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Revista Jurídica Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009 Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009 Revista Jurídica FACULDADES COC 6

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RevistaJurídica

Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009

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Revista Jurídica

FACULDADESCOC

Ano VI - Nº 6 - Outubro 2009ISSN 1806-7603

CONSELHO EDITORIAL

O Conselho Editorial da Revista Jurídica FACULDADES COC é composto por docentes convidados das FACULDADES COC e outras intituições de ensino superior, bem como profissionais da área jurídica.

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DIRCEU JOSÉ VIEIRA CHRYSOSTOMOCoordenador do Curso de Direito

Editor ResponsávelInstituto de Ensino Superior COCCNPJ (MF) 056.012.628/0001-61

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R281 Revista Jurídica UNICOC / Faculdades COC. Ano 1. n.1 (jun.2004) -.- Ribeirão Preto, SP: Editora COC, 2004.

Ano IV. n. 6 (out. 2009) Anual ISSN: 1806-7603 (versão impressa)

1. Ciências Jurídicas. 2. Direito Nacional. 3. Direito Internacional. 4. Doutrina. 5. Jurisprudência. I. Faculdades COC. II. Revista Jurídica UNICOC.

CDD 340

Ficha Catalográfica

SUMÁRIO

A CIDADE E O DIREITO À MORADIA: O INSTITUTO DO USUCAPIÃO COMO ALTERNATIVA DE REGULARIZAÇÃO JURÍDICA DE HABITAÇÕES PRECÁRIAS EM FAVELAS ..............................................................................................11José Guilherme Perroni Schiavone / Elizabete David Novaes

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO ........................................................................................................................33 Giovanni Comodaro Ferreira

A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DOS JUROS CONTRATADOS ......................................45 Fernando Alves de Sousa

A QUESTÃO JURÍDICA DA EUTANÁSIA COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO DA CULPABILIDADE ................................................................................67Flavio Ribeiro da Costa

ACESSO À JUSTIÇA, EXCLUSÃO SOCIAL E AUXÍLIO-RECLUSÃO: CONSTATAÇÕES DE UMA PESQUISA EMPÍRICA ...................................................75Elizabete David Novaes / Maressa Mello de Paula

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 449 E A INCONSTITUCIONAL “BANCARIZAÇÃO” DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO ...................89Carlos Alexandre Domingos Gonzales / Mario Augusto Carboni

ANÁLISE DE DISCURSO ACERCA DA UTILIZAÇÃO LEGAL DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS: RESULTADOS DE PESQUISA EMPÍRICA ..............................................107Natália Monteiro / Fabiana Cristina Severi

CORRELAÇÃO ENTRE IMPUTAÇÃO, SENTENÇA E NULIDADE ....................................125Heráclito A. Mossin

LEI COMPLEMENTAR N.º 123: A CAPACIDADE POSTULATÓRIA DOS PROCURADORES ESTADUAIS E O PACTO FEDERATIVO ................................................133Washington Luís Batista Barbosa

O DEBATE SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS PELA JUSTIÇA DO TRABALHO ......................155Mario Augusto Carboni / Carlos Alexandre Domingos Gonzales

O DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E SEU ABRANDAMENTO PELA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ATRAVÉS DA TÉCNICA DA PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS ........................................................................................169 Flávio Quinaud Pedron

O MONITORAMENTO ELETRÔNICO E AS RELAÇÕES TRABALHISTAS .........195Alexandre Atheniense

LIGEIRAS OBSERVAÇÕES SOBRE A IM(P) UNIDADE PENAL NOS CRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO ............................................................................................203Cláudio da Silva Leiria

NORMA JURÍDICA SECUNDÁRIA, NORMA PROCESSUAL E NORMA PROCESSUAL TRIBUTÁRIA ...................................................................................................................................215Alan Martins

OS LIMITES DA AÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DAS PRETENSÕES AO FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO .......................237Ana Paula Andrade Borges de Faria

EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELA OMISSÃO E A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NO DIREITO BRASILEIRO ....................................................................................................................................283Joaquim José Marques Mattar

DOUTRINA

A CIDADE E O DIREITO À MORADIA: O INSTITUTO DO USUCAPIÃO COMO

ALTERNATIVA DE REGULARIZAÇÃO JURÍDICA DE HABITAÇÕES PRECÁRIAS EM FAVELAS

JOSÉ GUILHERME PERRONI SCHIAVONE1

ELIZABETE DAVID NOVAES2

Sumário1. Introdução; 1.1. Conceituando a Cidade; 1.2. Lei de Terras e Urbanização; 1.3. Urbanização e Especulação Imobiliária; 1.4. Mobilizações Sociais pela Moradia; 2. Aspectos Jurídicos do Direito à Moradia; 2.1. O direito à moradia na Constituição Federal de 1988. Eficácia no ordenamento jurídico; 2.2. Moradia e Dignidade humana; 2.3. Moradia e Obrigação do Poder Público; 2.4. Meio Ambiente Artificial Urbano e Proteção Constitucional Ambiental; 3. A Favela como Meio Ambiente Artificial; 3.1. Concessão de Direito Real de Uso e Regularização Jurídica das Favelas; 4. A Regularização Fundiária como Solução Social: Usucapião em Favelas; 5. Considerações Finais.

1. INTRODUÇÃO

O déficit habitacional na contemporaneidade tem se mostrado um dos principais desafios a ser superado pela sociedade brasileira. A condição de miserabilidade dos habitantes que residem nas chamadas favelas é precária e necessita urgentemente da aplicabilidade do Direito para garantir-lhes uma condição digna de vida.

Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo apontar para a problemática da moradia urbana, especificamente no que se refere à questão das garantias jurídicas voltadas ao direito de moradia.

Dentro desta preocupação, apresenta-se neste estudo, uma análise crítico-reflexiva acerca da necessidade de verificar as garantias dos menos favorecidos obterem a proteção legal de “sua propriedade”, como premissa à redução das desigualdades sociais.

Importante salientar que a base metodológica deste trabalho é a dialética, entendida como método de análise e reflexão que favorece a compreensão do movimento das contradições e sua superação por meio das ações concretas dos sujeitos socialmente determinados. Neste trabalho, de cunho teórico, a problemática da moradia é tratada a partir de sua compreensão em meio a uma totalidade social e jurídica.

Deste modo, para compreender a problemática apresentada em seu

1 Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto; Tecnólogo em Gestão Ambiental pelo Centro Universitário Barão de Mauá; e-mail: [email protected] Doutora em Sociologia pela Unesp de Araraquara; Docente do Curso de Direito das Faculdades COC de Ribeirão Preto; e-mail: [email protected].

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movimento dialético, lança-se mão do processo teórico-dedutivo, partindo de argumentos gerais acerca da formação das favelas no Brasil para se chegar à realidade caótica que as referidas áreas urbanas apresentam, para assim propor os mecanismos possíveis dentro do nosso ordenamento jurídico, com vistas a garantir juridicamente o direito de moradia com dignidade.

1.1. Conceituando a Cidade

Com o crescimento das cidades, a literatura a respeito delas também cresceu consideravelmente. Desse modo, a compreensão teórica da categoria “cidade” pode ser agrupada em três grupos, como o faz Ruben George Oliven (1988), sendo a cidade classificada pelo autor como: a) variável independente: corrente teórica está intimamente associada à corrente da ecologia humana representada por alguns membros da Escola de Chicago (escola esta que inaugurou a Sociologia Urbana); b) variável contextual: corrente que considera que as cidades devem ser compreendidas historicamente como partes de sociedades mais amplas, abrangentes, levando-se com isso, a discutir e ressaltar a importância que viver em determinadas cidades pode ter para os fenômenos sociais; e c) variável dependente: variável que leva em consideração os fatores históricos, como resultado de várias causas econômicas, políticas e sociais, que, por sua vez, definiriam seus diversos tipos, e nesse sentido, a cidade não se auto-explica, pois não é vista como uma totalidade, mas apenas como uma objetivação maior na qual ela se insere.

1.2. Lei de Terras e Urbanização

A Lei de Terras, quando determinou a proibição das aquisições de terras devolutas por outro título que não o da compra, impediu que a apropriação fundiária se desse pelo uso e ocupação da terra. Nesse momento, instalou-se o conflito fundiário em nosso país, pois, anteriormente à referida lei, a propriedade era legítima pela sua posse, ou seja, pela sua ocupação efetiva.

Com isso, a Lei de Terras instituiu o conflito ao estabelecer que a propriedade da terra seria válida mediante compra, e não mais pela efetiva ocupação, transformando a terra em uma questão mercadológica (LEITÃO; LACERDA, 2003).

Para Lúcia Leitão e Norma Lacerda:

A partir da instituição dessa lei, as cidades brasileiras passaram a conviver com um problema que o tempo e as circunstâncias só fizeram agravar: a ocupação - agora ilegal - de parcelas crescentes dos seus territórios por populações cuja baixa renda não lhes permitia ter acesso ao mercado

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imobiliário. (LEITÃO; LACERDA, 2003, p.60)

A solução encontrada pela população de baixa renda foi a ocupação pura e simples de um faixa de terra urbana. A urbanização, nesse contexto, foi marcada pela ação de grupos sociais que afrontaram proprietários fundiários e o Estado, evidenciando, com isso, que o problema da moradia requeria alterações estruturais, inclusive os de natureza legislativa. Ou seja, surgia a necessidade de adequar as leis aos fatos cotidianos.

A conseqüência mais visível do problema da moradia é o acirramento dos conflitos envolvendo a propriedade da terra, decorrentes dessas ocupações ilegais, sejam em terras públicas ou privadas.

Desse modo, os movimentos sociais contribuíram satisfatoriamente para que, no final da década de 1980, a sociedade percebesse a necessidade do direito de propriedade se subordinar ao direito de moradia, passando-se a clarificar o exercício da função social da propriedade. Destaca-se, como decorrência, dentre os vários movimentos sociais, dois grandes movimentos: o Movimento dos Sem-Terra (nas áreas rurais) e o Movimento dos Sem-Teto (nas áreas urbanas).

Desde os primórdios da industrialização até a década de 1930, o problema habitacional era resolvido pelas empresas, em que se buscava alojar a mão-de-obra por meio da construção de “vilas operárias”, próximas às fábricas, onde as residências eram vendidas ou alugadas aos seus trabalhadores.

A solução criada pelas empresas mostrou-se viável na medida em que a força de trabalho era diminuta, pois as casas se destinavam aos operários mais qualificados. Soma-se a pouca quantidade de trabalhadores, o fator do baixo custo do terreno e da construção, tornando possível a fixação do trabalhador.

Com o aumento do crescimento industrial, o número de trabalhadores foi rapidamente intensificado, no que se tornou desnecessária a fixação dos trabalhadores, pois a mão-de-obra, anteriormente “escassa”, passou a abundar (CAMARGO et alii, 1982).

As empresas, frente a esta nova realidade da época, e buscando contar com uma força de trabalho barata e abundante, que permitisse a produção em elevada escala, trataram imediatamente de transferir o custo da moradia e transporte para o próprio trabalhador. Foram além, inclusive, quando passaram a delegar os custos dos serviços urbanos básicos, caso existentes, para o Estado.

Deste momento em diante, o que se observou foi a questão da moradia sendo resolvida pelas relações econômicas do mercado imobiliário, o que desencadeou, por sua vez, o surgimento de moradias precárias, como bem expõe Cândido Procópio Ferreira de Camargo et alii: “Surge no cenário urbano o que será designado “periferia”: aglomerações, clandestino ou não, carentes de infra-estrutura, onde vai residir a mão-de-obra necessária para o

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crescimento da produção” (CARMARGO et alii, 1982, p. 25).

1.3. Urbanização e Especulação Imobiliária

Uma vez que a acumulação e a especulação imobiliária andavam juntas, a classe operária seguia o fluxo desses interesses. A explosão do preço dos terrenos fez com que se acentuasse a expulsão de pessoas para as áreas periféricas das cidades, áreas estas onde se avolumavam conjuntos de barracos e casas precárias, sem qualquer tipo de infra-estrutura. Desse modo, Favelas, casas precárias da periferia e cortiços abrigam basicamente as classes trabalhadoras, cujas condições de alojamento expressam a precariedade dos salários. Essa situação tende a agravar-se, na medida em que se vêm deteriorando os salários. Para cobrir os gastos básicos, considerados mínimos,com nutrição, moradia, transporte, vestuário etc. (CAMARGO et alii, 1982, p. 45)

O inverso da ação praticada pelas indústrias não ocorreu. Com o aumento da quantidade de mão-de-obra, os salários dos trabalhadores permaneceram os mesmos, ou seja, limitava-se a cobrir somente os gastos com transporte e alimentação. A construção da casa própria era a única alternativa para o trabalhador menos qualificado, pois os baixos rendimentos não lhe garantiam a possibilidade de arcar com gastos de aluguel.

Moradia própria e precária era a solução ao alcance do trabalhador, e, ao mesmo tempo, uma dificuldade a mais, pois, a partir desse momento, o próprio operário arcaria com as despesas de sua habitação. Soma-se a isto o aumento dos gastos com transporte, uma vez que os trabalhadores, ao se instalarem nas áreas periféricas, deveriam percorrer maiores distâncias a caminho do trabalho, resultando em várias horas despendidas com locomoção.

As condições de vida de uma população são determinadas por vários fatores que, direta ou indiretamente são ligados às formas de produção e distribuição de riquezas, e, ao lado destas, posiciona-se a própria organização do espaço urbano, da infraestrutura e dos demais serviços da cidade.

Diferentemente do que ocorreu em países da Europa Ocidental, a industrialização na América Latina não absorveu o excesso de mão-de-obra (OLIVEN, 1988).

Atualmente, os países que estão se industrializando são “forçados” a adotar tecnologia que requer muito capital, fazendo com que a mão-de-obra seja de pouca utilidade em uma atividade altamente mecanizada e avançada.

Logo, a dependência econômica em relação à marginalidade quase que desaparece por completo, uma vez que os marginalizados não são incorporados ao mercado formal de trabalho.

Outra questão que surge a respeito da massa marginal é o papel que esta desempenha no mercado de trabalho.

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Autores apontam no sentido de que a massa é muito maior que a quantidade necessária para um reservatório de mão-de-obra, sendo, portanto, irrelevante para o mercado este excedente de força de trabalho, o que leva à diminuição do valor do salário e a facilidade de encontrar mão-de-obra disponível. A questão de moradia e infra-estrutura, todavia, teve atenção especial em outros países, como, por exemplo, na Alemanha, conforme ensina o urbanista francês Gaston Bardet:

Esse país não se esqueceu de se preocupar, com um cuidado particular, com os bairros periféricos, destinados a alojar um enorme afluxo de população industrial, subdividindo, às vezes até o extremo, os terrenos em zonas de diferentes caracteres e regulamentando tudo estreitamente “à maneira prussiana” (BARDET, 1990, p.20).

No Brasil, contudo, o poder público não enfrentou o problema, ao contrário. Nosso país acompanhou indiretamente a especulação imobiliária imposta pelo setor privado, e em suas ações governamentais valorizou apenas o crescimento econômico, que só o poder privado manifestado na figura das indústrias era capaz de proporcionar.

1.4. Mobilizações Sociais pela Moradia

Como ensina Lúcio Kowavick, não há relação linear entre precariedade de vida nas cidades e as lutas movidas pelos contingentes por ela afetados.

Para Kowarick:

Obviamente, não se trata de ignorar as condições macroestruturais e as contradições imperantes na sociedade, mas de reconhecer que, em si, a pauperização originária do processo produtivo, a espoliação urbana decorrente da falta de bens de consumo coletivos, do acesso à terra e habitação ou a opressão que se faz presente no cotidiano da vida nada mais são do que matérias-primas que potencialmente alimentam as reivindicações populares: entre estas e as lutas sociais propriamente ditas há todo um processo de produção de experiências, que não está de antemão tecido na teia das assim chamadas condições materiais objetivas. (KOWARICK, 1994, p.46).

Pode-se afirmar que as reivindicações do mundo do trabalho e aquelas que visam às melhorias urbanas não representam a mesma reivindicação, ao contrário. O que se observa é a habitual segmentação, na qual os conflitos

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permanecem em âmbitos localistas e parciais, deixando de englobar variadas esferas reivindicatórias e manifestando um particularismo de cada movimento (KOWARICK, 1994).

Acrescenta ainda o autor que esse particularismo nada tem de estranho, pelo contrário. Segundo suas palavras, extraordinário seria se:

... por exemplo, um grupo que luta por melhorias nos transportes coletivos numa área determinada da cidade se identificasse com os interesses de favelados que, em outro local, reivindicam a posse da terra que ocuparam, ou que os sindicatos colocassem insistentemente na sua pauta de demandas a necessidade da extensão da rede de es- gotos e água (KOWARICK, 1994, p. 47-48).

Não implica afirmar, de modo generalizado, que inexistem interconexões de interesses, mas é importante ressaltar que a fusão de grupos não é algo que ocorre naturalmente, mas que se processa através de uma realidade diária massacrante que compromete a vida da maioria das pessoas.

Destarte, ante as lições empreendidas por Kowarick (1994), para quem ainda existe a necessidade de muito esforço teórico e de pesquisa para se obter conceitos adequados que dêem conta do problema referente à ligação entre espoliação urbana e a exploração do trabalho, conclui-se que a separação entre ambos só ocorre devido à facilidade analítica.

2. ASPECTOS JURÍDICOS DO DIREITO À MORADIA

O direito à moradia aparece na Declaração Universal dos Direitos dos Humanos de 1948 não como um direito explícito e preciso, mas como simples declaração de que toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar à sua família e a si, entre outros bens essenciais ao homem, também a habitação (SILVA, 2008).

O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 estatuiu que os Estados-Partes reconhecem o direito de todo indivíduo a um nível de vida adequado para si e sua família, inclusive o direito a uma moradia adequada.

Todavia, a Constituição da República de 1988, embora não tenha definido precisamente o que venha a ser direito à moradia, incluiu-o no rol de direitos sociais de que trata o artigo 6º, bem como impôs ao poder público a competência e o dever de satisfazer esse direito humano.

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2.1. O direito à moradia na Constituição Federal de 1988. Eficácia no ordenamento jurídico

A Constituição Federal, em seu art. 6º, incluiu o direito à moradia dentre os direitos sociais. “In verbis”:

Art. 6º - São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (grifo nosso)

O exame sobre a eficácia de referida previsão constitucional exige que se verifique se esta depende do entendimento que se tenha acerca da natureza do direito então assegurado, ante o disposto no § 1º, do art. 5º, da nossa Carta Magna, que estabelece que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, ou se, na verdade, deve-se ater à classificação das normas constitucionais no que se refere à sua eficácia, independentemente de pertencer ou não ao rol dos direitos fundamentais.

Colaciona-se, com a máxima vênia, o artigo supramencionado para melhor entendimento:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garant indo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:§ 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. (g.n)

O conjunto institucionalizado de direitos e garantias do ser humano, que tem por finalidade básica o respeito à sua dignidade, por meio da proteção contra o arbítrio do poder estatal e o estabelecimento de condições mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade humana, pode ser definido como direitos fundamentais.

Embora existam inúmeros e diferenciados conceitos de direitos humanos fundamentais, importante destacar que tais direitos se relacionam diretamente com a garantia de não-ingerência do Estado na esfera individual e a consagração da dignidade humana, no que possui um universal reconhecimento por parte da maioria dos Estados, seja em nível constitucional, infraconstitucional, seja em nível de direito consuetudinário ou mesmo de tratados e convenções internacionais.

José Afonso da Silva, citado pelo doutrinador Pedro Lenza, descreve que:

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“juntamente com o título dos direitos fundamentais, a ordem social forma o núcleo substancial do regime democrático,...” (SILVA, apud LENZA, 2008, p. 710). Equivale a dizer que na busca plena pelo regime democrático de direito, os direitos fundamentais e sociais formam a base do Estado-Nação, devendo ser priorizados nas políticas públicas.

A constitucionalização dos direitos humanos fundamentais não significa mera enunciação formal de princípios, mas plena positivação de direitos, com base na qual qualquer individuo poderá exigir sua tutela perante o Poder Judiciário, para a concretização da democracia. A proteção judicial é absolutamente indispensável para tornar efetiva a aplicabilidade e o respeito aos direitos fundamentais previstos na Constituição Federal e no ordenamento jurídico em geral.

2.2. Moradia e Dignidade humana

Levando-se em conta o conceito de direitos humanos fundamentais acima exposto, assim como idéia de que estes, invariavelmente, se relacionam à obrigação de nãointerferência do Estado e à proteção da dignidade humana, impossível não incluir o direito à moradia neste rol, uma vez que somente se possui uma existência digna quando é garantido a cada indivíduo um lugar para se morar.

Dessa forma, coloca-se uma questão: sendo o direito à moradia considerado um direito fundamental (classificado por alguns como de segunda categoria - identificado com as liberdades positivas, reais e concretas, que acentuam o princípio da igualdade, objetivando a melhoria das condições de vida dos hipossuficientes e visando à concretização da igualdade social), não deveria ter ele aplicação imediata, isto é, não deveria poder ter sua tutela exigida, de imediato, perante o Poder Judiciário, ante o disposto no § 1º, do art. 5º, da CF?

Salvo melhor juízo, a resposta há de ser negativa, exigindo que a questão seja analisada de forma mais ampla, de modo que não se paute em simples interpretação literal dos dispositivos constitucionais. Estes, os quais asseguram direitos, devem ser examinados no que se refere à eficácia, levando-se em conta a potencialidade de sua implementação imediata.

Assim, em que pese estar diante de direitos ou de garantias declarados ou considerados pela nossa Constituição Federal como fundamentais, deve-se perquirir se há a possibilidade de sua efetivação, sem a necessidade de qualquer regulamentação infraconstitucional ou da execução de programas estatais ou de criação de órgãos para tanto.

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2.3. Moradia e Obrigação do Poder Público

Dessa forma, parece não ser possível a propositura de ação visando compelir o Poder Público a fornecer moradia a todos que dela necessitem, uma vez que é imprescindível que haja a organização estatal, por intermédio da aprovação de leis e da criação de programas e implementação de projetos, e assim ocorre por estarmos diante de uma norma de eficácia limitada, ainda que não haja no texto constitucional a expressão “nos termos da lei”, lembrando que o termo lei pode ter sentido amplo, abrangendo quaisquer atos normativos e não apenas lei “stricto sensu”.

Assim sendo, ante o exposto, poder-se-ia concluir pela possibilidade de compelir o Estado a fornecer moradias aos desamparados; porém, faz-se clara a necessidade do poder público criar mecanismos para que o referido direito fundamental possa ser alcançado.

Este também é o entendimento de José Afonso da Silva, quem alega caber às “entidades do Poder Público promover tais providências para a satisfação desse direito em relação à população que, por deficiência econômica, não pode provê-lo por seus próprios meios” (SILVA, 2008, p. 382).

Ademais, segue o autor reproduzindo a brilhante lição dos doutrinadores portugueses J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, afirmando que:

O direito à moradia significa, em primeiro lugar, não ser privado arbitrariamente de uma habitação e de conseguir uma; e, por outro lado, significa o direito de obter uma, o que exige medidas e prestações estatais adequadas à sua efetivação (CANOTILHO; MOREIRA, apud SILVA, 2008, p. 382).

Referidos mecanismos compreendem os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme destaca o artigo 3º, inciso III da Carta Magna:

Artigo 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...)III - erradicar a pobreza, a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

A alternativa que emerge como a mais viável diante das possibilidades fornecidas pelo Estado, sem dúvida nenhuma, passa a ser a regularização das favelas, assunto que será tratado neste trabalho em momento oportuno.

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2.4. Meio Ambiente Artificial Urbano e Proteção Constitucional Ambiental

Antes de analisar a relação das favelas e sua relação jurídica com a proteção do meio ambiente, de que trata o artigo 225 da Constituição Federal de 1988, cumpre reproduzir o conceito do que venha a ser cidade e meio ambiente artificial.

Trata-se, como já apontado pela doutrina jurídica, algo de difícil realização, motivo este pelo qual é importante apontar os brilhantes comentários de José Afonso da Silva, que ensina com sua habitual clareza:

Para que um centro habitacional seja conceituado como urbano torna-se necessário preencher, no mínimo, os seguintes requisitos: (1) densidade demográfica específica; (2) profissões urbanas com comércio e manufaturas, com suficiente diversificação; (3) economia urbana permanente, com relação especiais com o meio rural; (4) existência de camada urbana com produção, consumo e direitos próprios. Não basta, pois, a existência de um aglomerado de casas para configurar-se um núcleo urbano. (SILVA, 2008, p.24)

O autor destaca, ainda, três concepções relativas ao conceito de cidade: a concepção demográfica, a econômica e a de subsistemas.

A primeira - demográfica - leva em consideração o número de indivíduos presentes em um determinado local, índice quantitativo que varia conforme o país ou organismo internacional. Como exemplo, pode-se citar a ONU, que considera como cidade aquela cuja população atinja cerca de 20.000 habitantes.

A concepção econômica de cidade tem como fundamento a doutrina de Max Weber (SILVA, 2008), para quem a cidade recebe esta denominação quando a população local satisfaz uma parte economicamente essencial de sua demanda diária, e em parte também devido aos produtos que esta mesma população coloca no mercado.

A terceira e última concepção classifica a cidade como um subsistema de um sistema nacional geral, em que há a predominância de subsistemas administrativos, comerciais, industriais e sócio-culturais.

3. A FAVELA COMO MEIO AMBIENTE ARTIFICIAL

Com relação ao meio ambiente artificial, conceitua-se como sendo aquele “compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (espaço urbano aberto)” (FIORILLO, 2003, p. 21).

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Também acompanha o mesmo raciocínio a doutrina de Virgílio Testa citado por José Afonso. Nesse sentido, vejamos:

...do ponto de vista urbanístico, um centro populacional assume a característica de cidade quando possui dois elementos essenciais: (a) as unidades edilícias - ou seja, o conjunto de edificações em que os membros da coletividade moram ou desenvolvem suas atividades produtivas, comerciais, industriais ou intelectuais; (b) os equipamentos públicos - ou seja, os bens públicos e sociais criados para servir às unidades edilícias e destinados à satisfação das necessidades de que os habitantes não podem prover-se diretamente e por sua própria conta (estradas, ruas, praças, parques, jardins, canalização subterrânea, escolas, igrejas, hospitais, mercados, praças de esportes etc.). (TESTA apud SILVA, 2008, p. 26)

Dessa forma, ressalta-se que a favela se amolda perfeitamente no conceito de cidade, pois pertence a ela (é parte do território físico e social) e, muitas vezes, dada a sua extensão e complexidade, cumprem todos os requisitos de uma cidade própria, momento em que se poderia considerá-la como uma cidade autônoma (ou sub-cidade).

Outrossim, verificado o conceito de meio ambiente artificial, forçoso convir que por mais que as moradias apresentem condições precárias, ainda assim podem ser (e são) consideradas como meio ambiente artificial, eis que decorrem da transformação do homem. A doutrina, aliás, não faz qualquer distinção quanto a isso, e nem poderia fazê-lo.

Sendo assim, a proteção constitucional contida no artigo 225 também deve ser aplicada ao ambiente das favelas, eis que desnecessário apontar as péssimas condições de vida daqueles que ali habitam.

O artigo 225 da Lei Maior prevê:

Art. 225º - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (grifo nosso)

Vale ressaltar que este também é o entendimento de Cláudio Luiz Watanabe Escavassini, quando ensina que a realidade das favelas precisa ser enfrentada, uma vez que a falta de qualidade de vida das pessoas residentes nas áreas afronta princípios constitucionais, como se percebe no trecho abaixo:

Como se vê, o meio ambiente é o abrigo de toda a vida humana.

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Onde quer que vá, ali está ele, no entanto, as desigualdades sociais proporcionam qualidades diferentes de vida, algumas de forma sadia, outras não, situação que afronta o princípio da igualdade e o fundamento da dignidade da pessoa humana. (ESCAVASSINI, 2001, p.164)

Nesse diapasão, salienta-se o dever do poder público em tutelar o referido meio ambiente, haja vista os inúmeros danos causados não só às pessoas ali residentes, mas também à coletividade como um todo. Tal dever decorre da própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 23, incisos IX e X, “in verbis”:

Art. 23º - É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...)IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria de condições ha bitacionais e de saneamento básico;X - combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos;

Passa-se, então, à análise dos institutos jurídicos de que se pode valer o poder público na busca da regularização legal de referidas áreas.

3.1. Concessão de Direito Real de Uso e Regularização Jurídica das Favelas

Juridicamente, o que distingue as favelas das outras formas de ocupação precária da terra urbana, tais como os loteamentos clandestinos e irregulares, é o fato de que os favelados, no momento da ocupação da terra, não possuíam qualquer título de posse ou propriedade (FERNANDES, 1999).

Como já esposado, a obrigação do poder público em regularizar as favelas, promovendo posteriormente a sua urbanização, faz-se necessária e inevitável quando se pretende alcançar a melhoria da qualidade de vida das pessoas e, ao mesmo tempo, garantir direitos sociais e fundamentais previstos na Lei Fundamental da República.

Assim, a concessão real de uso é um instrumento jurídico de política urbana capaz de promover a regularização, e que encontra previsão no Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/01), em seu artigo 4º, inciso V, alínea ‘g’. A referida Lei veio a regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, artigos estes que exigiam lei federal para regular a matéria de que tratam.

Todavia, o Estatuto da Cidade não criou e nem regulou o mencionado mecanismo, mas somente lhe garantiu previsão, uma vez que o instituto foi

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criado e regulamentado pelo artigo 7º do Decreto-lei 271 de 28 de fevereiro de 1967.

Conforme salienta José Afonso da Silva, o decreto-lei em questão:

...prevê a concessão de uso de terrenos públicos ou particulares, remunerada ou gratuita, por tempo certo ou indeterminado, como direito real resolúvel, para fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo da terra, ou outra utilização de interesse social (SILVA, 2008, p. 412).

No direito real de uso, a concessão fica a critério da Administração Pública, que deverá atuar, não obstante, mediante autorização legislativa e visando fins de interesse social.

O doutrinador Hely Lopes Meirelles conceitua este instituto da seguinte maneira:

Concessão de direito real de uso - é o contrato pelo qual a Administração transfere o uso remunerado ou gratuito de terreno público a particular, como direito real resolúvel, para que dele se utilize em fins específicos de urbanização, industrialização, edificação, cultivo ou qualquer outra exploração de interesse social (MEIRELLES, 2001, p. 485).

A concessão de direito real é um direito real que não extingue ou modifica o domínio do bem, sendo apenas uma fruição do bem público, determinada pelos interesses sociais e públicos. Não discorda Celso Antônio Bandeira de Mello, quem conceitua a concessão de direito real de uso como:

contrato pelo qual a Administração transfere, como direito real resolúvel, o uso remunerado ou gratuito de terreno público ou do espaço aéreo que o recobre, para que seja utilizado com fins específicos por tempo certo ou por prazo indeterminado (MELLO, 2000, p. 768).

Fernando Dias Menezes de Almeida, a respeito da concessão, esclarece que:

O dispositivo ora comentado vem acrescentar a possibilidade de contratação coletiva da concessão de direito real de uso, em se tratando de imóveis públicos, nos casos de programas e projetos habitacionais de interesse social, desenvolvidas por órgãos ou entidades da Administração Pública com atuação específica nessa área (ALMEIDA, 2004, p.55).

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Vale dizer, portanto, que resulta de um contrato celebrado entre o poder público e o interessado, em caráter não precário, porém resolúvel, cujo direito pode ser transmitido inter vivos e causa mortis. Ademais, é importante também mencionar que o direito real de uso pode ter fins específicos de urbanização, industrialização, edificação e, conforme dito acima, qualquer utilização de interesse social.

4. A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA COMO SOLUÇÃO SOCIAL: USUCAPIÃO EM FAVELAS

A usucapião significou um passo importante na questão fundiária urbana no Brasil, mas insuficiente para o enfrentamento desta questão, em virtude de algumas peculiaridades.

Há no ordenamento jurídico sete tipos de usucapião. Não cabe, aqui, discorrer sobre todos, haja vista que isto acabaria por se desviar do objeto do trabalho, mas apenas demonstrar quais as espécies relacionadas e que melhor se aplicam ao estudo em tela.

Nesse sentido, salienta-se o conceito de usucapião dado pela Constituição Federal de 1988, que, além de ratificar que a propriedade deve cumprir com sua função social, ainda o considera como instrumento da política urbana. Tal entendimento se percebe da leitura de seu artigo 183, que define:

Art. 183 - Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

O Estatuto da Cidade (Lei federal de nº 10.257de 2001) trouxe também a previsão do instituto (artigos 9º e 10º), inovando quando prevê a possibilidade de usucapir áreas coletivamente e acima de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ‘in verbis’:

Art. 9º - Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até 250 m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), por 5 (cinco) anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.Art 10º - As áreas urbanas com mais de 250 m2 (duzentos e cinqüenta metros quadrados), ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por 5 (cinco) anos,

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ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são suscetíveis de serem usucapidos coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural.

O jurista Nelson Saule Jr. explica, com sabedoria, a finalidade do usucapião:

O instituto do usucapião tem como finalidade reconhecer o direito à moradia das pessoas e famílias que vivem nos assentamentos em condições precárias de habitabilidade e de segurança jurídica, tais como favelas, loteamentos clandestinos e irregulares nos bairros periféricos, conjuntos habitacionais abandonados, em habitações coletivas (cortiços), na chamada cidade clandestina ou informal. O usucapião urbano é um instrumento e regularização fundiária destinado a assegurar o direito à moradia desses segmentos sociais (SAULE JR, 1999, p. 87-88).

Todavia, mesmo o ordenamento jurídico tendo garantindo meios para que o proprietário de baixa renda, por via de sua efetiva ocupação, garantisse seu direito de propriedade, nota-se a dificuldade prática na aplicação deste sistema.

Tratando do tema de usucapião, o doutrinador Edésio Fernandes explica que:

No caso das favelas sua aplicação é quase impossível, porque a dinâmica, alta mobilidade e natureza coletiva do fenômeno da favelização não se conformam aos requerimentos técnicos e individualistas da legislação civil. Além disso, o direito de usucapião não pode ser aplicado de forma alguma aos casos de invasões de terras públicas, com o que não pode ser reivindicado por cerca de 50% dos favelados, aqueles que ocupam terras públicas nas várias cidades (FERNANDES, 1999, p.131).

Outrossim, ainda que as favelas estivessem localizadas em propriedades privadas, ressalta-se o fato de que se encontram, dentro das áreas de favelas, moradores que exercem atividades comerciais, o que dificultaria a aplicação do instrumento, pois, como observado, a norma se faz clara ao determinar que o imóvel deverá ser utilizado para moradia própria e de sua família.

Todavia, ante a impossibilidade de usucapir áreas públicas, salienta-se o

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ensinamento de Nelson Saule Jr., que destaca:

O direito à moradia também é reconhecido para as pessoas e famílias que estão na posse de áreas públicas que atendam os requisitos constitucionais do artigo 183, conferindo neste caso não o domínio destas áreas mas a concessão de uso para fins de moradia (SAULE JR, 1999, p. 88-89).

Acrescenta o mesmo autor dois importantes efeitos do instituto do usucapião, quais sejam:

O primeiro de garantir uma segurança jurídica para as pessoas e famílias, comunidades que estão vivendo em assentamentos em condições precárias de habitabilidade, mediante a posse de área urbana para fins de moradia. O segundo, do direito à moradia ser um requisito obrigatório, para verificar se a propriedade urbana está cumprindo ou não sua função social” (SAULE JR, 1999, p. 89).

Ressalvadas as características que impossibilitariam a aplicação de usucapião, e tendo em vista os benefícios acima apontados, destaca-se que:

A regularização da posse da terra tem implicações importantes na construção da cidadania, especialmente em um país onde ser proprietário confere status e distinção. Além disso, a segurança que o título da propriedade costuma dar às pessoas também tem repercussões urbanísticas significativas: ao se saberem proprietárias, as pessoas investem muito mais nas suas edificações, melhoram o padrão urbanístico da área (...). Soma-se a isso o fato de que, do ponto de vista do poder público, a legalidade fundiária é o primeiro passo para a urbanização das áreas pobres, uma vez que dificilmente ele investe na produção de infra-estruturas básicas em áreas que são objeto de conflitos fundiários” (LEITÃO; LACERDA, 2003, p.75).

Nessa toada, pode-se afirmar que o instituto do usucapião é benéfico e necessário ao combate e erradicação da pobreza, sendo o primeiro passo para a solução deste grave problema, como já apontado.

A questão habitacional se tornou de extrema relevância, juntamente com a urbanização da humanidade, sendo que, anteriormente a este período, o problema não apresentava nenhuma significância para os administradores da máquina pública, conforme ensina José Afonso da Silva:

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Enquanto predominava a vida rural o problema não se punha, porque cada qual cuidava de organizar sua própria moradia segundo suas condições econômicas, utilizando para isso terrenos públicos ou particulares, ainda que a população pobre morasse sempre em condições precárias. Não se tinha consciência de um direito especial, inerente a pessoa humana, que é o direito a moradia (SILVA, 2008, p.381).

Logo, com o crescimento das cidades e concomitantemente ao processo de urbanização destas, tornou-se possível verificar o surgimento das favelas, as quais estão, atualmente, servindo de moradia para milhões de pobres nas áreas urbanas.

Originalmente, as favelas foram formadas em áreas próximas ao centro das cidades, isso devido ao alto custo do transporte público e à maior disponibilidade de empregos e serviços. Mais recentemente é que se pôde observar a formação de favelas nas áreas periféricas das grandes cidades, fato este obviamente impulsionado pelo alto valor da terra mais central.

Ensina Edésio Fernandes que:

Favelas são o resultado sócio-espacial da combinação de fatores históricos envolvendo diversos processos sócio-econômicos formais e informais, as condições de determinação dos custos do trabalho urbano-industrial, bem como os processos de desenvolvimento urbano e de especulação imobiliária. Sendo também o produto da ação do poder público em tais processos interrelacionados, o processo de favelização tem de ser entendido no contexto mais amplo da falência da política habitacional brasileira, que resultou em um déficit gigantesco de moradias, além de outras graves conseqüências sociais e ambientais. Em suma, as favelas são a expressão mais radical - e crua - das desigualdades e contradições que se encontram na base da estrutura social brasileira” (FERNANDES, 1999, p.128).

Salienta ainda o doutrinador que as favelas são: “assentamentos humanos precários que resultam originalmente da invasão de áreas urbanas privadas e públicas” (FERNANDES, 1999, p. 127).

Quanto a origem da palavra favela ensina Celso A. P. Fiorillo que:

... foi extraída do nome de um morro em Canudos (local do sertão da Bahia onde foi travada no século XIX sangrenta guerra envolvendo, de um lado, sertanejos, e de outro,

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tropas do exército brasileiro) que os soldados republicanos tomaram como base na época do histórico confronto. Quando encerrada a guerra, retornaram os soldados à cidade do Rio de Janeiro vindo a ocupar o Morro da Providência, que veio a ser batizado com o mesmo nome do território ocupado na Bahia: Morro da Favela (FIORILLO, 2004, p.1).

Após este momento, o termo acabou sendo usado em todo o país para denominar comunidades pobres, surgindo daí a explicação para que a palavra favela seja utilizada como sinônimo de pobreza na atualidade, ou seja, significa afirmar que as favelas são porções do território de uma determinada cidade brasileira onde existe pobreza (FIORILLO, 2004).

Não obstante o fato de que as favelas têm ocupado uma grande parte das cidades brasileiras, sua relação com o poder público local e com a própria cidade sempre foi marcada por grandes e graves conflitos, sendo de extrema dificuldade a conciliação.

Na década de 70, observou-se o período marcado pela predominância de conflitos intensos e violentos e por inúmeras expulsões promovidas em todo o país.

Tal realidade só foi alterada em meados da década de 80, época em que as expulsões de pessoas que residiam nas favelas foram substituídas pelas remoções, impulsionadas, em parte, pela pressão exercida pela Igreja Católica e, em parte, pela mobilização crescente dos próprios favelados (FERNANDES, 1999).

Todavia, as já referidas políticas públicas restaram infrutíferas, principalmente devido à resistência dos favelados em relação às alternativas oferecidas pelo poder público na ocasião.

Somente nas últimas duas décadas, com o crescimento dos movimentos populares, é que o poder público local começou a reconhecer os direitos dos favelados de terem acesso ao solo urbano e à moradia, promovendo, com isso, em muitos casos, tanto a urbanização como a legalização das favelas existentes.

Os números não são precisos, porém podemos afirmar que mais da metade de nossas cidades é constituída por assentamentos irregulares, ilegais ou clandestinos, que contrariam de alguma forma as formas legais de urbanização. Uma parte significativa destes assentamentos é composta por posses de propriedades públicas ou privadas abandonadas ou não utilizadas. Desde os anos 70, os municípios vêm investindo nas chamadas favelas, reconhecendo sua existência como parte da cidade. Entretanto, embora a urbanização das favelas venha sendo defendida e praticada há décadas, a titularidade definida destas áreas para seus verdadeiros moradores vem esbarrando em processos judiciais intermináveis e enormes dificuldades de

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registro junto aos cartórios (ROLNIK, 2001, p.1)Frente a estes obstáculos, a questão da habitabilidade passa a envolver a

necessidade de uma política habitacional. Como aponta Saule Jr.:

A política habitacional deve ser estabelecida para garantir o acesso de todos ao mercado habitacional, através de leis, instrumentos, planos e programas habitacionais com recursos públicos e privados para os segmentos sociais que não tem acesso ao mercado e vivem em condições precárias de habitabilidade e sem condições dignas de vida (SAULE JR, 1999, p. 123).

Nesse mesmo sentido, Álvaro Pessoa, citado por Guimarães Jr., explica que a marginalidade passou a ocupar terrenos ociosos, segundo suas necessidades e a partir das possibilidades encontradas. Afirma o autor:

A invasão de espaços públicos e privados para habitações de madeira ou alvenaria mostrou-se a única opção ao alcance de milhares de famílias, porque sem a intervenção pública na questão fundiária urbana e estando mal equacionada e formulada a política habitacional de baixa renda, não têm as classes socialmente desfavoráveis para quem apelar, a nível formal ou oficial, para solucionar seu problema para a habitação de baixa renda. Resta-lhes a marginalidade e a ocupação de terrenos ociosos (PESSOA apud GUIMARÓES JR, 1999, p.109)

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, conclui-se que as cidades não podem ser consideradas independentes “per se”, dissociadas de sua história, pois representam a objetivação máxima de todo um contexto mais amplo, abrangente. A relação das cidades e sua história se faz clara quando se observam os diferentes tipos de cultura existentes em diversos países, o que leva à conclusão de que tal fato só é possível quando a cidade passa a ser considerada como uma variável dependente de sua história, de seus diversos fatores.

A Lei de Terras, como um fator histórico que influenciou as cidades brasileiras, ao deter-minar que ficavam proibidas as aquisições de terra por qualquer título que não o de compra, fez surgir violentos conflitos fundiários entre a população exilada e os proprietários de terra.

Nas cidades, as empresas resolveram o problema de moradia até o momento em que o crescimento industrial ganhou proporções significativas, motivo pelo qual não se tornou mais necessária tal preocupação, pois, deste

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momento em diante, houve uma explosão de pessoas interessadas em trabalhar para estes empresários, gerando uma abundância de mão-de-obra.

A situação se agravou quando as empresas transferiram para o Estado a incumbência de gerir o processo de urbanização. Desse modo, tornou-se responsabilidade do Poder Público administrar essa população excluída e faminta e, para tanto, implementou programas governamentais incapazes de enfrentar a especulação imobiliária praticada pelas empresas.

Já nesse período, o que predominava nas cidades era uma grande massa de miseráveis, denominada por Marx de reservatório de mão-de-obra.

Os confrontos sociais surgidos a partir desta realidade não tiveram significativa expressão, pois permaneceram localizados, havendo um particularismo em cada movimento, o que prejudicou um processo de urbanização mais justo e social, pois, como aponta Kowarick, é essencial que a massa pobre e marginalizada da população participe desse movimento, no mínimo.

A Constituição Federal de 1988, sem dúvida nenhuma levando em consideração as péssimas condições de habitação, tratou logo de inserir em seu rol de direitos sociais o direito à moradia.

Não queremos afirmar, com isso, que, a partir dessa previsão legal, o Poder Público restou obrigado a fornecer moradia a todos os desamparados, mas apenas salientar que incumbe ao Estado promover meios adequados para resolver essa problemática.

Ademais, referida solução se faz necessária, uma vez que a própria Carta Magna protege o meio ambiente urbano e, como demonstrado, as favelas se amoldam perfeitamente ao conceito de meio ambiente artificial, necessitando, portanto, desta mencionada proteção estatal, sob pena de afronta aos princípios constitucionais.

A proteção almejada é possível mediante a aplicação do instituto da concessão real de uso, devendo ser aplicada aos casos que não se conflitam com a própria Constituição, ou seja, diante do raciocínio construído, seria possível a aplicação de tal instrumento nas áreas de favelas sob o domínio do poder público. Poder-se-ia, assim, valer-se deste instituto da concessão real de uso para garantir um mínimo de segurança às pessoas residentes em áreas degradadas, que não possuem condições dignas de habitação.

Assim, a efetiva proteção ao propalado direito de moradia, como um primeiro passo à urbanização das favelas, só é possível através do instituto de usucapião, uma vez que este permite a regularização fundiária de áreas precárias.

Portanto, como mencionado, a regularização fundiária por meio de usucapião carrega uma importante carga de benefícios à população carente, no sentido de promover segurança jurídica, de modo a permitir que tanto

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os moradores como o poder público invistam na área, proporcionando seu desenvolvimento econômico, social e ambiental.

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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO DIREITO BRASILEIRO

GIOVANNI COMODARO FERREIRA1

Sumário1. Algumas notas preliminares; 2. Diplomas supostamente consagradores do instituto; 3. A desconsideração no novo Código Civil.

1. ALGUMAS NOTAS PRELIMINARES

A desconsideração da personalidade jurídica se traduz na declaração de ineficácia da autonomia societária para certos efeitos, conservando-se a pessoa jurídica absolutamente apta a prosseguir em suas lícitas atividades2.Trata-se de expediente nascido da jurisprudência alienígena, originando-se a partir de decisões emanadas das altas cortes da Inglaterra e Estados Unidos.

De um modo geral, a disregard doctrine - como se apresenta nos países anglo-saxônicos - pode ser definida como a

doutrina que assegura que a estrutura da sociedade (...) pode ser desconsiderada, impondo-se a responsabilidade pessoal, no caso de fraude ou outra injustiça, aos acionistas, administradores e diretores que agem em nome da sociedade3, sempre em casos esporádicos e nunca afetando a validade de seu ato constitutivo. Portanto, a doutrina do superamento (segundo nomenclatura também empregada) não se volta à invalidação da personalidade jurídica de uma entidade, mas à sua suspensão temporária para responsabilizar os infratores que fizeram dela instrumento de ilegalidade.

O mecanismo, como se apontou, surgiu nos domínios da Common Law e se deve, fundamentalmente, à tradição jurídica a que se filiam seus ordenamentos. Nesses países, a lei exerce papel secundário, entregando-se à jurisprudência e ao costume o primado entre as fontes do direito.

Pela própria lógica da subordinação, a hierarquia estabelecida entre as fontes jurídicas determina a necessária adequação do elemento inferior ao superior, de modo que a eventual invalidação da fonte secundária pressupõe

1 Mestre em Direito pela UNESP - Campus de Franca; Professor das Faculdades COC de Ribeirão Preto.2 Cf. SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999. p. 28.3 SILVA, op. cit., p. 27.

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um desajuste desta em face da orientação da fonte principal. E isto se processa naturalmente, em atenção à exigência da necessária sujeição entre tais elementos.

A decisão judicial que criou o precedente da desconsideração representou a afirmação da jurisprudência como referencial supremo das fontes da Common Law, tendo em vista que não apenas revelou o potencial inovador e criador da atividade judicante, como importou na relativização de um preceito formal. Mas tal evento não é de causar espanto, pois simplesmente retratou a dinâmica específica da superação de uma fonte inferior por outra superior, que, no caso anglo-saxônico, induz ao triunfo da jurisprudência sobre a lei.

Estranho seria se a iniciativa pioneira de desprezar episodicamente a personalidade jurídica partisse de um magistrado de formação romano-germânica, num sistema que proclama a autonomia societária pela via legal, a que justamente se vê, tradicionalmente, subordinado o juiz. A ousadia, neste caso, seria bem mais expressiva, e talvez fosse sumariamente rechaçada pelas instâncias judiciárias superiores, hipótese em que teria produzido o mecanismo como um autêntico natimorto.

Com efeito, há de se dispensar especial atenção ao fato de essa nova concepção jurídica ter por berço países que não comungam conosco dos mesmos valores e traços jurídicos, mas apresentam uma cultura jurídica onde, antes de tudo, não há o primado da lei sobre as demais fontes do direito, encontrando-se ela sempre em posição subalterna em face da jurisprudência e do costume.

Isso explica porque causaram tanto alvoroço os primeiros gestos concretos de relativização da personalidade societária no judiciário brasileiro, e porque a doutrina tanto apregoou a necessidade de consagração normativa do expediente no ordenamento pátrio.

Percebe-se, portanto, que foi em sistemas mais flexíveis que floresceu a doutrina de penetração, nos quais sua aplicação não encontrou resistência de uma malha normativa difusa e rígida como é a nossa. Em nações como Inglaterra e Estados Unidos, a recepção de novas tendências jurídicas se faz mais facilmente, uma vez que elas não passam necessariamente pelo filtro de um órgão legislativo encarregado da produção dos comandos legais de um sistema. A decisão dos tribunais, nesses países, é o que introduz no direito nacional as novas regras, possibilidade que confere aos magistrados um poder de criar o direito, paralelo àquele tradicional que lhe permite aplicar a norma ao caso concreto, vale dizer, à jurisdição.

As realidades jurídicas, dessa maneira, são distintas, uma vez que nosso país integra o bloco dos sistemas em que, repita-se, a lei é a norma suprema. Daí porque, quando a notícia da desconsideração chegou à comunidade jurídica brasileira, passou-se a proclamar que a implantação dessa nova teoria

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deveria respeitar nossa estrutura legal, integrando-a pelo mesmo processo que se prevê para a criação das demais regras.

Em face dessas circunstâncias, o advento da desconsideração fez a doutrina nacional articular-se no protesto por uma estipulação normativa do mecanismo. Essa movimentação, contudo, resultou em excessos, levando alguns autores a apontar determinadas normas como brechas do sistema por meio das quais estaria admitida a teoria entre nós. Assim é que instrumentos voltados a regulações específicas foram transmudados em preceitos consagradores do instituto, demonstrando que nem mesmo a boa parte de nossa doutrina tem importado a precisão técnica exigida à boa lei.

2. DIPLOMAS SUPOSTAMENTE CONSAGRADORES DO INSTITUTO

O texto legal apontado como pioneiro no tratamento da questão é o artigo 10 do Decreto nº 3078/19, que cuida das sociedades por cotas de responsabilidade limitada. O preceito discrimina a responsabilidade dos sócios pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou de lei. Entretanto, ele reporta, expressamente, à condição de responsáveis solidários dos componentes desta sociedade, e não a uma utilização indevida da autonomia da pessoa jurídica, como exige a doutrina do superamento. Sendo assim, forçoso é reconhecer que tal dispositivo não corresponde à primeira normatização da teoria no direito brasileiro.

Esse é o entendimento de Alexandre Couto Silva, consignado nos termos seguintes:

Na legislação sobre sociedades limitadas, o artigo 10 do Decreto nº 3078/19 não trata de uma hipótese de desconsideração, como quiseram alguns doutrinadores, mas apenas admite responsabilidade, perante terceiros, solidária e ilimitada dos sócios-gerentes ou dos que derem nome à firma por dívidas da sociedade (dívida alheia), pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.4

A Lei das Sociedades por Ações também é citada, por supostamente retratar situação ensejadora da relativização da autonomia societária. Roberto Papini sustenta esta proposição, ensinando que

a definição do acionista controlador, a atribuição de deveres

4 SILVA, op. cit., p. 85.

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e respectiva responsabilização por atos praticados com abuso e desvio de poder, constitui um avanço do direito societário brasileiro, porquanto representa a adoção da chamada teoria da desconsideração da personalidade jurídica, ainda discutida em outros países.5

Todavia, a literalidade da norma referente às ocorrências supracitadas já evidencia que ocorre, na verdade, uma responsabilização dos controladores da sociedade por sua conduta pessoal, e não porque praticaram atos ilícitos sob o manto da personalidade do ente coletivo.

No entendimento de outros importantes juristas, o artigo 2º, parág. 2º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) equivaleria à primeira experiência nacional de positivação da doutrina da desconsideração, ao possibilitar a responsabilização, dentro de um grupo econômico, comercial ou industrial, das empresas subordinadas a uma sociedade controladora, em se tratando de relação de emprego. Portanto, havendo lesão a direito trabalhista ocasionado por um grupo empresarial, todas as empresas participantes de um conglomerado de sociedades se sujeitariam, a princípio, a responder pela reparação do dano, tenha sido ele decorrente de dolo ou culpa.

Entretanto, cumpre observar que o dispositivo se refere a uma imputação de responsabilidade solidária, e assinala a preservação da personalidade jurídica individual de cada um dos componentes deste grupo. Ademais, não exige que a ofensa a direito trabalhista decorra de ato ilícito ou abuso de direito, requisitos indispensáveis a autorizar a invocação da disregard doctrine.

Na verdade, aplica-se à hipótese contemplada a disciplina própria da responsabilidade solidária, que afasta a incidência da teoria da desconsideração. Portanto, embora seja esta a posição da doutrina majoritária, não se deve admitir a CLT como o diploma pioneiro na inserção da disregard doctrine no sistema jurídico brasileiro.

Alguns autores persistem na identificação do mecanismo no texto da Consolidação afirmando que a existência do grupo de empresas, que expressa a reunião de pessoas jurídicas individuais para a consecução de certos fins, representa, por si só, o pressuposto fundamental para a desconsideração em matéria trabalhista6. Couto Silva diz o seguinte:

5 PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p. 164.6 Cf. KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. Direito do trabalho e grupos de empresas: aplicação da disregard doctrine . Revista LTr, São Paulo, v. 54, n. 10, p. 1196-207out. 1990, p. 1203. Para a autora, a previsão do mecanismo do superamento no parágrafo 2º do artigo 2º da CLT “evita exatamente que a personalidade jurídica da empresa contratante seja abusivamente utilizada para encobrir a real vinculação do empregado com o grupo”.

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(...) é de se crer que a existência do grupo por si só não configura hipótese de desconsideração. Ao analisar-se a desconsideração no direito norte-americano, observa-se que (...) é necessária a existência de algumas circunstâncias, como a confusão de ativos e passivos entre as companhias controladoras e suas controladas, ou, ainda, que elas tenham idênticos administradores, endereços, etc., enfim, tudo que induza terceiro ao prejuízo ou que lhe venha causar prejuízo.7

Também é corrente a afirmativa de que o Código Tributário Nacional esboçara certos princípios da teoria da desconsideração, ao tratar de algumas formas de responsabilidade nos artigos 134, inciso VII, e 135. Especialmente neste último, alguns autores visualizam traços fundamentais do expediente, em virtude de a norma preceituar a responsabilização pessoal dos sócios por créditos decorrentes de obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poder ou infração da lei ou estatuto. Pelo disposto no texto legal, sempre que for impossível exigir o cumprimento da obrigação pela sociedade, respondem os sócios pelos atos praticados irregularmente.

Lamartine Corrêa de Oliveira esclarece que

não tem sentido o direito brasileiro enxergar em dispositivos como o do artigo 134, VII, do Código Tributário (que responsabiliza, verificados determinados pressupostos, os sócios pelas obrigações tributárias da sociedade) indícios que revelem a presença entre nós das teses de desconsideração. Tal dispositivo significa apenas, que, em determinadas circunstâncias, os sócios são responsáveis por dívidas alheias - no caso, dívida da sociedade.8

3. A DESCONSIDERAÇÃO NO NOVO CÓDIGO CIVIL

Diante da ausência de uma lei específica a regular a doutrina em apreço, preocupou-se o projeto de Código Civil (nº 634-b, de 1975) em estabelecer as hipóteses específicas de aplicação da teoria, em estrita obediência a seus postulados tradicionais. Contudo, o processo de inserção do mecanismo não ocorreu sem tropeços, vez que a redação dada ao artigo respectivo sofreu várias alterações, até assumir a feição que hoje o Código apresenta.

O anteprojeto da responsabilidade de Miguel Reale prescrevia que:

7 SILVA, op. cit., p. 111. 8 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. p. 520.

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Art. 49 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinaram a sua constituição para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução.Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se a norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.

A impropriedade mais visível desse enunciado é determinar a dissolução da entidade societária em caso de ilegalidade ou abuso de direito, quando é da essência da desconsideração apenas suspender provisoriamente a personalidade jurídica nestes casos. Destarte, a regra adotada pelo direito brasileiro estaria contrariando frontalmente os requisitos mais elementares da formulação original do expediente. Por essa razão, não tardaram a se manifestar os seus defensores mais ortodoxos, protestando pela revisão daquele texto.

Os membros da Comissão de Elaboração do Anteprojeto propuseram, assim, a modificação do caput do artigo transcrito, conservando-se, todavia, a disposição de seu parágrafo único. Eis o novo enunciado:

Art. 48 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável, ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.

Percebe-se que a comissão acabou conservando a dissolução societária como penalidade em caso de ilegalidade ou prática abusiva, ainda que a tenha enquadrado como medida alternativa. Isto se afasta dos apelos doutrinários, imperantes em nossos dias, pela preservação do ente coletivo por todas as vias possíveis. Num estágio em que se peleja pela revisão da lei de falências, por apresentar-se explicitamente voltada à punição do insolvente, a estrutura do documento que viria a ser o novo Código Civil brasileiro parecia caminhar no sentido oposto. Ademais, nos termos em que foi proposto, o artigo redundaria na responsabilização de todos os membros da sociedade, ainda que a desonestidade houvesse partido de apenas um deles. Pela solução flagrantemente injusta que viabilizava, o dispositivo não poderia subsistir por muito tempo.

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Outras imperfeições se evidenciaram quanto à legitimidade proposta para a condução do caso ao judiciário. Exigia-se a intervenção do Ministério Público nesta atividade, quando os interesses envolvidos eram da esfera estritamente privada. O correto seria, pois, que se entregasse aos credores lesados a iniciativa da propositura da ação, não se admitindo nem mesmo aos sócios tomar essa medida. A proposta de dissolução da entidade, a par da solução profundamente injusta em que resulta, também determina a própria desfiguração do mecanismo, que nunca anuiu com a extinção da pessoa jurídica.9

Rubens Requião posteriormente sugere novo texto, cuidando de assinalar os traços peculiares e genuínos da doutrina anglo-saxônica, após criticar duramente a formulação anterior. Eis a nova versão proposta:

Art. 48 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinam a sua constituição, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos ou abusivos de sócio. Neste caso, o juiz, desconsiderando a existência da personalidade jurídica, a pedido do credor do sócio, poderá permitir a efetivação de sua responsabilidade sobre os bens incorporados na sociedade para a sua participação no capital social.10

A doutrina, contudo, não aprovou o novo texto, acusando-o de estabelecer a medida da suspensão como um instrumento à disposição apenas do credor da sociedade, quando os postulados da genuína desconsideração admitem-na para qualquer terceiro lesado, ainda que não se encontre na condição de credor.11

A partir daí, os autores lançaram-se a ofertar suas contribuições, formulando, cada qual, o texto que melhor consagraria a doutrina entre nós. Contudo, o texto finalmente aprovado foi o que integrou o Projeto de Código Civil acolhido pela Câmara dos Deputados, e remetido ao Senado no ano de 1984, e que acabou conservando muitas falhas. O formato do artigo passou a dispor o seguinte:

Art. 50 - A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins estabelecidos no ato constitutivo, para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, caso em que poderá o juiz, a requerimento de qualquer dos sócios ou do Ministério Público, decretar a exclusão do sócio responsável,

9 OLIVEIRA, op. cit., p. 557.10 REQUIÃO, Rubens. Projetos de Código Civil - apreciação crítica sobre a parte geral e o Livro I (das obrigações). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 477, p. 12-27, jul. 1975.11 Cf. OLIVEIRA, op. cit., p. 557, e COELHO, Fábio Ulhoa. Cesconsideração da personalidade jurídica . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 53.

