dos poderes. Os parlamentos dominados pela burguesia faziam as leis que o estado (o Executivo) se limitava a executar. As leis exprimiam a “vontade geral” expressa no parlamento, o que teve alguma correspondência na realidade, durante o período em que a burguesia desempenhou o seu papel histórico de classe revolucionária, período durante o qual os interesses e os valores da burguesia coincidiram, em boa medida, com o interesse geral, com os objectivos imediatos das massas populares.

Estas leis respeitariam também a ordem natural da economia privada (auto-regulada por leis naturais), mantendo o estado e o direito separados da economia, para que a economia, baseada na propriedade burguesa e nas relações de produção a ela associadas, se pudesse desenvolver imune às interferências externas, assim se garantindo a ‘perenidade’ da ordem social saída das revoluções burguesas, pondo-se fim à história (como ironizou Marx em comentário a Ricardo) por imperativo das ‘leis naturais’ que regem a economia.

O estado de direito (o estado de direito liberal) foi a bandeira da burguesia na luta contra o estado aristocrático-absolutista, foi um instrumento de que, em dado momento histórico, a burguesia revolucionária se serviu para conseguir a hegemonia no controlo do poder político. Mas ele foi também um instrumento ao serviço da burguesia para, num segundo momento, tentar consolidar e perpetuar a sua posição de classe dominante, numa sociedade em que novas relações sociais de produção assentam numa nova estrutura de classes (a burguesia capitalista e os trabalhadores assalariados, o capital e o trabalho).

1.2 A emergência do estado social.A vida mostraria não corresponder à realidade a velha tese liberal

de que a economia e a sociedade, se deixadas a si próprias, confiadas à mão inivisível ou às leis naturais do mercado, proporcionam a todos os indivíduos, em condições de liberdade igual para todos (a igualdade perante a lei), as melhores condições de vida, para além do justo e do injusto.128 Este pressuposto liberal falhou em virtude de vários factores: progresso

128 Diziam os fisiocratas: o que é natural é justo. E Hayek insiste em que não faz sentido falar de justiça ou injustiça a respeito das soluções impessoais do mercado.

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Aventuras e desventuras do Estado Social

técnico, aumento da dimensão das empresas, concentração do capital; fortalecimento do movimento operário (no plano sindical e no plano político) e agravamento da luta de classes; aparecimento de ideologias negadoras do capitalismo.129

Falhado aquele pressuposto – que justificava a tese de que o estado deveria estar separado da sociedade e da economia -, impôs-se a necessidade de confiar ao estado (ao estado capitalista) novas funções, no plano da economia e no plano social.

A emergência do estado social - poderemos antecipar já esta ideia - significou uma diferente representação do estado e do direito, aos quais se comete agora a missão de realizar a ‘justiça social’, proporcionando a todos as condições de uma vida digna, capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um. A mão visível do direito começava a substituir a mão invisível da economia.

No quadro do capitalismo monopolista, o conceito de estado social trouxe consigo, por isso mesmo, maior autonomia da instância política e um certo domínio do político sobre o económico, também com o objectivo de satisfazer determinadas aspirações sociais, na tentativa de reduzir a campo de acção dos movimentos revolucionários (nota esta que já estava presente no estado bismarckiano, talvez a primeira manifestação do que viria a ser o estado social).

1.3 Uma solução de compromisso.A generalização e o aprofundamento dos conflitos sociais nos países

capitalistas e a emergência de experiências socialistas vieram perturbar

129 Em 1965, escreve Rudolf Huber (apud J. GOMES, “Estado social”, cit., 213/214): “As características da sociedade industrial altamente desenvolvida a que pertence o conceito de estado social são: em primeiro lugar, um sistema económico com alta concentração de capital, técnica de máquinas aperfeiçoada, processos de trabalho racionalizados e necessidades de massa ‘estandardizadas’; em segundo lugar, um sistema social no qual a velha hierarquia das corporações cedeu perante o conflito de classes, pelos mesmos direitos da classe possidente; em terceiro lugar, um sistema cultural, de educação popular geral com possibilidades de acesso para todos aos bens culturais e aquisições da civilização, através de organizados sistemas de cultura e civilização; em quarto lugar, um sistema com um aparelho administrativo preparado para as necessidades económicas, sociais e culturais das massas industriais; em quinto lugar, e sobretudo, um sistema de estado que se desligou do princípio da não intervenção nos termos da máxima liberal laisser-faire, laisser-passer, para transitar para um sistema de intervenções sociais, protegendo as classes e os grupos mais fracos”.

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A. J. Avelãs Nunes

o equilíbrio da ordem económica do liberalismo, a ordem da liberdade individual e da propriedade privada (configurada na mão invisível de Adam Smith e no seu conceito de Civil Government) e conduziram a um novo papel do estado e do direito, muitas vezes por pura cedência táctica e oportunista. As lutas da nova classe operária (os trabalhadores assalariados das “indústrias novas”) constituíram a forma mais visível e mais profunda de contestação do direito clássico (do direito burguês). A burguesia, porém, aprendeu a lição da discussão sobre o sufrágio universal, considerado inicialmente como reivindicação subversiva dos trabalhadores, como uma espécie de ‘revolução permanente’, e aplaudido depois (até com o acrescento do voto obrigatório) como um factor de integração social e um instrumento de ‘anestesia’ das organizações dos trabalhadores, uma espécie de apólice de seguro contra os riscos de subversão social. Por isso foi mais fácil avançar para soluções de compromisso que implicaram a integração, na nova ordem jurídica do capitalismo, de princípios contrários aos valores (verdadeiros dogmas) da ordem liberal. O qualificativo social, que tempos antes carregava algo de subversivo, assume agora, aos olhos da burguesia, um ar protector e tranquilizador.

Se o direito civil napoleónico foi a expressão mais acabada de um direito de classe (o direito da burguesia revolucionária vitoriosa), o direito social surgiu, no quadro do estado social, como um direito de compromisso. Não necessariamente um ‘compromisso’ que traduzisse um equilíbrio de forças. Porque não faltam razões aos autores que põem em relevo a natureza ideológica e mistificatória do conceito de estado social, apontando-o como “um ídolo para apresentar às classes não capitalistas com o objectivo de as anestesiar”.130 E não pode negar-se a importante influência do desenvolvimento do ideário socialista e das experiências socialistas na conformação da ordem jurídica do capitalismo contemporâneo, obrigado a adaptar-se para poder sobreviver ao cataclismo da grande depressão. A economia passou a constituir a principal preocupação do estado e o terreno determinante da acção política, assumindo o estado (e o direito) um papel de relevo na regulação do equilíbrio do sistema social, a partir da aceitação de que o sistema económico não se regula por si próprio e muito menos

130 Cfr. M. GIANNINI, “Stato Sociale…”, cit.

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Aventuras e desventuras do Estado Social

pode livrar o sistema social das tensões e desequilíbrios que têm origem na economia.

1.4 O estado social enquanto “estado económico”.As primeiras manifestações do estado social poderão assinalar-se no

período imediatamente posterior à 1ª Guerra Mundial, marcado por uma profunda crise económica, por violentos conflitos de classe, pela subversão do estado de direito liberal e dos princípios da democracia.

A expressão estado social de direito data de 1930 (Hermann Heller), mas as suas raízes podem ir buscar-se a Saint Simon, a Lorenz von Stein, a Lassalle (e aos “socialistas de estado”), aos fabianos (e aos teóricos da “democracia económica”) e aos adeptos do socialismo reformista.131

Em 1848 já se falava na França de democratas socialistas e o estado democrático e social foi então considerado como o compromisso possível entre os grupos mais radicais (socialistas) do operariado francês e os partidos representativos da pequena burguesia, implicando o reconhecimento, em favor dos trabalhadores, de certos direitos sociais e económicos. Até hoje, o conceito de estado social tem mantido esta natureza de solução de compromisso, que se traduz na adaptação das estruturas sociais e políticas da sociedade capitalista aos ventos da história e às exigências do tempo histórico, uma espécie de “evolução na continuidade” (J. Gomes), com o objectivo de suavizar as contradições do sistema, ‘anestesiar’ os contestatários e afastar os riscos de rupturas revolucionárias.

Ameaçada a estabilidade da ordem burguesa, a ruptura da sociedade capitalista só podia ser evitada (adiada) a partir do estado, não do estado liberal, mas do estado social. É esta a missão do estado nas sociedades de classe. O estado social não se propõe a construção de uma nova ordem social, mas a salvação e a consolidação da ordem burguesa, mudando alguma coisa para que tudo continue na mesma, segundo a conhecida máxima de Il Gattopardo. Nas novas condições da sociedade capitalista (acentuado progresso técnico e concentração do capital, a par do aprofundamento da conflitualidade social), o estado social propõe-se os mesmos objectivos últimos do estado liberal (a primeira forma do estado burguês): assegurar

131 Cfr. V. MOREIRA, “O estado capitalista…, cit..

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a coesão social, i.é, o equilíbrio do sistema económico e social, condição essencial para manter as suas estruturas, nomeadamente a estrutura de classes e o estatuto da classe dominante.

Desfeito o mito de que a sociedade civil (a ordem económica natural) garantiria por si própria a ordem social e a justiça social, o estado social assumiu ser necessário intervir de forma sistemática na economia, deixando esta de ser, para o estado e para os cidadãos, um dado da ordem natural, para se tornar num objecto susceptível de conformação pelas políticas públicas. Aceitando-se que “nenhuma questão política pode ser separada das suas repercussões económicas e, inversamente, que nenhum problema económico pode ser resolvido sem meios políticos”132, o estado social assume-se como estado económico, estado cuja principal função é a de conseguir reunir as condições de funcionamento de uma economia bem sucedida, objectivo que, no período de que estamos a falar, se entendia só ser alcançável se o estado garantisse um certo grau de justiça social, um certo grau de satisfação de determinadas necessidades sociais, porque só deste modo, atenuando os conflitos de classe, se conseguiria a ‘paz social’ indispensável à estabilidade das sociedades capitalistas e à sobrevivência do sistema económico capitalista. Enquanto estado económico, o estado social não é apenas estado-empresário, assumindo-se também como estado prestador de serviços, estado redistribuidor do rendimento, estado-providência, estado de bem-estar.133

Para responder às novas exigências que se lhe colocam, o estado social exigiu também mudanças na sua estrutura organizatória, agora marcada pela prevalência do Executivo sobre o Legislativo e da Administração perante a lei (v.g. os contratos de investimento, a isenção de impostos concedida pelo Administração, a concessão de subsídios a fundo pedido, os apoios em espécie, etc.).

A nova ‘economia planificada’ exige continuidade da orientação política e capacidade técnica incompatível com a ‘anarquia’ parlamentar e a incompetência dos deputados. O estado tecnocrático, cada vez mais liberto dos mecanismos de controlo popular, começa a ocupar o lugar do estado democrático, tal como a tecnostrutura (Galbraith) substitui os proprietários

132 Cfr. J. GOMES, “Estado Social”, cit., 216.133 Cfr. V. MOREIRA, “O estado capitalista…, cit..

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Aventuras e desventuras do Estado Social

capitalistas (o power without property substitui a property without power). Esta elite do poder (C. Wright Mills), e os seus representantes (ou mandantes), os grupos monopolistas, os grandes conglomerados transnacionais, “confiscam a democracia” (J. Gomes), esbatendo a capacidade de intervenção política das classes trabalhadoras e das suas organizações e limitando mesmo a autonomia política dos estados nacionais dos países mais débeis.

1.5 As ambiguidades do estado social.O conceito de estado social carregou consigo, desde o início, uma

enorme ambiguidade, obtendo consagração em constituições tão diferentes como a Constituição de Weimar, a Lei Fundamental de Bona e a Constituição da V República francesa e cobrindo realidades tão diferentes como o estado fascista e o estado providência.

Apesar de tudo, poderemos talvez enunciar alguns pontos relativamente consensuais na sua caracterização, os quais dão sentido à ideia de responsabilidade social do estado enquanto responsabilidade social colectiva (de toda a comunidade):

a) o estado social assume-se como um estado acima das classes e dos conflitos sociais e afirma-se empenhado na prossecução da paz social e na garantia a todos os cidadãos dos meios necessários a uma vida digna, criando condições para que cada um atinja este objectivo pelo seu trabalho ou fornecendo ele próprio os bens ou serviços indispensáveis a tal desiderato (saúde, assistência social, etc.);

b) o estado social propõe-se oferecer a todos oportunidades iguais de acesso ao bem-estar, nomeadamente através de políticas de redistribuição do rendimento em favor dos mais pobres e de investimentos públicos em equipamentos sociais adequados (habitação, creches e escolas de ensino básico, v.g.);

c) o estado social deve proporcionar a todos os indivíduos e a todos os grupos sociais a possibilidade de participar no poder social.

1.6 A Constituição de Weimar (1919).Deixaremos de lado as experiências dos governos de Frente Popular,

na Espanha e na França, que não tiveram condições para dar conta da sua capacidade de realização.

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Atemo-nos, por isso, à análise dos projectos políticos contidos na Constituição de Weimar e no New Deal, ambos marcados pela defesa de uma intervenção sistemática do estado na economia.

A Grundgesetz de 1919 é o primeiro texto constitucional que põe abertamente em causa a tese liberal da autonomia das forças económicas (do ‘governo’ da economia por ‘leis naturais’), assumindo que a intervenção do estado na economia deve visar não apenas a ‘racionalização’ da economia, mas a ‘transformação’ do sistema económico, integrando a economia na esfera da política, fazendo da economia um problema político, lançando deste modo as bases da passagem do estado de direito ao estado social. A partir das soluções consagradas na Constituição de Weimar, acabaria por se construir na Alemanha (Huber) a noção de direito público da economia (Wirschaftsverwaltungsrecht).

Na Constituição de Weimar é assumido com clareza o princípio de que não pode confiar-se ao capital privado a gestão de determinados sectores de produção, nomeadamente os que representam uma eminente utilidade social (a produção e distribuição da energia será, então, o exemplo mais relevante). A nacionalização das “empresas susceptíveis de socialização” (§ 1º do art. 156º) surge como um dos instrumentos utilizáveis para colocar sob a alçada do estado aqueles bens económicos de utilidade social e ainda as empresas que laboram em situação de monopólio (cuja ‘perigosidade’ era apontada mesmo por alguns teóricos do estado liberal, preocupados com o facto de o monopólio pôr em causa as ‘virtudes’ económicas e éticas da concorrência, que seriam as ‘virtudes’ do capitalismo).

Mas o compromisso weimariano marca a diferença entre o estado social e o estado socialista, na medida em que se recusava o confisco puro e simples da propriedade privada, garantindo sempre aos expropriados uma qualquer contrapartida, embora não necessariamente uma compensação tanto por tanto, em termos civilísticos (igual ao valor dos bens expropriados), admitindo-se que a ‘indemnização’ devida poderia traduzir-se na manutenção dos antigos proprietários na administração da empresa, após a sua passagem para a titularidade do estado.

Na Constituição de Weimar tem origem a ideia de programação económica, bem como o desenvolvimento da planificação urbanística e a elaboração em bases científicas das políticas de ordenamento do território e do seu enquadramento jurídico. Nela emergem também novos direitos,

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com a categoria de direitos sociais: o direito à habitação, o direito à educação, o direito à saúde. E nela é reconhecido, pela primeira vez em termos constitucionais, a liberdade de organização sindical como direito fundamental dos trabalhadores.

A par da nacionalização como instrumento mais ‘radical’, a Constituição de Weimar consagrava outros instrumentos que permitiam a intervenção do estado na economia, ou, se preferirmos, a disciplina da propriedade privada. É o caso, típico, do princípio da função social da propriedade, consagrado no § 3º do art. 153º: “A propriedade obriga. O seu uso deve estar ao serviço não só do interesse privado mas também do bem comum”.

Assim se tentava uma outra via de ‘socializar’ a propriedade privada, não só retirando aos proprietários o direito de abusar da sua propriedade, mas também cominando-lhes o dever de a colocar ao serviço dos interesses da colectividade. Na interpretação mais ‘avançada’, aquela norma constitucional impunha aos proprietários comandos positivos quanto ao modo e ao sentido da utilização dos bens de sua propriedade, não se limitando a consagrar um mero limite negativo ao direito de propriedade.

Nesta mesma linha de orientação podemos incluir a consagração (art. 165º) do princípio da cogestão (Mitbestimmung), através do qual se garantia, em determinadas circunstâncias, a participação dos trabalhadores na gestão das empresas. Trata-se de uma outra limitação à liberdade absoluta do capital, de um instrumento que, mais uma vez, visava ‘amarrar’ as empresas privadas às suas responsabilidades sociais, através da participação dos trabalhadores no processo de tomada de decisões das próprias empresas.

A Constituição de Weimar – já o dissemos – foi uma solução de compromisso, com o objectivo de refrear as aspirações revolucionárias de uma parte do operariado alemão, que permaneciam mesmo depois da derrota do movimento spartakista em 1918. Neste quadro, a instituição da cogestão (ou co-decisão) traduz precisamente o propósito de anular o projecto conselhista tentado em 1918 (inspirado nos soviets implantados na Rússia na sequência da Revolução de Outubro), alterando em certa medida o estatuto da empresa privada, mas deixando intocada a propriedade capitalista dos meios de produção. O objectivo último da cogestão era, manifestamente, o de reduzir a conflitualidade social, ‘anestesiar’ o movimento sindical e as lutas operárias e, em última instância, diluir a luta de classes.

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A. J. Avelãs Nunes

No ambiente conturbado da época, estas ideias de participação e de cogestão casavam-se bem com a ideologia de colaboração de classes que informava a doutrina social da Igreja e as doutrinas corporativistas então em voga. Não admira, por isso, que, entre 1919 e 1921, aquelas ideias tivessem encontrado eco na legislação de outros países (Áustria, Luxemburgo, Noruega, Checoslováquia, Itália).

Esta era, aliás, uma ‘técnica’ com tradição na Europa, apoiada na consciência de uma parte das classes dominantes de que certas formas de participação dos trabalhadores nos lucros da em presa podem constituir um factor de paz social e de aumento da produtividade do trabalho em benefício dos empregadores capitalistas.134 Esta (longa) história poderá ajudar a compreender que o movimento sindical (de todas as orientações) nunca tivesse visto com bons olhos tal instituto.

134 Em 1844 (sob o reinado de Luís Filipe), já se defendia na França, na conservadora Société d’Économie Politique, a partici pação dos trabalhadores (na gestão e nos lucros das empresas) como “um meio de evitar as greves” e de “tornar o operário proprietário e, por conseguinte, conservador”.A doutrina social da Igreja a partir da Rerum Novarum (1891) inspirou também algumas experiências nesse senti do, nomeadamente a lei francesa de 26.4.1917, na qual se admitia a participação dos trabalhadores nos lucros das em presas.Ainda na França, um dos defensores da participação dirigia-se ao patronato nestes termos (em 1920): “Em nome dos vossos dividendos, em nome dos vossos lucros, em nome da paz social, introduzi nas vossas empresas a partici pação, para que não haja necessidade de vo-la imporem”.No que se refere à cogestão, interrompida na Alema nha durante o período de vigência do nacional-socialismo, voltaria a ser consagrada na RFA em leis de 1951 e 1952, considerando os sindicatos que a cogestão lhes poderia assegurar um certo con trolo sobre o patronato alemão, for temente comprometido com a política do nazismo. Perante uma nova lei de 18.3.1976, os próprios sindicatos alemães começaram a dar sinais de reacção negativa a este com promisso com o patronato.No que se refere mais directamente à participação dos tra balhadores nos lucros das empresas, foi a França, du rante o período gaulista, o país onde se tentou instituciona lizar essa prática. Uma ordonnance de 7.1.1959 autorizava a participação dos trabalhadores na vida da empresa, quer através da sua par ticipação nos lucros, quer mediante a participação no capital graças à atribuição de títulos de par ticipação a trabalhadores que reunissem certas condições (em regra uma determinada antiguidade na empresa, pelo menos), quer pela via da participação nos ga nhos de pro dutividade, sob a forma de prémios.Não teve muitos resultados práticos esta lei. Mas uma nova ordonnance de 17.8.1967 veio tornar obrigatório o sistema da participação nas empresas com mais de 100 tra balhadores. De Gaulle saudou esta lei como o início de “uma ordem social nova”, caracterizada pela “participação directa dos trabalhadores nos re sultados, no capital e nas responsabilidades das empresas”.O patronato admitia a associação do pessoal da em presa às responsabilidades da gestão, ressalvando, porém, que a partici pação não poderia conduzir à diluição do po der de decisão da empresa (no preâmbulo do ordonnance já se acautelava, aliás, que a participação não devia “diminuir em nada a autoridade da direcção”).

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Apesar de algumas vozes apresentarem a participação como uma ‘revolução’ capaz de ultrapassar os limites do capitalismo e do socialismo, do absolutismo patronal ar caico e do estatismo burocratizante, as forças políticas da esquerda e o movimento sindical sempre denunciaram tal solução como neo-corporativa, em penhada em insti tucionalizar a colaboração de classes. Com ela pretender-se-ia: convencer os trabalhadores de que a melhoria do seu bem-estar e da sua condição está li gada à sorte da empresa em que trabalham; levar os trabalhadores a trabalhar mais inten samente sem exigir aumento de salários, na esperança de virem de pois a participar nos lucros; pulverizar o movimento sindical e distrair os trabalha dores da luta pela transformação da sociedade. Na perspec tiva dos interesses dos trabalhadores, diz-se que estes, imaginando estar a participar nos lucros da empresa ao lado dos exploradores, estão afinal a in tensificar a sua própria exploração.

1.7 A década de 1920 e o New Deal.A década que se iniciou em 1920 foi uma época de ouro do capitalismo

à escala mundial. Costuma dizer-se que, em 1913, com o início da produção em série do famoso Ford Model T, começou a sociedade de consumo, a época da produção em massa e do consumo de massa, sociedade que fez da indústria automóvel o seu centro dinâmico e que transformou o automóvel no seu ‘deus’ mais venerado.

Em 1919, um Ford Model T só estava ao alcance, mesmo nos EUA, de um número relativamente pequeno de ricos. Mas as novas técnicas de produção em série e o aumento enorme da quantidade de bens produzidos levaram Ford e os responsáveis mais capazes a perceber a necessidade de tornar acessível também aos operários a compra dos automóveis e dos demais bens de consumo duradouros. Daí a defesa das vantagens (para o sistema) da melhoria dos salários e das condições de vida dos trabalhadores, que começaram a ser vistos não apenas como um elemento dos custos, mas também como compradores dos bens que era preciso vender para assegurar a realização da mais-valia.

A sociedade de consumo não está, porém, ao serviço dos consumidores, antes serve os interesses das grandes estruturas produtivas, que precisam de vender, a quem lhas possa pagar, todas as mercadorias que lançam no

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mercado. Daí a publicidade, a criação de necessidades, o aprofundamento do desejo de consumir. Daí a necessidade de facilitar as compras às pessoas de rendimentos médios e baixos: o crédito ao consumo desempenhou este papel e as famílias endividaram-se para além do que seria razoável.

Entretanto, o fordismo permitiu reduzir substancialmente os custos de produção e os preços dos automóveis baixaram de modo sensível, tornando o automóvel, por volta de 1926, um bem de consumo de massa na sociedade americana. O boom da indústria automóvel (especialmente nos EUA) é uma marca deste tempo.135

O crescimento da indústria automóvel arrastou consigo o de outras actividades com ela relacionadas, nomeadamente as indústrias mecânica, do petróleo e da borracha. Mas também provocou o incremento da construção civil, dada a necessidade de construir novas estradas, pontes e viadutos nas cidades. Acresce que a maior facilidade de deslocação levou milhões de pessoas a abandonar o centro das cidades, para construir habitações maiores nos arrabaldes. O boom da construção civil provocou efeitos de arrastamento em vários outros sectores, a montante e a jusante, e levou a um aumento dos salários, mesmo da mão-de-obra menos qualificada.

A difusão da energia eléctrica permitiu e estimulou o acesso a novos bens de consumo duradouros, em especial os aparelhos de rádio (produziram-se 190 mil em 1923, cifra que ultrapassou os 5 milhões em 1929) e uma gama razoável de electrodomésticos, tudo isto a justificar o aumento de certos serviços, especialmente nas áreas da manutenção e reparação.

Em 1930 o número de automóveis registados nos EUA ultrapassava os 26.500.000 (apenas cerca de 5 milhões em toda a Europa). Em contrapartida, metade das dívidas das famílias americanas tinham sido contraídas para comprar automóveis.136

A euforia dos negócios foi um fenómeno contagiante, alimentado pelo aumento acentuado das cotações dos títulos negociados na bolsa.

135 Em 1917 a indústria automóvel americana produziu 1.750.000 automóveis, número que passou para 4.301.100 em 1926 e para 5.358.000 em 1929 (ano em que a indústria automóvel absorveu 15% do aço produzido nos EUA, empregava 7% do total da mão-de-obra e representava 13% do valor da produção industrial.136 Cfr. S. LOMBARDINI, La grande crisi…, cit., 38ss.

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Os rendimentos das aplicações financeiras ultrapassaram em muitos casos o rendimento dos investimentos produtivos; as actividades puramente especulativas cresceram exponencialmente, atraindo mesmo uma boa parte do crédito concedido pelas instituições financeiras. No terreno da economia, a ‘livre concorrência’ deu o lugar à luta oligopolística. A concentração monopolista tornou-se indisfarçável. Foi o tempo em que Joseph Schumpeter teorizou as vantagens da produção em grande escala e Edward Chamberlin e Joan Robinson criaram as teorias da concorrência monopolista e da concorrência imperfeita.

As actividades especulativas favoreceram a concentração económica e as práticas oligopolistas, e estas encorajaram e alimentaram aquelas. Os negócios prosperaram enquanto foi possível manter o crescimento do consumo das famílias a uma taxa idêntica à do aumento da produção, o que aconteceu até finais de 1926. Mas em 1929 a capacidade de produção instalada na economia americana ultrapassava em 20% a capacidade de escoamento das mercadorias produzidas. Ficava a descoberto a instabilidade estrutural da economia capitalista.

Entretanto, no início de 1929 (quando o volume da produção era cerca de 65% superior ao de 1913), a euforia marcava ainda um relatório oficial apresentado nos EUA: ”economicamente, temos um terreno sem limites à nossa frente; há necessidades novas que abrirão incessantemente caminho para outras mais novas ainda, à medida que forem satisfeitas.(…) Parece termos apenas tocado na orla das nossas potencialidades”.137

Com o crash na bolsa de Nova York, na célebre quinta-feira negra (29.X.1929), instala-se a Grande Depressão, que depois se propagaria à Europa capitalista e a todo o mundo capitalista. Os preços baixam, as falências sucedem-se, a produção diminui enormemente138, o desemprego alastra: mais de 30 milhões de desempregados no conjunto dos países capitalistas, dos quais cerca de 6 milhões cabiam à Alemanha.

A crise veio confirmar que a dinâmica das economias capitalistas não é assegurada pelo objectivo da satisfação das necessidades. A lógica do

137 Cfr. M. Dobb, A Evolução…, cit., 393 e 404.138 Tomando como base a produção de 1929 (= 100), são estes os índices da produção de 1932: EUA - 53,8; Alemanha - 53,5; França - 71,6; Grã-Bretanha - 83,5 (cfr. H. Denis, História…, cit., 606). O comércio no mundo capitalista reduziu-se enormemente e a produção global diminuiu cerca de 1/3.

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processo de acumulação do capital é a maximização do lucro. Quando este objectivo não é alcançado, interrompe-se a acumulação, baixa a produção, destrói-se capital existente, deixam de se utilizar os recursos disponíveis, com sacrifício do consumo das grandes massas e da satisfação das necessidades. Em poucos anos, o clima de euforia, mesmo no plano teórico, deu lugar às teses estagnacionistas de Alvin Hansen (1941) e de Joseph Steindl (1952), mais condizentes com o espectro da estagnação permanente que marcou a década de trinta (nos EUA, em plena época do New Deal, a produção baixou em 1937 mais acentuadamente do que em 1930).139

Em Março de 1932, Franklin Roosevelt sucedeu a Herbert C. Hoover na Presidência dos EUA. Por esta altura, como escreveu Averell Harriman, “os bancos estavam fechados e gente de bem vendia maçãs na rua”.140 E Roosevelt parece ter pressentido o perigo da revolução, a menos que os desejos de mudança fossem atendidos dentro dos limites da ordem estabelecida. Truman confirmaria mais tarde esta ideia: “Em 1932 o sistema de livre empresa privada estava próximo do colapso. Havia verdadeiro perigo de que o povo norte-americano adoptasse um outro sistema”.141

A Administração Roosevelt assumiu como objectivo essencial o de evitar o colapso da ordem capitalista, através de uma solução reformista que ficou conhecida por New Deal.

Este novo curso da política americana procurou ir ao encontro das necessidades mais prementes dos trabalhadores, com o objectivo de os furtar à tentação revolucionária e de conseguir o apoio popular para as suas políticas. Neste sentido, o governo atribuiu subsídios aos desempregados e aos idosos e pensões aos veteranos de guerra, concedeu apoios aos agricultores, desvalorizou o dólar, baixou as taxas de juro, apoiou a recuperação e a reestruturação de empresas, instituiu o salário mínimo, reconheceu a liberdade de organização sindical e o direito à contratação

139 Este ‘pessimismo teórico’ assumiu uma outra face, a dos autores que defendem que a depressão não foi ultrapassada graças a medidas de política económica que tenham sido adoptadas com esse objectivo, mas como consequência do rearmamento e da economia de guerra que marcaram o mundo capitalista (com a Alemanha à frente) até ao final da 2ª Guerra Mundial e que se prolongou após o fim da Guerra com a corrida aos armamentos alimentada pela ‘guerra fria’. É este, v.g., o ponto de vista de Baran/Sweezy, Capitalismo Monopolista, cit.. Cfr. Gamble/Walton, El Capitalismo…, cit., 119ss.140 Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 35.141 Citado por GAMBLE/WALTON, El capitalismo…, cit., 280.

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colectiva, lançou grandes programas de obras públicas para combater o desemprego.142

Mas o New Deal procurou também satisfazer os (grandes) empresários, regulando a actividade bancária e o mercado financeiro e fazendo deles parceiros privilegiados do estado no ‘governo da economia’. Na leitura de Arthur Schlesinger, foram estes os princípios orientadores do New-Deal: “a revolução tecnológica tornara inevitável o gigantismo; não era possível continuar a confiar na concorrência para proteger os interesses sociais; as grandes unidades eram uma oportunidade a aproveitar e não um perigo a combater; a fórmula para a estabilidade na nova sociedade deve ser combinação e cooperação sob uma autoridade federal ampliada”.143

Coerentemente, em Junho de 1933, com a promulgação do National Industrial Recovery Act, o estado concede às associações profissionais (ao jeito das soluções corporativas na Europa) o poder de elaborar e fazer aplicar coercivamente regulamentos que podem determinar os limites e as formas de concorrência nos vários sectores.

Ainda em 1933, foi criada a National Recovery Administration, entidade a que foram atribuídos, entre outros, poderes para obrigar a indústria a reorganizar-se, para fixar os preços, para distribuir quotas de produção. A N.R.A. foi uma estrutura de planificação económica centralizada

142 Um dos primeiros grandes empreendimentos da Administração Roosevelt foi a aprovação do Tenessee Valley Authority Act, que viria modificar a estrutura e a mentalidade da administração pública americana. Através de processos impositivos semelhantes aos da planificação imperativa adoptada na URSS, a entidade (Authority) à qual foi confiada a execução do plano de reconversão do Vale do Tenessee (que afectou sete estados americanos e mais de 20 milhões de pessoas) assumiu plenos poderes para desviar o curso do rio (destruindo cidades e deslocando grandes quantidades de pessoas para novas cidades construídas), para reconverter as suas actividades económicas, para decidir sobre a habitação, a educação, as relações de trabalho. 143 Há quem entenda, aliás, que “o New Deal não significou uma brusca ruptura com a tradição americana, mas, simplesmente, uma continuação, num ritmo bastante mais acelerado, de um processo que se iniciara nos alvores do século XIX e afectou tanto os governos republicanos como os democráticos”. Cfr. A. Shonfield, Capitalismo Moderno…, cit., 306, 311 e 447/448, onde podem colher-se mais indicações acerca do significado e alcance do New Deal. Andrew Shonfield ilustra abundantemente a ampla e continuada tradição intervencionista do estado na economia americana, com particular realce na primeira metade do séc. XIX, mas ainda suficientemente importante até finais do séc. XIX, apesar da reacção verificada no terceiro quartel do século, que forçou os governos estaduais a abrir mão da sua participação no capital e na gestão de numerosas empresas, especialmente de serviços de utilidade pública. Esta intervenção pública na economia é mesmo apontada como um dos mais importantes factores da concentração operada nas décadas de 1880 e 1890.

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de tipo moderno, significando a rejeição do capitalismo do velho estilo, que marcou os primeiros tempos da política rooseveltiana.

Com a declaração de inconstitucionalidade e consequente dissolução da National Recovery Administration (1935), desapareceu o organismo de cúpula da intervenção do estado na economia, organizada corporativamente, com base nas associações profissionais autónomas, às quais era confiada o ‘governo’ do respectivo sector de actividade económica. Cortadas assim as ambições mais ‘radicais’ do New-Deal, nem por isso este deixaria de ser um dos momentos mais importantes na evolução do estado capitalista para a sua fase de estado económico, antecipando, de certo modo, a teoria keynesiana sobre as novas funções do estado capitalista.

Aquela decisão do Supremo Tribunal americano, com base na ideia de que a Constituição americana não permitia o socialismo, veio mostrar que não há constituições neutras: afinal, mesmo a mais neutra das constituições, proclamadamente aberta a todos os programas políticos resultantes da alternância democrática, veicula um projecto político que exclui qualquer outro. E veio mostrar também a resistência à (e a incompreensão da necessidade de) mudança do papel do estado capitalista para poder cumprir a sua função de estado de classe. Um banqueiro que viveu o problema por dentro (Averell Harriman) oferece-nos, a este respeito, o seguinte comentário: “Depois de Roosevelt ter salvo os banqueiros, Wall Street deu provas de um ódio absoluto contra ele. O que censuravam fundamentalmente a Roosevelt era ter feito deslocar de Wall Street para Washington o controlo das finanças da nação”.144

1.8 O estado fascista e a solução corporativa.O estado social propunha-se realizar os seus objectivos no respeito

pelas regras da democracia política e pelos princípios democráticos. Mas, em determinadas condições históricas, esta nova forma do estado capitalista revelou-se insuficiente para resolver os graves problemas levantados pela crise económica, social e política que marcou o período particularmente complexo e contraditório entre as duas guerras mundiais do século XX e que ameaçou seriamente a ordem capitalista.

144 Apud J. ARNAULT, A democracia…, cit., 36.

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No quadro de uma crise económica profunda, prolongada e generalizada a todo o mundo capitalista, a debilidade da economia não permitia resposta fácil às reivindicações dos trabalhadores, cujas organizações se tinham fortalecido também pelo ‘crédito moral’ ganho por se terem oposto à Guerra, que souberam caracterizar como guerra inter-imperialista, contrária aos interesses dos trabalhadores, guerra que, pela sua brutalidade e pelas suas dramáticas consequências, ficaria conhecida, na Europa do tempo, como “a guerra que pôs fim às guerras”.

No plano político, as dificuldades agudizavam-se, dada a ‘contaminação’ provocada pela marcha, aparentemente vitoriosa, da Revolução de Outubro (1918 foi, na Europa, o ano de todas as revoluções). Muitos responsáveis recearam que a revolução alastrasse a toda a Europa, nomeadamente aos países industrializados e desenvolvidos. Numa carta que dirigiu (25.3.1919) a Clemenceau e a Woodrow Wilson, Lloyd George advertia: “Toda a Europa está imbuída do espírito da Revolução. Existe um sentimento profundo não só de insatisfação mas também de raiva e de indignação entre os operários. Toda a ordem vigente, nos seus aspectos políticos, sociais e económicos, está a ser posta em causa pela massa da população de um extremo ao outro da Europa”.145

Para cumprir o seu papel, o estado capitalista assumiu então a forma de estado fascista, anti-liberal, anti-democrata e anti-socialista, continuando a apresentar-se como estado social. Em certa medida, era o regresso ao figurino inicial do estado bismarckiano do século XIX, filho da tese segundo a qual só o estado autoritário poderia realizar a reforma social, ainda que à custa da democracia política, tese que justificou o apoio de Lassalle (“socialismo de estado”) e dos “socialistas catedráticos” ao estado prussiano do Chanceler de ferro. E a verdade é que, em algumas das suas versões, o fascismo (o nacional-socialismo) se assumiu abertamente como anti-capitalista, procurando superar o capitalismo e o comunismo com base na cooperação entre as classes em busca do bem comum, o único admissível em sociedades nas quais se aboliram por decreto as classes sociais.146

145 Cfr. revista Vértice, nº 51, Nov-Dez/1992, 46.146 Sobre a caracterização do corporativismo, ver V. MOREIRA, Direito Corporativo, cit.

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O estado fascista foi anti-liberal. O indivíduo dilui-se nos corpos sociais (a família, a corporação, o estado); a concepção orgânica da sociedade substitui a ideia de sociedade como o somatório de indivíduos isolados (concepção atomística); o contratualismo dá lugar ao institucionalismo: o ‘estatuto’ definido e imposto pelo estado ou pela entidade hierarquicamente superior (führerprinzip) substitui a solução contratual.147

No que se refere à economia, esta deixa de ser considerada terreno privado, separado do estado e regulado pelas regras da livre concorrência entre os actores privados. A economia passa a integrar a esfera da política (as corporações foram pensadas como órgãos reguladores da economia e detentores do poder político) e o estado assume o direito (e o dever) de intervir na economia, para a promoção do ‘bem comum’, substituindo a concorrência pela ‘planificação corporativa’.

Mas a direcção corporativa da economia foi entregue ao grande capital, que controlava as estruturas corporativas, sem os constrangimentos resultantes da acção dos sindicatos (proibidos ou ‘corporativizados’) e dos partidos de esquerda (empurrados para a clandestinidade e condenados como ‘inimigos internos’ por imposição do partido único) e com o apoio, sem limites, do aparelho repressivo do estado fascista.

Na sua essência, porém, o estado fascista foi anti-trabalhadores, porque foi anti-democrata e anti-socialista.

Foi anti-socialista, porque congelou todos os direitos económicos e sociais entretanto conquistados pelos trabalhadores e anulou todas as políticas públicas que pudessem acautelar ou garantir estes direitos; porque ‘matou’ as classes por decreto e proibiu a luta de classes, nomeadamente através da proibição dos sindicatos livres e do direito de greve; mas não pôs em causa a propriedade privada nem a liberdade de empresa, embora condicionadas à sua ‘função social’ de promover o ‘bem comum’. Em termos gerais, o nazi-fascismo representou a forma extrema da ditadura do grande

147 Fica, para ilustrar, um pequeno trecho de um discurso de Oliveira Salazar na Assembleia Nacional (25.5.1940): “Quanto a nós, afirmamo-nos, por um lado, anticomunistas e, por outro, antidemocratas e antiliberais, autoritários e intervencionistas (…)” (Discursos, Vol. 2º).Ainda este excerto de uma entrevista de Oliveira Salazar a Le Figaro, 3.9.1950: “Não creio no sufrágio universal, porque o voto individual não tem em conta a diferenciação humana. Não creio na igualdade, mas na hierarquia. Os homens, na minha opinião, devem ser iguais perante a lei, mas considero perigoso atribuir a todos os mesmos direitos políticos” (Discursos, Vol. 6º).

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capital monopolista, que, em busca de “espaço vital” (para a expansão imperialista), deu origem à Segunda Guerra Mundial (o segundo conflito mundial inter-imperialista, com origem nas contradições e conflitos de interesses entre os capitalismos nacionais europeus).

Foi anti-democrata, porque proibiu o sufrágio universal e os partidos políticos, e anulou a liberdade de reunião e de associação, a liberdade de manifestação e a liberdade de expressão; porque, recusando os princípios universalistas do racionalismo que vinha do século XVIII, negou a igualdade entre os homens, exaltou o nacionalismo e o racismo.

É hoje inequívoco que o estado fascista e os partidos nazi-fascistas foram instrumentos do grande capital. O nazismo não foi o resultado da ‘loucura’ de um homem complexado e fanático, foi a solução friamente construída pelo grande capital para, naquelas condições concretas, resolver os problemas da questão social e do governo da economia.

A questão social era um dos temas centrais da doutrina social da igreja católica, desde a Rerum Novarum (1891), actualizada por Pio XII em 1931 (Quadragesimo Anno), em bases essencialmente anti-liberais, anti-individualistas e anti-socialistas. Assente na defesa da propriedade privada como um instituto de direito natural, a doutrina social da igreja defendia que o estado só deveria intervir na economia se os indivíduos e as suas comunidades não pudessem servir correctamente o ‘bem comum’ (princípio da subsidiariedade’); e advogava, por outro lado, o regresso ao espírito das corporações medievais, através da instituição de associações profissionais no seio das quais patrões e trabalhadores deveriam unir-se na prossecução do ‘interesse colectivo’. Estas preocupações e estas propostas tiveram eco no ideário corporativo e caracterizaram a prática dos estados corporativos.

Nos países de economia mais ‘atrasada’ (Itália, Espanha, Portugal e outros países do sul da Europa) ou mais debilitada (Alemanha), era difícil satisfazer as reivindicações dos trabalhadores e dos seus sindicatos. A solução foi silenciá-los e condená-los a prosseguir o ‘bem comum’, de mão dada com os grandes empresários monopolistas.

A necessidade de garantir o governo da economia surgiu com o anúncio dos primeiros sinais da crise do capitalismo, num tempo de capi-talismo concentrado em estruturas empresariais poderosas, que controla-vam boa parte da economia dos países mais desenvolvidos. Aos olhos de muitos, foi-se impondo a necessidade da intervenção do estado no sentido

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de ‘governar’ a economia. A solução do corporativismo e do estado fascista foi a de promover uma estreita aliança entre o poder fascista e os gran-des grupos empresariais aos quais foi entregue a direcção das estruturas corporativas (dotadas de um estatuto de direito público), que, por sua vez, assumiram a tarefa de ‘organizar’ e ‘controlar’ a economia. De certo modo, os grandes grupos económicos já faziam isto mesmo; agora pas-savam a fazê-lo com o aval do estado, proclamando-se que este ‘governo privado da economia’ (esta planificação corporativa da economia) estava ao serviço do bem comum.

2. DA ‘REVOLUÇÃO KEYNESIANA’ À “CONTRA-REVOLUÇÃO MONETARISTA”

2.1 A ‘revolução keynesiana’. O estado-providência.A Grande Depressão veio deitar por terra os mitos liberais e pôr a nú

as limitações da política monetária. Os mais optimistas passaram a defender que a política monetária poderia talvez suster a inflação, mas não poderia parar a depressão.

Keynes mostrou que a Grande Depressão não poderia explicar-se em termos monetários, defendendo que são as forças reais da economia (os planos do governo, dos empresários e dos consumidores), e não a oferta de moeda, os factores determinantes do comportamento do nível dos preços. A crise só podia entender-se como o reflexo de um colapso no investimento privado e/ou de uma situação de escassez de oportunidades de investimento e/ou de um excessivo espírito de economia por parte do público, o que legitimava a sua conclusão de que a política monetária era inadequada para contrariar a depressão.

A rejeição da lei de Say e do mito do equilíbrio espontâneo da economia (com pleno emprego em todos os mercados) constituem pontos fulcrais da obra de Keynes e encerram o núcleo central da crítica keynesiana dos economistas “clássicos”. O professor de Cambridge defendeu que nas economias capitalistas a circulação se faz segundo o modelo marxista D–M–D’: quem tem dinheiro acumulado vai comprar mercadorias, incluindo a força de trabalho assalariada, para produzir mercadorias que se destinam a ser vendidas par obter mais dinheiro. E mostrou que nas economias que funcionam segundo a lógica do lucro e não segundo a lógica da satisfação

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das necessidades “uma situação próxima do pleno emprego é tão rara como efémera”, considerando inerentes a este tipo de economias as situações de equilíbrio com desemprego involuntário.148

Para explicar as situações de desemprego involuntário, que considera o problema mais grave das economias capitalistas, Keynes lança mão do conceito de procura efectiva: o montante das despesas que se espera a comunidade faça – por ter capacidade para as pagar – em consumo e em investimento novo. Se esta procura efectiva não for suficiente para absorver toda a produção a um preço compensador, haverá desemprego de recursos produtivos.

Este desemprego será desemprego involuntário, no sentido de que há pessoas sem emprego desejosas de trabalhar por um salário real inferior ao praticado. Isto significa que, ao contrário do que defendiam os “clássicos”, o nível de emprego não depende do jogo da oferta e da procura no mercado de trabalho, antes é determinado por um factor exterior ao mercado de trabalho, a procura efectiva. E significa também que é o volume do emprego que determina, de modo exclusivo, o nível dos salários reais, e não o contrário.

Sendo instáveis por natureza, as economias capitalistas careciam de ser equilibradas e podiam ser equilibradas, na opinião de Keynes. Para tanto, era necessário assumir a economia como um problema político de curto prazo, como uma das preocupações fundamentais do estado (do estado capitalista).

A necessidade de ultrapassar as situações de insu ficiência da procura efectiva para combater o desemprego exigia, na óptica de Keynes, uma intervenção mais ampla e mais coordenada do estado, apoiada na política

148 Vale a pena referir o trecho da General Theory: “Uma das propriedades essenciais do sistema económico em que vivemos é a de não ser violentamente instável, embora esteja sujeito a flutuações severas no que se refere à produção e ao emprego. Na verdade, este sistema parece apto a permanecer durante um lapso de tempo considerável num estado de actividade inferior ao normal, sem que haja tendência marcada para o relançamento da actividade económica ou para o afundamento completo. Além disso, resulta claramente que o pleno emprego ou mesmo uma situa ção próxima do pleno emprego é tão rara como efémera. As flutuações podem amortecer-se bruscamente, mas parece que elas se amortecem antes de terem adquirido uma amplitude extrema; e a nossa sorte normal consiste numa situação intermédia que não é nem desesperada nem satisfatória”. Cfr. J. Keynes, The General Theory…, cit., 249/250.