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ou, tais sejam as circunstâncias, a dissolução da entidade.Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se a norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.

A comunidade jurídica, entretanto, não se resignou, e prosseguiu nas críticas aos desvios técnicos apresentados pela regra. Koury assim se expressou:

Não se pode falar em consagração normativa da disregard doctrine no artigo em questão, pois esta não visa a coibir atos não previstos no objeto social, já que, uma vez ocorrendo tais atos, o objeto deixa de ser lícito e pode haver a dissolução da sociedade. A disregard doctrine procura, isso sim, sancionar o desvio de função da pessoa jurídica, quer tal desvio seja qualificado como abusivo de direito, quer ele se choque com os princípios consagrados pelo ordenamento jurídico, desvio este que pode ocorrer no estrito desempenho da atividade empresarial, conforme os estatutos ou atos constitutivos.12

Finalmente, no Senado Federal se obteve nova redação ao dispositivo, agora consentânea com a estrutura originária da doutrina de penetração. O relator do projeto, Senador Josaphat Marinho, entendeu adequada a proposta do acadêmico Marcelo Gazzi Taddei, do Curso de Direito da Universidade Estadual Paulista (que, naquela época, desenvolvia pesquisa sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Antônio Soares Hentz), e encaminhou a Emenda nº 14, que estabelecia a regra nos seguintes moldes:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

A redação desse substitutivo determinou a forma como o novo Código Civil passaria a acolher o instituto da desconsideração, cujo alcance se estenderia a todas as relações jurídicas de índole privada em que houvesse abuso da autonomia formal do ente societário. E, com efeito, tal é a orientação 12 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (“disregard doctrine”) e os grupos de empresas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 144.

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do artigo 50 do referido estatuto civil, que incidirá sobre suas ocorrências caracterizadoras ao cabo da vacatio legis que põe sua vigência em suspenso até janeiro de 2003.

Não fosse o atraso de quase trinta anos em sua aprovação definitiva pelo Congresso Nacional, o Código Civil representaria o canal de ingresso da teoria do superamento no sistema jurídico brasileiro, e eventualmente injustificasse a consagração do mecanismo pelo Código do Consumidor, a ser apreciada subseqüentemente. Isto talvez ocorresse em virtude da abrangência das regras civis, que vinculam todas as situações jurídicas particulares, em que se encerram também os eventos ligados ao consumidor. Dessa forma, é possível que a consagração do instituto pelo Código Civil antes da edição do diploma consumerista levasse o legislador a aceitar que também os danos causados pelo desvio da personalidade jurídica ao consumidor fossem igualmente reparados pelo enunciado do artigo 50 daquele código.

O fato, porém, é que, uma vez tendo o Código do Consumidor reservado tratamento particular ao adquirente de produto ou serviço lesado pelo sócio infrator, o alcance da proteção formalizada no novo Código Civil fica restrito às demais relações privadas afetadas pelo desvio da personalidade jurídica do ente coletivo. Aplica-se, aqui, o princípio de especialidade, que privilegia o estatuto do consumidor por ser regramento específico em face da regulação geral dada pelo Código Civil às relações envoltas pela matéria.

A acolhida do mecanismo pela comunidade jurídica nacional, no modo como estatuiu a lei civil, não se deu de modo pacífico, porquanto certos juristas ainda apontaram falhas e omissões no texto do artigo 50. Essa é a observação de Alexandre Couto Silva, como se vê a seguir:

Verifica-se que o novo dispositivo busca solucionar os problemas anteriormente relatados, diferenciando, ainda, despersonificação e desconsideração, mas restringe a possibilidade de aplicação da teoria da desconsideração às hipóteses de abuso e de confusão patrimonial, sem acrescentar a fraude em seu sentido mais amplo, como o adotado no direito norte-americano, e claro a busca do ideal de justiça.13

Parece a outros doutrinadores, porém, que a estipulação da fraude como hipótese ensejadora do expediente acaba sendo desdobramento natural da formalização da medida, considerando que é de seu escopo fundamental combater a conduta do sócio que maliciosamente emprega a personalidade societária para enganar terceiros. Essa mostra ser a avaliação que Maria Helena Diniz, como se transcreve abaixo:

13 SILVA, op. cit., p. 90.

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O Código Civil pretende, como se vê, quando a pessoa jurídica se desviar dos fins que determinaram sua constituição, ou que, quando houver confusão patrimonial, em razão de abuso da personalidade jurídica, o órgão judicante, a pedido do interessado ou do Ministério Público, esteja autorizado a desconsiderar, episodicamente, a personalidade jurídica, para coibir fraudes e abusos dos sócios que dela se valeram como escudo, sem importar essa medida numa dissolução da pessoa jurídica. Com isso, subsiste o princípio da autonomia subjetiva da pessoa coletiva, distinta da pessoa de seus sócios, mas tal distinção é afastada, provisoriamente, para um dado caso concreto. (...) (A aplicação do expediente) é uma forma de corrigir fraude em que o respeito à forma societária levaria a uma solução contrária à sua função e aos ditames legais (grifo nosso).14

A objeção de Couto Silva talvez busque respaldo no rigorismo com que alguns autores tratam a sistemática da desconsideração, limitando sua aplicação apenas aos casos expressamente mencionados em lei. Mas essa atitude não se justifica, pois que sobre a atividade fraudulenta (em conjunto com o abuso de direito) é que o instrumento se edificou, de modo que sua consagração já pressupõe o propósito da lei em combater as fraudes perpetradas à sombra da personalidade jurídica.

Por conseguinte, ainda que o Código Civil não expressamente o declare, uma interpretação teleológica de seu artigo 50 revela o escopo de se combater o uso da autonomia societária também tendente a induzir terceiros a erro. Não cabe aqui, pois, apego à literalidade do dispositivo, mesmo porque o expediente surgiu como reação a essa mesma postura de intransigência hermenêutica.

De fato, o espírito que animou a flexibilização da autonomia societária deve igualmente balizar a aplicação do preceito que hoje a relativiza. Não se pode aceitar a insensatez de enclausurar o universo da pessoa coletiva em outro dogmatismo, como se o respeito incondicional à personalidade jurídica já não houvesse ensinado os inconvenientes de sua servidão judicial aos ditames da literalidade normativa. Se a positivação de certos instrumentos pode ensejar benefícios e malefícios, que a normatização da disregard doctrine pelo Código Civil brasileiro, pela qual tanto se esperou, possa fazer triunfar os primeiros.

14 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I. p. 260.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COELHO, Fábio Ulhoa. Desconsideração da personalidade jurídica . São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro . 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. I.

KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. Direito do trabalho e grupos de empresas: aplicação da disregard doctrine . Revista LTr , São Paulo, v. 54, n. 10, p. 1196-207out. 1990.

OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979. PAPINI, Roberto. Sociedade anônima e mercado de valores mobiliários . 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1988.

REQUIÃO, Rubens. Projetos de Código Civil - apreciação crítica sobre a parte geral e o Livro I (das obrigações). Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 477, p. 12-27, jul. 1975.

SILVA, Alexandre Couto. Aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no direito brasileiro. São Paulo: Ltr, 1999.

A POSSIBILIDADE DE REDUÇÃO DOS JUROS CONTRATADOS

FERNANDO ALVES DE SOUSA1

Sumário1. Breve relato histórico; 2. Da aplicação do CDC às instituições bancárias e financeiras; 3. Das possibilidades de revisão e anulação dos contratos; 4. As lesões aos consumidores; 5. A distinção dos juros; 6. Da capitalização dos juros; 7. Da comissão de permanência; 8. Da correção monetária; 9. Da ilegalidade dos métodos de amortização; 10. Dos juros de mora e da multa moratória; 11. Da limitação dos juros remuneratórios em 12% ao ano; 12. Conclusão.

1. BREVE RELATO HISTÓRICO

Ainda precisamos firmar contratos, pois sua importância fundamental é reconhecida pelo papel da permuta de obrigações e de circulação das riquezas.1 Entretanto, deve-se buscar sempre o equilíbrio contratual, ainda mais quando na atualidade tem-se reconhecido que o dogma da vontade é relativo.

Nos primórdios das relações negociais, o costume, embelezado pela HONRA, garantia à confiança de uma lealdade recíproca entre os contratantes, protegendo, também, as legítimas expectativas das partes e exigindo a proporcionalidade das obrigações, chegando naturalmente a uma justiça contratual (nova realidade do direito obrigacional).

O paradigma da pacta sunt servanda, hoje relativizado, era cogente pelo simples fato de nos antigos pactos haver maior calor aos princípios da honra e da lealdade na palavra, quer seja verbal ou escrita, com ou sem testemunhas. Todavia, é irrefutável lembrar que naqueles acordos de vontades era raríssimo o uso da “má-fé objetiva”, hoje constantemente visualizada.

Ou seja, no reinado da época em que o contrato era lei entre as partes, era induvidosamente mais fácil, simples e tranqüilo quitar as obrigações contratuais, pois, como dito, havia uma honestidade (boa-fé) inserida nas intenções de ambos os contratantes.

A famosa heresia denominada USURA (emprestar dinheiro a juros) foi repelida por séculos tanto pelo Clero quanto pela Nobreza, mas, na Idade Média após as vitórias “materiais” das Cruzadas Santas (1.314 d.c), os Cavaleiros Templários, tidos como “monges guerreiros” da Igreja Católica e como os primeiros banqueiros que a história ocidental conheceu, por incrível que pareça, chegaram a tal nível de riqueza e poder que financiaram países

1 Fernando Sousa é advogado, consultor jurídico, especialista em Direito Civil, em Direito Processual Civil e especializando em Docência do Ensino Superior.

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como a Espanha e a Inglaterra, sendo importante lembrar que muitos desses empréstimos onerosos eram destinados a guerras internacionais.

Os juros dos Templários não eram generosos, acarretando várias intrigas e desafetos em vista dos inadimplementos, chegando a amargar as vontades até do saudoso Rei Felipe, “O Belo”, o qual, pelo endividamento com os banqueiros da idade média, se uniu com o representante máximo da Igreja Católica da época e juntos excomungaram os Cavaleiros Templários, acusando-os de várias imoralidades materiais e espirituais, dentre elas a prática anticristã da usura.

Dos cavaleiros que foram pegos, todos formam condenados à morte, mas os que fugiram, escaparam com boa parte da grande fortuna dos Templários e, afirmam historiadores doutrinários, fundaram a Maçonaria, após a construção de uma Igreja tipicamente templária existente no Reino Unido.

Com a evolução e a propagação cancerígena da vertente mais ácida do capitalismo e sua economia de consumo, consolidou a prática do empréstimo a juros e, como se não bastasse, surgiram os artifícios de minúsculas cláusulas contratuais, harmônicas a siglas e expressões vinculadas a métodos de amortização matematicamente geniosos, o que eterniza um dos maiores pecados do ser humano: a GANÂNCIA.

Por mais que possamos filosofar sobre as intenções desse negócio jurídico, o grande desdouro dos contratos atuais não se encontra na inadimplência da parte vulnerável, mas nas articulações da parte que elabora as gananciosas cláusulas.

A salvação para os homens comuns, que não eram Reis, não veio com positivações dos costumes em si, mas veio pelas interpretações dadas pelo Poder Judiciário. Ora, os primeiros fundamentos jurídicos para a anulação dos contratos excessivamente abusivos achavam-se, sobretudo, nas disposições e nas intenções das vontades das partes.

O mais relevante é que a extensa enumeração de cláusulas contratuais nulas, em todos os sistemas jurídicos, tem como pressuposto fundamental o princípio de ser nulo o contrato quando um dos contratantes, abusando das condições gerais dos negócios, venha a prejudicar excessivamente o outro, agindo contra a moral ligada à boa-fé.

De consectário, justamente para disciplinar situações análogas ao tema, foi inserido na promulgada a Constituição Federal de 1988, o Título VII: “Da Ordem Econômica e Financeira”, agregando o Capítulo IV: Do Sistema Financeiro Nacional, o qual iniciava-se com o art. 192, que dispunha em seu famoso § 3º sobre as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, dizia o texto constitucional com clareza que não poderiam ser superiores a doze por cento ao ano e, ainda, havendo cobrança acima deste limite será

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conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos do Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933 (Lei de Usura).

Nesse mesmo norte, foi editado o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90) e reformado o Código Civil de 1916 (demudado pelo festejado Código Civil de 2002), os quais acolheram os princípios humanos supraaludidos para remanejar o mais popular direito obrigacional, satisfazendo as dúvidas que remanesciam, cristalizando-se, definitivamente, a possibilidade de revisão ou anulação do contrato, principalmente das cláusulas referentes aos juros, primando por um restabelecimento do equilíbrio nas relações de responsabilidades mútuas.

Com isso, houve uma disseminação das plataformas das famosas ações declaratórias de revisão de cláusulas contratuais, rescisão contratual, restituição de importâncias pagas, prestações de contas e até ações de reparação de danos, todas tendo como objetivo a redução dos juros contratados.

Ocorreu que, em 30/05/2003, depois de arregaçadas várias mangas políticas, entrou em vigor a emenda constitucional nº 40, a qual alterou o caput do art. 192 e revogou o mencionado §3º do mesmo artigo, que congelava os juros ao teto de um por cento ao mês. Em suma, a emenda 40 deixou o mundo jurídico sem parâmetro constitucional que taxasse os juros.

Contudo, ainda hoje é plenamente possível reduzir os juros contratados, mesmo em contratos firmados após a publicação da emenda constitucional nº 40, tendo em vista os princípios e a legislação infraconstitucional, sendo, embora, oscilante o percentual dos juros, dependendo de cada caso o quantum da redução.

2. DA APLICAÇÃO DO CDC ÀS INSTITUIÇÕES BANCÁRIAS E

FINANCEIRAS

De início, insta firmar que as regras atinentes à proteção contratual previstas pelo Código de Defesa do Consumidor são notoriamente aplicáveis às instituições bancárias e financeiras e, conseqüentemente, a todos os contratos vinculados a esses fornecedores, conforme se depreende da leitura da Súmula 297 do STJ:

STJ - SÚMULA 297 - O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.

Na esteira desse mesmo entendimento, o ilustre Ministro Aldir Passarinho decidiu que:

Aplicam-se às instituições financeiras as disposições do Código de Defesa do Consumidor, conforme cada situação

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específica, rejeitado o entendimento contrário, que não encontra sede adequada para confrontação. O que importa para sujeição às diretrizes do CDC é a relação jurídica existente entre o tomador e o fornecedor do crédito sobre o qual se litiga, que é de consumo, não a natureza da pessoa contratante ou a destinação dos bens adquiridos. ( STJ - AgRg no REsp 620.871).

Ato contínuo, após anos de aplicabilidade ostensiva do CDC, os Bancos começaram a sentir mais do que um decaimento de seus lucros, sentindo umdecaimento em seu poder, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) adentraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade histórica (ADI nº 2591/DF), requerendo ao Supremo Tribunal Federal a declaração da inconstitucionalidade do § 2º, do art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor, defendendo a inaplicabilidade do CDC às instituições financeiras, bancárias e de crédito.

Esse apelo bancário foi fora dos limites de qualquer glosador que tenha o norte à interpretação conforme a Constituição Brasileira, e a comprovação veio com o posicionamento majoritário do Plenário do Excelso Pretório, o qual, inobstante ser formado por Ministros que felizmente ainda são consumidores, negou o pedido inicial da ADI 2591, declarando, portanto, constitucional a aplicabilidade do CDC as relações de natureza bancária, financeira e de crédito:

1. As instituições financeiras estão, todas elas, alcançadas pela incidência das normas veiculadas pelo Código de Defesa do Consumidor. 2. ‘Consumidor’, para os efeitos do Código de Defesa do Consumidor, é toda pessoa física ou jurídica que utiliza, como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito. STF - ADI 2591/DF, Relator p/ Acórdão: Min. EROS GRAU, Julgamento: 07/06/2006, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicação: DJ 29-09-2006 PP-00031, EMENT VOL- 02249-02 PP-00142)

Assim, resta afastada a tese de inaplicabilidade do CDC aos contratos firmados com instituições financeiras, bancárias e de crédito, de corolário, foi mantido o leque normativo para se perfazer a revisão e a anulação jurídica dos contratos, como veremos.

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3. DAS POSSIBILIDADES DE REVISÃO E ANULAÇÃO DOS CONTRATOS

Como dito, em resposta legislativa as abusividades nos contratos de consumo, sobrevieram os artigos 51 e 54 do diploma consumerista, os quais não posso deixar de colacionar a lição do Eminente Ministro do Superior Tribunal de Justiça Ruy Rosado de Aguiar, que em artigo de sua autoria - Aspectos do Código de Defesa do Consumidor, nos ensina:

Para a fase da execução do contrato, está prevista a importantíssima regra sobre a possibilidade de modificação de cláusula sempre que o fato superveniente tornar a avença excessivamente onerosa, estabelecendo o desequilíbrio entre as partes e a quebra da equivalência entre prestação e contraprestação (art. 6º, inciso IV, do CDC). Não está aí incluído o requisito da imprevisão, como insistentemente se tem exigido até hoje no Brasil, nem que o prejuízo atinja a ambas as partes, como consta do projeto do Código Civil. Consagrou-se isto sim, a teoria da base do negócio, que autoriza a modificação, uma vezalteradas as condições objetivamente postas ao tempo da celebração.

Como regra da equivalência é uma norma de sobredireito, ela se aplica para ambos os lados e funciona a favor de qualquer das partes. (REVISTA AJURIS nº 52, pág. 181).

Sem dúvidas, permissa maxima venia, pode-se afirmar que muitos dos contratos que todos precisamos firmar, não alcançam aos bons costumes, às normas jurídicas e os relevantes interesses sociais.

Quer se examine sob o ponto de vista legal, sob os ângulos sociais e sob a ótica da moral, nada chancela a prática gananciosa das instituições financeiras e bancárias, eis que as cobranças abusivas por elas desencadeadas (com suporte em cláusulas contratuais, questionáveis, bem como nos valores lançados nos saldos devedores por métodos de amortização singulares) encontram intransponível obstáculo na Legislação Federal, na Constituição Federal e nas necessidades maiores da Nação.

Hoje, além da doutrina e da jurisprudência, é possível invocar a Lei para dizer que os contratos de empréstimo oneroso são tipificados como de adesão (artigo 54, da Lei nº 8.078/90), por isso, deve-se reclamar a interpretação da maneira mais favorável aos vulneráveis (artigo 47, da lei citada), legítimos consumidores dos serviços de natureza bancária, financeira e de crédito (artigo 3º, § 2º, e 29, da citada Lei).

A jurista Renata Mandelbaum, em sua obra: Contratos de Adesão e

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Contratos de Consumo, discerne a matéria de forma clara e precisa:

CONTRATOS DE ADESÃO E CONTRATOS DE CONSUMO

A interpretação do Contrato de Adesão reporta-se à interpretação do negócio jurídico, a necessidade de interpretação dá-se pela discrepância que observamos entre o alcance e o conteúdo das vontades expressas por meio de um contrato de adesão, a busca da vontade comum. Mesmo os contratos de adesão podem possuir cláusulas inseridas além da predisposição natural e da decorrente, cláusulas introduzidas em conformidade com a natureza do negócio jurídico celebrado, estas cláusulas específicas, prevalecem sobre as cláusulas preestabelecidas. Outra possibilidade é do intérprete se deparar com cláusulas conflitantes, sendo uma delas manuscrita ou mesmo datilografada, no impresso do contrato formulário, esta prevalece sobre a cláusula genérica, pois as partes apresentaram expressamente a sua vontade comum ao estipular diversamente do conteúdo contratual.

Apenas pelo que já foi dissertado, evidencia-se ser, ainda hoje, cabível a revisão e a anulação judicial de qualquer contrato de consumo. Como exemplo, nos contratos de empréstimo e financiamento de pecúnia ainda há determinação jurídica para ser realizado recálculo das transferências e lançamentos indevidos, inseridos indevidamente em cláusulas contratuais.

Analisando o Código Civil, forçoso reconhecer, nesse aspecto, que grande parte dos contratantes vulneráveis (na maioria consumidores) são mantidos na teoria do erro substancial, conforme dispõe o artigo 86, do Código Civil Brasileiro. Ora, pelo simples fato da parte que “deve aderir ao contrato” não saber quanto realmente são os juros efetivos com ou sem mora contratual é que acarreta num erro que vicia a verdadeira vontade do aderente, tornando anulável o negócio jurídico pela incerteza das condições do parto.

De valia lembrar que não se pode subsistir o ato jurídico decorrente de erro substancial, uma vez que, constatada a existência do erro, somente pode ser argüida pela parte interessada, ou por ele prejudicada, isto é, pela pessoa que aproveite do reconhecimento da existência do erro.

De observar ainda que o disposto do art. 421 do CC trouxe para toda relação contratual (quer seja ela de consumo ou não) um dos princípios basilares do CDC, o princípio da função social do contrato: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”.

O aludido dispositivo torna explicito, como condicionador do processo hermenêutico, que a liberdade de contratar só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, implicando os valores primordiais da boa-fé e da probidade, exigidos expressamente pelo art. 422 do mesmo diploma.

Complementa o quadro da nova visão do contrato o art. 317 do CC/02, que proclama:

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Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação.

Inobstante os fatos e fundamentos anteriormente aduzidos, os contratos passíveis de modificação ou extinção pelo Judiciário não são apenas os típicos contratos de adesão, mas também aqueles que permitem às partes discutirem livremente as condições do negócio, porque, mesmo quando as partes almejam uma posição de igualdade, nenhum contrato tem o poder de tornar moral o que é imoral, social o que é insocial.

Mas vale dizer que nos contratos de adesão a lesão já existe antes de firmadas as obrigações, visto que há a preponderância da vontade de um dos contratantes, simplesmente por ter elaborado todas as cláusulas sem a participação do outro contratante. Esse último adere ao modelo de contrato previamente confeccionado, não podendo modificá-las: aceita-as ou as rejeita, de forma pura e simples e em bloco, afastada qualquer alternativa de discussão.

4. AS LESÕES AOS CONSUMIDORES

No que tange as possibilidades e formas de lesão imposta aos consumidores, a doutrina hoje se encontra vivificada por Caio Mário da Silva Pereira, em sua obra “Lesão nos Contratos”, que assinala:

Em sua nova concepção do instituto, com as características de lesão qualificada, dois são os elementos que a caracterizam:I) a desproporcionalidade das prestações; II) o dolo de aproveitamento.Em sua nova dogmática, de que o projeto de Código de Obrigações de 1965 representa a abertura de rumos, foi desprezada a vinculação tarifária. Diversamente da lesão de metade, que é fundamental na origem ou lesão de uma quinta parte, o conceito moderno prefere uma referência genérica, vantagem manifestamente desproporcional ao proveito resultante da prestação oposta. (PEREIRA, S/D, p. 197-198)

A matéria já não que parece nova em nosso ordenamento jurídico, pois já foi comentada no início de nosso século, por Martinho Garcez, em seu clássico “Nulidades dos Atos Jurídicos”, embora considere a lesão de forma tarifada, ao lecionar que:

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A lesão divide-se em enorme, quando o engano se verifica em mais da metade do valor que a parte por comum estimação devia receber, por se presumir erro ou dolo, e em enormíssima, quando alguém recebeu somente a terça parte do valor da coisa.

O dolo ou erro, em se tratando de lesão enorme, segundo a doutrina, são presumidos, sendo dado à parte lesada a alternativa de pedir a exibição de documentos necessários para corroborar uma inevitável prestação de contas ou uma ação revisional de cláusulas contratuais. Sendo corriqueira a ocorrência de lesões enormes, face cobrança de juros superiores muito superiores ao antigos parâmetros constitucionais e legais (12% ao ano), mais encargos matematicamente camuflados, colocando os consumidores como devedores de valores além do que seria moralmente admitido.

A história jurídica brasileira tem arquivado fracassados planos econômicos ditados pelo Governo Federal, justamente por ato heróico e corajoso do Poder Judiciário, que, chamado a se manifestar, fê-lo de pronto e energicamente. Por exemplo, no famigerado “Plano Collor” que bloqueou, vergonhosamente, dinheiro em conta corrente dos brasileiros, a justiça, em tempo, confirmou o grande equívoco deste plano de confisco, protegendo o cidadão da ganância e a ambição de seus idealizadores.

Aos tempos atuais, a realidade não é muito diferente, em que os grandes fornecedores de serviços bancários e financeiros vêm praticando verdadeira sobreposição extorsiva aos brasileiros, usurpando dinheiro depositado ou emprestado sob a camuflagem de pactuação de encargos, expressivamente elevados, principalmente índice de juros, muito das vezes compostos e agregação de outros indexadores e taxas.

No campo das lides revisionais, em face dessas novas circunstâncias jurídicas, a Justiça Brasileira foi chamada a se pronunciar, e essa ainda está respeitando os princípios que coadjuvarão a estabelecer, com justeza, um índice equânime e consentâneo para a anulação de um contrato. São eles:

a) Intolerância de alto índice por configuração de usura;b) Razoabilidade de taxação no contexto econômico ec) Desequilíbrio contratual em razão da desproporcionalidade da pactuação.

Mesmo com as cláusulas expressas no contrato com referência aos juros, as mesmas devem ser analisadas com o acréscimo do alcance das amortizações, sob pena de vulnerar o artigo 52 do Código de Defesa do Consumidor, que reza que no fornecimento de produtos ou serviços que envolva outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor, o fornecedor deverá,

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ter todas as informações relativas ao financiamento, que devem ser fornecidas previamente e de forma adequada.

Além do exposto, como o rol do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor é exemplificativo, tendo em vista que os artigos 22, IV, e art. 56 do Decreto nº 2.181/97 (Regulamento do CDC) determinam à Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça editar anualmente rol de cláusulas abusivas extraídas da experiência cotidiana e da jurisprudência dos Tribunais para que seja complementado o artigo 51. Nesse desiderato, tem-se que, por meio da Portaria nº 3, de 19/03/1999, publicada no Diário Oficial da União em 22/03/1999, p.1, uma das cláusulas consideradas abusivas é a que estabeleça a cobrança de juros capitalizados mensalmente.

Após esse tópico, antes de adentrar ao “juro” propriamente dito, passo a analise de outros encargos contratuais, freqüentemente encontrados nos financiamentos e empréstimos, sendo que esses também sufocam o consumidor, mas sempre poderão ser reduzidos.

5. A DISTINÇÃO DOS JUROS

Um dos antônimos da palavra “juro” é a “punição”, ou seja, juro é toda e qualquer premio, vantagem, lucro ou benefício adquirido. Refletindo pelo lado contratual, os juros são formados não apenas pelo valor nominal estampado na cláusula própria, mas sim pela totalidade do conjunto de proveitos e ganhos da parte que lucra com o simples cumprimento das obrigações da outra.

Sobre a conceituação do tema, Maria Helena Diniz afirma que:

Juros - “ são o rendimento do capital, ou seja, o preço do uso do capital alheio, em razão da privação deste pelo dono, voluntária ou involuntariamente.” (DINIZ,s/d. p. 314);

Vejamos agora a visão da mesma autora sobre a bipartição dos juros nos gêneros compensatórios e remuneratórios:

a) compensatórios - “ decorrem de uma utilização consentida do capital alheio, pois estão, em regra, preestabelecidos no título constitutivo da obrigação, onde os contraentes fixam os limites de seu proveito, enquanto durar o negócio jurídico, ficando, portanto, fora do âmbito da inexecução.” (DINIZ,s/d. p. 307);b) moratórios - “ constituem pena imposta ao devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação, atuando como se fosse uma indenização pelo retardamento no adimplemento da obrigação.” (DINIZ,s/d. p. 308).

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Então, os juros remuneratórios são devidos para o pagamento do uso do dinheiro e os juros moratórios uma espécie de castigo pelo não pagamento em tempo em que deveria e/ou combinado.

Assim, os juros remuneratórios/compensatórios consistem em rendimento remuneratório do capital. Já os juros moratórios, constituem a pena imposta ao devedor pelo atraso no cumprimento da obrigação. Funciona como uma indenização pelo retardamento na execução do débito.

Veja-se que, desde 1994, o Colendo STJ explicava com precisão que os juros compensatórios não são propriamente “juros”, não podendo ser constituindo como um excedente sobre os valores, mas apenas como um meio de compensação:

III - Os chamados juros compensatórios não se constituem propriamente em jurosremuneração de capital - mas em verba destinada a compensar a perda antecipada do imóvel. Os juros moratórios são devidos pela demora no pagamento, devendo incidir sobre o total do quantum indenizatório. Dada a natureza das verbas, não ha a sugerida capitalização. ( STJ - REsp 44080/SP; Ministro CESAR ASFOR ROCHA; DJ 25.04.1994 p. 9217)

Antes que venha para a razão a idéia de que os juros compensatórios na podem cumular com os moratórios, por constituir anatocismo, escolho novamente as palavras do Colendo STJ e de sua, até então pouco usada, Súmula nº 102, na pessoa do então Ministro José Delgado Colendo, esclarecendo:

4. A teor da Sum. 102 desta Corte, a contagem de juros moratórios sobre compensatórios não constitui anatocismo vedado em Lei.5. Precedentes. ( STJ - REsp 113980/SP; Ministro JOSÉ DELGADO; DJ 22.04.1997 p. 14399)

Destarte, é plenamente permitido e moralmente compulsória a aplicação de juros compensatórios sobre os valores decorrentes da utilização consentida de um capital alheio, incidentes, preferencialmente, por mês e a partir da data de cada desembolso. E, ainda, passado o prazo de cumprimento da obrigação, deve ser cumulado aos compensatórios os juros moratórios, até a efetiva quitação da dívida existente.

Com tais detalhamentos, antes de adentrar nos juros contratuais, passo a abordar os mais notórios encargos contratuais, quais sejam a capitalização dos juros, a comissão de permanência e os métodos de amortização da dívida.

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6. DA CAPITALIZAÇÃO DOS JUROS

No que tange à capitalização dos juros, restou decidido nos termos expressos da Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal que “é vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.

Dessa forma, indiscutível o entendimento sumular acima referenciado, em que é vedada a capitalização dos juros remuneratórios, seja mensal ou semestral em contratos de financiamento. Entretanto, inobstante a generalização da Súmula nº 121 do STF, é permitida certa incidência da capitalização em casos excepcionais previstos em lei, ex vi do artigo 4º da Lei de Usura c/c a Súmula 93 do STJ, legitimando a capitalização em relação às cédulas de crédito rural, comercial e industrial, não se sabendo qual a fundamentação do Legislador para tal reserva.

Ademais, é mister registrar, que não há se cogitar de eventual inaplicabilidade da Lei de Usura à capitalização dos juros em virtude da Súmula 596 do STF, haja vista que tal dispositivo faz referência apenas à inaplicabilidade do regramento inserto no Decreto 22.626/33 na taxação de juros e outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas, que integram o sistema financeiro nacional.

Nesse compasso, novamente glosando a Sumula nº 121 do SFT, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que é permitida a capitalização anual dos juros:

Agravo regimental. Recurso especial parcialmente provido. Alienação fiduciária. Ação revisional conexa com ação de busca e apreensão. (...) 1. O tema referente à capitalização dos juros foi decidido com fundamento em ampla e pacífica jurisprudência desta Corte, que admite, em hipóteses como a presente, a capitalização anual. (...)” ( STJ - 3ª Turma, Min. CARLOS ALBERTO MENEZES, AgRg no REsp 655401/RS, DJ de 01/02/2005).

Ainda que expressamente pactuada, é vedada a capitalização mensal dos juros, somente admitida nos casos previstos em lei. Incidência do art. 4º do Decreto n. 22.626/33 e da Súmula n. 121-STF. ( STJ - 4ª Turma, Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, AgRg no REsp 718372/RS, DJ de 30/05/2005).

Veja-se que o colendo STJ se reporta, analogicamente, ao permisso expresso no art. 591 do CC:

Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena redução, não poderão exceder a taxa que se refere o art. 406, permitida a capitalização anual.

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De valia relembrar a mencionada Portaria nº 3 da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, que considerou como uma das cláusulas contratuais abusivas a que estabeleça a cobrança de juros capitalizados mensalmente.

Ainda, com a finalidade de evitar prejuízos irreparáveis aos consumidores, entendo ser incomportável também a aplicação da Medida Provisória nº 2.170-36, publicada no DOU em 24/08/2001, que reeditou as Medidas Provisórias nºs 1.782, 1.907, 1.963, 2.087, ainda vigentes, a teor do contido no artigo 2º da EC nº 32/01, que, em seu texto normativo, artigo 5º, permite, nas operações realizadas pelas instituições financeiras, a capitalização em periodicidade inferior à anual.

Isto porque, o eminente relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.316- DF, Ministro Sidney Sanches, prolatou voto deferindo a suspensão cautelar da eficácia do artigo 5º, caput e parágrafo único da medida provisória nº 2.170-36, de 23/08/2001, por aparente falta do requisito de urgência e pela ocorrência do periculum in mora inverso, mesmo que o julgamento da ADi ainda não tenha sido encerrado.

Assim, ressalvados os contratos de cédulas de crédito rural, comercial e industrial (exceções expressas em lei), são pífias as teses de que é possível a capitalização mensal dos juros remuneratórios nos demais tipos de contrato, por simples falta de amparo legal, sendo permitida, tão somente, a capitalização anual, por analogia ao art. 591 do CC e por precedentes do STJ, como dito alhures.

7. DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA

Sobre a cobrança da comissão de permanência, com o advento da Lei nº 6.899/81 que autorizou a incidência da correção monetária para compensar a desvalorização da moeda e remunerar a instituição financeira mutuante no caso de inadimplemento do devedor, a referida comissão perdeu a sua função, já que seria ilegal a aplicação simultânea das duas correções, pois, ao contrário, configuraria bis in idem e afronta o princípio da eqüidade (justo equilíbrio entre direitos e obrigações das partes) associada ou alternada com a boa-fé, previstos nos arts. 4º, III do CDC e 422, 423 e 424 do CC.

Desse modo, em respeito às Súmulas nºs 30 e 294 do Superior Tribunal de Justiça, a comissão de permanência quando contratada, só poderá ser cobrada no período de inadimplência, desde que não cumulada com a correção monetária, multa contratual e juros remuneratórios e, ainda, limitada à taxa média de mercado, sem extrapolar o percentual pactuado para os juros do contrato.

Nesse sentido, a orientação jurisprudencial Pátria dita que:

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(...) 1. Confirma-se a jurisprudência da Corte que veda a cobrança da comissão de permanência com os juros moratórios e com a multa contratual, ademais de não permitir a sua cumulação com a correção monetária e com os juros remuneratórios, a teor das Súmulas nºs 30, 294 e 296 da Corte. (...) ( STJ - 3ª Turma, Min. CARLOS ALBERTO MENEZES, AgRg no REsp 729067/RS, DJ de 01/08/2005).

Dessa forma, improsperável a assertiva dos Fornecedores, pois incomportável a cobrança de comissão de permanência, devendo ser afastada e substituída por correção monetária, conforme se observa no tópico seguinte.

8. DA CORREÇÃO MONETÁRIA

No que se refere à correção monetária, pondero que as particularidades do INPC fizeram com que se tornasse um dos mais aperfeiçoados índices de atualização do valor nominal da moeda aplicável nas relações de consumo. Atualmente, no Brasil, este índice é o legalmente utilizado para correção dos valores defasados pelo processo inflacionário.

Todavia, o INPC não é sempre o índice mais benéfico, concorrendo equiparadamente com outros, como a TR (Taxa Referencial), a qual, até meados de 2002, superava o índice nacional de preços ao consumidor.

Prevendo isso, poderá o consumidor pedir judicialmente a aplicação do índice mais benigno para corrigir monetariamente a dívida. Tal liberdade é legalmente avalizada pelo CDC (art. 47) e pelo CC (art. 423), autorizando o privilegio do consumidor com um índice que amenize sua desigualdade perante o fornecedor.

Nesse contexto, correta é a substituição da comissão de permanência pela correção monetária, sendo mais comum o INPC como índice de atualização, haja vista ser o que melhor promove o reajuste das prestações convencionadas em sintonia com a inflação em vigor, mas há permissão legal capaz de propiciar alternativa para outro índice cuja correção seja mais favorável ao consumidor.

9. DA ILEGALIDADE DOS MÉTODOS DE AMORTIZAÇÃO

Sobre os métodos de amortização utilizados nos contratos de empréstimo e financiamentos de relações de consumo, temos como mais famosa a utilização da Tabela Price como índice de amortização, também denominada de TP, ou Tabela Progressiva, ou Índice Hamburguês, ou Sistema Francês e matematicamente chamada de Capitalização Exponencial.

Antes de qualquer contexto, colaciono argumentos do próprio Richard

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Price que, em seu livro, explana os efeitos de sua “obra”, ao explicar suas tabelas a juros compostos e as conseqüências de seus sistemas de parcelas. Di-lo:

Um Penny posto a juros composto do dia do nascimento de Cristo até 1.781, produz um crescimento equivalente á duzentos milhões de globos de ouro sólido, iguais ao do tamanho da terra, porém se fosse posto a juros simples no mesmo período produziria uma quantia igual ou não maior do que 7 Shilings e seis pence “ (MESCHIATTI, Nogueira, in: “Tabela Price - Da Prova Documental e Precisa Elucidação do seu Anatocismo” - Obra original por: PRICE, Richard, 1783, 4ª ed., p. 228).

Como se observa, tal sistema eleva-se o débito extraordinariamente, cobrando os juros de todas as parcelas antecipadamente na primeira prestação, mantendo o consumidor na supramencionada Teoria do Erro Substancial e infectando o pacto com a onerosidade excessiva.

Visto isso, resta claro que tabelas ou sistemas como a Price são métodos de amortização que incorporam juros compostos para chegar o valor total da dívida. No entanto, como o art. 4º do Decreto Lei nº 22.626/33, a Súmula 212 do STF e os princípios do CDC e do CC proíbem o anatocismo, juros compostos ou juros sobre juros, conclui-se que a Tabela Price e outras similares são ilegais e devem ser afastadas dos contratos de prestações diferidas no tempo, porque impõe excessiva onerosidade ao contratante (arts. 478 e 479 do CC, c/c o art. 51 do CDC).

Aliás, esse é o entendimento do STJ:

A aplicação da Tabela Price aos contratos de prestações diferidas no tempo impõe excessiva onerosidade aos mutuários devedores do SFH, pois no sistema em que a mencionada Tabela é aplicada, os juros crescem em progressão geométrica, sendo que, quanto maior a quantidade de parcelas a serem pagas, maior será a quantidade de vezes que os juros se multiplicam por si mesmos, tornando o contrato, quando não impossível de se adimplir, pelo menos abusivo em relação ao mutuário, que vê sua dívida se estender indefinidamente e o valor do imóvel exorbitar até transfigurar-se inacessível e incompatível ontologicamente com os fins sociais do Sistema Financeiro da Habitação. 6. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido. (STJ - REsp 668795/RS; 2004/0123972-0; Ministro JOSÉ DELGADO; PRIMEIRA TURMA; DJ 13.06.2005 p. 186.).

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No mesmo sentido (SFH - TABELA PRICE - CAPITALIZAÇÃO): STJ - RESP 572210-RS (RNDJ 56/95), RESP 410775-PR, AGRG NO RESP 647989-RS, AGRG NO RESP 622550- RN, AGRG NO RESP 524920-RN, RESP 601445-SE.

Assim, tratando-se de financiamento imobiliário, fiduciário, contrato de abertura de crédito, entre outras diversidades de empréstimos, resta legalmente vedada a aplicação de sistemas de amortização que capitalizam geometricamente ou até aritmeticamente os valores do débito.

10. DOS JUROS DE MORA E DA MULTA MORATÓRIA

Em tempos hodiernos, no que diz respeito à aplicação da multa moratória e dos juros de mora, seus parâmetros somente são corretos quando a estipulação contratual fixa os juros de mora em 1% (um por cento) ao mês e a multa moratória em 2% (dois por cento) ao mês sobre o valor total da dívida, conforme a Lei de Usura e o art. 52, §1º, do CDC.

Sobre a multa moratória, veja-se que após a Lei nº 9.298/96, o teto deve ser de 2%, esse é o entendimento do Colendo STJ:

3. Nos contratos firmados após a vigência da Lei 9.298/96, a multa moratória deve ser reduzida para 2%. ( STJ - 4ª Turma, Min. BARROS MONTEIRO, AgRg no Ag 599872/ RS, DJU de 07/03/2005).

Sobre os juros de mora, por oportuno esclarecer que o renovado art. 406 do Código Civil de 2002 definiu a porcentagem dos juros de mora em 1% (um por cento) ao mês:

Art. 406. Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.

Agora o que seriam os impostos devidos à Fazenda Nacional? O artigo 161, §1º do CTN nos responde:

Art. 161. O crédito não integralmente pago no vencimento é acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo determinante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia previstas nesta Lei ou em lei tributária.§ 1º Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora

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são calculados à taxa de um por cento ao mês.

Juristas reunidos na Jornada de Direito Civil promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF), sob a coordenação científica do Ministro Ruy Rosado de Aguiar Jr., do Superior Tribunal de Justiça, editaram o seguinte enunciado, antes da revogação do artigo 192, parágrafo 3º, pela Emenda Constitucional nº 40/03:

Enunciado 20: A taxa de juros moratórios a que se refere o artigo 406 é a do artigo 161, parágrafo 1º, do Código Tributário Nacional, ou seja, 1% (um por cento) ao mês.

Dessarte, é justo, pela compensação e pela mora do inadimplente a incidência dos juros moratórios, no importe de 1% ao mês.

Desse modo, como a porcentagem dos juros da demora (ou juros pelo inadimplindo) é legalmente e jurisprudencialmente taxada em apenas 1% (um por cento) ao mês, qual seria então a porcentagem justa dos chamados juros remuneratórios, levando em consideração que os mesmos já não tem qualquer regulamentação positivada? Vejamos o próximo tópico.

11. DA LIMITAÇÃO DOS JUROS REMUNERATÓRIOS EM 12% AO ANO

Quanto à aplicação dos juros remuneratórios em contratos de relação de consumo ou não, entendo ainda ser aplicável a redução e a limitação de tais juros ao patamar de 12% (doze por cento) ao ano, mesmo em contratos firmados após a emenda constitucional nº 40, de 30/05/2003.

Alinhavo minhas fundamentações não só em normas constitucionais, mas precipuamente em normas e princípios infraconstitucionais. Prima facie, a limitação dos juros remuneratórios não deve perder de vistas o contido nos arts. 170, V e 173, § 4º, da CF/88, os quais combatem tanto a formação de cartéis, monopólios, quanto o aumento exagerado dos lucros por qualquer instituição. Confira-se:

Art. 173. Ressalvados os caso previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 4º. A lei reprimará o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao

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aumento arbitrário dos lucros.

A despeito de se frear o excessivo lucro obtido pelas instituições financeiras através dos juros, seguem-se as normas infraconstitucionais ínsitas no Código de Defesa do Consumidor e também do Código Civil, de onde se extrai magnos princípios que devem ser respeitados, a saber:

a) Princípio da função social, ou seja, a “compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica” (trecho do inciso III, do art. 4º, do CDC); princípio presente no art. 421 do Código Civil e, implicitamente, conduz também a previsão do art. 173 da CF. b) Princípio da eqüidade retributiva e da boa-fé objetiva que se traduz na “transparência” e na “informação” necessária ao bom desempenho e conhecimento que se exige nas relações de consumo, presente no art. 4º, III e art. 51, IV, do CDC, previsto inclusive no art. 422 do CC;c) Princípio da comutatividade que decorre, essencialmente, de influências de ordem econômica e consiste na idéia de que toda troca de bens ou serviços deve fundar-se sobre o postulado da equivalência das prestações.d) Princípio da equivalência material, que trata da “vulnerabilidade”, da “harmonização dos interesses” ou do “equilíbrio nas relações”, tipificado no art. 4º, I e III, e art. 47, do CDC, encontrado, ainda, nos arts. 423 e 424 do Código Civil.

Esses princípios são de cunho social e aproximam as tendências protetivas nos dois Códigos. Portanto, a tendência futura é o desaparecimento progressivo da distinção dos regimes jurídicos, com a prevalência da constitucionalização do Código Civil, harmonização e incorporação das previsões do CDC aos contratos comuns.

Portanto, tais princípios mostram-se imperativos a qualquer contrato, cujas cláusulas alcançam induvidosamente a pactuação da taxa de juros, cujo limite deve ser observado para que não se ultrapasse os limites da razoabilidade e coloque em desvantagem exagerada à parte hipossuficiente, qual seja, o consumidor.

É bom que se diga que o percentual de doze por cento ao ano, foi o único patamar legalmente estipulado pelo Poder Legislativo e confirmado pelo Judiciário.

Nessa esteira, não se pode olvidar que recentemente o Excelso Supremo

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Tribunal Federal, consolidando o seu posicionamento relativo à questão trazida a lume nesse artigo, editou a Súmula 648, em que se pronuncia pela necessidade de regulamentação do dispositivo constitucional, hoje extirpado do mundo jurídico, o qual estipulava o limite máximo da taxa de juros não superior a 12% (doze por cento) ao ano.

Entretanto, interpretando o revogado § 3º do art. 192 da CF/88, impende-se considerar que o patamar máximo dos juros remuneratórios sempre esteve delimitado pela redação de tal norma, sendo que a prática de taxas mais elevadas reclamava um disciplinamento legal, o que ainda não ocorreu.

Vale lembrar que todos os disciplinamentos legais realizados até hoje e a grande maioria das interpretações judiciais, sempre consideraram os juros ao limite de 12% ao ano, com esteio nas normas do art. 5º da Lei de Usura, §3º do art. 192 da CF, art. 406 do CC e o art. 161, §1º, do CTN. Observe-se:

Decreto nº 22.626/33 - Art. 5º. Admite-se que pela mora dos juros contratados estes sejam elevados de 1% (um por cento) e não mais.

CF - Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, será regulado em lei complementar, que disporá, inclusive, sobre: (Artigo revogado pela redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)

§ 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar. (Parágrafo revogado pela redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003)

Destarte, a Constituição Federal, o Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor determinam, por diversas vezes, a aplicação do chamado “juro legal”, mas todas as positivações existentes estão pendentes de futuras leis complementares. Todavia, o Poder Judiciário, considerando todas as legislações antigas e modernas que formam o ordenamento jurídico, deve, a meu sentir, adotar um posicionamento firme para regular, impedir e reprimir os excessos praticados pelas instituições bancárias. A sociedade está a mercê de um limite legal aos juros, mas, pelos conjuntos normativos acima, é patente que ordenamento vigente prima por um parâmetro de valor dos juros a

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serem cobrados, o que significa que o quantum dos juros não está livre de controle judicial, máxime quando se observa que inexiste qualquer lei ou ato normativo que desqualifique o limite dos juros em 12% ao ano ou que restrinja a aplicabilidade das normas limitadoras.

Por fim, considerando que é de interesse da economia do país que não haja capital remunerado exagerado, pois impede o desenvolvimento de quem se vincula a um contrato, em face da falta de estipulação dos juros legais, considero o limite de 12% (doze por cento) ao ano como sendo uma taxa justa de cobrança de juros remuneratórios.

Imperioso salientar, ainda, malgrado o disposto na Súmula nº 596 do Supremo Tribunal Federal, editada anteriormente à Constituição Federal de 1988, a majoritária jurisprudência tem reconhecido que o Decreto-Lei nº 22.626/33 (Lei de Usura) foi recepcionado pela Lei Maior. Devendo, tal norma, ser aplicada de forma analógica frente à determinação do seu art. 5º, onde os juros pactuados não podem ser superiores a 1% ao mês.

Acrescento que o Supremo Tribunal Federal tem, recentemente, negado seguimento a Recursos Extraordinários propostos pelos Bancos e Instituições Financeiras contra a limitação dos juros em 12% ao ano, principalmente quando há no acórdão fundamentação em normas infraconstitucionais. Confira-se:

DECISÃO: Trata-se de RE em face de acórdão que limitou a 12% ao ano os juros incidentes sobre o débito.Para assim decidir, o acórdão recorrido, além de fundar-se na auto-aplicabilidade do artigo 192, § 3º, da Constituição Federal, baseou-se em fundamento infraconstitucional. (...) Sendo suficiente à sustentação do acórdão recorrido, incide, mutatis mutandis, o princípio da Súmula 283 (“É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”). (STF - RE nº 470313; procedência: GOIÁS; Min. Sepúlveda Pertence; DJ nº 42 - 02/03/2006 - Ata nº 20)

1. Trata-se de recurso extraordinário interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás que manteve a sentença de procedência da ação de prestação de contas para, entre outras disposições, estabelecer em 12% ao ano os juros relativos ao contrato firmado entre as partes com base na auto-aplicabilidade do art. 192, § 3º, da Constituição e na legislação infraconstitucional.

2. Omissis. 3. Omissis.

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4. No tocante ao mérito, debate-se limite de juros em contrato de abertura de crédito em conta-corrente. O acórdão da apelação decidiu que esses encargos devem ser limitados em 12% ao ano por aplicação da Lei de Usura e do § 3º do art. 192 (redação originária) da Constituição Federal. (...)

Os fundamentos de caráter infraconstitucional, suficientes per se para manter o acórdão recorrido no tocante ao teto dos juros, tornaram-se, portanto, definitivos, obstando a impugnação, mediante recurso extraordinário, com base no art. 192, § 3º, da Constituição, nos termos da Súmula STF nº 283. Sobre o tema, confiram-se: RE 372.872-ED, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, DJ de 27.06.2003; RE 346.572-ED, rel. Min. Sydney Sanches, Primeira Turma, DJ de 24.09.2002; e AI 373.994-AgR, rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ de 18.06.2002. (STF - RE nº 420395; procedência: GOIÁS; Min. Ellen Gracie; DJ nº 226 - 25/11/2005 - Ata nº 180)

Com se percebe, o Pretório Excelso reconhece a supremacia dos princípios infraconstitucionais aplicáveis à espécie, considerando-os suficientes e capazes de reduzir os juros ao limite de 12% ao ano, inobstante a revogação do §3º do art. 192, da CF.

Logo, os encargos fixados no decisum atacado, a meu sentir, guardam inteira proporção entre o prestador de serviços e o consumidor, já que a limitação da taxa de juros remuneratórios em 12% ao ano mantém o equilíbrio do contrato, amparado, de igual modo, nos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais invocados, como dito alhures.

12. CONCLUSÃO

Hoje é inegável o uso da “má-fé objetiva”, conceituada como a capacidade inerente e dissimulada de auferir vantagem indevida, uma intenção hoje constantemente materializada nos sistemas de amortização e progressão das obrigações contratadas, progredindo geometricamente o ônus da parte potencialmente mais fraca sem que mesma tome ciência do ardil matemático.

Assim, a permanência abusiva de juros constitui medida nefasta, pois rompe drasticamente o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e obriga o contratante, em sua maioria consumidores, a pagar mais do que permite os princípios do Direito, a moral e a lei. Tal ocorrência segue em total confronto com o fato do contrato nascer de uma ambivalência, de uma correlação essencial entre o valor do indivíduo e o valor da coletividade, como diz o sólido pensamento do jurista Miguel Reale, mentor do novo Código Civil.

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Di-lo:O contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do indivíduo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida. (REALE, 1986, p. 10.)

Pensar em sentido contrário, isto é, de que todas as normas e os princípios capazes de limitar os juros foram revogados pela Emenda Constitucional nº 40 e pela Súmula 648 do STF, seria conferir às instituições bancárias e financeiras o salvo conduto para que tenham a prerrogativa desmedida de estipularem a taxa de juros que melhor lhes convier, aumentando ainda mais os seus já exorbitantes lucros.

Entendo, dessa forma, que nos contratos celebrados anterior ou posteriormente à vigência da Emenda Constitucional nº 40/03 é possível à relativização da intangibilidade das cláusulas contratuais (pacta sunt servanda), em estreita observância aos ditames da Constituição Federal, do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil que, atento às repercussões sociais dos contratos privados, enseja a firme intervenção estatal a tutelar a hipossuficiência do consumidor, na dicção dos princípios aqui levantados.

A propósito, é oportuno considerar que a supradita Súmula 648 do STF, não foi aprovada por 2/3 dos membros daquele Sodalício (art. 103-A, CF), portanto, não é uma súmula vinculante, e como tal não tem status de Lei e pode, perfeitamente, ser contrariada, como já ocorre dentro do próprio Tribunal genitor da mesma.

No mesmo diapasão, malgrado a assertiva de que, por força dos incisos VIII e IX do artigo 4º da Lei nº 4.595/64, foi conferido ao Conselho Monetário Nacional (CMN) a competência para “limitar, sempre que necessário, as taxas de juros, descontos, comissões e qualquer outra forma de remuneração de operações e serviços bancários”, convém ressaltar que limitar não significa liberar, como vem entendendo as instituições financeiras, pois essa liberdade não pode resultar em benefício exclusivo das mesmas em detrimento dos consumidores, porquanto significaria afronta à Lei, tanto do Código Civil quanto do Código Consumerista.

Realmente o CMN teve suas obrigações e responsabilidades alargadas após a ementa constitucional nº 40, conforme bem dissertou o ilustre Ministro EROS GRAU do Excelso Supremo Tribunal Federal, quando Relator do Acórdão e da ementa da ADI 2591/DF:

4. Ao Conselho Monetário Nacional incumbe a fixação, desde a perspectiva macroeconômica, da taxa base de juros praticável no mercado financeiro.

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9. O Conselho Monetário Nacional é titular de capacidade normativa --- a chamada capacidade normativa de conjuntura --- no exercício da qual lhe incumbe regular, além da constituição e fiscalização, o funcionamento das instituições financeiras, isto é, o desempenho de suas atividades no plano do sistema financeiro.

Neste desiderato, devem ser analisados os casos concretos, observando nos contratos se os encargos avençados foram fixados em percentual acima do permitido pelos princípios do direito e pelos acervos normativo passados e presentes, devendo constar cristalino que tal pactuação, além de dever ter sua permissibilidade permitida no cenário jurídico brasileiro, não deve ser por demais excessiva e onerosa ao consumidor.

Deve-se considerar, de igual modo, que vivemos em uma economia em que a taxa de inflação anual está, por enquanto, controlada, bem como ao trabalhador brasileiro é aplicada a correção de seu salário em percentual anual ínfimo, não restando dúvida de que qualquer índice que corrija a dívida contratada acima de 12% (doze por cento) ao ano, fica, no mínimo, impagável.

Ainda hoje, e infelizmente por muitas décadas, comprova-se em muito contratos que sem a devida intervenção e prestação jurisdicional para ajustar o equilíbrio na relação pactuada, o consumidor/contratante torna-se mais do que vulnerável no contexto econômico, torna-se desprovido do combustível do consumo: o dinheiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986.

A QUESTÃO JURÍDICA DA EUTANÁSIA COMO CAUSA SUPRALEGAL DE EXCLUSÃO

DA CULPABILIDADE

FLAVIO RIBEIRO DA COSTA1

Na atualidade a questão da eutanásia está a suplantar as expectativas em termos de questionamento1. Todos os segmentos sociais manifestam interesses ou reprovações pela sua prática. Uns a defendem. Outros a condenam.

De há longos anos a eutanásia vem sendo cogitada, tendo inclusive o Parlamento Saxônio a repudiado em 1903, na Alemanha.

Em 1906 tomou nova definição nos Estados Unidos, tendo o poder legislativo do Estado de Ohio aprovado um projeto que dava direito ao cidadão de pedir a eutanásia a um tribunal.

Em 1912, num congresso, nos Estados Unidos, a matéria sobre a eutanásia voltou a ser discutida de forma mais abrangente, a ponto de na Alemanha, o Parlamento Imperial questionar um projeto, no sentido de que todo aquele que levasse a morte sem dor a uma pessoa e a pedido do enfermo, não seria castigado pela justiça.

Na Inglaterra, por volta de 1922 foi proposta a criação de uma alçada medica que tivesse o poder e a autonomia de facilitar a morte aqueles que sofressem doenças incuráveis, incluindo o câncer entre elas.

O código penal Tchecoslovaco, em 1925 atenuava a pena e dependendo do caso, absorvia aquele que tirava a vida de uma pessoa impelida por piedade e com o fito de livrá-la das dores insuportáveis.

Na longa trajetória em busca da legalização da eutanásia, sempre tem pautado a necessidade de extremos cuidados, pois a vida é a preciosa. A vida, como um dom divino, é protegida e guarnecida pelo Estado através dos órgãos competentes.

Para a consecução da eutanásia há de haver a anuência do paciente, o consentimento do Estado e a existência de um mal incurável, de causa desconhecida ou, conhecida e de rêmora cura.

BIZZATO, José Ildefonso, assim se expressa:

“Num sistema jurídico em que a lei penal é de ordem publica, e em que a pena se impõe em nome da sociedade inteira, e, por conseqüência, do Ministério Publico, seu representante, não é possível derrotar por convenções particulares as leis de ordem publica”.

1Advogado

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Segundo esse entendimento não tem amparo jurídico o consentimento ou a vontade do paciente. A vida é embasada em principio de ordem publica, que não podem ser negociados por acentos particulares.

Diz ainda o mesmo autor,

“a vontade privada, inclusive a do ofendido, não pode ter o valor de apagar a criminalidade do ato, excluindo toda a pena. O consentimento não legitima o homicídio, e inútil é invocá-lo no extermínio das vidas atormentadas”.

MENEZES, Evandro Corrêa de diz que,

“é de pouca importância psicológica o consentimento, podendo duvidar-se da sanidade ou integridade mental do que pede a morte aguilhoada pela dor, sob o domínio da angustia e da emoção”.

Juridicamente, na atualidade, a eutanásia é inconcebida e inaceitável pelo Estado, em vista de não poder admitir-se a impunidade áquele que, mesmo a pedido, tira a vida de outrem.

O ato de tirar humana é contrario á moral e ás leis, donde não tem valor o consentimento dado pelo paciente.

No entendimento de PESSINE, Léo,

“quando o individuo renuncia á própria vida, a ela não renuncia a vontade comum, que defende com as leis a existência dos indivíduos no interesse publico”.

Nessa linha de pensamento a lei entende ser responsável criminalmente e ate civilmente, aquele que, mesmo a pedido, elimina outrem, tornando-se um homicidasuicida.

As indagações acerca da eutanásia se prendem ao fato de saber se a lei pode criar uma espécie de escusa legal do homicídio?

A resposta é positiva. Cria essa espécie legal de escusa, quando ampara a legitima defesa, o estado de necessidade ou o homicídio praticado em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito, conforme preceituar o artigo 23 do Código Penal Brasileiro.

A legislação atual encara a eutanásia e a julga sob o império do artigo 121 parágrafo 1º do Código Penal, quando relaciona os casos de diminuição de pena. “Se o agente comete o crime impelido por motivos de relevante valor social ou moral ou sob o domínio de violência emoção...”. A pena é diminuída de um sexto a um terço.

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Segundo o Código Penal,

“três são as hipóteses de homicídio privilegio: a de o agente ter cometido o homicídio impelido por motivos de relevante (importante, considerável, digno de apreço) valor social (atinente a interesse coletivo); impelido por motivo de relevante valor moral (relativo a interesse particular) e sob domínio de violenta emoção”.

Alguns advogam contrario á tese da eutanásia, dizem que a sua pratica e ou a morte voluntária de um ser humano pode ser assassínio ou liberação de um sofredor ou aberração política ou ato legitimo de defesa, conforme o motivo que a determina.

Não tem validade esse argumento, eis que para a legalização da eutanásia, necessário se faz a presença de pessoa e ate do poder e até do poder judiciário, para a concessão desse beneficio, não vigiado apenas a alegação de que, aberrações de que, aberrações políticas pudessem determinar a morte de alguém.

Juridicamente não deveria haver diferença entre a ação daquele que se suicida com uma arma ou veneno e a ação daquele que, a pedido, usa a vontade de outro para a pratica da eutanásia.

NORONHA, Edgar Magalhães, por sua vez, também entende que

“reconhecer o intuito caritativo do matador por um motivo de plena exculpação importaria, na adoção de um precedente subversivo em matéria penal”.

Não pode subsistir tal assertiva, eis que o Estado não reconhece a morte no estado de necessidade e a ampara. Concorda com a morte na legitima defesa e a assegura.