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financeira de controlo das receitas e das despesas do estado.149 Esta fiscal policy seria a única capaz de influenciar as forças reais da economia (os planos do estado, dos empresários e dos consumidores), sendo por isso considerada o instrumento fundamental para estabilizar as flutuações da economia, para promover o crescimento económico e para prosseguir os objectivos do pleno emprego, da estabilidade dos preços e do equilíbrio da balança de pagamentos, a par da redistribuição do rendimento em benefício dos mais pobres (i.é, em sentido favorável à propensão ao consumo, e, portanto, ao aumento da procura efectiva), objectivos que os governos passaram a assumir na sequência da ‘revolução keynesiana’.

Defendendo que a compreensão das economias capitalistas não se confina ao estudo do ‘comportamento racional’ de um imaginário homo oeconomicus, antes exige a análise das instituições sociais e políticas enquanto expressão das forças económicas em presença, Keynes sublinhou a importância do estado e a necessidade do alargamento das suas funções para salvar da “completa destruição as instituições económicas actuais” [leia-se: capitalistas]. E como as crises e os seus efeitos perniciosos se fazem sentir a curto prazo, Keynes veio defender que a política económica tem que adoptar uma perspectiva de curto prazo: “in the long run we are all dead”, como escrevia em 1923.

Em 1924, na famosa conferência sobre The End of Laissez-faire,150 Keynes apresentou pela primeira vez este ‘discurso’ contra os princípios “metafísicos” em que se fundamenta o laissez-faire: “Não é verdade que os indivíduos disponham de uma inquestionável ‘liberdade natural’ nas suas actividades económicas. Não existe nenhum ‘contrato’ que confira direitos perpétuos aos que têm ou aos que adquirem. O mundo não é governado a partir de cima de modo que os interesses privados e os interesses sociais sempre coincidam. E não é gerido a partir de baixo de modo que, na prática, eles coincidam. Não é uma dedução correcta dos princípios da economia

149 A política monetária sempre apresentaria fortes limitações: as taxas de juro nunca poderão ser negativas (nem sequer iguais a zero), mas as expectativas de lucros podem ser (fortemente) negativas. Nestas condições, que são as que caracterizam as situações de crise, a política monetária não consegue fazer aumentar as despesas dos particulares (é o que se costuma exprimir através do aforismo “you can lead a horse to water but you can not make it to drink.” De todo o modo, a política monetária não deveria nunca basear-se na óptica quantitativista do controlo da quantidade de moeda, devendo antes centrar-se no controlo das condições de acesso ao crédito e na política de dinheiro barato (a eutanásia do rendista).150 Cfr. J. Keynes, The End…, cit., 291/292.

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que o interesse próprio esclarecida mente entendido opere sempre no interesse público. Nem é ver dade que o interesse próprio seja em regra esclarecidamente entendido; a maior parte das vezes os indivíduos que actuam isoladamente para prosseguir os seus próprios objectivos são demasiado ignorantes ou dema siado fracos, mesmo para atingir estes objectivos. A experiência não mostra que, quando os indivíduos formam uma unidade social, sejam sempre menos esclarecidos do que quando actuam separadamente”.

Em conformidade com esta ‘leitura’, Keynes advogou a necessidade de uma certa coordenação pelo estado do aforro e do investimento de toda a comunidade. Por duas razões fundamentais: em 1º lugar, porque as questões relacionadas com a distribuição do aforro pelos canais nacionais mais produtivos “não devem ser deixadas inteiramente à mercê de juízos privados e dos lucros privados”; em 2º lugar, porque “não se pode sem inconvenientes abandonar à iniciativa privada o cuidado de regular o fluxo corrente do investimento”.

Daí a necessidade de “uma ampla expansão das funções tradicionais do estado”, a necessidade de “uma acção inteligentemente coordenada” para assegurar a utilização mais correcta do aforro nacional, a necessidade da “exis tência de órgãos centrais de direcção” e de uma certa socia lização do investimento, nota fundamental do pensamento key nesiano tal como resulta da General Theory.151

A Grande Depressão arrastara consigo a miséria de milhões de pessoas em todo o mundo e a ameaça de morte que pesou seriamente sobre o capitalismo à escala mundial estimulou Keynes a procurar soluções para o salvar. Estas as motivações das propostas keynesianas que levariam ao estado-providência.

Admirador de Malthus, Keynes tomou dele o conceito de procura efectiva e a ideia de que é possível combater a depressão e o desemprego. No seu tempo, Malthus sugeriu o aumento da procura efectiva, com base no estímulo ao consumo dos ricos: se o luxo dos ricos faz a felicidade dos pobres (ideia largamente aceite nos séculos XVIII e XIX), deixem-se os ricos consumir

151 Cfr. Notas Finais com que encerra a General Theory, em J. Keynes, The General Theory…, cit., 379. Cfr. também A. J. Avelãs Nunes, O Keynesianismo…, cit., 81/82.

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sem limitações (por exemplo, reduzindo os impostos sobre os rendimentos dos proprietários rurais e revogando as leis sumptuárias).

Na era da ‘sociedade de consumo’, perante uma produção em massa, o consumo dos ricos (mesmo que esbanjador) não consegue assegurar o escoamento de toda a produção. O aumento do consumo dos pobres (entre eles os trabalhadores), o consumo de massas é uma necessidade, resultante do próprio desenvolvimento tecnológico proporcionado pela ‘civilização burguesa’.

Um dos méritos de Keynes foi ter compreendido e enquadrado teoricamente esta problemática. Para assegurar mais estabilidade às economias capitalistas, de modo a evitar sobressaltos como o da Grande Depressão, é necessário que os desempregados não percam todo o seu poder de compra (daí o subsídio de desemprego), que os doentes e inválidos recebam algum dinheiro para gastar (subsídios de doença e de invalidez), que os idosos não percam o seu rendimento quando deixam de trabalhar (daí o regime de aposentação, com a correspondente pensão de reforma).152

Na General Theory Keynes identifica os dois “vícios” que considera mais marcantes das economias capitalistas: a possibilidade da existência de desemprego involuntário, e o facto de que a “repartição da riqueza e do rendimento é arbitrária e carece de equidade.” E defende que a correcção destes ‘vícios’ constitui a principal responsabilidade do estado.

Embora reconhecendo que a propriedade privada e o aguilhão do lucro possam ser factores estimulantes do progresso económico, Keynes defende, por um lado, que “a sabedoria e a prudência exigirão sem dúvida aos homens de estado autorizar a prática do jogo sob certas regras e dentro de certos limites”. E defende, por outro lado, que a acentuada desigualdade de rendimentos contraria mais do que favorece o desenvolvimento da riqueza, negando assim uma das principais justificações sociais da grande desigualdade de riqueza e de rendimento: “Podem justificar-se, por razões sociais e psicológicas, desigualdades significativas de riqueza, mas não - sublinha o professor de Cambridge - desigualdades tão marcadas como as que actualmente se verificam”.153

152 Sem querer minimizar a influência da teorização de Keynes, cremos que a opção pelo estado-providência não pode separar-se das lutas dos trabalhadores, no plano sindical e no plano político, e da emulação que exerceu, na generalidade dos países capitalistas (perante a falência da ‘solução’ nazi-fascista), o simples facto da existência da URSS e da comunidade socialista europeia e mundial constituída no após-guerra.153 Cfr. J. Keynes, The General Theory…, cit., 372-374.

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Ficava assim legitimada a intervenção do estado na busca de mais justiça social, de maior igualdade entre as pessoas, os grupos e as classes sociais. A ‘equação keynesiana’ foi uma tentativa de conciliar o progresso social e a eficácia económica. E o discurso keynesiano tornou claro que a conciliação destes dois objectivos (em vez da pro clamação da sua natureza conflituante) é uma necessidade decorrente das estruturas económicas e sociais do capitalismo contemporâneo.

A esta necessidade respondeu a criação do estado-providência, assente na intervenção sistemática do estado na economia, na redistribuição da riqueza e do rendimento, na regulamentação das relações sociais, no reconhecimento de direitos económicos e sociais aos trabalhadores, na implantação de sistemas públicos de segurança social, em nome do princípio da responsabilidade social colectiva.

As bases (keynesianas) do welfare state são, pois, essencialmente, de natureza económica, ligadas à necessidade de reduzir a intensidade e a duração das crises cíclicas próprias do capitalismo, e motivadas pelo objectivo de salvar o próprio capitalismo.

Na verdade, estes novos agenda do estado não pretendiam subverter (nem subverteram) o sistema, nem visavam promover (nem promoveram) nenhuma revolução social (apesar de se falar de “revolução keynesiana”), antes se enquadram na lógica do capitalismo e da sua racionalidade intrínseca.154

Daí que eles não tenham resolvido o problema do ‘subdesenvolvimento’; não tenham impedido o alargamento do fosso entre ‘países desenvolvidos’ e ‘países subdesenvolvidos’; não tenham acabado com as crises cíclicas do capitalismo; não tenham posto cobro à desigualdade na distribuição do rendimento, cujo agravamento leva a que se fale já da necessidade de incluir no elenco dos direitos fundamentais o direito a uma igualdade razoável; não tenham acabado, evidentemente, com o regime do salariato e com a relação de exploração que lhe é inerente.

Exemplo claro da ‘integração’ das políticas keynesianas na lógica do capitalismo são as políticas que se traduzem no financiamento público dos chamados consumos sociais. Com efeito, além de assegurar as despesas

154 Ver A. J. Avelãs Nunes, Do Capitalismo…, cit.

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com o aparelho de poder destinado à defesa da ordem estabelecida (forças armadas, polícias, sistema de justiça, etc.), o estado financia as despesas necessárias ao conveniente desenvolvimento das forças produtivas sociais: despesas com a educação, a saúde e a segurança social, a habitação, etc. Trata-se de despesas que se enquadram na chamada política de redistribuição do rendimento,155 as quais, mesmo quando cobertas com receitas provenientes de impostos cobrados em maior medida às camadas sociais de rendimentos elevados (que em geral coincidem com os rendimentos do capital), acabam por repercutir-se favoravelmente sobre o aparelho produtivo privado.

Não há dúvida de que estas despesas irão aproveitar individualmente, em maior ou menor medida, àquelas pessoas que consomem gratuitamente os respectivos bens ou serviços, e, entre elas, a maioria pertencerá, porventura, a camadas de baixos rendimentos (em geral, trabalhadores assalariados). Esses consumos irão, porém, beneficiar, por outro lado, os donos das empresas (em regra pertencentes ao escalão dos rendimentos elevados).

Desde logo, porque o facto de esses consumos serem pagos com as receitas do estado permite que as classes trabalhadoras vão satisfazendo as exigências históricas da sua subsistência, variáveis de país para país e de época para época, sem ter que aumentar correspondentemente o ‘salário directo’: parte do que os ricos desembolsam a título de imposto poupá-lo-ão nos salários que pagam aos que trabalham nas suas empresas, que, assim, podem ser mais baixos.

Depois, o facto de esses consumos serem gratuitos liberta um montante equivalente de rendimentos, que podem ser utilizados na compra dos bens que as empresas produzem para vender no mercado, aumentando, portanto, a procura solvável, o poder de compra efectivo das populações e, consequentemente, o volume de vendas e os lucros globais das empresas.

Finalmente, as referidas despesas do estado, realizadas no âmbito da política de redistribuição, aproveitam ainda, por outra via, aos proprietários dos meios de produção. Na verdade, essas despesas - apesar de os bens e serviços que elas propiciam serem, para quem os utiliza pessoalmente,

155 Para maiores desenvolvimentos sobre este ponto, ver A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo…, cit., 30-42 e 64-74.

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autênticos bens de consumo - são correntemente designadas como investimentos em homens (investimentos em capital humano), pretendendo significar-se que tais despesas vão propiciar trabalhadores mais sãos, mais fortes, mais cultos, mais sabedores, numa palavra mão-de-obra mais qualificada, capaz de produzir mais, de dar maior ‘rendimento’ aos empregadores.

Sabe-se como o avanço das técnicas exige mão-de-obra cada vez mais instruída e com melhor preparação científica, profissional e cultural. Por isso se proclama que os estados, para promoverem o desenvolvimento das respectivas populações, não podem descurar os sectores do ensino, da saúde, da segurança social, da habitação. Por isso se compreende que tais despesas propiciem vantagens aos donos do capital, que assim acabam por ‘amortizar’ uma parte do que pagam a título de impostos.

E de tal modo essas despesas são rentáveis que, quando a actuação do estado não satisfaz, muitas são as empresas que, embora a custos mais elevados, suportam directamente o encargo de centros próprios de formação profissional, cantinas, centros de saúde e de recreio, bairros para o pessoal, etc.

2.2 A Segunda Guerra Mundial. As nacionalizações.Durante a Segunda Guerra Mundial, as estruturas económicas

tornaram-se alvos militares prioritários para cada um dos beligerantes e a guerra exigiu de todos um esforço enorme no terreno da economia. Neste contexto, o estado teve de ocupar-se directamente não só da distribuição dos alimentos e do controlo da utilização da mão-de-obra e dos recursos disponíveis, mas também da produção, ao menos nos sectores mais directamente ligados às necessidades bélicas. Os autores falam de planificação económica de guerra (comunismo de guerra) não apenas na URSS, mas na generalidade dos países beligerantes.

Dos adversários capitalistas da Alemanha, a Inglaterra foi talvez o país onde se foi mais longe neste caminho: as despesas do estado inglês representaram, no exercício de 1942-1943, cerca de 80% do rendimento nacional. Mesmo nos EUA, a guerra obrigou também o estado a tomar a iniciativa da produção. O receio de que, perante as contingências do conflito, não fosse possível amortizar os capitais que investissem – apesar de serem em geral muito lucrativos os negócios e apesar de haver capitais disponíveis

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–, levava as empresas privadas a não investir em determinados sectores. Embora as fábricas privadas já existentes não estivessem a utilizar toda a capacidade instalada, o governo americano foi, assim, obrigado a construir, com fundos públicos, fábricas que depois viriam a ser exploradas por aqueles que tinham recusado construí-las.

Na Europa capitalista, a nacionalização dos sectores in dustriais mais importantes era uma reivindicação dos partidos operários já antes da Primeira Grande Guerra. A possi bilidade da na cionalização foi inscrita nas Constituições e nas leis de alguns países (v.g., em 1919, na Constituição de Weimar e tam bém na Áustria) e inscrita no pro grama de governo da Frente Popular, na França (embora apenas quanto à indústria de arma mentos). Mas a verdade é que nenhuma nacionalização foi efec tuada na Alemanha ao abrigo da lei de socialização ou da Consti tuição de Wei mar, e muito poucas (e de pouca duração) se regis taram na Áustria; na França, foram nacionalizadas apenas algu mas empresas produtoras de material de guerra e constituíram-se sociedades de economia mista na indústria aeronáutica, fi cando o estado a deter a maioria do capital.

Terminada a Segunda Guerra Mundial e em consequência dela, as nacionalizações e a intervenção (planificada) do estado na economia impunham-se desde logo por razões pragmáticas: acreditava-se que a reconstrução só poderia ser levada a cabo por uma instância central que controlasse o aforro disponível e decidisse sobre a prioridade dos investimentos. Daí a inevitabilidade da nacionalização da banca e dos seguros. Mas também a inevitabilidade da transferência para o estado dos sectores estratégicos (energia, transportes, minas, construção naval, siderurgia, etc.), nos quais era preciso arrancar praticamente do zero.

No mesmo sentido de chamar o estado a uma posição importante no seio da economia actuou também a revolução tecnológica que se operou a partir desta Guerra Mundial, aquela em toda a história em que mais se apostou na supremacia científica e tecnológica como arma para derrotar militarmente o inimigo. Falou-se de Terceira Revolução Industrial 156 para

156 Num relatório do Research Institute of America (Junho de 1964), afirmava-se: “Está em curso uma terceira revolução industrial tão espectacular como as que resultaram da utilização da máquina a vapor e da expansão da electricidade. Tem na origem a libertação da energia nuclear e termonuclear, a transformação electrónica da energia em trabalho e a utilização da cibernética e das calculadoras para

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traduzir a importância do aparecimento da energia nuclear, da automação, da electrónica e da indústria espacial, ‘revolução’ que, de algum modo, pode considerar-se como sequela do conflito e do esforço de investigação e de produção a que ele obrigou. Abriu-se então um período de intensa inovação científica e de rápida aplicação das novas conquistas da ciência, tornada esta uma força produtiva de primeira importância, elemento fundamental do desenvolvimento económico, mais do que a posse de matérias-primas, que a redução no custo dos transportes colocou ao alcance dos vários países. Em última instância, é a valorização do homem como elemento produtivo, enquanto gerador e depositário de conhecimento e de informação.

Mas, por toda a Europa, as nacionalizações foram também uma exigência das forças de esquerda fortalecidas pela sua participação nos movimentos da Resistência. Assim se explica o importante surto de nacionalizações então registado, que esteve na base da constituição de um sector empresarial do estado relativamente significativo. E a verdade é que, nas eleições realizadas no final da Guerra, a esquerda (o PCF, o MRP e a SFIO) obteve na França quase 75% dos votos157 e o Labour Party ganhou no Reino Unido. Por outro lado, sectores significativos da Democracia Cristã defendiam, na Itália e na Alemanha, posições bastante à esquerda, falando-se de “socialismo de responsabilidade cristã”. Em Dezembro de 1945, Gustav Radbruch considerava “evidente que a reconstrução da Alemanha só será possível na base de uma economia organizada nos moldes de uma qualquer forma de socialismo e mediante a socialização de, pelo menos, alguns importantes ramos da sua vida económica, como os bancos, as minas e as indústrias capitais”.158 Estas circunstâncias ajudarão a perceber que, mesmo na zona ocidental da Alemanha, tenham sido promulgadas, em 1946/47, leis que, em matéria de nacionalizações, eram mais avançadas do que as previstas na Constituição de Weimar.

libertar a energia humana das decisões rotineiras. Por volta de 1980 – concluía o relatório –, o mundo industrial será tão diferente do mundo actual como este é diferente do mundo do séc. XIX” (apud A. Berle, “Propriété…, cit., 231).157 PCF – 26,2%; MRP (Movimento Republicano Popular, que agrupava os resistentes cristãos) – 23,9%; SFIO – 23,4%. Nas eleições de 1951, o PCF obteve 27% dos votos, seguido dos gaulistas, com 22%. 158 Artigo no Rhein Neckarzeitung, de 1.12.1945, colhido em Filosofia do Direito, Vol. II, 4ª edição (tradução de L. Cabral de Moncada), Coimbra, 1961.

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As nacionalizações atingi ram, então, um âmbito mais vasto e enquadraram-se em objectivos de transfor mação económica e social. “Findas as hostili dades – escreve Teixeira Ribeiro –, as vozes dos povos vence dores ou libertados con sonaram em exigir a nacionalização das indústrias básicas ou das maiores empresas. De tudo houve um pouco: falou-se em nome da ideologia socialista; reagiu-se contra o colaboracionismo dos grandes industriais; pretendeu subtrair-se a política à pressão dos potentados fi-nanceiros e libertar-se de monopólios a economia; sentiu-se a maravilha das coisas novas...”.159

159 Cfr. A Nova Estrutura…, cit., 7.A problemática das nacionalizações ganharia pro jecção internacional mais relevante a partir do momento em que nos países do chamado Terceiro Mundo se começaram a desenhar movimentos no sentido de tais países chamaram a si a soberania sobre os seus próprios recursos naturais, mesmo que para tanto houvesse que nacionalizar as empre sas estrangeiras que até aí as exploravam. Tal aconteceu nos países recém-chegados à inde pendência, mas também em outros países, constituindo casos pioneiros a nacionalização do petróleo persa pelo governo de Mossadegh (1951) e a nacionalização do Canal do Suez pelo governo de Nasser (1956).Apesar da reacção, por vezes violenta, dos países capi talis tas dominantes, estas ideias foram ganhando terreno e acabaram por ser consagradas em importantes textos da ONU que hoje in tegram o direito internacional, embora não tenham recolhido o apoio das potências capitalistasÉ o caso da Revolução 1.803 da Assembleia Geral da ONU, de 14-12-1962, acerca da Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais, onde se prescreve que “a nacionalização, a expropriação ou a requisição deverão basear-se em razões ou motivos de utilidade pública de segurança ou de in teresse nacional, reconhecidos como prevalecentes sobre os simples interes ses particulares ou privados, tanto nacionais como estrangeiros. Nestes casos, o proprietário receberá uma indemnização adequada, de acordo com as re gras em vigor no estado que adoptar estas medidas no exercício da sua so berania e em conformidade com o direito internacional. Sempre que o pro blema da indemnização dê lugar a controvérsia, deverão esgotar-se os meios de recursos nacionais do estado que toma essas medidas. No entanto, por acordo entre os estados soberanos e outras partes interessadas, o dife rendo poderá ser submetido à arbitragem ou a decisão judicial interna cional”. É também o caso da Carta dos Direitos e Deveres Económicos dos Estados (adoptada pela Assembleia Geral da ONU em 12-12-1974, sem certas limitações cons tantes daquela Re solução de 1962), na qual se afirma que “cada estado tem o direito sobera no e inalienável de escolher o seu sistema económico, bem como os seus sistemas político, social e cultural, de acordo com a vontade do seu povo, sem ingerência, pressão ou ameaça exte rior de qualquer espécie” (art. 1º), acrescentando o nº 1 do art. 2º que “cada estado detém e e xerce livremente uma total e permanente soberania sobre to das as suas riquezas, recursos naturais e actividades económicas, incluindo a sua posse e o direito de as utilizar e de delas dispor”, e especificando a alínea c) do nº 2 que “cada estado tem o direito de nacionalizar, expro priar ou transferir a propriedade de bens estrangeiros, casos em que deverá pagar uma indemnização adequada, tendo em conta as suas leis e regulamentos e todas as circunstâncias que julgue pertinentes. Sempre que a questão da indemni zação dê lugar a diferendo, este será decidido de acordo com a legislação in terna do estado que tomou as medidas de nacionalização e pelos tribunais desse mesmo estado, salvo se todos os estados interessados acordarem livre mente em procurar outros meios pacíficos, na base da igualdade soberana dos estados e em conformi dade com o princípio da livre escolha dos meios”. [O texto destes dois documentos da ONU vem publicado no Boletim do Minis tério da Justiça, nº 245, Abril/1975, 79-82 e 376-393].

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Foi assim em países que vieram a integrar a comuni dade socialista, nomeadamente na Checoslováquia (nacionalização to tal das indústrias de guerra e das minas, bem como das grandes empresas nas restantes indústrias), na Polónia (nacionalização das empresas com mais de 50 operários) e na Jugoslávia (nacionalização de 80% da in dústria, com base no confisco da propriedade dos alemães e dos italianos e dos que tinham colabo rado com o nazi-fas cismo).