Pela lei, o ser humano pode tirar a vida de um outro ser humano que injustamente lhe agredira, mas está proibido de sentir compaixão pelos seus semelhantes.

A lei torna o coração do homem brutal, pois o impede de chorar, de sentir piedade e de ajuda alguém partir para o alem, em paz.

Na explicação da eutanásia se deve ter em mente a pessoa do aplicador, observada a sua conduta social, aptidão legal e idoneidade.

Todos os casos eutanásicos realizados à revelia de um pedido formal e com parecer do Ministério Publico, deverá ser julgado como homicídio, pelo juízo singular, depois de devidamente analisada a prova carreada aos autos.

Se, provado, por testemunhas e por outros, e todos meios de provas admitidos em direito, ser o matador inocente e que fora levado a esse ato por

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sentimentos nobres, devera ser sumariamente absolvido, sem passar pelo vexame do Tribunal do Júri.

Assim, necessário se faz distinguir a eutanásia medica, da eutanásia feita por piedade, levada a efeito por particulares, amigos, familiares ou desinteressados outros.

Não pode ser taxado de criminoso aquele que dentro das normas já esboçadas neste trabalho, aliviar também é curar.

A vida humana se apresenta em dois estágios. O material (vida terrena) e o espiritual (vida eterna).

A medicina tem que ser completa, ou seja, cuidar das agruras físicas, terrenas e preparar o individuo para a eternidade (supressão dos sofrimentos).

O medico não quer a morte do paciente, mas tão-somente sura-lo e ou aliviar-lhe as dores, não tendo culpa se a cessação do sofrimento causar a morte.

Coerente com essa linha de entendimento, observar-se que algumas nações estudaram a eutanásia com mais afinco, enquanto que a legislação brasileira omitiu-se a este respeito.

Analisando os códigos Filipinos, Manuelinas e Afonsinos, não encontramos disposições expressas a respeito da eutanásia, nem inclusive o nosso código Imperial de 1830 fez referencias, salvo em seu artigo 196 que continha orientações sobre a ajuda ao suicídio: “ajudar alguém a suicidar-se ou fornecer-lhe meios para esse fim com conhecimento de causa” pena: prisão de 2 a 6 anos.

Não pode prosperar a comparação da eutanásia com o direito de matar, cuja ocorrência vem regulado artigo 23 do Código Penal Brasileiro e pela carta magna quando instituiu a defesa da pátria e a defesa contra a guerra.

No atual Código Penal, a eutanásia esta encoberta pelo homicídio privilegiado, ou seja, o cometido por motivos de relevante valor social ou moral. Não basta diminuir a pena na forma do artigo 121 parágrafo 1º do Código Penal.

Por este dispositivo legal a pena e diminuída de um sexto a um terço, se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção.

Mas, na eutanásia, não basta diminuir a pena, urge não apesar o eutanatista, eis que seu ato é movido por sentimento nobre e não pode culpa, ou outra modalidade de diminuição que careça de diminuição de pena.

Necessário se faz isentar totalmente de pena àquele que levado por um sentimento altruísta, piedoso, tira a vida de outrem. O homicídio piedoso dever ser transformado em ações piedosas e não em homicídio.

O termo homicídio da idéia de culpa, de ilícito, de crime, de ação assassina, de mal, de algo contrario á moral e aos princípios sociais. O eutanatista não

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pode ser chamado de criminoso e nem de longe comparado com ele.Ora, se matar é um crime, não há porque tornar a ação criminosa

abrandaste.Não existe crime mais forte ou menos forte. Tudo é crime. A lei, perdida

no tempo e no espaço ousou inventar determinadas minorantes, que não tiram o cunho e a essência infração.

Na eutanásia não deve existir minorantes, pois que o ato praticado não se reveste de ação perversa, nem ilícita e como tal não existe crime.

Na atualidade, encontrar um conceito unânime de eutanásia é tarefa não muito fácil, já que os diversos autores a definem levando em consideração suas concepções religiosas, morais éticas e jurídicas. Podemos dizer que é a privação da vida de uma pessoa, tida como paciente terminal, a requerimento da própria, ao desejar pôr fim aos seus sofrimentos e dores.

De acordo com o finalismo - teoria normativa pura da culpabilidade, não há culpabilidade todas as vezes que, tendo em vistas as circunstancias do caso concreto, não se possa exigir do sujeito uma conduta diversa daquelas por ele cometida. Assim, a exigibilidade de conduta diversa constitui elemento da culpabilidade, enquanto a não exigibilidade constitui a razão de algumas causas de exclusão da culpabilidade.

A exigibilidade parte do principio que só pode ser punidas as condutas que podem ser evitadas.

Para os finalistas a culpabilidade é compreendida como um puro juízo de valor, de reprovação sobre o autor, por não haver este se omitido da ação antijurídica, ainda quanto podia fazê-lo.

Uma das mais importantes contribuições do finalismo foi à extração de todos os elementos subjetivos da culpabilidade, dando origem, dessa forma, a concepção normativa pura da culpabilidade.

Dolo e culpa é deslocada para o tipo, com o que a finalidade é levada ao centro do injusto. Em conseqüência, na culpabilidade somente subsiste circunstancias que condiciona a reprovabilidade da conduta contrairia a ordem jurídica.

Quanto à previsibilidade do legislador embora este se esforce, não pode prever todos os casos em que a inexigibilidade de outra conduta deve excluir a culpabilidade. Assim, é possível a existência de um fato, não previsto pelo legislador como causa de exclusão da culpabilidade, que apresente todos os requisitos. Portanto, em face de um caso concreto, seria condenar-se o sujeito unicamente porque o fato não foi previsto pelo legislador? Se a conduta não é culpável, por ser exigível outra, a punição seria injusta, pois não a pena sem culpa.

A aplicação da teoria encontra apoio na integração da lei penal. Vimos que o direito penal tem lacunas, desta feita, não havendo norma descritiva de

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fato semelhante, o juiz pode absolver o sujeito com base nos costumes e nos princípios gerais do direito em que se fundamenta a exigibilidade. Então, o juiz não estaria aplicando uma norma contida na legislação penal, mas sim uma causa supralegal de exclusão de culpabilidade. Tratase de um critério a ser adotado pelo juiz com ponderação, atendendo a situações excepcionalissíma, como no caso da eutanásia, não prevista pelo legislador.

Nelson Hungria lembra que os preceitos sobre causas descriminantes, excludentes ou atenuantes de culpabilidade ou de pena, ou extintivas da punibilidade, constituem jus singular em relação aos preceitos incriminadores ou sancionadores e, assim, não admitem extensão alem dos casos taxativos enumerados.

Entendemos que a eutanásia até poderia ser tipificada, desde que houvesse discussões profundas para evitar, ou, ao menos, minimizar os questionamentos futuros, já que a morte sempre foi, e será, grande imprecisão para o ser humano. No caso de tipificação da eutanásia, dever-se-ia apresentar requisitos objetivos e procedimentos para que assim, em cada caso, fosse possível decidir ou não pela sua aplicação.

Porém, dependendo do caso, havendo a ausência de exigibilidade de conduta diversa, verdadeiro principio geral da culpabilidade, contrariando frontalmente o pensamento finalista, se torna incongruente punir o inevitável.

Pelos motivos apontados, outra conduta não se pode exigir do medico, que não a interrupção do desnecessário e desumano sofrimento que chegaria que já se sabe resultará na morte. Destarte, não pode e não deve o paciente ser obrigado a suportar o prosseguimento sofrimento, além do pior, que será presenciar a morte que já antecipadamente sabe que virá a ocorrer. O sofrimento, portanto, seria desumano e inexigível, e o prolongamento desse quadro não traria ao paciente nenhum benefício, mas ao contrário, prejuízo maior do que ela já vem sofrendo e certamente sofrerá.

Por estas razões, de ordem doutrinária e jurisprudencial, independentemente de posições em contrário, inclusive de fundo religioso, ousei divergir da maioria, pois só é culpável o agente que se comportar ilicitamente, podendo orientar-se de modo diverso; o pressuposto basco do principio da não-exigibilidade, e a motivação normal. O que se quer dizer com isso é que se a culpabilidade, para configurar-se, exige uma verta normalidade de circunstancias. À medida que as circunstancias apresentam-se significam ente anormais, deve-se suspeitar da presença da anormalidade também no ato volitivo.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após tecer as considerações acerca do instituto da eutanásia, apontando situações a partir de diversos aspectos da consciência e inconsciência do paciente e por a eutanásia, não está ligada só a morte, mas também à vida e à dignidade humana, Parece lícito afirmar que a única razão para não se entender possível a adoção da inexigibilidade de conduta diversa na eutanásia como causa supralegal de exclusão da culpabilidade, para alguns doutrinadores, é julgar exauridas no Código Penal todas as possibilidades de ausência de reprovação. Porem, tal entendimento torna-se mutável à medida em que forem sendo demonstradas possibilidades outras de conduta incensurável por não se poder reclamar diferente ação ou omissão do sujeito. E é justamente em razão de essas hipóteses se fazerem presentes no mundo dos fatos que se vem sustentando a possibilidade de exclusão da culpabilidade. Assim, considerando a faculdade de uso da analogia para normas penais justificantes; considerando a exigibilidade de conduta diferente como elemento (ou pressuposto) da culpabilidade e considerando que o legislador jamais será onisciente a ponto de prever todos os acontecimentos do mundo dos fatos, não será defesa a absolvição do agente, com base no artigo 386, inciso V, do Código de Processo Penal, se não podia o ordenamento jurídico-criminal, no caso da eutanásia, a ele impor outro comportamento, mesmo que esse ordenamento não tenha antevisto a faculdade. Então, o que se pode afirmar é que o legislador, sabendo da impossibilidade de previsão de todas as hipóteses de inexigibilidade de outra conduta, preferiu elencar as causas de exclusão da culpabilidade nela baseadas através de fórmula meramente exemplificativa, o que possibilita a interpretação analógica da eutanásia.

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ACESSO À JUSTIÇA, EXCLUSÃO SOCIAL E AUXÍLIO-RECLUSÃO: CONSTATAÇÕES DE

UMA PESQUISA EMPÍRICA

ELIZABETE DAVID NOVAES1

MARESSA MELLO DE PAULA2

1. APRESENTAÇÃO

Não há dúvidas de que a temática da exclusão social pode ser estudada sob diversas óticas. A Ciência Política, por exemplo, pode estudar a questão a sob o ponto de vista dos Tribunais serem centros de decisões políticas; a Economia pode debruçarse a compreender a questão das custas para se ter acesso a justiça; enquanto a Sociologia pode voltar-se para a problemática da administração da justiça.

Neste trabalho, o que buscamos fazer é uma análise do acesso a justiça a partir de um viés sócio-jurídico, considerando tal acesso um direito fundamental do cidadão, elencado no artigo 50, inciso XXV da Constituição Federal em vigência, segundo o qual: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Neste dispositivo está assegurado o direito de ação, ou seja, o acesso a justiça, sendo reforçado neste referido artigo que a lei não pode excluí-lo.

Para tanto, visamos compreender a problemática do acesso à justiça a partir de um recorte temático, qual seja, o benefício do auxílio-reclusão. Com tal propósito, realizamos uma pesquisa empírica, por meio da qual foram entrevistados alguns familiares de presidiários, selecionados por meio de uma rede de contatos pessoais, que se dispuseram a conceder informações acerca de suas experiências com relação ao auxílio-reclusão. Por uma facilidade

1 Profa. Dra. Em Sociologia pela Unesp de Araraquara. Docente das Faculdades COC de Ribeirão Preto. [email protected]. br2 Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto, Turma de 2008. [email protected]

Sumário1. Apresentação; 2. Discussão teórica acerca da problemática; 3. Constatações decorrentes da Pesquisa de Campo: A) Aspectos Gerais das entrevistadas; B) Observações Relevantes: B.1. Acerca do Histórico do Presidiário; B.2. Acerca da Culpabilidade do Presidiário; B.3. Acerca de como foram obtidas Informações sobre o Auxílio-Reclusão; B.4. Acerca da efetiva ajuda do Benefício; B.5. Acerca da possibilidade de cessão do Auxílio-Reclusão; 4. Aspectos Conclusivos.

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pessoal da pesquisadora, os contatos foram feitos preferencialmente na cidade de Bebedouro, onde foi possível conversar com familiares - exclusivamente mulheres, dentre elas quatro esposas e um mãe de presidiários, que nos contaram suas experiências e percepções acerca do benefício em questão.

As entrevistas foram feitas de maneira não dirigida, por meio de uma conversa na qual as entrevistadas se sentissem confortáveis para se expressarem acerca dessa experiência em suas vidas, verbalizando se e como esse benefício teria sido importante para a manutenção familiar, e se lhes faria falta sua cessão depois que a pessoa que dá causa a esse benefício vier a ser colocada em liberdade.

Consideramos que o acesso a justiça está elencado como direito social de segunda geração, devendo obrigatoriamente ter uma prestação material por parte do Estado para a sua concretização. É preciso, sem dúvida, que tenhamos certa cautela em fazê-lo, visto que a realidade da justiça no Brasil tem as suas especificidades, reflexão que desenvolvemos a seguir.

2. DISCUSSÃO TEÓRICA ACERCA DA PROBLEMÁTICA

Nos países desenvolvidos a questão da acessibilidade está intimamente relacionada com a possibilidade de os Tribunais reconhecerem novos direitos, tais como os das mulheres, dos estrangeiros, dentre outros. Desse modo, nos países desenvolvidos, à justiça torna-se um problema que envolve a possibilidade de exercer a cidadania em face dos novos direitos (BARBIERI, 2007).

No Brasil, por outro lado, o problema concernente a acessibilidade à justiça não é esse, mas sim o de que o nosso país está cercado de miséria e pobreza, e a exclusão social presenciada aqui não é das minorias, como podemos observar nos países desenvolvidos, mas sim, a exclusão social das maiorias.

A questão da exclusão dos mais pobres não é de hoje que vem sendo tratada, muito menos que vem ocorrendo. Trata-se de uma temática antiga que surge em razão das mudanças ocorridas na história.

Há séculos atrás, quando ainda se verificava o sistema de feudos, as pessoas que ali trabalhavam o faziam para obter comida, para ter uma casa e proteção, e as pessoas estavam adaptadas a esse sistema (HUBERMAN, 1987).

Ocorre que com o surgimento das cidades, a expectativa da oportunidade de ter uma vida melhor fora do campo, acaba por atrair muitas pessoas que antes viviam sob o sistema do feudalismo, e elas se vêem obrigadas a encarar a realidade do capitalismo. Entretanto, como nos mostra a história, essa transição não foi pacífica e indolor para as pessoas que sofreram com a saída do campo rumo ao desconhecido das novas cidades:

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...o processo de desenvolvimento capitalista ocorre geralmente de um modo um tanto anárquico e irracional, e o deslocamento dos futuros operários do campo para as cidades não é nem automático nem indolor, provocando fenômenos de inserção de alguns dos novos que chegam no interior dos mercados chamado “ilícito”..., e igualmente de rejeição e de hostilidade da parte dos estratos sociais, também operários, precedentes. (DI GIORGI, 2006, p. 23)

Com essa profunda mudança, os camponeses que não se adaptaram ao novo sistema a eles imposto acabaram por vivenciar muitos conflitos, tendo como uma solução para eles a de serem recolhidos ao cárcere de maneira indefinida, para “pagar pelo mal que eles fizerem a sociedade” (GIORGI, 2006)

Nesse período, o cárcere ainda não apresentava um caráter de ressocialização do preso, mas sim uma maneira de simplesmente tirá-lo do convívio da sociedade. Ocorre, contudo, que depois de certo tempo:

...o cárcere será visto como um resíduo arcaico da passado e serão previstas novas “alternativas” punitivas, “correcionais” e “reeducativas”; ao mesmo tempo, em algum canto do mundo, as primeiras patrulhas em busca de um “canalha” estarão começando a apressar-se, num incansável movimento, em direção aos confins do contrato social/império. (GIORGI, 2006, p.24)

Mas o que podemos perceber é que esse paradigma da pobreza ainda se faz presente até hoje em nossa sociedade, e para melhor compreendermos essa afirmação passaremos a analisar dois textos, escritos em épocas diversas, mas que demonstram a mesma filosofia, a de desprezo por tamanha pobreza que, de modo desabusado, ousa se tornar evidente, deixando contaminado o ambiente metropolitano. (GIORGI, 2006)

Como mostra o citado autor, o que ocorre com o passar do tempo é que na Europa do século XVII e XVIII “as estratégias do poder mudam lentamente, passando de uma função negativa de destruição e eliminação física do desvio, a uma função positiva de recuperação” (DI GIORGI, 2006, p.26), e é com essa mudança que surge a fase do encarceramento. Ao invés de destruir os corpos das pessoas marginalizadas, estas passam a ser encerradas, em locais específicos, como uma forma de punição ao corpo com o intuito de que na sua produtividade na prisão, se evidencie o poder econômico concernente ao capitalismo.

Isto porque, depois do surgimento do capitalismo, os presos começam a ser encarados como uma força de trabalho, não podendo se dar ao luxo de

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morrer ou de simplesmente nada produzir.Surge aí a questão da “biopolítica” (GIORGI, 2006, p.27), inaugurando

um modelo de controle social disciplinar, que visava dar contornos à fase de expansão industrial. E a partir da primeira metade do século XX essa “articulação entre a disciplina dos corpos e governo das populações se completará, materializando-se no regime econômico da fábrica”.

A pena nos mostra duas funções primordiais, a primeira é a de prevenção, sendo o seu objetivo imediato o de dissuadir os criminosos em potencial de violarem as leis, tentando fazer com que as camadas potencialmente criminosas prefiram, por uma consideração racional, não cometer as ações proibidas, para não serem vítimas da punição; a segunda é que essas penas variam de acordo com a história guardando relação com o universo da economia. (RUSCHE, 1976 apud GIORGI, 2006)

Assim colocado todo esse histórico, voltemos para a realidade que é instalada em nosso país como meio de defender os interesses dos menos favorecidos em relação aos seus interesses perante a justiça.

No art. 5 da nossa Carta Magna está elencado como um direito fundamental a prestação de assistência jurídica às pessoas necessitados, como podemos notar:

LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos;

A partir de 1988, com o surgimento da atual Constituição Federal, surge o órgão denominado de Defensoria Pública, sendo ele regulamentado no art. 134 da referida Constituição:

Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.

A Defensoria é responsável por prestar um serviço gratuito àquelas pessoas que não possuem condições financeiras de arcar com um advogado particular e com as custas que um processo judicial demandam.

Esse órgão é oficial, estatal e obrigatório, contando com profissionais qualificados para possibilitar o acesso a Justiça, sendo esses profissionais denominados de defensores públicos, sendo tais profissionais advogados, concursados e pagos pelo Estado para prestarem esse tipo de assistência à população.

Entretanto, esse órgão é considerado novo, pois ele teve a sua previsão

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em 1988, mas não foi de imediato implantado. Agora, implantando em vários estados da Federação, o que ainda ocorre é que ainda existem poucos profissionais para tanta demanda, existindo a Defensoria Estadual e a da União.

No Estado de São Paulo, somente em 2005 a Defensoria Pública foi implantada, sendo somente depois de dezessete anos de espera que se chegou tal órgão a São Paulo, e não sem forte apelo popular para que isso ocorresse.

Segundo um levantamento feito pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (Andp) chegou-se a conclusão de que para cada 100 mil pessoas há apenas 1,8 defensores públicos no país, em contrapartida a proporção de juízes para uma população de 100 mil pessoas é de 7,7.

Dessa maneira, o que podemos notar é uma total desproporção entre os investimentos realizados em relação aos diferentes âmbitos de atuação de Estado, pois o que ocorreu foi uma grande preocupação do Estado com a organização do Estado julgador (Poder Judiciário e Magistratura) e do Estado acusador (Ministério Público), já com o Estado defensor, que é a Defensoria Pública podemos perceber um grande desinteresse, pois o que temos condições de notar foi um descaso em relação a proporcionar às pessoas mais carentes um meio satisfatório de acesso a justiça.

Ainda mais na realidade brasileira, em que 90 milhões de pessoas vivem na pobreza; em não existindo um órgão com uma boa estrutura essas pessoas se encontram completamente abandonadas e desamparadas pelo Estado.

E é assim que podemos perceber a situação da Defensoria Pública no Brasil, fortemente desamparada pela União, segundo dados do presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos, Leopoldo Portela Júnior. (BARBIERI, 2007)

Ocorre que a instituição defensoria foi uma ótima idéia criada e de certa maneira, fomentada pelo Estado, só que ainda engatinha com relação a uma prestação jurisdicional efetiva perante as pessoas que dela necessitam.

Como podemos perceber, de acordo com as explanações feitas acima, não há como garantir uma acessibilidade efetiva a justiça para os necessitados, pois os meios que deveriam garantir o seu acesso não possuem investimentos necessários para que isso possa ser proporcionado.

Como exigir que um defensor público cuide de milhares de processos com olhos atentos? O que deveria existir é uma preocupação maior de Estado com relação às políticas que proporcionasses melhor atendimento e um quadro de funcionários maior do que é existente hoje.

Trazendo a temática para o benefício do auxílio-reclusão, o que podemos perceber é que as pessoas que percebem tal benefício são consideradas de baixa renda mediante uma estipulação constitucional. Dessa maneira, em sua maioria, tais pessoas se encontram assessoradas juridicamente por defensores

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públicos, ou os que fazem suas vezes. Assim, uma constatação interessante que se pode obter a partir disso, é a de que quem deveria fornecer à família do preso a informação da existência do benefício do auxílio-reclusão, seria o seu defensor, e justamente não é isso o que ocorre na prática, como pôde ser observado nas entrevistas realizadas com as famílias dos encarcerados.

3. CONSTATAÇÕES DECORRENTES DA PESQUISA DE CAMPO

A metodologia da pesquisa realizada possui enfoque essencialmente qualitativo, voltada para levantamento, análise e compreensão das representações que os entrevistados fazem acerca do auxílio-reclusão. Para tanto, foram aplicadas entrevistas não-diretivas e semi-diretivas com 5 mulheres que recebem o benefício do auxílioreclusão. Estas entrevistas foram gravadas e transcritas, permitindo análise do conteúdo e captação dos aspectos mais subjetivos dos entrevistados.

Vale salientar, acerca da metodologia de pesquisa, que os estudos de representações sociais voltam-se para a captação e compreensão dos valores e percepções de determinada categoria social acerca do fenômeno investigado (MINAYO, 2000). No caso em estudo, o objetivo de investigaçao é o Auxílio - Reclusão, cabendo à pesquisa investigar a sua legitimidade a partir de sujeitos empíricos - familiares beneficiados e agentes jurídicos que tratam da temática como especialistas ou estudiosos da questão.

Inicialmente, para a realização das entrevistas, foram feitas as apresentações iniciais da entrevistadora à entrevistada, buscando esclarecer o motivo da entrevista, definindo se a entrevistada concordava em conceder a entrevista. Algumas solicitaram que a entrevista não fosse gravada, outras não se opuseram a gravação, desde que seu nome não fosse citado. Vale ressaltar, portanto, que os entrevistados não foram identificados no decorrer do trabalho, tanto por uma postura ética quanto pela absoluta falta de necessidade de qualquer tipo de identificação.

Posteriormente, seguimos um roteiro semi-diretivo que serviu como ponto de referência para o contato com os familiares tidos como beneficiários do auxílio -reclusão. Este instrumento pôde fornecer um quadro geral e inicial das mulheres investigadas em nossa pesquisa e a visualização desses dados segue na grade de categorias a seguir apresentada:

A) Aspectos Gerais das entrevistadas

Das 5 mulheres entrevistadas, 4 são companheiras ou esposas do preso em questão, e uma delas é a mãe do presidiário. Dessa maneira podemos perceber que a ligação afetiva e familiar é bem grande na vida dessas pessoas.

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Em todas elas percebemos que o valor do benefício do auxílio-reclusão faz muita diferença na vida delas, visto que todas são pobres e algumas só tem essa renda do benefício como sustento da família, e até mesmo com uma maneira de ir ao encontro de seu familiar preso na cadeia.

Todas elas demonstram que esse benefício é bastante válido para sua vida e da família por esse benefício auxiliada, mas ficam em dúvida sobre como seu familiar irá ajudar no sustento da família quando não estiver mais no cárcere e o benefício for cessado. Uma das entrevistadas entende que o benefício não deveria cessar quando a pessoa fosse colocada em liberdade, visto que ela entende que ao sair da prisão, a pessoa que ali esteve terá muita dificuldade para encontrar um novo serviço para auxiliar ou até mesmo sustentar a família que dela depende.

B) Observações Relevantes:

B.1. Acerca do Histórico do Presidiário

As mulheres entrevistadas foram, no decorrer das entrevistas, relatando um breve histórico dos maridos e filho que se encontram detidos, no sentido de evidenciar o que estavam fazendo antes de cometerem o crime que os levou à prisão.

“Meu marido trabalhava para uma construtora aqui da cidade, só que ele viajava muito a serviço, nem sempre ele estava aqui, e trabalhava com ele o meu irmão e o meu cunhado também. Enquanto eles estavam fazendo um serviço em uma cidade, eles ficaram bêbados em um bar e entraram em uma briga, e no final das contas acabou morrendo duas pessoas por causa deles. O que meu marido fala é que meu irmão se engraçou por uma mulher casada, e essa briga foi com o marido dela”. (Entrevistada 01)

“...a polícia pegou ele com drogas dentro do carro, e achou que ele era traficante. Ele tinha acabado de arrumar um serviço quando isso aconteceu, ele estava tomando jeito, porque eu tava grávida, e a gente tinha que mudar de vida.Ele ajudava a carregar e descarregar mercadoria de caminhão no supermercado. Fazia uns 5 meses já, ele já tinha até virado efetivo com carteira e tudo.” (Entrevistada 02)

“Ah... ele (o filho) se envolveu com uns amigos mal elementos, isso foi depois que ele começou a trabalhar, acho que para ele trabalhar não fez bem, porque depois disso ele chegava muito

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tarde em casa sabe filha, e foi ficando difícil. Ele apareceu com uma moto nova aqui em casa, mas logo ela sumiu, e foi assim que ele começou no crime, né?!... Era.. ele tava roubando sim, mas você sabe como é pobre né, já foi esbanjando e logo foi pego pela polícia.Antes disso ele era um menino calmo, nunca tinha se metido em confusão, ele me ajudava em casa sabe, eu faço crochê para vender, tapete, bico de toalha essas coisas, e ele me ajudava em casa mesmo com isso. E depois que ele começou a trabalhar ele mudou muito... Nossa filha, demais, ele chegava tarde direto, foi mal criado comigo, não me ajudava mais em nada nos serviços de casa.Ele foi trabalhar num posto de gasolina aqui no bairro. Quando ele arrumou o serviço eu achei que era bom né...ele tinha carteira de trabalho assinada, ganhava cesta básica todo mês, só que ele tinha um coleguinha lá do posto que fazia essas coisas e precisava de alguém pra ajudar ele, e o meu menino entrou nessa.” (Entrevistada 03)

É interessante observar nos depoimentos acima um misto de lamento e conformismo, pois elas demonstram que a situação em que viviam não era fácil. Afirmam que todos eles eram pessoas que estavam trabalhando “direitinho” e entraram em algum tipo de confusão.

Como podemos observar no caso da entrevistada 1, o marido dela trabalhava, e se empenhava em seu trabalho, como podemos sentir durante a entrevista ele era um bom marido e bom pai, só que durante uma briga ele acabou cometendo um crime que o retirou na convivência familiar.

A entrevistada 2 demonstra em suas palavras que o seu marido era sim uma pessoa que vivia do crime, mas que em razão da sua gravidez, eles chegaram a um entendimento que deveriam mudar de vida, visto que se não estivesse trabalhando, ele não teria carteira assinada e em razão disso não faria jus ao benefício, demonstrando uma lucidez em relação ao auxílio-reclusão.

Já no caso da entrevistada 3 que a relação é entre mãe e filho, ela mostra claramente que não sabe, ainda hoje, se foi melhor mesmo ele ter arrumado um serviço fora de casa, já que, segundo suas palavras “foi isso que o modificou, pois antes era um menino prestativo e que a respeitava, e depois do trabalho fora de casa ele acabou mudando e entrando para o mundo da marginalidade”.

B.2. Acerca da Culpabilidade do Presidiário

Nos depoimentos colhidos, observamos uma tentativa de defesa do ato cometido, pois de acordo com três entrevistadas que falaram acerca da

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culpabilidade do familiar preso, houve legítima defesa, ou uma incriminação por parte de um terceiro que seria o real culpado. Em relação ao filho preso, a mãe afirma enfática que a culpa foi do pai dele, que não lhe dava mais dinheiro.

“Ele fala que foi legítima defesa, que os caras já foram atacando...mas ele sempre foi esquentadinho sabe, paviu curto, ele brigou com os caras, mas acho que foi exagero o tempo que ele vai passar na cadeia por isso, ele sempre foi trabalhador.” (Entrevistada 01)“Só que foi culpa do pai dele isso, porque antes o pai ajudava com dinheiro né, mas ele parou e eu não tava mais agüentando com as contas e as crianças, e como ele era o mais velho, ele que foi trabalhar fora né.” (Entrevistada 03)

“Ele foi preso porque o nosso vizinho escondeu as coisas que ele roubou no nosso quintal, e quando a polícia chegou não quis nem saber de quem era, já foram prendendo ele, ele é inocente disso tudo.”

B.3. Acerca de como foram obtidas Informações sobre o Auxílio-Reclusão

Perguntadas sobre como ficaram sabendo do benefício do auxílio-reclusão, as entrevistadas apresentaram as seguintes respostas:

“É que aqui no meu bairro tem mais gente que está na cadeia, e as vizinhas me falaram que se ele tivesse carteira de trabalho que eu receberia dinheiro enquanto ele estava preso. ... Eu fui na justiça de graça, eu ganhei um advogado do governo para fa zer esse pedido para mim. .” (Entrevistada 01)

“Os colegas lá da cadeia que falaram para ele, e eu fui atrás disso né, não dava pra ficar sem dinheiro nenhum.Não, a minha vizinha já tinha ido na faculdade para conseguir advogado de graça, e eu fui também.” (Entrevistada 02)

“A minha comadre que me contou, ela recebia do marido que estava preso, aí eu fui lá na sua faculdade para que pedissem o dinheiro para mim. (Entrevistada 03)

“Eu pedi sim (o auxílio-reclusão). Eu não trabalho né, ia ser difícil eu me sustentar depois que ele foi preso. (...) Aqui no bairro todo mundo sabe desse benefício, né, tem bastante gente que já foi presa por aqui.” (Entrevistada 04)

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B.4. Acerca da efetiva ajuda do Benefício

É notório o fato de que o benefício do auxílio-reclusão exerce extrema importância na vida dessas famílias, uma vez que se trata de pessoas com baixa renda, destituídas muitas vezes de emprego, com vários filhos e dificuldades materiais cotidianamente enfrentadas. Até mesmo o fato de deslocar-se para a visita ao marido no presídio (que por vezes fica numa localidade distante) acaba mostrando-se um gasto excessivo, como se observa no depoimento da entrevistada 01.

“A única coisa é que eu gasto um tantão indo visitar ele na cadeia. Quando teve a rebelião na cadeia que ele estava que era aqui perto, ele foi transferido para longe. Eu gasto mais dinheiro para visitar ele. E agora eu recebo o dinheiro, que antes ele não me dava nada.” (Entrevistada 01)

A entrevistada 02 aponta os gastos que tem com seus outros filhos, bendizendo o benefício que recebe em razão da detenção de um de seus filhos, que antes lhe ajudava economicamente.

“Ele (o filho) ajudava sim, isso eu não posso reclamar não filha, mas o menino mudou dum tanto que não dava mais, ele estava rebelde sabe, muito diferente, e logo foi preso. (...) Acho muito bom essa ajuda do governo, faz muita diferença esse dinheiro né, filha, eu tenho mais 4 filhos pra sustentar, e sem esse dinheiro eu não sei o que eu iria ter que fazer.” (Entrevistada 03)

Por outro lado, há também aquela situação em que a esposa percebe-se verdadeiramente beneficiada com o auxílio, uma vez que quando o marido estava em liberdade não podia contar com seu dinheiro, e hoje tem uma garantia de recebimento do benefício que é gasto com ela mesma, como se percebe no depoimento da entrevistada 04.

“Eu acho é bom, agora eu não tenho que dividir né. Gasto mais comigo esse dinheiro. Visito ele toda semana, mas a cadeia é aqui perto.” (Entrevistada 04)

Uma das entrevistadas causa estranheza quando afirma que, embora necessite de auxílio material, pois não se encontra em condições econômicas favoráveis, não recebe o auxílio reclusão por proibição do próprio marido.

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“Eu não recebo esse auxílio-reclusão... Ele não deixou, disso que era como confessar, assumir que ele é culpado, e ele não me deixou pedir. (Mas você não precisa de autorização dele para isso...) Mas ele vai brigar comigo se eu pedir. Não sei se ele ta certo... mas ia ajudar com as crianças esse dinheiro. Não é que eu ache que ele seja culpado, eu tenho certeza que não foi ele mesmo, mas se eu poderia pedir, acho que seria bom.

Por enquanto eu to dando conta. Mas eu sei que pra eu continuar com ele eu não posso pedir, ele nunca vai me perdoar.” (Entrevistada 05)

Vale salientar que a entrevistada 05 demonstrou muita resistência em conceder a entrevista, que foi bastante curta e contida. Talvez aqui possamos perceber uma relação de poder masculino bastante forte, exercida pelo marido sobre a esposa, uma vez que esta, mesmo tendo a necessidade do dinheiro para os cuidados dos filhos, recusa a possibilidade de valer-se do benefício por proibição do marido.

B.5. Acerca da possibilidade de cessão do Auxílio-Reclusão

“Não sei se era melhor quando ele estava trabalhando... Agora com ele lá na cadeia eu sei que ele não vai aprontar. Mas as crianças sentem muita falta dele. Ele era um bom pai.Não sei ainda como vai ser, quando ele sair... mas vai ser difícil ele ganhar a mesma coisa que eu estou recebendo, vai ser mais difícil ele achar emprego. Quem emprega gente que saiu da cadeia?” (Entrevistada 01)

“Tá sim né, esse dinheiro ajuda. Não ia ter como eu criar a minha filha sem esse dinheiro, ia fazer muita falta se não tivesse, porque antes ele trabalhava. É... (pausa), quando ele sair vai ser mais difícil, porque ele não vai conseguir trabalho, e não sei como vamos fazer depois...bem que podia continuar depois, e ainda mais porque ele nunca gostou de trabalhar.”(Entrevistada 02)

“É filha, vai sim, vai fazer falta esse dinheiro, ainda mais porque ele não vai arrumar emprego quando ele sair, e o meu medo e ele sair, não trabalhar e me dar trabalho. A vida ta mais tranqüila assim.“ (Entrevistada 03)

“Quando ele sair da cadeia o benefício acaba? Acaba sim. Já acostumei a gastar esse dinheiro sem pedir nada pra ele.

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Eu prefiro desse jeito, eu sou livre, ganho o salário dele, e sei que ele não está aprontando... lá preso, não tem jeito, né?!.”(Entrevistada 04)

O que nos foi permitido apreender com as palavras proferidas pelas pessoas que são beneficiadas com o benefício do auxílio-reclusão é que elas ainda não sabem como será o futuro quando seus familiares não estiverem mais no cárcere, demonstram um certo conformismo e em alguns casos até gratidão com o fato da pessoa que gera o benefício permanecer na prisão.

Não há dúvidas de que há uma grande dificuldade do ex-presidiário encontrar um emprego quando sair do cárcere, e as entrevistadas demonstram essa grande preocupação, de que quando colocada em liberdade a pessoa não encontre mais um emprego. Alguns não pelo motivo de não terem essa disposição, mas sim por falta de oportunidade concedida por um provável empregador a um ex-presidiário.

Existe ainda outra preocupação que é notória nas palavras das entrevistadas de que enquanto seus maridos ou filho encontram-se no cárcere, elas tem a consciência de que não têm como cometer outro delito, e até mesmo o fato de estarem atrás das grades as deixam mais tranqüilas, demonstrando que há até mesmo um sentimento de que a permanência de seu ente na prisão geraria um certo “conforto” para elas.

4. ASPECTOS CONCLUSIVOS

O que vemos com o benefício do auxílio-reclusão, é que a seguridade social adotou critérios objetivos para que a família pudesse pleiteá-lo, e não critérios subjetivos como, por exemplo, se a família tinha ou não conhecimentos sobre a intenção do segurado em praticar o ato ilícito que o levou ao cárcere.

Outra constatação importante a ser feita é que o benefício não tem natureza indenizatória, mas sim uma natureza alimentar, pois nos deixa claro a intenção do legislador em proteger a família do preso que não tem condições de subsistência enquanto o provedor do lar se encontra no cárcere e impossibilitado de exercer algum tipo de serviço, de atividade remunerada, para colaborar com o sustento de sua família.

Podemos perceber que a questão da constitucionalidade ou não da Emenda Constitucional 20/98 é muito polêmica, pois com o seu surgimento foi evidenciada a questão do requisito da baixa renda como sendo necessário para a concessão do benefício em estudo.

Essa problemática, em nosso entendimento, deve ser vista com olhos criteriosos, e sem dúvida alguma, o princípio da solidariedade pode ser percebido como um pilar para a concessão de tal benefício, pois sem ele, não seria justificado o seu pagamento, e não haveria razão para o Estado preocupar-

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se com a família de uma pessoa que cometeu um crime, e que se encontra no cárcere.

Outro ponto importante é a questão da personalidade da pena, sendo este um direito previsto no art. 5 da Constituição Federal. Por tal princípio, entendemos que não há como punir a família do presidiário em razão de seu delito. Isto significa que quem deu causa a concessão do benefício foi o delituoso, mas quem irá usufruir de tal benefício é sua família e não ele.

Conforme as entrevistas realizadas e colocadas em pauta neste trabalho, entendemos que a concessão do benefício pode acabar gerando o desejo de que o familiar permaneça preso para poder continuar percebendo o benefício.

Entretanto, o Estado não pode se ocupar desta questão, pois esta possui um cunho subjetivo, e se o Estado limitasse a concessão do benefício em razão deste critério ele estaria sendo injusto com a família do delituoso. Como evidenciado, as políticas sociais do Estado para auxiliar essas famílias não são efetivas, e assim, o auxílio-reclusão acabou se tornando um paliativo para a solução do problema em questão.

Portanto, de modo conclusivo, entendemos tratar-se de um benefício muito válido e necessário para a manutenção de nossa sociedade, pois ele tem alguns requisitos que filtram o acesso a ele, como o de que a pessoa tem que ser filiada ao sistema da previdência social para poder pleiteá-lo, como também o requisito de baixa renda, que acaba por limitar o seu acesso a toda a população.

Outrossim, ainda que seja um benefício importante, entendemos que ele apresenta uma conseqüência perversa, a medida que fomenta na família um sentimento de desejar que o seu ente continue no cárcere para perceber o benefício. Esse desejo está presente em quase todas as famílias que percebem o benefício em razão, por julgarem que quando a pessoa que deu causa a concessão do benefício for colocada em liberdade a dificuldade de encontrar um novo trabalho será muito grande, especialmente porque o ex-detento torna-se socialmente estigmatizado pela passagem pelo cárcere.

Entretanto, entendemos que essa problemática não encontra solução no direito previdenciário, pois o problema deve ser resolvido em outras áreas, recorrendo-se, essencialmente, aos princípios constitucionais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBIERI, Giseli. Faltam políticas sociais para a Defensoria Pública, diz associação. Direitos humanos. Disponível em: http://www.direitos.org.br/index.php?option=com_content&task=view &id=2539&Itemid=2; acesso em: 15/09/2008.

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GIORGI, Alessandro de. A miséria governada através do sistema penal. Rio de Janeiro. Editora Revan, 2006.

HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem . São Paulo: LTC, 1987.

MINAYO, M. C. Souza. O Conceito de representações sociais dentro da sociologia clássica. In: GUARESCHI, P. e JOVCHELOVITCH, S. (Orgs). Textos em Representações Sociais . Petrópolis: Vozes, 2000.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 449 E A INCONSTITUCIONAL

“BANCARIZAÇÃO” DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO

CARLOS ALEXANDRE DOMINGOS GONZALES1

MARIO AUGUSTO CARBONI2

1. INTRODUÇÃO

Com o intuito de racionalizar a cobrança da dívida ativa da União, o Poder Executivo Federal editou a Medida Provisória nº 449, publicada no diário oficial da União, do dia 3 de dezembro de 2008, a qual alterou a legislação tributária relativa a parcelamentos de débitos tributários.

Conquanto referida Medida Provisória trate de outros assuntos deveras polêmicos, tais como a remissão de dívidas de até R$ 10 mil vencidas há mais de cinco anos, o objetivo do presente estudo será restrito à denominada “bancarização” da dívida ativa da União, inovações prevista no artigo 55, que transfere para instituições financeiras os atos de cobrança amigáveis de tais créditos. Reza o referido artigo, verbis:

Art.55.Os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida Ativa da União poderão utilizar serviços de instituições financeiras públicas para a realização de atos que viabilizem a satisfação amigável de créditos inscritos.

§ 1º Nos termos convencionados com as instituições financeiras, os órgãos responsáveis pela cobrança da Dívida Ativa:

I - orientarão a instituição financeira sobre a legislação

1 Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP, ex-Advogado da União. Pós Graduação em Direito Constitucional pela UNISUL. Professor das Faculdades COC de Ribeirão Preto e do curso SEAD-LFG.2 Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP. Pós Graduação em Direito Público pela Universidade de Brasília. Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.

Sumário1. Introdução; 2. Das funções do estado moderno; 3. Carreiras típicas de estado; 4. A cobrança da dívida ativa da união como atividade estatal indelegável; 5. Da competência exclusiva da procuradoria geral da fazenda nacional para inscrever e cobrar a dívida ativa da união; 6. Da impossibilidade de medida provisória versar matéria reservada à lei complementar - violação aos artigos 131 e 146, III, ambos da Constituição Federal; 7. Conclusão.

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tributária aplicável ao tributo objeto de satisfação amigável;II - delimitarão os atos de cobrança amigável a serem realizados pela instituição financeira;III - indicarão as remissões e anistias, expressamente previstas em lei, aplicáveis ao tributo objeto de satisfação amigável;IV - fixarão prazo que a instituição financeira terá para obter êxito na satisfação amigável do crédito inscrito, antes do ajuizamento da ação e execução fiscal, quando for o caso; eV - fixarão os mecanismos e parâmetros de remuneração por resultado.

§ 2º Para os fins deste artigo, é dispensável a licitação, desde que a instituição financeira pública possua notória competência na atividade de recuperação de créditos não pagos.

§ 3º Ato conjunto do advogado-geral da união e do ministro de estado da fazenda:

I - fixará a remuneração por resultado devida à instituição financeira; eII - determinará os créditos que podem ser objeto do disposto no caput deste artigo, inclusive estabelecendo alçadas de valor.

Percebe-se, pois, que doravante os órgãos responsáveis pela inscrição e cobrança da dívida ativa federal poderão celebrar acordos com instituições financeiras públicas, a fim de viabilizar a satisfação amigável de créditos inscritos.

Feitas tais observações preliminares, cumpre indagar se seria possível, após a inscrição em dívida ativa, a transferência, para instituições financeiras, dos atos de cobrança amigáveis de tais créditos?

Demonstrar-se-á a impossibilidade, em face da violação à Constituição Federal e à Lei Complementar 73/93, de se atribuir a instituições financeiras, ainda que públicas, o desempenho de atividades tipicamente estatais, que somente poderiam ser exercidas por agentes públicos, pertencentes a carreiras típicas de estado.

De início, registre-se que não é de hoje a intenção de se terceirizar a cobrança da dívida ativa da União. Conforme observa Paulo de Barros Carvalho3:

Em abril de 1990 foi editada a medida provisória nº 178

3 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário - 17 ed. - São Paulo : Saraiva, 2005, p. 544.

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que autorizou o Poder Executivo a ceder, a título oneroso e mediante licitação, créditos inscritos como Dívida Ativa da União. Esgotado o prazo do parágrafo único do artigo 62 da Constituição Federal, não foi convertida em lei, perdendo eficácia

Mais recentemente, a Resolução nº 33/2006, do Senado Federal permitiu a cessão da dívida ativa dos Estados, Distrito Federal e Municípios para instituições financeiras. Importante ressaltar que, relativamente a essa resolução, tramita no Supremo Tribunal Federal a Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3786 (relator Min. Carlos Aires Brito), movida pela Associação Nacional dos Procuradores de Estado, mas ainda pendente de julgamento.

Alega-se, como argumento para justificar a terceirização da dívida ativa, a ineficiência dos órgãos encarregados da sua cobrança, que na sua maioria carecem de servidores e estrutura para o desempenho dessa relevante função.

Como pano de fundo, há também o interesse declarado de instituições financeiras privadas, nacionais e estrangeiras, que vêem na terceirização da Dívida Ativa federal, estadual e municipal, uma inesgotável fonte de incremento de suas - já vultosas - receitas.

2. DAS FUNÇÕES DO ESTADO MODERNO

Segundo Regis de Castro Andrade4, as funções desempenhadas pelo Estado moderno podem ser classificadas em três grandes grupos: a) funções de Estado stricto sensu; b) funções econômicas e c) funções sociais.

A doutrina é unânime em afirmar que as funções stricto sensu são intransferíveis, logo, exclusivas e permanentes do Estado. Já as funções econômicas são parcialmente intransferíveis. Por derradeiro, as funções sociais são exercidas tanto pelo Estado, quanto pelo setor privado.

Com efeito, o Programa Nacional de Desestatização, iniciado na metade da década de 90, incentivou um programa de privatizações no setor público, sobretudo naquelas funções passiveis de serem exercidas pela iniciativa privada, trazendo como principal bandeira a necessidade de redução dos custos estatais.

Assim, a partir das Emendas Constitucionais nº 5, 6, 7, 8 e 9, todas de 1995, a iniciativa privada passou a agir nas áreas que, até então, eram de atuação exclusiva do Estado. Tal fenômeno se verificou nos serviços públicos de telefonia, energia elétrica, petróleo, gás, conservação de estradas etc.

Todavia, ultimamente, nota-se uma tentativa de transferir para o setor

4 ANDRADE, Régis de Castro et alii. Estrutura e Organização do Poder Executivo - Administração Pública Brasileira. Volume 2 - CEDEC/ENAP, 1993, p. 29-39.

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privado também aquelas atividades fins do Estado (funções Estatais stricto sensu), entre as quais se encontram aquelas denominadas tipicamente estatais.

Salvo melhor juízo, a Medida Provisória nº 449, ora em comento, confirma a tendência acima mencionada, ainda que de forma subliminar, transferindo (ad referendum do Congresso Nacional) à iniciativa privada atividades tipicamente estatais, no caso, a cobrança da dívida ativa da União.

3. CARREIRAS TÍPICAS DE ESTADO

Registre-se que as denominadas carreiras típicas de estado seriam aquelas carreiras públicas imprescindíveis ao funcionamento do Estado e para as quais não há um paralelo na iniciativa privada.

A Constituição Federal, em seu artigo 3º, consigna os objetivos fundamentais do Estado Brasileiro, quais sejam: constituir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e de outras formas de discriminação.

Pois bem, para atingir tais objetivos a que se propõe, o Estado deve atuar através de seus agentes públicos, os quais para se desincumbirem de seus encargos recebem da lei prerrogativas não extensíveis aos demais cidadãos.

Não é por outro motivo que tais carreiras, consideradas típicas de estado, devem adotar o regime estatutário, com vistas a dar aos seus membros garantias no exercício de seus cargos, contra influências políticas. Por conseqüência, fica vedada adoção de regime jurídico diferenciado para servidores de uma mesma carreira ou categoria.

Por essa razão, impõe-se que as carreiras típicas de Estado sejam precisamente identificáveis, ou seja, que seus membros não possam ser confundidos com demais servidores (empregados públicos ou particulares em colaboração com o poder público), exercentes de atividades não típicas.

A primeira norma a elencar as atividades típicas de Estado foi a Lei nº 6.185/74, estabelecendo em seu art. 2º como tais, aquelas compreendidas nas áreas de Segurança Pública, Diplomacia, Tributação, Arrecadação e Fiscalização de Tributos Federais e Contribuições Previdenciárias, Procuradoria da Fazenda Nacional, Controle Interno e Ministério Público.

Posteriormente, já na vigência da Constituição Federal de 1988, a Lei nº 7.995/90, no seu artigo 1º, inciso I, consagrou o seguinte rol de carreiras e categorias admitidas como típicas de Estado a serem tratadas de forma isonômica e já à época sujeitas ao regime estatutário, a saber:

São fixados, nas Tabelas do Anexo I e IX desta Lei, os vencimentos ou gratificações:

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I - dos integrantes das carreiras ou categorias funcionais Auditoria do Tesouro Nacional, Finanças e Controle, Orçamento, Procurador da Fazenda Nacional, Assistentes Jurídicos, Procuradores Autárquicos, Procuradores e Advogados de Ofício do Tribunal Marítimo, Polícia Federal, Polícia Civil do DF, Diplomata do Serviço Exterior e Gestor Governamental.

Sem prejuízo de leis ou atos normativos definindo ora umas, ora outras as chamadas funções típicas de estado, o certo é que a própria Constituição Federal, ao organizar os Poderes da República, exigiu a instituição de determinadas carreiras essênciais ao funcionamento do Estado. Senão, vejamos:

Reza o artigo 21, inciso I da Constituição Federal, competir a União, exclusivamente, manter relações com Estados estrangeiros e participar de organizações internacionais. Tal atividade, por ser tipicamente estatal, somente poderá ser exercida pela União, através de órgão específico - no caso, o Ministério das Relações Exteriores -, e por meio de agentes públicos, componentes de carreiras específicas (Diplomatas e Oficiais de Chancelaria).

Do mesmo modo, compete à União, de forma exclusiva, organizar, manter e executar a inspeção do trabalho (artigo 21, XXIV), atividade tipicamente estatal que será exercida por agentes públicos, pertencentes às carreiras de Fiscais do Trabalho e demais Agentes da Inspeção do Trabalho (Médicos do Trabalho, Engenheiros e Assistentes Sociais).

Ademais, a Emenda Constitucional 42, ao incluir o inciso XXII do artigo 37 da Constituição Federal consagrou que as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios são atividades essenciais ao funcionamento do Estado e devem ser exercidas por servidores de carreiras específicas, no caso, auditores fiscais das Receitas Federal, Estaduais e Municipais.

Podemos também mencionar o art. 144 da Constituição Federal, segundo o qual a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: polícia federal; polícia rodoviária federal; polícia ferroviária federal; polícias civis; polícias militares e bombeiros militares. Tais instituições são compostas por agentes públicos, ocupantes de cargo efetivo (policiais civis e federais; patrulheiros rodoviários federais; militares das polícias e dos corpos de bombeiros, etc.).

Por fim, a Constituição Federal de 1988 consagrou também órgãos

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jurídicos (Advocacia-Geral da União e Defensoria Pública da União), compostos por Advogados Públicos e Defensores Públicos federais, encarregados, respectivamente, de representar a União, judicial e extrajudicialmente e de prestar assistência jurídica integral e gratuita, aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 131 e 134 da Constituição Federal).

Esclareça-se que o rol acima mencionado é meramente exemplificativo, havendo inúmeras outras atividades, consideradas pelo Texto Constitucional, como típicas de estado.

Assim, todas essas atividades, por serem tipicamente estatais, nos termos da Constituição Federal, somente podem ser exercidas por servidores públicos, ocupantes de cargo efetivo, aprovados em concurso público de provas ou de provas e títulos. Como conseqüência, tais atividades não podem ser transferidas à iniciativa privada, ainda que a título de concessão ou permissão.

4. A COBRANÇA DA DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO COMO ATIVIDADE ESTATAL INDELEGÁVEL

Ainda como ponto de partida do presente estudo, torna-se importante conceituar dívida ativa, a fim de demonstrar que tal atividade se inclui no rol de atividades tipicamente estatais, razão pela qual sua transferência para a iniciativa privada estaria vedada. Com efeito, o conceito de dívida ativa está positivado no Código Tributário Nacional, que prevê em seu artigo 201, verbis:

Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão final proferida em processo regular.

Também a Lei 4.320/64, que dispões sobre normas gerais de Direito Financeiro para elaboração dos orçamentos e balanços da União, dos Estados e dos Municípios, prevê em seu artigo 39, caput e §1º que:

Art. 39 - Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.

§ 1º - Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza, e a respectiva receita será escriturada a esse título.

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Nesse passo, a inscrição em dívida ativa traduz-se em um dos mais importantes atos administrativos, voltados à satisfação do crédito tributário, já que é o primeiro momento em que a administração pública, através de seus agentes públicos, realiza o controle de legalidade sobre a constituição do seu crédito. Com precisão que lhe é peculiar, observa Paulo de Barros Carvalho5:

Sempre vimos o exercício de tal atividade revestido da mais elevada importância jurídica. É o único ato de controle de legalidade, efetuado sobre o crédito tributário já constituído, que se realiza pela apreciação crítica de profissional obrigatoriamente especializado: os procuradores da Fazenda. Além disso, é a derradeira oportunidade que a administração tem de rever os requisitos jurídicos-legais dos atos praticados.

Diga-se, também, que o ato de inscrever um crédito tributário em dívida ativa é ato plenamente vinculado, por decorrência lógica do próprio artigo 3º do Código Tributário Nacional que reza:

Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Sendo a cobrança do tributo ato plenamente vinculado, é intuitivo concluir que, sendo o ato de inscrição do crédito em dívida ativa providência preliminar à cobrança, será esse ato de inscrição também vinculado.

Entenda-se por plenamente vinculada, a atividade em que não é atribuída ao administrador qualquer margem de conveniência ou oportunidade. Celso Antonio Bandeira de Mello6 ensina, com precisão, que:

A lei, todavia, em certos casos, regula dada situação em termos tais que não resta ao administrador margem alguma de liberdade, posto que a norma a ser implementada perfigura antecipadamente com rigor e objetividade absolutos os pressupostos requeridos para a prática do ato e o conteúdo que este obrigatoriamente deverá ter uma vez ocorrida a hipótese legalmente prevista.

Vê-se, portanto, que o ato de cobrança do tributo não admite, por parte do agente público responsável pela cobrança, juízo de conveniência ou

5 Op. Cit., 542.6 Mello, Celso Antonio Bandeira. Curso de direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 750.

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oportunidade.Isso porque o crédito tributário, decorrente do poder impositivo

outorgado pela Constituição Federal aos Entes Políticos (União, Estados, Distrito Federal e Município) caracteriza-se como bem público indisponível, irrenunciável e imodificável. Traduz-se em instrumento de realização da missão constitucional de promover o bemestar da sociedade.

Assim, é certo afirmar que toda a atividade estatal, desde a instituição do tributo até sua fiscalização, cobrança e aplicação do produto de sua arrecadação há de ser regida exclusivamente pelas normas jurídicas de direito público, não havendo margem para atuações discricionárias. Aliás, a dispensa imotivada, na cobrança de tributo, acarreta, inclusive, a responsabilização político-administrativa do agente público7.

Conforma já mencionado, nos termos do artigo 131 da Constituição Federal, o Constituinte Originário de 1988 previu que a Advocacia-Geral da União seria a instituição que representaria a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

No parágrafo 3º do artigo 131 da Constituição Federal, consagrou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional como órgão da AGU, atribuindo-lhe, todavia, a titularidade de representação da dívida ativa da União, verbis:

Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.

Registre-se, agora em nível infraconstitucional, que a Lei Complementar nº 73, que organizou a Advocacia-Geral da União, também previu a PGFN em seu artigo 12, I, nos seguintes termos:

À Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, órgão administrativamente subordinado ao titular do Ministério da Fazenda, compete especialmente:

I - apurar a liquidez e certeza da dívida ativa da União de natureza tributária, inscrevendo-a para fins de cobrança, amigável ou judicial;

7 O Artigo 10 da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8429/92) reza que constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente: X - agir negligentemente na arrecadação de tributo ou renda , bem como no que diz respeito à conservação do patrimônio público.

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Vê-se, portanto, que a Constituição Federal de 1988 consagrou a existência de um órgão jurídico, pertencente à estrutura da AGU, atribuindo-lhe toda a atividade de inscrição, inclusive para fins de cobrança amigável.

Nesse passo, resta indagar se a cobrança, ainda que amigável, do crédito tributário, poderia ser cedida a outras entidades (órgãos ou pessoas jurídicas), diversa daquela já eleita pelo Constituinte Originário? Estaria o Poder Executivo autorizado, por meio de espécie normativa de estreita amplitude, a modificar atribuição de órgão com status constitucional?

Tais indagações se justificam, vez que com a edição da MP 449, e em sendo ela aprovada pelo Congresso Nacional, surge a possibilidade de delegação dessa atividade, até então privativa da PGFN, a instituições financeiras públicas.

Pensamos, pelos motivos doravante expostos, que a transferência da cobrança da dívida ativa da União para instituições financeiras, ainda que públicas, fere a Constituição Federal, vez que atribui função tipicamente estatal a entidades diversas daquelas previstas no Texto de 1998.

5. DA COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA PROCURADORIA GERAL DA FAZENDA NACIONAL PARA INSCREVER E COBRAR A DÍVIDA ATIVA DA UNIÃO

A previsão, em nível constitucional, de um órgão encarregado da inscrição e cobrança da dívida ativa da União tem sua razão de ser.

Trata-se da vontade do constituinte originário que, reconhecendo a relevância da cobrança da Dívida Ativa Federal, reservou-a a órgão jurídico, secular, de notória especialidade técnica, composto por agentes públicos, vinculados funcionalmente ao Estado.

E nesse aspecto, registre-se, que o Poder Constituinte Derivado, em mais de uma oportunidade poderia, se quisesse, ter alterado o dispositivo constitucional que atribui à PGFN a competência de cobrar a dívida ativa. Se não o fez através de reforma constitucional, não poderia o Poder Executivo, por medida provisória, fazê-lo.

Ademais, a experiência mostra que a inexistência de vínculo funcional, no caso de terceirização de atividades tipicamente estatais, entre o executante da função e o ente público deixa o Estado indefeso, diante dos atos praticados pelos terceirizados, face à falta de controle sobre a legalidade dos atos por estes praticados.

Há, ainda, no caso de terceirização dessas atividades, o possível conflito de interesse, já que a terceirização envolve a contratação de entidades (pessoas físicas ou jurídicas), que podem vir a litigar contra o próprio Estado, acarretando situações conflituosas, prejudiciais ao interesse público.

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Assim, a contratação de serviços de instituições financeiras, para a realização de atos que viabilizem a satisfação amigável de créditos inscritos na Dívida Ativa da União, sob o pretexto de racionalização e eficiência na gestão da dívida ativa, poderá acarretar prejuízos inestimáveis ao interesse público.

Aliás, não se diga que, pelo fato de a norma em comento permitir a contratação apenas de instituições financeiras públicas, o óbice estaria superado.

Em verdade, o fato de a MP nº 449 poder atribuir a cobrança amigável de créditos inscritos na Dívida Ativa da União apenas às instituições financeiras públicas não afasta o desrespeito ao artigo 131 da Constituição Federal.

Isso porque, ainda que públicas, essas instituições financeiras foram criadas para explorarem atividades economicas, nos exatos termos do artigo 173 do próprio Texto Constitucional, verbis:

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

§ 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:

I - sua função social e formas de fiscalização pelo Estado e pela sociedade;II - a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários;IV - a constituição e o funcionamento dos conselhos de administração e fiscal, com a participação de acionistas minoritários;V - os mandatos, a avaliação de desempenho e a responsabilidade dos administradores.

§ 2º - As empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

§ 3º - A lei regulamentará as relações da empresa pública com o Estado e a sociedade.

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§ 4º - A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.

§ 5º - A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira e contra a economia popular.

Veja que em nenhum momento há menção à possibilidade de tais entidades desempenharem funções tipicamentes estatais, no caso, a cobrança da dívida ativa da União. Pelo contrário, estão elas sujeitas, necessariamente, ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto às obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributárias.