Mas também no Reino Unido e na França se registou um importante surto de nacionalizações: o Banco de In glaterra, as minas de carvão, as telecomunicações, o gás e a electricidade, no 1º caso; o Banco de França, o Banco da Argélia e os quatro maiores bancos comerciais, os seguros, o gás e a electricidade, as minas de carvão e os transportes aéreos, no 2º caso.

Naquele primeiro grupo de países, porém, pratica mente só escaparam à nacionalização empresas médias ou pequenas, e os proprietários expropriados nada receberam a título de compen sação pela propriedade de que foram pri vados (em regra por serem acusados de colaboracionismo). Nos países europeus que permaneceram na órbita do capitalismo, porém, con-tinuaram no sector pri vado capitalista muitas empresas de grande dimensão cuja actuação poderia opor-se à prossecução dos ob jectivos de finidos pelo estado para o sector nacionalizado, com o risco de este vir a funcionar como fonte de custos baixos e de lu cros elevados dos grandes monopólios privados, for talecidos com as importantes somas pagas, pelas próprias empresas na-cionalizadas ou pelo estado, a título de indemnização.160

Muitos acreditaram, naquela altura, que “as nacionali zações na França e na In glaterra podem bem servir do primeiro degrau do socia lismo”, por se entender que ”o significado pro fundo das nacionalizações” residia em que “elas traduzirão sem pre esse propósito firme, que os povos caldearam durante a guerra, de impregnar de humanidade a economia” e por se esperar que as circunstâncias conduzissem a Europa para uma “era em que, de um modo ou de outro, a economia vai ser posta efectivamente ao serviço do homem”. (Teixeira Ribeiro)

Exactamente por isso é que, relativamente a estes países, era correcta a alternativa formulada em 1947 por Teixeira Ribeiro: “ou as nacionalizações

160 O caso mais conhecido de nacionalização sem indemnização foi o das Usines Renault, cujos proprietários tinham colaborado ostensivamente com o ocupante alemão.

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prosseguem até eliminar do sector privado todas as grandes empresas, ou as grandes empre sas hão-de ameaçar permanentemente a política do sector públi co”.

Se as perspectivas abertas com as nacionalizações tivessem conduzido à utilização do sector público empresarial claramente ao serviço de uma política global de desenvolvimento económico e social com vista à satisfação das necessidades individuais e colectivas das populações, numa lógica não capitalista, poderia esperar-se que este ‘estado social’ viesse a abrir o caminho para uma economia não capitalista, uma “economia ao serviço do homem”. Mas a orientação adoptada traduziu-se em colocar o sector empresarial do estado ao serviço dos lucros privados, numa solução de capitalismo de estado, em que a propriedade pública se afirmou como uma nova forma de propriedade capitalista (propriedade do estado capitalista).

É claro, hoje, que as nacionalizações verificadas em vários países da Europa Ocidental não constituíram o “primeiro degrau do socialismo”, porque as nacionalizações não prosseguiram “até eliminar do sector privado todas as grandes empresas”, mas, fun damentalmente, porque, nesses países, se manteve inalterada a natureza capitalista do estado, um estado que, nas palavras de François Perroux, “nunca é neutro” (e “não é certamente independente dos grandes interesses: estes assediam-no e ocupam-no mesmo”), antes é a “expressão das classes dominantes”, “largamente de-pendente do capitalismo dos monopólios”.161

Neste quadro institucional, a propriedade estadual dos meios de produção afirmou-se como uma nova (e a mais re cente) forma jurídica da propriedade capitalista, a par da pro priedade individual e da propriedade corpora tiva. Por isso, como salienta Andrew Shonfield, “a empresa particular acabou por considerar o grande mente reforçado sector público menos como um perigoso rival do que como um aliado útil, de facto quase como uma garantia – pois era agora tão vasto e maciço que não poderia mover-se na direcção er rada, por um instante sequer, sem fazer encalhar o barco to do”.162

161 Cfr. L’économie du XXe Siècle, cit., 378 e 382.162 Cfr. Capitalismo Moderno…, cit., 224.Algo de específico aconteceu relativamente às nacionalizações operadas em Portugal na sequência da Revolução de 25 de Abril de 1974. Não porque o sector empresarial do estado fosse, em Portugal, superior ao de outros países, no que toca à sua dimensão, aos sectores abrangidos, à percentagem

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Foi neste pano de fundo que, no início da década de 1950, o capitalismo (europeu) recuperou o fôlego, graças ao clima da guerra fria (e consequente corrida aos armamentos), à acção do Plano Marshall, aos resultados das políticas keynesianas, aos ganhos da política neocolonialista.

2.3 A planificação pública nos países de economia capitalista. Considerações do mesmo tipo podem fazer-se a propósito da

planificação praticada, de um modo ou de outro, nos países capitalistas mais industrializados e com estruturas administrativas suficientemente apetrechadas. Em economias com elevado grau de concentração, “the planning itself is inherent in the industrial system”, como salienta Galbraith.163 Nestas economias, as grandes empresas (as que constituem o “sistema industrial”) “devem substituir o mercado pelo plano”, procurando que “o mercado ceda ante a planificação”, que “consiste em tornar mínimas ou em fazer desaparecer as influências do mercado”. 164

E é claro que esta realidade do capitalismo não escapava aos autores mais lúcidos, empenhados em o salvar. Em meados da década de 1920, Keynes defendia já que “a cura [para os problemas do capitalismo] deve ser procurada, em parte, no controlo deliberado da moeda e do crédito por uma instituição central e, em parte, na compilação e divulgação, em larga escala, de dados relativos à situação dos negócios (...). Estas medidas envolveriam a sociedade no exercício de uma inteligência directiva, através de um apropriado órgão de acção sobre muitas das complexidades intrínsecas dos negócios privados, mas que, entretanto, deixaria a iniciativa e as empresas privadas livres de obstáculos”.165

do investimento que representava no investimento agregado, ao peso no PIB do País, ao volume do emprego, etc. Mas porque a Constituição aprovada pela Assembleia Constituinte em 1976 proclamava que “o desenvolvimento do processo revolucionário impõe, no plano económico, a apropriação colectiva dos principais meios de produção” (art. 10º, nº 2), com o objectivo de “abolir a exploração do homem pelo homem” (art. 9º); e afirmava que o objectivo da República era a “transição para o socialismo mediante a criação de condições para o exercício do poder pelas classes trabalhadoras (art. 2º), com vista à sua “transformação numa sociedade sem classes” (art. 1º). Daí o ataque cerrado às nacionalizações e à reforma agrária e o ataque a uma constituição dirigente que veiculava um tal projecto político.163 Cfr. J. K. Galbraith, O Novo Estado…, cit., 197.164 Cfr. J. K. Galbraith, O Novo Estado…, cit., 24-26.165 Cfr. J. M. Keynes, The End…, cit., 47/48 [Sublinhados nossos].

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Em tempo de acentuado e acelerado progresso técnico, ficou mais clara ainda a imprescindibilidade, para o sistema como um todo, da actividade ‘planificadora’ do estado capitalista. Como sublinha François Perroux, o processo da planificação económica “já não é entendido como uma variável que seria subtraída à decisão dos poderes públicos: estes estimulam a investigação fundamental e aplicada; formam investigadores e trabalhadores qualificados; dedicam-se a prever, por mais imperfeitamente que seja, as grandes vagas de transformações técnicas, a tornar mais curtos os períodos que separam a invenção da aplicação experimental e do uso generalizado na indústria. Tendo em conta a natureza de alguns grandes progressos do séc. XX, na exploração das novas energias, por exemplo, a acção directa dos poderes públicos é insubstituível; ela desdobra-se em subvenções, em participação nos riscos e no financiamento da inovação das empresas privadas e dos seus grupos”.166

Ficou claro, por outro lado, que a actuação do estado vai no sentido de reduzir as dificuldades e incertezas da própria planificação das empresas, reunindo e divulgando informações (“o plano funciona como um redutor de incerteza” – Pierre Massé) e que “o estado garante um preço mínimo com uma margem conveniente para cobrir os custos. E compromete-se a adquirir o que for produzido ou a compensar integralmente a empresa em caso de cancelamento do contrato”. Por isso mesmo – é ainda Galbraith quem o sublinha -, “a economia inteiramente planificada, longe de ser impopular, é carinhosamente encarada por aqueles que melhor a conhecem”.167

Foram as pequenas empresas, mais ou menos condenadas pela lógica da concentração monopolista, as que mais protestaram contra os ‘abusos’ da intervenção do estado, porque esta não se desenvolve ao sabor dos seus interesses. É que o estado intervém a ‘planificar’ uma economia já de certo

166 Cfr. F. PERROUX, “Le Quatrième Plan…, cit., 347ss.167 Cfr. J. K. Galbraith, O Novo Estado…, cit., 31. “Quando Selwyn Lloyd (ministro das Finanças conservador) entrou no Governo, já defendia que uma planificação das despesas a longo prazo era, como outras coisas em que ele acreditava, algo que relevava do senso comum”. Assim se exprime Samuel Brittan (apud E. Mandel, Le Troisième Âge…, cit., 3, 207/208), que explica ter sido na Conferência organizada em Brighton pela Federação das Indústrias Britânicas (Novembro/1960) que se traçaram os planos para relançar a indústria britânica nos cinco anos seguintes. Daí saiu a ideia de que “valia a pena reunir as previsões e os planos com base nos quais as empresas vinham já trabalhando, cada uma por si, para ver se todos eram compatíveis”.

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modo planificada ao nível das grandes empresas (que controlam os sectores mais importantes da actividade económica), e não admira, por isso, que a planificação pública se traduza numa tentativa de tornar coerentes entre si os planos dos grandes grupos monopolistas, limando as dificuldades que possam resultar da concorrência entre eles e conjugando-os, numa base ‘realista’, com as possibilidades de intervenção e de apoio do estado. Fala-se, a este propósito, de economia contratual para significar a existência de um sistema de compromissos colectivos entre os vários grupos monopolistas e entre estes e o estado, assentes em princípios de boa fé idênticos aos que regulam as relações contratuais privadas (do ponto da vista da administração pública, fala-se de administração contratual), algo que vai além do mero diálogo entre o sector privado e o estado, que caracterizaria a economia concertada.168

“Economicamente falando, esta atitude identifica-se com um princípio de segurança [sublinhado nosso].”169 Andrew Shonfield sabe do que fala quando afirma que “não há dúvida de que a actividade da planificação, tal como se pratica na França, reforçou a influência sistemática exercida pelos grandes grupos de interesses (“large-scale business”) sobre a política económica” e que “as grandes sociedades anónimas estão interessadas na planificação como um meio de reduzir as incertezas do investimento e de realizar o desenvolvimento ordenado dos seus mercados.” 170

2.4 A teoria da convergência dos sistemas.No decurso da ‘revolução keynesiana’, o “capitalismo social”

aproximou-se do “socialismo democrático” (ou vice-versa), reduzido este último a um indefinido “socialismo do possível”171, renunciando à socialização dos principais meios de produção. Um momento marcante desta ‘evolução’ foi sem dúvida o Congresso do Partido Social Democrata Alemão (SPD), realizado em Bad Godesberg, em 1959, no qual se aprovou um programa em que não figura qualquer referência a nacionalizações e

168 Cfr. J.-P. COURTHÉOUX, “Problèmes…, cit., 795.169 Ugo Papi, citado por E. Mandel, Traité…, cit., III, 206. 170 Cfr. A. Shonfield, Capitalismo Moderno, cit., 139.171 Título de um livro coordenado por François Mitterrand (Paris, Seuil, 1970).

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se proclama que a propriedade privada merece a protecção da sociedade, desde que não impeça a realização da justiça social. Para quem entenda que o socialismo tem de traduzir-se, essencialmente, na eliminação dos rendimentos não provenientes do trabalho (o que pressupõe a apropriação social dos principais meios de produção), esta opção dos partidos socialistas e socias-democratas europeus “apenas significa que tais partidos desistiram de implantar um sistema económico socialista”.172

A partir desta altura, a aspiração maior destes partidos passou a ser a de ganhar ‘respeitabilidade’, para poderem fazer valer a sua vocação governamental. A sua preocupação mais instante passou a ser a de se afirmar como bons gestores do capitalismo, sem porem em causa o próprio sistema. Em plena guerra fria, os sociais-democratas europeus consideravam-se gravemente ofendidos e reagiam violentamente quando, à sua esquerda, comunistas e outros os acusavam de “gestores leais do capitalismo”. Mas a verdade – hoje dificilmente contestável – é que este (neo)-capitalismo, este capitalismo social, disfarçado ou não de socialismo democrático, e invocando objectivos socialistas, foi apenas o capitalismo possível nas (ou o capitalismo exigido pelas) circunstâncias do tempo: um capitalismo que se limitou, como bem observa Henri Janne, a ”transformar os fins maiores do socialismo em meios de realizar outros fins, i.é, a manutenção do lucro, da iniciativa privada, dos grupos privilegiados”.173

O período de crescimento económico continuado do apogeu das políticas keynesianas e a necessidade de dar testemunho perante os países da comunidade socialista (em 1967, com o lançamento do famoso sputnik, a URSS colocava-se na vanguarda da exploração espacial) facilitaram a ‘generosidade’ do ‘conselho de administração’ da empresa capitalista

172 Cfr. J. J. TEIXEIRA RIBEIRO, Sobre o Socialismo, cit., 57.173 Cfr. H. JANNE, Le Temps de Changement, cit., 218. Reduzidos a meios de fins bem determinados – continua H. Janne – os objectivos socialistas alteram-se inevitavelmente. Crescimento económico, sim, mas para o lucro e pelo lucro. Maior poder de comprar das massas, mas para permitir a realização do lucro. Pleno emprego, mas para assegurar a manutenção do poder de compra global. Segurança social, mas para tornar psicologicamente possível o gasto total dos salários. Democracia parlamentar, porque é condição de arbitragem do estado com vista às negociações indispensáveis a um crescimento ordenado. Democratização dos estudos, para produzir as elevadas qualificações necessárias ao funcionamento do aparelho produtivo, mas limitada até ao ponto de não comprometer as posições privilegiadas dos membros das famílias dos grupos dirigentes”.

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global, permitindo, nos países mais desenvolvidos, o alargamento dos direitos económicos e sociais, o que andou de par com uma presença mais significativa dos partidos dos trabalhadores e dos sindicatos nas esferas do poder. Alguns chegaram a sonhar com um capitalismo post-cíclico, acreditando que o capitalismo tinha esconjurado as suas contradições e tinha afastado o risco do socialismo como sistema económico e social que há-de sair do próprio capitalismo quando, esgotado este, na sequência das suas leis de movimento, chegar o período da “revolução social”.

As transformações operadas nas relações entre a instância política e a economia no quadro do capitalismo monopolista de estado e do estado social foram interpretadas pela chamada teoria da convergência dos sistemas (uma constante do discurso ideológico da social-democracia europeia pelo menos até à emergência da perestroika), apostada em ‘matar’ a alternativa socialista ao capitalismo, com o argumento de que o capitalismo deixara de o ser graças à incorporação de “elementos de socialismo” e o socialismo vinha dando mostras de se aproximar de alguns pontos essenciais do capitalismo. A opção correcta seria a de ‘escolher’ um sistema misto, a meio caminho entre os dois sistemas que aspiravam a governar o mundo ou superador de ambos, acolhendo o melhor de um e outro.174

Como atrás se diz, os referidos ‘elementos socialistas’ (sector empresarial do estado, planificação pública, políticas de redistribuição do rendimento, todos os instrumentos do estado-providência) só aparentemente poderiam negar o capitalismo. Na sua essência, eles integram-se, como não poderia deixar de ser, na lógica do capitalismo, actuando como elementos de ‘racionalização’, como factores de estabilização, como instrumentos de segurança e anestésicos das tensões sociais. Tal como Keynes tinha deixado claro: a ‘revolução keynesiana’ nunca pretendeu ser uma revolução a caminho do socialismo e sempre se afirmou como a política indispensável para salvar o capitalismo do colapso que, nos primeiros anos da década de 1930, parecia iminente.

Mais uma vez, usando agora a cenoura em vez do chicote (o que é, temos de convir, muito mais agradável 175), o que se pretende é negar

174 Sobre a teoria da convergência dos sistemas, cfr. A. J. AVELÃS NUNES, Do Capitalismo, cit.. 175 Entretanto, a violência fascista não desapareceu na Europa. Portugal e Espanha foram ‘condenados’

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a existência das classes sociais e dos conflitos sociais: passou a falar-se de parceiros sociais, que dialogam em conselhos de concertação social, com vista à prossecução dos interesses superiores do país. É o estado social a cumprir a sua função de integração social, de ‘dissolução’ das estruturas de classe da sociedade e de encobrimento da natureza de classe do estado.

3. O TRIUNFO DO NEOLIBERALISMO

3.1 A “contra-revolução monetarista”. Com base nos ensinamentos de Keynes, a Curva de Phillips funcionou,

até final da década de 1960, como um “menu for policy choice”: se se queria combater o desem prego e promover o emprego, bastava aceitar um pouco mais de inflação, ‘aquecendo’ a economia através de políticas expansionistas; se se queria travar a inflação, havia que aceitar um pouco mais de desemprego, ‘arrefecendo’ a economia através de políticas contraccionsitas.

Sobretudo na Europa, esta política assegurou, durante os trinta anos gloriosos (1945-1975), um bom ritmo de cres cimento económico sem oscilações significativas da actividade económica, com baixas taxas de desemprego e taxas aceitáveis de inflação. Alguns chegaram mesmo a falar de “obsolescência dos ciclos económicos.” (Arthur Okun)176

No início da década de 1970, porém, as economias capitalistas geraram um fenómeno novo: situações caracterizadas por um ritmo acentuado de subida dos preços (inflação crescente), a par de (e apesar de) uma taxa de desemprego relativamente elevada e crescente e de taxas decrescentes (por vezes nulas ou mesmo negativas) de crescimento do PNB. Começava a era da estagflação.

Em Agosto de 1971, os EUA romperam unilateralmente o compromisso assumido em Bretton Woods de garan tir a conversão do dólar em ouro à

pelas democracias vitoriosas em 1945 a sofrer mais trinta anos de opressão e de atraso económico e social. E o mesmo (ou pior) aconteceu em vários pontos do chamado Terceiro Mundo. Basta recordar o que se passou com a Guerra da Indochina e depois com a Guerra do Vietnam, com a Guerra da Argélia e as guerras coloniais desencadeadas pelo fascismo português; o que se passou na Guatemala e no ex-Congo belga, com os vários regimes militares da América Latina, o bloqueio contra Cuba, a guerra contra a Nicarágua sandinista, etc. Tudo em nome do império e sob a batuta do império.176 Cfr. J. Keynes, The General Theory…, cit., , 249/250.

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paridade de 35 dólares por onça troy de ouro. Daqui resultou a adopção do sistema de câmbios flutuantes (uma velha reivindicação dos monetaristas), primeiro entre os EUA e os seus parceiros comerciais, e logo de imediato aplicado em todo o mundo. Esta circunstância marcou um ponto de viragem a favor das correntes neoliberais. Pode dizer-se que começa então, na prática, a “ascensão do monetarismo”, a “contra-revolução monetarista”.177

Apanhados de surpresa pelo “paradoxo da estagflação” (J. Stein), os keynesianos ficaram confusos perante este “dilema da estagflação” (Samuel-son). Hayek veio proclamar que a inflação é o caminho para o desemprego178 e, parafraseando o título de um célebre opúsculo de Keynes, defende que a inflação e o desemprego são “the economic consequences of Lord Keynes”179, acusando as políticas de inspiração keynesiana de todos os males do mundo. Paralelamente, uma enorme operação de propaganda assegurou a difusão do “ideological monetarism” como a ideologia do império e do pensamento único, com o apoio dos grandes centros de produção ideológica, de todas as fundações ‘protectoras’ da actividade científica e até dos responsáveis pelo chamado Prémio Nobel da Economia (atribuído a Milton Friedman em 1976, ano do bicentenário da primeira edição de Riqueza das Nações).

Os monetaristas vieram recuperar a velha lei de Say. E vieram relançar também a tese de que o desemprego é sempre desemprego voluntário.180 Desde logo porque, se o mercado de trabalho funcionar sem entraves, quando a oferta de mão-de-obra for superior à sua procura o preço da mão-de-obra (salário) baixará até que os empregadores voltem a considerar rentável contratar mais trabalhadores. Nestas condições, as economias tenderiam para uma determinada taxa natural de desemprego, que traduziria o equilíbrio entre a oferta e a procura de força de trabalho, qualquer que fosse a taxa de inflação.

Os monetaristas sustentam que as variações conjuntu rais do nível de desemprego nas actuais economias capi talistas são explicáveis

177 Cfr. M. Friedman, The Role…, cit. e H. G. Johnson, “The Keynesian…, cit. e Inflation…, cit.178 “The Path to Unemployment” é o título de um conhecido artigo de Hayek (Cfr. F. Hayek, “Inflation…, cit.).179 Ver F. Hayek, Studies…, cit.180 Sobre esta problemática ver, mais desenvolvidamente, A. J. Ave lãs Nunes, O Keynesianismo…, cit., 109ss.

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fundamentalmente através das variações da procura voluntária de emprego (trabalho) e de lazer (não-trabalho) por parte dos trabalhadores e não através das variações da oferta de postos de trabalho por parte das empresas.

Uma noção importante a este respeito é a noção de desemprego temporário (“search unemployment”), noção que pretende designar o conjunto de trabalhadores que deixaram (ou perderam) um emprego e se encontram à procura de outro emprego (“searching for a better job”).

Parte-se do princípio de que os trabalhadores assalariados podem escolher livremente entre aceitar uma redução do seu salário e deixar o seu actual posto de trabalho. Colocados nesta situação, se pensarem que a baixa do salário real não é geral e que podem encontrar trabalho em outras empresas à anterior taxa de salário, escolherão a segunda alternativa e lançam-se numa actividade de procura de emprego. Assim sendo, estas situações não representariam verda deiro desemprego (resultante da deficiente criação de postos de trabalho por parte da economia), antes reflectiriam um maior grau de mobilidade dos trabalhadores.

Nesta óptica, o desemprego é desemprego voluntário mesmo nos casos em que os trabalhadores estão desempregados por razões independentes da sua vontade, uma vez que eles podem determinar livremente o tempo de procura de um novo posto de trabalho, e que a eles cabe decidir entre procurar e não procurar um novo posto de trabalho. Se o não procuram, isso significa, para os monetaristas, que esses trabalhadores preferem o lazer ao rendimento real que poderiam receber se trabalhassem.