Em segundo lugar, essas empresas estatais (sociedade de economia mista e empresas públicas), quando autorizadas a explorarem atividades econômicas, só podem fazê-lo pelos imperativos da segurança nacional ou movidas por relevante interesse coletivo, requisitos esses não condizentes com a bancarização da dívida ativa federal.

Ademais, tais empresas estatais devem estar no mesmo plano de igualdade com as demais empresas privadas. Nesse passo, não tendo tais empresas “privilégios” além daqueles concedidos às demais empresas do setor privado, não poderiam elas se valer de prerrogativas inerentes aos agentes públicos.

Com efeito, a ausência de tais prerrogativas, necessárias à cobrança da dívida ativa, ainda que de forma amigável, comprometeriam a arrecadação dos créditos tributários, de modo a prejudicar a implementação das políticas públicas.

Não dispondo dessas prerrogativas, por outro lado, tais instituições não teriam eficiência na cobrança da dívida ativa da União, se comparada aos resultados já apresentados pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. E nesse aspecto registre-se, por relevante, que nos últimos anos a PGFN, a par das suas deficiências estruturais, mostrou resultados mais que satisfatórios8.

Outro fator que vai de encontro com a bancarização diz respeito aos servidores dessas instituições financeiras. Observe-se que tais entidades são

8 O trabalho Números da PGFN, de autoria do Procurador da Fazenda Nacional Marco Antônio Gadelha, do Estado da Paraíba, traça um diagnóstico da atuação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. Segundo Gadelha, o benefício econômico total da União com a atuação da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional nos últimos oito anos é superior a R$ 243 bilhões, em valores não corrigidos monetariamente (valor nominal), excluídos os números referentes a 2007, por não ter sido divulgado o relatório de gestão. Esse estudo está disponível em: http://www.sinprofaz.org.br/sf/site/ web/noticia_detalhe.php?idNoticia=MDc3RjE2MTM2Ng==

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compostas por empregados públicos, regidos pela legislação trabalhista (CLT), os quais não são detentores de prerrogativas atribuídas aos agentes públicos. Assim, careceriam de conhecimentos técnicos e jurídicos para o desempenho dessa relevante função pública.

Outro aspecto que chama a atenção na referida medida provisória é o fato dela, a princípio, atribuir alto grau de discricionariedade na atuação dessas instituições financeiras, no que tange ao modo de cobrança.

Já se disse antes, que a cobrança do tributo é ato planamente vinculado, nos termos do artigo 3 do CTN. Tal característica impede que, no ato de cobrança, ainda que extrajudicial, sejam utilizados critérios subjetivos que importem discriminação ou privilégios não previsto em lei.

Por derradeiro, cumpre também observar que a Medida Provisória 449 excepciona, de forma inconstitucional, as regras da obrigatoriedade de adoção do processo licitatório. Com efeito, o artigo 55, § 2º da referida Medida Provisória, reza que:

Para os fins deste artigo, é dispensável a licitação, desde que a instituição financeira pública possua notória competência na atividade de recuperação de créditos não pagos.

Ora, sabe-se que a ordem econômica brasileira baseia-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tendo como princípio norteador a livre concorrência (art. 170). Assim, mesmo que o Estado explore atividades econômicas deverá se sujeitar a tais princípios orientadores.

Assim, o privilégio contido no artigo 55, § 2º da referida Medida Provisória não se coaduna com as disposições da Constituição Federal, sobretudo naquelas constantes do artigo 173 § 2º que estabelece que as empresas públicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos às do setor privado.

Não se está aqui defendendo que a bancarização deva ser estendida às demais instituições financeiras privadas, o que seria muito pior, do ponto de vista do interesse público. Pelo contrário; o que se quer é reafirmar a impossibilidade de concessão de atividades típicas de Estado.

Entretanto, não se deve afastar a hipótese de eventual argüição de inconstitucionalidade, por parte das demais instituições financeiras, pelo fato delas terem sido preteridas na atribuição da cobrança amigável da dívida ativa da União. Afastada exclusividade da bancarização, de modo a generalizá-las às demais instituições financeiras, seria, repita-se, preocupante do ponto de vista do interesse público, vez que nesse caso o interesse das grandes corporações financeiras subjugaria o interesse coletivo.

Por todos esses motivos, entendemos ser inconstitucional a bancarização

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da dívida ativa da União, ainda que restrita às instituições financeiras públicas, tendo em vista que tal função caracteriza-se com atividade tipicamente estatal e, portanto, intransferível à iniciativa privada.

6. DA IMPOSSIBILIDADE DE MEDIDA PROVISÓRIA VERSAR MATÉRIA RESERVADA À LEI COMPLEMENTAR - VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 131 E 146, III, AMBOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

Outro ponto que padece do vício da inconstitucionalidade em relação à Medida Provisória nº 449, diz respeito ao fato de ela versar sobre matéria reservada à Lei complementar.

Com efeito, as leis complementares, segundo posição doutrinária, destinam-se a complementar o texto constitucional. Na verdade, o constituinte reserva a esta modalidade normativa a questões de especial importância, para cuja disciplina seja recomendável à obtenção de um maior consenso entre os parlamentares. Esclarece Alexandre de Moraes, com a precisão que lhe é peculiar que9:

...a razão da existência da lei complementar consubstancia-se no fato do legislador constituinte ter entendido que determinadas matérias, apesar da evidente importância, não deveriam ser regulamentadas na própria Constituição Federal, sob pena de engessamento de futuras alterações; mas, ao mesmo tempo, não poderiam comportar constantes alterações através do processo legislativo ordinário.

Pois bem, conforme já externado, a Advocacia Geral da União, em razão de exigência constitucional, deve ser estruturada através de lei complementar, nos termos do artigo 131:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

Com efeito, também já foi dito que a Lei Complementar 73/93, atendendo ao mandamento constitucional, previu a Procuradoria da Fazenda Nacional como órgão integrante da AGU, atribuindo-lhe, entre outras, a prerrogativa de gerir a dívida ativa da União de natureza tributária, inclusive para fins de

9 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 569.

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cobrança amigável (art. 12, I).Vê-se, portanto, que atualmente quem tem a prerrogativa de cobrar

amigavelmente a dívida ativa da União, por expressa previsão em Lei complementar, é a PGFN.

Ocorre que, as matérias reservadas à lei complementar não podem ser disciplinadas por medidas provisórias. Esse já era o entendimento jurisprudencial pacífico e, após a promulgação da Emenda nº 32, de 11 de setembro de 2001, essa vedação passou a constar expressamente do texto constitucional.

Conforme se denota do artigo 62, §1º, III da Constituição Federal, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 32, ficou expressamente consignado no texto a vedação de edição de medidas provisórias sobre matéria reservada à lei complementar10.

Nesse passo, o Poder Executivo ao tratar, por meio de medida provisória, de tema privativo de lei complementar infringiu o artigo 62 da Constituição Federal, razão pela qual o artigo 55 da Medida Provisória nº 449 é inconstitucional.

Por outro lado, já no aspecto tributário, o sistema constitucional também exigiu que determinadas matérias fossem reguladas por meio de lei complementar.

Assim, o artigo 146, estabelece que a lei complementar disponha sobre conflitos de competência em matéria tributária, regule as limitações constitucionais ao poder de tributar e estabeleça as normas gerais em matéria de legislação tributária11.

Ainda nesse contexto, o festejado Luciano Amaro12, ao comentar esse assunto, observa que:

Na quase totalidade das hipóteses, a Constituição lhes confere tarefas dentro de sua função precípua (de ‘complementar’ as disposições constitucionais) (...) É, ainda, função típica

10 Art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: III - reservada a lei complementar.11 Nesse último quesito (art. 146, III da Constituição Federal), a legislação complementar versará especialmente sobre: definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas; d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.12 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 168.

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da lei complementar estabelecer normas gerais e direito tributário (art. 146, III) (...) aumentar o grau de detalhamento dos modelos de tributação criados pela CF (...) adensar os traços gerais dos tributos, preparando o esboço que será utilizado pela lei ordinária (...) padronizar o regramento básico das obrigações tributárias, conferindo-se, desta forma, uniformidade ao sistema tributário nacional.

Dentre as matérias reservadas à Lei complementar, nos termos do art. 146, III, “b” da Constituição Federal, destaquem-se as normas gerais sobre obrigação e crédito tributário. De acordo com o CTN 139, o crédito tributário decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta obrigação. Ou seja, crédito tributário é o direito subjetivo titularizado pelo sujeito ativo da obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional (importância em dinheiro).

Com efeito, o CTN ao tratar do crédito tributário estabelece a forma de sua constituição, prevendo inclusive as causas de suspensão, extinção e exclusão. Também prevê as garantias e privilégios, bem como o modo como tal crédito será inscrito em dívida ativa.

De se atentar para o fato de que o próprio CTN, em seu art. 201, prevê que a dívida ativa tributária é aquela proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado para pagamento.

Ora, de se concluir, pois, que a dívida ativa tributária é, em última análise, o crédito tributário, levado a registro na repartição competente para que dele seja extraída a certidão de dívida ativa, título executivo extrajudicial, nos termos do Código de Processo Civil. Com acerto, Luciano Amaro13 nota que:

Na verdade haveria três planos diferentes, pois o Código reconhece uma terceira roupagem da obrigação tributária, quando se reveste como dívida ativa tributária, ‘proveniente’ do crédito tributário (art. 201)

De se notar, portanto, que as questões envolvendo dívida ativa, em verdade, versam sobre obrigação e crédito tributário, razão pela qual todos esses assuntos, por força constitucional, devem ser tratados por Lei complementar.

Assim, verifica-se que a MP em questão, por versar matéria reservada à Lei Complementar (dívida ativa tributária), também afronta o disposto no artigo 62, §2º da Constituição Federal.

13 AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 339.

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7. CONCLUSÃO

Com efeito, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 449, prevendo a inédita possibilidade de “bancarização” da dívida ativa da União. Através desse novo instituto, os órgãos responsáveis pela inscrição e cobrança da dívida ativa federal poderão celebrar acordos com instituições financeiras públicas, a fim de viabilizar a satisfação amigável de créditos inscritos.

Tal delegação, ainda que realizada apenas em relação empresas estatais, fere a Constituição, haja vista que a cobrança da dívida ativa é atividade típica de estado, a qual por força constitucional, foi conferida privativamente à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional.

Ademais, a Medida Provisória nº 449 afronta o artigo 62, §2º da Constituição Federal, à medida que versa sobre assuntos (competência da PGFN e inscrição em dívida ativa de natureza tributária) reservados à lei complementar14.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BORGES, José Souto Maior. Lei complementar tributária . São Paulo: RT, EDUC, 1975.

14 “Atualmente, as normas gerais de direito tributário são reguladas pelo Código Tributário Nacional (CTN), promulgado como lei ordinária - a Lei nº 5.172/1966 - e recebido como lei complementar tanto pela Constituição pretérita como pela atual. De fato, à época em que o CTN foi editado, estava em vigor a Constituição de 1946 e não havia no ordenamento jurídico a figura da lei complementar. Na oportunidade, o texto do CTN veio dividido em dois livros: o primeiro sobre “Sistema Tributário Nacional” e o segundo sobre “Normas Gerais de Direito Tributário”. Ressalte-se que tais expressões foram logo em seguida incorporadas pelo Texto Constitucional de 1967, que tratou expressamente das leis complementares, reservando-lhes matérias específicas. (...) Assim, quando sobreveio a exigência na Constituição de 1967 do uso deste instrumento legal para regular as normas gerais em matéria tributária, o CTN foi assim recepcionado, tendo recebido a denominação de código e status de lei complementar pelo Ato Complementar nº 36/67. Igualmente, não há dúvida de que o CTN foi recepcionado com o mesmo status legislativo sob a égide da Constituição Federal de 1988, que manteve a exigência de lei complementar para as normas gerais de Direito Tributário.” (Extrato do relatório do voto do Min. Gilmar Mendes no STF RE 560626, p. 09/10).

105Revista Jurídica FACULDADES COC

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ANÁLISE DE DISCURSO ACERCA DA UTILIZAÇÃO LEGAL DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS:

RESULTADOS DE PESQUISA EMPÍRICA

NATÁLIA MONTEIRO1

FABIANA CRISTINA SEVERI2

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo central analisar as percepções, os valores, representações e significados acerca das pesquisas com células-tronco embrionárias, especialmente entre os sujeitos que estão submetidos a tratamentos médicos envolvendo algum tipo de terapia gênica.12

Dessa forma, o objeto de analise da pesquisa se faz sobre o discurso de homens e mulheres comuns, que discursam sobre algo promissor, porém perigoso, o qual é capaz de transformar suas vidas. Configuram-se em um discurso influenciado por esperanças, medos, crenças, dogmas religiosos e cultura, dando-se o nome a esta dimensão de moral.

Importante se faz tal estudo, já que os temas sobre terapia gênica, especialmente sobre células-tronco, envolvem questões sobre a dignidade humana, o livre consentimento, a responsabilidade sobre as gerações futuras, o estatuto jurídico e social do embrião humano, a propriedade sobre o patrimônio genético, a criação artificial da vida, entre outros. Mas também é fato que na maioria das vezes tais assuntos apresentam-se no campo social mais contaminados por crenças e dogmas religiosos ou morais, do que comprometidos com uma reflexão crítica profunda e lastreada por um conhecimento técnico mínimo.

2. METODOLOGIA

O presente trabalho tem referencial de pesquisa qualitativa, também conhecida, segundo a tradição antropológica, como investigação etnográfica. Trata-se, portanto, de um trabalho empírico, através do qual foi desenvolvida uma pesquisa de campo que visa reunir e organizar um conjunto comprobatório

1 Bacharel em Direito pelas Faculdades COC de Ribeirão Preto. 2 Mestre em Direito pela Unesp de Franca; Doutoranda em Psicologia pela USP de Ribeirão Preto; Consultora Jurídica da Fipase e Docente das Faculdades COC de Ribeirão Preto.

Sumário1. Introdução; 2. Metodologia; 3. Base Teórica sobre Células-tronco: conceitos, legislação e problemática; 4. Análise das entrevistas; 5. Conclusões.

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de informações, sendo que as informações daqui retiradas são documentadas, abrangendo qualquer tipo de informação disponível, escrita, oral, gravada (no qual se inclui o trabalho em questão) e filmada, que se preste para fundamentar o relatório do caso que será, por sua vez, objeto de análise crítica pelos informantes ou qualquer interessado (CHIZZOTTI, 2003).

A pesquisa qualitativa preocupa-se com uma realidade que não pode ser quantificada, respondendo à questões muito particulares, trabalhando com um universo de significados, crenças e valores e que correspondem a um espaço mais profundo das relações, dos fenômenos que podem não ser reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1994).

Essencialmente, uma pesquisa qualitativa será sempre descritiva e as descrições nela contida, estão sempre influenciadas pelos significados que o ambiente lhes proporciona, ou seja, são produtos de uma visão subjetiva.

Desta forma, a interpretação dos resultados surge como a totalidade de uma especulação que tem como base a percepção de um fenômeno em um contexto (TRIVIÑOS, 1987).

Nesta pesquisa, foi realizada a mesma rota de uma investigação. Assim, foi escolhido um assunto com toda sua problemática, sendo que a escolha deste não surgiu espontaneamente, mas foi decorrente de interesses e circunstâncias socialmente condicionadas, ou seja, essa escolha é fruto de determinada inserção do pesquisador na sociedade; uma colheita de dados e por fim uma análise das informações recebidas. Houve também, no processo de desenvolvimento o estudo, uma fundamentação teórica geral, sendo necessária uma revisão aprofundada de toda a literatura em torno do tema e essa fundamentação teórica que proporcionou a formulação das questões de pesquisa e das perguntas norteadoras.

O instrumento utilizado na feitura desta pesquisa qualitativa foi a entrevista semi-estruturada, a qual se configura “um dos principais meios que tem o investigador para realizar uma colheita de dados” (TRIVIÑOS, 1987, p.143).

A entrevista semi-estruturada, de acordo com Triviños:

(...) parte de questionamentos básicos, fundamentado nas teorias e nas hipóteses que interessam à pesquisa, oferecendo-lhe uma diversidade de interrogativas a partir das respostas dos entrevistados (informantes), ou seja, no momento que o informante, seguindo espontaneamente a sua linha de pensamento, responde os questionamentos feitos pelo investigador, esta resposta poderá gerar uma série de novos questionamentos e a partir desse momento o informante passa a participar da elaboração do conteúdo questionado pela pesquisa.(TRIVIÑOS, 1987, p.146).

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São caracterizadas pela presença de um roteiro de perguntas ordenadas, mas com respostas livres ou abertas.

Portanto, a entrevista semi-estruturada é considerada fruto de toda a teoria cumulada de toda informação obtida sobre o fenômeno social e assim é possível perceber que as perguntas fundamentais que constituem a entrevista semi-estruturada não nascem “a priori”.

Conforme, afirma Triviños, os resultados das pesquisas qualitativas que se desenvolvem mediante a entrevista semi-estruturada são melhores, uma vez que se trabalha com diferentes grupos de pessoas; sendo assim foi escolhido na elaboração deste trabalho os diferentes grupos como padres, jornalistas e portadores de deficiência, sendo que todos os nomes dessas pessoas foram resguardados, utilizando-se assim consoantes para identificá-los.

As entrevistas foram feitas com dois padres, dois jornalistas e três portadores de deficiência, sendo os resultados obtidos submetidos a análise de discursos diferenciados.

As entrevistas realizadas duraram em média de 15 a 20 minutos para evitar que se tornasse algo repetitivo e cansativo.

Todas as entrevistas foram realizadas na cidade de Dourado-São Paulo, visto que em uma pesquisa qualitativa, com base em entrevistas semi-estruturadas, é necessário que antes de iniciadas as entrevistas, se tenha informações sobre o local, informações gerais e também peculiares como o número de habitantes, de famílias, escolaridade das pessoas, lideranças vicinais, desenvolvimento econômico, etc. Assim, como a investigadora é nascida e crescida na mesma cidade, tendo portanto informações do meio, sob este argumento a opção escolhida foi pela cidade de Dourado.

Todas as entrevistas foram gravadas e submetidas imediatamente à uma transcrição, antes da realização de uma outra entrevista, tendo todas a aprovação dos informantes, como ensina Triviños.

Para conseguir a espontaneidade do informante, antes de iniciar a entrevista a investigadora convenceu-se da necessidade de desenvolver, no decorrer das entrevistas, todos os elementos humanos, para que assim permitisse um clima de simpatia e confiança, obtendo a espontaneidade como uma conseqüência disto.

Para obter um clima descontraído, as entrevistas começaram com perguntas pessoais, envolvendo atividades da vida de cada entrevistado e durante todas as asseverações dos informantes, a investigadora procurou confirmá-las e mostrar-se de acordo com seu modo de apreciar as coisas.

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3. BASE TEÓRICA SOBRE CÉLULAS-TRONCO: CONCEITOS, LEGISLAÇÃO E PROBLEMÁTICA

Parecem existir percepções gerais de que as pesquisas gênicas resultam em um desrespeito pelos valores e pela dignidade do ser e, ao mesmo tempo, concepções que se fortalecem na esperança de que estes avanços poderão em um futuro próximo trazer inúmeros benefícios, como a cura até então improvável. Muitas vezes, porém, fica esquecido o fato de que tais temas exigem uma reflexão profunda, garantida a ampla participação e o direito à informação clara e de diversas naturezas, e também necessita de decisões políticas que se baseiam nos princípios fundamentais previstos constitucionalmente (STEPKE, 2003).

Por isso, a pesquisa não teve como objeto analisar qual o conjunto de percepções mais “corretas” sob um ponto de vista ou outro, mas, sobretudo, pretende, a partir das percepções obtidas por meio da fala do sujeito não técnico e não intelectual, avaliar a necessidade de políticas públicas que permitam um debate sobre o tema mais rico, plural, esclarecido e comprometido, sobretudo com a dignidade humana. Debate esse que permitiria uma melhor fundamentação jurídica, ética e política em torno das decisões em pesquisas sobre células - tronco.

Para tanto, foi necessário estabelecer em um segundo momento, qual o caminho adequado para chegar-se a tal finalidade, ou seja, estabelecer os objetivos secundários desta pesquisa, uma vez que só se atinge o resultado pretendido quando se analisa integralmente o contexto onde este tema se insere, quando se conhece o objeto de análise.

Dessa forma, configura-se de salutar importância esclarecer o que é célula-tronco, ou seja, mostrar o seu conceito, assim como suas especificações. É a partir deste conceito, desse entendimento do que vem a ser uma célula-tronco que foi possível uma análise do discurso dos informantes.

Células-tronco, traduzidas do inglês stem cell, consistem em:

células com capacidade de se auto-renovar (dar origem a mais células-tronco a partir da divisão celular) assim como diferenciar-se em tipos celulares mais maduros, ou seja, células mais especializadas (REHEN; PAULSEN, 2007, p.90).

Por este motivo são também denominadas como células mãe ou células estaminais. De forma simplificada, são células primitivas produzidas durante o desenvolvimento do organismo que dão origem à outros tipos de células. São elas as que dão origem à diversidade e complexidade do nosso organismo.

Para se ter uma compreensão mais acurada sobre células-tronco faz-se

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necessária uma pré-compreensão de sua capacidade de diferenciação, sendo que se dividem em células-tronco unipotente, totipotente, pluripotente e multipotente, assim como faz-se imprescindível também sua divisão de acordo com a sua origem, desta forma as células-tronco podem ser originadas de células-tronco adulta, fetal ou embrionária, sendo que aqui se encontra uma grande confusão no discursos do homem mediano, pois pela sua falta de conhecimento do assunto muitos confundem células-tronco embrionárias com as fetais, sendo que são distintas.

O Brasil regulamentava os procedimentos relacionados a embriões humanos supranumerários, oriundos das técnicas de fertilização in vitro, com base na Lei 8.974 do ano de 1995 na qual se apresentava de acordo com a “defesa dos princípios e das prerrogativas jurídicas e éticas essenciais aos seres humanos”. (ROCHA, 2008, p. 139)

No ano de 1996, foi elaborada pelo Conselho Nacional de Saúde, a Resolução nº 196, que “que disponibilizou no cenário normativo nacional um conjunto de elementos conceituais inclinados a obedecer ao mandamento constitucional do respeito à vida e à dignidade da pessoa humana. (ROCHA, 2008, p. 139).

No dia 24 de março de 2005, foi regulamentada, por meio da Lei de Biossegurança nº 11.105, a pesquisa com células-tronco embrionárias, sendo que a mesma conceituou células-tronco embrionárias como células de embrião que apresentam a capacidade de se transformar em células de qualquer tecido de um organismo. Essa lei foi aprovada por deputados e sancionada pelo atual Presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, sendo que oito meses após sua publicação a lei de Biossegurança, em meio a protestos religiosos e com o apoio da comunidade cientifica resistiu, apesar de sofrer diversas modificações em seu texto inicial, sendo por fim, regulamentada pelo Decreto 5591, de 22.11.2005. (CORRÊA, GICOIA, CONRADO, 2007). Esta Lei autoriza, especificamente em seu artigo 5º, o uso em pesquisas científicas de embriões gerados em clínicas de fertilização in vitro e congelados há mais de três anos, a partir daquela data, ou aqueles sem qualidade de serem implantados no útero, em pesquisas científicas:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

I - sejam embriões inviáveis II - sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação des ta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos,

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contados a partir da data de congelamento

§ 1º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores.

§ 2º Instituições de pesquisa e serviços de saúde que realizem pesquisa ou terapia com células-tronco embrionárias humanas deverão submeter seus projetos à apreciação e aprovação dos respectivos comitês de ética em pesquisas.

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei nº 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

Redigida com uma linguagem imprecisa, confusa, ambígua, e de valor semântico demasiadamente amplo, a lei mescla temas extremamente relevantes, polêmicos, controversos, visto que ao mesmo tempo em que permite o uso de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, veda no seu artigo 6º desta mesma lei, a clonagem terapêutica (transferência nuclear de uma célula adulta para um óvulo com finalidade de se obter células-tronco embrionárias) ou reprodutiva (transferência nuclear de uma célula adulta para um óvulo com o objetivo de gerar um indivíduo adulto geneticamente igual ao doador da célula adulta) (REHEN; PAULSEN, 2007).

Com a publicação desta lei reascenderam-se os debates que circundam o tema, posto que uma parte da população brasileira, tendo forte apoio da religião Católica, reafirmou suas considerações sobre a inconstitucionalidade dessa lei, uma vez que acreditam que a utilização de células-tronco embrionária consiste em uma violação da vida e da dignidade humana.

Em contraposição, outra parte da sociedade, em sua maioria composta pela sociedade científica, aprova a edição desta lei, uma vez que acredita que o início da vida não se dá com a concepção e sim com a formação do sistema nervoso (atividade cerebral), sendo que o mesmo ainda não se encontra formado nas células-tronco embrionárias utilizadas para pesquisas.

Frente a tantos debates, ainda no ano de 2005, o ex-Procurador Geral da República, Cláudio Fonteles moveu uma ação de inconstitucionalidade (ADIN nº 3510) fundamentando que a lei de Biossegurança não observa “a inviolabilidade do direito à vida, porque o embrião humano é vida humana, e faz ruir o fundamento maior do Estado democrático de direito”. (Ação de inconstitucionalidade nº 3510 de 2005).

A discussão culminou com a realização da primeira Audiência Pública da história do Supremo Tribunal Federal, que reuniu em Brasília, 22 especialistas para apresentar suas opiniões sobre o momento de início da vida. (REHEN;

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PAULSEN, 2007, p. 64).Essa audiência teve como finalidade a formação de um juízo técnico

sobre o que é a vida, já que esse conceito não se encontra de forma clara na Constituição Federal de 1988, para assim reunir informações cientificas para julgar o processo, porem ate os dias de hoje não se conseguiu estabelecer o inicio da vida humana.

Enquanto isso, a o julgamento da Ação de Inconstitucionalidade, se encontrava suspenso, sendo que só voltou a ser julgada no ano de 2008.

Em Março de 2008, foi à julgamento a constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, porém esse julgamento foi suspenso novamente, sendo assim adiado, por causa de um pedido de vista do ministro Carlos Alberto Menezes Direito, que solicitou mais tempo para estudar o tema.

Entretanto, nos dias 28 e 29 de Maio de 2008, foi decidido por 6 votos a 5, que o artigo 5º de Lei de Biossegurança configura-se constitucional, liberando por fim, a utilização de células-tronco embrionárias em estudos, conforme prevê esta Lei, sendo que desta forma colocou-se fim à um embate judicial que perdurava há três anos.

Os cinco ministros vencidos liberaram os estudos, entretanto sugeriram diferentes restrições, sendo que algumas delas poderiam comprometer as pesquisas, isso conforme cientistas. Nenhuma delas, no entanto, foi referendada. (FORMENTI, 2008, p.A19)

No que diz respeito ao princípio da vida, nada foi definido no julgamento do Supremo, não se chegando a uma exata definição de quando se inicia a vida. Diante disto, os ministros restringiram-se apenas a concluir que a atual Constituição Brasileira não garante ao embrião humano mantido em laboratório a garantia da inviolabilidade à vida e à dignidade.

Passando brevemente pelo conceito de células-tronco e pela legislação que a regulamenta, dá-se início à analise das entrevistas, objeto de pesquisa do presente trabalho.

4. ANÁLISE DAS ENTREVISTAS

Durante as entrevistas o que mais se percebeu, e que depois, na análise das entrevistas se confirmou, foi a falta de conhecimento sobre um assunto tão polêmico e tão pautado na mídia, muita insegurança, e um pouco de nervosismo. Também foi percebido que os discursos eram sempre muito influenciados pelo dogmatismo, por um pensamento dogmático.

Porém, acredita-se que a maior dificuldade da investigadora, foi manter-se calada, ou seja, não fazer nenhum tipo de afirmações, não poder concordar ou discordar com o informante, não fazer juízos de valor, enfim, a investigadora teve que se conter, o que não foi nada fácil, porém o que era necessário, pois

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caso contrário estaria interferindo nos discursos e na espontaneidade de seu informante, o que impediria a condução das entrevistas, conforme o método adotado estabelece.

Entretanto, as entrevistas aconteceram da melhor forma, e isso trouxe ótimos resultados para esse trabalho. Esses resultados proporcionaram não só a possibilidade de descrever os fenômenos sociais, mas também de explicá-los, interpretá-los e compreendê-los em sua totalidade.

Com esta pesquisa foi possível obter quatro resultados, sendo que o primeiro deles foi a falta de conhecimento perante um assunto tão pautado pela mídia e tão importante para a medicina como a utilização de células-tronco embrionárias.

Dessa forma, é possível notar que há uma grande distância entre o discurso científico e a opinião geral, o senso comum, uma vez que mesmo com a importância do tema, o esclarecimento visivelmente é baixo, ou ao mesmo tempo não permeia a esfera social.

Por muitas vezes era notável a insegurança do informante frente a certas perguntas, chegando até mesmo a recusar-se em responder, como aconteceu com o informante H, quando perguntado à ele o que entendia sobre Bioética:

Bioética? não sei.

Ou ao informante X perante a mesma pergunta:

Sim, olha é...eu vou ser bem sincero pra você. Nós iríamos fazer um curso, um curso, mas eu...estava tudo certo para eu fazer, mas não foi possível chegar até lá, então eu prefiro não dizer nada.

Também houve algumas contradições em certas afirmativas, o que causou muita confusão na resposta, como ocorreu com o informante W, quando perguntado o que ele entendia sobre célula-tronco, sendo que inicialmente recusou-se a responder, “Aí, eu não saberia te responder agora”, porém que em seguida tentou explicar o que entendia sobre células-tronco:

Não sei o que que eu entendo por célula-tronco. Bom, célula-tronco vem do embrião, né, que a pesquisa tá mostrando que vai dá resultados na cura de certas doenças, entendeu?... então eles dizem que a célula-tronco é tirada do feto... pode ser né?... ou após o parto, então eu acho que se der resultado, tudo bem, eu entendo isso, é um sangue...não sei o que é ...sinceramente não sei te explicar.

Isso aconteceu pelo fato de não saber ao certo o conceito, não ter fundamentos teóricos e científicos suficientes, ou seja, não ter um aprofundamento no assunto, entretanto já ter escutado algo sobre isso, mas

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que não foi dada a devida atenção para se ter uma resposta plausível frente à pergunta. Dessa maneira o informante com base em precárias informações, utilizando-se do senso comum, influenciado por sua cultura e sua crença, tenta responder o que lhe fora perguntado.

Aconteceu isso com a maioria dos informantes desta pesquisa, muitos deles já tinham ouvido falar do tema, porém foram informações passageiras, pois não tinham nessas, um aprofundamento. Também foi explanado diversas vezes que as principais fontes de informações eram advindas da mídia, sendo que esta informa, mas informa mal.

Tanto a mídia como a religião, valem-se de suas posições de formadores de opinião para exaltarem seus próprios valores, seus interesses e esses muitas vezes não tem o conhecimento adequado para repassar qualquer tipo de informação aos seus seguidores.

Com base nas entrevistas, conclui-se que a falta de informação sobre o tema abordado é o grande empecilho para a formação de opiniões concretas e definitivas, sendo essas fortemente susceptíveis à influência de toda uma cultura em sua complexidade.

O segundo resultado foi perceber a forte influencia do pensamento dogmático no discurso dos informantes, como nos mostra a resposta do informante X quando perguntado sobre seu entendimento por células-tronco embrionárias:

Olha, eu entendo o seguinte, toda pesquisa científica é em torno dessa célula-tronco embrionária, então o que vai acontecer... essa célula poderá ser destruída. Ela pode ser destruída, vai destruir essa célula, então destruindo esta célula fere a ética Cristã, que fere a dignidade de vida do ser humano.

Ainda conforme Garrafa e Pessini (2003), para as pessoas que tem fé o impacto que os novos desenvolvimentos científicos e médicos implicam não podem ser abordados sem o amparo dos preceitos teológicos, esses fundamentais uma vez que dizem respeito à natureza humana perante a posição de Deus e do seu papel na criação dos homens.

Para essas pessoas a pesquisa com células-tronco embrionárias se resume na expressão “brincar de Deus” que veio a ser usada como abreviatura da preocupação com a impropriedade de ações humanas que alterem a constituição de outros organismos vivos e isso equivale à usurpação da prerrogativa criadora de Deus (HANSEN; SCHOTSMANS; 2003).

Ainda sobre o discurso do mesmo informante, quando questionado quais os benefícios e quais os malefícios que ele acredita que a permissão para a utilização de células-tronco embrionárias pode trazer para a sociedade:

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Não acredito que essa permissão traga benefícios. Não se tem como ter benefícios quando a gente permite que se possa tirar a vida de alguém, nem mesmo que seja em benefício de outra pessoa.

Como eu já te disse, quem decide sobre o momento que a pessoa irá morrer é somente Deus e ninguém mais. Ninguém tem esse direito, apenas Deus.

Portanto, é perceptível nesses discursos a importância de que deve haver, antes de iniciada qualquer tipo de pesquisa, uma revisão dos preceitos católicos, teológicos, uma vez que são esses preceitos fundamentais que podem limitar toda pesquisa que envolva a vida de um ser humano, uma vez que, segundo defendem somente Deus tem o poder de decidir sobre o início e o término da vida.

Entretanto, a cultura da sociedade, de um modo geral, é constituída a partir da Igreja, do senso comum e da ciência, e isso mistura o dogmatismo de cada indivíduo com sua formação, o seu conhecimento frente assuntos de grande importância e seu modo de pensar sobre esses assuntos, ou seja, o seu senso comum.

Torna-se nítido nos discursos acima transcritos, que há uma percepção interdisciplinar na fala de cada informante, ou seja, são discursos influenciados por uma série de informações, retirados dos inúmeros meios, como da formação religiosa, da cultura, do meio que se vive, da quantidade de conhecimento, a valorização particular de cada um à um certo dogma, do interesse ao tema, sendo que todas essas informações se complementam pelo do senso comum de cada um desses indivíduos.

Essa seria a resposta mais plausível quando no decorrer das entrevistas a investigadora deparou-se com discursos totalmente diferentes, e também com um mesmo discurso amparado por uma diversidade de segmentos, como se nota na fala do informante Z, quando questionado sobre qual o momento inicial da vida, ou seja, quando se inicia a vida:

Acho que a partir da fecundação, já se tenha uma vida, mas só a partir da fecundação dentro do corpo da mulher, sendo que esse feto tenha a oportunidade de se desenvolver naturalmente.

Acho que a partir do momento que você, faz uma fertilização em laboratório, uma fecundação e aquela fecundação vai gerar um feto que não irá vingar, um feto que ainda não desenvolveu o seu sistema nervoso, aí eu não acho que tem vida.

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Você sabe que a morte se dá com a morte encefálica né...então a vida se dá com o nascimento desse sistema nervoso.

Acho que Deus nos fez naturalmente, ou seja, não foi por fertilização in vitro que Deus fez o homem, foi da forma mais natural possível, sendo que foi dentro do corpo materno, então hoje a vida só é possível, para muitos casais terem filhos, por causa dos avanços das pesquisas, então o momento exato quando se tem uma fecundação normal é que se tem vida a partir daí, a vida, agora quando é por meio desses avanços que se tem uma vida, a vida se inicia com o nascimento, vamos dizer assim, do sistema nervoso, porque da mesma forma que o homem determinou que a vida se daria com a morte do cérebro, assim o homem determina o inicio da vida, diferentemente da naturalidade que seria se não houvesse avanços, não sei se deu pra entender...

Só pra concluir isso, eu divido a forma de vida natural e a in vitro, para mim cada um tem um inicio tudo conforme a intervenção do homem.

É visível que no discurso acima, há uma mistura dos diversos meios de informações, sendo que para conceituar, ou para entrar em um consenso sobre o início da vida, o informante se utiliza de termos científicos, religiosos, morais e do senso comum.

Portanto, conclui-se que o pensamento dogmático está presente em todos os discursos dos informantes desta pesquisa, e assim como já enfatizado no segundo capítulo deste trabalho, a falta de informação cumulada com a forte influência do dogmatismo, da crença e da cultura (sendo que a cultura consiste, de acordo com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, um direito à participação na vida cultural e ao desfrute do processo científico) levam a população a um entendimento diverso do real, percebendo-se isso mediante um discurso interdisciplinar.

O terceiro resultado consiste em uma visível violação ao direito que todo e qualquer cidadão tem de receber informações fidedignas, o Direito de informação.

A sociedade em sua maioria recebe informações segundo o repasse das mesmas, sendo o meio mais utilizado, a mídia, isso é confirmado nos discursos da maioria dos informantes desta pesquisa, sendo que perante a pergunta sobre quais são as principais fontes de informações sobre temas como células-tronco, engenharia genética, Bioética, clonagem, entre outros, a resposta do informante Y foi:

Eu tiro de revistas, revistas médicas, também de revistas cientificas e também dos livros de Bioética.

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Nós temos livros muito atualizados que procuram, que estudam né, o que acontece dentro dos hospitais, das universidades, então a gente busca essas informações aí, também na internet que é um meio de veículo de comunicação.

Assim como as respostas a mesma pergunta, fornecidas pelo informante K:

É mais a partir do que a televisão retrata, porque eu acho que a televisão, ela pauta os nossos assuntos diários, ela que nos faz pensar, ela que nos leva, a partir do momento que a televisão enfoca tal assunto ela te leva a pesquisar em um livro, a pesquisar na internet, ela te leva a refletir sobre isso.

Do informante X:

Jornal e televisão sim.

Percebe-se dessa maneira, que o principal meio de informação é a mídia por meio da televisão, dos jornais, das revistas e da internet.

A mídia, no entanto, informa porem informa mal, uma vez que todas as informações passam pelo crivo dos jornalistas.

Confirma-se a afirmação acima, quando foi escolhido como informantes, jornalistas, com o intuito de analisar o conhecimento dos mesmos sobre o assunto e de onde essas informações são retiradas, sendo que o que ficou evidenciado novamente foi o repasse de informações.

O repasse de informações modifica a estrutura da informação, sua veracidade, posto que além de serem informações não buscadas em sua fonte, são pautadas por opiniões de quem as escreve, portanto a informação fruto desse repasse é considerada ilegítima.

No âmbito da saúde é que se percebe mais claramente esta violação, posto que o Estado, mesmo tendo o dever de fornecer informações em sua essência, macula este dever sob o argumento de preservação da ordem, para não se causar alarde, e dessa forma não informa o cidadão sobre a real situação da saúde no pais.

Para tanto, com o objetivo de garantir o acesso à informação de qualidade à população, é necessário, que as autoridades e técnicos da área de saúde se disponham a assumir uma postura efetivamente democrática, preocupando-se com a divulgação dos fatos, mas, também, com a comunicação de informações completas, corretas, fiéis à sua essência.

Por fim, o ultimo resultado foi também uma violação ao Direito a Saúde, como se comprova perante a insatisfação da maioria dos informantes quando perguntado aos mesmos sobre a situação da saúde no Brasil.

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Informante Q:

Ah, eu acho que o Brasil assim mesmo como país, como nação tem muitos problemas e eu acho que a saúde e a educação são os maiores deles assim sabe; eu acho que a saúde é um direito da população e é o que a gente vê que não tem né, acho que ninguém vai discordar disso, desse descaso que a gente vê as autoridades dando à saúde, então não tem vaga em hospital, não tem hospital, não tem profissionais qualificados pra atender a população, então eu acho que o tratamento é péssimo.

Informante K:

Olha eu acredito que em relação à política, há um grande descaso dos nossos governantes em relação à saúde. A saúde é deixada em segundo, terceiro, quarto plano, a saúde pública tá um caos; nós sabemos isso, em qualquer âmbito, âmbito municipal, estadual e federal há um grande...é uma grande preocupação mesmo o quesito da saúde na sociedade. Eu acredito que deveria haver maior preocupação e maior empenho dos políticos em melhorar, em dá uma melhor estrutura pra saúde pública no país.

Em relação à ciência, eu acho que a ciência avança sempre porque há investimentos, há dinheiro e há interesse em que a ciência avance cada vez mais pra melhorar a saúde. E em relação ao jurídico, ao tratamento jurídico, eu acho que, a sensação que eu tenho é que há uma certa enrolação também; sempre que vai pra área jurídica, é tudo sempre muito enrolado, tudo sempre complicado, sempre muito burocrático.

Informante W:

Fraco, tá muito a desejar, por que eu acho que não só depende dos políticos, depende também das pessoas em geral né...da maneira que se trata e depende da localidade. Aqui em Dourado, por exemplo, não sei como é que está, mas eu acho que tá tudo muito difícil, tudo muito caro, tudo muito...as pessoas deixam as coisas ficarem difíceis. Mesmo que você vá até o SUS, você tem que fazer fila, você paga um convênio, você tem fila, então é tudo complicado

Quer dizer, que não é o dinheiro que faz com que melhore, a não ser que tenha muito dinheiroAí melhora de uma vez

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Por fim,o informante H:

É péssima, acho que a saúde e a educação estam de mãos dadas em muito descaso, em muita....acho que se a pessoa não tem condições, não tem dinheiro, ela não tem nada, principalmente sabe.

Até para quem tem poder aquisitivo tá muito difícil, porque eu acho a saúde assim nota baixíssima em relação ao governo, ao Brasil, enfim acho que eles dão muito pouca atenção à isso.

A saúde está garantida na Constituição Federal de 1988 em seu artigo 196, como um direito inerente a todos os cidadãos assim como um dever do Estado.

Art. 196- A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

O direito a saúde do cidadão é um dever do Estado, uma vez que é a sociedade que financia a saúde no Brasil, por meio de tributos.

Porém, para que o direito à saúde seja uma realidade, é preciso que o Estado crie condições de atendimento em postos de saúde, hospitais, programas de prevenção, medicamentos, etc, e, além disso, é preciso que este atendimento seja universal (atingindo a todos os que precisam) e integral, ou seja, deve garantir que qualquer necessidade do individuo seja satisfeita de forma plena, e para esta finalidade foi criado o SUS (sistema Único de Saúde), ou seja, para oferecer um atendimento satisfatório à população, com a realização de ações assistenciais e de atividades preventivas, contando com instalações adequadas, inclusive que ofereça todos os tipos de tratamento a todas as doenças existentes.

Mas além disso, em busca desta melhora, é preciso atentar-se a três condições fundamentais, sendo que a primeira é o combate à corrupção, a segunda é ter por foco as precondições não-médicas da saúde e da vida, como água limpa, alimento e abrigo, e por último é a educação e a promoção da alfabetização para a saúde, sendo que há aqui ênfase excessiva da política de assistência médica, porém uma grande negligência ao fato da cultura e da sociedade terem obrigação de fornecer adequados instrumentos de informação e de educação para que se atinja altos níveis no cuidado com a saúde.

A alfabetização dos cidadãos leigos no tocante à saúde pode transpor a

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distância entre a classe de elite de provedores de cuidados médicos e o resto da população que é mantida ignorante frente às questões e alternativas médicas.

A infeliz situação em que o conhecimento dos cuidados de saúde básicos é mantido como conhecimento privilegiado constitui uma grande injustiça aos que são mantidos vulneráveis e exploráveis. É um direito civil a desprofissionalização de amplas áreas de conhecimento privilegiado dos cuidados de saúde, bem como tornar esse conhecimento disponível para todos (SASS, 2003, p.82).

As políticas e a ética da saúde ainda têm que reconhecer o direito básico de cuidar da saúde e propiciar instrumentos de serviços para pôr em prática, apoiar e proteger tal direito.

Só depois disso as intervenções curativas assumem importância no cenário precário do direito à saúde.

Enfim, é urgente a implantação de políticas públicas voltadas à supressão do desconhecimento da população frente assuntos e direitos fundamentais, uma vez que só assim que iniciaremos o combate as maiores causas do desinteresse e da falta de informação da sociedade.

O nosso primeiro passo para o progresso na saúde assim como consequentemente em outras áreas, perante um problema tão complexo, é viabilizar o mínimo das garantias constitucionais inerentes ao homem de forma plena, ou seja, disponibilizar à população o direito à informação íntegra e mostrar à sociedade a necessidade e o benefício que terão quando os mesmos deixarem de ser leigos em assuntos tão importantes à suas vidas, como o direito à saúde,que envolve diretamente o direito à vida.

5. CONCLUSÕES

Conclui-se neste trabalho, que o uso de células-tronco embrionárias suscita um rol das mais diversas questões, ou seja, assim como os dilemas sobre a existência de uma suposta vida residente nessas células, também aborda questões sobre as garantias e disponibilidade dos direitos fundamentais.

A partir do momento que a sociedade depara-se com assuntos dessa complexidade, nos torna visível, por meio de uma análise de discurso, suas inúmeras carências, como a falta de informação, uma excessiva influência do pensamento dogmático e uma estampada violação às garantias constitucionais.

De qualquer forma, é perceptível que sempre há uma violação à dignidade da pessoa humana, porém não se fala nesta violação apenas diante de um juízo técnico sobre o começo da vida, mas também quando não se garante de forma plena o direito à saúde e à informação,

O Estado camufla essas violações por meio da desinformação da sociedade frente a assuntos que versem sobre o direito à saúde, de modo que

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manter a população ignorante parece ser a garantia da ordem.Essa desinformação leva à uma contrariedade da população frente

à assuntos que lhes poderão ser bons, uma vez que assim como a falta de informação também tem-se a forte influência do pensamento dogmático, pautado pelas mais diversas crenças e religiões.

Dessa forma, o juízo formado pela população leiga, sempre será carregado por crenças, dogmas, cultura e principalmente pelo senso comum.

Entretanto, no último século, teóricos da filosofia moral apontaram a necessidade do conhecimento técnico para se tomar decisões morais, diferentemente das éticas tradicionais que fundavam-se nos discursos valorativos apenas.

No caso dos temas ligados a engenharia genética em geral e especificamente aqui no caso do uso de células tronco, mais que uma simples decisão técnica ou legal por parte do estado em permitir ou não os “avanços científicos”, estamos diante de algumas decisões morais e que não dependem apenas de juízos valorativos para sua resolução, mas também de conhecimento técnico.

Em conseqüência disso, o estabelecimento de uma legislação que verse sobre o tema, é complicado, e isso se comprova segundo uma pesquisa sobre todo o trâmite percorrido, assim como todas as dificuldades enfrentadas pela sociedade, em sua totalidade, perante o estabelecimento da atual legislação que aborda a utilização de células-tronco embrionárias.

Não só se encontrou dificuldades decorrentes da falta de informação, nos discursos de pessoas comuns, mas também nos discursos de pessoas instruídas, sendo que foi necessário promover uma audiência pública para formar um juízo técnico sobre o início da vida, assim como para esclarecer muitos tópicos científicos desconhecidos pela maioria dos ministros.

Assim, percebe-se que até mesmo a Suprema Corte, teve a necessidade de recorrer a um conhecimento técnico sobre o assunto, o que leva a concluir-se que não apenas uma parte da sociedade é desinformada frente à questões científicas, mas a população em sua integralidade, salvo técnicos no assunto.

Portanto, o direito à informação deve ser garantido pelo Estado, uma vez que é a partir de informações técnicas e verdadeiras que conseguimos a conscientização de toda a sociedade sobre determinado caso, determinado problema.

Na garantia à informação fidedigna, decorre a preservação do direito à saúde, posto que o direito à saúde como um direito fundamental, tem como conteúdo não só a prevenção de doenças ou cura, mas ele deve estar ligado à informação, à alfabetização da população leiga em assuntos sobre a saúde.

Em síntese, essa informação não pode depender exclusivamente da mídia, uma vez que a mídia é apenas o instrumento de informação, sendo assim, depende também do Estado, pois este tem o dever de garantir os direitos

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constitucionais inerentes a todo e qualquer cidadão, o que na realidade não acontece.

Por isso é fundamental enfatizar a necessidade de políticas públicas, assim como campanhas, congressos, maior preparo das pessoas que trabalham na área da saúde, assim como na área da informação, ou seja, tudo isso voltado à uma informação geral e ìntegra do assunto, o que permita um maior interesse da população sobre assuntos bioéticos, uma vez que esses podem modificar suas vidas.

Assim, o direito a saúde deve envolver políticas públicas que garantam a informação e a problematização dos temas de forma ampla. Não é mantendo a população na ignorância que se poderá progredir, pois não há progresso quando falta preparo, informação e garantia aos direitos fundamentais dos cidadãos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TRIVIÑOS, Augusto N. S. Introdução à pesquisa em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1987.

CORRELAÇÃO ENTRE IMPUTAÇÃO, SENTENÇA E NULIDADE

HERÁCLITO A. MOSSIN1

1. CORRELAÇÃO

Etimologicamente,correlação implica correspondência2. No que tange á matéria cuidada, o seu objeto cardeal é exatamente procurar estabelecer qual é a relação mútua entre a denúncia e queixa e a sentença condenatória e de pronúncia.

Como é cediço, nas peças postulatórias precitadas (petição inicial no crime) é imputado um fato típico ao acusado, ou seja, uma conduta positiva ou negativa que encontra moldura na norma penal sancionatária. É exatamente em torno dessa imputação que o sujeito passivo da relação jurídico-processual promove sua defesa.

Em circunstâncias desse matiz, tendo em vista a acusação, a defesa que lhe é conseqüente, bem como a decisão que lhe é posterior, é imprescindível se estabelecer qual é a correspondência entre esse três elementos de caráter processual, não só do ponto de vista do direito processual penal, bem como sob a égide da Magna Carta da República.

Em princípio, cumpre ao magistrado decidir conforme aquilo que lhe foi postulado. Não pode ele, decidir nem extra ou ultra petita, posto que assim o fazendo estará ele violando o direito da ampla defesa e do contraditório, que tem garantia de fundo constitucional.

Por outro lado, se o juiz deve julgar no limite do pedido a ele feito, qualquer alteração, principalmente a mais, ofende o princípio da inércia do poder de julgar: ne procedat iudex ex officio.

No campo das nulidades, se houver a ausência de correspondência entre a imputação e a sentença, essa será imprestável, não gerará nenhuma eficácia.

Feitas estas considerações preliminares, cumpre agora examinar a correção entre a sentença condenatória e a de pronúncia.

1 Advogado. Professor de processo penal da Universidade de Ribeirão Preto -Membro das Academias Ribeirãopretana de Letras Jurídicas e Brasileira de Direito Criminal (ABDCRIM).2 Código de processo penal interpretado. 11. ed. São Paulo : Atlas, 2003. p. 979.

Sumário1 - Correlação; 2 - Correlação e sentença condenatória; 3 - Correlação e pronúncia; 4 - Considerações Finais.

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2. CORRELAÇÃO E SENTENÇA CONDENATÓRIA

A correção somente ostenta aplicabilidade com a sentença condenatória,não alcançando em seu bojo a absolutória.

Seguindo as pegadas anteriormente traçadas, o fato imputado demarca, traça o perímetro em que pode incidir a sentença condenatória. Logo, o magistrado somente pode julgar o pedido contido na denúncia ou queixa com base no fato que nela se encontra descrito. Não pode o juiz, advirta-se, julgar extra ou ultra petita, porquanto sua decisão estaria abrangendo fato em relação ao qual o acusado não exerceu a plenitude de sua defesa, uma vez que relativamente a ele não houve imputação, não houve descrição na peça postulatória pública ou privada. Ademais, se houver decisão relativamente à circunstância fática não atribuída ao réu na inicial criminal, também estará o magistrado maculando o princípio do ne procedat iudex ex officio, inerente à jurisdição e que também se eleva à categoria de corolário do sistema acusatório adotado pela legislação processual penal pátria.

E, como se isso não bastasse, em função do princípio da correlação, o magistrado encarregado do ius dicere não pode também julgar o réu por fato mais grave (in peius).

Ocorrendo pronunciamento jurisdicional que não se mostra compatível com a narração contida na denúncia ou queixa, a conseqüência de ordem processual imediata é a nulidade absoluta da sentença, como aliás, já se exortou preteritamente.

Com efeito, não discrepa do que restou assentado o magistério provindo de Julio Fabbrini Mirabete, ao afirmar que a correlação entre a imputação e a sentença representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa e qualquer distorção, sem observância dos dispositivos legais cabíveis, acarreta a nulidade da decisão3.

A jurisprudência, da mesma forma, tem se inclinado à imprestabilidade do pronunciamento jurisdicional quando houver a inexistência da correlação entre imputação e condenação4.

No âmbito da matéria abordada, para efeito de esclarecimento e melhor compreensão em torno dela, necessário se torna enfocá-la diante dos princípios do iura novit curia, do narra mihi factum dabo tibi ius ou da livre dicção do direito (emendatio libelli), que se encontra inserido no art. 383 do Código de Processo Penal e da mutatio libelli, que está vertido no art. 384,caput, do precitado diploma legal.

Nota-se pelo conteúdo normativo do art. 383 do Código de Processo

3 JTACRESP 76/271, RJDTACRIM 2/159.4 MOSSIN, Heráclito Antônio. Júri : crimes e processo. 3. ed. Rio de janeiro : Forense, 2009. p. 267.

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Penal, que cumpre ao juiz, quando da sentença,sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, dar a classificação definitiva do crime, embora possa com isto aplicar pena mais grave do que aquela que seria imposta tendo em vista a adequação típica apontada na peça acusatória.

Por intermédio desse regramento legal, conclui-se que a figura penal apontada pelo órgão acusatório público ou privado na peça postulatória que se torna obrigatória, porquanto sem tipicidade não pode haver persecução criminal, é plenamente provisória, podendo ser emendada, corrigida pelo magistrado quando da prolação do pronunciamento jurisdicional. Isso porque, em última análise, a ele cumpre aplicar o direito: narra mihi factum dabo tibi ius (narra a mim o fato e te darei o direito).

Posto em poucas palavras o princípio do iura novit curia, convém observar que sua aplicabilidade em nada interfere no princípio da correlação entre a imputação e a sentença, uma vez que o fato contido na denúncia ou na queixa além de se manter íntegro, não é alterado na sentença; não há julgamento extra, ultra petita ou in peius. Há, simplesmente, correção quanto a adequação típica indicada na peça acusatória, que não se ajusta à imputação.

Ademais, imprescindível se torna deixar patenteado, que o acusado nenhum prejuízo sofre no que pertine à sua ampla defesa quando houver mudança de classificação do fato punível, uma vez que ele se defende da imputação (fato típico) e não da adequação do delito apontada na inicial penal.

Em se cuidando da mutatio libelli (mudança da imputação), cujos traços normativos se mostram patenteados no art. 384, caput, do Código de Processo Penal, a matéria deve ser analisada em ótica bem diversa relativamente à emendatio libelli.

Na situação normativa versada,quando do encerramento da instrução, verificase, tendo em vista a prova existente nos autos,a presença de elementos ou circunstâncias da infração penal não contida na acusação pública ou privada (queixa supletiva).

Portanto, centrando o raciocínio no campo da matéria abordada, as novas provas arrostadas nos autos no correr da instrução probatória, conduzem à mudança da imputação; à alteração da descrição fática.

Em outras palavras, por ocasião da coleta de provas, surgirá circunstância elementar (fato) que não se encontra vertida na denúncia ou queixa supletiva, capaz de alterar a classificação do delito.

A circunstância elementar (essentialis delicti) tem sentido amplo, podendo indicar nova figura penal. No seu contexto também se incluem as causas de aumento ou diminuição da pena (agravante, privilégio, qualificadora), porque correspondem à mudança do delito de um preceito para outro, alterando o tipo fundamental.

Verifica-se, portanto, que há uma diferença jurídica bastante significativa

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entre a emendatio libelli (correção da capitulação do delito) e a mutatio libelli (mudança da imputação) implicativa do surgimento de outra figura delitiva.

Pontilhados os traços básicos do instituto objeto de considerações, cumpre cotejá-lo diante da correlação entre a imputação e a sentença condenatória.

Na esteira do que restou ponderado precedentemente, por ocasião da sentença condenatória o magistrado deve observar a correspondência predita, sob pena deste ato jurisdicional básico ser eivado de nulidade.

Como ficou bastante claro, na mutatio libelli surgirá um novo fato, nova imputação, que não se encontra no bojo da denúncia ou queixa supletiva. Nessa ordem de consideração, como o acusado se defende da imputação irrogada na peça acusatória, o magistrado não poderá de imediato julgar a pretensão punitiva condenando-o sem que lhe dê a oportunidade de nova defesa. Se isso ocorrer, ex abundandia, a nulidade da sentença será manifesta, posto que transgride e macula princípio constitucional afeto ao devido processo legal.

Diante disso, cumpre ao magistrado baixar os autos para que o membro do Ministério Público, no prazo de cinco dias, faça o adiamento á denúncia ou à queixa subsidiária, nela fazendo inserir a nova imputação surgida quando da coleta da prova judicial, oportunidade em que poderá arrolar até 3 testemunhas.

Tendo sido feito o aditamento, a defesa será intimada para, no prazo de cinco dias, manifestar sobre a nova imputação, bem como arrolar também testemunhas em número igual ao da acusação.

Tendo sido admitido o aditamento, o magistrado designará audiência de instrução e julgamento, oportunidade em que serão ouvidas as testemunhas arroladas pelas partes, interrogatório do acusado, debates e julgamento, conforme determina o § 2º, do art. 384 do Código de Processo Penal.

Se, eventualmente, o novo fato surgido na instrução constituir infração penal de menor potencial ofensivo, deve-se aplicar o rito estabelecido para o juizado especial criminal (Lei n. 9.099/95);bem como, se for o caso, a adoção da suspensão condicional do processo (art. 89, da lei n. 9.099/95).

3. CORRELAÇÃO E PRONÚNCIA

Diferentemente do que acontece com a sentença condenatória, a sentença de pronúncia tem por escopo determinar que o réu seja submetido a julgamento pelo seu juízo natural que é o tribunal do júri. (art. 413 CPP). Cuidase de decisão processual de cunho não terminativo, posto que permite que o procedimento do júri chegue a seu final que é exatamente a solução do conflito intersubjetivo de interesses pela magistratura popular.

Diante de tais considerações introdutórias, cumpre agora passar a fazer analisa jurídica para que se conclua sobre o tema sob enfoque que é a

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correspondência entre a pronúncia e a imputação contida na denúncia ou na queixa supletiva.

Na nova legislação atinente ao procedimento do júri, o legislador, de maneira oportuna, no § 3º, do art. 411 do Código de Processo Penal, prevê a aplicação do art. 384 do sobredito estatuto, que já foi objeto, quantum satis, de considerações doutrinárias quando da dissertação posta no item anterior.

Por questão de equidade, já que o direito, sempre que possível deve ser visto linearmente, o ponto de partida para se estudar a correspondência entre a denúncia ou queixa supletiva, deve ser a mutatio libelli.

Para efeito de melhor esclarecimento, nos termos normativos expressos no § 1º, do art. 413, do Código de Processo Penal, segundo o sistema da legislação pátria de regência, o juiz da pronúncia ao prolatá-la, deve, de forma definitiva classificar o crime, embora o pronunciado fique sujeito à pena mais grave. Trata-se da emendatio libelli.

A exemplo do que ocorre com a sentença condenatória, a adequação típica definitiva posta na decisão que declara que o réu deve ser submetido a julgamento pelos seus pares, mesmo que contrarie a capitulação constante da prefacial acusatória, não exerce nenhuma influência jurídica no princípio da congruência, mesmo porque não houve alteração da imputação, o fato narrada continua o mesmo.

Situação diversa ocorre em torno da mutatio libelli, tendo em linha de consideração o que se encontra consubstanciado, conforme anteriormente apontado, no § 3º, do art. 411, do Código de Processo Penal, que: “encerrada a instrução probatória, observa-se, se for o caso, o art. 384 deste Código.”

Seguindo as diretrizes de matéria já precedentemente tratada, surgindo fato novo no fluir da instrução judicial, que em última análise, altera a acusação, cumpre ao Ministério Público fazer o indeclinável aditamento narrando a nova imputação.

Enfocando de forma direta o assunto jurídico cuidado, para um melhor aclaramento da hipótese sub examine, cita-se o seguinte

exemplo: o réu foi denunciado pelo delito-tipo de aborto provocado sem o consentimento da gestante (art. 125, CP). Todavia no fluir da instrução resta demonstrado que o aborto foi praticado com o consentimento da gestante (art. 126, CP)5.