É o regresso às concepções pré-keynesianas, que consideravam o desemprego (neste sentido, desemprego voluntário) como a consequência de salários reais demasiado elevados, em virtude de os trabalhadores não aceitarem uma redução dos salários suficiente para que a sua remuneração igualasse a produtividade marginal do seu trabalho e os empregadores tivessem interesse em os contratar. Por outras palavras: quem não tiver emprego poderá sempre encontrar um posto de trabalho, se aceitar um salário mais baixo que o corrente. Se o não aceitar é porque prefere continuar sem emprego, optando por procurar um novo posto de trabalho (voluntary searching for a better job).181

181 Um dos teóricos do desemprego voluntário vai mesmo ao ponto de afirmar que os despedimentos

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Desvalorizado assim o desemprego, ele deixou de constar das preocupações dos responsáveis, até porque, segundo a nova/velha teoria, as economias se encaminhariam espontaneamente para a situação de pleno emprego, desde que se deixassem funcionar livremente os mecanismos do mercado. A inflação surgiu como o inimigo público número um, inimigo perante o qual se deveria actuar como perante o terrorismo: não ceder nem um milímetro. No combate prioritário à inflação (porque ela afecta o sistema de preços e, portanto, o funcionamento do ‘mercado livre’ e a ‘racionalidade’ das economias capitalistas) devem sacrificar-se (e têm-se sacrificado) todos os demais objectivos de política económica, nomeadamente os introduzidos por Keynes para conciliar o capitalismo com a democracia.

Esta política anti-inflacionista opera através da contracção da actividade económica e do aumento do desemprego, esperando os seus defensores que daqui resulte uma redução dos salários reais capaz de assegurar às empresas uma taxa de lucro suficientemente elevada para estimular o aumento dos investimentos privados e o relançamento posterior da economia, com o consequente aumento do volume do emprego. Essencial é que se entregue a economia ao livre jogo das ‘leis do mercado’, se reduza a intervenção do estado na economia e se anulem os “monopólios sindicais.”

são um ‘véu’ cuja aparência é enganadora: os trabalhadores que são despedidos perdem o emprego por, implicitamente, rejeitarem a opção que lhes seria oferecida de continuarem a trabalhar por um salário mais baixo. Antecipando a objecção de que estas situações são muito raras na prática, A. L. Alchian (apud J. R. SHACKLETON, “Economists…, cit., 7) nega que tal acontece porque a experiência ensinou aos empregadores que não teriam êxito quaisquer propostas e negociações com esse objectivo...Se fosse caso para fazer ironia, dir-se-ia que Milton Friedman quase sugere que só estarão empregados os traba lhadores que não se comportarem racionalmente. Na verdade, ele defende que “muitas pessoas podem ter, estando desempregadas, um rendimento em termos reais tão elevado como o que poderiam ter estando empregadas”. Sendo assim, se “o desemprego é uma situação com muitos atractivos”, como Friedman sustentava em 1976, compreender-se-á que os trabalhadores optem por estar desempregados... E compreender-se-á também que o estado não se preocupe em remediar as situações de desemprego (consideradas, nas palavras mordazes de Modigliani, uma espécie de epidemia de “preguiça contagiosa”), antes devendo deixar correr, como insinua o humor azedo de S-C. Kolm, para “respeitar a livre escolha das pessoas” de entrar em período, mais ou menos longo, de “férias voluntárias”, na expressão de Robert Solow (Cfr. F. Modigliani, The Monetarist..., cit., 6; R. Solow, “On Theories…,cit., 7-10 e S. Kolm, Le Libéralisme…, cit., 106). À ideia de que, se não optar por não procurar um novo emprego (ou por não trabalhar), o trabalhador que perde o seu emprego sempre encontrará um posto de trabalho em um qualquer ponto da economia apetece mesmo reagir deste modo: “Na óptica de Lucas, uma pessoa despedida de um emprego pode, presumivelmente, engraxar sapatos numa estação de caminho de ferro ou vender maçãs numa esquina” (A. Blinder, “Keynes, Lucas…, cit., 131).

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Os monetaristas defendem que a inflação é sempre um puro fenómeno monetário, resultante de um aumento da quantidade de moeda em circulação em maior medida do que aquela em que aumenta a produção. Assim, por uma questão de coerência, o monetarismo teórico não culpa directamente os sindicatos pela inflação.182 Mas considera-os responsáveis pelo desemprego, dada a resistência que oferecem à baixa dos salários nominais.

Com efeito, os monetaristas sobrelevam, entre os factores susceptíveis de explicar o aumento da referida taxa natural de desemprego 183 o fortalecimento do que designam por ‘poder monopolista’ dos sindicatos, a legislação que impõe o salário mínimo, a instituição dos subsídios de desemprego e outras contribuições da segurança social em benefício dos desempregados, e/ou a sua aplicação a categorias mais amplas de trabalhadores, o aumento do seu montante e da sua duração.

Há quem responda, com inteira razão, que a existência de subsídios de desemprego e de outras prestações da segurança social, bem como do salário mínimo garantido e de outros direitos do mesmo tipo, explicam apenas uma reduzida percentagem do aumento da taxa natural de desemprego. E há quem lembre, naturalmente, o que história ensina: aquelas medidas constituem, historicamente, uma resposta ex post ao aumento do desemprego para níveis económica, política e socialmente intoleráveis.184

Os neoliberais insistem, porém, nos malefícios resultantes da existência de um sistema público de segurança social.

Invocam, por um lado, que ele contribuiu para tornar mais atractiva a entrada no mercado de trabalho, o que terá provocado um aumento da população trabalhadora enquanto percen tagem da população total. Mas realçam, sobretudo, que a existência desse sistema permite uma diminuição do custo relativo do lazer perante o trabalho, exactamente porque as pessoas

182 Cfr. F. Hayek, “Unions…, cit., 281/282.183 No plano político, a aceitação deste aumento é muito clara: os conselheiros económicos de Truman consideravam natural (= pleno emprego) uma taxa de desemprego entre 1,5 % e 2,5 %; os de Eisenhower apontaram como tal uma taxa de 2,5% a 3,5%; os de Nixon referiram uma taxa entre 4,5 % e 5,5 %; em 1982, a administração Reagan considerou a taxa de 6,5 % como nível de pleno emprego; em 1986, tendia-se para aceitar como tal uma taxa à volta dos 7%. Cfr. Sherman/Evans, ob. cit., 245 e A. Blinder, “Keynes, Lucas…, cit., 123.184 Cfr. J. Tobin, “Stabilization…, cit., 26.

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temporariamente sem emprego continuariam, durante um período de tempo mais ou menos longo, a ver satisfeitas as suas necessidades básicas. Daí que os trabalhadores desempregados possam aguardar mais tempo sem procurar novo posto de trabalho e ser mais exigentes na aceitação de postos de trabalho alternativos.

De acordo com este raciocínio, a maior mobilidade e o grau crescente de exigência dos que procuram emprego é que seriam responsáveis pelo aumento das taxas de desemprego. Também por esta via os neoliberais sustentam que o desemprego é, essencialmente, desemprego voluntário, defendendo que, em mercados de trabalho concorrenciais, o emprego e o desemprego efectivos revelariam as verdadeiras preferências dos trabalhadores entre trabalhar e dedicar o seu tempo a usos alternativos.185

Ao fim e ao cabo, o que os monetaristas pretendem é que, como nos primeiros tempos do industrialismo, o reequilíbrio (com o inerente pleno emprego, acreditam eles) se faça à custa da diminuição dos salários reais.

A verdade, porém, é que o liberalismo económico fun cionou nas condições históricas dos séculos XVIII e XIX, consideravelmente diferentes das actuais. Vejamos: a) a tecnologia industrial era relativamente rudimentar e adaptada a empresas de pequena dimensão; b) a concentração capitalista era inexistente ou pouco relevante; c) os trabalhadores não estavam organizados (ou dispunham de organizações de classe de existência precária, débeis e inexperientes) e não gozavam da totalidade dos direitos civis e políticos (o que lhes dificultava e reduzia o acesso ao aparelho de estado e ao poder político e, consequentemente, a obtenção das regalias económicas e sociais de que hoje desfrutam); d) os governos – imunes às exigências e aos votos populares – podiam, por isso mesmo, ignorar impunemente os sacrifícios (e os sacrificados) das crises cíclicas da economia capitalista, qualquer que fosse a sua duração e intensidade.

É claro que a ‘solução’ de impor aos trabalhadores o ónus de ‘pagar a crise’ só funcionou porque o capitalismo era então, sem disfarces, “um sistema em que os que não podiam trabalhar também não podiam

185 Às teses neoliberais pode bem aplicar-se o que Keynes observou acerca da teoria “clássica”: “muitas pessoas tentam solucionar o problema do desemprego com uma teoria baseada no pressuposto de que não há desemprego.” (cfr. J. Keynes, “The Means to Prosperity”, cit., 350).

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comer”.186 Resta saber se esta ‘solução’ fará sentido em economias que usam tecnologias avançadas. A resposta só pode ser negativa. Com efeito, ninguém admitirá que uma unidade de produção informatizada e utilizando robots e outras técnicas de automação vai deitar fora os equipamentos (caríssimos) compatíveis com estas tecnologias apenas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos. E ninguém admitirá que um empresário responsável vá lançar um novo empreendimento com tecnologia trabalho-intensiva ultrapassada, apenas porque, conjunturalmente, os salários estão baixos.

Parece inegável, por outro lado, que, à medida que os trabalhadores foram conquistando o direito ao sufrágio universal e a generalidade dos direitos civis e políticos (liberdade de expressão, direito de associação, liberdade sindical, etc.), o laissez-faire começou a experimentar dificuldades crescentes, que culminaram com a Grande Depressão dos anos 1929-1933 e o risco de um colapso iminente do pró prio capitalismo. Resta saber, por isso mesmo, se aquela ‘solução’ será compatível com a realidade social e política dos actuais países capitalistas industrializados, em que os trabalhadores assalariados – que por certo não se deixarão facilmente convencer a votar numa política de desemprego em massa – constituem a grande maioria da população e dominam (talvez só numericamente...) os ‘mercados políticos’. Se se respeitarem as regras democráticas (entre as quais o reconhecimento das liberdades sindicais), os governos, dependentes do voto popular, não poderão continuar alheios às vicissitudes do ciclo económico. Não falta quem defenda que uma das marcas do génio de Keynes residiu, precisamente, no reconhecimento da necessidade (e na tentativa) de conciliar, com base no estado providência, a democracia política com a economia de mercado capitalista. O que é preocupante é ver como, na Europa, os governos liderados por partidos socialistas e sociais-democratas vêm renegando mesmo os objectivos e as soluções do ‘revolução keynesiana’ (que nunca pretendeu construir um qualquer socialismo), adoptando a cartilha neoliberal, em vários planos e também neste das políticas de promoção do emprego e de combate ao desemprego, como veremos a propósito do processo de construção europeia.

186 Cfr. Samuelson/Nordhaus, Economia, cit., 312/313.

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3.2 O neoliberalismo e os ataques ao movimento sindical.Ignorando as lições da história, os neoliberais vêm insistindo na

necessidade de expurgar o mercado de trabalho das “imperfeições” que lhe foram sendo introduzidas (o subsídio de desemprego, a garantia do salário mínimo, os direitos decorrentes da existência de um sistema público de segurança social) e na necessidade de imputar aos sindicatos toda a responsabilidade pela criação das condições para o pleno emprego da mão-de-obra. Quer dizer: enquanto houver trabalhadores desempregados, os sindicatos têm de aceitar a redução dos salários nominais.187

Colocada assim a questão, um pequeno passo basta para concluir pela necessidade de domesticar (ou mesmo desmantelar) os “agressivos monopólios sindicais”, que Friedman acusa de provocarem a restrição do número de postos de trabalho, por exigirem salários elevados e resistirem à baixa dos salários nominais, acusação que refina ao proclamar que “as vitórias que os sindicatos fortes conseguem para os seus membros são obtidas acima de tudo à custa dos outros trabalhadores”.188

Outra linha de ‘argumentação’ põe em relevo que “os sindicatos começam a tornar-se incompatíveis com a economia de livre empresa” e que, “se se quer preservar o sistema de livre empresa, será necessário (...) reduzir o poder monopolístico dos sindicatos operários”.189 O fantasma da ‘ingovernabilidade’ (que sempre justifica o apelo a um qualquer leviathan) vem sendo agitado contra os sindicatos.

As ideias de Hayek são elucidativas a este respeito.Por um lado, condena a ideia de que é do interesse público que os

sindicatos sejam restringidos o menos pos sível na prossecução dos seus objectivos, porque foi em nome dessa ideia que os ‘monopólios sindicais’

187 Friedrich Hayek afirma abertamente: “é necessário que a responsabilidade de estabelecer um nível de salários compatível com um nível de emprego elevado e estável seja de novo firmemente colocada onde deve estar: nos sindicatos” (Cfr. F. Hayek, “Inflation…, cit., 298). 188 Cfr. M. e Rose Friedman, Liberdade para escolher, cit., 305-307. Os neoliberais não pro põem, porém, a eliminação dos monopólios empresariais, dos grandes conglomerados transnacionais, que têm reforçado o seu poder (poder de mercado, poder financeiro, poder político) e que ‘governam’ o capitalismo à escala mundial, apesar de todas as legislações ‘anti-monopolistas’. E nenhum deles acreditará que a simples força das suas ideias faça regressar o mundo ao ‘paraíso perdido’ do capitalismo de concorrência (cuja existência, como a de todos os ‘paraísos’, é pura matéria de fé...).189 Cfr. G. Haberler, “Inflación…, cit., 90/91 e “Politica…, cit., 165-173.

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acabaram por adquirir “privilégios únicos, de que não goza qualquer outra associação ou indivíduo”. Aceitar aquela ideia equivaleria a aceitar que, no domínio das relações de trabalho, os fins justificam os meios.

Por outro lado, ele considera “especialmente perigoso” o poder alcançado pelos sindicatos, que se traduziria na “coerção de homens sobre outros homens”, na “coerção de trabalhadores pelos seus companheiros trabalhadores”. Só porque se tem admitido – argumenta Hayek - que eles exerçam um tal poder de coerção “sobre aqueles que querem trabalhar em condições não aprovadas pelos sindicatos” é que estes se tornaram capazes de exercer igualmente uma poderosa coerção sobre os empregadores. “Pessoalmente – conclui –, estou convencido de que o poder dos monopólios sindicais é, juntamente com os modernos métodos de tributação, o principal factor de desencorajamento do investimento privado em equipamento produtivo.”

A aceitação da pretensão dos sindicatos de aumentar os salários tendo em conta os aumentos da produtividade - hoje geralmente considerada socialmente justa e economicamente vantajosa - significa, para Hayek, o reconhecimento do direito de expropriar uma parte do capital das empresas. Vejamo-lo nas suas próprias palavras: “O reconheci mento do direito do trabalhador de uma empresa de participar, enquanto trabalhador, numa quota dos lucros, independentemente de qualquer contribuição que ele tenha feito para o seu capital, faz dele proprietário de uma parte da empresa. Neste sentido, tal exigência é, sem dúvida, pura mente socialista e, o que é mais, não baseada em qualquer teoria socialista do tipo mais sofisticado e racional, mas no mais grosseiro tipo de socialismo, vulgarmente conhecido por sindicalismo.”

À luz do que fica dito, compreende-se que Hayek pergunte “até onde se permitirá que os grupos organizados de trabalhadores industriais utilizem o poder coercivo que adquiriram de forçar no resto do país uma mudança nas instituições fundamentais em que assenta o nosso sistema económico e social.” E, perante uma tal ‘subversão’ das instituições, compreende-se que responda: “Há um momento em que todos os que desejam a preservação do sistema de mercado baseado na livre empresa têm que desejar e apoiar sem ambiguidade uma recusa frontal daquelas exigências [as exigências sindicais], sem vacilar perante as consequências que esta atitude possa ter a curto prazo”.190

190 Cfr. F. Hayek, “Unions…, cit., 281ss.

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Mesmo no Reino Unido, país onde o movimento sindical era tradicionalmente considerado uma instituição quase tão intocável como a realeza, a Srª. Thatcher, enquanto Primeira Ministra, não hesitou em acusar os sindicatos de quererem “destruir o estado”, erigindo-os desse modo em inimigo interno sobre o qual toda a repressão se pretende legitimada. Tal como nos primórdios da revolução industrial, quando os novos assalariados industriais eram apontados e tratados como “bárbaros que ameaçam invadir a cidade”. As consequências, no plano político e sindical, são preocupantes, especialmente depois das políticas da “terceira via” de Tony Blair: o Partido Trabalhista tinha em 1950 um milhão de filiados, não indo hoje além de duzentos mil; desde 1970, o número de trabalhadores sindicalizados no RU reduziu-se a metade (boa parte no sector público).191

3.3 O neoliberalismo: morte ao sistema público de segurança social. O ideário liberal rejeita o objectivo de redução das desigualdades,

em nome de um qualquer ideal de equidade e de justiça: as políticas que buscam realizar a justiça social distributiva são sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual. É o regresso à tese smithiana de que o mecanismo do mercado realiza “a concordância admirável do interesse e da justiça”, tornando indissociáveis a liberdade (económica), a eficiência económica e a equidade social.

Milton Friedman é muito claro: “a este nível, a igualdade entra vivamente em conflito com a liberdade”. E ele escolhe a liberdade, confiando em que esta assegure o maior grau de igualdade possível. Por um lado, porque “uma sociedade que põe a igualdade - no sentido de igualdade de resultados - à frente da liberdade acabará por não ter nem igualdade nem liberdade”. Por outro lado, porque “uma sociedade que põe a liberdade em primeiro lugar acabará por ter, como feliz subproduto, mais liberdade e mais igualdade”.192

Neste domínio da filosofia social, o neoliberalismo exclui da esfera da responsabilidade do estado as questões atinentes à justiça social, negando, por isso, toda a legitimidade das políticas de redistribuição do rendimento,

191 Cfr. R. GOTT, “Inglorioso fim…, cit.. 192 Cfr. M. e Rose Friedman, Liberdade para escolher…, cit., 202.

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orientadas para o objectivo de reduzir as desigualdades de riqueza e de rendimento, na busca de mais equidade, de mais justiça social, de mais igualdade efectiva entre as pessoas.

Considerando os descontos obrigatórios para a segurança social um atentado contra a liberdade individual, os neoliberais sustentam que esse atentado é tanto mais grave e intolerável quanto é certo que, na sua perspectiva, o objectivo que se pretende alcançar ficará melhor acautelado (com menores custos financeiros e menores custos sociais) se cada pessoa (ou cada família) o assumir, como responsabilidade própria, tomando, em conformidade, as medidas adequadas.

Milton Friedman não hesita em classificar o princípio da responsabilidade social colectiva como “uma doutrina essencialmente subversiva.” A seu ver, o “deprimente esbanjamento de recursos financeiros” é ainda o menor de todos os males resultantes dos programas paternalistas de segurança social. “O maior de todos os seus males é o efeito maligno que exercem sobre a estrutura da nossa sociedade. Eles enfraquecem os alicerces da família; reduzem o incentivo para o trabalho, a poupança e a inovação; diminuem a acumulação do capital; e limitam a nossa liberdade. Estes são os principais factores que devem ser julgados”.193

Num outro registo, os monetaristas sustentam que as transferências sociais, reduzindo o custo do ócio (do não-trabalho), são uma autêntica subven ção à preguiça. Utilizando o comen tário de Galbraith perante as opções da Administração Reagan neste domínio, talvez possamos sintetizar

193 Cfr. M. e Rose Friedman, últ. ob. cit., 172-178. Entre “os custos maiores da extensão das governmental welfare activities”, Friedman destaca ainda “o correspondente declínio das actividades privadas de caridade”, que proliferaram no Reino Unido e nos EUA no período áureo do laissez-faire, na segunda metade do século XIX. Esta é uma opinião só compreensível à luz do entendimento segundo o qual “a caridade privada dirigida para ajudar os menos afortunados” é “o mais desejável” de todos os meios para aliviar a pobreza e é “um exemplo do uso correcto da liberdade”. O ilustre laureado com o Prémio Nobel da Economia está a pensar, evidentemente, na liberdade daqueles que ‘fazem’ a caridade. Mas menospreza a liberdade dos que se vêem na necessidade de ‘estender a mão à caridade’. No entanto, estes são, justamente, os que mais se vêem privados da sua dignidade e da sua liberdade como pessoas, o mais elevado dos valores a proteger, segundo o ideário liberal. Ao defender que a única igualdade a que os homens têm direito é “o seu igual direito à liberdade”, o liberalismo friedmaniano não pode garantir a todos os homens a liberdade e a dignidade a que cada um tem direito. É uma proposta de regresso ao passado, que não contém a promessa de nenhum ‘paraíso’, mas contém a ameaça de nos fazer regressar ao ‘inferno perdido’ do apogeu do laissez-faire, do tempo em que, pura e simplesmente, quem não encontrava trabalho não comia e quem não comia morria.

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deste modo a ‘filosofia’ dos neo li berais: “os ricos não trabalham o suficiente porque não ganham o sufi ciente; os pobres trabalham pouco porque ganham demasiado”.

Fiel à sua matriz ideológica, Friedman defende, com toda a clareza, a necessidade de “derrubar definitivamente este estado-providência ao serviço dos ricos e das classes médias”, advogando a ideia de que, em vez dele, “é altura de as democracias ocidentais retomarem os incentivos para produzir, empreender, investir”.194 As vantagens da sua proposta seriam as vantagens do estado liberal: “A extinção do actual sistema de Segurança Social eliminaria os efeitos que presentemente se fazem sentir relativamente à falta de incentivo para a procura de trabalho, o que representaria, igualmente, um maior rendimento nacional corrente. Conduziria à poupança individual e, portanto, à formação de taxas de capital mais elevadas e de uma taxa de crescimento do rendimento mais acelerada. Estimularia o desenvolvimento e a expansão de planos de pensões privados, aumentando deste modo a segurança de muitos trabalhadores”.195

Os neoliberais voltam, assim, as costas à cultura demo crática e igualitária da época contemporânea, caracterizada não só pela afirmação da igualdade civil e política para todos, mas também pela busca da redução das desigualdades entre os indivíduos no plano económico e social, no âmbito de um objectivo mais amplo de libertar a sociedade e os seus membros da necessidade e do risco, objectivo que está na base dos sistemas públicos de segurança social.

3.4 Da neutralidade da política económica à “morte da política económica”. As concepções dos monetaristas e dos neoliberais em geral diferem

das propostas de Keynes também no que concerne ao entendimento da economia e da sociedade e, de modo particular, no que tange ao papel do estado perante a economia e perante a sociedade.

Fiéis ao ideário liberal do laisser-faire, da mão invisível e da lei de Say, os neoliberais dos nossos dias defendem que as economias capitalistas tendem espontaneamente para o equilíbrio de pleno emprego em todos os mercados, pelo que não precisam de ser equilibradas, sendo desnecessárias

194 Entrevista ao Nouvel Observateur de Abril de 1981.195 Cfr. M. e Rose Friedman, Liberdade …, cit., 172-174.

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as políticas anti-cíclicas e sendo desnecessárias e inconsequentes as políticas de combate ao desemprego, que não conseguem eliminá-lo e geram inflação.

No plano da economia, o liberalismo de Milton Fried man assenta na confiança absoluta no mercado livre e no mecanismo dos preços, justificando, também neste aspecto, o retrato que dele fez Galbraith: “é um economista do século XVIII”.

Pois este “economista do século XVIII” defende o seguinte: “O sistema de preços permite que as pessoas cooperem pacificamente numa fase da sua vida enquanto cada uma trata daquilo que lhe interessa. A ideia luminosa de Adam Smith foi reconhecer que os preços que emergiam de transacções voluntárias entre compradores e vendedores - em resumo, um mercado livre – podiam coordenar a actividade de milhões de pessoas, cada uma à procura dos seus próprios interesses”.196

Em coerência com o seu projecto de sociedade, Milton Friedman considera que se deve impedir que o estado controle, sob qualquer forma, a actividade económica, para impedir a concentração de mais poder nas mãos do estado. Ao invés, deve assegurar-se a disseminação da propriedade e da riqueza pelas pessoas, que assim ficarão mais livres e mais aptas para enfrentar o poder político do estado.

Mais papista que o papa, Milton Friedman vai ao ponto de considerar demasiado permissivo o critério de Adam Smith para delimitar a esfera de acção do estado: “Quase não há nenhuma actividade - escreveu ele em 1976 - que não se tenha considerado adequada à intervenção do estado de acordo com os argumentos de Smith. É facil afirmar, como o faz Smith mais de uma vez, que há ‘efeitos externos’ que colocam uma activi dade ou outra na esfera do ‘interesse público’, e não na esfera do ‘interesse de algum indivíduo ou algum número pequeno de indiví duos’. Não há critérios objectivos ampla mente aceites para avaliar tais asserções, para medir a grandeza dos efeitos externos, para identificar os efeitos externos das acções governamentais e compará-los com os efeitos externos que se produziriam se se deixassem as coisas em mãos privadas. A análise superficialmente científica de custo-benefício erigida com base em Smith transformou-se numa formidável Caixa de Pandora”.197

196 Cfr. M. e Rose Friedman, Liberdade…, cit., 42.197 Apud G. Feiwel, “Equilibrium..., cit.,146.

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Mais longe ainda vão os monetaristas da segunda geração (“monetarists mark II”, como lhes chama James Tobin), defensores da chamada teoria das expectativas racionais. Segundo eles, os agentes económicos privados dispõem da mesma informação que está ao alcance dos poderes públicos, e, comportando-se como agentes económicos racionais, antecipam plena e correctamente quaisquer políticas públicas. As políticas económicas sistemáticas deixariam, pois, de ter qualquer efeito sobre a economia, restando aos governos ‘enganar’ os agentes económicos através de medidas de surpresa, incompatíveis com o cientismo e a programação de que se reclama a política económica.198

Desta neutralidade da política económica passa-se, quase sem solução de continuidade, à defesa da morte da política económica, porque esta seria desnecessária, perniciosa e sem sentido. Assim estamos de regresso ao velho mito liberal da separação estado/economia e estado/sociedade: a economia seria coisa exclusiva dos privados (da sociedade civil, da sociedade económica), cabendo ao estado simplesmente garantir a liberdade individual (a liberdade económica, a liberdade de adquirir e de possuir sem entraves), que proporcionaria igualdade de oportunidades para todos.

4. A EUROPA NEOLIBERAL: UMA OBRA DA SOCIAL-DEMOCRACIA

4.1 A social-democracia adopta o ideário neoliberal.A síntese da “contra-revolução monetarista” que deixamos nas páginas

anteriores permitir-nos-á enquadrar e compreender melhor o que passa na Europa, independentemente de estarem no governo os conservadores ou os sociais-democratas. Embora em tons diferentes, todos dizem defender o “modelo social europeu”; todos garantem querer defender o sistema público de segurança social; todos afirmam querer salvar o sistema nacional (público) de saúde; todos prometem desenvolver o sistema público de ensino. Mas todos trabalham em sentido contrário, eventualmente com métodos diferentes. Não raro, os sociais-democratas vão mais longe que os conservadores (e disso se vangloriam!), porque, proclamando-se governos de esquerda, conseguem algum efeito de ‘anestesia’ junto da opinião pública

198 Para maiores desenvolvimentos, cfr. A. J. Avelãs Nunes, O Keynesianismo…, cit., 125ss.

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e obtêm mais facilmente a ‘colaboração’ de alguns sindicatos rendidos à ideologia dominante e aos valores do sistema.

No Reino Unido, sob Tony Blair, foi o Ministro das Finanças Gordon Brown que concretizou definitivamente e deu toda a amplitude a um velho projecto conservador, a Private Finance Initiative (lançado em 1992 pelo Governo de John Major), que abriu às empresas privadas os sectores (o ‘negócio’, a ‘indústria’) da saúde e da educação, até então reservadas ao sector público. Seguiram-se as estradas, as prisões, as tecnologias de informação, o fomento da habitação social, as bibliotecas, a iluminação pública, etc. Este lucrativo negócio, financiado e pago com dinheiros públicos (que garantem taxas de lucro sem risco), foi mesmo além do que os conservadores tinham projectado, a ponto de estes (oportunisticamente, por certo) se terem dissociado dele, alegando que nunca o tinham pensado como um expediente para conseguir financiamentos públicos para negócios privados.199

Em 2006 Tony Blair proclamava no Congresso do Partido Trabalhista que “a eficiência económica e a justiça social” se tinham tornado “parceiras do progresso”, querendo com isto dizer que a justiça social só poderá decorrer do aumento dos lucros, em resultado da eficiência económica. Por isso sempre se opôs às políticas de redistribuição do rendimento (que nunca foram uma ameaça para o capitalismo, antes pelo contrário), com o argumento de que nada deverá estorvar a ‘criação de riqueza’. À luz deste discurso, a invocação da justiça social não é hoje mais do que um adorno de família posto de lado, antiquado e fora de moda, numa sociedade em que as desigualdades sociais não param de aumentar, por obra de Thatcher e do seu seguidor Tony Blair.200

Analisando as recentes eleições presidenciais e legislativas francesas, Ignacio Ramonet conclui que a ala social-liberal do Partido Socialista francês passou a integrar o espaço da direita liberal (com relações de muito boa vizinhança com a extrema direita), fornecendo quatro dos ministros do

199 Cfr. R. GOTT, ob. loc. cit.200 Em 2006 os lucros das cem empresas que integram o Finantial Times Stock Exchange foram 7 vezes superiores aos de 2003. Os 1% mais ricos de entre os britânicos possuem 25% da riqueza nacional, cabendo 6% aos 50% mais pobres. Onze milhões dos 60 milhões de britânicos vivem na pobreza e a UNICEF coloca o RU no último lugar dos 21 países da OCDE no que toca ao bem-estar das crianças. É este o resultado das políticas sociais-democratas inspiradas na doutrina neoliberal dominante. Cfr. R. GOTT, ult. ob. cit.

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Governo Sarkozy. As razões desta derrota vê-as Ramonet no facto de “a esquerda ter perdido a batalha das ideias”. E isto aconteceu “desde que a sua experiência governamental [a experiência do PS francês] a levou a bloquear os salários, a suprimir postos de trabalho, a liquidar as zonas industriais e a privatizar uma parte do sector público”. Dito de outro modo: “desde que [a esquerda socialista] aceitou a missão histórica, contrária à sua essência, de ‘adequar’ a França à globalização, de a ‘modernizar’ à custa dos assalariados e em proveito do capital”.201

A ronda poderia prosseguir pela generalidade dos países da Europa, onde o chamado modelo social europeu vem sendo submetido a duras provas, não apenas pela direita (o que seria natural), mas também pelos partidos socialistas e sociais-democratas, que se intitulam a “esquerda moderna” ou mesmo a “esquerda progressista”, capaz de se adaptar às circunstâncias, ao contrário do conservadorismo imobilista de que acusam comunistas e outras forças de esquerda.

Entre outros aspectos desta verdadeira ‘contra-reforma’, ganhou força a rejeição da presença do estado como operador da vida económica e anulou-se a capacidade de direcção e de planificação da economia do estado-empresário e do estado-prestador-de-serviços. Assistiu-se a uma onda de privatizações de empresas públicas, mesmo na área dos serviços públicos, na qual o estado detinha, em toda a Europa, há mais de dois séculos, um papel decisivo.

Com efeito, tem longa tradição no Velho Continente a assunção pelo estado (administração central, regiões ou autarquias locais) do dever de prestar aos cidadãos um conjunto de serviços que correspondem a necessidades básicas das populações. Para além dos serviços de algum modo decorrentes da soberania (defesa, segurança e justiça), estão em causa os serviços de água e saneamento, de electricidade e gás, os correios, telefones e telecomunicações, os transportes urbanos, os serviços de educação e de saúde e, mais recentemente, os serviços relacionados com a segurança social, a cultura e o desporto.

Em geral, o estado prestava directamente estes serviços (através de estabelecimentos da própria administração pública, de serviços

201 Cfr. I. RAMONET, “Populismo Francês”, cit..

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municipalizados, de empresas públicas, muitas vezes em regime de monopólio), gratuitamente em alguns casos, cobrando em outros casos um preço inferior ao preço de mercado. Este conjunto de serviços ficava, pois, à margem do mercado, por se entender que a satisfação, nestas condições, de determinadas necessidades colectivas básicas é um pressuposto essencial para garantir a todos o próprio exercício dos direitos e liberdades fundamentais. E por se entender que os serviços públicos constituem o “cimento da sociedade” e um factor decisivo do desenvolvimento económico e social, da melhoria das condições de vida das populações, da coesão social e do desenvolvimento regional equilibrado. O objectivo político e social em vista era, claramente, o de garantir a todos, no tocante a esses serviços, aquilo que não pode exigir-se ao mercado, porque o mercado não pode dar: o acesso generalizado, a certeza da continuidade do seu fornecimento, a qualidade do serviço, um preço acessível.

Ora esta visão das coisas tem vindo a ser sacrificada pelos dogmas da ideologia neoliberal dominante vai para três décadas. A evolução (ou involução) tem-se feito no sentido da empresarialização, do enquadramento através das parcerias público-privadas, da abertura desses sectores ao capital privado, da privatização. No âmbito da União Europeia, este movimento acelerou-se a partir do Acto Único Europeu (1986) e da concretização do mercado interno único, inspirado pela teologia da concorrência ao serviço do deus-mercado, em que se proclama o primado da concorrência livre e não falseada.

As razões desta nova orientação são claras. O progresso científico e tecnológico, o welfare state e a melhoria das condições de vida transformaram em necessidades básicas das pessoas o acesso a determinados bens e serviços, como a educação, a saúde, as prestações da segurança social, o acesso domiciliário à energia eléctrica e ao gás, à água e ao saneamento, os correios, as telecomunicações, etc. Estes bens e serviços constituem, pois, mercados que valem milhões, apetitosos para o grande capital financeiro, que joga na privatização destes sectores. As seguradoras querem a saúde e o serviço de pensões; os correios têm-se transformado em prósperas instituições financeiras com sacrifício da sua missão originária; a água e o saneamento apresentam-se como o grande negócio do séc. XXI; o Banco Mundial vem produzindo vasta literatura sobre a “indústria do ensino superior”.

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4.2 As privatizações. O estado regulador. A privatização trouxe consigo a necessidade de garantir a salvaguarda

de determinados interesses públicos e a consequente imposição às empresas privadas que forneçam ‘serviços públicos’ de um conjunto de obrigações de serviço público. Às chamadas entidades reguladoras independentes foi confiada esta missão, por se entender, pensamos nós, que o estado (o estado democrático), declarado, quase sempre por puro preconceito ideológico, incapaz de administrar o sector público da economia, é também considerado incapaz de exercer bem esta função reguladora.202

A ideia de que os sectores assim privatizados deveriam ser objecto de regulação passou a ser defendida por várias das correntes políticas que apoiavam as privatizações e o esvaziamento do papel económico do estado. Uns, por puro oportunismo: a defesa da regulação ajudava a passar mais facilmente junto da opinião pública a política de privatizações. São os que, agora, alcançados os objectivos que pretendiam, clamam contra a regulação, acusando-a de constituir um impecilho ao domínio absoluto do mercado, das suas ‘leis naturais’ e da sua ‘racionalidade’ superior. Outros, porque admitiam que o mercado, deixado a si próprio, não salvaguarda inteiramente o interesse público, não garante os objectivos públicos indispensáveis a um funcionamento ‘organizado’ do capitalismo e à ‘paz social’ capaz de viabilizar o funcionamento do sistema sem o recurso a práticas abertamente anti-democráticas.

202 Poderemos sintetizar a noção de regulação económica invocando a definição que consta do Glossário de economia industrial e de direito da concorrência divulgado pela OCDE em 1993 (versão colhida em J. Vasconcelos, “O estado regulador”, cit.): “Em sentido lato, a regulação económica consiste na imposição de regras emitidas pelos poderes públicos, incluindo sanções, com a finalidade específica de modificar o comportamento dos agentes económicos no sector privado. A regulação é utilizada em domínios muito diversos e recorre a numerosos instrumentos, entre os quais o controlo dos preços, da produção ou da taxa de rentabilidade (lucros, margens ou comissões), a publicação de informações, as normas, os limiares de tomada de participação. Diferentes razões têm sido avançadas a favor da regulação económica. Uma delas é limitar o poder de mercado e aumentar a eficiência ou evitar a duplicação de infra-estruturas de produção em caso de monopólio natural. Outra razão é proteger os consumidores e assegurar um certo nível de qualidade assim como o respeito de certas normas de comportamento (…). A regulação pode também ser adoptada para impedir a concorrência excessiva e proteger os fornecedores de bens e serviços”.O interesse público que se pretende acautelar através da regulação pode consistir na defesa do ambiente, na defesa dos consumidores em geral e, no que toca aos serviços públicos, como já se disse, na garantia da sua qualidade, universalidade, segurança, continuidade e acessibilidade ao conjunto da população (evitando a exclusão por razões económicas, com base num ‘preço razoável’).

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Assim começou a ganhar corpo o conceito de “economia de mercado regulada”, uma das máscaras usadas pelo neoliberalismo na sua luta contra o estado keynesiano e contra a presença do estado na economia. A ideia é afirmar as virtudes da concorrência e o primado da concorrência e esvaziar o estado social, o estado responsável pela prestação de serviços públicos.

Como compensação, oferece-se a regulação do mercado, sempre que se verifiquem determinadas situações.

Em primeiro lugar, sempre que haja falhas de mercado, como nas situações de monopólio natural, em que a concorrência não é praticável por não se justificar mais do que um operador (é o caso, por exemplo, das redes de transporte ferroviário e das redes de transporte e de distribuição de electricidade, de gás, de água potável, de saneamento).

Em segundo lugar, sempre que seja necessário garantir o respeito, por parte das empresas privadas, de certas obrigações de serviço público (como vem acontecendo nos sectores dos transportes públicos, dos correios, dos telefones, das telecomunicações), obrigações que de outro modo não seriam respeitadas por serem incompatíveis com a lógica do lucro.

Finalmente, sempre que seja necessário proteger os consumidores ou tentar evitar ou reduzir os chamados custos sociais do desenvolvimento (o caso mais típico é o dos danos ambientais resultantes de uma economia cujo móbil é o lucro).

Assim surgiu, a partir dos anos 80 do século XX, esta nova feição do estado capitalista, a de estado regulador: a defesa da concorrência é entregue a agências (ou autoridades) de defesa da concorrência; a regulação sectorial dos vários mercados regulados é confiada a agências reguladoras.

Envergonhado com a ‘traição’ que representa, parece não querer abandonar inteiramente a sua veste de estado intervencionista, propondo-se condicionar ou balizar a actuação dos agentes económicos, em nome da necessidade de salvaguardar o interesse público. Mas, na realidade, este estado regulador apresenta-se, fundamentalmente, como estado liberal, visando, em última instância, assegurar o funcionamento de uma economia de mercado em que a concorrência seja livre e não falseada (expressão recorrente nos Tratados da União Europeia).

Com efeito, desde muito cedo o pensamento liberal impôs a ideia de que esta função de regulação, embora justificada pela necessidade de salvaguarda do interesse público, deveria ser prosseguida, não pelo estado

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qua tale, mas por agências (ou autoridades) reguladoras independentes. Estas são uma invenção norte-americana (que remonta ao tempo do New Deal) e que chegou à Europa há cerca de um quarto de século, através do Reino Unido.203

Ao substituirem o estado no exercício desta função reguladora (que dir-se-ia constituir o ‘conteúdo mínimo’ do ‘estado mínimo’), estas agências concretizam uma solução que respeita o dogma liberal da separação entre o estado e a economia: o estado deve manter-se afastado da economia, não deve intervir na economia, deve estar separado dela, porque a economia é a esfera privativa dos privados.204

A entrega das tarefas de regulação económica às autoridades reguladoras independentes representa, pois, a todas as luzes, uma cedência às teses neoliberais do esvaziamento do estado e da morte da política. O estado não só não é bom empresário como é mesmo incapaz de assegurar, por si próprio, a prossecução e a protecção do interesse público. Mesmo em áreas tradicionalmente consideradas ‘fora do mercado’, como é o caso da saúde e da educação.205 O chamado estado regulador – a menina dos olhos dos socialistas ‘modernos’ e ‘progressistas’ da Europa, perfeitamente adaptados aos ventos neoliberais dominantes - revela-se, afinal, um pseudo-estado regulador, um estado que renuncia ao exercício, por si próprio, dessa ‘função reguladora’, inventada para responder à necessidade de, perante a ‘privatização’ do próprio estado, salvaguardar o interesse público.

Dentro desta lógica, as autoridades reguladoras independentes vêm chamando a si parcelas importantes da soberania, pondo em causa, no limite, a sobrevivência do próprio estado de direito democrático, substituído por uma espécie de estado oligárquico-tecnocrático, que, em nome dos méritos dos ‘técnicos especialistas independentes’ que ‘governam’ este

203 Cfr. Moreira/Maçãs, Autoridades Reguladoras…, cit., 17-22. 204 Se se mantiverem algumas empresas públicas, estas só são toleradas se se comportarem como se fossem empresas privadas.205 Em Portugal, duas das últimas agências reguladoras criadas foram a Entidade Reguladora da Saúde e a Agência de Avaliação e Acreditação da Qualidade do Ensino Superior, que se pretende constitua uma entidade reguladora do ensino superior. Curiosamente, dois sectores em que o grande capital privado tem vindo a mostrar interesse crescente. Um dia destes, alguém se lembrará de defender que o financiamento pelo estado dos sistemas públicos de saúde e de ensino é uma forma não tolerável de concorrência desleal com as empresas privadas ‘produtoras’ de serviços de saúde e de ensino.

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tipo de ‘estado’, não é politicamente responsável perante ninguém, embora tome decisões que afectam a vida, o bem-estar e os interesses de milhões de pessoas. A verdade é que as autoridades reguladoras independentes não prestam contas perante nenhuma entidade legitimada democraticamente nem perante o povo soberano. Ora a prestação de contas é a pedra de toque da democracia. Sem ela, temos a morte da política. E temos uma ameaça à democracia, tal como a entendemos.

As personalidades que integram as autoridades reguladoras independentes são escolhidas pelos méritos que lhes são reconhecidos pelos políticos que as escolhem (o que não é garantia de que tais ‘méritos’ sejam reais). E quem garante a independência dessas personalidades? Serão elas independentes dos políticos que as escolhem? Diz-se que a sua independência decorre do respectivo estatuto, que não permite a sua destituição pelo poder político antes do termo do mandato e que não permite ao Executivo dar-lhes ordens ou instruções sobre matérias inerentes à sua esfera de competências.

Mas a política é um complicado jogo de influências que se jogam muitas vezes para lá das aparências e dos estatutos formais. Por isso o juízo político não se confunde com o juízo jurídico, nem a responsabilidade política se confunde com a responsabilidade jurídica (civil ou criminal). Por isso os órgãos que detêm ‘poder político’ e exercem ‘funções políticas’ devem estar sujeitas ao controlo político democrático e à prestação de contas pelas suas decisões.

Apesar de os seus defensores se esforçarem por acentuar a nota de que as agências reguladoras são organismos técnicos, politicamente neutros, que exercem funções iminentemente técnicas, entendemos que elas exercem funções políticas e tomam decisões políticas (com importantes repercussões sociais e políticas). Por isso contestamos a legitimidade deste poder tecnocrático, sustentando que as suas funções deveriam ser confiadas a entidades legitimadas democraticamente e politicamente responsáveis. A política não pode ser substituída pelo mercado, nem o estado democrático pode ser substituído por um qualquer estado tecnocrático, em nome da ideia de que a democracia é a liberdade e a liberdade só se realiza no mercado.

É claro, por outro lado, que as pessoas ‘competentes’ em certo sector trabalham normalmente nas empresas do sector. Não surpreende, por isso, que as personalidades escolhidas pela sua experiência e competência na matéria saiam muitas vezes das empresas reguladas para integrar as entidades

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reguladoras. Bem sabemos que não vão para lá como ‘embaixadores’ (ou representantes) dos seus antigos ‘patrões’ (seria o regresso do corporativismo sem disfarce), mas como especialistas independentes e de elevados méritos. Parece difícil, porém, negar que se correm sérios riscos de os interesses regulados (as poderosas empresas do sector e as suas associações representativas) exercerem uma influência sensível (dominante?) sobre os reguladores. Até porque estes, terminado o mandato e passado algum eventual período de ‘impedimento’, terão, naturalmente, o desejo (ou a ambição) de regressar aos seus antigos locais de trabalho, e certamente a lugares mais destacados e melhor remunerados do que aqueles que ocupavam antes de se transferirem para as entidades reguladoras.

Vários argumentos têm sido invocados para justificar esta regulação “amiga do mercado” e a sua entrega a entidades independentes.206 Mas não faltam razões para legitimar as múltiplas reservas que vêm sendo levantadas a esta concepção da função reguladora e ao seu modo de exercício.

Muito agitada tem sido a questão do défice democrático da solução que entrega a regulação a entidades independentes e dos perigos que ela representa para o estado democrático e para a democracia.

Particularmente acesa tem sido, a este propósito, a discussão à volta da problemática da independência dos bancos centrais, enquanto titulares da política monetária (subtraída à soberania do estado) e autoridades reguladoras independentes do mercado do crédito.207

A discussão acentuou-se na Europa, especialmente a partir da entrada em vigor da União Económica e Monetária (consagrada no Tratado de Maastricht, assinado em 1992), com a criação do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (o mais independente dos bancos centrais em todo o mundo) e a entrada em circulação do euro como moeda única de treze países da União Europeia.208

Em outro plano, não falta quem entenda que, uma vez escancaradas as portas das soluções neoliberais e amputado o estado democrático das

206 Ver Moreira/Maçãs, Autoridades Reguladoras…, cit., 10-12.207 Cfr. A. J. Avelãs Nunes, “Nota…, cit.208 Cfr. A. J. Avelãs Nunes, “A institucionalização…, cit.; “Algumas incidências…, cit., e A Constituição Europeia…, cit.

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competências, dos meios e dos poderes que foi ganhando à medida que as sociedades políticas se foram tornando mais complexas e os interesses e as aspirações dos trabalhadores conquistaram um pequeno espaço no seio do poder político, a regulação da economia (ou a economia de mercado regulada) não significa mais do que a tentativa de tapar o sol com a peneira. A mão invisível do mercado deu o lugar à mão visível dos grandes conglomerados transnacionais. São eles que mandam no mercado.