Ainda,se a denúncia ou queixa supletiva tiver descrito a imputação de homicídio

simples, e no transcorrer da instrução aparecer qualquer qualificadora dentre aquelas arroladas no art. 121, § 2º, do Código Penal, o aditamento também se impõe. Isso porque, a qualificadora, tendo em vista sua autonomia típica,

5 MOSSIN, heráclito Antônio. Idem, ibidem.

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imprime nova definição jurídica do homicídio6.Em face do princípio da correlação, que se assenta basicamente na ampla

defesa e no contraditório, aliado que seja à proibição da decisão ultra petita e a proibição de o magistrado provocar sua própria jurisdição (ne procedat iudex ex officio), não pode o juiz pronunciante, surgindo na instrução judicial fato novo que mude a classificação do crime ou que implique reconhecimento de qualificadora, determinar que o réu seja submetido a julgamento pelo tribunal do júri, sem que haja aditamento na prefacial pública ou privada, possibilitando ao acusado exercer sua defesa relativamente às novas questões fáticas.

A propósito do que está sendo discursado, “ora, em face do princípio da ampla defesa e do contraditório, que inexoravelmente também encontra aplicação nesta fase do procedimento do júri, a defesa não pode ser surpreendida com o reconhecimento de qualificadora, quando não há descrição fática a respeito contida na denúncia ou queixa-crime. A defesa incide sobre a imputação vertida na postulação pública ou privada, não podendo o magistrado extravasar seus limites, mesmo em se cuidando de sentença de caráter processual. Permissa rogata venia, deve haver, sempre, a devida correlação (princípio da congruência) entre pronúncia, denúncia ou queixa.7”

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A propósito do que está sendo dissertado, observa-se no campo pretoriano com incidência no Superior Tribunal de Justiça, que “é defeso ao magistrado fundamentar a pronúncia com elementos que não constavam na exordial acusatória em violação ao princípio da correlação da denúncia e a pronúncia.8”

E, como se isso não bastasse, nos lindes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, “ao juiz não é dado pronunciar o acusado por fato estranho à acusação, quer dizer, não mencionado na denúncia. É a imputação contida na denúncia o que fixa o alcance da pronúncia. O juiz, para ir além, ao reconhecer circunstância elementar não contida explícita ou implicitamente na peça vestibular, deverá proceder na forma do art. 384 do CPP, dando oportunidade ao acusado de defender-se da nova imputação.9”

No campo legal que está sendo objeto de exame, há também doutrina,

6 MOSSIN, Heráclito Antônio. Op. cit. p. 279.7 STJ - REsp 70330/PR - 5ª T - Rel. Min. Laurita Vaz - DJe 07/04/2008. No mesmo sentido: RT 674/299; 692/380.8 RT 691/310.9 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Paulo Rangel. 3. ed. Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2001. p.327-8.

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embasada no princípio da congruência lavrando inteligência no sentido de que, “o que se quer evitar com este princípio é uma denúncia por homicídio simples e pronúncia (sem aditamento à denúncia) por homicídio qualificado. Ou seja, desconformidade entre o que se pediu e o que foi concedido. É cediço que no processo, o juiz não pode decidir a lide fora dos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte (cf. art. 128 do CPC), bem como proferir sentença, a favor do réu de natureza diversa da pedida ou além do que se pediu (art. 400 do CPC).”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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RANGEL, Paulo. Direito processual penal. Paulo Rangel. 3. ed. Rio de Janeiro : Lúmen Júris, 2001. p.327-8.

LEI COMPLEMENTAR N.º 123: A CAPACIDADE POSTULATÓRIA DOS PROCURADORES ESTADUAIS E O PACTO FEDERATIVO

WASHINGTON LUÍS BATISTA BARBOSA1

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por objetivo principal analisar os impactos da edição da Lei Complementar 123, principalmente no que diz respeito à constitucionalidade do seu artigo 41 que atribui à Procuradoria Geral da Fazenda a competência para inscrever em dívida ativa e cobrar os créditos tributários do chamado SIMPLES Nacional1.

O Cerne da questão que será analisado é acerca da usurpação da competência constitucional dos Procuradores de Estado para defender os interesses de sua unidade federada.

Para melhor compreender o tema, far-se-á primeiro a análise da referida lei complementar, abordando o contexto sócio-político de sua edição.

Posteriormente, como não poderia deixar de ser, aprofundar-se-á na discussão do pacto federativo da República Federativa do Brasil, sua evolução e análise da situação atual, principalmente no que diz respeito às competências tributárias e repartição de receitas.

Após esta, apresentar-se-á informações a respeito da capacidade postulatória dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, tanto no que diz respeito aos matizes constitucionais como seus direitos e deveres enquanto advogados sujeitos à legislação específica.

Será trazido, ainda, para o bojo deste trabalho um breve relato sobre das Ações Diretas de Incostitucionalidade que abordaram e abordam o tema nos últimos anos, bem como serão analisadas as diversas posições de nosso Tribunal Superior.

1 Especialista em Direito Público. Faculdade de Direito Processus. Assistente da Assessoria Jurídica da Diretoria-Geral do Tribunal Superior do Trabalho, Ex Diretor Fiscal da Procuradoria Geral do Governo do Distrito Federal.

ResumenO presente trabalho tem por objetivo principal analisar os impactos da edição da Lei Complementar 123, principalmente no que diz respeito à constitucionalidade do seu artigo 41 que atribui à Procuradoria Geral da Fazenda a competência para inscrever em dívida ativa e cobrar os créditos tributários do chamado SIMPLES Nacional, sendo estruturado da seguinte forma: 1. Introdução; 2. Lei Complementar n.º123, de 14/12/2006; 3. Pacto Federativo; 4. Capacidade Postulatória dos Procuradores Estaduais; 5. A Posição do STF ao Longo dos Anos; 6. Conclusão.

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Por fim, será apresentada uma proposta de modelo de atuação para inscrição e cobrança dos créditos tributários originados do SIMPLES Nacional.

2. LEI COMPLEMENTAR N.º 123, DE 14/12/2006

A Constituição de 1988, em seu artigo 179, ao tratar da ordem econômica e financeira, principalmente em seu capítulo primeiro: “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, estatuiu:

Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentiva-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei.

Trata-se de norma de eficácia limitada, de cunho programático, carecendo de lei específica para que possua eficácia plena e possa produzir todos os efeitos aos quais se propôs.

Não obstante, havia a Lei N.º 7.256/84, chamada de Estatuto da Microempresa a qual estabelecia: “normas integrantes do Estatuto da Microempresa, relativas ao tratamento diferenciado, simplificado e favorecido, nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de desenvolvimento empresarial”.

O primeiro debate estaria na recepção ou não da lei supracitada pelo novo ordenamento jurídico trazido pela Constituição de 1988. Ora, não há dúvidas que a intenção do legislador constituinte se encontrava em congruência com o preconizado pelo Estatuto da Microempresa, mais que isto se nos apresenta claro que o desejado pelo Constituinte, principalmente aqueles que representavam os microempresários, era trazer ao nível constitucional as vitórias alcançadas com a edição do estatuto.

Foi então, e como não poderia ser diferente, que o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o Mandado de Injunção Coletivo N.º 73-5/94, declarou que a Lei n.º 7.256/84, fora recepcionada pela Constituição de 1988 e estava cumprindo com o mandamento do artigo 179 da CF, conforme transcrição abaixo:

EMENTA: Mandado de Injunção Coletivo. Esta Corte tem admitido o mandado de injunção coletivo. Precedentes do Tribunal. Em Mandado de Injunção não é admissível pedido de suspensão por inconstitucionalidade, de lei,

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por não ser ele o meio processual idôneo para a declaração de inconstitucionalidade, em tese, de ato normativo. Inexistência, no caso, de falta de regulamentação do artigo 179 da Constituição Federal, por permanecer em vigor a Lei 7.256/84 que estabelece normas integrantes do Estatuto da Microempresa, relativas ao tratamento diferenciado, simplificado e favorecido, nos campos administrativo, tributário, previdenciário, trabalhista, creditício e de desenvolvimento empresarial. Mandado de Injunção não conhecido. (STF, Ementário n.º 1772-1, DJ de 19.12.94). (Grifou-se).

Para não pairar mais qualquer dúvida sobre o assunto, solucionando todas as possíveis controvérsias, foram editadas as Leis 8.864/94 e a Lei 9.841/99, esta última revogando expressamente as Leis 7.256/84 e 8.864/94 e estatuindo o Estatuto da Micro- empresa e da Empresa de Pequeno Porte.

Muito embora toda a atividade legislativa mencionada acima, somente com o advento da Lei 9.317/1996, o chamado Simples Federal, que a questão do tratamento diferenciado para micro e pequenas empresas foi regulado no âmbito federal.

O que se viu a partir de então foi um leque de dispositivos legais de âmbito estadual e/ou municipal a regular as relações com as micro e pequenas empresas. Dessa sorte em cada localidade seria possível um tipo de tratamento diferente o que, com certeza, não foi nem é a intenção do preconizado no artigo 179 da CF.

A Emenda Constitucional 42/2003, ao alterar o artigo 146 da CF e incluir o artigo 94 da ADCT, reservou a Lei Complementar a definição de tratamento diferenciado e favorecido para microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso de ICMS, Contribuições Sociais e PIS.

Depois deste breve histórico pode-se falar da Lei Complementar 123/2006 que instituiu normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado à microempresa e empresa de pequeno porte no âmbito dos poderes da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Com vigência a partir de 01/07/2007 esta Lei Complementar revogou as demais leis que tratavam o tema, unificando nacionalmente a matéria.

O Chamado Simples Nacional inclui os seguintes impostos e contribuições:

a) IRPJ- Imposto de Renda da Pessoa Jurídica;b) IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados;c) CSLL - Contribuição Social sobre Lucro Líquido;d) COFINS - Contribuição Social para o Financiamento da

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Seguridade Social;e) PIS/PASEP - Contribuição para Programa de Integração Social;f) Contribuição para Seguridade Social “Patronal”;g) ICMS - Imposto Sobre Circulação de Mercadoria e Sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicações; eh) ISS - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza.

Na realidade, com o surgimento do SIMPLES Nacional, as empresas optantes deixaram de ser obrigadas a contribuir com os demais tributos da União, inclusive as contribuições para as entidades privadas de serviço social e de formação profissional vinculadas ao sistema sindical.

Não está no escopo do presente artigo analisar o SIMPLES Nacional ou mesmo o tratamento diferenciado dado às micro e pequenas empresas, este tema deverá ser objeto de um outro estudo. Fez-se necessária esta digressão para que o leitor fosse contextualizado acerca do ambiente sócio-político e, principalmente, jurídico em que se insere a discussão central deste trabalho.

O artigo 41 da LC 123/2006 prevê:

Art. 41. À exceção do disposto no §3º deste artigo, os processos relativos a tributos e contribuições abrangidos pelo Simples Nacional serão ajuizados em face da União, que será representada em juízo pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

§1º. Os Estados, Distrito Federal e Municípios prestarão auxílio à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, em relação aos tributos de sua competência, na forma a ser disciplinada por ato do Comitê Gestor.

§2º. Os créditos tributários oriundos da aplicação desta Lei Complementar serão apurados, inscritos em dívida ativa da União e cobrados judicialmente pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

§3º. Mediante convênio, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional poderá delegar aos Estados e Municípios a inscrição em dívida ativa estadual e municipal e a cobrança judicial dos tributos estaduais e municipais a que se refere esta Lei Complementar.”

Somente para delimitar o escopo da discussão deve-se ressaltar alguns pontos da norma supracitada:

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a) Alteração da legitimidade passiva para os processos relativos a tributos estaduais, distritais e municipais avocando esta legitimidade para a União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional;b) Alteração da competência administrativa para apuração e inscrição em dívida ativa, mais que isto a inclusão de créditos tributários originados de tributos estaduais, distritais e municipais na dívida ativa da União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional;c) Alteração da legitimidade ativa para cobrança judicial dos créditos tributários estaduais, distritais e municipais avocando esta legitimidade para a União, representada pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional;d) Ressalte-se que o convênio previsto no parágrafo 3º do citado artigo não inclui a possibilidade de o Distrito Federal vir a ser parte dele, afastando por completo a possibilidade de o Distrito Federal vir a participar da cobrança judicial de seus tributos incluídos no Simples Nacional.

Nas seções seguintes serão abordados os impactos do advento da presente norma para o pacto federativo nacional e sobre a competência constitucional dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal para representar a sua unidade federada.

3. PACTO FEDERATIVO

Inicialmente, urge traçar algumas considerações acerca dos fundamentos e conceitos do federalismo.

Federalismo é um princípio que sustenta a Federação como um ideal para a vida social e política em determinados Estados, baseada no aspecto fundamental do pluralismo, na tendência de harmonização e no princípio regulador da solidariedade2.

Ou, ainda, como diria o mestre Antônio Roberto Sampaio: “é o federalismo a fórmula histórico-pragmática de composição política que permite harmonizar a coexistência, sobre idêntico território, de duas ou mais

2 ”Federalism in is broadest and most general sense is a principle which conceives the federation as the ideal form of so-cial and political life. It is characterized by a tendency to substitute coordinating for subordinating relationships from above with reciprocity, understanding and adjustment, command with persuasion and force with law. The basic aspect of federalism is pluralistic its fundamental tendency is harmonization and its regulative principle is solidarity”. BOEHM, Max Hildebert. Encyclopedia of the Social Sciences, p. 169-170, op. cit. in O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional, ELIALI, André, p. 17-18.

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ordens de poderes autônomos, em suas respectivas esferas de competência”3.Quando se fala em uma federação não se pode deixar de considerar que

se está falando de uma forma de Estado descentralizada, composta de, pelo menos, duas esferas, que de forma harmônica e coesa constituem a federação. Uma única ordem constitucional a manter o Estado soberano, a União de todas as unidades federadas.

Falar em federalismo e não falar em repartição de competências, seria um despautério, pois somente com a dispersão do exercício do poder político da unidade central para as unidades federadas é que se terá a descentralização, pilar de um Estado Federal. De outro lado, ao não haver esta distribuição do poder político, sendo ele centralizado, deve-se falar em um Estado Unitário.

Poder-se-ia citar como características básicas do federalismo:

a) alocação eficiente dos recursos nacionais;b) aumento da participação política da sociedade;c) proteção das liberdades básicas e dos direitos individuais dos cidadãos;d) autonomia constitucional, política, administrativa e financeira das unidades federadas;e) uma só ordem constitucional a manter o estado soberano;f) rigidez constitucional e controle concentrado de constitucionalidade;g) mecanismos contra movimentos de secessão e para manter o pacto federativo;h) distribuição de competência legislativa, tributária e política asseguradas constitucionalmente

Desde a proclamação da República e de acordo com todas as constituições nacionais, o Brasil é uma federação de estados autônomos, somente durante o império fomos um Estado Unitário.

Mais do que isto, a constituição federal de 1988 dispõe ser a forma federativa de estado uma cláusula pétrea, ou seja não passível de Emendas, transcreve-se:

Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos...”.

3 SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Discriminação de rendas tributárias. São Paulo: José Brushatsky, 1972, p. 9. Op. Cit. in. O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional, ELIALI, André, p. 18.

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Art. 60. A Constituição ser emendada mediante proposta: ...

§4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:I - a forma federativa de Estado;II - O voto direto, secreto, universal e periódico;III - a separação dos poderes;IV - os direitos e garantias individuais. (Grifou-se).

Não resta qualquer dúvida, jurisprudência e doutrina são uníssonas em afirmar que não é possível uma Proposta de Emenda Constitucional que queira impor o exercício do poder político de forma concentrada, que queira interferir na autonomia constitucional, política, administrativa, legislativa ou financeira das unidades federadas. Tal somente seria possível com a instauração de uma nova ordem constitucional, fruto do poder originário.

De outro lado, não se pode deixar de ter claro que a manutenção da forma federativa de estado não significa dizer que a distribuição de competências constitucionais não possa ser revista, o importante é que seja mantida a união federal e garantida a autonomia das unidades federativas.

Como diria André Elali: “Assim, é possível pela norma vigente uma reformulação de competências, permitindo-se, por exemplo, a criação de um imposto sobre o consumo, de competência da União e em substituição ao IPI, ao ICMS e ao ISS, tendo-se por destinação compulsória a repartição de receitas com os Estados, Distrito Feral e Municípios de forma a se manter a atual ordem de receitas. Com tal destinação compulsória, manter-se-ia o nível de recursos necessários para a estruturação das entidades federativas.4”

Após estas considerações acerca dos conceitos e objetivos do federalismo, é importante para o presente estudo trazer uma adaptação da excelente monografia realizada pela FENAFISCO - Federação Nacional do Fisco Estadual e a Fundação Getúlio Vargas intitulado “Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: Uma Proposta de Reforma Tributária”, de novembro de 1998.5

Naquela monografia, antes de fazer uma proposta de reforma tributária, objetivo maior do trabalho, foi realizado estudo comparado dos sistemas tributários mais importantes do mundo. Estas informações, principalmente no que diz respeito a administração tributária, são trazidas de forma adaptada ao presente texto de forma a contribuir com a exploração do tema a que este

4 ELIALI, André - O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional - São Paulo: MP Editora, 2005, p. 63.5 FENAFISCO/FGV - Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: Uma Proposta de Reforma Tributária - Monografia contratada pela FENAFISCO para a FGV-EPGE Escola de Pós Graduação em Economia, trabalho elaborado a partir de princípios e diretrizes deliberadas pelo Conselho Deliberativo da Entidade e acompanhado por uma comissão específica.

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se propõe.Nos Estados Unidos da América a administração tributária é

descentralizada. Desta forma as competências para administrar e arrecadar tributos é distribuída em cada esfera de governo. Este fato gera ampla autonomia fiscal aos estados, mas, de outro lado, traz sérios problemas ao contribuinte que tem de prestar contas com vários fiscos de forma diferenciada para cada transação. Além disso não existe uma uniformização de procedimentos e fica clara a sobreposição de atividades e estruturas administrativas.

No Japão, os governos locais não têm autonomia para determinar base tributária e alíquotas. O Congresso define a base tributária e determina as alíquotas detalhadamente de cada imposto, qualquer ação dos governos locais tem de ter a aprovação do governo central.

Não obstante toda a centralização, a administração tributária é realizada tanto pelo governo central como pelos governos locais. Já no que diz respeito à administração tributária nacional, existe a ATN uma a agência do governo encarregada pela execução e administração da política tributária. Ainda, muito embora os impostos locais sejam administrados pela Administração Tributária Local, todas as atividades são vinculadas ao Ministério do Interior, responsável pelo planejamento e arrecadação dos impostos locais, de forma centralizada.

No Reino Unido, a constituição não delega amplos poderes aos governos locais, sendo-lhes atribuído somente dois tipos de impostos: o imposto nacional sobre a propriedade e o imposto local sobre a propriedade.

A administração tributária é feita basicamente por dois órgãos: o Serviço de Receita do Reino Unido e o Departamento de Aduanas e Impostos. Estes órgãos têm escritórios executivos espalhados por todo o território e são responsáveis pela administração e arrecadação de imposto em todo o Reino Unido. No que diz respeito ao imposto local, a maior parte da administração é do próprio governo local. Ressaltese que as relações intergovernamentais no Reino Unido caracterizam-se por um forte controle do governo central, havendo reduzida autonomia dos governos locais.

A Alemanha, república federativa com um sistema parlamentarista de governo e estrutura bicameral, apresenta legislação tributária uniforme e centralizada. A jurisdição sobre a receita tributária, as categorias de impostos e a competência tributária de cada nível de governo estão determinadas na Constituição. O governo federal é responsável pela administração somente das tarifas alfandegárias, dos impostos seletivos sujeitos a legislação federal, do IVA das importações e das taxas fixadas pela União Européia. Todos os outros impostos são administrados pelas agências estaduais de arrecadação. Com relação aos impostos conjuntos, os estados atuem como agentes da federação. A administração dos impostos de competência dos governos locais

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é transferida total ou parcialmente para os estados. A administração arca com os custos da arrecadação dos impostos federais, todos os outros custos são de responsabilidade dos estados. A autonomia fiscal reduzida dos estados pode ser explicada, em parte, pelo modelo de federalismo cooperativo alemão baseado em partilha de receita tributária e o método de equalização financeira.

A distribuição dos impostos no Brasil é do tipo Especializada, ou seja, atribui a cada unidade federada competência sobre determinada base tributária. Assim o imposto de renda foi atribuído à união, o imposto sobre a propriedade territorial e urbana, foi destinado aos município, o imposto sobre consumo foi divido nas três esferas de governo, sendo dos estados a parte mais importante deste tipo de imposto.

O Título IV da Constituição Federal, Da Tributação e do Orçamento, Capítulo I, Do Sistema Tributário Nacional, principalmente no que diz respeito aos artigos 154 a 157, distribui as competências tributárias para a União, Estados e Distrito Federal e municípios.

Não basta dividir competência, para se implantar o chamado federalismo fiscal, uma das bases do federalismo, faz-se necessário buscar o equilíbrio entre a arrecadação das unidades da federação e as suas responsabilidades. Aqui nasceu um dos maiores erros da história da Federação Brasileira, erro este que, às vezes, faz com que pareçamos muito mais centralizado do que os estados unitários.

As competências tributárias foram claramente estabelecidas, mas, de outro lado, as responsabilidades não o foram. Questões essenciais como educação e saúde são atribuídas a todos os níveis da federação que, no lugar de viabilizar um maior comprometimento de todos, gera um jogo de empurra e troca de favores.

Como forma de minimizar estes problemas estruturais surgem as transferências intergovernamentais previstas nos artigos 157 a 162 da CF. Lá serão encontradas seis tipos de transferências da união para os estados e quatro da união para os municípios, além de transferências dos estados para os municípios, quais sejam:

a) União para os Estados:1. 21,5% da arrecadação dos impostos de renda (CF 159, I);2. 21,5% sobre os produtos industrializados (CF 159, I);3. 10% da arrecadação do IPI aos estados exportadores, proporcionalmente as suas exportações (CF 159,II);4. 30% da arrecadação do imposto sobre operações financeiras (IOF-OURO);5. 29% da arrecadação com a CIDE - contribuição de intervenção no domínio econômico (159, III);6. 20% da arrecadação de impostos criados após a CF/88,

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competência residual da União;

b) União para os Municípios:1. 22,5% da arrecadação dos impostos de renda;2. 21,5% sobre os produtos industrializados;3. 70% da arrecadação do imposto sobre operações financeiras (IOF-OURO);4. 50% da arrecadação do imposto territorial rural

c) Estados para Municípios: 1. 25% da arrecadação do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços;2. 50% da arrecadação d imposto sobre a propriedade de veículos automotores; e3. 25% da transferência que o estado receber da cota-parte do IPI-Exportação (CF 159, §3º).

Mais do que isto, a Constituição ainda determinou que o imposto de renda retido na fonte dos servidores públicos dos estados, do Distrito Federal e dos municípios ficasse como receita tributária de cada ente, respectivamente.

Estes repasses podem ter natureza constitucional, listados acima, ou não-constitucional. Os primeiros são vinculados e automáticos; já os segundos dependem de convênios ou acordos políticos.

Aqui se tem de ressaltar alguns pontos que são de extrema importância para o problema ora estudado:

a) as competências tributárias estão claramente delimitadas na Constituição Federal;b) as responsabilidades de cada ente da federação brasileira carece de algum esclarecimentos e de extirpar as áreas de sobre, de forma a se poder definir exatamente aonde começa o papel de um e onde termina o do outro;c) não há equilíbrio entre as bases tributárias, receitas, e as atribuições constitucionais, despesas;d) existe mecanismo para equilibrar as fontes e usos, repartição das receitas tributárias, repasses constitucionais e não-constitucionais.

O que se pode defluir destas informações é que não há que se falar em autonomia do ente federado se não houver um perfeito equilíbrio entre as receitas tributárias e/ou repasses intergovernamentais e suas responsabilidades constitucionalmente estatuídas.

Mais que isto, o cerne da questão está na capacidade de arrecadação direta,

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sem que tenha de existir uma dependência de repasses intergovernamentais. Tal dependência leva, sem sombra de dúvidas, às políticas de “beija-mão” e de troca de favores, sem falar em tráfego de influência e corrupção.

Um Estado que se diz federal deve primar para que as responsabilidades, as fontes e os usos estejam o mais descentralizado possível, pois somente a proximidade com o beneficiário direto pode permitir uma eficiente fiscalização do cidadão.

4. CAPACIDADE POSTULATÓRIA DOS PROCURADORES ESTADUAIS

Chega-se agora ao ponto central do trabalho, avaliar a capacidade postulatória dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal. As informações trazidas até o presente momento serviram para contextualizar o leitor no tema. Primeiramente a discussão acerca da Lei Complementar 123, principalmente no que diz respeito à alteração da capacidade postulatória e avocação de competências administrativas. Na segunda parte do texto o foco recai na conceituação de federalismo, dando ênfase à necessidade da autonomia constitucional, administrativa, política e tributária dos entes federados. Agora, ao chegar mais próximo da conclusão do trabalho, há de ser abordada a competência constitucional da Advocacia pública.

Ao se falar em capacidade postulatória dos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, faz-se necessário primeiro conceituar capacidade postulatória, para isto transcrevem-se os artigos 133 da CF/88 e 36 do Código de Processo Civil Brasileiro:

Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei. (CF/88).

Art. 36. A parte será representada em juízo por advogado legalmente habilitado. Ser-lhe-á lícito, no entanto, postular em causa própria, quando tiver habilitação legal ou, não a tendo, no caso de falta de advogado no lugar ou recusa ou impedimento dos que houver. (CPC)

Ou seja, a capacidade postulatória consiste na possibilidade de se postular em juízo. Só quem detém essa capacidade no processo civil brasileiro é o advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, ressalvadas as causas até 20 (vinte) salários mínimos que tenham curso nos juizados especiais.

Ressaltem-se algumas carreiras que possuem capacidade postulatória decorrente da lei que as instituiu, como é o caso do ministério público que

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recebe o poder de postular em juízo diretamente da Constituição. Ou, ainda alguns casos no processo penal (habeas corpus, revisão criminal) e o processo do trabalho.

Centrando a discussão na advocacia pública a Constituição reservou uma seção específica do capítulo “Das funções Essenciais à Justiça”, que no artigo 132 prescreve:

Art. 132. Os procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas.

Poder-se-ia conceituar advocacia pública como sendo as funções atinentes à representação judicial e extrajudicial das pessoas jurídicas de direito público, bem como à prestação de consultoria, assessoramento e controle jurídico interno dos poderes que constituem o ente federado. De se deixar claro que ao se falar em ente federado não se faz distinção entre os poderes autônomos que compõe o Estado - Executivo, Legislativo e Judiciário -, como também não se está restrito a administração6.

A representação da Fazenda Pública tem sede constitucional, sendo prescindível a juntada de procuração. Os procuradores dos Estados e do Distrito Federal não precisam juntar instrumento de mandado, pois este decorre do vínculo que mantêm com a administração.

Neste sentido:

...os procuradores públicos adquirem o poder de representação pela só condição funcional, o que os desonera de apresentação de instrumento de mandado. Seria contraditório que detivessem aquela qualidade por decorrência normativa e simultaneamente houvessem de comprovar poder de representação volitivo. A procuração é materialização de negócio jurídico, circunstância incompatível com a natureza da relação que se estabelece entre o órgão Público e seus procuradores. Seu poder de representação está ‘in re ipsa’. Não por acaso, descabe substabelecimento dos poderes

6 Texto adaptado de GRADE JÚNIOR, Cláudio. A advocacia pública no Estado Democrático de Direito. Jornal o Estado do Paraná -Caderno Direito e Justiça. Curitiba, 27/jun/2004, citado no artigo “Art. 132 Da Constituição Federal - Interpretação e Alcance no âmbito da Administração Pública - Análise Jurisprudencial”, ZANDONAI, Marisa, As Perspectivas da Advocacia Pública e a Nova Ordem Econômica/Organizadores: Zênio Ventura, Paulo Roney Ávila Fagundez - Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.

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advindos da lei decorrentes da nomeação (fato que, mesmo inesperado, acontece no coti diano forense)7.

Conforme o Procurador Federal, Dr. Matheus Rocha Avelar, no artigo “Os Advogados Públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil”8, tratam-se das chamadas “Procuraturas Constitucionais” - Procuradoria Federal, Advocacia Geral da União e Procuradoria da Fazenda Nacional. O Autor as designa desta forma por terem os seus membros recebido a representação das entidades públicas diretamente da Constituição Federal. Permita-se que sejam incluídos nesta classificação os procuradores dos estados e do Distrito Federal, seguindo a mesma linha de raciocínio.

De se destacar que não há simetria entre a representação da União e a dos Estados. O artigo 131 da Constituição Federal determina:

Art. 131. A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.

§1º (...)

§2º (...)

§3º Na execução da dívida ativa de natureza tributária, a representação da União cabe à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, observado o disposto em lei.

Como se vê a União possui uma Instituição que a representa, mas também possui um órgão, a ela vinculado, que possui a capacidade postulatória constitucionalmente definida para execução de dívida ativa de natureza tributária. Ou seja, se a causa ostentar natureza tributária ou fiscal a União será representada pela PGFN, nos outros tipos de demanda, sua representação é feita pela AGU.

Por muito tempo, principalmente quando da edição das constituições estaduais, houve o entendimento de que esta possibilidade de especialização e, principalmente, de delegação da capacidade de representação em juízo

7 PEREIRA, Hélio do Vale. Manual da Fazenda Pública em Juízo. Rio de Janeiro. Renovar, 2003, p.82.8 AVELAR, Matheus Rocha. Os Advogados Públicos e a Ordem dos Advogados do Brasil: sai manifesta dissociabilidade. Jus Navegandi, Teresina, 1520, 30 ago. 2007. Disponível em: . Acesso em: 29 jan. 2008.

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devesse se repetir na esfera estadual. Este tema será abordado com maior profundidade na próxima seção, mas somente para fundamentar a discussão, transcreve-se o artigo 69 do ADCT:

Art.69. Será permitido aos estados manter as consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções.

Como se vê a norma é muito clara em somente permitir uma exceção ao preceituado no artigo 131 do corpo permanente da Constituição, mas, como dito anteriormente, este não foi um entendimento pacífico na jurisprudência e várias foram as decisões em outro sentido.

Neste sentido:

A Carreira de Procurador do Estado e do Distrito Federal, foi institucionalizada em nível de Constituição Federal. Isto significa a institucionalização dos órgãos estaduais de representação e consultoria dos Estados, uma vez que os Procuradores, a que se incumbe essa função no artigo 132 daquela Carta Magna, hão de ser organizados em carreira dentro de uma estrutura administrativa unitária em que sejam todos congregados, ressalvado o disposto no artigo 69 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que autoriza os Estados a manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias-Gerais ou Advocacias-Gerais, desde que, na data da promulgação da Constituição, tenham órgãos distintos para as respectivas funções (é o caso de Pernambuco).9

5. A POSIÇÃO DO STF AO LONGO DOS ANOS

O presente tema já foi bastante discutido no Supremo Tribunal Federal, tendo origem na promulgação das constituições estaduais. Ao regulamentar a representação judicial e extrajudicial em suas unidades federadas, estas constituições trouxeram à discussão o real papel das Procuradorias-Estaduais e do Distrito Federal.

Algumas questões careciam de resposta o que levou a interpretações incongruentes sobre o mesmo tema:

9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Consitucional Positivo. 9.ed. 2. Tiragem, 1993, São Paulo: Malheiros, p. 540.

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a) Quais os limites constitucionais à organização dos Estados?b) A norma prevista no artigo 131 da CF é de repetição obrigatória? Poder-se-ia utilizar de simetria entre o modelo da União e o dos Estados?c) Quando o artigo 132 fala de “unidade federada” inclui todos os poderes, administração direta e indireta?d) O cotejamento entre o artigo 131, do texto permanente, e o artigo 69 do ADCT possibilita a delegação da competência para consultoria jurídica?

Estas foram algumas questões que, via ações diretas de inconstitucionalidade começaram a bater às portas de nossa Corte Constitucional.

A primeira a levantar esta discussão foi a ADI n.º 175-2/PR, proposta em janeiro de 1990 e que trazia vários dispositivos da constituição estadual do Paraná para análise e manifestação. Certamente, o grande número de artigos questionados não possibilitou um debate mais profundo e contundente sobre o art. 132 da CF e culminou na decisão abaixo transcrita:

Ementa:1. Funcionalismo. Licenca especial e direito a creche. Inconstitucionalidade dos itens xviii e xxi do art. 34 Da constituição do parana, por tratarem de matéria sujeita a iniciativa privativa do chefe do poder executivo (art. 61, Par. 1., “C” e “d”, da carta federal). 2. Correção monetária de vencimentos em atraso (par. 7. Do art. 27 Da carta paranaense), não incompativel com a constituição federal. 3. Banco regional do desenvolvimento do extremo sul. Natureza autarquica não caracterizada, não podendo também o estado dispor, isoladamente, sobre regime dos servidores da empresa (art. 46 Do adct do parana), sem o concurso das duas outras unidades da federação, dela participantes (art. 25 Da constituição federal). 4. Inconstitucionalidade do art. 55 Do adct do parana, por dilatar a exceção de dispensa de concurso para o cargo de defensor público, prevista no art. 22 Das disposições transitorias federais, infringindo os artigos 37, ii, e 134, paragrafo único, da constituição da republica. 5. Compatibilidade, com o art. 132 Da carta federal e o art. 69 Do respectivo adct, da manutenção, pelo art. 56 Da constituição paranaense, de carreiras especiais, voltadas ao assessoramento jurídico, sob a coordenação da procuradoria geral do estado. 6. Ação direta julgada, em parte, procedente.” (Adi 175-pr/paraná, dj. 08.10.1993). (Grifou-se).

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Em maio de 1993, o Conselho Federal da OAB aforou a ADI nº 881 questionando Lei Complementar do Espírito Santo que instituía cargos comissionados de assessor jurídico no Poder Executivo, ressalte-se que a decisão foi de 08/93, mas somente foi publicada em 04/97.

Ementa: ação direta de inconstitucionalidade - lei complementar 11/91, do estado do espírito santo (art. 12, Caput, e §§ 1º e 2º; art. 13 E incisos i a v) - assessor jurídico - cargo de provimento em comissão - funções inerentes ao cargo de procurador do estado - usurpação de atribuições privativas - plausibilidade jurídica do pedido - medida liminar deferida. - O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do poder executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos procuradores do estado pela carta federal. A constituição da república, em seu art. 132, Operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da advocacia pública do estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos. (Adi-mc. 881/Es-espírito santo. Dj. 25.04.1997). (Grifou-se).

Até o presente momento a discussão se encontrava dentro do Poder Executivo, mas a ADI n.º 1557-DF, proposta pela ANAPE - Associação Nacional de Procuradores Estaduais em face da Câmara Legislativa do Distrito Federal, questionou a constitucionalidade da criação de uma Procuradoria Geral da Câmara Distrital por violar o artigo 132 da CF, cuja ementa transcreve-se abaixo:

Ementa: ação direta de inconstitucionalidade. Emenda nº 9, de 12.12.96. Lei orgânica do distrito federal. Criação de procuradoria geral para consultoria, assessoramento jurídico e representação judicial da câmara legislativa. Procuradoria geral do distrito federal. Alegação de vício de iniciativa e de ofensa ao art. 132 Da cf. 1. Reconhecimento da legitimidade ativa da associação autora devido ao tratamento constitucional específico conferido às atividades desempenhadas pelos procuradores de estado e do distrito federal. Precedentes: adi 159, rel. Min. Octavio gallotti e adi 809, rel. Min. Marco aurélio. 2. A estruturação da procuradoria do poder legislativo distrital está, inegavelmente, na esfera de competência privativa da câmara legislativa do df. Inconsistência da alegação de vício formal por usurpação de iniciativa do governador. 3. A procuradoria geral do distrito

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federal é a responsável pelo desempenho da atividade jurídica consultiva e contenciosa exercida na defesa dos interesses da pessoa jurídica de direito público distrito federal. 4. Não obstante, a jurisprudência desta corte reconhece a ocorrência de situações em que o poder legislativo necessite praticar em juízo, em nome próprio, uma série de atos processuais na defesa de sua autonomia e independência frente aos demais poderes, nada impedindo que assim o faça por meio de um setor pertencente a sua estrutura administrativa, também responsável pela consultoria e assessoramento jurídico de seus demais órgãos. Precedentes: adi 175, dj 08.10.93 E adi 825, dj 01.02.93. Ação direita de inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente. (Adi 1557/df-distrito federal. Dj. 18.06.2004). (Grifou-se).

Ainda, em junho de 1997, a ANAPE ingressou com a ADI 1679, questionando a Constituição Estadual de Goiás que criou a Procuradoria da Fazenda Estadual, vinculada ao Secretário Estadual de Fazenda. Nesta se discutiu com profundidade a possibilidade de replicação, por simetria, do modelo de representação judicial da União para os Estados e o Distrito Federal. Abaixo a ementa da decisão:

EMENTA: Ação direta de inconstitucionalidade. 2. Emenda Constitucional no 17, de 30 de junho de 1997, promulgada pela Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, que acrescentou os §§ 2o e 3o e incisos, ao artigo 118 da Constituição estadual. 3. Criação de Procuradoria da Fazenda Estadual, subordinada à Secretaria da Fazenda do Estado e desvinculada à Procuradoria-Geral. 4. Alegação de ofensa aos artigos 132 da Constituição e 32, do ADCT. 5. Descentralização. Usurpação da competência funcional exclusiva da Procuradoria-Geral do Estado. 6. Ausência de previsão constitucional expressa para a descentralização funcional da Procuradoria-Geral do Estado. 7. Inaplicabilidade da hipótese prevista no artigo 69 do ADCT. Inexistência de órgãos distintos da Procuradoria estadual à data da promulgação da Constituição. 8. Ação julgada procedente.” (ADI 1679/GO-GOIÁS. DJ. 21.11.2003). (grifou-se)

O que se vê até o presente momento é o início de uma posição dominante na Corte Suprema que assegura aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal a unicidade de competência para representar os seus entes federados judicial ou extrajudicialmente.

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Considerando a análise das decisões até hoje tomada acerca deste assunto e tendo por premissa a manutenção da linha de pensamento dos julgadores, poder-se-ia dividir a atual corte em três blocos de interpretação quanto ao tema, quais sejam:

a) Defendem a prerrogativa constitucional de competência para representação judicial e extrajudicial dos procuradores, mas admitem que os Poderes Legislativo e Judiciário possam ter procuradorias próprias para representá-los em defesa de uma possível usurpação de competência. Neste bloco incluímos a Excelentíssima Ministra Ellen Gracie e os Excelentíssimos Ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello;b) Outro bloco de interpretação segue a mesma linha do primeiro somente difere por não admitir a representação autônoma dos Poderes Legislativo e Judiciário, entendendo que o art. 132 fala em unidades federadas, sendo estas a comunhão de todos os poderes: executivo, legislativo e judiciário. Aqui se fala do Excelentíssimo Ministro Marco Aurélio; c) Um terceiro grupo tergiversa entre os posicionamentos não se podendo dizer que possuam uma posição contundente acerca do tema. Representam esta linha os Excelentíssimos Ministros Cezar Peluso e Carlos Britto;d) Por fim em relação a alguns membros da corte não foi possível verificar o posicionamento, são eles a Excelentíssima Ministra Carmem Lúcia e os Excelentíssimos Ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau, Ricardo Lewandowski e Menezes Direito.

É neste cenário que a Associação Nacional dos Procuradores de Estado - ANAPE afora a ADI 3903 em face da norma constante do art. 41 da Lei Complementar n.º 123, de 14, de dezembro de 2006 que, no seu entendimento, viola as normas do art. 132 e do art. 146, parágrafo único, IV, da Constituição Federal, bem como atinge o pacto federal.

Em sua peça inicial questiona principalmente:

a) A usurpação da autonomia e das atribuições funcionais das Procuradorias Estaduais e dos próprios entes Federados ao retirar a competência para ajuizar as ações para cobrança dos tributos e contribuições relativos ao SIMPLES Nacional;b) O ataque à competência constitucional das Procuradorias-Gerais Estaduais e do Distrito Federal para inscrever suas respectivas dívidas ativas;

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c) O fato de, no seu entendimento, a Constituição Federal, em seu artigo 146, parágrafo único, ser expressa em instituir uma faculdade no que diz respeito ao regime único de cobrança administrativa dos impostos e contribuições dos Estados, Municípios e União e não uma obrigação que possa ser imposta pela União;d) Por fim, a grave afronta às autonomias estaduais e municipais, bem como à estrutura federativa do Brasil.

6. CONCLUSÃO

O que se viu até o presente momento neste trabalho pode ser sumarizado da seguinte forma:

a) Existe lei em plena vigência e eficácia tratando do assunto;b) Muito embora os vários questionamentos sobre a constitucionalidade destes normativos, não foi deferida qualquer medida liminar que sustasse a produção dos efeitos das normas citadas;c) De se deixar claro também que, pelo que se tem notícia, não houve qualquer medida efetiva da Procuradoria da Fazenda Nacional no sentido de faz valer a sua competência para inscrever, ajuizar e representar em juízo conforme previsto nos normativos em questão;d) Ainda, não há, como é do conhecimento geral, capacidade operacionala da PGFN de assumir mais estas responsabilidades, para tal seria necessária a revisão de seu quadro de procuradores e de toda a sua estrutura de apoio;e) Mais do que isto e ainda sobre a possibilidade de a PGFN assumir estas responsabiliadades, a previsão da Lei Complementar em comento está por admitir o desenvolvimento de uma complexa rede de distribuição da PGFN, de forma a se estruturar para atender nos mais distantes municípios e localidades do nosso território nacional. Quem conhece o nosso Brasil, certamente tem a noção do que se está falando;f) Saindo um pouco da esfera do Executivo, ter-se-ia de discutir a competência para processar e julgar tais feitos. Como não poderia deixar de ser diferente, chegar-se-ia aos órgãos da Justiça Federal. Aqui se apresentam as mesmas dificuldades estruturais. Com tal medida um sem número de processos que hoje tramitam na justiça comum estadual seriam deslocados para a justiça comum federal. Da mesma forma, seria necessário um plexo de medidas de forma

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a dotar de recursos orçamentários, materiais e de pessoal a justiça federal;g) Não se poderia deixar de analisar também os impactos para o contribuinte, afinal de contas a presente norma nasceu baseada nas diretrizes constitucionais de proporcionar tratamento diferenciado e simplificado às empresas de micro e pequeno porte. Aqui certamente repousam os principais impactos das medidas trazidas pela Lei Complementar 123, principalmente quando se fala na avocação de competência das procuradorias dos estados para a PGFN. O deslocamento da competência da justiça comum estadual para a justiça federal, fará com que o contribuinte tenha de se especializar, juntamente com os seus advogados, em uma nova esfera do judiciário, mais do que isto perder-se-ia a análise de âmbito local e mais próximo, característica primeira da justiça estadual, para se passar à análise da justiça federal.

O que se vê claramente é que, além da inconstitucionalidade do dispositivo por modificar competência constitucionalmente estabelecida, as medidas previstas na Lei são desarrazoadas e de difícil implementação. Mais do que isto atacam frontalmente os princípios administrativos da eficiência e supremacia do interesse público.

Assim não resta outra medida senão declarar a inconstitucionalidade do artigo 41 da Lei Complementar nº 123, de forma a fazer cumprir a competência constitucionalmente estabelecida para os procuradores dos estados.

Não obstante, faz-se necessário discutir como se dará a operacionalização da inscrição e cobrança dos tributos participantes do SIMPLES.

Quem deve responder passivamente nas questões relativas a estes tributos?

Como devem ser estabelecidas as obrigações acessórias? Quem deve inscrever e como deverá imputar o pagamento dos tributos?Estas questões dão margem a outro artigo e devem ser devidamente

exploradas, mas, tão somente como sugestão e para não deixa-las totalmente sem resposta se propõe:

a) O estabelecimento de convênios de cooperação entre União, Estados e Municípios de forma a possibilitar a adoção de medidas administrativas e judiciais para os assuntos que envolvam o SIMPLES Nacional nos termos do artigo 241, da CF/88:

“Art. 241. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada dos

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serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.

b) O valor de cada tributo é definido individualmente sendo ainda prevista a repartição do valor arrecadado, desta forma a inscrição na Dívida Pública deve ocorrer nos três níveis da federação tomando por base a expectativa de arrecadação;

c) Por fim, dever-se-ão ser seguidas as normas gerais de imputação do Código Tributário Nacional, art. 163, do CTN, cominadas com a ordem de preferência para a execução dos créditos tributários em caso de concurso entre fazendas públicas, art. 187, do CTN. Assim, deve-se primeiro garantir o pagamento dos tributos da União, seguido dos estados, DF e Territórios, conjuntamente e pro rata, e depois dos municípios, também conjuntamente e pro rata. Ainda, deve-se considerar o prazo prescricional e o valor dos créditos tributários.

As modernas tendências da administração tributária levam a tormar próximas as fontes das receitas e de suas aplicações. Assim o movimento mais adequado seria de se buscar atribuir maiores competências e responsabilidades para as administrações locais - municípios - em detrimento da estruturas centralizadas no órgão central - União.

Como se vê, a Lei Complementar 123 vai de encontro aos princípios da boa administração tributária, por isso merecendo ajustes.

Em conclusão pode-se afirmar que houve considerável avanço ao se unificar a legislação que propõe tratamento diferenciado para as empresas de micro e pequeno porte. Simplificar o processo de arrecação reduzindo procedimentos e formulários deve ser uma busca constante da administração. Reduzir a carga tributária de forma a beneficiar os maiores geradores de empregos e propulsores da economia, mais do que um objetivo é uma responsabilidade dos governos. De outro lado, não se pode permitir a interferência na autonomia das unidades federadas sob o prestesto de simplificar processos e procedimentos. O pacto faderativo deve ser, aliás, como previsto no ordenamento constitucional pátrio, cláusula pétrea e sensível a ser observada em todas as ações de governo. Ainda, sob o mesmo pretesto, não se pode dar azo à saga- cidade da União em abocanhar competências e recursos, fazendo com que o Brasil, em alguns momentos, seja mais centralizado do que alguns estados unitários.

Finalmente, deve ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 41 da Lei Complementar 123, devendo as pretensões ali declaradas serem, de forma negociada com todos os entes da federação, reguladas por meio de convênio de cooperação nos moldes previstos no artigo 241, da Constituição Federal de 1988.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BRASIL. “ Art. 132 Da Constituição Federal - Interpretação e Alcance no âmbito da Administração Pública - Análise Jurisprudencial “.

ELIALI, André - O Federalismo Fiscal Brasileiro e o Sistema Tributário Nacional - São Paulo: MP Editora, 2005.

FENAFISCO/FGV - Federalismo Fiscal, Eficiência e Eqüidade: Uma Proposta de Reforma Tributária - Monografia contratada pela FENAFISCO para a FGV-EPGE Escola de Pós Graduação em Economia, trabalho elaborado a partir de princípios e diretrizes deliberadas pelo Conselho Deliberativo da Entidade e acompanhado por uma comissão específica.

PEREIRA, Hélio do Vale. Manual da Fazenda Pública em Juízo . Rio de Janeiro. Renovar, 2003.

SAMPAIO DÓRIA, Antônio Roberto. Discriminação de rendas tributárias . São Paulo: José Brushatsky, 1972.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 9. ed. 2. Tiragem, 1993, São Paulo: Malheiros.

ZANDONAI, Marisa. As Perspectivas da Advocacia Pública e a Nova Ordem Econômica . In: VENTURA, Zênio; FAGUNDEZ, Paulo Roney Ávila (Orgs.). Florianópolis: OAB/SC Editora, 2006.

Sites consultados:

www.stf.gov.br

www.anape.org.br

O DEBATE SOBRE A CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES

PREVIDENCIÁRIAS PELA JUSTIÇA DO TRABALHO

MARIO AUGUSTO CARBONI1

CARLOS ALEXANDRE DOMINGOS GONZALES2

1. INTRODUÇÃO

A questão da constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias de ofício pela Justiça do Trabalho é tema palpitante desde as modificações trazidas pela Emenda Constitucional n. 20/98, que acrescentou o parágrafo 3º, ao art. 114 da Carta Magna, regra hoje constante do inciso VIII do mesmo artigo por força da Emenda Constitucional n.º 45/2004, estabelecendo ser competente a Justiça do Trabalho para execução de ofício das contribuições sociais decorrentes dos seus julgados, bem como diante da edição da Lei 10.035/00 que alterou a CLT, tencionando estabelecer os procedimentos para realização segura desta nova competência pela Justiça Laboral.1 2

Ressalte-se que, como toda inovação e alteração legal-constitucional, a ampliação da competência da Justiça do Trabalho em decorrência do inciso VIII, do art. 114, da Carta Magna de 1988, e da regulação de seus procedimentos estabelecidos pela Lei 10.035/00, são objeto de ampla discussão na seara juslaboralista, havendo vários aspectos e pontos polêmicos sobre a referida temática, que ora serão abstraídos para uma abordagem concentrada no terreno da constitucionalidade.

O debate da constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho é realizado na esteira de uma análise crítica dos fundamentos subjacentes a cada concepção dissonante, concernentes às teses que sustentam, de um lado, a constitucionalidade, e de outro, a inconstitucionalidade da cobrança de ofício pelo juiz do trabalho das

1 Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto Pós Graduação em Direito Público pela Universidade de Brasília Graduação em Direito pela Faculdade de Direito de Franca.2 Procurador da Fazenda Nacional em Ribeirão Preto/SP, ex-Advogado da União. Pós Graduando em Direito Constitucional pela UNISUL. Professor das Faculdades COC de Ribeirão Preto e do curso SEAD-LFG.

Sumário1. Introdução; 2. Breve histórico legislativo; 3. A inconstitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo juiz do trabalho; 4. A constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo juiz do trabalho; 5. Análise crítica das teses constitucionais divergentes; 6. Considerações finais.

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contribuições sociais previdenciárias atinentes às sentenças que proferir, na conformidade do quanto propugnado pelo Poder Constituinte Reformador de 1998 e 2004.

Diante do conhecimento a respeito do embate teórico sobre a validade jurídicoconstitucional da competência da Justiça do Trabalho estampada no inciso VIII do art. 114 do Texto Maior, é possível estabelecer uma crítica sustentável no sentido de ser revelada uma razoável interpretação que possa atender ao direito fundamental resvalado pela investigação da proporcionalidade e ponderação dos bens e valores ligados à execução de ofício das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho.

Torna-se oportuno esclarecer que o tema em lume e as considerações jurídicas apresentadas neste ensaio comportam inquestionável relevância social e política, na medida em que a execução das contribuições sociais previdenciárias se insere na esteira da preservação da higidez do custeio da Seguridade Social brasileira, especialmente da Previdência Social como direito fundamental, que garante, em última análise, os direitos previdenciários do trabalhador, representados pela concessão dos benefícios por morte, invalidez, idade avançada, proteção à maternidade e à gestante, proteção do trabalhador em desemprego involuntário, salário-família e auxílio-reclusão aos dependentes do trabalhador segurado de baixa renda, bem como pensão por morte.

2. BREVE HISTÓRICO LEGISLATIVO

O Estado pós-moderno revela nos últimos tempos uma preocupação acirrada em aperfeiçoar os meios legais necessários para evitar a sonegação fiscal, mormente quando se trata de garantir a sanidade das contas da Seguridade Social, tendo inclusive se utilizado das tipificações penais, como é o caso da Lei nº 9.983/2000 que, entre outros temas, trata da “Apropriação indébita previdenciária” (art. 168-A, do Código Penal) e da “Sonegação de contribuição previdenciária” (art. 337-A, do Código Penal).

No âmbito desta diretriz estatal, o processo trabalhista tratou de ser prontamente eleito para o mister de garantir a arrecadação das contribuições previdenciárias relativas aos julgamentos proferidos pela Justiça do Trabalho, e o instrumento normativo precursor foi a Lei nº 8.620/93 ao dispor que “o juiz, sob pena de responsabilidade, determinará o imediato recolhimento das importâncias devidas à Seguridade Social”.

Todavia, com essa determinação legal, o magistrado trabalhista não detinha a necessária competência para sancionar a conduta omissiva do responsável pelo recolhimento das contribuições sociais previdenciárias.

O sentido do termo “determinará” se esgota na simples determinação.

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Ora, havendo omissão, ao juiz caberia apenas notificar o órgão previdenciário (art. 44, Lei nº 8.212/91) a quem cabiam os procedimentos administrativos vinculados, nos termos dos arts. 3º e 142 do Código Tributário Nacional, e a cobrança judicial da dívida ativa, com esteio na Lei nº 6.830/60, perante a Justiça Federal (art. 109, I, CF/88).

Ocorre que em 16 de dezembro de 1998, o Poder Constituinte Reformador determinou o acréscimo do § 3º ao artigo 114 da Constituição Federal, pela Emenda Constitucional nº 20, o juiz do trabalho passou a deter a competência para “executar, de ofício, as contribuições sociais previstas no artigo 195, I, a, e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir”.

Acresça-se que a Emenda Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, que tratou da “Reforma do Judiciário” e ampliou a competência da Justiça do Trabalho, manteve o mesmo teor do quanto disposto no mencionado § 3º do artigo 114 da Constituição Federal, transpondo a sua redação para o inciso VIII do mesmo artigo.

Cumpre anotar que as contribuições sociais previstas no art. 195, I, a, e 195, II, ambos da Constituição Federal, referem-se às contribuições previdenciárias, a cargo respectivamente do empregador e do trabalhador, e que representam uma das formas de custeio da Seguridade Social.

As contribuições do empregador, denominadas de contribuições patronais, são aquelas incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe presta serviço, mesmo sem vínculo empregatício, como é o caso dos trabalhadores avulsos, os quais, apesar de não terem vínculo de emprego, também se inserem na competência da Justiça do Trabalho (art. 643 e 652, alínea “a”, inciso V, da CLT). Já as devidas pelo trabalhador são extraídas da sua remuneração pelo empregador e por este recolhidas aos cofres da Seguridade Social.

Assim, diante da mencionada alteração do texto constitucional, o termo “determinará” passou a compreender não só o mandamento para o cumprimento da obrigação de fazer, qual seja, o recolhimento das contribuições sociais previdenciárias, como também a necessária sanção em caso de omissão.

A inovação constitucional, todavia, traz a lume diversas questões intrincadas para o debate doutrinário, e que têm imediatos reflexos na jurisprudência, relacionadas à constitucionalidade da própria alteração promovida pelo Poder Constituinte Derivado (art. 114, VIII, CF/88), bem como às contribuições previdenciárias executáveis pela Justiça do Trabalho em face do sentido da expressão “decorrentes das sentenças que proferir” e à natureza do próprio título executivo que ampara a execução.

Feitas essas considerações iniciais sobre a evolução legislativa e abstraídos os debates infraconstitucionais decorrentes da execução de ofício das contribuições previdenciárias pelo juiz do trabalho, os quais são

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ligados especialmente à seara processual, passa-se nas linhas seguintes ao delineamento do tema central desta exposição.

3. A INCONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DE OFÍCIO PELO JUIZ DO TRABALHO

Os defensores da inconstitucionalidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias pelo magistrado do trabalho, utilizam-se de interpretações jurídicas que para eles evidenciam, em síntese, haver a quebra da imparcialidade do juiz, a afronta aos princípios constitucionais da isonomia, do devido processo legal e da separação de poderes, esta no que tange ao início de ofício pelo magistrado da execução para cobrar as contribuições sociais, o qual estaria atuando assim, em tese, como parte.

Com relação à ofensa ao princípio da separação dos poderes, propugna a tese sobre a inconstitucionalidade ora em análise, que a Emenda Constitucional n.º 20/98, ratificada pela Emenda Constitucional 45/04, ao determinar que o magistrado do trabalho, de ofício apure as contribuições previdenciárias antes de executá-las, no sentido de realizar o respectivo lançamento, faz com o que o juiz invada esfera privativa do Executivo, porquanto o lançamento é ato típico da Administração, violando assim o princípio constitucional da separação dos poderes.

Sobre a matéria, manifesta-se Manuel Teixeira Filho3 no sentido de que sob o aspecto político, a Emenda Constitucional nº 20/98 transformou a Justiça do Trabalho em órgão arrecadador de contribuições previdenciárias, e os seus juízes, em agentes do Executivo, o que é algo assaz preocupante ao se levar em conta a clássica tripartição dos Poderes e a autonomia que a própria Constituição Federal assegura a cada um deles.

E ainda, pondera Leandro Paulsen4, que quando o Juiz promove o lançamento do tributo em sede de liquidação de sentença está violando a cláusula pétrea estampada no art. 60, parágrafo 4º, inciso III, da Constituição Federal.

Assim, para o citado jurista, o magistrado transforma-se em agente fiscal e, de conseqüência, resta contrariado o princípio da separação dos poderes.

Note-se que, para executar de ofício, o juiz teria de lançar o tributo, eis que só se pode executar crédito constituído e, por isso dotado de liquidez e

3 TEIXEIRA FILHO, Manuel. Execução no processo do trabalho. 7. ed. São Paulo: LTr, 2001, p.642.4 PAULSEN, Leandro. Direito tributário: Constituição, Código Tributário e Lei de Execução Fiscal à luz da doutrina e da jurisprudência. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado/Esmafe, 2002. p. 693.

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certeza, e promover os atos constritivos no sentido da satisfação do crédito.Ao lançar e promover a execução de ofício há, simultaneamente, atuação

como defensor dos interesses do Fisco e como magistrado, o que se reputa inadmissível.

O Juiz, assim, não pode ser o titular da execução, e por isso, afirma categoricamente o autor citado, que a Emenda Constitucional nº 20/98 (e também a Emenda Constitucional n.º 45/04), ao acrescentar o parágrafo 3º ao art. 114, hoje o inciso VIII do mesmo artigo, incorreu em inconstitucionalidade.

Além disto, ainda asseveram os opositores da execução de ofício para o fato de não haver contraditório, nem devido processo legal respeitado, na execução de contribuições previdenciárias que não foram objeto de discussão ao longo do litígio trabalhista.

Não poderia, dessa maneira, o magistrado impor uma condenação sem que o reclamante ou o reclamado tenha controvertido e debatido a matéria em sede do processo de conhecimento, nem tampouco a União tenha participado do contencioso. Destarte, impossível que, de um processo judicial, resulte título executivo em favor de quem não participou da relação jurídica durante a fase cognitiva.

Por este ângulo de interpretação, a existência da lide e do processo legal requer seja estabelecida a relação processual tradicional sempre pregada pelos processualistas com as figuras do autor, réu e Estado-juiz.

Segundo os ensinamentos do jurista Marcus Orione Gonçalves Correia5

há violação ao princípio do contraditório e da ampla defesa em razão da empresa só ter oportunidade de se manifestar sobre a exigência no momento da execução da contribuição, e não no ato administrativo de formação do título.

O autor enxerga ainda nas modificações introduzidas, ofensa ao duplo grau de jurisdição haja vista que a União6, só pode se manifestar na segunda instância, suprimindo assim a instância inicial.

E ainda, esclarece Marcus Orione que o inciso VIII do art. 114 da Constituição seria inconstitucional por tratar de duas situações de forma distinta para efeito da execução das contribuições, uma na Justiça Federal, mediante inscrição em dívida ativa da contribuição não recolhida, outra na Justiça do Trabalho, quando as sentenças por ela proferidas. Isto porque, a

5 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Das inconsistências jurídicas da competência atribuída à Justiça do Trabalho para a execução de ofício de contribuições sociais decorrentes de suas sentenças. Revista LTr, São Paulo, nº 65-04/422, abr. 2001.6 Esclareça-se que a partir da publicação da Lei 11.457/2007 que dispôs sobre a Administração Tributária Federal e criou a Secretaria da Receita Federal do Brasil através da unificação da Secretaria da Receita Federal e da Secretaria da Receita Previdenciária, a competência para o lançamento e cobrança das contribuições previdenciárias, dentre outras, foi determinada à União e não mais ao INSS.

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referida norma “ criou situações díspares entre contribuinte que se encontram em relação idêntica relativamente a seus débitos fiscais, violando assim o princípio da isonomia previsto no caput do art. 5o da nossa Carta Magna e instituído como cláusula pétrea, razão pela qual haveria de ser respeitado pelas Emendas Constitucionais”7.

Destaca-se ainda na esteira das considerações sobre inconstitucionalidade, que a execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo magistrado do trabalho é bem diversa das execuções de ofício previstas no art. 878 da CLT que assim dispõe que a execução poderá ser promovida por qualquer interessado, ou ex officio pelo próprio Juiz ou Presidente ou Tribunal competente, nos termos do artigo anterior.