Num texto de 2003 escreveu Michel Rocard, não com espírito crítico mas em tom ‘beato’ de quem anuncia uma verdade revelada que temos de acatar como uma fatalidade (talvez até como uma benção): “numa economia mundialmente aberta, não há lugar para a regulação nem limites para a violência da concorrência”.209 É uma confissão particularmente embaraçosa para todos os ‘gestores leais do capitalismo’, todos os que se proclamam, em nome do ideário social-democrata, defensores da economia de mercado regulada (ou economia social de mercado), todos os que defendem uma economia de mercado mas dizem rejeitar uma ‘sociedade de mercado’. Num momento de lucidez, este dirigente socialista de topo vem, afinal, reconhecer que, em um mundo governado pelas políticas neoliberais, não há lugar para a regulação e (diríamos nós) não há limites para a violência dos grandes conglomerados internacionais.

Estes ‘gestores’ do capitalismo propõem-se resolver a quadratura do círculo, advogando um ‘sistema misto’, com estruturas e relações de produção capitalistas e uma lógica de distribuição socialista, esquecendo que, desde os fisiocratas, parece ser ponto assente na teoria económica que as estruturas de distribuição do rendimento e da riqueza não podem considerar-se separadas das estruturas e das relações sociais da produção.

São, pois, gestores com preocupações sociais, como todos os gestores ‘modernos’ que se prezam, a condizer com este ‘capitalismo’ saído da “revolução dos gerentes”, gestores cujo poder sem propriedade não está ao serviço do capital (da propriedade sem poder), mas ao serviço do bem comum, como as grandes empresas do “sistema industrial” galbraithiano, que se comportariam como “empresas dotadas de alma”.

Confissões como as de Michel Rocard vêm dizer-nos que, em boa verdade, essas ‘preocupações sociais’ servem apenas para a publicidade,

209 Cfr. Le Monde, 19.6.2003.

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para calar a consciência e ganhar o céu, porque todos esses gestores sabem que não há nada de sério a fazer, no que toca à justiça social, no quadro de políticas públicas que não querem pôr em causa a lógica do sistema. Consciente disto mesmo, Lionel Jospin reconheceu que o projecto socialista se reduz, afinal, a “continuar a fazer evoluir o capitalismo, mas progressivamente”. E Mitterrand, com o objectivo de liquidar politicamente o Primeiro Ministro do seu Governo (Michel Rocard), proclamava, há uns anos atrás, que este se limitava a “privatizar e enriquecer os capitalistas”. Fica a claro a “direitização da esquerda” (Serge Halimi), a “convergência de fundo da esquerda social-liberal com a direita liberal em matéria de política económica e social” (J.-P. Chevènement).210

4.3 A construção europeia: uma vitória do neoliberalismo.Esta social-democracia-gestora-leal-do-capitalismo tem enormes

(decisivas) responsabilidades no complexo processo da integração europeia, que conduziu desde o Tratado de Roma (1957), o Acto Único Europeu (1986) e o Tratado de Maastricht (1991) à ‘Constituição Europeia’ (assinada pelos Chefes de Estado e de Governo em Outubro de 2004). Esta é, sem dúvida, a tentativa mais ousada de ‘constitucionalizar’ o neoliberalismo e de tentar garantir a sua ‘eternidade’ (a tentação do velho “fim da história”).

A generalidade dos autores sublinha que esta ‘Constituição Europeia’ (CE) fica aquém das tábuas de direitos (nomeadamente direitos económicos, sociais e culturais) consagradas nas constituições de alguns estados-membros e mesmo em documentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (10.12.1948), a Carta Social Europeia (Conselho da Europa, 18.10.1961) e a Carta Comunitária dos Direitos Sociais Fundamentais dos Trabalhadores (9.12.1989), a primeira nem sequer referida no texto da ‘Constituição Europeia’ e as duas últimas referidas apenas no Preâmbulo, apesar de todos os estados-membros da UE terem reafirmado o seu respeito por ela em 10.12.1998 (Resolução da ONU comemorativa dos 50 anos da DUDH) e em 8.9.2000 (três meses antes da aprovação, em Nice, da Carta

210 O mesmo Chevènement (várias vezes ministro dos governos socialistas) que caracteriza esta ‘esquerda’ como “uma mescla de ‘realismo económico’, de anticomunismo renovado e de espírito social cristão”. Esta e as outras transcrições que aqui utilizamos são extraídas de S. HALIMI, “A esquerda governamental…, cit., 8/9.

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dos Direitos Fundamentais, que constitui a Parte II da CE), na Declaração do Milénio.211

Saliente-se desde logo o facto de a CE considerar “liberdades fundamentais” não aquelas que em regra integram o núcleo dos direitos, liberdades e garantias, mas antes “a livre circulação de pessoas, serviços, mercadorias e capitais, bem como a liberdade de estabelecimento”. Ora estas são as liberdades do (grande) capital (sobretudo do capital financeiro), não os direitos e as liberdades das pessoas.

Em termos genéricos, esta CE não garante direitos fundamentais dos trabalhadores, como o direito ao trabalho, o direito a um rendimento mínimo, o direito a um subsídio de desemprego, o direito a uma pensão de reforma, o direito à habitação, direitos sociais colectivos reconhecidos em várias constituições modernas (de alguns estados-membros da UE) e na DUDH, talvez por isso ignorada pelos autores da CE, que preferem lembrar a CEDH, que não reconhece estes direitos.

O direito ao trabalho foi substituído pelo “direito de trabalhar”, a “liberdade de procurar emprego” e o “direito de acesso gratuito a um serviço de emprego” (art. II-75º e art. II-89º), inserido no cap. II da CDF (Liberdades), em vez de integrar o cap. I, sob a epígrafe Dignidade. Ora o direito de trabalhar foi uma conquista das revoluções burguesas, uma vez que ele não é mais do que a outra face da liberdade de trabalhar inerente ao estatuto jurídico de homens livres reconhecido aos trabalhadores após a abolição da escravatura e a extinção da servidão pessoal. O direito ao trabalho (com o correlativo dever do estado de garantir a todos os trabalhadores uma existência digna através do trabalho) começou a ser consagrado na Constituição francesa de 1793 e consolidou-se após a revolução de 1848. Esta ‘Constituição Europeia’ reinventou agora o “direito de trabalhar”!212

211 Ver P. LUSSEAU, Constitution…, cit., 10, 67 e 106.212 Especial reparo merece o tratamento de um tema tão delicado como o do trabalho infantil. As Cartas Sociais da Conselho da Europa mostram uma evolução positiva a este respeito, de 1961 para 1996. Na versão adoptada neste último ano, o art. 7º define a idade de quinze anos como a idade mínima para a entrada no mercado de trabalho (e a idade mínima de dezoito anos para certas actividades perigosas ou insalubres) e fixa em quatro semanas o período mínimo de férias pagas para os trabalhadores com menos de dezoito anos.Ora o art. II-92º da CE determina que é proibido o trabalho infantil, mas deixa uma larga margem de indefinição ao limitar-se a dizer que a idade mínima de admissão ao trabalho não pode ser inferior à

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Como novidade – que contraria disposições expressas de algumas constituições de estados-membros -, surge, para nosso espanto, o reconhecimento do direito de greve às entidades patronais ou direito ao lock out (art. II-88º e art. III-210º-6).

O direito a um sistema público e universal de segurança social foi substituído pelo “direito de acesso às prestações de segurança social” (art. II-94º-1). O direito à habitação deu lugar ao “direito a uma ajuda à habitação, destinada a assegurar uma existência condigna” (art. II-94ª-3).

Tudo em consonância com a prática da generalidade dos estados-membros e das instituições da União, que vem apontando no sentido do nivelamento por baixo. Por alguma razão o Tratado de Amesterdão retirou do texto dos Tratados a referência que neles se fazia à harmonização do direito social no sentido do progresso. E nada na CE permite esperar que se queira caminhar no sentido da harmonização no progresso. Antes pelo contrário: o mesmo art. III-209º chama a atenção para a “necessidade de manter a capacidade concorrencial da economia da União” e deixa muito claro que a harmonização dos sistemas sociais decorrerá fundamentalmente do “funcionamento do mercado interno”. Como se todos não conhecêssemos o papel do mercado na caracterização do capitalismo como a “civilização das desigualdades”.

4.4 A ausência de uma política de emprego.Particular atenção merece, a este propósito, a incapacidade da União

de definir e executar uma política concertada de combate ao desemprego, de promoção do pleno emprego e de protecção social aos desempregados.

Nos documentos que antecederam a criação da União Económica e

idade em que cessa a escolaridade obrigatória. O certo é que o art. 17º da Carta Social de 1996 especifica que o ensino obrigatório compreende o ensino primário e o ensino secundário, mas o art. II-74º da CE não define nenhum tempo ou idade para o ensino obrigatório. Parece, pois, que em um estado-membro da UE que fixar nos doze anos a idade máxima para frequentar o ensino obrigatório as crianças poderão começar a trabalhar aos doze anos, com a bênção da ‘constituição europeia’.O menos que se pode dizer é que se utilizou uma técnica legislativa deficiente. O que parece correcto é concluir que se andou para trás. Com efeito, numa versão da CE anterior à versão final, fixava-se a idade de quinze anos como idade mínima de admissão ao trabalho. Só que vários estados-membros da UE (Alemanha, Áustria, Dinamarca, Letónia, Polónia e RU) não se consideram vinculados ao referido art. 7º da Carta Social de 1996. Sacrificaram-se os direitos das crianças mas salvou-se a unanimidade requerida para avançar na construção da Europa...

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Monetária UEM) surgiu uma proposta francesa no sentido da centralização do sistema de seguro de desemprego, de modo a reduzir as consequências de eventuais choques assimétricos. Dada, sobretudo, a oposição britânica, a proposta não foi por diante.

Em Amesterdão (1996/1997) conseguiu-se que o RU aderisse à Carta Social aprovada em Maastricht, ficando ela incorporada nos Tratados constitutivos da UE. Mas Blair e Kohl opuseram-se à criação de um Fundo Europeu de Luta contra o Desemprego, como pretendia a França.

O objectivo do pleno emprego sempre foi ignorado pelos Tratados que vêm dando corpo ao projecto europeu, que só demagogicamente continua associado ao “modelo social europeu”. Pois esta CE só fala de pleno emprego no art. I-3º-3, considerando-o como uma das metas do desenvolvimento sustentável da Europa. No Título dedicado ao emprego, não se fala de pleno emprego nem sequer de desemprego, apesar de ser de 10% a taxa média de desemprego no conjunto da UE.

É a consagração plena das teses monetaristas e neoliberais, que desvalorizam o desemprego, considerando-o desemprego voluntário, que desaparecerá logo que se expurguem os mercados de trabalho das ‘imperfeições’ que os afectam (salário mínimo, subsídio de desemprego, sistemas públicos de segurança social, ‘poder monopolístico’ dos sindicatos).

O próprio Parlamento Europeu vem insistindo há anos (pregando no deserto...) na incapacidade da União para permitir a definição de uma estratégia coordenada em matéria de emprego, a não ser no que toca ao objectivo neoliberal de promover “mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas” (art. 125º do Tratado em vigor).

Além de outras razões, todas decorrentes da orientação neoliberal das instituições comunitárias, os constrangimentos decorrentes da UEM e do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) não permitem esperar outra coisa. É o resultado do fundamentalismo neoliberal inspirador da ‘filosofia’ e da prática das instituições comunitárias, que tendem a desvalorizar as políticas públicas de combate ao desemprego e de promoção do pleno emprego (acusadas de produzir inflação e desemprego), e se aproximam mesmo dos que defendem a neutralidade da política económica e a morte da política económica, por desnecessária, inútil e contraproducente (ao menos nestes domínios, que não naqueles que se traduzem na defesa dos grande capital financeiro, cada vez mais carecido da cumplicidade do estado capitalista).

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Recordaremos, em primeiro lugar, que o objectivo primordial do Banco Central Europeu (BCE), responsável pela política monetária única dos países que adoptaram o euro como moeda é o da estabilidade dos preços, a ele devendo ser sacrificados todos os outros objectivos de política económica, nomeadamente o crescimento económico, a luta contra o desemprego e a promoção do pleno emprego, a redistribuição do rendimento, o desenvolvimento regional equilibrado. Consagrando as propostas monetaristas mais radicais, é com justa razão que os estatutos do BCE já foram considerados “uma regressão política sem precedente histórico”.213

Recordaremos, em segundo lugar, as exigências do PEC (débito público não superior a 3% do PIB; dívida pública não superior a 60% do PIB; inflação não superior, a médio prazo, a cerca de 2% ao ano), que significam um regresso às concepções e políticas pré-keynesianas, que conduzem ao prolongamento e ao aprofundamento das crises, obrigando os trabalhadores a pagar, com a baixa dos salários reais, a solução que se espera resulte da actuação livre das leis do mercado.

Mais uma vez, é o receituário neoliberal a impregnar os tratados estruturantes da União Europeia.

4.5 O ataque aos serviços públicos.Já referimos a longa tradição europeia da prestação pelo estado de

um importante conjunto de serviços públicos, com o objectivo de garantir a qualidade destes serviços essenciais, a sua universalidade, a segurança e a continuidade da sua prestação e o acesso a eles em condições que não excluam da sua fruição os economicamente débeis. Tudo objectivos que o mercado não pode assegurar, nem é razoável esperar que o faça.

Ora esta visão das coisas tem vindo a ser sacrificada pelos dogmas da ideologia neoliberal dominante vai para três décadas,214 num processo que,

213 Por estas e outras razões, J.-P. CHEVÈNEMENT (Pour l’Europe…, cit., 36) não hesita em afirmar que “a constitucionalização dos estatutos do Banco Central Europeu – peso bem as minhas palavras – é algo de verdadeiramente criminoso”.214 O processo de desmantelamento dos serviços públicos terá começado com uma Directiva de 25.7.1980, adoptada pela Comissão Europeia com base no nº 3 do art. 90º do Tratado de Roma, que autoriza a Comissão a endereçar directivas às empresas públicas para que elas se submetessem às regras

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no contexto da Europa comunitária, viu o seu ritmo acelerado a partir de 1986, com a concretização do mercado interno único em que a concorrência é livre e não falseada, objectivo do Acto Único Europeu, “um contrato de casamento entre a Europa e o liberalismo, sem divórcio nem repúdio possíveis”, na qualificação certeira de Georges Sarre.215

Os estudos conhecidos mostram que, em muitos casos, a qualidade dos serviços prestados piorou e o seu preço aumentou, com sacrifício claro da missão de serviço público. Como era de esperar: as empresas privadas buscam o lucro máximo para os seus capitais, não têm vocação para prosseguir o interesse público, não se pode pensar que elas o vão prosseguir, nem se lhes pode pedir (muito menos exigir) que o façam. Em matéria de boas intenções, basta a proclamada função social da propriedade privada...

A CE mantém o princípio (que vem desde o Tratado de Roma/1957) segundo o qual “a Constituição em nada prejudica o regime de propriedade dos estados-membros” (art. III-425º). Mas a verdade é que o regime das ajudas públicas (art. III-167º) e a força hegemónica do dogma da concorrência livre e não falseada (art. I-3º-2 e art. III-177ºss) condenam as empresas públicas a comportar-se como empresas capitalistas, não podendo os estados seus proprietários utilizá-las segundo uma lógica diferente da que decorre das leis do mercado.

Com efeito, as linhas orientadoras definidas pela Comissão Europeia para as ajudas públicas com vista à recuperação ou reestruturação de empresas (públicas ou privadas) em dificuldade só autorizam a intervenção do estado nas situações em que um investidor privado racional actuando numa economia de mercado adoptasse uma idêntica decisão de apoio financeiro. Obriga-se o estado a actuar de acordo com a lógica do capital privado, como se a natureza e os fins do estado fossem os mesmos dos de um

da concorrência. Vários estados-membros questionaram a legalidade desta Directiva, invocando falta de competência da Comissão. Mas o TJCE deu razão à Comissão, abrindo caminho às políticas liberalizantes que se seguiram, mesmo nos países onde os serviços públicos tinham maior tradição. Cfr. G. SARRE, L’Europe…, cit., 114.215 Este ‘casamento’ foi preparado num memorando de 1984 elaborado e editado pela ERT (a Mesa redonda Europeia dos patrões da indústria), no qual se enunciavam os objectivos e a estrutura do mercado interno único. Foi este memorando que serviu de inspiração e ponto de partida para a elaboração do Livro Branco elaborado sob a responsabilidade do socialista Jacques Delors (Presidente da Comissão Europeia), no qual se baseou o Acto Único Europeu. Cfr. G. SARRE, últ. ob. cit., 117/118.

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empresário privado, como se a racionalidade do estado tivesse de ser a do capital privado, como se o estado (mesmo o estado capitalista) não devesse intervir quando o capital privado o não faz ou quando a lógica do mercado (a busca do lucro) provocou uma crise a que é necessário pôr cobro. É o neoliberalismo mais extremo, puro e duro, inspirado no que alguém chamou “teologia da concorrência”.216

Desde o início que o Tratado de Roma previa a possibilidade de os serviços de interesse económico geral (SIEG) gozarem de um regime especial, que os colocasse fora da alçada das regras da concorrência. A verdade, porém, é que este é um dos pontos em que o chamado modelo social europeu tem vindo a ser negado pelo direito comunitário e pela prática das instituições da UE, guiadas pelo ideário neoliberal.

O que diz a ‘Constituição Europeia’ sobre os SIEG?A CE afasta um qualquer direito aos serviços públicos garantidos pelo

estado no respeito pela missão de serviço público. O art. II-96º enuncia tão só o princípio de que “a União reconhece e respeita o acesso a serviços de interesse económico geral tal como previsto nas legislações e práticas nacionais, de acordo com a Constituição, a fim de promover a coesão social e territorial da União”. E a Anotação constante da Acta Final relativa a esta norma não deixa quaisquer dúvidas sobre o sentido dela: “este artigo, que está plenamente de acordo com o art. III-122º da Constituição, não cria qualquer novo direito, limitando-se a estabelecer o princípio de que a União respeita o acesso aos serviços de interesse económico geral previsto pelas disposições nacionais, desde que sejam compatíveis com o direito da União”. [sublinhado nosso. A. N.]

É importante salientar que a expressão serviço público (de ressonâncias perigosas...) desapareceu do vocabulário das instituições e do direito da UE, fenómeno que vai contra um aspecto muito sensível da tradição cultural e social europeia.217 Em sua substituição, inventou-se a designação serviços de interesse económico geral, que nunca foi definida com rigor e que a opinião pública desconhece.

216 A expressão é de G. SARRE, últ. ob. cit., 66.217 O TECE só fala de serviço público a respeito do serviço público de radiodifusão e do serviço de transporte público, em ambos os casos para falar das compensações que o estado pagar pelas servidões de serviço público ou pelo cumprimento de uma missão de serviço público, como se o serviço público se reduzisse a estas ‘servidões’.

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Cientes disto mesmo, os defensores da CE esforçam-se por fazer crer que SIEG “significa serviço público na linguagem europeia”. Mas o Livro Branco publicado pela Comissão Europeia em 2004 é muito enfático ao afirmar que os serviços de interesse económico geral não podem confundir-se com serviços públicos. Os documentos da Comissão deixam claro, além do mais, que os SIEG só podem ser criados pelo estado (em sentido genérico) se a iniciativa privada não fornecer o serviço, exigindo, por outro lado, que os SIEG respeitem as regras da concorrência. A alteração da designação não é, pois, um puro deslize semântico, antes significa a negação do núcleo essencial do conceito de serviço público: é público o que não interessar aos privados, por não dar lucro... 218

Ao contrário do texto do Tratado de Amesterdão (que incluía os SIEG entre “os valores comuns da União” – art.16º), a CE não inclui os SIEG entre os valores da União (art. I-2º), limitando-se a reconhecer, eufemisticamente, que se trata de “serviços a que todos na União atribuem valor” e a reconhecer “o papel que desempenham na promoção da coesão social e territorial” (art. III-122º). E também não inclui a sua prestação entre os objectivos da União (art. I-3º), embora o nº 3 deste artigo defina como objectivo da UE a promoção da coesão económica, social e territorial.

O art. III-122º da CE limita-se a prescrever que a União e os estados-membros “zelam por que esses serviços funcionem com base em princípios e em condições, designadamente económicas e financeiras, que lhes permitam cumprir as suas missões”. E prevê a possibilidade de uma lei europeia “estabelecer esses princípios e condições, sem prejuízo da competência dos Estados-Membros para, na observância da Constituição, prestar, mandar executar e financiar esses serviços”.

A verdade é que, ao abrigo dos Tratados em vigor (Amesterdão e Nice), a Comissão pode perfeitamente propor ao Conselho de Ministros a adopção de uma Directiva neste sentido. Nunca o fez, e o preceito acabado de citar não garante que o venha a fazer. Por outro lado, o próprio art. III-122º remete para os arts. III-166º e III-167º. Ora o nº 2 do art. III-166º é claro na afirmação do primado da concorrência e o nº 1 do art. III-167º insiste na ideia de defender, acima de tudo, a concorrência livre e não falseada.219

218 Cfr. J.-P. CHEVÈNEMENT, Pour l’Europe…, cit., 32/33.219 Art. III-166º: “as empresas encarregadas da gestão de serviços de interesse económico geral ou que

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Compreende-se: a missão de serviço público, que não é um valor nem um objectivo da UE, tem de ceder perante o objectivo maior de “um mercado interno em que a concorrência seja livre e não falseada”.220 Coerentemente, os arts. III-147º e III-148º determinam que leis-quadro europeias procederão à liberalização dos serviços e proclamam que “os Estados-Membros esforçam-se por proceder à liberalização dos serviços para além do que é exigido por força da lei-quadro europeia adoptada em execução do nº1 do artigo III-

tenham a natureza de monopólio fiscal ficam submetidas às disposições da Constituição, designadamente às regras de concorrência, na medida em que a aplicação dessas disposições não constitua obstáculo ao cumprimento, de direito ou de facto, da missão particular que lhes foi confiada”. Art. III-167º-1: “Salvo disposição em contrário da Constituição, são incompatíveis com o mercado interno, na medida em que afectem as trocas comerciais entre os Estados-Membros, os auxílios concedidos pelos Estados-Membros ou provenientes de recursos estatais, independentemente da forma que assumam, que falseiem ou ameacem falsear a concorrência, favorecendo certas empresas ou certas produções”.220 Estes são os valores mais presentes no texto e na ‘filosofia’ do TECE. Basta recordar que, mesmo “em caso de graves perturbações internas que afectem a ordem pública, em caso de guerra ou de tensão internacional grave que constitua ameaça de guerra, ou para fazer face a compromissos assumidos por um Estado para a manutenção da paz e da segurança internacional”, os estados-membros devem proceder a consultas recíprocas “tendo em vista estabelecer de comum acordo as disposições necessárias para evitar que o funcionamento do mercado interno seja afectado pelas medidas que qualquer Estado-Membro possa ser levado a tomar”. Mesmo em caso de guerra, os esforços dos estados-membros devem concentrar-se na defesa do mercado. Para permitir que, depois da catástrofe, o mercado assegure o regresso ao ‘paraíso’? Ou para permitir que todos tenham acesso aos negócios chorudos que as guerras normalmente proporcionam?O art. III-132º vai mais longe na defesa da sacrossanta “concorrência livre e não falseada”: se as medidas adoptadas por qualquer estado-membro nas circunstâncias previstas no art. III-131º (cfr. também art. III-436) “tiverem por efeito falsear as condições de concorrência no mercado interno, a Comissão analisará com o Estado-Membro interessado as condições em que tais medidas podem ser adaptadas às normas estabelecidas pela Constituição”. Mais: o segundo parágrafo do art. III-132º prevê um processo particularmente expedito (em comparação com o procedimento normal previsto nos arts. III-360º e III-361º) para sindicar as medidas tomadas por qualquer estado-membro nas situações-limite referidas no art. III-131º. A Comissão ou qualquer estado-membro podem recorrer directamente ao Tribunal de Justiça se entenderem que outro estado-membro está a fazer utilização abusiva das faculdades previstas no art. III-131º. Mesmo em caso de guerra, o mais importante não parece ser a defesa da Paz, mas a defesa da concorrência livre e não falseada.Perante isto, muitos temem que o exercício dos direitos reconhecidos na CDF venha, segundo esta CE, a subordinar-se às condições e limites decorrentes do respeito pelo funcionamento de “um mercado interno em que a concorrência seja livre e não falseada”. Discutiu-se se a CE deveria ou não fazer referência à matriz religiosa da cultura europeia. Optou-se pela negativa, e bem, a nosso ver. Mas os autores desta ‘Constituição’, que decidiram não fazer referência ao deus dos cristãos, escolheram outro deus omnipresente, que pretendem impor aos cidadãos dos países da UE, um deus que deve ser venerado acima de tudo, um deus que tudo resolve, ainda que à custa de ‘sacrifícios humanos’: o deus-mercado. Um deus cruel, ao menos para quem aceite que, “numa economia mundialmente aberta, não há regulação nem limites para a violência da concorrência”.