Isto porque nesta execução prevista no art. 878 da CLT houve o contraditório, ampla defesa, devido processo legal, enquanto que no caso determinado pelo inciso VIII do art. 114 da Constituição Federal não há tais garantias, não sendo possível execução ex officio sem um título regular.

4. A CONSTITUCIONALIDADE DA EXECUÇÃO DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS DE OFÍCIO PELO JUIZ DO TRABALHO

Noutra linha de análise, há tese sobre a constitucionalidade e a regular possibilidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho.

Primeiramente, estabelece-se que se a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) permite a execução ex officio na Justiça do Trabalho, conforme preceituado no art. 878 da Consolidação, e por sua vez, o próprio Código de Processo Civil também traz hipótese de execução de ofício no seu art. 585, como o crédito de serventuário de justiça, de perito, de intérprete, ou de tradutor, quando as custas, emolumentos ou honorários forem aprovados por decisão judicial, nestes termos, ainda mais a Constituição Federal de 1988 poderia determinar, como o fez, o manejo da execução de ofício para cobrança de contribuições previdenciárias perante a Justiça Laboral com base no princípio da hierarquia das leis.

Além disto, pregam os defensores da constitucionalidade ora considerada, como o faz Idelson Ferreira8, que o Magistrado manteria a sua imparcialidade mesmo porque estaria apenas desempenhando uma função administrativa ao iniciar a execução ex officio, ordenando então a integração da União à lide.

Dessa forma, a expressão execução de ofício deve ser interpretada no

7 CORREIA, Marcus Orione Gonçalves. Ob cit. 65-04/422. 8 FERREIRA, Idelson. A posição do Juiz diante da obrigatoriedade de execução das contribuições sociais in Revista de Previdência Social. São Paulo, v. 23, n. 227, out, 1999, p. 829.

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sentido de uma obrigação funcional do magistrado do trabalho de provocar o início e o andamento da execução, e não ser o próprio exeqüente.

Argumenta-se também, que esta função administrativa do juiz de iniciar a execução corresponderia a um lançamento tributário, não se confundindo com sua atividade de julgador em sentido estrito.

Tal fato transparece bem nítido na lição de Emerson Odilon:

Nada há, entrementes, que vede ou prive o magistrado do trabalho de proceder a parametrização do devido, assim como, resolver a questão de quem é o devedor. De efeito, ele poderá, com todas as letras, lavrar ao que se denomina de lançamento tributário no que atina às contribuições previdenciárias que haverá de executar de ofício. (...) É esse lançamento, decorrente do Juiz do Trabalho, um ato vinculado, ou seja, decorrente da própria outorga constitucional. Talvez, até para evitar porvindouras confusões, batizá-lo de lançamento ex lege9.

E, mesmo que não se considere este fundamento da possibilidade do lançamento pelo Judiciário, argumentam os expositores, que existem procedimentos de cunho dispositivo e inquisitório no âmbito judicial. Seria a execução de contribuições sociais inquisitória, realizando o magistrado trabalhista uma importante função social nesta seara. Neste ponto, concluem que o magistrado deve atuar em benefício do bem público ao executar de ofício as contribuições previdenciárias, escapando da pecha individualista e formal que encampa muitas vezes as atuações judiciais.

De outro ângulo de análise há também tese no sentido de que não é porque existe crédito tributário que, necessariamente deve haver lançamento. O art. 142 do CTN remete à específica modalidade de formalização do crédito tributário, que nem sempre será exigida, como na espécie de contribuição previdenciária decorrente de sentença condenatória trabalhista, cuja natureza jurídica do título executivo é judicial e não extrajudicial. E, em última análise, para suplantar os argumentos formalistas dos defensores da inconstitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho, bastaria o juiz oficiar a União para a formalização dos créditos previdenciários decorrentes das sentenças que proferir. Assim, lançado o crédito, inscrito em dívida e extraída a correspondente Certidão de Dívida Ativa (CDA), bastaria a remessa ao Poder Judiciário novamente para a execução.

Entretanto, foi com a finalidade de não se realizar estes procedimentos

9 SANDIM, Emerson Odilon. Justiça Laboral e execução de contribuições previdenciárias: exegese sistêmica e operativa da Lei Mater in http://neofito.direito.com.br/artigos/art01/trab27.htm, em 20 de dezembro de 2000.

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formalistas, que prejudicaria sobremaneira o andamento processual, é que o Poder Constituinte Reformador de 1998 e 2004 introduziram a novidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias das sentenças proferidas pelo juiz do trabalho.

E também, não haveria afronta ao devido processo legal, pois, como ressalta Sérgio Pinto Martins, “o contraditório pode ser observado no momento determinado pela legislação, que pode diferi-lo como ocorre nas tutelas urgentes, como mandado de segurança, cautelares, tutelas antecipadas e específicas”10.

Dessa forma, não se trata de inexistência de contraditório e ampla defesa, mas de manifestação em momentos posteriores como na manifestação à conta de liquidação e na oposição de embargos de devedor pela empresa. Ademais, a empresa tem oportunidade de se defender da condenação ao recolhimento de contribuições previdenciárias quando apresenta contestação na reclamação trabalhista, uma vez que já o faz ciente que do resultado daquela ação pode decorrer a imposição de recolhimentos à União.

Quanto à afronta ao duplo grau de jurisdição, os defensores da constitucionalidade da competência da Justiça do Trabalho para execução de ofício das contribuições previdenciárias de suas decisões, salientam que hoje se questiona na doutrina mais abalizada a existência do duplo grau de jurisdição como princípio constitucional em razão do mesmo não vir expresso na constituição, mas se decorrência da organização dos tribunais.

Neste sentido manifestou-se Luiz Guilherme Marinoni ao estatuir que “esse princípio (do duplo grau de jurisdição) não tem sede constitucional e, portanto, não é cogente para o legislador infraconstitucional”11. Assim, segundo a doutrina mais abalizada não há irregularidade alguma em uma norma infraconstitucional prever a participação de uma entidade apenas no segundo grau de jurisdição.

5. ANÁLISE CRÍTICA DAS TESES CONSTITUCIONAIS DIVERGENTES

Apresentado o quadro de debate sobre a constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho deve-se passar a uma análise crítica para aferição da ponderação dos princípios e direitos fundamentais eleitos para o embasamento de cada concepção dissonante, eis

10 MARTINS, Sérgio Pinto. Execução da contribuição previdenciária na justiça do trabalho . São Paulo: Atlas, 2001, pág. 1411 MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do processo de conhecimento: a tutela jurisdicional através do processo de conhecimento . São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, pág. 532.

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que não devem passar ao largo da ótica da razoabilidade e dos fins colimados pela determinação do Texto Maior, no sentido de garantir e preservar, por meio dos poderes constituídos, as fontes de custeio da Seguridade Social e que permita a sua realização concreta como direito social fundamental.

Através do embate entre as posições sobre a constitucionalidade da execução das contribuições previdenciárias no contexto da Justiça do Trabalho é possível identificar e construir uma interpretação razoável a respeito da execução das contribuições previdenciárias de ofício pelo magistrado do trabalho.

Com efeito, os possíveis conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos que se possam extrair das considerações sobre o debate da constitucionalidade da execução de ofício das contribuições previdenciárias pela Justiça do Trabalho devem ser resolvidos sob a ótica dos interesses comunitários relevantes que não são todos ou quaisquer bens jurídicos, vez que se limitam àqueles bens protegidos constitucionalmente.

Assim, se de um lado são apontadas ofensas a princípios constitucionais como a separação de poderes, devido processo legal, imparcialidade e isonomia, de outro lado são evidenciados interesses sociais coletivos e difusos relacionados à seguridade social, também constitucionalmente protegidos, e que são tornados mais eficazes através da atuação de ofício do magistrado do trabalho em contato direto com situações fáticas e jurídicas que ensejam a garantia da higidez do custeio do sistema brasileiro de seguridade social.

São oportunas algumas palavras a respeito da contraposição de normas jurídicas, e sobre a inconstitucionalidade de norma constitucional, na conformidade do quando se manifestou Otto Bachof12 no sentido de que pode, a princípio, parecer paradoxal uma lei constitucional violar-se a si mesma. Entretanto, é possível que uma norma constitucional secundária, apenas formalmente constitucional, vá de encontro a um preceito material fundamental da Constituição.

Nesse sentido a lição de Hans Kelsen13, para quem a ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, mas em escala de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência de uma norma com outra. O fundamento de validade última que constitui a unidade dessa interconexão criadora é a norma fundamental.

Por sua vez, também Claus-Wilhelm Canaris sintetiza a matéria ao referir que “o ordenamento jurídico constitui uma unidade, à qual corresponde um sistema axiológico ou teleológico, realizando valores e escopos”14.

12 BACHOF, Otto. Normas constitucionais inconstitucionais. Coimbra: Atlântida, 1977, p. 55.13 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4. ed. São Paulo: RT, 2006.

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Cite-se ainda, que a doutrina majoritária, principalmente consoante entendimento de Ronald Dworkin, sustenta que a estrutura normativa é composta por princípios e regras jurídicas.Os princípios, que são mais genéricos e abstratos do que as regras, não estão subsumidos a uma situação de fato, possuindo uma dimensão de peso ou importância. Para sua aplicação, não importa que os princípios estejam previstos no texto constitucional ou não.

Nesta mesma linha, o jusfilósofo alemão Robert Alexy15 complementa o pensamento de Dworkin no sentido de que os princípios, como espécies de norma jurídica, não determinam as conseqüências normativas de forma direta, ao contrário das regras. Daí serem definidos como mandamentos de otimização, aplicáveis em vários graus normativos e fáticos.

Sobre o tema, ensina ainda Canaris, “que os princípios não valem sem exceção e podem entrar entre si em oposição ou em contradição: eles não têm a pretensão da exclusividade e ostentam o seu sentido próprio apenas numa combinação de complementação e restrição recíprocas”.

Consigne-se, que para o citado jusfilósofo alemão Robert Alexy, as regras são comandos definitivos, sujeitas ao conflito no nível de validade, mas admitem cláusulas de exceção que faz perder seu caráter definitivo sobre a base de um princípio. O princípio tem caráter prima facie, e são comandos de otimização que ordenam algo para ser cumprido na maior medida possível dentro das possibilidades reais e jurídicas existentes. Não se colidem no plano de validade. Assim, a contradição se resolve no nível da proporcionalidade como adequação do meio, necessidade do meio e, da ponderação como proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, referente ao peso da satisfação de um princípio sobre o outro. As regras serão cumpridas ou não pela ausência ou não das possibilidades, podendo da azo às cláusulas de exceção para o caso concreto.

Na esteira dessas considerações, não se pode deixar de lado as contribuições do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, o qual aponta uma crítica para as reflexões de Alexy relativas a valores que para este se aplicam aos princípios e vice-versa, já que do ponto de vista estrutural, em razão da necessidade de ponderação, os princípios podem ser comparados aos valores, sendo que Habermas ensina que normas não se comparam a valores, uma vez que estes são preferências intersubjetivas.

14 CANARIS, Claus Wilhem. Pensamento sintético e conceito de sistema na ciência do direito. Lisboa: Calouste, 1996, p. 66.15 ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993. p. 86.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na esteira do embate teórico apresentado a respeito da constitucionalidade da cobrança de ofício pelo juiz do trabalho das contribuições previdenciárias decorrentes das sentenças que proferir, em última análise impende considerar que as normas jurídicas devem ser produzidas, interpretadas e aplicadas visando precipuamente à melhoria das condições de vida e a garantia dos direitos fundamentais em todas as suas dimensões.

Neste âmbito, a preservação da dignidade e dos direitos da pessoa humana são essenciais rumo à construção de uma sociedade justa e de um Estado Democrático de Direito.

Frise-se que os direitos sociais, enquanto realizações materiais pelo Estado, podem ser reputados como um pilar da cidadania, ao passo que se destinam ao amplo desenvolvimento das potencialidades do ser humano individual e coletivamente, com vistas à garantia de saúde, educação, trabalho, cultura, lazer, habitação e previdência social. É inegável que a realização e concretização destes direitos sociais passa, para além de uma mudança de postura político-econômica-social, sobretudo por uma melhoria da atuação do Poder Judiciário em conexão mais próxima ao Legislativo e Executivo em todos os níveis.

Importa notar que a atuação dos poderes constituídos não se dá de forma estanque, mas com o viés do inter-relacionamento, na medida em que todos devem buscar a implementação dos direitos fundamentais, para que se possa criar uma cidadania efetiva, e realizar os princípios e objetivos constitucionais de um Estado Democrático.

As disposições constitucionais e legais decorrentes das Emendas Constitucionais n.º 20/1998 e 45/2004 denotam uma alteração profunda na temática da execução das contribuições previdenciárias, atribuindo-lhe uma especificidade jurídica única, e, embora haja polêmica sobre a temática da constitucionalidade da competência da Justiça do Trabalho para executar de ofício as contribuições previdenciárias relativas às suas decisões, tal alteração, sob a ótica da ponderação de interesses, conferiu indubitavelmente à Justiça do Trabalho e a seus órgãos, poderes para preservar e garantir além dos direitos trabalhistas também os direitos previdenciários dos jurisdicionados de uma forma efetiva e real, protegendo os hipossuficientes e dando firme passo rumo à concretização dos direitos sociais estampados no Texto Magno de 1988.

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O DOGMA DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO E SEU ABRANDAMENTO PELA

JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ATRAVÉS DA TÉCNICA DA

PONDERAÇÃO DE PRINCÍPIOS

FLÁVIO QUINAUD PEDRON1

“Em que medida a Constituição de 1988 importa numa mudança na jurisprudência do Supremo Tribunal Federa? Em que medida as bases interpretativas no Supremo Tribunal Federal foram modificadas após a promulgação da Constituição de 1988?” Essas são as perguntas principais feitas por Baracho Júnior (2004:509), em seu ensaio sobre a possibilidade de se identificar uma “nova hermenêutica” nos julgados do Supremo Tribunal Federal (STF).

Ora, se é possível identificar alguma forma de inovação, no curso da linha de raciocínio que o Tribunal vinha tomando, é de se pressupor também a existência de algo anterior, algo que foi ou está sendo superado.2 Para tal empreitada, faz-se necessária a observância dos julgados não apenas como casos isolados, mas como “precedentes”, ou seja, como fundamentos para as decisões seguintes - prática utilizada pelo STF para possivelmente representar

1Mestre e doutorando em Direito pela UFMG. Professor de Teoria Geral do Processo e Direito Processual na PUC-Minas. Professor de Hermenêutica Jurídica no Uni-Centro Izabela Hendrix, Belo Horizonte/MG. Advogado. email: qpedron@ gmail.com2Torna-se muito comum a afirmação de uma mudança hermenêutica no Direito brasileiro, ver, por exemplo, os trabalhos de Streck (2003) e Barroso e Barcelos (2004), que vêm desenvolvendo diversas pesquisas sobre o que seria essa “nova interpretação” assumida pelo Supremo Tribunal Federal em seus julgados.

ResumenO presente trabalho pretende reconstruir a compreensão jurisprudencial do STF acerca da relação entre interesses públicos e interesses privado a fim de demonstrar como o primeiro não mais pode avocar primazia sobre o segundo. Tal conclusão, no direito brasileiro, foi obtida a partir do uso pelo Tribunal da técnica de “ponderação de princípios” de Robert Alexy, que também será analisada. Ao final, conclui-se leitura jurisprudencial, em razão do uso de tal técnica, não é uma via adequada ao Estado Democrático de Direito.

The following article intent rebuilt the argumentative base of the STF’s precedents in order to demonstrate that the public interest cannot assume supremacy over the private one. In Brazilian law, this understanding is a result of the use of the Robert Alexy’s technique of “balancing” between principles. In the end, concludes such technique is not appropriate to a Constitutional Estate.

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uma forma de sistematizar a sua jurisprudência.3

Mas, diante da história institucional brasileira, esse trabalho pode se ver ameaçado: “Evidentemente que uma corte cujo trabalho é constantemente interrompido por golpes de Estado, tem maior dificuldade em consolidar uma orientação jurisprudencial minimamente coerente” (BARACHO JÚNIOR, 2004:510).

O tema que pode funcionar como guia dessa tarefa, uma vez que sempre esteve presente, sendo tomado como um dogma, é a prevalência do interesse público sobre o interesse privado. Como lembra Ávila (2005:171), para a dogmática jurídica, seu desenvolvimento teórico viria a partir dos estudos do Direito Administrativo,4 mas com ramificações e influências para outros “ramos” do Direito, como o direito tributário.

Se, por um lado, a discussão sobre a supremacia do interesse público sobre o privado era posta como um axioma5 - por partir das lições do positivismo jurídico, que considerava a separação rígida entre Direito e Política, excluindo a possibilidade de um Tribunal apreciar “questões políticas” - por outro, tal afirmação também serviu como “forma de fragilizar a tutela de direitos individuais em face do poder público” (BARACHO JÚNIOR, 2004:513).

Com isso, evitava a tutela de direitos individuais. E essa não era um

3 “Na Suprema Corte Americana é possível identificar nitidamente alguns períodos nos quais houve a consolidação de determinados princípios de interpretação constitucional, como o período de prevalência do devido processo substantivo, entre 1905 e 1937, o período da Corte de Warren, a partir de 1954, até 1969, que foi um período fortemente interventivo em relação às leis estaduais. Ou, ainda, a suprema Corte da Década de 1990, que é uma Suprema Corte fortemente preocupada com o princípio federativo e, por outro lado, abandona, em certa medida, os direitos fundamentais como principal foco de sua atuação, possibilitando que os Estados tenham maior liberdade de atuação legislativa em questões que importam em restrição ao exercício de tais direitos” (BARACHO JÚNIOR, 2004:511).4 Nesse sentido, encontra-se a lição de Bandeira de Melo (2003:60): “Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o do particular, como condição, até mesmo da sobrevivência e asseguramento deste último”. Todavia, nota-se que essa afirmação parte, ainda, de uma compreensão paradigmática do Direito que se olvida do atual paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito. Como será explorado, no quarto capítulo, Habermas (1998) busca reconstruir os princípios do Estado de Direito e da Democracia para lançar uma compreensão não mais dicotômica da relação público/privado, mas, ao invés disso, equiprimordial. Para o filósofo alemão: “Os cidadãos só podem fazer um uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que esteja equanimemente assegurada; mas também no fato de que só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política enquanto cidadãos” (HABERMAS, 2002:294).5 Como lembra Ávila (2005:176): “Axioma (usado, originalmente, como sinônimo de postulado) denota uma proposição cuja veracidade é aceita por todos, dado que não é nem possível nem necessário prová-la. Por isso mesmo, são os axiomas aplicáveis exclusivamente por meio da lógica, e deduzidos sem a intervenção de pontos de vista materiais”.

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debate novo no Supremo Tribunal Federal. Já no governo Floriano Peixoto, no início da República, logo após a implantação do Supremo Tribunal Federal, algumas questões que envolviam ofensas a direitos individuais não foram por ele apreciadas, pois, segundo dizia a Corte, eram questões políticas. Em 1893, em estado de sítio decretado por Floriano Peixoto, o Supremo se recusou a apreciar uma série de lesões a direitos individuais ao argumento de que aquelas questões eram políticas e que, portanto, não poderiam ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário (BARACHO JÚNIOR, 2004: 512-513).

Entretanto, havia opositores a essa tese, como lembram Rodrigues (1991:20) e Souza Cruz (2004:277). Segundo a historiadora, o discurso de Rui Barbosa,6 na defesa dos direitos individuais, representa um contraponto necessário ao exercício democrático dos direitos políticos:

As palavras de Rui Barbosa em 1892 indicam essa concepção: “os casos, que, se por um lado toca a interesses políticos, por outro lado, envolvem direitos individuais, não podem ser defesos à intervenção dos tribunais, amparo de liberdade pessoal contra as invasões do executivo. [...] Onde quer que haja um direito individual violado, há de haver um recurso judicial para a debelação da injustiça. Quebrada a égide judiciária do direito individual, todos os diretos desaparecem, todas as autoridades se subvertem, a própria legislatura esfacela-se nas mãos da violência; só uma realidade subsiste: a onipotência do executivo, que a vós mesmos vos devorará, se nos desarmardes da vossa competência incontestável em todas as questões concernentes à liberdade” (RODRIGUES, 1991:20-21, grifos no original).

Dessa forma, como afirma Souza Júnior (2004:88), foi-se construindo a noção de que a condição para o exame judicial de questões políticas seria a possibilidade de lesão a direitos individuais.

Em um dos [julgados] mais antigos (HC 3061, julgado em 1911), o Supremo afirmou a possibilidade de conhecimento judicial do caso político quando acompanhado de uma questão judiciária. Logo depois, em 1914, aquela corte resguardou do exame judicial os motivos determinantes ou

6 Como lembra Souza Júnior (2004:89), a figura de Rui Barbosa foi determinante para o desenvolvimento do debate sobre as questões políticas, pois “[p]ropunha um diálogo franco entre os grandes poderes do Estado, estipulados em textos formais, de um lado, e, de outro, os direitos individuais, taxativamente assegurados. A interpretação judicial desempenha, neste diálogo, a missão de mediação com o objetivo de evitar as possíveis colisões. Se os poderes exercidos extrapolam o círculo de competências, ou se direitos individuais são feridos, a intervenção judicial é legítima. Se se quer debater a existência constitucional de uma faculdade administrativa ou legislativa, também o judiciário será o assunto”.

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as conseqüências políticas dos atos de intervenção nos Estados. Construiu também o entendimento de que podia o Judiciário conhecer de casos puramente políticos, desde que se alegasse lesão de direito individual (SOUZA JÚNIOR, 2004:88).

Todavia, a noção de prevalência do interesse público sobre o interesse privado, mesmo com riscos à violação de direitos fundamentais, acaba se fortalecendo, principalmente a partir de 1960, intensificando-se no período autoritário que se seguiu.

Vamos ter, especialmente, a partir de 1965, com a edição do Ato Institucional n. 2, decisões do Supremo Tribunal Federal que importam em negar tutela de uma série de direitos individuais, fortalecendo a idéia de prevalência do interesse público sobre o privado. É o que vamos ver em algumas decisões, como por exemplo, no caso João Goulart, em 1967. De uma maneira geral, as questões que envolviam a segurança nacional, se pautavam pela idéia de prevalência do interesse público sobre o privado (BARACHO JÚNIOR, 2004:514).

Essa interpretação permaneceu, contudo, com o advento da Constituição da República de 1988; como afirma Baracho Júnior (2004-514), basta analisar a decisão proferida na ADI n. 47, que tratou da interpretação do art. 100 da Carta Magna, estabelecendo que “à exceção dos créditos de natureza alimentícia, a execução contra a fazenda pública se fará através de precatório”.7

De uma maneira geral, para os publicistas, mas principalmente para os administrativistas, o princípio da supremacia do interesse público sobre o particular se apresenta como um princípio implícito na ordem jurídica brasileira e seria usado para justificar uma série de prerrogativas titularizadas pela Administração Pública. Isso ocorre por se entender que a mesma seria a “tutora” e a “guardiã dos interesses da coletividade” (SARMENTO, 2005:24). Como conseqüência, verifica-se a existência de uma verticalidade na relação entre a Administração Pública e os administrados, de modo que o desequilíbrio seria sempre em favor do Estado.

Mas o que se pode considerar como interesse público? Talvez essa questão devesse ser mais bem problematizada pelos publicistas, que muitas vezes igualam a dimensão do público à coletividade e, outras vezes, ao estatal (governamental).

7 Lembra Baracho Júnior (2004:514-515): “ Nesta [ADI], o Supremo Tribunal Federal interpretou o art. 100 de uma maneira que contraria os próprios anais da Assembléia Nacional Constituinte. O Constituinte pretendeu retirar os créditos de natura alimentícia desta forma de execução, qual seja, a execução através de precatórios. O Supremo Tribunal Federal, entretanto, afirmou que a única especificidade que decore do art. 100 da Constituição é a possibilidade dos créditos de natureza alimentícia terem prioridade em relação a outros créditos contra a fazenda pública. Assim, os créditos alimentícios terão sempre prioridade na ordem de pagamento em relação a outros créditos”.

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Para Bandeira de Melo (2003:57) - valendo-se das lições de Alessi8, seria possível distinguir dois tipos de interesse público: interesse público primário e interesse público secundário (SARMENTO, 2005:24; BARROSO, 2005:xiii). Nessa ótica, identifica-se o interesse primário como sendo a razão de ser do Estado ou como os interesses gerais da coletividade; já o segundo tipo representa os interesses particulares que o Estado possui como pessoa jurídica e não mais como expressão de uma vontade coletiva. Logo, alguns administrativistas buscam fazer uma ponte entre o interesse público primário e o bem comum como forma de afirmação de sua superioridade em face do interesse privado.

Binenbojm (2005:137) faz uma crítica precisa à tentativa de alguns juristas de justificar a supremacia do interesse público como princípio norteador da ação administrativa. Nesse sentido, a supremacia do interesse público atuaria como garantia de proteção, inclusive do interesse privado, já que impediria o Estado de atuar a favor de interesses privatísticos, desviando-se dos fins coletivos. Todavia, a corrente a que se filia Di Pietro (2004:69-70) nada esclarece sobre a relação público/privado; além do mais, os problemas por ela apontados não são resolvidos nesse plano, mas no plano dos princípios da impessoalidade e da moralidade.

Salles (2003:58) reconhece a dificuldade de se chegar a um conceito de fácil assimilação, haja vista a natureza genérica que o conceito deve assumir para abranger uma pluralidade de interesses dispersos pela sociedade. Dessa forma, vale-se do Teorema de Arrow (Arrow’s theorem)9 para assegurar que tomadas de posição que parecem envolver uma discricionariedade, seria melhor, se deixadas a cargo da decisão estatal (política), representativa do interesse público. Todavia, tal posição pode parecer por demais cética e, até mesmo, ingênua - por vezes, autoritária - ao imaginar que o Estado seja capaz de corporificar todos os anseios e desejos de uma sociedade. Além do mais, vale aqui o alerta de Sarmento (2005:27), já que tal tese pode representar uma forma de ressurreição das “razões de Estado”, colocando-se como obstáculo

8 Sistema Istituzionale del diritto amministrativo ilaliano, 1960, p. 197, apud Bandeira de Melo (2003:57).9 Segundo Salles (2003:59), Kenneth J. Arrow “demonstrou [seu teorema] no começo da década de 60. Arrow tomou hipoteticamente três indivíduos com poder para tomar uma decisão e, considerando que cada um deles tem uma ordem de preferências diferentes, demonstrou, matematicamente, que o cruzamento dessas preferências individuais pode levar a decisões inteiramentes aleatórias, dependendo de fatores estruturais do processo decisório”.10 Aragão (2005:7) alerta para o risco de que supostos “interesses públicos” sejam utilizados pelo Estado como forma de justificar restrições aos direitos fundamentais. Cita, para tanto, dois precedentes norte-americanos: no primeiro, Cennis vs. United States, esse dogma possibilitou restrições à liberdade de manifestação de idéias que fossem consideradas esquerdistas; no outro, Korematsu vs. United States, permitiu que cidadãos norte-americanos de origem japonesa ficassem confinados em campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial.

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intransponível para o exercício de direitos fundamentais.10

A outra proposta que identifica o público ao componente majoritário também se mostra delicada. Tomando como referência aplicada dessa concepção a decisão proferida no julgamento do Recurso Extraordinário n. 153.531-8, de Santa Catarina, fica claro que o interesse público aqui é igualado a uma maioria da sociedade. Ao examinar o questionamento de se a farra do boi - prática de alguns descendentes de açoreanos residentes em Florianópolis - representaria um risco para a segurança dos participantes e uma ação cruel para com os animais, Baracho Júnior afirma que:

O Supremo Tribunal Federal trabalha com dois fundamentos para dizer que o Estado de Santa Catarina deveria atuar, através da Polícia Militar, no sentido de reprimir a farra do boi. O primeiro argumento é que os animais estariam submetidos à crueldade. O art. 225 da Constituição, inciso VII, diz que o Estado não deverá tolerar crueldades contra animais. O segundo fundamento é o mais curioso desta decisão, porque é exatamente a prevalência de uma visão majoritária sobre a de uma coletividade [minoritária]. Há uma idéia de que as tradições de um grupo minoritário não podem prevalecer sobre as tradições que não são compartilhadas pela maioria da sociedade brasileira. As expressões utilizadas no voto vencedor são ilustrativas, pois os descendentes de açoreanos são comparados a uma “turba ensandecida”que adota procedimentos estarrecedores (2004:516).

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal deixou de observar a dimensão hermenêutica envolvida na questão. Tomando apenas a posição de um observador sociológico, compreendeu-se que o interesse público aqui seria o de proteger os animais de uma prática violenta. Todavia,

[...] esta idéia de violência não existe para os açoreanos. Os descendentes de açoreanos que faziam da farra do boi uma celebração anual, não associavam à manifestação uma idéia de violência que nós, que não somos descendentes de açoreanos, associamos. Este é um dado importante, pois, na Espanha, por exemplo, em práticas semelhantes, a idéia de violência não está associada. Dificilmente tais práticas seriam atribuídas a uma “turba ensandecida” na Espanha. Muito menos seriam os procedimentos considerados como estarrecedores (BARACHO JÚNIOR, 2004:517).

Dessa forma, pode-se perceber que a associação do interesse público ao interesse de uma maioria da sociedade mostra-se insuficiente sob o prisma de uma democracia pluralista, que garante a inclusão da perspectiva de todos os envolvidos.

Logo, definir o interesse público como interesse geral de uma coletividade e contrapô-lo a um interesse privado limitado ao perímetro das vivências experimentadas pelos indivíduos fora do alcance da polis (SARMENTO, 2005:30) é insuficiente. Primeiro, porque não pode o indivíduo ignorar a

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dimensão imposta pela vida em sociedade; sua casa não pode servir como metáfora da ilha imaginada por Crusoé, ou ser entendida como uma fortaleza que coloque o público na porta da rua; pois o processo de socialização acontece concomitantemente com o processo de individualização11. Sarmento (2005:47) lembra que a sociedade contemporânea é por demais complexa para se apoiar em pilares estanques. Vive-se em um tempo que imprime um novo sentido à concepção de espaço público, que não vem mais associada unicamente ao elemento estatal.12

A pergunta sobre qual é o interesse da coletividade leva, então, a uma outra pergunta: quem é a coletividade?, ou a outra ainda mais radical: “quem é o povo?”, que já suscitou um importante ensaio pelo jurista alemão Müller (1998). Nesse trabalho, Müller alerta para a figura do povo como um ícone - em igual precisão, Carvalho Netto (2003:84) lembra que o conceito de povo é por demais “gordo”, isto é, pode ser manipulado ao sabor de conveniências políticas.

Outro importante trabalho é o texto de Rosenfeld sobre a Identidade do Sujeito Constitucional (2003). Através das reflexões do professor da Cardozo School of Law, pode-se compreender o conceito de povo como um eterno hiato, aberto a um processo dinâmico de elaboração e revisão. É justamente no seu fechamento como conceito que se encontra o perigo para a democracia:

Esse rápido olhar inicial sobre a identidade constitucional, bem como sobre o sujeito e a matéria constitucionais revela que é bem mais fácil determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são. Ao construir essa intuição, esse insight, exploro a tese segundo a qual, em última instância, é preferível e mais acurado considerar o sujeito e a matéria constitucionais como uma ausência mais do que como uma presença. Em outros termos, a própria questão do sujeito e da matéria constitucionais é estimulante porque encontramos um hiato, um vazio, no lugar em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. Além do mais, o sujeito constitucional deve ser considerado como um hiato ou uma ausência

11 Ver HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990; HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus, 1987. 2 v. (Tomo I: Racionalidad de la acción y racionalización social; Tomo II: Crítica de la razón funcionalista); e FERREIRA, Rodrigo Mendes. Individualização e Socialização em Jürgen Habermas: um estudo sobre a formação discursiva da vontade. São Paulo: Annablume, 2000.12 “De fato, se no Estado Liberal o público correspondia ao Estado e o privado a uma sociedade civil regida pelo mercado, considerada como o locus em que indivíduos perseguiam egoisticamente seus interesses particulares, robustece-se agora um terceiro setor, que é público, mas não estatal. Ele é composto por ONG’s, associações de moradores, entidades de classe e outros movimentos sociais, que atuam em prol de interesses da coletividade, e agem aglutinando e canalizando para o sistema político demandas importantes, muitas vezes negligenciadas pelas instâncias representativas tradicionais” (SARMENTO, 2005:48).

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em pelo menos dois sentidos distintos: primeiramente, a ausência do sujeito constitucional não nega o seu caráter indispensável, daí a necessidade de sua reconstrução; e, em segundo lugar, o sujeito constitucional sempre envolve um hiato porque ele é inerentemente incompleto, e então sempre aberto a uma necessária, mas impossível, busca de completude. Conseqüentemente, o sujeito constitucional encontra-se constantemente carente de reconstrução, mas essa reconstrução jamais pode se tornar definitiva ou completa. Da mesma forma, de modo consistente com essa tese, a identidade constitucional deve ser reconstruída em oposição às outras identidades, na medida em que ela não pode sobreviver a não ser que pertença distinta dessas últimas. Por outro lado, a identidade constitucional não pode simplesmente dispor dessas outras identidades, devendo então lutar para incorporar e transformar alguns elementos tomados de empréstimo. Em suma, a identidade do sujeito constitucional só é suscetível de determinação parcial mediante um processo de reconstrução orientado no sentido de alcançar um equilíbrio entre a assimilação e a rejeição das demais identidades relevantes acima discutidas (2003:26-27).

Para isso, Rosenfeld utiliza três instrumentos teóricos:

A negação, a metáfora e a metonímia combinam-se para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar sua identidade. A negação é crucial à medida que o sujeito constitucional só pode emergir como um “eu” distinto por meio da exclusão e da renúncia. A metáfora ou condensação, por outro lado, que atua mediante o procedimento de se destacar as semelhanças em detrimento das diferenças, exerce um papel unificador chave ao produzir identidades parciais em torno das quais a identidade constitucional possa transitar. A metonímia ou deslocamento, finalmente, com a sua ênfase na contigüidade e no contexto, é essencial para evitar que o sujeito constitucional se fixe em identidades que permaneçam tão condensadas e abstratas ao ponto de aplainar as diferenças que devem ser levadas em conta se a identidade constitucional deve realmente envolver tanto o eu quanto o outro (2003:50).

Dessa forma, dentro de uma mesma sociedade, há não apenas uma identidade coletiva, mas diversas e até mesmo concorrentes, de modo que uma interpretação da Constituição que leve em conta apenas uma identidade, por mais majoritária que seja, pode lançar complicações para o desenvolvimento da democracia. Afinal a identidade constitucional, embora aberta às diversas

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identidades coletivas, não se confunde com nenhuma delas.Todavia, como o próprio julgamento do Recurso Extraordinário n.

153.531-8 irá revelar, a noção de interesse público não foi tomada como um dogma, mas sim compreendida de maneira a ter de se “compatibilizar” com o interesse privado pela via da utilização. Para tanto, conforme inspiração no Direito alemão, mais exatamente na tradição da jurisprudência de valores alemã, o STF fez uso da técnica de ponderação, por meio da qual: “[...] Quanto maior o grau de não satisfação ou de afetação de um princípio, tanto mais tem que ser a importância da satisfação do outro” (ALEXY, 1997:161, tradução livre).13

Como observa Souza Cruz (2004:160), o pensamento utilitarista serve de base para a ponderação;14 todavia seus defensores alegam que o “princípio” da proporcionalidade seria capaz de impedir a escolha arbitrária, vinculando o operador jurídico ao uso de meios adequados e proporcionais. Um desses defensores é o jurista de Kiel, Alexy (1997). Mas, como se verificará, o presente trabalho irá sustentar a tese de que, no pensamento de Alexy, ainda persiste uma dificuldade em assimilar completamente o giro hermenêutico-pragmático,15 por ainda buscar no método a expressão de uma racionalidade capaz de neutralizar toda a complexidade inerente à linguagem (ALEXY,

13 “[...] Cuanto mayor es el grado de la no satisfacción o de afectación de un principio, tanto mayor tiene que ser la importancia de la satisfacción del otro”.14 A popularidade do método da ponderação adquire cada dia mais destaque nos julgamento proferidos pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro (STF). Tanto assim, que Barroso e Barcelos (2004:471) e Baracho Júnior (2004:520) defendem que sua adoção representa uma mudança no curso da interpretação levada a cabo pelo tribunal, equivalendo à adoção de uma Nova Hermenêutica na Jurisprudência do STF. O precedente representado pelo HC n. 82.424/RS mostra-se como exemplo de uma aplicação prática da teoria de Alexy. Isso porque o caso ganhou notoriedade por examinar um suposto conflito entre os princípios da liberdade de expressão e da dignidade da pessoa humana, envolvendo a acusação de prática de racismo durante a publicação de livros anti-semitas. As bases da ponderação foram bem explicitadas através dos votos dos Ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio.15 Cabe destacar, desde já, que, diferentemente de Alexy, Dworkin desenvolve sua teoria levando em conta o giro hermenêutico empreendido por Heidegger e Gadamer, sendo que o último irá adotar uma postura de ruptura com as posições objetivistas de Schleiermacher e Dilthey, radicalizando a experiência hermenêutica e se apoiando principalmente no modo de ser do Casein(do ser-aí) heideggeriano. Desta forma, a Hermenêutica Filosófica entende que “a compreensão humana se orienta a partir de uma pré-compreensão que emerge da eventual situação existencial e que demarca o enquadramento temático e o limite de validade de cada tentativa de interpretação” (GRONDIN, 1999:159). Os reflexos da percepção de tal “consciência histórica” podem ser sentidos no pensamento de Dworkin, como lembra Carvalho Netto: “Para ele, a unicidade e a irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para este caso específico irrepetível por definição” (1999:475).

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1998:32; 2003:139; 1997:98; 1997b:136).16

A partir dessa ótica, tanto o interesse público quanto o interesse privado podem ser considerados à luz de princípios. Alexy (1998:09) concorda com a compreensão de regras e de princípios como espécies de normas jurídicas - o que leva à necessidade de empreender uma digressão sobre uma compreensão do Direito para além de um mero conjunto de regras.17

Partindo dessa premissa, lembra-se que freqüentemente a distinção entre ambos os standars normativos se dá em razão da generalidade dos princípios frente às regras. Isto é, muitos autores compreendem os princípios como normas de um grau de generalidade relativamente alta, ao passo que as regras seriam dotadas de uma menor generalidade.18 Contudo, tal abordagem quantitativa, levada adiante por autores como Del Vecchio e Bobbio, mostra-se insuficiente à luz do pensamento desenvolvido já em Esser,19 como demonstra Galuppo (2002:170-171). Tal tese é denominada por Alexy (1998:09) como a tese fraca da separação, de modo que uma tese forte, como a que o autor pretende adotar, considera a distinção como qualitativa. Logo, podese perceber que a generalidade não é um critério adequado para tal distinção, pois é, quando muito, uma conseqüência da natureza dos princípios, sendo incapaz de proporcionar uma diferenciação essencial (GALUPPO, 1999:137).

Afirma-se, então, que regras, diferentemente dos princípios, são aplicáveis na maneira do tudo-ou-nada (all-or-nothing-fashion);20 isso significa dizer que, se uma regra é válida, ela deve ser aplicada da maneira como preceitua, nem mais nem menos, conforme um procedimento de subsunção silogístico (AFONSO DA SILVA, 2002:25). Todavia, o principal

16 Importante lembrar a colocação de Cattoni de Oliveira (2001:77-78) no sentido de que, para Alexy (2001:17-18), a racionalidade de um discurso prático pode ser mantida se forem satisfeitas as condições expressas por um sistema de regras ou procedimentos.17 Aqui é preciso lembrar, que Alexy toma como referência de norma o conceito “semântico” de norma (GALUPPO, 1999:135-136) presente já em Kelsen (1999), de modo que compreende que a norma é o significado extraído de um enunciado.18 Nesse sentido, ver Hart (1994:321-325) em resposta a distinção dworkiana entre princípios e regras.19 “Para Josef Esser, princípios são aquelas normas que estabelecem fundamentos para que determinado mandamento seja encontrado. Mais do que uma distinção baseada no grau de abstração da prescrição normativa, a diferença entre os princípios e as regras seria uma distinção qualitativa. O critério distintivo dos princípios em relação às regras seria, portanto, a função de fundamento normativo para a tomada de decisão” (ÁVILA, 2004:27).20 Muitos autores atribuem a Alexy a originalidade da distinção entre regras e princípios; todavia, esses se olvidam do importante ensaio publicado por Dworkin, Model of Rules, originalmente, na Chicago Law Review nº . 35 (1967-1968), sendo, depois, republicado como o capítulo 2 da obra Levando os Direitos a Sério(com tradução para o português pela Editora Martins Fontes, em 2002). Todavia, importante lembrar, mais uma vez, que a distinção dworkiana se pauta pelo prisma lógico-argumentativo, e não por critéiros estruturais - ou morfológicos -. Reconhecendo isso, tem-se Sarmento (2000:44).

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21 “No caso das colisões entre princípios, portanto, não há como se falar em um princípio que sempre tenha precedência em relação a outro. [...] É por isso que não se pode falar que um princípio P1 sempre prevalecerá sobre o princípio P2- ( P1 P P2) -, devendo-se sempre falar em prevalência do princípio P1 sobre o princípio P2 diante das condições C- ( P1 P P2) C “ (AFONSO DA SILVA, 2005:35).22 Isso pode ser percebido no julgamento do HC n. 82.424/RS. Como já comentado, o STF identificou um conflito envolvendo os princípios da dignidade da pessoa humana e da liberdade de expressão. Em momento algum, afirmou-se que a dignidade da pessoa humana (ou mais exatamente, não discriminação) seria hierarquicamente superior à liberdade de expressão. Assim, um ou outro princípio pode ser ponderado através de sua aplicação gradual no caso sub judice . Assim, como bem reconhece o Min. Marco Aurélio em seu voto, “as colisões entre princípio [sob essa ótica] somente podem ser superadas se algum tipo de restrição ou de sacrifício formem impostos a um ou os dois lados. Enquanto o conflito entre regras resolve-se na dimensão da validade, [...] o choque de princípios encontra solução na dimensão do valor, a partir do critério da ‘ponderação’, que possibilita um meio-termo entre a vinculação e a flexibilidade dos direitos”.

traço distintivo com relação aos princípios é observado quando, diante de um conflito entre regras, algumas posturas deverão ser tomadas para que apenas uma delas seja considerada válida (ÁVILA, 2004:30). Como conseqüência, a outra regra não somente não será considerada pela decisão, mas deverá ser retirada do ordenamento jurídico, como inválida, salvo se não for estabelecido que essa regra se situa em uma situação que excepciona a outra - trata-se do critério da excepcionalidade das regras. Um exemplo é fornecido pelo próprio Alexy (1997b:163-164): uma Lei Estadual proibia o funcionamento de estabelecimentos comerciais após as 13:00 e, concomitantemente, existia uma Lei Federal estendendo esse funcionamento até às 19:00. Nesse caso, o Tribunal Constitucional alemão solucionou a controvérsia, apoiando-se no cânone da hierarquia das normas, de modo a entender pela validade da legislação federal.

Já os princípios, por sua vez, não são determinantes para uma decisão, de modo que somente apresentariam razões em favor de uma ou de outra posição argumentativa (ALEXY, 1998:09-10); logo apresentam obrigações prima facie, na medida em que podem ser superadas em função de outros princípios (ÁVILA, 2004:30; AFONSO DA SILVA, 2005:32), o que difere na natureza de obrigações absolutas das regras. É, por isso, que o autor afirma existir uma dimensão de peso entre princípios - que permanece inexistente nas regras - principalmente nos chamados casos de colisão, exigindo para a sua aplicação um procedimento de ponderação (balanceamento). Destarte, em face de uma colisão entre princípios, o valor decisório será dado a um princípio que tenha, naquele caso concreto, maior peso relativo, sem que isso signifique a invalidação do princípio compreendido como de peso menor. Em face de outro caso, portanto, o peso dos princípios poderá ser redistribuído de maneira diversa,21 pois nenhum princípio goza antecipadamente de primazia sobre os demais.22 É desta forma que Alexy (1998:12) apresenta a distinção

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fundamental entre regras e princípios:

[...] princípios são normas que ordenam que algo se realize na maior medida possível, em relação às possibilidades jurídicas e fáticas. Os princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização que se caracterizam porque podem ser cumpridos em diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento não só depende das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. [...]. Por outro lado, as regras são normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida, podem sempre ser somente cumpridas ou não. Se uma regra é válida, então é obrigatório fazer precisamente o que se ordena, nem mais nem menos. As regras contêm por isso determinações no campo do possível fático e juridicamente (ALEXY, 1998:12, grifos no original, tradução livre).23

Mas como explicar a natureza de mandamentos de otimização24 atribuída aos princípios? Ou de outra forma, como uma norma pode ter sua aplicação em diferentes graus? Para Alexy (1998:14, 1997:138), isso pode ser explicado quando se compreende que princípios podem ser equiparados a valores. Uma concepção sobre valores - isto é, axiológica - dirá Alexy (1997:139), traz uma referência não no nível do dever-ser (deontológico), mas no nível do que pode ou não ser considerado como bem. Os valores têm como características a possibilidade de valoração, isto é, permitem que um determinado juízo possa ser classificado, comparado ou medido. Destarte,

Com a ajuda de conceitos de valor classificatório se pode dizer que algo tem um valor positivo, negativo ou neutro; com a ajuda de conceitos de valor comparativo, que a um objeto que se deve valorar corresponde um valor maior ou o mesmo valor que outro objeto e, com ajuda de conceitos de valor

23 “[...] principios son normas que ordenan que se realice algo en la mayor medida posible, en relación con las posibilidades jurídicas y fácticas. Los principios son, por consiguiente, mandatos de optimización que se caracterizan por que pueden ser cumplidos en diversos grados y porque la medida ordenada de su cumplimiento no sólo depende de las posibilidades fácticas, sino también de las posibilidades jurídicas. [...] En cambio, las reglas son normas que exigen un cumplimiento pleno y, en esa medida, pueden siempre ser sólo o cumplidas o incumplidas. Si una regla es válida, entonces es obligatorio hacer precisamente lo que ordena, ni más ni menos. Las reglas contienen por ello determinaciones en el campo de lo posible fáctica y jurídicamente”.24 Afonso da Silva (2002:25) alerta que, devido à influência das traduções espanholas das obras de Alexy, tornou-se comum referir-se aos princípios como “mandados de otimização”. Todavia, trata-se de utilização imprópria, preferindo esse autor o termo mandamentos de otimização.25 “Con la ayuda de conceptos de valor clasificatorios se puede decir que algo tiene un valor positivo, negativo o neutral; con la ayuda de conceptos de valor comparativos, que a un objeto que hay que valorar le corresponde un valor o el mismo valor que a otro objeto y, con la ayuda de conceptos de valor métricos, que algo tiene un valor de determinada magnitud”.

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métrico, que algo tem um valor de determinada magnitude (ALEXY, 1997:143, tradução livre).25

Todavia, apesar de dizer que princípios podem ser equipados aos valores, Alexy (1997:147) dirá que princípios não são valores. Isso porque os princípios, como normas, apontam para o que se considera devido, ao passo que os valores apontam para o que pode ser considerado melhor.26 Assim, mesmo tendo uma operacionalização idêntica aos valores, ainda assim princípios apresentam uma diferença básica frente aos valores.27

Para concluir, dirá que, se alguém estiver diante de uma norma que exige um cumprimento na maior medida do possível, estará diante de um princípio; em contrapartida, se tal norma exigir apenas o cumprimento em uma determinada medida, ter-se-á uma regra. Logo, a diferença se centraria

26 “La diferencia entre principios y valores se reduce así a un punto. Lo que en el modelo de los valores es prima facie lo mejor es, en el modelo de los principios, prima facie debido; y lo que en el modelo de los valores es definitivamente lo mejor es, en el modelo de los principios, definitivamente debido” (ALEXY, 1997:147).27 Apenas para demarcar a dissonância, adianta-se que tese alexyana é refutada tanto por Dworkin quanto por Habermas, que defendem a impossibilidade de equiparar princípios a valores, sob pena de desnaturar a própria lógica de aplicação normativa. Ambos os autores ainda lançarão mão não de uma diferenciação morfológica entre princípios e regras, preferindo o que se pode considerar como uma distinção em razão da natureza lógico-argumentativa.28 Afonso da Silva (2002:24-27) sustenta que seria errônea a referência à técnica da ponderação como “princípio da proporcionalidade”. Segundo o autor, “[o] chamado princípio da proporcionalidade não pode ser considerado um princípio, pelo menos não com base na classificação de Alexy, pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas, já que é aplicado de forma constante, sem variações”. Dessa forma, tratar-se-ia de uma regra de ponderação, aplicável por meio da subsunção, bem como suas sub-regras. Ávila (2005) refere-se a um dever de proporcionalidade, termo considerado correto por Afonso da Silva, mas pouco adequado, já que a idéia de dever remete apenas ao gênero norma jurídica, sem explicitar sua espécie - princípios ou regras. Também não se deve confundir proporcionalidade com racionalidade, como lembra Afonso da Silva (2002:28). Muitos juristas tratam como se fossem termos sinônimos, como se proporcionalidade fosse o termo adotado pelos autores de tradição germânica, ao passo que a razoabilidade tivesse sua difusão na tradição do common law. Segundo o constitucionalista, a diferenciação se dá não pela origem, mas pela estrutura. “A regra da proporcionalidade no controle das leis restritivas de direitos fundamentais surgiu por desenvolvimento jurisprudencial do Tribunal Constitucional alemão e não é uma simples pauta que, vagamente, sugere que os atos estatais devem ser razoáveis, nem uma simples análise da relação meio-fim. Na forma desenvolvida pela jurisprudência constitucional alemã, tem ela uma estrutura racionalmente definida, com subelementos independentes - a análise da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito-, que são aplicados em uma ordem pré-definida e que conferem à regra da proporcionalidade a individualidade que a diferencia, claramente, da mera exigência de razoabilidade” (AFFONSO DA SILVA, 2002:30). É, por isso, que esse autor afirma que o STF apenas consegue exercer sua função nos limites da razoabilidade, pouco ou nada compreendendo sobre a dimensão da proporcionalidade. O órgão judicante, então, apenas mencionaria as sub-regras da proporcionalidade, sem, contudo, analisá-las perante o caso específico que tem a sua frente.

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em um aspecto da estrutura dos princípios e das regras, de uma maneira morfológica, fazendo com que regras sejam aplicadas de maneira silogística e princípios, por meio de uma ponderação ou balanceamento (ALEXY, 2003; AFONSO DA SILVA, 2002:25).

Dessa forma, os princípios que prescrevem a proteção tanto do interesse público. de um lado, quanto do interesse privado de outro, deverão ser ponderados por meio do “princípio” da proporcionalidade,28 para que se possa atingir um resultado em face de um caso concreto. Assim, o próximo passo da presente explanação é analisar melhor o mecanismo da proporcionalidade teorizado por Alexy. Para tanto, deve-se lembrar que nem princípios nem regras são capazes de regular por si mesmos suas condições de aplicação, de modo que o jurista de Kiel reconhece a necessidade de promover uma compreensão da decisão jurídica regrada por uma teoria da argumentação (ALEXY, 1997b:173).29 A partir disso, o sistema jurídico, além de conter regras e princípios, comporta um terceiro nível, no qual são feitas considerações sobre um procedimento - seguindo o modelo da razão prática - que permitiria alcançar e assegurar a racionalidade de aplicação jurídica (CHAMON JUNIOR, 2004:103).

A argumentação jurídica é vista por Alexy (1998:18) como um caso especial da argumentação prática geral, ou seja, da argumentação moral. Sua peculiaridade, contudo, está na série de vínculos institucionais que a caracteriza, tais como a lei, o precedente e a dogmática jurídica.30 Mas mesmo esses vínculos - concebidos como um sistema de regras, princípios e procedimento - são incapazes de levar a um resultado preciso. As regras do discurso serviriam apenas para que se pudesse contar com um mínimo de racionalidade. Tudo, para Alexy (1998:18-19), gira em volta de um problema referente à racionalidade jurídica. Como não é possível uma teoria

29 “[...] el agregado del nivel de los principios conduce sólo condicionadamente a una vinculación en el sentido de una determinación estricta del resultado. También después de la eliminación de las lagunas de apertura a nivel de las reglas quedan las lagunas de indeterminación del nivel de los principios. Sin embargo, de aquí no podrían inferirse un argumento a favor del modelo de la regla e en contra del modelo regla/principio, tampoco si ésta fuera la última palabra. Lo que hasta ahora se ha descrito, el nivel de la regla y el de los principios, no proporciona un cuadro completo del sistema jurídico. Ni los principios ni las reglas regulan por sí mismos su aplicación. Si se quiere obtener un modelo completo, hay que agregar al costado pasivo uno activo, referido al procedimiento, de la aplicación de las reglas y los principios. Por lo tanto, los niveles de las reglas y los principios tienen que ser completados con un tercer nivel. En un sistema orientado por el concepto de la razón práctica, este tercer nivel puede ser sólo al de un procedimiento que asegura la racionalidad” (ALEXY, 1997b:173, grifos nossos).30 Sobre isso, um maior detalhamento pode ser obtido pela leitura do capítulo 3 da obra ALEXY, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica: a Teoria do Discurso Racional como Teoria da Justificação Jurídica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. São Paulo: Landy, 2001

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moral de cunho substantivo, somente se pode apelar para as teorias morais procedimentais, que formulariam regras ou condições para a argumentação ou para uma decisão racional.31

Para desenvolver sua teoria da argumentação, o professor alemão irá proceder a uma minuciosa análise de diversas teorias, retirando delas o que considera notável, como lembra Souza Cruz:

Dos julgamentos morais de Stevenson, destacou as distintas formas de argumentos e de argumentações. Da filosofia lingüística de Wittgenstein, observou que a linguagem normativa não poderia ser reduzida à linguagem descritiva, ao passo que da Teoria Discursiva de Austin aproveitou os aspectos performativos da linguagem e sua relação com os dados da realidade.

Da teoria metaética de Hare, destacou o esforço na comensurabilidade de valores, ao exigir que o juiz não apenas se colocasse na posição do réu, mas que levasse a sério todos os interesses daqueles que de alguma forma pudessem ser afetados pela decisão, enquanto da filosofia psicológica de Toulmin aproveitou a concepção da existência de regras no discurso moral que permitiam um exame racional.

Da Teoria da Argumentação Moral de Baier notou que a argumentação prática possui regras distintas da argumentação desenvolvida nas ciências naturais, mas que ambas devem/podem ser taxadas como atividades racionais. Por sua vez, da Teoria do Consenso da Verdade de Habermas, ele percebeu que as ações são jogos de linguagem e que num discurso é possível depurar-se argumentos válidos de argumentos inválidos, em razão de sua aceitabilidade numa “situação ideal de discurso”.

Contudo, ao entender que tal situação dificilmente ocorreria factualmente, Alexy estipulou o critério de Hare como condição mínima de sua teoria. Da Teoria da Liberação Prática da Escola de Erlanger, observou a necessidade da padronização da linguagem.

Finalmente, da Nova Retórica de Perelman assumiu a idéia de que não é possível definir um único resultado como correto e duradouro, dando abertura a um criticismo heurístico (2004:165-166).

Todo esse instrumental teórico irá contribuir para estruturar o

31 Em consonância com essa afirmação, tem-se Souza Cruz (2004:164-165), que observa que Alexy irá divergir da Corte Constitucional alemã, uma vez que essa exige a relativização de todos os direitos fundamentais, inclusive o da dignidade humana (ALEXY, 1997:108-109). Assim, a adoção pelo paradigma procedimental sustenta uma proteção aos direitos fundamentais por um aspecto dialógico do discurso e conforme a racionalidade do método de ponderação.

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procedimento da ponderação a partir de três sub-regras (regra de adequação, regra da necessidade e regra da proporcionalidade em sentido estrito). Essas sub-regras são estruturadas de maneira a funcionarem sucessiva e subsidiariamente, mas nunca aleatoriamente32 por isso nem sempre será necessária uma análise de todas as três sub-regras.33

Em termos claros e concretos, com subsidiariedade quer-se dizer que a análise da necessidade só é exigível se, e somente se, o caso já não tiver sido resolvido com a análise da adequação; e a análise da proporcionalidade em sentido estrito só é imprescindível, se o problema já não tiver sido solucionado com as análises da adequação e da necessidade (AFONSO DA SILVA, 2002:34).

Afonso da Silva alerta que, no Brasil, difundiu-se o conceito de adequação como aquilo que é apto a alcançar o resultado pretendido (SARMENTO, 2000:87; MENDES, 1994:371). Todavia, trata-se de uma compreensão equivocada da sub-regra, derivada da tradução imprecisa do termo alemão fördern como alcançar, ao invés de fomentar, o que seria mais correto. Nessa leitura:

Adequado, então, não é somente o meio com cuja utilização um objetivo é alcançado, mas também o meio com cuja utilização a rejeição de um objetivo é fomentada, promovida, ainda que o objetivo não seja completamente realizado. Há uma grande diferença entre ambos os conceitos, que fica clara na definição de Martin Borowski, segundo a qual uma medida estatal é adequada quando o seu emprego faz com que o “objeto legítimo pretendido seja alcançado ou pelo menos fomentado”. Dessa forma, uma medida somente pode ser considerada inadequada se sua utilização não contribuir em nada para fomentar a realização de objetivo pretendido (AFONSO DA SILVA, 2002:36-37).

Pode-se tomar o exemplo da ADC n. 9-6 (racionamento de energia), como forma de esclarecer melhor o conteúdo da regra da adequação: para impedir o risco de questionamento judicial, principalmente dos artigos 14 a 18 da Medida Provisória n. 2.152-2 - que disciplinava as metas de consumo de energia

32 “Se simplesmente as enunciarmos, independentemente de qualquer ordem, pode-se ter a impressão de que tanto faz, por exemplo, se a necessidade do ato estatal é, no caso concreto, questionada antes ou depois da análise da adequação ou da proporcionalidade em sentido estrito . Não é o caso. A análise da adequação precede a da necessidade, que, por sua vez, precede a da proporcionalidade em sentido estrito “ (AFONSO DA SILVA, 2002:34).33 ”A impressão que muitas vezes se tem, quando se mencionam as três sub-regras da proporcionalidade, é que o juiz deve sempre proceder à análise de todas elas, quando do controle do ato considerado abusivo. Não é correto, contudo, esse pensamento. É justamente na relação de subsidiariedade acima mencionada que reside a razão de ser da divisão em sub-regras” (AFONSO DA SILVA, 2002:34).

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elétrica e previa as sanções no caso de descumprimento, foi proposta a ADC n. 9-6, visando à declaração de constitucionalidade, com efeitos vinculantes. O STF entendeu, em sede de medida cautelar, que estava demonstrada a proporcionalidade e a razoabilidade das medidas tomadas pelo governo. Como lembra Afonso da Silva, o teste de adequação da medida deveria se limitar “ao exame de sua aptidão para fomentar os objetivos visados” (2002:37). Assim, mesmo que fosse questionável o fato de essas medidas tomadas serem as mais adequadas, para o constitucionalista, mostra-se inegável - devido ao caráter coercitivo - que as medidas levariam os consumidores a economizarem energia elétrica e, mesmo que sozinhas não possam solucionar o problema de interrupção do fornecimento de energia elétrica, as medida tomadas mostram-se capazes de colaborar para que o mesmo seja atingido. Por tal observação, elas poderiam ser consideradas adequadas nos termos exigidos pela proporcionalidade.

Mas será que elas poderiam passar também pelo grifo da regra de necessidade? Essa afirma o seguinte: “Um ato que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido” (AFONSO DA SILVA, 2002:38). Segundo Sarmento, “impõe que o Poder Público adote sempre a medida menos gravosa possível para atingir a determinado objetivo” (2000:88). Assim, a adequação exige um exame absoluto do ato, ao passo que a necessidade, um exame comparativo (ALEXY, 1998:30), isto é:

Suponha-se que, para promover o objetivo O, o Estado adote a medida M , que limita o direito fundamental D. Se houver uma medida M que, tanto quanto M , seja adequada para promover com igual eficiência o objetivo O, mas limite o direito fundamental D em menor intensidade, então a medida M , utilizada pelo Estado, não é necessária (AFONSO DA SILVA, 2002:38).

Voltando ao exemplo do julgamento da ADC n. 9-6, Afonso da Silva considera que as medidas tomadas pelo governo podem ser consideradas adequadas, por ajudarem a promover a economia de energia. Mas o exame da necessidade exige que, primeiro, se identifique os direitos que serão limitados. Muitos, então, poderiam ser apontados como direitos possivelmente lesionados: direito de acesso a um serviço público, direito de igualdade, direito à livre iniciativa, direito ao trabalho, e, em última análise, o direito a uma vida digna (AFONSO DA SILVA, 2002:38-40).

O passo seguinte seria identificar medidas alternativas que também pudessem satisfazer os objetivos da medida governamental.34 Se fosse 34 Afonso da Silva (2002:39-40) destaca que, durante o julgamento da ADC n. 9-6, deixou-se de proceder à identificação de medidas alternativas para a crise brasileira de energia, mesmo havendo outras soluções que foram apresentadas e discutidas pelos meios de comunicação na época. Logo, ficou prejudicada a aplicação da proporcionalidade neste caso específico.

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demonstrada a existência - o que é bem plausível - de medida tão (ou até mais) adequada que as tomadas pelo governo, o STF teria de considerar a medida escolhida como desproporcional e, por isso, declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória n. 2.152-2.

O último passo a ser verificado, a proporcionalidade em sentido estrito, apenas acontecerá depois de verificado que o ato é adequado e necessário (ALEXY, 1998:31). Por isso,

[...] o exame da proporcionalidade em sentido estrito, que consiste em um sopesamento entre a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido e a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva (AFONSO DA SILVA, 2002:40).

Segundo Sarmento (2000:89), há aqui um raciocínio baseado na relação custo-benefício da norma avaliada, isto é, o ônus imposto pela norma deve ser inferior ao benefício que pretende gerar. A constatação negativa deve ser tomada, portanto, como um juízo pela inconstitucionalidade do ato. Todavia,

[p]ara que uma medida seja reprovada no teste da proporcionalidade em sentido estrito, não é necessário que ela implique a não-realização de um direito fundamental. Também não é necessário que a medida atinja o chamado núcleo essencial de algum direito fundamental. Para que ela seja considerada desproporcional em sentido estrito, basta que os motivos que fundamentam a adoção da medida não tenham peso suficiente para justificar a restrição ao direito fundamental atingido. É possível, por exemplo, que essa restrição seja pequena, bem distante de implicar a não-realização de algum direito ou de atingir o seu núcleo essencial. Se a importância da realização do direito fundamental, no qual a limitação se baseia, não for suficiente para justificá-la, será ela desproporcional (AFONSO DA SILVA, 2002:41, grifo no original).

No exemplo que até agora foi desenvolvido, o STF, por olvidar analisar a necessidade das medidas do governo, prejudicou a análise da proporcionalidade em sentido estrito. Mas, em um outro exemplo - ADI n. 855-2 (pesagem de botijões de gás), a exigência de pesagem dos botijões de gás na presença dos consumidores foi considerada adequada pelo STF. Também pode ser considerada por Afonso da Silva (2002:40-41) necessária, pois a medida alternativa apresentada - pesagem por amostragem - embora pudesse restringir em menor escala a livre iniciativa das empresas distribuidoras de gás, não pareceu ter a mesma capacidade de fomentar a proteção do consumidor. Assim, pode-se avançar para a análise da proporcionalidade em sentido estrito: verificar se a proteção ao consumidor se justifica em face da limitação à liberdade de iniciativa sofrida pelas empresas distribuidoras de gás. Para Afonso da Silva (2002:41), o peso maior deveria ser dado à proteção

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do consumidor, todavia o entendimento do STF pendeu para uma solução inversa.

Evidenciar-se-ia, então, uma mudança em termos de compreensão do Supremo Tribunal Federal sobre a questão da supremacia do interesse público. Todavia, os julgados existentes ainda revelariam que o dogma persiste; o que se teria admitido seria apenas a relativização através da técnica de ponderação da supremacia do interesse público em algumas situações especiais, mas com um caminho aberto para revisão dessa compreensão (BARACHO JÚNIOR, 2004:520). Cattoni de Oliveira, entretanto, apresenta uma outra leitura desse quadro:

O que eu discordo, em princípio, é quanto à afirmação de parte da doutrina atual segundo a qual, recentemente, o STF estaria relativizando o “princípio da supremacia do interesse público”, ao ponderar, usando como critério a proporcionalidade, interesse público (estatal) e interesse privado. Não penso assim. Há uma tendência jurisprudencial a se relativizar, isto sim, a distinção entre questões políticas e questões jurídicas, com conseqüências para a compreensão da separação de poderes, para o papel do STF, para a práxis e para a metódica constitucionais. Por exemplo, ao considerar que, no exercício do controle concentrado, o STF exerce “tarefas não somente jurídicas mas políticas”, ele é “legislador negativo”, mas também “legislador positivo”, ainda que excepcional, em prol de um “interesse público ou social maior” (2006:12).

A partir da crítica acima, deve ser posta uma questão: mesmo se o STF levasse a sério a ponderação - o que foi demonstrado que não ocorre, conforme a técnica desenvolvida por Alexy - poder-se-ia considerar essa uma resposta adequada ao paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito?

Cattoni de Oliveira (2004:535), pautando-se no pensamento de Habermas (1998:327- 333), apresentará uma resposta negativa à questão. Como problemas que pesem contra a sua utilização podem ser levantados os seguintes: (1) ao se admitir uma compreensão dos princípios jurídicos como mandamentos de otimização, aplicáveis de maneira gradual, Alexy emprega uma operacionalização própria dos valores: isso faria, então, com que os princípios

35 “O Direito, ao contrário do que defende uma jurisprudência dos valores, possui um código binário, e não um código gradual: que normas possam refletir valores, no sentido de que a justificação jurídico-normativa envolve questões não só acerca de o que é justo para todos (morais), mas também acerca de o que é bom, no todo e a longo prazo para nós (éticas), não que dizer que elas sejam ou devam ser tratadas como valores [...]” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:88-89, grifos no original).

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perdessem a sua natureza deontológica, transformando o código binário do Direito em um código gradual;35 (2) como conseqüência desse raciocínio, o Direito passaria a indicar o que é preferível, ao invés de o que é devido;36

(3) o Direito - como pretensão de universalidade sobre a correção de uma ação - então, não mais pode ser considerado como um “trunfo”,37 como quer Dworkin, nas discussões políticas que envolvam o bem-estar de uma parcela da sociedade; desnatura-se, portanto, a tese de Rawls (2003:199; 1996:171) sobre a prevalência do justo sobre o bem; (4) além disso, a tese de Alexy nega a diferenciação entre discursos de justificação e discursos de aplicação, transformando a atividade judiciária em um poder constituinte permanente; e, por fim, (5) olvida-se da racionalidade comunicativa, uma vez que todo o raciocínio é pautado a partir de uma racionalidade instrumental, deixando a aplicação jurídica a cargo de um raciocínio de adequação de meios a fins, ficando para segundo plano a questão da legitimidade da decisão jurídica; exatamente por isso o raciocínio sobre a ponderação acaba por cair em um decisionismo de cunho irracionalista, isto é, ausência de uma racionalidade

36 “[...] normas - quer como princípios, quer como regras - visam ao que é devido, são enunciados deontológicos: à luz de normas, posso decidir qual é a ação ordenada. Já valores visam ao que é bom, ao que é melhor; condicionados a uma determinada cultura, são enunciados teleológicos: uma ação orientada por valores é preferível. Ao contrário das normas, valores não são aplicados mais priorizados” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90). Em outro texto, lembra o mesmo autor: “[...] ou nós estamos diante de uma conduta ilícita, abusiva, criminosa, ou então, do exercício regular, e não abusivo, de um direito. Tertium non datur! Como é que uma conduta pode ser considerada, ao mesmo tempo, como lícita (o exercício de um direito à liberdade de expressão) e como ilícita (crime de racismo, que viola a dignidade humana), sem quebrar o caráter deontológico, normativo, do Direito? Como se houvesse uma conduta meio lícita, meio ilícita?” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:6-7, grifos no original); é por isso mesmo que: “Esse entendimento judicial, que pressupõe a possibilidade de aplicação gradual, numa maior ou menor medida, de normas, ao confundi-las com valores, nega exatamente o caráter obrigatório do Direito. Tratar a Constituição como uma ordem concreta de valores é pretender justificar a tese segundo a qual compete ao Poder Judiciário definir o que pode ser discutido e expresso como digno de valores, pois haveria democracia, nesse ponto de vista, sob o pressuposto de que todos os membros de uma sociedade política compartilham, ou tenham de compartilhar, de um modo comunitarista, os mesmos supostos axiológicos, uma mesma concepção de vida e de mundo. Ou, o que também é incorreto, que os interesses majoritários de uns devem prevalecer, de forma utilitarista, sobre os interesses minoritários de outros, quebrando assim, o princípio do reconhecimento recíproco de igual direitos de liberdade a todos” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2006:7, grifo no original).37 “[...] um direito não pode ser compreendido como um bem, mas como algo que é devido e não como algo que seja meramente atrativo. Bens e interesses, assim como valores, podem ter negociada a sua ‘aplicação’, são algo que se pode ou não optar, já que se estará tratando de preferências otimizáveis. Já direito não. Tão logo os direitos sejam compreendidos como bens e valores, eles terão que competir no mesmo nível que esses pela prioridade no caso individual. Essa é uma das razões pelas quais, lembra Habermas, Ronald Dworkin haver concebido os direitos como ‘trunfos’ que podem ser usados nos discursos jurídicos contra os argumentos de políticas” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2002:90-91).

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comunicativa (HABERMAS, 1998:332).38

Essas críticas servem para fomentar a discussão e sinalizam a necessidade de uma compreensão do Direito à luz do paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito. Por isso, a proposta habermasiana desponta como a mais adequada. Mas as razões de tal opção transbordam os limites do presente artigo, devendo ser exploradas em outro estudo.

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O MONITORAMENTO ELETRÔNICO E AS RELAÇÕES TRABALHISTAS

ALEXANDRE ATHENIENSE1

A atividade empresarial moderna está inserida em um contexto de extrema competitividade, com demandas crescentes por soluções rápidas e eficazes.1 O advento e a conseqüente consolidação das tecnologias de informação propiciaram o instrumental necessário para responder adequadamente a estas exigências apontadas. Somado a este fator, observa-se o decréscimo no custo de tais ferramentas, bem como a sua simplificação, permitindo desta forma uma abrangência dilatada de usuários, devido sua maior acessibilidade.

Neste diapasão, o implemento da tecnologia adentrou-se não somente nas linhas de produção, sendo utilizada em todos os setores da empresa. Esta incorporação deuse de forma irreversível ao ponto de se constatar a dependência de atividades estritamente secundárias da empresa aos meios de informática e à tecnologia da informação em geral.

O correio eletrônico, especificamente, exerce papel imprescindível neste cenário delineado.

A comunicação veloz e eficaz que ele propicia, permitindo inclusive a incorporação de diversos documentos digitalizados, enseja benefícios imediatos e um prisma de possibilidades que não podem ser desprezados. Salienta-se ainda o baixo-custo e o alcance que tal meio de comunicação se reveste, acarretando a adesão em massa em todo o ambiente empresarial.

A tecnologia como um todo é apta a fornecer inúmeras comodidades, mas não se pode ignorar que seu uso inadequado pode gerar danos de amplitudes consideráveis. No que tange às tecnologias da informação, desvios de finalidade podem ser facilmente constatados no âmbito das relações de trabalho, sejam no pólo do empregador como no do empregado.

Sob a ótica do trabalhador, o meio de comunicação eletrônico pode ensejar a transmissão de dados sigilosos a competidores, bem como pode ser um mecanismo para a prática de diversos ilícitos, na seara cível e criminal. Em resguardo a esta constatação, o empregador utiliza variados instrumentos para viabilizar o monitoramento das atividades dos seus prepostos.

O chamado monitoramento eletrônico corresponde justamente à consecução dos meios disponíveis de vigilância com emprego de

1 Alexandre Atheniense é sócio-advogado do escritório Aristoteles Atheniense Advogados; presidente da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB; coordenador e professor do Curso de Pós Graduação de Direito de Informática da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP; editor do blog “Direito e Novas Tecnologias” www. dnt.adv.br

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recursos tecnológicos. Este procedimento é plenamente viável quanto às mensagens eletronicamente transmitidas. Basicamente pode-se distinguir o monitoramento eletrônico em duas modalidades de controle. A vigilância pelo controle formal concretiza-se em programas que analisam aspectos externos da mensagem, tais como o destinatário, o título da mensagem e o registro das páginas visitadas. Via de regra, buscam-se palavras-chave que possam indicar nocividade à empresa, ou mesmo indícios de empecilhos à atividade laboral. Podem ser citados como exemplos os filtros, cookies, scripts.

Salienta-se que este meio de controle não incide no conteúdo das mensagens transmitidas, restando estas incólumes. O mesmo não pode ser dito quanto ao controle material, pois neste caso averigua-se o próprio conteúdo da mensagem.

O monitoramento eletrônico ampara-se em diversos fundamentos legais. Primeiramente menciona-se o poder de direção atribuído ao empregador (art. 2º da CLT), visando o controle e direcionamento da atividade desenvolvida pela empresa. Esta diretriz advém do próprio direito de propriedade, vinculando a determinação do uso e da fruição ao seu titular.

A influência da propriedade não se restringe àquela supra mencionada. Para a determinação de sua real abrangência, insta distinguir as duas modalidades de correio eletrônico disponibilizadas em um ambiente de empresa.

O chamado e-mail corporativo consiste no correio eletrônico fornecido pela empresa ao seu preposto. Há uma identificação direta com a empresa devido à adoção de nomenclatura do empregador, o chamado domínio na internet (por exemplo: [email protected]).

Já o denominado e-mail privado é aquele provido por ente alheio ao empregador. Não obstante, o acesso a tal meio de comunicação se concretiza apenas com a utilização da estrutura, do maquinário de propriedade da empresa.

Destarte, o e-mail corporativo pode ser facilmente caracterizado como ferramenta de trabalho, nos termos do art. 458, §2º da CLT, e como tal tem sua função adstrita ao exercício da atividade laboral.

A função da senha e sua respectiva finalidade adquirem relevância neste contexto. A tentativa de descaracterização do e-mail corporativo como ferramenta de trabalho é impulsionada pelo argumento de que a senha fornecida ao empregador teria como propósito a garantia de sua privacidade frente ao seu empregador, bem como a terceiros. Não se pode olvidar o fato de que as senhas, nesta modalidade de correio eletrônico, são criadas e posteriormente fornecidas diretamente pelo empregador aos seus prepostos. O intuito nitidamente perceptível é o resguardo de informações pertinentes à empresa que são transmitidas por tal meio de comunicação, ocorrendo, por

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conseguinte, a proteção da atividade empresarial desenvolvida em face de terceiros e até mesmo do próprio empregado.

O conhecimento quanto à senha, destarte, decorre logicamente da própria estrutura do e-mail corporativo. Enfatiza-se que posicionamento contrário poderia até mesmo gerar obstáculos consideráveis à realização da atividade empresarial. Basta salientar o transtorno que o impedimento do empregado poderia causar. Seu afastamento, por qualquer motivo, poderia ensejar no mínimo a interrupção do curso normal do trabalho e a ausência de acesso a dados imprescindíveis.

São também fundamentos para a determinação da licitude do monitoramento eletrônico as inúmeras hipóteses legais de responsabilização do empregador pela conduta de seus prepostos. Nesta seara menciona-se o art. 932, III do Código Civil que atribui a responsabilidade objetiva do empregador por fato de terceiro. O tipo penal previsto no art. 241, §1º, III do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto à transmissão de material envolvendo pedofilia por meio eletrônico. O crime de violação de direitos autorais disposto no art. 12 da lei 9609/98 também pode ser mencionado.

A atribuição de crime a conduta do empregado que viola segredo profissional (art. 154 do Código Penal) assim como o delito de concorrência desleal (art. 195 da lei 9279/96) da mesma forma incluem-se no rol de legítimos fundamentos para o monitoramento eletrônico. No entanto, o monitoramento eletrônico pode esbarrar em garantias fundamentais do cidadão, acarretando conflitos que passam a ser observados no Judiciário brasileiro.

Os argumentos formulados contrariamente ao monitoramento residem basicamente na proteção dada pela Constituição ao sigilo das comunicações (art. 5º, XII). Esta proteção constitucional é decorrência lógica de outra garantia fundamental: a privacidade (art. 5º, X).

A fixação da possível antinomia deve ser realizada com cautela. Os supostos óbices constitucionais ao monitoramento eletrônico cingem-se à vedação ao controle material das mensagens. A vigilância desenvolvida por meios de controle meramente formais não atinge a inviolabilidade tutelada pela Magna Carta e, portanto nesta modalidade não há que se falar em conflito de valores constitucionais.

Quanto ao controle material, diversas variáveis devem ser levadas em consideração.

Inicia-se perquirindo a natureza jurídica do correio eletrônico. A controvérsia quanto a este ponto é presente na doutrina. Sua caracterização como correspondência torna-se pressuposto essencial para a corrente que pugna pela inviolabilidade de seu conteúdo.

Relevante a consideração de Kildare Gonçalves Carvalho (2004, p. 390) que assevera: “Quanto à inviolabilidade de correspondência, embora não

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haja, quanto a ela, previsão expressa no texto constitucional permitindo seja interceptada, deve-se entender possa ser quebrada naqueles casos em que venha a ser utilizada como instrumento de práticas ilícitas”.

A perspectiva do citado constitucionalista encontra fulcro no princípio da proporcionalidade. Uma norma constitucional não deve prevalecer de forma abstrata e apriorística em relação à outra. Constatada a antinomia, esta se resolve através do princípio da proporcionalidade. Contudo, a caracterização do correio eletrônico como correspondência não abrange o cerne da questão, podendo até mesmo ser considerada inócua. Mesmo que se repute o correio eletrônico como correspondência, os limites de sua proteção estão determinados na lei 9296/96, que regulamentou o aludido dispositivo constitucional.

O artigo 10 da mencionada lei ordinária estatui: “Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas, de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei”. A exegese da norma aponta a permissividade do monitoramento desde que haja autorização judicial ou se esteja munido por uma finalidade legalmente tutelada. Neste ponto urge o reforço dos inúmeros fundamentos legais apresentados para o monitoramento eletrônico, atribuindo legitimidade ao seu implemento, desde que adstrito aos objetivos apresentados.

O Tribunal Superior do Trabalho manifestou-se quanto ao tema no RR 613, publicado em 10/06/2005. Esta importante decisão reconhece a legalidade do monitoramento do e-mail corporativo. Pertinente a vinculação do monitoramento ao controle realizado “de forma moderada, generalizada e impessoal”. O desvio destes objetivos configura abuso de direito (art. 187 do Código Civil), viabilizando inclusive a reparação civil.

A garantia da inviolabilidade das comunicações nos termos supra descritos funda-se na proteção ao direito à privacidade, como já assentado. Portanto, sua correta definição torna-se imprescindível para a solução do conflito posto. Costumeiramente, aborda-se o tema da privacidade pela delimitação de sua abrangência, deslocando-se do ponto essencial da questão.

Mesmo a doutrina que procede à perspectiva do direito adstrita a sua amplitude reconhece a relativização de seu conteúdo, moldado segundo algumas especificidades. Alexandre de Morais (2000, p. 74) estabelece os parâmetros para tal restrição:

“Essa necessidade de interpretação mais restrita, porém, não afasta a proteção constitucional contra ofensas desarrazoadas, desproporcionais e, principalmente, sem qualquer nexo causal com a atividade profissional realizada”.

199Revista Jurídica FACULDADES COC

Da mesma forma, pondera José Afonso da Silva (1996, p. 204) ao distinguir os aspectos da vida da pessoa: “A vida exterior, que envolve a pessoa nas relações sociais e nas atividades públicas, pode ser objeto das pesquisas e das divulgações de terceiros, porque é pública”.

O conteúdo abrangido pela privacidade é de relevante determinação, entretanto, a limitação a este aspecto foge do núcleo do problema. A privacidade consiste em essência não ao seu conteúdo em si. Refere-se ao poder atribuído ao seu titular de autodeterminar a exteriorização do conteúdo que abrange o próprio conceito de privacidade. O conceito colacionado por José Afonso da Silva (1996, p. 202) é de precisão irreparável, caracterizando a privacidade como “o conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.

Nestes termos, não se cogita de violação à privacidade pelo simples fato de ocorrer o conhecimento de terceiro quanto a elemento intrínseco à esfera íntima do indivíduo. A ofensa à privacidade exige o cerceamento na faculdade do titular em determinar os destinatários de tais informações.

Esta noção aplicada à problemática do monitoramento eletrônico produz efeitos imediatos em sua resolução. Fixa-se a premissa que o e-mail corporativo, como ferramenta de trabalho que é, restringe-se à transmissão de mensagens pertinentes à atividade laboral desenvolvida. Admitido este pressuposto, tem-se que o monitoramento eletrônico é legítimo, pois seu objeto de incidência não alcança conteúdo da esfera privativa do empregado.

Assim, o ambiente proporcionado pelo e-mail corporativo é desprovido de qualquer expectativa de privacidade. O envio de mensagens com conteúdo íntimo não caracteriza violação da privacidade devido a cognição do empregado quanto a natureza do meio de comunicação utilizado. Não ocorreu neste caso subtração ao poder de autodeterminação do preposto como já ressaltado, restando incólume a sua privacidade.

Não obstante a predisposição do e-mail corporativo como ferramenta de trabalho e as já expostas conseqüências advindas de tal imputação, a conduta das partes é elemento idôneo à modificação destas características. O contrato de trabalho demanda que a atuação de seus figurantes seja pautada pela boa-fé. O dever de informação insere-se plenamente neste instituto.

A vedação expressa ao uso particular do e-mail corporativo e a previsão do monitoramento eletrônico de tal meio de comunicação, disposta no contrato de trabalho ou em termo aditivo (art. 444 da CLT), não somente qualifica a conduta do empregador como fiel, mas também torna inequívoco comportamento esperado do empregado.

É notório que o direito do trabalho (material e processual) possui como um de seus princípios regentes o da proteção. A inércia do empregador acrescido

200 Revista Jurídica FACULDADES COC

de demais variáveis relevantes pode caracterizar sua anuência tácita quanto ao uso particular do correio eletrônico, sendo esta perspectiva reforçada pelo princípio acima apresentado.

A repercussão do aludido aceite tácito modifica a própria natureza do correio eletrônico.

Admitida sua utilização para fins alheios à atividade laboral, tem-se criada a legítima expectativa do empregado quanto ao respeito de informações pertinentes à sua esfera íntima, suscitando a necessidade de um ambiente de privacidade. Como não há modo de se aferir aprioristicamente a natureza do conteúdo da mensagem, senão pela sua averiguação, o monitoramento eletrônico (material como já enfatizado) neste contexto deve ser reputado ilícito.

Em síntese, o usuário de e-mail privado detém expectativa de privacidade quanto a este meio de comunicação, ensejando assim a proteção do conteúdo das mensagens transmitidas. Já o e-mail corporativo, a princípio, poderia ser objeto de controle material desde que não caracterizada a aceitação tácita pelo empregador para fins distintos da atividade laboral.

Torna-se assim aconselhável que o empregador proíba o uso do correio eletrônico corporativo para fins diversos. Caso a política da empresa deseje permitir o uso privado, o caminho mais sensato seria a exigência de que as mensagens privadas sejam transmitidas por e-mail privado. Este posicionamento é facilmente realizado tendo em vista os inúmeros provedores que oferecem tal serviço gratuitamente na internet. De todo modo, optando o empregador a permitir seus prepostos a utilizarem o e-mail corporativo para fins privados, o monitoramento eletrônico somente tornase sustentável caso se estabeleça um horário rígido para a veiculação de tais mensagens. Neste lapso temporal facultado ao empregado, por consectário lógico, o monitoramento eletrônico é veemente proibido.

Quanto a qualificação das provas obtidas com o monitoramento, a licitude daquelas é determinada pela validade deste. Ou seja, o resultado de um monitoramento validamente realizado (nas hipóteses já devidamente arroladas) pode ser perfeitamente utilizado para a instrução probatória em eventual lide.

A despeito de se viabilizar as provas obtidas pelo monitoramento nas hipóteses acima delineadas, o uso de e-mail corporativo para fins privados não acarreta por si só a possibilidade de rescisão do contrato por justa causa. A jurisprudência tem exigido a demonstração de prejuízo ao desenvolvimento normal do trabalho ou idoneidade dos atos para causarem danos à empresa. As questões envolvendo o monitoramento eletrônico ainda podem ser consideradas incipientes. Somado a este fato, tem-se o envolvimento de um complexo de valores de grande apreço no bojo constitucional, o que acaba

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por acirrar a controvérsia. Inúmeras decisões judiciárias conflitantes foram prolatadas, cenário este felizmente tende a ser sanado com a já mencionada decisão do Tribunal Superior do Trabalho quanto ao tema.

Espera-se a observância deste precedente para que se estabeleça maior segurança jurídica nas relações de trabalho.

1. A título de exemplo menciona-se a seguinte situação: um indivíduo que procede a um diálogo com seu amigo, abordando aspectos de sua intimidade, em um elevador lotado de passageiros não tem sua privacidade violada. Apesar destas informações alcançarem terceiros, este fato ocorreu sem mácula à sua faculdade de autodeterminação.

2. “Justa causa. Email não caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede ao um único email enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa” (TRT-SP n. 2000034734, rel. Fernando Antônio Sampaio da Silva).

LIGEIRAS OBSERVAÇÕES SOBRE A IM(P) UNIDADE PENAL NOS CRIMES CONTRA

O PATRIMÔNIO

CLÁUDIO DA SILVA LEIRIA1

“Na história da sociedade há um ponto de fadiga e enfraquecimento doentios em que ela até toma partido pelo que a prejudica, pelo criminoso, e o faz a sério e honestamente” (F. Nietsche, Para além do bem e do mal).

1. INTRODUÇÃO

Prescreve o artigo 181 do Código Penal que é isento de pena quem comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal (inciso I) e de ascendentes ou descendentes, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural (inciso II).

Já nos incisos I, II e III do artigo 182 do Diploma Repressivo é previsto que somente se procede mediante representação se os crimes contra o patrimônio forem praticados em detrimento de cônjuge desquitado ou judicialmente separado; de irmão, legítimo e ilegítimo; de tio ou sobrinho, com quem o agente coabita.

Não se aplica o disposto nos dois artigos acima citados se o crime é de roubo ou extorsão, ou, em geral, quando haja o emprego de grave ameaça ou violência à pessoa; ao estranho que participa do crime; se o crime é praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos, conforme dispõe os incisos I, II e III do artigo 183 do Código Penal.

No presente artigo, pretende-se demonstrar que a norma veiculada no artigo 181, inciso I, do Código Penal deve ser relativizada, pois, dentre outros motivos, sua ‘interpretação tradicional’ (literal) fere o princípio constitucional da isonomia, além de servir de fomento à impunidade.

1 Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul.

ResumenNo presente artigo, defende-se que as imunidades previstas no artigo 181 do Código Penal não são absolutas, mas dependem de representação, sob pena de entendimento contrário ferir o princípio da igualdade de todos perante a lei e os direitos fundamentais à propriedade e segurança.

In the present article, it is defended that the immunities foreseen in article 181 of the Criminal Code are not absolute, but depend on representation, duly warned contrary agreement to wound the principle of the equality of all before the basic law and rights to the property and security.

204 Revista Jurídica FACULDADES COC

2. DA NECESSIDADE DE NOVA INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 181 DO CÓDIGO PENAL

Refere NUCCI que ‘imunidade é um privilégio de natureza pessoal, desfrutado por alguém em razão do cargo ou da função exercida, bem como por conta de alguma condição ou circunstância de caráter pessoal. No âmbito penal, trata-se (art. 181) de uma escusa absolutória, condição negativa de punibilidade ou causa pessoal de exclusão da pena. Assim, por razões de política criminal, levando em conta motivos de ordem utilitária e baseando-se nas circunstâncias de existirem laços familiares ou afetivos entre os envolvidos, o legislador houve por bem afastar a punibilidade de determinadas pessoas”2.

O citado autor prossegue afirmando que ‘Ensina Nélson Hungria que a razão dessa imunidade nasceu, no direito romano, fundado na co-propriedade familiar. Posteriormente, vieram outros argumentos: a) evitar a cizânia entre os membros da família; b) proteger a intimidade familiar; c) não dar cabo do prestígio auferido pela família. Um furto, por exemplo, ocorrido no seio familiar deve ser absorvido pelos próprios cônjuges ou parentes, afastando-se escândalos lesivos à sua honorabilidade (Comentários ao Código Penal, v. 7, p. 324).

No entanto, o legislador não poderia, pura e simplesmente, face ao princípio de que todos são iguais perante à lei, blindar contra a ação persecutória do Estado o agente que pratica crimes patrimoniais em prejuízo de seus ascendentes, descendentes e cônjuges.

Está-se, vez mais, diante do problema de colisão de direitos fundamentais. De um lado, o direito fundamental à segurança e à propriedade de que a vítima é titular; de outro, o direito do réu a uma imunidade penal, qual seja, não ver-se processado pelo Estado por uma conduta ilícita.

2.1. Colisão de direitos fundamentais

É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os direitos fundamentais não são intocáveis e absolutos. Como o homem vive em sociedade, estando em contato permanente com seu semelhante - que também goza de direitos e garantias -, natural que surjam situações de conflitos e choques entre esses direitos.

Tem-se colisão ou conflito de direitos sempre que a Constituição proteja, ao mesmo tempo, dois valores ou bens que estejam em contradição em um caso concreto.

Conforme CANOTILHO, uma colisão autêntica de direito fundamentais ocorre quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular

2 Código Penal Comentado, 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, P. 731.

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colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.E no âmbito penal, não se pode ter visão monocular do Direito. Os

interesses da sociedade também devem ser tutelados. Importante relembrar a lição do Supremo Tribunal Federal: “A lei deve ser interpretada não somente à vista dos legítimos interesses do réu, mas dos altos interesses da sociedade, baseados na tranqüilidade e segurança social3”.

O princípio da proporcionalidade tem dupla face: se de um lado há a proibição de excesso, para conter o arbítrio do Estado, de outro existe a proibição da proteção deficiente aos que têm seus direitos fundamentais violados.

2.2. Do direito fundamental à segurança e à propriedade

Toda pessoa que se encontre no território do país tem direito à segurança e à propriedade, cabendo ao poder público promover este direito, garantindo à população o direito de ir e vir, de se estabelecer com tranqüilidade, de ter sua intimidade preservada, sem que seu patrimônio, integridade física, moral ou psicológica sejam colocados em risco.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948, no seu artigo 3, prescreve que “todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” No art. 8 há a previsão de que todo homem tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhes sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei. E, por fim, prescreve o artigo 17, itens 1e 2, da referida Declaração:

“I - Todo homem tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros.

“II - Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.”

A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o famoso ‘Pacto de São José da Costa Rica’), no seu artigo 7º assegura que ‘toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais’.

A Constituição Brasileira garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade - art. 5º, ‘caput’.

É absolutamente necessário que os operadores do Direito passem a enxergar que não somente o indivíduo tem direitos, mas que a coletividade

3 RHC 63.673-0-SP, DJU 20.06.1986, p. 10.929.

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pacata e ordeira precisa de ordem e segurança para levar em paz sua vida. O contrato social precisa ser protegido. O Estado tem sua razão maior de ser na proteção do todo, e não somente da da parte. Invoca-se ensinamento de SAMPAIO DÓRIA (grifos não constantes do original):

Em verdade, o Estado, que o homem organiza, se destina ao bem do homem, e não à sua desgraça. Ninguém constrói, por exemplo, uma estrada de ferro para ser esmagado por um desastre. Nem mesmo para servi-la. Mas para se servir dela. Da mesma forma, não é para ser anulado que o homem organiza o Estado. As sociedades se formam em função dos indivíduos, e para eles. E, nas sociedades, a organização política, ou Estado, surge, mas é para garantir, igualmente, a cada um a liberdade, isto é, fazer, ou deixar de fazer, o que generalizado, não destrua, nem prejudique a vida social. Nunca para suprimir aos homens a dignidade da existência “4.

A solução que se alvitra para o conflito de direitos fundamentais é fazer interpretação condicionando à representação as situações previstas nos incisos do art. 181 do Código Penal.

Muitos são os motivos pelos quais se deve considerar condicionada à representação a ação penal nos crimes contra o patrimônio em que são vítimas as pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal.

Em primeiro lugar, face ao princípio da igualdade, o patrimônio dessas vítimas não é menos digno de proteção do que o das demais pessoas.

A Constituição brasileira, no ‘caput’ do art. 5º, prescreve que todos são iguais perante a lei, garantindo-se a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade e à propriedade.

A interpretação literal do art. 181 do CP gera teratóide: cidadãos de segunda clas- se, cujo patrimônio não teria a proteção penal. E lembre-se que o patrimônio é protegido pela Constituição e pelo Pacto de São José da Costa Rica.

A igualdade perante a lei penal exige que a mesma lei penal, com as sanções correspondentes, seja aplicada a todos quantos pratiquem o fato típico nela descrito.

Ao tratar sobre o tema ‘inconstitucionalidade’, JOSÉ AFONSO DA SILVA ensina que

A outra forma de inconstitucionalidade revela-se em se

4 DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional, 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo: Max Limonad, 1962, p. 244.

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impor obrigação, dever, ônus, sanção ou qualquer sacrifício a pessoas ou grupos de pessoas, discriminando-as em face de outros na mesma situação que, assim, permanecem em condições mais favoráveis. O ato é inconstitucional por fazer discriminação não autorizada entre pessoas em situação de igualdade5 “.

Se a Constituição Federal de um lado impõe limites ao legislador ordinário na escolha dos bens jurídicos a serem tutelados pelo direito penal, de outro impõe a obrigação de incriminar a ofensa de certos bens jurídicos e determina a exclusão de certos benefícios.

Ao dispor que ‘a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais’ (art. 5º, inciso XLI), a Constituição está protegendo a propriedade (direito fundamental), e via de conseqüência, impedindo que de forma absoluta o legislador penal prescreva imunidades no que diz respeito aos crime contra o patrimônio praticados pelas pessoas referidas no artigo 181 do Código Penal. Configura-se um direito constitucional a não ser discriminado em função dos direitos fundamentais.

Não pode o legislador infraconstitucional simplesmente negar proteção penal a bens jurídicos de primazia e fundamentalidade, como a propriedade, face a ataques repulsivos, como os delitos de furto, estelionato, apropriação indébita, abuso de incapazes, etc.

Na esteira do ensinamento de LUCIANO FELDENS, “Passamos a perceber, pois, uma situação de intrínseca conexão entre o dever de prestação normativa em matéria penal e o tema da prospecção objetiva dos direitos fundamentais, haja vista a exigência que se impõe ao Estado de protegê-los....Por essa razão, e tal como reconhecido por pe nalistas de primeira grandeza, a problematização em torno dos mandados constitucionais de criminalização deve partir de bases normativo-constitucionalistas6.”

Em segundo, a meta optata do artigo 181 do Código Penal é acobertar a intimidade familiar, protegê-la de escândalos perante terceiros. No entanto, há outras formas de se fazer isso e ainda assim dar proteção ao patrimônio das vítimas.

Isso poderia ser facilmente obtido determinando-se o segredo de justiça para o inquérito policial ou processo judicial criminal envolvendo as partes elencadas no art. 181 do CP. Preservada ficaria a honorabilidade da família (enquanto instituição) e de seus membros (no particular).

Em terceiro, em muitas situações, a vítima não tem qualquer sentimento

5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores, p. 208.6 A Constituição Penal - A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 73.

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de amor ou afeto pelo agente que lhe causou um desfalque patrimonial. Nem é preciso mencionar que são inúmeros os casamentos ‘de ‘fachada’, em que os cônjuges não nutrem o menor sentimento de amor um pelo outro, ou de pais que até odeiam seus filhos.

Nesses casos, que motivo racional haveria para tornar os autores dos ilícitos imunes a uma persecução penal?

Frise-se ainda que a família modificou-se radicalmente. Novos padrões de comportamento são adotados. Na década de 40, quando o Código Penal entrou em vigor, o Brasil ainda era uma sociedade agrária e patriarcal. A religião, especialmente a católica, era de enorme influência. Os sentimentos de unidade e de honra de uma família eram bem mais acentuados do que nos tempos atuais. A matriarca apenas cuidava dos filhos e dos afazeres domésticos. O dinheiro da família era guardado em cofres ou debaixo do colchão. O divórcio sequer existia.

Importante destacar que na seara infracional, o Tribunal de Justiça de São Paulo improveu recurso de adolescente contra a sentença que lhe aplicou a medida socioeducativa de internação porque subtraiu vários objetos de seus pais com o intuito de comprar substâncias entorpecentes. No julgamento, os Desembargadores entenderam que os atos infracionais praticados foram mais danosos ao grupo familiar do que a preservação da instituição familiar.

Em quarto, como conseqüência do ponto anterior, mencione-se que a vítima pode ter interesse em futura ação indenizatória, na esteira do que dispõe o art. 63 do CPP 7, para o que será de enorme utilidade o trânsito em julgado de uma sentença condenatória na órbita criminal.

Em quinto, a imunidade prevista no artigo 181 do CP quebra a coerência interna do sistema jurídico. Ora, um crime no seio familiar seria sempre grave, independentemente do bem jurídico afetado. Então, qual a lógica de permitir a imunidade para os crimes patrimoniais quando ela não se aplica a delitos que afetam outros bens jurídicos? Por que conceder imunidade para delitos com maior quantitativo de pena e negá-la para delitos menos graves?

É de bom alvitre salientar que o Código Penal capitula como agravante o crime cometido contra ascendente, descendente, irmão ou cônjuge, nos termos do seu artigo 61, inciso II, ‘e’. E assim sendo, os delitos não-patrimoniais cometidos contra as pessoas referidas no art. 181 do CP também não prejudicariam o ‘bom nome da família? Não semeariam a cizânia?

Não se pode olvidar, também, que a imunidade penal prevista no artigo 181 do CP é fator criminógeno, pois sabendo que não poderá haver a persecução penal pelo Estado, o indivíduo não se intimidará em realizar a

7 Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.

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conduta ilícita.Para a pobre vítima, restaria apenas uma ação indenizatória contra

o agente. Mas qualquer um que tenha os pés na realidade sabe a crise que atravessa a execução: muitos bens não são penhoráveis, o agente via de regra não terá bens para pagar o devido, o escamoteamento de bens é de fácil realização (venda do bem, colocação do bem em nome de terceiros, ocultamento de bens, etc).

Deve-se, sempre, portanto, deixar ao crivo do familiar ou cônjuge lesado a decisão de possibilitar a deflagração da ação penal. É a única forma de manter-se o equilíbrio entre os direitos da vítima e do acusado.

O Parlamento parece estar atento para a questão. Visando corrigir a absurda situação consagrada pelo art. 181 do Código Penal, tramita no Congresso Nacional o Projeto de Lei n.º 3.764/2004, de autoria do Deputado Coronel Alves, prevendo a revogação desse artigo e dando nova redação ao artigo 182, nos seguintes termos:

Art. 1º. Esta lei revoga o art. 181 e dá nova redação ao art. 182 do Código Penal Brasileiro.

Art. 2º. Fica revogado o artigo 181 do Decreto-lei n.º 2848, de 7 de dezembro de 1940.

Art. 3º. O art. 182 do Decreto-lei 2848, de 7 de dezembro de 1940, passa a vigorar com a seguinte redação:

Art. 182....................................................................

I - do cônjuge, na constância da sociedade conjugal ou judicialmente separado;

II - de ascendente, descendente e colateral até o 3º grau.

Na justificativa do Projeto de lei, o parlamentar argumenta:

Para melhor adequar o texto à realidade brasileira e não beneficiar o parente que praticou a infração contra a própria família, entendemos que a melhor hipótese seria a revogação do art. 181, pois traz a isenção de pena, quando o mais correto deve ser a representação, deixando para a família a decisão da responsabilidade penal ou não.

Assim, este projeto visa aperfeiçoar o texto e ampliar a ação familiar na

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8 Art. 5o Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. (...) Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: I , II, III - (omissis) IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;9 A Lei Maria da Penha na justiça, RT, pp. 88-89.

correção dos atos delituosos, dentro do espírito das penas alternativas.”

2.3. Lei Maria da Penha e imunidades penais

Com o advento da Lei Maria da Penha, tende a se formar um consenso doutrinário de que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não teriam mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher, nos termos do artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV, da Lei n.º 11.340/06)8. 8

Nesse diapasão é o entendimento da douta Desembargadora gaúcha Maria Berenice Dias, verbis:

A partir da vigência da Lei Maria da Penha, o varão que ‘subtrair’ objetos da sua mulher pratica violência patrimonial (art. 7º., IV). Diante da nova definição de violência doméstica, que compreende a violência patrimonial, quando a vítima é mulher e mantém com o autor da infração vínculo de natureza familiar, não se aplicam as imunidades absoluta ou relativa dos arts. 181 e 182 do Código Penal. Não mais chancelando o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação, sujeitando-se o réu ao agravamento da pena (CP, art. 61, II, f)”9.

A interpretação acima é a única que se afina com o espírito da lei de garantir a proteção à mulher. Entender que as imunidades do artigo 181 do Código Penal prevalecem sobre o disposto no artigo 7º, inciso IV, da Lei Maria da Penha, seria tornar o último dispositivo mero ornamento legal e propiciar a continuidade das subtrações patrimoniais contra a mulher nas esferas familiar e residencial.

No mínimo, há de se entender pela derrogação dos artigos 181 e 182 do

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Código Penal face ao disposto no artigo 2º, 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil - a lei posterior revoga a anterior quando com ela incompatível.

3. A OBJEÇÃO IDEOLÓGICA

Com certeza, as posições externadas no presente artigo atrairão os protestos dos autodesignados ‘penalistas modernos’, que, escandalizados, focarão suas críticas no fato de que direitos dos acusados, expressos legislativamente, não poderiam ser suprimidos na ‘via interpretativa’.

Na dogmática ‘garantista’, o Direito Penal existe tão-somente para a proteção daquele que seus adeptos denominam ‘o mais débil’ (o acusado) diante do Leviatã (O Estado).

Nessa visão estreita e unilateral do fenômeno jurídico, o Direito Penal tem como única finalidade proteger o acusado da fúria punitiva do Estado.

Só não percebeu o ‘garantista’, ‘neto retardatário do Iluminismo’, que na realidade brasileira o débil na relação penal é o Estado (depauperado, sem condições de equipar sua polícia e o Poder Judiciário, ou dar vida digna aos seus cidadãos), enquanto o Leviatã é o criminoso, cada vez mais ousado, organizado e bem armado. Isso é mais uma prova do equívoco que é transplantar-se doutrinas alienígenas para aplicação em solo pátrio, sem qualquer observância das realidades locais.

Na linha de pensamento ‘garantista’, conforme as necessidades de proteção do ‘mais débil’, ora a legalidade se flexibiliza (concedendo-se direitos sem previsão legal), ora torna-se uma muralha intransponível (restringindo-se interpretações desfavoráveis ao acusado).

Essa cegueira ideológica, no entanto, não se harmoniza com a Constituição brasileira, que deve ser a bússola na interpretação do Direito. Pode-se dizer que se extrai do sistema constitucional o mandamento de criminalizar os delitos patrimoniais praticados pelos agentes elencados no artigo 181 do Código Penal.

O ‘garantista’ constrói sobre areia movediça, ao interpretar o Código Penal e a Constituição com olho de Polifemo: ‘só o delinqüente tem direitos’.

Ora, análise ponderada da Constituição revela, como não poderia deixar de ser, que ela faz o justo equilíbrio entre a proteção dos direitos individuais do acusado e a defesa da sociedade (individual x coletivo). Pode-se dizer com todas as letras que a Constituição Federal não acolheu o comando normativo estampado no artigo 181 do CP.

A não ser assim, o Direito Penal chancelaria situações teratológicas e afrontosas aos mais elementares sentimentos de justiça, como, por exemplo, não punir o agente que lesa patrimonialmente a mãe com 59 anos de idade, cega e analfabeta; ou então, isentar de pena o agente relacionado no art. 181 do

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CP pela prática do grave delito de abuso de incapaz débil mental.Como já referido neste texto, se de um lado o Estado não pode usar

de arbítrio contra o cidadão, excedendo-se no rigor punitivo (proibição de excesso), também não pode pecar pela proteção deficiente à coletividade na seara penal.

E é justamente a tarefa do aplicador do direito encontrar o ponto de equilíbrio entre direitos do acusado e os direitos da sociedade, não permitindo o aniquilamento de uma espécie por outra. Não existem ‘modelos’ de interpretação pré-definidos, sujeitando-se o intérprete, também, às variáveis sociais.

No Brasil, infelizmente, os operadores do Direito que se intitulam ‘garantistas’ (termo que usurparam) cingem-se a criar doutrinas pró-delinqüentes, esquecendo que as vítimas também têm direitos, o que faz relembrar as agudas palavras de VOLNEY CORRÊA JÙNIOR10:

Todos os séculos registram surtos espasmódicos de contracultura e anticivilização. Neste fim de século, a revivescência cínica em voga é a bandidolatria. Cegos à dramática situação da população atormentada por assaltantes e surdos aos gemidos das vítimas, insensatos há que se propõem a identificar no ladrão-assaltante uma auréola robin-hoodiana: ele, a seu modo e em última instância, estaria a promover redistribuição de renda...Seria cômico, se não fosse trágico.

Humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a faxineira e para a lavadeira (que não delinqüem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinqüem); para o metroviário e para o bancário (que não delinqüem); para o rurícola, cujo único crime é suplicar um pedaço de terra; para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinqüem); para todos quantos se vêem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal, afligem-se em corredores de hospitais deficientes (e não delinqüem, não delinqüem, não delinqüem, porque mansos de espírito, puros, dotados de boa índole).

“Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, seqüestram, matam e roubam.”

10 Crime e Castigo - Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002, p. 90.

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4. BREVES CONCLUSÕES

1. A imunidade prevista no artigo 181 do Código Penal, tal como posta, é inconstitucional, pois: a) fere o princípio da igualdade, já que o patrimônio da vítima naquelas hipóteses é tão digno de proteção quanto o de qualquer cidadão; b) a proteção à intimidade familiar, buscada pelo instituto, pode ser alcançada por outros meios, tal como a decretação de sigilo no procedimento investigatório; c) muitas vezes não há vínculos afetivos a proteger entre autor e vítima; d) a vítima pode ter interesse na condenação do culpado para exercer a ação ex delicto; e) há uma quebra de coerência interna do sistema penal, já que a imunidade não é aplicada para outros delitos cometidos pelos agentes relacionados no art. 181 do CP, inclusive para os com menor quantitativo de pena.

2. Ainda, a imunidade positivada no artigo 181 do Código Penal estimula a impunidade, pois sabendo de antemão que não poderá ser perseguido penalmente, o simples temor de sofrer uma ação indenizatória, de difícil execução posterior, não intimidará o agente.

3. Contra as pessoas elencadas no artigo 181 do CP pode haver a deflagração de ação penal, mas condicionada à representação da vítima.

4. A Lei 11.340/06 (“Maria da Penha”) derrogou tacitamente o artigo 181 do Código Penal, fazendo com que as imunidades penais entre cônjuges e parentes não tenham mais aplicabilidade quando se tratar de violência patrimonial contra a mulher (artigo 5º, incisos I a III, c/c o artigo 7º, inciso IV).

5. O Direito Penal não pode ser visto somente sob a ótica dos direitos do acusado (visão monocular), devendo a interpretação da lei levar em consideração os interesses da vítima, pois o princípio da proporcionalidade é uma via dupla: de um lado, contém o arbítrio do Estado, de outro proíbe proteção deficiente ao lesado em seus direitos fundamentais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça . Editora RT, 2007.

DÓRIA, A. Sampaio. Direito Constitucional. 5ª edição, vol. I, Tomo I, São Paulo: Max Limonad, 1962.

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FELDENS, Luciano. A Constituição Penal - A dupla face da proporcionalidade no controle das leis penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005.

MORAES JÚNIOR, Volney Corrêa Leite de. Crime e Castigo - Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002.NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado . 5ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2005.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo . 9ª edição, 4ª tiragem. São Paulo: Malheiros Editores.

NORMA JURÍDICA SECUNDÁRIA, NORMA PROCESSUAL E NORMA

PROCESSUAL TRIBUTÁRIAALAN MARTINS1

INTRODUÇÃO

Unidade mínima componente do sistema de direito positivo, a norma jurídica constitui objeto de infindáveis estudos da Ciência do Direito. Investigada sob o concurso da lógica jurídica, revela um ciclo dinâmico de positivação normativa. Um trânsito analítico panorâmico sobre o mesmo, pode partir da enunciação legislativa de uma norma geral e abstrata de cunho dispositivo, cujo descumprimento desencadeia a aplicação de outra norma geral e abstrata também gestada legislativamente, porém veiculadora de uma sanção. Deste compartimento normativo, dito primário, devem-se extrair os elementos descritivos componentes do antecedente de um comando

ResumenEste é um estudo sobre normas jurídicas processuais, cujos propósitos são três. O primeiro é analisar a norma jurídica completa e demonstrar que a norma secundária possui a natureza de norma processual. Para atingir o referido objetivo, é necessário estabelecer o antecedente e o conseqüente da norma secundária, tarefa que pressupõe serem fixados conceitos normativos e de teoria geral do processo. Também é importante entender como se dá o ciclo de positivação jurídica no âmbito de um processo judicial. O segundo propósito é chegar a um conceito de norma jurídica processual adequado ao contexto jurídico em que a mesma é aplicada. Por fim, o terceiro propósito deste trabalho é investigar sobre a existência de normas processuais tributárias, esforço científico que partirá de premissas estabelecidas na consecução dos dois primeiros propósitos e também da existência de lides e ações tributárias.

This is a study about processual juridical norms, which has three purposes. The first is to analyse the complete juridical norm and to demonstrate that the secondary norm has nature of processual norm. This objective can be reached if the antecedent and the consequent of the secondary norm were established, task that presuppose the fixation of normative and general theory of process concepts. It’s also important to understand the circle of juridical positivation in the ambit of a judicial process. The second purpose is to get a concept of processual juridical norm adequate to the juridical context in that it’s applied. At last, this work has the third purpose to investigate about the existence of tributary processual norms, scientific effort that’ll depart from premises established in the consecution of the two first purposes and also from the existence of tributary litigation and lawsuits.

1 Mestre em Direito Obrigacional Público e Privado pela Universidade Estadual Paulista - UNESP; Professor de Direito Tributário e Direito Processual Civil em cursos de Pós-Graduação, Especialização e Aperfeiçoamento na Universidade Estadual Paulista - UNESP, Instituto Nacional de Pós-Graduação - INPG e Universidade de Franca - UNIFRAN; Agente Fiscal de Rendas/SP - Assistente Fiscal na Delegacia Regional Tributária de Ribeirão Preto - Autor e colaborador da IOB - Thomson.

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secundário, cujo conseqüente prescreve uma atuação do Estado-Juiz.Trata-se o presente de um estudo sobre normas jurídicas processuais.

O primeiro desiderato é, justamente, demonstrar que a norma prescritiva de uma atuação do Estado-Juiz (norma secundária) constitui, de fato, uma norma processual, bem como que a sua aplicação verifica-se no bojo de uma relação jurídica triádica regida por outras normas processuais.

Satisfeito o primeiro propósito, pretende-se, como segundo objetivo do trabalho, estabelecer um conceito de norma jurídica processual que seja afeto ao contexto do ciclo de positivação em que normas de tal natureza são aplicadas. Para tanto, serão necessárias ágeis incursões por conceitos fundamentais de teoria geral do processo.

Não obstante a dualidade processual do sistema jurídico brasileiro (processo penal e processo civil), adotando-se como premissas maiores aquilo que sedimentado na consecução dos dois primeiros propósitos, e como premissa menor a demonstração de que existem lides e ações de caráter eminentemente tributário, o último propósito é demonstrar a existência de normas processuais tributárias.

1. DIREITO POSITIVO E CIÊNCIA JURÍDICA

Segundo a visão jurídica tradicional, direito positivo é o conjunto de normas jurídicas válidas em determinado local e em determinada época. Sem deixar de destacar o consagrado conceito, mas denotando sua visão do direito positivo como disciplina do comportamento humano estabelecida em formulação lingüística, Paulo de Barros Carvalho afirma que “...o direito positivo aparece como um plexo de preposições que se destinam a regular a conduta das pessoas, nas relações inter-humanidade”.2

A partir de um vínculo ciência - objeto, o mesmo jurista concebe ciência jurídica como aquela à qual “...cabe descrever esse enredo normativo...” (o direito positivo) “...ordenando-o, declarando sua hierarquia, exibindo suas formas lógicas que governam o entrelaçamento das várias unidades do sistema e oferecendo seus conteúdos de significação”.3

Aproximação inicial dos dois conceitos revela que Carvalho se vale da Semiótica para trazer um discurso qualificado à ciência jurídica, o que tem sido de grande valia para desqualificar algumas teses fundadas em argumentos de autoridade que predominaram nas origens do Direito Tributário brasileiro. Para Eurico de Santi, a “... aplicação da semiótica ao estudo do direito potencializa o discurso da Ciência do Direito, instrumentaliza o jurista para

2 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 17ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 2.3 Ibidem, p. 2.

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descrever com maior precisão e riqueza as realidades imanentes ao fenômeno lingüístico do direito”4. Logo, o objetivo principal é a busca de uma linguagem jurídica lógica, precisa e fundamentada.

Nessa mesma linha, Tárek Moussallem, valendo-se de terminologia empregada em textos de Lourival Vilanova, expõe que:

Utilizando-nos dos léxicos empregados por Vilanova temos de plano dois níveis lingüísticos: 1) a linguagem-objeto (L0), que seria a linguagem prescritiva em que se manifesta o direito positivo e; 2) a metalinguagem (L1), que se traduz na linguagem descritiva do cientista do direito. Esta (L1) versa sobre aquela (L0) (g.n.).5

Portanto, a linguagem prescritiva do direito positivo estabelece regras de comportamento denominadas normas jurídicas, ao passo que o discurso da Ciência do Direito caracteriza-se por uma sobrelinguagem descritiva das normas jurídicas.

2. A NORMA JURÍDICA COMPLETA

2.1. Aspectos conceituais

É possível conceituar norma jurídica em poucos termos, sem que haja confusão com normas de outras naturezas, como sendo o juízo hipotético-condicional de conteúdo deôntico veiculado nos textos de lei.

Observe-se que o termo “lei” da expressão “texto de lei” é tomado no sentido amplo de “veículo normativo” ou, na acepção do artigo 96 do Código Tributário Nacional, de “legislação tributária”. Pode corresponder a instrumentos introdutores de normas primários (leis ordinárias, complementares ou delegadas, medidas provisórias, decretos-legislativos, tratados e convenções internacionais etc) ou secundários (decretos regulamentares e normas complementares). O “juízo hipotético-condicional” diz respeito à estrutura lógica da norma jurídica, de cunho implicacional ( “se... então...deve-ser”), enquanto o termo “conteúdo” é utilizado no sentido semântico de significação do texto de lei, correspondente sempre a um comando imperativo. E por fim, “deôntico” diz respeito ao conseqüente do juízo implicacional da norma jurídica, isto é, o dever ser, modalizado em permitido, obrigatório ou proibido.

4 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Lançamento tributário . 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 32.5 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário . 1ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 42.

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A estrutura lógica de uma norma jurídica pode ser representada por D (p---q), onde: p representa uma proposição descritiva (antecedente normativo), q diz respeito a uma proposição prescritiva (conseqüente ou tese) e D é functor deôntico neutro incidente sobre a relação de implicação intraproposicional.

Uma vez desmembrada, a tese q pode ser representada por S’RS”, encontrandose as seguintes variáveis: S’ e S” são sujeitos e R outro functor dêontico, presente no interior da estrutura proposicional da tese. O functor R do interior da tese, embora também de natureza deôntica, distingue-se do que incide sobre toda a relação-de-implicação (extrínseco e neutro), pois constitui variável cujos valores substituintes são as constantes deônticas “permissão”, “proibição” e “obrigação”.

2.2. A norma jurídica completa: primária e secundária

Definida norma jurídica e identificada a sua estrutura lógica hipotética-condicional, um mergulho nos meandros lógicos do ciclo de positivação do direito traz à tona os conceitos fundamentais de norma primária e norma secundária, componentes da chamada norma jurídica completa.

Na obra “Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo”, lançada com prefácio de Geraldo Ataliba no ano de 1976, o discurso de Lourival Vilanova em torno da diferença entre norma primária e norma secundária era o seguinte:

Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: consta de duas partes, que se denominam norma primária e norma secundária. Naquela, estatuem-se as relações deônticas direitos/deveres, como conseqüência da verificação de pressupostos, fixados na proposição descritiva de situações fáticas ou situações já juridicamente qualificadas; nesta, preceituam-se as conseqüências sancionadoras, no pressuposto do não-cumprimento do estatuído da norma determinante da conduta.6

Uma leitura isolada do trecho citado, que inaugura o capítulo V da obra em foco, pode deixar a entender que Vilanova pensava em norma primária como um comando determinante de conduta e em norma secundária como sancionadora do descumprimento da primária. Entretanto, na seqüência do mesmo capítulo, já nas próximas linhas, apenas em aparente contradição, o mesmo jusfilósofo progride no seu raciocínio, afirmando que norma secundária é “...a que vem em conseqüência da inobservância da conduta indevida, justamente para sancionar seu inadimplemento (impôlo coativamente ou dar-

6 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo “. São Paulo: Noeses, 2005, p. 105.

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lhe substitutiva reparadora)” (g.n.).7

Sinaliza, assim, com a teoria que dominaria por completo suas obras posteriores. Ao falar em coação e reparação, implicitamente, Vilanova está tocando em provimentos impositivos de competência exclusiva do Estado-Juiz, antecipando a concepção que somente ficaria mais nítida em vários excertos da obra “Causalidade e relação no direito”, editada pela primeira vez em 1985, entre eles os seguintes:

O esquema da norma jurídica toma a forma ‘deve ser que se H, então C’, ou ‘D (H --- C). Abrangendo a norma primária e a norma secundária, temos ‘D [(H --- C) v (não - C --- E )]’ O esquema simplifica, inevitavelmente. A hipótese H pode simbolizar fato natural ou conduta, situação, ou relação empírica. A conseqüência C, em sua estrutura interna, é uma relação os sujeitos S’ e S” sobre uma coisa, prestação pessoal etc. A hipótese não-C é uma relação entre S’ e S” (e possíveis ‘terceiros’, S’” - uma estipulação em favor de terceiros, por exemplo), cuja não prestação do que devia fazer, ou omitir, o sujeito passivo (não-C marca unilateralmente o descumprimento), [e hipótese para uma conseqüência E, que simboliza, simplificadamente, quer uma sanção, quer uma coação (com interveniência do sujeito S””, ou seja, o juiz)...”8

Norma primária (oriunda de normas civis, comerciais, administrativas) e a norma secundária (oriunda de normas de direito processual objetivo) compõem a bimembridade da norma jurídica: a primária sem a secundária desjuridiciza-se; a secundária sem a primária reduz-se a instrumento, meio, sem fim material, adjetivo sem o suporte do substantivo.9

Ao estudar o conjunto da obra de Lourival Vilanova, a percepção de Paulo de Barros Carvalho sobre norma secundária é de que o antecedente descreve o ilícito, qual seja, o descumprimento da relação jurídica prevista no conseqüente da norma primária, e o conseqüente prescreve uma atuação do Poder Judiciário, cujo objetivo é a produção de uma terceira norma (sentença de mérito). 10

Não obstante o grande avanço no raciocínio, adiante neste artigo, no tópico dedicado ao estudo das normas processuais, o intento é apresentar uma

7 Ibidem, p. 105.8 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito . 4ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2.000, p. 95.9 Ibidem, p. 190.10 FUSO, Rafael Correia. Lógica jurídica e norma jurídica . Disponível em www.eknippel.adv.br/default.asp?id=77& ACT=5&content=153&mnu=77. Acesso em 14 de maio de 2.006.