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147º, caso a sua situação económica geral e a situação do sector em causa lho permitam”. Repare-se: liberalizar “para além do que é exigido....”.

Os ventos do neoliberalismo dominante, soprados pelos interesses do grande capital financeiro, sopram no sentido de varrer do espaço europeu esta conquista dos povos do Velho Continente relativa aos serviços públicos. Não faltam, pois, razões para que os defensores dos serviços públicos continuem a lutar pela sua salvaguarda, que está longe de ser garantida pela CE, apesar da sua longa e funda tradição na Europa e da sua indiscutível função de “cimento da sociedade”.

4.6 O estado garantidorNos últimos tempos vem-se falando de estado garantidor.221 Deixarei

um brevíssimo apontamento sobre este moderno traje inventado para vestir um estado que se quer cada vez despido das suas funções sociais.

Na minha leitura, a ideia é esta, em síntese: o estado (o estado capitalista) não só não tem que ser (não pode ser) um estado-empresário, nem sequer um estado-prestador-de-serviços, mesmo dos serviços públicos (ou serviços de utilidade pública), actividade, esta última, com longas tradições, ao menos na Europa. O estado tem apenas de garantir que estes serviços sejam prestados e colocados à disposição dos cidadãos (clientes). Que sejam empresas públicas (ou serviços públicos) ou empresas privadas a fazê-lo é, a esta luz, perfeitamente indiferente.

Um pequeno passo basta para, nesta lógica, se isentar o estado garantidor de organizar e manter um serviço público de educação acessível a todos, nomeadamente no que toca ao ensino obrigatório e gratuito, que a todos garanta a liberdade de aprender e de ensinar, sem distinção de credos ou ideologias. O mesmo poderá admitir-se quanto ao serviço nacional de saúde, aos serviços de segurança social (as seguradoras privadas estão desejosas de os prestar), aos serviços prisionais, aos serviços de água e de saneamento básico, até aos serviços de segurança (não há por aí importantes multinacionais que já prestam estes serviços e inclusive serviços militares, em palcos de guerra?).

Se bem vejo, a outra face da proposta do estado garantidor traduz-se na ideia de que, deixando de prestar ele próprio os serviços de utilidade

221 Cfr. J. J. Gomes CANOTILHO, ob. cit.

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pública, o estado capitalista não poderá alhear-se, porém, da sua efectiva produção, o que significa que tem o dever de garantir ao capital privado as condições para que ele possa produzir esses serviços (o mesmo é que dizer: possa desenvolver o seu negócio) sem solução de continuidade, i.é, à margem das incertezas da vida económica, que podem conduzir à falência das empresas. Para evitar que tal aconteça, o estado capitalista deve garantir às empresas privadas que produzem tais serviços lucros certos e bastantes para que elas possam viver sem sobressaltos.

Se esta ideia for avante, ela será uma das mais brilhantes invenções do capitalismo, o capitalismo dos verdadeiros ‘negócios da China’, já praticados às claras em negócios como os da construção de hospitais e de auto-estradas, da produção de energias alternativas e em todos os negócios cobertos pelo manto diáfano das parcerias público-privadas, que se vêm traduzindo na privatização dos ganhos e na socialização das perdas. O que está conforme à sua natureza…

4.7 A ‘asiatização’ da Europa. As questões relacionadas com a política social estão, sem dúvida,

entre aquelas cuja abordagem justifica crítica mais aberta, dadas as implicações que têm no plano dos direitos económicos e sociais e, por isso mesmo, no plano das condições efectivas para a concretização dos próprios direitos, liberdades e garantias. A indivisibilidade dos direitos fundamentais não é apenas um puro conceito teórico, é um princípio basilar da teoria dos direitos humanos.

Do art. III-210º resulta que, nesta matéria, as instituições da União (nomeadamente o Conselho) deliberam sempre por unanimidade, ficando excluída “qualquer harmonização das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros” (no mesmo sentido, quanto ao emprego, o art. III-207º).

A supra-nacionalização das instituições comunitárias serve apenas para garantir a realização dos direitos e das liberdades do capital, mas não serve para garantir os direitos dos trabalhadores. A CE parece conformar-se com a ideia (tão repetida por todos os difusores da ideologia dominante) segundo a qual, para competir com as potências asiáticas emergentes (China e Índia, v.g.), os trabalhadores europeus não podem continuar a receber

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salários tão elevados e muito menos podem beneficiar dos direitos que foram conquistando ao longo de anos de luta e que o estado-providência veio consagrar. E não há dúvida de que o art. III-203º acolhe as práticas correntes nos últimos anos no sentido da flexibilização e da desregulamentação das relações laborais, ao promover o empenho da União e dos estados-membros na estruturação de “mercados de trabalho que reajam rapidamente às mudanças económicas”.

A Carta dos Direitos Fundamentais não cria nenhum direito social europeu. A asiatização da Europa comunitária e não o reforço do chamado modelo social europeu parece ser o futuro, futuro-passado que obrigaria a um recuo de duzentos anos do relógio da história. Não é exagero afirmar-se que “a Europa social é o parente pobre deste modo de construção europeia”.222 Michel Rocard (atrás citado) reconhecia isto mesmo, com grande frieza, pouco depois da queda do Muro de Berlim (9.11.1989): “As regras do jogo do capitalismo internacional sancionam qualquer política social audaciosa. Para fazer a Europa, é preciso assumir as regras deste jogo cruel”. É a aceitação fatalista da mercadização da economia e da vida, “feita pela Europa, graças à Europa e por causa da Europa”, como reconhece Pascal Lamy, outro alto dirigente socialista, Director Geral da OMC.223 É a aceitação do determinismo que se proclama inerente à revolução científica e tecnológica que subjaz à globalização neoliberal, esquecendo que esta não é uma fatalidade sem alternativa, é uma política inspirada por uma determinada visão do mundo.

4.8 O mercado único europeu: a ampliação do “exército de reserva de mão-de-obra”.Uma comunidade identitária no plano político tem de caracterizar-se

por um elevado grau de solidariedade. E a UE está longe de corresponder a esta exigência fundamental.

Este défice de solidariedade revela-se, entre outros, em domínios como estes: incapacidade de levar a sério o objectivo da coesão económica

222 Cfr. LECHEVALIER/WASSERMAN, La Constitution…, cit., 12. Há quem seja mais radical e defenda que a destruição do modelo social europeu (a “americanização da Europa”) equivale à “terceiro-mundização lenta dos povos da Europa”. Assim, Didier Motchane, apud G. SARRE, L’Europe…, cit., 127. 223 Citações colhidas em S. HALIMI, “As promessas…, cit., 3.

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e social, ao qual a UE afecta apenas cerca de 1/3 das verbas do seu orçamento (percentagem que ganha significado se lembrarmos que a Política Agrícola Comum absorve 47%); incapacidade de avançar para um mínimo de harmonização em matéria de políticas sociais (neste âmbito, as deliberações continuam a ser tomadas por unanimidade); incapacidade de estabelecer um mínimo de harmonização fiscal, nomeadamente no que toca ao imposto sobre as sociedades e à tributação da poupança e das mais-valias; incapacidade de pôr de pé uma política concertada de combate ao desemprego, de promoção do pleno emprego e de protecção social aos desempregados; incapacidade de dotar a União de um orçamento capaz de efeitos redistributivos relevantes e de alimentar políticas para enfrentar os efeitos dos chamados choques externos ou choques assimétricos.

Entretanto, apesar do alargamento a doze países com rendimento per capita muito abaixo da média da UE com quinze membros, os maiores contribuintes líquidos para o orçamento da União (a Holanda, a Suécia e a Alemanha) pretendem ver reduzida a sua contribuição financeira para a UE. Compreende-se: em tempo de crise, cada um trata de si. Mas então temos de concluir que a solidariedade própria de uma comunidade política identitária não existe. E a verdade é esta: mesmo para os habitantes dos países com maior contribuição líquida, o orçamento da UE absorve um montante à roda de 150 euros/habitante/ano, um valor mensal (12,5 euros) que é de certeza (muito) inferior ao montante da quota mensal paga pelos sócios da generalidade dos clubes de futebol das ligas principais dos países europeus. Como se vê, vale muito pouco a solidariedade europeia.

Após o alargamento aos países da Europa de leste, ninguém ignora que as populações desses países já carregam pesados fardos: encargos fiscais superiores (nomeadamente por força do IVA); diminuição das prestações sociais (imposta pela mudança de sistema económico-social e pelos critérios restritivos no que concerne ao défice público); aumento dos preços dos bens essenciais (antes subsidiados), como é o caso das tarifas da electricidade, rendas de casa, transportes, serviços públicos em geral; enorme aumento do desemprego, como consequência do desmantelamento das estruturas produtivas anteriores e da ‘flexibilização’ das leis do trabalho.

Mas os países dominantes no seio da UE estão a ‘ignorar’ tudo isto, parecendo mais apostados em maximizar para as suas empresas os benefícios

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de um grande mercado aberto à concorrência do que no cumprimento da solidariedade devida aos novos países do alargamento (solidariedade que nunca falta no discurso político...), países que continuam, em geral, a registar níveis de produção inferiores aos de 1989.

Os países da Europa central e de leste recém-chegados à UE ficam, assim, ‘condenados’ a recorrer a formas próximas do dumping salarial, do dumping social e do dumping fiscal como armas de concorrência, uma concorrência desigual, uma concorrência não livre e falseada, ao serviço dos interesses do grande capital, que joga com a deslocalização de empresas para tentar obter em outros países idênticas vantagens salariais e fiscais (áreas onde a CE afasta qualquer ideia de harmonização). Para poderem ser competitivos (i.é, para poderem assegurar gordíssimas taxas de lucro aos capitais estrangeiros que querem atrair), os governos desses países vão por certo condenar os seus trabalhadores a manter (ou a diminuir) os baixos níveis salariais e os baixos níveis de protecção social que hoje auferem e vão aceitar cobrar menos receitas (por abdicarem da cobrança dos impostos sobre os rendimentos do capital), ficando cada vez mais incapacitados, por falta de recursos financeiros, para levar por diante políticas de desenvolvimento económico e social absolutamente indispensáveis.

O objectivo último é o de tentar impor, em todo o espaço comunitário, o nivelamento por baixo, ao nível dos salários, dos direitos dos trabalhadores e das prestações sociais que estes foram conquistando, a duras penas, ao longo dos duzentos anos da história do capitalismo.

A esta luz, ganha sentido a tese dos que não entendem este alargamento, tão mal preparado, feito precipitadamente, ainda por cima em tempo de acentuada crise económica e social, num mundo unipolar, com a Europa cada vez mais desigual, confusa quanto aos contornos do próprio alargamento (e, portanto, dos seus próprios limites), profundamente dividida em matérias de política externa, mesmo quanto à questão-limite da guerra e da paz. O tempo e o modo deste alargamento talvez só se consigam explicar porque ele significou, verdadeiramente, a entrada no mercado único das grandes empresas multinacionais europeias (sobretudo alemãs), que entretanto se foram instalando nos países cuja adesão se preparava, dominando uma parte substancial das suas economias. Quer dizer: este alargamento fez-se para integrar esses interesses económicos no “grande

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(super)- mercado europeu pacificado”224, não para integrar os povos dos países em causa num espaço solidário, empenhado em ajudá-los a melhorar os seus níveis de vida e não apenas em aproveitar-se dos seus recursos naturais e, sobretudo, da sua mão-de-obra qualificada, barata e pouco reivindicativa, transformada em verdadeiro exército de reserva.

4.9 A Europa do capital.É tempo de concluir, que a viagem já vai longa. Durante o percurso,

fomos observando as várias metamorfoses do estado capitalista, que, a partir de certa altura, teve de abandonar a ‘boa vida’ do estado liberal (estado de direito) para assumir novas e pesadas responsabilidades no governo da economia e na solução dos problemas sociais. O novo estado social foi intervencionista e democrata, mas foi também autoritário e até totalitário. Durante algum tempo os seus promotores e uma boa parte da opinião pública terão acreditado que o projecto social-democrata de estado social poderia ser uma via para a construção do socialismo.

Hoje, no quadro europeu, parece claro que a social-democracia assumiu muito consciente e empenhadamente a sua função de gestão leal do capitalismo. E vem assumindo cada vez mais a inspiração doutrinal, os métodos e os objectivos políticos do pensamento neoliberal dominante, não fosse ela a principal responsável pelo processo de integração europeia que, segundo alguns observadores, “teve como efeito tornar praticamente impossível qualquer alternativa ao neoliberalismo”.225 Como escreveu um dissidente do Partido Socialista francês durante o debate preparatório do referendo sobre a chamada Constituição Europeia, “ a Europa transformou-se no joker de uma esquerda sem projecto nem reflexão”, uma “esquerda que não tem outro projecto para além da construção europeia, a Europa”, uma esquerda que, para ser credível e não assustar os mercados, defende e pratica “uma política ainda mais à direita do que a direita”.226

O menos que se pode dizer é que o estado social não vive na Europa uma hora feliz. E os resultados estão à vista: taxas de crescimento muito

224 Cfr. LECHEVALIER/WASSERMAN, ob. cit., 15.225 É a opinião de Ignacio Ramonet (Editorial de Le Monde Diplomatique, edição portuguesa, Agosto/2007).226 Cfr. G. SARRE, L’Europe…, cit., 165-169.

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baixas; precariedade do emprego; desemprego acentuado (prolongado para os jovens e os desempregados com mais de 45 anos); deslocalização de empresas; deterioração acentuada dos resultados no que toca à distribuição funcional do rendimento (a parte dos rendimentos do trabalho passou, na UE/15, de 65% em 1980 para 57% em 2005); desigualdades crescentes, com manchas de pobreza significativas, mesmo nos países mais ricos; prática generalizada de dumping fiscal, social e salarial; baixa dos níveis salariais e dos níveis de protecção social.

Esta é a Europa construída, em grande parte, por obra dos dirigentes socialistas e sociais-democratas europeus, quase sempre à custa de conciliábulos entre ‘elites’, retirando à ponderação do voto popular as opções de fundo tomadas. E é hoje inquestionável que esta ‘Europa’, construída sob a invocação beata do modelo social europeu, acabou por se transformar, para os povos europeus, como observou Bernard Cassen, num verdadeiro “cavalo de Tróia da globalização neoliberal”.227 Na linguagem da Geografia Física, diríamos que esta Europa é uma bacia hidrográfica em que todos os rios vão ter ao mesmo lago sem saída do neoliberalismo.

São três os pilares da cadeia neoliberal em que querem encerrar os povos da Europa: o mercado interno único (em que tudo se sacrifica à chamada concorrência livre e não falseada), a política monetária única e a moeda única (que sacrificam todos os objectivos possíveis das políticas públicas à estabilidade dos preços) e o Pacto de Estabilidade e Crescimento (com as restrições draconianas que impõe à política financeira dos estados-membros – amputada, de facto, à soberania nacional -, obrigando-os, em situações de crise, a adoptar políticas que agudizam e prolongam a crise, aumentando o preço a pagar pelos trabalhadores, sacrificados no altar das ‘finanças sãs’).

O mercado único impõe regras de concorrência comunitária, do mesmo modo que é comunitária a política monetária, cuja definição e execução são confiadas ao Banco Central Europeu, sem qualquer controlo por órgãos politicamente legitimados pelo voto democrático. Mas os construtores desta Europa do capital nem querem ouvir falar de harmonização das políticas tributária, laboral e social.

227 Assim, B. CASSEN, “Em debate…, cit., 6.

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O resultado é o que seria de esperar, o resultado desejado pelo grande capital. Num espaço económico unificado onde coexistem níveis de desenvolvimento económico, científico, tecnológico, escolar e cultural muito diferentes, aos países mais débeis, incapazes de concorrer com armas iguais neste mercado único (mas obrigados à tal “concorrência livre e não falseada”), só resta lançar mão da política laboral (facilitando os despedimentos, estimulando a precariedade do trabalho, dificultando a contratação colectiva, congelando ou baixando os salários) e da política social (esvaziando o parco conteúdo do estado social desses países, esvaziando os direitos laborais e sociais dos trabalhadores, reduzindo os encargos patronais com a segurança social, aumentando o ‘preço’ dos serviços de ensino e de saúde, diminuindo as pensões de reforma). A esta espécie de dumping salarial e de dumping social junta-se o dumping fiscal, que é, para os países mais pobres, o último instrumento de concorrência, o que sacrifica a sua própria soberania nacional, por obrigar os países que querem atrair investimento estrangeiro (e até o grande investimento nacional) a não cobrar impostos sobre os rendimentos do capital. É uma situação semelhante à dos bombistas-suicidas. Porque o recurso à ‘arma tributária’ obriga estes estados a abdicar do exercício da sua própria soberania e priva-os de obter receitas que lhes possam permitir realizar os investimentos indispensáveis para levar a cabo as reformas estruturais necessárias e para promover a melhoria das condições de vida das populações (habitação social, ensino gratuito, saúde acessível a todos). E porque esses estados se condenam a si próprios a obter receitas públicas através dos impostos sobre os rendimentos do trabalho e dos impostos sobre o consumo, de efeitos consabidamente regressivos em matéria de justiça fiscal. Os trabalhadores (os pobres em geral) são os sacrificados desta política.

E o clima de crise permanente das finanças públicas criado pelo PEC (ao colocar acima de tudo o equilíbrio das contas públicas, a manutenção de uma taxa reduzida da dívida pública e a estabilidade dos preços) ajuda os agentes da ideologia dominante a fazer passar a dupla mensagem de que é preciso diminuir a despesa do estado (nomeadamente o investimento público e as despesas sociais do estado com a saúde, a educação e a segurança social) e reduzir o peso do estado na economia (privatização das empresas públicas, incluindo as que ocupam sectores estratégicos, de soberania, e as prestadoras de serviços públicos) e é preciso (inevitável!)

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que todos aceitem sacrifícios (em especial os trabalhadores, que não podem continuar a beneficiar dos ‘privilégios’ que os tornam mais caros do que os trabalhadores da China ou da Índia).

Fragilizados os trabalhadores por força do reduzido (ou nulo) crescimento económico e pelo elevado nível de desemprego gerado pelas políticas pró-cíclicas impostas aos estados nacionais (salvo os que têm ‘estatuto’ suficiente para não cumprir o PEC…), o ambiente fica mais favorável para que os governos (sobretudo se forem da responsabilidade de partidos socialistas) possam impor mercados de trabalho mais flexíveis, segurança social menos protectora, trabalho mais precário, salários mais baixos, horários de trabalho mais dilatados, mais fácil deslocalização de empresas, a par de facilidades e de apoios financeiros acrescidos ao grande capital apátrida (que beneficia do regime de livre circulação de capitais no espaço europeu e que vê os lucros aumentar à medida que diminuem os salários e os direitos dos trabalhadores).

4.10 O neoliberalismo não é “o fim da história”.Estes são os caminhos do neoliberalismo. E já se vê que não são

caminhos de concorrência livre e não falseada. Estamos perante uma concorrência forçada e falseada (grosseiramente falseada pelo dumping social, salarial, fiscal e ambiental). Mas que é desejada, tolerada e até promovida. Porque é uma concorrência boa para o grande capital. Porque ela conduz (como a realidade mostra) ao nivelamento por baixo em matéria de direitos sociais, de salários, de garantias de emprego, de protecção dos desempregados e dos aposentados, de defesa do meio ambiente.228

O que resta do estado-providência ajudará a compreender que, apesar deste quadro, a Europa vá sobrevivendo, até hoje, sem graves convulsões sociais. O empenhamento cego de todos os servidores do neoliberalismo e de todos os crentes do deus-mercado em anular por completo os direitos que os trabalhadores europeus foram conquistando ao longo dos quase

228 Há muito pouco tempo, o Comissário Europeu responsável pelo pelouro da fiscalidade confessava a um jornal português não ser favorável à harmonização tributária, porque, num espaço em que vigora a livre circulação de capitais, harmonizar as taxas do imposto sobre os rendimentos do capital seria “acabar com a concorrência fiscal”, responsável, segundo ele, por “um melhor ambiente para os negócios” (Cfr. Jornal de Negócios, 14.6.07). Pois. Negócios über alles!

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duzentos e cinquenta anos que levam de capitalismo (e de lutas contra ele) lembra a história trágica do aprendiz de feiticeiro. Estará a Europa condenada a deixar-se imolar de novo pelo fogo ateado pelos interesses imperialistas? Infelizmente, esta poderá não ser uma simples hipótese teórica. Em 2004 pretendeu-se ‘eternizar’ esta Europa neoliberal dotando-a de uma ‘Constituição’ que é uma verdadeira constituição dirigente do neoliberalismo, uma constituição-fim-da-história, uma constituição pétrea (não é fácil a alteração de uma constituição que exige o voto unânime de 27 estados). Acreditamos, porém, que a construção da Europa continua a ser um projecto aberto. Porque o neoliberalismo não é o fim da história. E porque os caminhos da história não passam por aqui.

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Revista da Fundação Brasileira de Direito Econômico • vol. 3 • nº 1 • Ano 2011222