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visão sobre o antecedente da norma secundária que se acredita constituir um passo à frente na compreensão do ciclo de positivação jurídica.

2.3. Norma secundária e autonomia processual

A norma primária e a norma secundária, de acordo com a concepção até aqui admitida, não estão simplesmente justapostas. Existe entre elas um relacionamento de ordem lógico-formal, em que a inobservância da proposição normativa primária implica, como conseqüência, na proposição normativa secundária.11

Não significa, porém, negar o princípio da “autonomia processual”. Uma relação processual instaura-se independentemente de ter ocorrido, de fato, o descumprimento da norma primária. Uma vez acionado, o Estado-Juiz julgará a ação: i) procedente, em caso de reconhecer o citado descumprimento; ii) improcedente, quando deixa de reconhecê-lo.

Deve-se a Oskar Von Bülow a teoria da autonomia do processo frente ao direito material. Publicou, em 1868, o clássico Teoria das exceções processuais e dos pressupostos processuais, obra na qual dá realce a duas relações distintas: a de direito material, que se discute no processo; e a de direito processual, que é o continente em que se coloca a discussão sobre aquela. A relação jurídico-processual se distinguiria da de direito material por três aspectos: pelos seus sujeitos (autor, réu e Estado-juiz), pelo objeto (prestação jurisdicional) e pelos seus pressupostos (pressupostos processuais).12

Portanto, em uma primeira análise, se a norma secundária depende da existência da norma primária, o mesmo não se pode dizer do processo, pois: i) a relação processual é triangular (autor, réu e Estado-Juiz); ii) a relação processual é regida por normas próprias, que estabelecem o conjunto de atos coordenados por meio dos quais se dá a tutela jurisdicional; iii) existe a possibilidade de o juiz julgar improcedente a ação, deixando de reconhecer o descumprimento da norma primária, ou até pronunciando-se pela inexistência ou inaplicabilidade da mesma para o caso concreto.

Eis a razão de ser enfatizada, na seqüência do presente estudo, uma concepção sobre o antecedente da norma secundária mais ligada aos conceitos fundamentais de teoria geral do processo.

11 VILANOVA. As estruturas... , p. 111.12 NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. Ca natureza jurídica do processo penal epistemologicamente adequada à concepção democrática do Estado de direito . Disponível em www.editora.univale.br/artigos%20direito/Adi son%20de%20Oliveira%20Nascimento.doc. Acesso em 14 de maio de 2.006.

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3. CONCEITOS FUNDAMENTAIS DE TEORIA GERAL DO PROCESSO

3.1. Lide ou litígio

Paulo Cesar Conrado defende que a relação processual pressupõe a afirmação da existência ou inexistência de uma relação jurídica de direito material (relação jurídica base), que serve de fundo para o nascimento do processo.13

Portanto, o processo tem por objeto um conflito de interesses, isto é, uma controvérsia sobre uma relação jurídica de direito material. À referida controvérsia, denomina-se lide ou litígio.

Sobre a lide, fez história a teoria de Francesco Carnelutti, a partir da qual se fixou o conceito de lide como conflito de interesses caracterizado por uma pretensão resistida. É o que se depreende da seguinte passagem de sua obra:

O germe da discórdia é o conflito de interesses. Quem tem fome tem interesse em dispor do pão com que se saciar; se são dois os que têm fome e o pão não é suficiente mais do que para um, surge o conflito entre eles...A lide é, pois, um desacordo, elemento essencial do desacordo ou um conflito de interesses: satisfazendo-se um interesse de uma pessoa, fica-se sem satisfazer o interesse da outra, e vice-versa. Sobre este elemento substancial implanta-se um elemento formal, que consiste em um comportamento correlativo dos dois interessados: um deles exige que se tolere o outro e a satisfação de seu interesse, e a essa exigência se dá o nome de pretensão; mas o outro, em vez de tolerá-lo, se opõe.14

Harmonizando-se a teoria normativa de Conrado e o tradicional conceito apresentado, verifica-se que: i) o conflito de interesses é sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica de direito material; ii) a pretensão resistida é justamente a exigência do titular da relação jurídica de direito material objeto do conflito em fazer prevalecê-la em detrimento de uma resistência do sujeito passivo.

Nesse diapasão, poder-se-ia definir lide como um conflito de interesses sobre a existência ou não de uma relação jurídica de direito material. Entretanto, tal conceito ainda não parece ser exato, vez que a sentença, muitas vezes, não consiste em um pronunciamento sobre a existência ou inexistência de uma relação jurídica, referindo-se mais ao cumprimento ou descumprimento de uma norma de direito material.

13 CONRADO. Introdução à teoria geral do processo civil. 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 85.14 CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo . 2ª. ed. Belo Horizonte: Líder, 2001, p. 25/26.

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Um estudo mais aprofundado do direito positivo, revela que a sentença de mérito é veículo introdutor de norma individual e concreta cujo antecedente descreve hipóteses de existência, inexistência, cumprimento ou descumprimento de relações jurídicas; e o conseqüente, que prescreve relações jurídicas, como bem identifica Rodrigo Dalla Pria,15 pode ter por modalizador deôntico, na procedência, uma proibição, permissão ou obrigação, e na improcedência, uma proibição.

Melhor, então, dizer que lide é um conflito de interesses caracterizado por uma pretensão resistida relacionada a uma relação jurídica material.

3.2. Jurisdição e tutela jurisdicional

Sobre jurisdição, é precisa a lição de Moacyr Amaral Santos no sentido de que se trata de “...uma das funções da soberania do Estado”, uma função do Poder Judiciário consistente “...no poder de atuar o direito objetivo, que o próprio Estado elaborou, compondo os conflitos de interesses”.16

Mais do que poder, jurisdição é dever do Estado, até porque, como preconiza o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito, isto é, nenhum conflito de interesses ficará aquém da atuação do Estado-juiz.17

É o Estado-juiz, pois, que tem a função de pronunciar-se acerca dos conflitos de interesses sobre existência, inexistência, cumprimento ou descumprimento de relações jurídicas de direito material (tutela jurisdicional), promovendo o que a dogmática chama de composição da lide. Assim, do ponto de vista teleológico, a jurisdição é atividade compositiva de conflitos de interesses.18

Como se vê, o exercício da jurisdição é prerrogativa do Estado, por intermédio do Poder Judiciário. Daí falar-se em Estado-juiz, o que autoriza a definir jurisdição como o poder-dever exercido pelo Estado-juiz de promover a composição dos conflitos de interesse, pronunciando-se sobre as relações jurídicas de direito material.

Por outro lado, não é demais ressalvar a possibilidade de uma conceituação mais ampla, já que a tutela jurisdicional não se restringe à declaração da existência ou inexistência do direito, sendo suas funções, ainda: i) mediante a norma individual e concreta veiculada na sentença: constituir

15 DALLA PRIA, Rodrigo. O direito ao processo. “In” CONRADO, Paulo Cesar (coord.). Processo tributário analítico. São Paulo: Dialética, 2003, p. 42.16 SANTOS, Moacyr Amaral. Primeiras linhas de direito processual civil. V. 1. 23ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 67.17 CONRADO. Op. cit., p. 98.18 CONRADO, Paulo César. Efetividade do processo, segurança jurídica e tutela jurisdicional diferenciada. Revista do Tribunal Regional Federal 3ª. Região. Porto Alegre: IOB-Thomson, vol 76, mar-abr/2006, p. 47.

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e desconstituir relações jurídicas, promover condenações e expedir ordens (função mandamental); ii) garantir sua própria efetividade através de medidas de urgência (cautelares e tutela antecipada); iii) promover a realização prática de suas decisões ou a satisfação creditícia de credores extrajudiciais (execução).

A declaração sobre a relação jurídica de direito material, mais as tarefas constitutivas, condenatórias e mandamentais, além das tutelas antecipadas, estão compreendidas no âmbito do que se chama processo de conhecimento. As medidas de urgência de natureza assecuratória caracterizam o processo cautelar, enquanto as providências tendentes à realização prática das decisões ou à satisfação de credores extrajudiciais referem-se ao processo de execução.

3.3. Ação

Ação é termo ambíguo que, em uma de suas acepções, significa o direito subjetivo público19 de acessar o Estado-juiz para dele cobrar o exercício da função jurisdicional20. Exercer o direito de ação significa provocar a atuação do poder-dever deferido pela Constituição ao Estado-juiz de promover a composição da lide, pronunciandose acerca da relação jurídica de direito material.

Trata-se de direito abstrato, conforme a seguinte explicação extraída da obra de Moacyr Amaral Santos:

Concebida a ação como direito de provocar a prestação jurisidicional do Estado, está afastada a idéia de ação no sentido concreto. Provocando a jurisdição a um pronunciamento, a ação não pode exigir senão isso e não uma decisão de determinado conteúdo. É por isso um direito abstrato, por que exercível por quem tenha ou não razão, o que será apurado tão-somente na sentença, e, além do mais, genérico, pois não varia, é sempre o mesmo, por mais diversos sejam os interesses a que, em cada caso, possam os seus titulares aspirar.21

Rodrigo Dalla Pria defende haver uma norma autônoma contemplando o direito de ação, dizendo que a referida norma, no antecedente, descreve a existência de uma relação jurídica conflituosa, mais as condições da ação (legitimidade, interesse e possibilidade jurídica), e no conseqüente, prescreve uma relação jurídica pela qual, aquele que se alega titular do direito material controvertido provoca a atuação do Estadojuiz consubstanciada na composição

19 AMARAL. Op. cit, p. 159.20 CONRADO. Introdução..., p. 168.21 AMARAL. Op. cit, p. 159.

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da lide, mediante uma sentença sobre a relação jurídica de direito material (sentença de mérito).22

Todavia, como será demonstrado adiante, a ação é direito adstrito à relação jurídica processual estabelecida no conseqüente da norma secundária, ou seja, é direito daquele que se diz titular da relação jurídica pretensamente violada exigir do Estado- Juiz uma atuação tendente à composição da lide. Já as condições da ação, são extraídas da própria norma secundária e cingem-se à legitimidade das partes, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido.

Conceitualmente, ação é o direito abstrato de alguém que se alega titular de um direito material provocar a atuação do Estado-juiz consubstanciada na composição da lide, mediante uma sentença sobre a relação jurídica de direito material.

3.4. Processo

O processo é relação jurídica que se instaura pela provocação do Estado-juiz, mediante o exercício do direito de ação, tornando-se completa com a convocação do réu para dela participar, pelo ato da citação.23

A isto cumpre acrescentar que o processo visa uma atuação do Estado-juiz (tutela jurisdicional), que se conclui mediante uma sentença ou acórdão de mérito a que seja aplicável a norma da coisa julgada material.

Em decorrência de prescrições de normas processuais aplicáveis em determinadas circunstâncias, a relação processual pode ser extinta por uma sentença ou acórdão que não contenha decisão de mérito, nem se lhe aplique a norma da coisa julgada material.

O processo consiste, portanto, numa relação jurídica triádica angular, no âmbito da qual, de um lado, o autor suscita ao Estado-juiz a prestação de tutela jurisdicional, e do outro, o réu exerce o direito de opor sua resistência à referida prestação.

Saliente-se que a validade da relação processual submete-se aos pressupostos processuais, isto é, a requisitos estabelecidos em normas processuais para a constituição e desenvolvimento válido do processo.

Por haver pressupostos legais para a constituição da relação processual, como é o caso da citação válida, e também para a sobrevivência e desenvolvimento da mesma, como por exemplo a ausência de nulidades no decurso do processo, é que se fala em “pressupostos” de existência (constituição) e de desenvolvimento do processo.

Tal concepção, é bom dizer, coaduna-se com a visão de Paulo Cesar Conrado, para quem os pressupostos processuais constituem “...requisitos

23 CONRADO. Introdução..., p. 217.22 DALLA PRIA. Op. cit., p. 42.

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prescritos no sistema de direito positivo, que dizem com a essência da relação processual, ou seja, que atinam com o que é imperativo à existência e ao desenvolvimento do processo”.24

3.5. Procedimento

Como ensina Paulo Cesar Conrado, num sentido procedimental, pode-se dizer que “...a relação processual revela-se por força de um conjunto de atos concatenados logicamente com o escopo de alcançar um ato final (no caso, a sentença)...”25. Em uma visão mais tradicional, o procedimento é o conjunto de atos, ditos atos processuais, pelos quais o processo tramita até a sentença ou acórdão.

Em termos normativos, o processo é produto de uma série de relações (relações de relações) havidas em um âmbito triádico angular (umas entre autor e juiz e outras entre juiz e réu). Os elementos constitutivos dessas relações são chamados de atos processuais 26 e o conjunto dos atos processuais que constituem a relação processual completa denomina-se procedimento.

Enquanto processo é a relação jurídica triádica, o procedimento diz respeito ao conjunto de atos (relações de relações) por meio dos quais o processo desenvolve-se até seu ato final (sentença ou acórdão).

4. NORMAS PROCESSUAIS

Na esteira da visão normativa até aqui delineada, Paulo Cesar Conrado tece considerações em sua obra que levam a crer que o conceito de norma processual confunde-se com o de norma secundária:

Quando falamos de uma relação jurídica processual, todavia, a circunstância acaba por ser bem outra: supondo o descumprimento do dever inscrito no consequente da norma primária (aquela que deu ensejo a uma relação jurídica qualquer, de natureza prestacional), vem à baila uma outra norma, dita secundária, em cujo antecedente está justamente o fato de o dever jurídico clausulado na norma primária ter sido inadimplido. E será essa norma outra norma que dará luz a relação jurídica processual, preconizando o surgimento de vínculo no qual o sujeito ativo (que é a vítima do descumprimento do dever contido na norma primária) exige do sujeito passivo (que é o Estado) a imposição coativa do

24 CONRADO. Introdução.. ., p.239.25 Ibidem, p. 216.26 CONRADO. Introdução.. ., p. 217/257.

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cumprimento daquele mesmo dever.

Seja como for, o fato é que quando ingressamos nesse campo deparamo-nos com uma específica norma a precitada norma secundária, em cujo antecedente está o fato de o sujeito ofensor não ter cumprido a sua obrigação de indenizar, e em cujo conseqüente encontramos uma relação jurídica pela o sujeito ofendido invoca uma atuação do Estado no sentido de compelir o ofensor a cumprir seu dever. Eis a gênese da relação processual.

Mas não é só. É imprescindível aduzir a figura do sujeito ante o qual se pede a prestação da tutela estatal (jurisdicional), vale dizer, o réu (no nosso exemplo, aquele que causou dano e não indenizou). É que a relação processual não se perfaz apenas com autor (aquele que cobra o dever estatal de compor a lide) e juiz (aquele de quem se cobra o referido dever), suscitando, seja por imposição lógica, seja por imposição expressa de nosso sistema, o respeito ao princípio do contraditório...”27

Para o citado jurista, norma processual é aquela cujo antecedente descreve o descumprimento de uma norma primária, enquanto o conseqüente prescreve o vínculo processual triádico angular, mediante o qual, de um lado, o autor provoca o Estadojuiz à prestação de tutela jurisdicional, e do outro, o réu exerce o direito de opor sua resistência à referida prestação, defendendo-se.

Disso diverge Rodrigo Dalla Pria, advogando a seguinte teoria:

Cabe, nesse momento, questionar-se a idéia de que o fato do descumprimento, constituído em sentença que acolhe o pedido do autor e julga-o procedente, seja o único fato jurídico constitutivo da norma secundária. Ao que parece, tal assertiva padece do equívoco que consiste em excluir a norma individual e concreta resultante de sentenças de improcedência do conceito de norma secundária...

Para resolver este paradoxo, propõe-se substituir o fato do descumprimento da relação jurídico-substancial como fato jurídico necessário ao nascimento da norma secundária, pelo simples fato da possibilidade de ocorrência do descumprimento, que pode ser reduzido à constatação de um mero conflito de interesses que impõe a prolação de uma sentença de mérito que coloque fim à conflituosidade (esta sim, prejudicial da eficácia das relações jurídicas de direito material”.28

De fato, diante dos conceitos de teoria geral do processo abordados, verifica-se que o escopo da tutela jurisdicional é a composição da lide, que

27 Ibidem, p. 211/213.28 DALLA PRIA. Op. Cit., p. 26.

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é um conflito de interesses acerca de um direito material. Pode ser que o direito material alegado pelo autor seja existente e tenha realmente sido desrespeitado pelo réu (procedência). Mas pode ocorrer também que esse direito seja inexistente, ou ainda que, existindo, tenha sido respeitado pelo réu (improcedência).

Em outras palavras, a norma secundária não estabelece em seu conseqüente uma relação que confira um direito a uma sentença favorável ao autor. É sim uma norma que veicula em seu conseqüente o direito a uma tutela jurisdicional em face de um conflito de interesses acerca de uma relação jurídica de direito material. Seu antecedente também não é o descumprimento de uma relação jurídica de direito material, mas sim a alegação desse descumprimento pelo autor e a resistência do réu à pretensão, o que se traduz, em termos mais sintéticos, pela simples possibilidade do descumprimento da norma primária.

Com essa concepção de norma secundária, o mesmo Rodrigo Dalla Pria manifesta uma visão bem diferente de norma processual. E nesse ponto, apresenta um conceito de norma processual voltado diretamente ao direito positivo e ao processo dinâmico de positivação jurídica, in verbis:

Retomando algumas noções, é certo que as relações jurídicas individualizadas pela aplicação de normas gerais de conduta são chamadas relações jurídicas efectuais; por outro lado, aquelas individualizadas pela aplicação de normas gerais de produção, são chamadas relações jurídicas intranormativas.

O Código de Processo Civil é um diploma legal que veicula normas gerais de estrutura (processuais) cuja aplicação resulta na produção de relações jurídicas intranormativas, integrantes de normas individuais e concretas (petição inicial, citação etc) Estas, por sua vez, compõe facticidade jurídica que dá ensejo à constituição de outra norma individual e concreta, a sentença, que, em circunstâncias normais, veicula uma relação jurídica efectual (mérito), resultante da aplicação de uma norma geral de conduta (material)”.29

De uma forma mais analítica, mas na mesma linha, as normas processuais são veiculadas nas leis processuais civis (seus veículos introdutores). São normas jurídicas que se classificam como normas de estrutura. Uma vez aplicadas, resultam em normas individuais e concretas (petição inicial, citação, recursos etc), cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas.

Da aplicação dessas últimas normas (individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas) resulta a constituição de uma peculiar norma individual e concreta (a sentença ou acórdão). Peculiar porque a sentença (ou acórdão) tem caráter ambíguo. Tanto pressupõe a sucessiva

29 DALLA PRIA. Op. cit, p. 24.

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aplicação de normas gerais de estrutura e de normas individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas, como também veicula em seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito), resultante da aplicação de uma norma jurídica de direito material (norma de conduta).

Pode ocorrer, entretanto, que a sentença não tenha esse caráter ambíguo, o que vai acontecer nas sentenças sem resolução de mérito (CPC, art. 267), resultantes sim da sucessiva aplicação de normas gerais de estrutura e de normas individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas, mas que não veiculará em seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito).

Como logo se vê, a norma secundária tem por antecedente a possibilidade da norma primária ter sido descumprida, e por conseqüente, uma atuação do Estado-juiz em face de autor e réu, consubstanciada em uma decisão de mérito sobre a procedência ou improcedência do pedido do autor. Nesse ponto do raciocínio, surge uma divergência com a teoria sobre o “ciclo de positivação da norma secundária” de Rodrigo Dalla Pria.

Para o referido jurista, a norma secundária “...só é chamada norma processual pela circunstância de ser extraída de contexto inserido num veículo normativo produzido exclusivamente em processo judiciais...”30 Esse veículo é a sentença de mérito, pois nas sentenças extintivas sem julgamento de mérito não há decisão sobre o conflito de interesses, não há provimento sobre a procedência ou improcedência do pedido do autor.

Porém, tal modo de pensar deixa de levar em conta que, no processo de positivação, a norma secundária vem antes da sentença. É ela a norma processual de estrutura da qual se extraem os conceitos de lide, ação, jurisdição, tutela jurisdicional e processo.

Portanto, se por um lado a concepção de norma secundária aqui defendida, sem prejuízo dos estudos normativos de Lourival Vilanova e Paulo de Barros Carvalho, aproveite os avanços teóricos obtidos pelos processualistas Paulo Cesar Conrado e Rodrigo Dalla Pria, por outro, também acrescenta aos mesmos a compreensão de norma secundária como aquela em que se encerram os conceitos de lide, ação, jurisdição, tutela jurisdicional e processo.

Chega-se, assim, à síntese de que, na norma secundária: i) o antecedente descreve um conflito de interesses sobre uma relação jurídica de direito material, isto é, a possibilidade de ter havido o descumprimento de uma relação jurídica prevista no conseqüente de uma norma primária (lide); ii) o conseqüente prescreve o direito do que se diz titular da relação jurídica pretensamente violada exigir do Estado-Juiz (ação) o exercício-cumprimento de um poder-dever consubstanciado em uma atuação tendente à composição da lide (jurisdição), mediante a produção de uma norma individual e concreta

30 DALLA PRIA. Op. cit., p. 26.

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denominada sentença ou acórdão de mérito (tutela jurisdicional), no âmbito de uma relação jurídica triádica que se completa com a citação para defesa daquele que se alega ser o responsável pela pretensa violação da norma primária (processo).

Destarte, a norma secundária é norma processual porque dela é que decorre a relação jurídica processual. Mais do que isso, pode-se dizer que, sem norma secundária, não há processo. Entretanto, não é a única norma que rege essa relação jurídica tendente à construção de uma norma individual e concreta que contemple a composição da lide pelo Estado-juiz (sentença ou acórdão).

A partir dos veículos introdutores de normas que regem o processo, cujo principal diploma é o Código de Processo Civil, muitas outras normas podem ser construídas. São exemplos as normas relativas à petição inicial, à contestação, à revelia, à coisa julgada material, ao direito de recurso contra decisões interlocutórias, ao direito de recurso contra sentenças e acórdãos, à produção de provas ou ainda às normas que determinam a extinção do processo por sentença sem resolução de mérito, entre outras.

Veja-se, pois, que não apenas a norma secundária é norma processual. A relação processual é regida por normas gerais de estrutura (normas processuais), que podem levar ao cumprimento da norma secundária (sentença de mérito - atuação do Estado- Juiz) ou até a uma sentença extintiva do processo sem julgamento de mérito. Nesta última hipótese, o juiz, em decorrência das normas processuais obtidas a partir do artigo 267 do CPC, deixa de completar a atuação que lhe é prescrita pela norma secundária.

Não por outra razão, as sentenças ou acórdãos sem resolução de mérito não se submetem à norma da coisa julgada material. Permanece inconcluso o ciclo de positivação decorrente da norma secundária, pois o Estado-juiz não se pronuncia sobre o mérito. Tanto é verdade que, posteriormente, se porventura afastadas as circunstâncias que ensejaram a aplicação das normas decorrentes do artigo 267 do CPC, é possível que seja formada uma nova relação jurídica processual tendente ao cumprimento da norma secundária.

De todo o exposto, conclui-se que norma processual é qualquer norma geral de estrutura, veiculada por instrumentos introdutores de normas, que seja determinante da instauração da relação jurídica processual ou reguladora do ciclo de positivação que se desenrola em seu âmbito. A rigor, o resultado de sua aplicação é a produção de normas individuais e concretas cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas que levam à constituição de uma peculiar norma individual e concreta denominada sentença ou acórdão.

Isto vai ocorrer, inclusive, no processo cautelar, cuja tutela jurisdicional versará sobre lide caracterizada por uma controvérsia em torno da plausabilidade de existência do direito relativo ao processo principal (fumus

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boni iuris) e à presença de iminente risco de dano irreparável ou de difícil reparação ao autor (periculum in mora). Será diferente, porém, no processo de execução, que se rege por normas processuais cuja aplicação resulta em relações jurídicas intranormativas tendentes à satisfação creditícia do autor (execução de título extrajudicial) ou o cumprimento de uma sentença ou acórdão (execução de título judicial).

5. NORMA PROCESSUAL TRIBUTÁRIA

5.1. Direito processual tributário e sua lide

O direito positivo brasileiro contempla dois sistemas processuais: o penal, referente às relações jurídico-processuais tendentes à condenação e cominação de penas ou à absolvição criminal, e o civil, relativo à solução de todos os conflitos de interesses alheios à égide do fato jurídico crime, inclusive aqueles que versem sobre relações jurídicas de natureza tributária.31

Portanto, é lícito afirmar que “...processo tributário é processo civil, particularizado pela circunstância, única, de a relação jurídica que o precede logicamente alinharse ao específico ramo didático do direito tributário”.32

É possível, outrossim, falar-se na existência de um “Direito Processual Tributário”, concernente às relações jurídico-processuais civis que tenham por objeto lides de natureza tributária.

Também é viável estabelecer-se uma correlação entre os conceitos fundamentais de teoria geral do processo que orbite em torno da concepção de lide. E nessa linha, jurisdição é poder-dever do Estado-juiz de promover a composição da lide, e processo a relação jurídica no âmbito da qual o Estado-juiz atua para compor a lide.

Logo, como lide tributária é aquela que diz respeito a conflitos de interesses sobre relações jurídicas tributárias, jurisdição tributária é o poder-dever do Estado-juiz de promover a composição da lide tributária, enquanto processo tributário vem a ser a relação jurídica no âmbito da qual o Estado-juiz atua para compor a lide tributária. Daí a importância da noção de lide tributária para a definição dos conceitos de jurisdição e processos tributários.

No mesmo sentido, na relação com a lide, ação é direito abstrato de provocar a jurisdição em sua tarefa de compor a lide, sendo lícito falar em ações tipicamente tributárias quando versem sobre lides tributárias, isto é, sobre conflitos de interesses relativos a relações jurídicas de direito material tributário.

31 CONRADO, Paulo Cesar. Processo tributário. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 23/24.32 CONRADO. Processo... , p. 24.

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5.2. Ações tributáriasImporta lembrar que os elementos da ação são as partes, o pedido e a

causa de pedir. Nas ações tributárias a causa de pedir e o pedido adstringem-se a uma relação jurídica tributária, o mesmo ocorrendo com as partes, que são as mesmas envolvidas no vínculo obrigacional tributário.

Seguindo-se no raciocínio, é oportuno transcrever considerações feitas na obra do jurista James Marins, quais sejam:

...podemos afirmar que o processo tributário trata da ações com referibilidade ao Direito Tributário, que podem ser denominadas ações tributárias.

As ações tributárias supõem em regra uma estrutura peculiar, especial, em maior ou menor medida, que consiste no processo tributário, que tem como objetivo a produção de uma norma individual e concreta que estabeleça ‘no caso concreto o exato alcance das obrigações determinadas pelas normas gerais de direito tributário substantivo’.

Nestas ações, teremos compondo a relação jurídica processual, como partes, de um lado a Fazenda Pública e de outro o cidadão-contribuinte, podendo figurar, qualquer deles, no pólo ativo ou passivo...”.33

Tal excerto não apenas vai ao encontro da idéia de existência de ações tipicamente tributárias, como também aponta para o horizonte da distinção entre ações exacionais e antiexacionais.

Ações exacionais são aquelas de iniciativa da Fazenda Pública, tendentes à formação de uma relação processual cujo sujeito ativo é a Fazenda Pública e o sujeito passivo o contribuinte ou responsável. Já as ações antiexacionais são aquelas de iniciativa do contribuinte ou responsável, sujeitos passivos da relação jurídica de direito material tributário, tendendo à formação de uma relação processual cujo sujeito ativo é o contribuinte ou responsável e sujeito passivo a Fazenda Pública.

Outro diferencial das ações de iniciativa do contribuinte é que se destinam “...à produção de normas individuais e concretas que protejam o contribuinte da imposição de exações tributárias indevidas”34. Ou seja, as ações antiexacionais visam como sentença um provimento jurisdicional que reconheça a inexistência ou a ausência de descumprimento de uma relação jurídica de direito material tributário.

São antiexacionais as seguintes ações: ação declaratória de inexistência de relação jurídica, ação anulatória de débito fiscal, mandado de segurança, embargos do devedor (este vinculado à existência de uma execução fiscal) e a

33 MARINS, James. Cireito processual tributário brasileiro. 3ª. ed. São Paulo: Dialética, 2003, p. 386.34 DALLA PRIA. Op. cit., p. 60.

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repetição de indébito tributário.Veja-se que, no mandado de segurança, de caráter mandamental, e nas

ações anulatórias e embargos do devedor, que têm natureza constitutiva negativa, a sentença deve também contemplar a declaração da inexistência de uma relação jurídico-tributária. Mesmo na sentença da ação de repetição de indébito, que tem caráter condenatório, a condenação será precedida da declaração da inexistência de uma relação jurídico-tributária, o que lhe confere caráter antiexacional. Em outros termos, referida ação não visa evitar uma imposição exacional, mas sua sentença tem o condão de declarar inexistente a relação jurídica que a dava suporte, condenando o fisco à devolução da quantia paga em cumprimento à “obrigação tributária” fulminada pela tutela jurisdicional.

Já nas ações exacionais, o objetivo é sempre a “...efetivação do conteúdo da obrigação tributária, que já se suporia antes constituída”35. Mais precisamente, uma vez constituída a obrigação tributária no âmbito administrativo, têm lugar as ações exacionais, que visam compelir o sujeito passivo ao cumprimento da relação jurídica tributária.

Inserem-se nesse âmbito a ação de execução fiscal (realização prática da prestação jurisdicional mediante um processo que contempla atos executórios) e a medida cautelar fiscal (visa assegurar a efetividade da prestação jurisdicional, impedindo que o sujeito passivo promova a dilapidação de seu patrimônio, frustrando a pretensão executória do fisco-credor).

5.3. Norma processual tributária

Conforme já demonstrado, a norma processual é norma geral de estrutura veiculada por instrumentos introdutores de normas determinantes da instauração da relação jurídica processual ou reguladoras do ciclo de positivação. Tem por resultado de sua aplicação a produção de normas individuais e concretas cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas que levam à constituição de uma norma individual e concreta denominada sentença ou acórdão.

Assim, a partir dos veículos introdutores de normas que regem o processo, cujo principal diploma é o Código de Processo Civil, muitas outras normas podem ser construídas. São exemplos as normas que regem a petição inicial, a contestação, a revelia, a coisa julgada material, o direito de recurso contra decisões interlocutórias, o direito de recurso contra sentenças e acórdãos, a produção de provas ou ainda as normas que determinam a extinção do processo por sentença sem resolução de mérito, entre outras.

Também conforme já exposto, o processo tributário é regido pelas

35 CONRADO. Processo..., p. 199.

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normas processuais civis, o que não significa, porém, negar a existência de normas jurídicas tipicamente processuais tributárias.

O processo tributário particulariza-se pelo fato de que as relações jurídico-processuais instauradas têm por objeto lides de natureza tributária, havendo o que se falar, inclusive, em ações exacionais e antiexacionais, tipicamente tributárias. Então, embora a relação processual tributária seja regida pelas normas processuais civis em geral, as peculiaridades das lides tributárias demandam a enunciação legislativa de normas processuais aplicáveis com exclusividade a ações tipicamente tributárias. É o caso das normas veiculadas pelo artigo 164 do CTN, atinentes à consignação judicial pelo sujeito passivo da importância relativa ao crédito tributário. O mesmo pode ser dito acerca das hipóteses de suspensão da exigibilidade do crédito tributário (CTN, art. 151), com reflexo direito sobre a ação de execução fiscal, impedindo o seu ajuizamento ou suspendendo-a quando já em andamento. Trata-se de norma jurídica ambivalente, com efeitos nas esferas de direito material e direito processual.

Mais do que isto, existem veículos introdutores de normas especificamente determinantes da instauração de relações jurídicas processuais de natureza tributária ou reguladoras do ciclo de positivação que se verifica no âmbito de processos que versem sobre lides tributárias.

Quer dizer que, além do Código de Processo Civil e das leis processuais em geral, há diplomas que veiculam especificamente normas processuais aplicáveis a processos e ações que versem sobre lides tributárias. A execução fiscal e a medida cautelar fiscal, ações exacionais, são regidas, respectivamente, pelas leis 6.830/80 e 8.397/92. Entre as ações antiexacionais, os embargos à execução fiscal também obedecem às normas da Lei 6.830/80.

CONCLUSÃO

Partindo-se do conceito de norma jurídica como o juízo hipotético-condicional de conteúdo deôntico veiculado nos textos de lei, um mergulho nos meandros lógicos do ciclo de positivação do direito traz à tona os conceitos fundamentais de norma primária e norma secundária, componentes da chamada norma jurídica completa.

Diz-se secundária aquela norma cujo antecedente descreve um conflito de interesses sobre uma relação jurídica de direito material, ou em outras palavras, a possibilidade de ter havido o descumprimento de uma relação jurídica prevista no conseqüente de norma primária (lide). No conseqüente, a norma secundária prescreve o direito daquele que se diz titular da relação jurídica pretensamente violada de exigir do Estado-Juiz (ação) o exercício-cumprimento de um poder-dever consubstanciado em uma atuação tendente

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à composição da lide (jurisdição), mediante a produção de uma norma individual e concreta denominada sentença ou acórdão de mérito (tutela jurisdicional), no âmbito de uma relação jurídica triádica que se completa com a citação para defesa daquele que se alega ser o responsável pela pretensa violação da norma primária (processo).

A norma secundária não estabelece em seu conseqüente uma relação que confira um direito a uma sentença favorável ao autor. É sim uma norma que veicula em seu conseqüente o direito a uma tutela jurisdicional em face de um conflito de interesses acerca de uma relação jurídica de direito material. Seu antecedente também não é o descumprimento de uma relação jurídica de direito material, mas sim a alegação desse descumprimento pelo autor e a resistência do réu à pretensão, o que se traduz, em termos mais sintéticos, pela simples possibilidade do descumprimento da norma primária.

A norma secundária é norma processual porque dela é que decorre a relação jurídica processual. Sem ela, não há processo. Entretanto, não é a única entre as normas processuais, que se encontram veiculadas nas leis processuais (seus veículos introdutores).

Normas processuais são normas jurídicas de estrutura. Uma vez aplicadas, resultam em normas individuais e concretas (petição inicial, citação, recursos etc), cujos conseqüentes prescrevem relações jurídicas intranormativas. Da aplicação dessas últimas normas (individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas) constitui-se uma peculiar norma individual e concreta (a sentença ou acórdão). Peculiar porque a sentença (ou acórdão) é norma individual e concreta de caráter ambíguo. Tanto pressupõe a sucessiva aplicação de normas gerais de estrutura e de norma individuais e concretas prescritoras de relações jurídicas intranormativas, como também veicula em seu conseqüente uma relação jurídica efectual (mérito), resultante da aplicação de uma norma jurídica de direito material (norma de conduta).

Comprovada fica a autonomia da relação processual, regida por normas gerais de estrutura (normas processuais), que podem levar ao cumprimento da norma secundária (sentença de mérito - atuação do Estado-Juiz) ou até a uma sentença extintiva do processo sem julgamento de mérito, hipótese em que o juiz, em decorrência das normas processuais obtidas a partir do artigo 267 do CPC, deixa de completar a atuação que lhe é prescrita pela norma secundária.

Isto vai ocorrer, inclusive, no processo cautelar, cuja tutela jurisdicional versará sobre lide que se caracteriza por uma controvérsia em torno da plausabilidade da existência do direito relativo ao processo principal (fumus boni iuris) e à presença de iminente risco de dano irreparável ou de difícil reparação ao autor (periculum in mora). Será diferente, porém, no processo de execução, que se rege por normas processuais cuja aplicação resulta em relações jurídicas intranormativas que visam a satisfação creditícia do autor

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(execução de título extrajudicial) ou o cumprimento de uma sentença ou acórdão (execução de título judicial).

Por fim, admitir a dualidade processual brasileira (processo penal e processo civil) não significa negar a existência de normas jurídicas tipicamente processuais tributárias. É lícito falar em um processo tributário, que se particulariza pelo fato de que as relações jurídico-processuais instauradas têm por objeto lides de natureza tributária. No mesmo sentido, existem ações tipicamente tributárias, que versam sobre lides tributárias, isto é, sobre conflitos de interesses relativos a relações jurídicas de direito material.

Outrossim, embora a relação processual tributária seja regida pelas normas processuais civis em geral, as peculiaridades das lides tributárias demandam a enunciação legislativa de normas processuais aplicáveis com exclusividade a ações tipicamente tributárias. É o caso das normas veiculadas pelo artigo 164 do CTN e pelo artigo 151 do mesmo diploma legal, estas últimas de caráter ambivalente (material e processual).

Há também diplomas que veiculam especificamente normas processuais aplicáveis a processos e ações que versem sobre lides tributárias. A execução fiscal e a medida cautelar fiscal, ações exacionais, são regidas, respectivamente, pelas leis 6.830/80 e 8.397/92. Entre as ações antiexacionais, os embargos à execução fiscal também obedecem às normas da Lei 6.830/80.

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OS LIMITES DA AÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA TUTELA DAS PRETENSÕES AO FORNECIMENTO

GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTOANA PAULA ANDRADE BORGES DE FARIA

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é delinear as fronteiras da atuação do Poder Judiciário na tutela das pretensões individuais ao fornecimento estatal gratuito de medicamentos não contemplados nos protocolos clínicos dos programas de assistência farmacêutica editados pelas várias esferas de Governo.1

Não será analisada a questão da tutela jurisdicional do direito subjetivo

1 Monografia apresentada ao Curso de Especialização Telepresencial e Virtual em Direito Processual Grandes Transformações, na modalidade Formação para o Mercado de Trabalho, como requisito parcial à obtenção do grau de especialista em Direito Processual Grandes Transformações. Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL. Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes - REDE LFG.

ResumenO trabalho tem por objetivo assinalar quais os limites da ação do Poder Judiciário brasileiro na tutela das pretensões individuais ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Público. Parte-se da análise da estrutura, eficácia e efetividade das normas constitucionais, contrastando as conclusões alcançadas com a teoria do mínimo existencial e o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. Apresenta-se, então, a dinâmica institucional estabelecida pela Constituição brasileira para a concretização do direito à saúde, indicando quais as políticas públicas promovidas pelo Poder Executivo na área da assistência farmacêutica. Debate-se as objeções apresentadas à intervenção do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas, notadamente, o princípio da Separação de Poderes, a reserva do possível (jurídica e fática) e o conflito entre direitos fundamentais. Examina-se a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a temática apresentada. Por fim, delimita-se a área de atuação legítima do Poder Judiciário para dar efetividade ao comando emergente do artigo 196 da Constituição Federal no que respeita à assistência farmacêutica.

The work aims to highlight the limits of Brazilian Judiciary action in the custody of individual claims for free medicine supply by governmental agencies. It stars from the analysis of the structure, efficiency and effectiveness of constitutional requirements, contrasting the r eached conclusions with the theory of minimum existential and the principle of maximum effectiveness of fundamental rights. There is then the Institutional dynamics established by Brazilian Constitution for the real right to health, indicating the public policies promoted by the Executive Power in pharmaceutical care area. The objections submitted to the intervention of the Judiciary in the implementation of public policies are debated, notably the principle of power separation, the reservation of possible (legal and in fact) and the conflict between fundamental rights. The Federal Supreme Court jurisprudence on the subject presented is also examined. Finally, The area of legitimate expertise of the Judiciary is delimited to give effectiveness to the emerging command of Article 196 of the Federal Constitution with regard to pharmaceutical care.

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ao fornecimento de medicamentos que integram programas de fornecimento gratuito implementados pelo Poder Público.

Isto porque, se o medicamento cujo fornecimento é postulado judicialmente consta da lista de um programa de fornecimento gratuito editado por certa pessoa política, e é indicado, segundo o protocolo clínico administrativo, para o tratamento da doença que acomete determinado indivíduo, este tem inegável direito subjetivo ao fornecimento do remédio, já que todos os pressupostos para o exercício do direito estão previstos em normas legais e regulamentares que concretizam o enunciado do artigo 196 da Constituição Federal. Logo, uma decisão judicial que determine o fornecimento do remédio na hipótese apenas aplica um comando regulamentar editado pelo próprio Poder Executivo, não havendo interferência do Poder Judiciário na esfera das políticas públicas.

Diversamente, se o medicamento não está previsto na lista de um programa estatal de fornecimento gratuito, ou, ainda que esteja previsto, se não é indicado, pelo protocolo clínico administrativo, para o tratamento da patologia que acomete certo indivíduo, este, ao postular uma tutela jurisdicional que determine ao Estado a obrigação de lhe fornecer o medicamento, pressupõe, para satisfazer sua pretensão, que o Poder Judiciário interfira na política de saúde pública criada pelo Poder Executivo, fazendo eclodir uma série de questionamentos jurídicos que serão abordados no presente estudo.

A importância da investigação é inegável, pois, é fato notório a crescente multiplicação de demandas individuais em que se postula ao Poder Judiciário que determine ao Poder Executivo a entrega de medicamentos excepcionais e de alto custo que não são fornecidos pelos programas oficiais de assistência farmacêutica, e os Juízos e Tribunais têm sido sensíveis ao anseio da população, concedendo tutelas antecipadas, medidas cautelares e liminares que geram distorções no funcionamento do Sistema Único de Saúde - SUS2 .

Não foi outro o motivo pelo qual o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 566471 RG/RN, ocorrido em 15 de novembro de 2007, decidiu que: “Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo” (grifo nosso).

Ademais, a participação do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas tem sido especialmente focada na área de assistência farmacêutica, reforçando a corrente jurisprudencial inaugurada no início da década de noventa, com a acolhida de pedidos de tutela jurisdicional para o tratamento da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - SIDA, forte na Lei Federal n. 9.313/963, corrente esta que se expandiu para amparar pretensões individuais de tratamento de outras patologias, ainda que ausente uma

2 Judicialização da Saúde: a balança entre acesso e eqüidade (29/01/2008) - matéria jornalística publicada na página: http://www.ensp.fiocruz.br/informe/materia.cfm?matid=8374 - Acesso em 22/02/08.

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3 Nos termos do artigo 1º, da Lei n. 9.313/96: “ Art. 1º. Os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária ao tratamento “.4 GOUVÊA, Marcos Maselli. O Direito ao Fornecimento Estatal de Medicamentos. “in”A Efetividade dos Direitos Sociais. Emerson Garcia - Coordenador. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004, p. 201/3.

legislação específica relacionada4.Para realizar a pesquisa foram consultadas obras doutrinárias editadas

no Brasil e em Portugal especialmente nos campos do Direito Constitucional, dos Direitos Humanos e do Direito Administrativo, além de artigos e textos publicados na rede mundial de computadores, com abrangência interdisciplinar nas áreas do Direito e da Saúde Pública. Ainda, foram acessadas as páginas eletrônicas do Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, para coletar acórdãos e decisões monocráticas sobre o tema.

A seqüência de capítulos foi organizada para propiciar ao leitor o acesso gradual a noções e conceitos importantes para compreender com clareza as conclusões alcançadas.

Assim, e considerando que as decisões do Poder Judiciário que tutelam pretensões individuais ao fornecimento de medicamentos têm como principal fundamento o comando do artigo 196, da Constituição Federal, define-se, inicialmente, a classificação das normas constitucionais segundo sua estrutura, eficácia e efetividade, para, em seqüência, situar o direito social à saúde como direito fundamental e interpretá-lo à luz do princípio dignidade da pessoa humana e da teoria do mínimo existencial.

Então, passa-se à análise da competência discricionária do Poder Executivo para concretizar o direito à assistência farmacêutica, situando essa competência institucional no contexto do princípio da Separação de Poderes, da reserva do possível (fática e jurídica) e do conflito entre direitos fundamentais, para evidenciar as objeções freqüentemente apresentadas à interferência do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Por fim, destacam-se os fundamentos de acórdãos e decisões monocráticas proferidas sobre o tema, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a fim de iluminar as conclusões finalmente alcançadas no derradeiro capítulo do estudo onde são traçados os limites da atuação jurisdicional na tutela das pretensões individuais ao fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo.

1. CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS SEGUNDO A SUA ESTRUTURA, EFICÁCIA E EFETIVIDADE

O estudo da estrutura das normas jurídicas tem inegável relevância para

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a interpretação e aplicação dos comandos da Lei Maior, porém, a doutrina constitucionalista é controvertida sobre a classificação dos preceitos da Constituição segundo o apontado critério.

JOSÉ AFONSO DA SILVA compreende as normas jurídicas como proposições definidoras de direitos e obrigações, hábeis a criar posições subjetivas ativas ou passivas, enquanto que os princípios seriam “disposições que se irradiam e imantam os sistemas de normas”.5

LUÍS ROBERTO BARROSO assinala que as normas jurídicas subdividem-se em normas-disposição, que regem situações específicas, e normas-princípio, ou princípios, que possuem grande teor de abstração e posição hierárquica superior no sistema normativo, porque sintetizam os valores mais relevantes da ordem jurídica6.

Sobre o tema, entre as alternativas ofertadas pela doutrina, adota-se a concepção de J.J. GOMES CANOTILHO7, segundo a qual a Constituição contém duas espécies de normas jurídicas: as regras e os princípios.

As regras possuem um grau de abstração reduzido e aptidão para aplicação direta, porque contêm comandos imperativos, proibindo, permitindo ou impondo determinados comportamentos, concretizando-se mediante subsunção, sob a lógica do tudo ou nada, uma vez que o legislador define a hipótese de incidência e a conseqüência jurídica respectiva, de modo que, sempre que a previsão normativa da regra realizar-se no mundo dos fatos, incidirá a conseqüência jurídica por ela estipulada para reger a situação concreta. Havendo conflito aparente entre regras jurídicas, este há de ser solucionado pelos critérios cronológico, da especialidade e da hierarquia8.

Diversamente, os princípios são dotados de elevado grau de abstração, com conteúdo vago e indeterminado, encerrando verdadeiros “standards” fundados na noção de Justiça e na idéia de Direito. Por isso, têm papel fundamental no sistema normativo, ocupando posição hierárquica privilegiada no sistema de fontes, e, em certas hipóteses, desempenhando função estrutural do ordenamento jurídico9.

Daí a conclusão de que os princípios seriam normas jurídicas impositivas de uma otimização, concretizável em variados graus, dependendo de condicionamentos fáticos e jurídicos. Isso significa que a aplicação de certo princípio para regular uma situação concreta pode impor o balanceamento de

5 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 91/2.6 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 151.7 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1033 e segs.8 Ibidem, p. 1033 e segs.9 Ibidem, p. 1033 e segs.

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valores e interesses na contingência de existirem outros princípios conflitantes igualmente aplicáveis. Assim é que, será preciso harmonizar os vários princípios, segundo o seu peso, para dimensionar o campo de incidência de cada qual, sobre o conflito de interesses a ser regulado10.

Sob outro enfoque, HUMBERTO ÁVILA11 assevera que “se o conteúdo normativo de um princípio depende da complementação (positiva) e limitação (negativa) decorrentes da relação dialética que mantém com outros princípios, parece inconcebível a ocorrência de efetivas colisões entre eles”. Na verdade, os princípios, em razão do elevado grau de abstração lógica, são fluidos e imprecisos, e não veiculam hipóteses de incidência nem conseqüências jurídicas determinadas, de modo que “o problema que surge na aplicação dos princípios reside muito mais em saber qual deles será aplicado e qual relação mantêm entre si”12.

Completando o raciocínio, JUAN CIANCIARDO13 esclarece:

[...] a rigor, não se trata da primazia de um princípio sobre outro, mas apenas da inaplicabilidade do princípio eventualmente afastado, funcionando como suposto de fato da regra de decisão que, então, necessariamente, se formula as circunstâncias do caso e, como sua conseqüência jurídica, a que se extrai do princípio de maior peso.

Como se denota, considerando que a norma constitucional veiculada sob a forma de princípio, de conteúdo indeterminado e abstrato, não revela, por si mesma, a abrangência de sua hipótese de incidência normativa, deverá o intérprete, valendo-se do método tópico-problemático, definir o suposto normativo a partir do caso concreto de modo que, segundo o magistério de J.J. GOMES CANOTILHO14:

[...] a interpretação da constituição reconduzir-se-ia, assim, a um processo aberto de argumentação entre os vários participantes (pluralismo de intérpretes) através da qual se tenta adaptar ou adequar a norma constitucional ao problema

10 Ibidem, p. 1033 e segs.11 ÁVILA, Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, 215:151-179, jan/mar.1999 “apud” MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 33/4.12 Ibidem, p. 179.13 CIANCIARDO, Juan. El conflictivismo em los derechos fundamentales. Pamplona: EUNSA, 2000, p. 200-201”apud” MENDES, Gilmar Ferreira et. al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 34.14 Ob. cit., p. 1085.

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concreto. Os aplicadores-interpretadores servem-se de vários topoi ou pontos de vista, sujeitos à prova das opiniões pró ou contra, a fim de descortinar, dentro das várias possibilidades derivadas da polissemia de sentido do texto constitucional, a interpretação mais conveniente para o problema. A tópica seria, assim, uma arte de invenção (inventio) e, como tal, técnica de pensar problemático. (grifos do autor)

Nesse cenário, o fato de se afastar a aplicação de um princípio em certo caso concreto, não o invalida para futuras aplicações, pois, sua não incidência em favor de outro princípio ocorre em face das circunstâncias do caso concreto específico, e pode não prevalecer para casos futuros, motivo pelo qual a aplicação dos princípios não será apta para criar precedentes, afinal, enquanto as regras jurídicas ordenam determinados comportamentos, “[...] os princípios jurídicos são mandados de otimização ou preceitos de intensidade modulável, a serem aplicados na medida do possível e com diferentes graus de efetivação.” 15

Com apoio nas premissas doutrinárias referidas que propiciam a identificação de dois tipos de normas constitucionais segundo a sua estrutura - regras e princípios -, na seqüência serão apresentadas várias propostas de classificação das normas constitucionais sob o critério da eficácia e efetividade, a fim de que, no encerramento deste capítulo seja possível estabelecer a relação entre a estrutura dos enunciados normativos da Lei Maior e seu grau de aplicabilidade. Senão vejamos:

Nossa Constituição Federal é escrita e, como tal, contém inúmeras disposições consubstanciadas em enunciados ou preceitos que veiculam símbolos lingüísticos os quais devem ser interpretados para que se possa deles extrair seu significado e alcance, identificando, assim, a norma jurídica contida no texto supremo, cuja eficácia será modulada segundo a possibilidade de ser imediatamente aplicada a casos concretos, produzindo efeitos jurídicos16.

Assim é que, as normas jurídico-constitucionais são dotadas de diferentes graus de eficácia segundo os símbolos lingüísticos que compõem os enunciados ou preceitos dos quais são extraídas, e esses variados graus de eficácia correspondem ao que pode ser exigido, judicialmente, com fundamento na norma jurídica invocada pelo postulante da tutela jurisdicional.

No âmbito deste estudo, a expressão “eficácia” significa o grau de

15 MENDES, Gilmar Ferreira et. al. ob. cit., p. 37.16 Ibidem, p. 248.

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aptidão de uma norma jurídica para dispor sobre um conflito de interesses concretamente considerado (hipótese de incidência) e, subseqüentemente, produzir efeitos jurídicos tendentes a solucioná-lo (conseqüência jurídica); por seu turno, o termo “efetividade” será empregado para designar o resultado da realização do comando normativo no mundo fenomênico (realidade social)17.

Várias são as propostas classificatórias apresentadas pela doutrina de Direito Constitucional para definir a eficácia e a efetividade das normas da Constituição.

No Direito norte-americano construiu-se a clássica teoria das normas constitucionais executáveis por si mesmas (self-executing provisions), e das normas não executáveis por si mesmas (not self-executing provisions), acolhida no Brasil por Ruy Barbosa para quem as normas do primeiro grupo seriam imediatamente aplicáveis, por veicularem verdadeiras regras jurídicas, enquanto que as do segundo grupo não seriam aplicáveis por veicularem princípios que demandariam a intermediação do legislador para a devida concretização.18

Nesse particular, elucidativa é a lição de GILMAR FERREIRA MENDES19:

Tendo em conta, igualmente, a sua eficácia e aplicabilidade, consideram-se autoexecutáveis as disposições constitucionais bastantes em si, completas e suficientemente precisas na sua hipótese de incidência e na sua disposição, aquelas que ministram os meios pelos quais se possa exercer ou proteger o direito que conferem, ou cumprir o dever e desempenhar o encargo que elas impõem; não auto-aplicáveis, ao contrário, são as disposições constitucionais incompletas ou insuficientes, para cuja execução se faz indispensável a mediação do legislador, editando normas infraconstitucionais regulamentadoras.

Essa teoria foi mais tarde criticada por ser inconcebível admitir que as normas constitucionais não executáveis por si mesmas sejam completamente destituídas de efeitos normativos20.

No direito brasileiro, destaca-se a doutrina de JOSÉ AFONSO DA SILVA, que concebeu uma classificação tricotômica das normas constitucionais segundo sua qualidade de produzir, em maior ou menor grau, efeitos jurídicos,

17 SARLET, Ingo Wolfang. ob cit., p. 248/9.18 BARBOSA, Ruy, Comentários à Constituição Federal Brasileira (coligidos e ordenados por Homero Pires), vol. II, São Paulo , Saraiva & Cia., 1933, p. 495, “ apud “, SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit, pp. 253.19 MENDES, Gilmar Ferreira et al. Curso de Direito Constitucional. São Paulo. Saraiva, 2008 p. 28.20 SARLET, Ingo Wolfang, Ob. cit., pp. 255.

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regulando imediatamente situações, relações ou comportamentos21.De acordo com o referido autor22, as normas constitucionais quanto à sua

eficácia subdividem-se em: (1) normas de eficácia plena de aplicabilidade direta, imediata e integral - produzem todos os efeitos jurídicos essenciais em relação a interesses, comportamentos e situações que a Constituição regula já que veiculam comandos certos e determinados (ex. o casamento é civil e gratuita a sua celebração, CF art. 226, p. 1º); (2) normas de eficácia contida de aplicabilidade direta, imediata, mas possivelmente não integral - consagram direitos subjetivos aos indivíduos ou a entidades públicas ou privadas, mas autorizam que o legislador infraconstitucional possa restringir os ditos direitos (ex. é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, CF art. 5º, XIII); (3) normas de eficácia limitada, que se subdividem em: (3.1) normas de princípio institutivo - definem esquemas gerais de estruturação de órgãos, entidades ou institutos, conferindo ao legislador infra-constitucional a tarefa de minudenciar a estrutura e funcionamento dos mesmos e, (3.2) normas programáticas - estipulam objetivos que devem ser perseguidos pelos Poderes Públicos com vistas à realização dos fins sociais do Estado, tendo por objeto os elementos sócio-ideológicos da Constituição, i.e., os direitos econômicos, sociais e culturais (grifos nossos).

Por seu turno, LUÍS ROBERTO BARROSO defende o princípio da efetividade em matéria de interpretação das normas constitucionais, concebendo a efetividade como a materialização dos preceitos legais no mundo fenomênico, aproximando o deverser normativo do ser da realidade social23. Buscando ilustrar a matéria, o autor recorre à classificação ontológica das Constituições elaborada por KARL LOEWENSTEIN24: (1) Constituição normativa - juridicamente válida e plenamente integrada no corpo social, de modo que o processo político se amolda às normas constitucionais (roupa que assenta e veste bem no corpo social); (2) Constituição semântica -submete-se ao poder político que utiliza o aparato constitucional para perpetuar-se no comando de determinado Estado (roupa que disfarça, dissimula, esconde as intenções dos detentores do poder); (3) Constituição nominal - o processo político não se amolda perfeitamente às normas constitucionais que indicam metas e fins a serem paulatinamente realizados (roupa não assenta bem no

21 TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, pp. 289.22 SILVA, José Afonso. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 66 e ss.23 Ob. cit., p. 248.24 LOEWESTEIN, Karl. Teoria de la Constituicion. Barcelona: Ariel, 1986, p. 217 e s. “apud” BARROSO, Luis Roberto. Ob. cit. p. 252.

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corpo social, mas pode vir a servir).O grande anseio dos constitucionalistas pátrios é, segundo LUÍS

ROBERTO BARROSO, realizar um constitucionalismo normativo que imprima às normas constitucionais um caráter imperativo, de mandamento, ordem, prescrição, imbuídos de força jurídica, pois, a Constituição não veicula comandos meramente morais.

Sob o prisma do conteúdo, conforme a doutrina de LUÍS ROBERTO BARROSO, as normas constitucionais subdividem-se em: (1) de organização: regulam a repartição do poder político, definindo as competências dos órgãos constitucionais; (2) definidoras de direitos: geram direitos subjetivos, conferindo ao titular a prerrogativa de exigir do Estado prestações positivas ou negativas; e (3) programáticas: estipulam fins sociais a serem alcançados pelo Poder Público em caráter prospectivo não conferindo aos indivíduos a prerrogativa de exigir prestações positivas em face do Estado que só estará obrigado a abster-se de condutas contrárias aos objetivos definidos de modo que as normas programáticas “não geram direitos subjetivos na sua versão positiva, mas geram-nos em sua feição negativa”25 (grifos nossos).

Considerando que, como será abordado no capítulo subseqüente, o direito à saúde é veiculado pelo legislador constituinte através de enunciados normativos programáticos, para este estudo interessa mais imediatamente destacar, do universo das classificações apresentadas, as denominadas normas programáticas, elucidando mais detalhadamente sua natureza jurídica e características, dentro da dimensão da eficácia e aplicabilidade. Confira-se:

Para JORGE MIRANDA26, as normas constitucionais, segundo sua eficácia, podem ser: (1) preceptivas, possuindo eficácia incondicionada ou não dependente de condições institucionais ou de fato; e (2) programáticas que são aquelas que se voltam à transformação “[...] não só da ordem jurídica, mas também das estruturas sociais ou da realidade constitucional (daí o nome), implicam a verificação pelo legislador, no exercício de um verdadeiro poder discricionário, da possibilidade de as concretizar”.

Ainda JORGE MIRANDA27 demonstra que as normas programáticas possuem conteúdo essencial valorativo vertido através de conceitos jurídicos indeterminados, imprimindo elasticidade ao sistema constitucional, e têm por destinatário principal o legislador, atribuindo-lhe competência discricionária para definir qual a oportunidade e os meios adequados para lhes dar exeqüibilidade, e finalmente, as normas programáticas:

25 Ob. cit., p. 256.26 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Coimbra: Coimbra Ed., 1996, t. 2, p. 242.27 Ibidem, p. 244.

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[...] não consentem que os cidadãos ou quaisquer cidadãos as invoquem já (ou imediatamente após a entrada em vigor da Constituição), pedindo aos Tribunais o seu cumprimento só por si, pelo que pode haver quem afirme que os direitos que delas constam, máxime os direitos sociais, têm mais natureza de expectativas que de verdadeiros direitos subjectivos.

Nada obstante, em que pese o deficiente grau de eficácia das normas programáticas, elas possuem inegável juridicidade na medida em que funcionam como critérios de interpretação dos demais dispositivos da Lei Maior, podendo, inclusive, contribuir para a integração de lacunas. Ademais, as normas programáticas impedem a edição de normas legais que contrariem seus preceitos, além de fixarem parâmetros ou diretrizes ao legislador infraconstitucional na matéria que disciplinam e, tendo seus comandos concretizados através de leis e regulamentos, estes não podem ser simplesmente revogados sem a edição de regulamentação substitutiva razoável, pois, é inadmissível tolher a exeqüibilidade já adquirida por uma norma constitucional (vedação do retrocesso)28.

Por fim, JORGE MIRANDA29 declara que as normas programáticas:

[...] determinam igualmente a cessação da vigência, por inconstitucionalidade superveniente, das normas legais anteriores discrepantes, mas apenas a partir do momento em que seja possível (na perspectiva inelutável da realidade constitucional) receberem exequibilidade;

b) A inconstitucionalidade por omissão também só pode verificar-se a partir dessa altura, e não antes.

Não significa isto que fique na disponibilidade do legislador ordinário a eficácia jurídica das normas programáticas. Havendo fiscalização da constitucionalidade, pelo menos, tal não sucederá: o órgão ou órgãos competentes verificarão se ocorrem ou não as circunstâncias objetivas (normativas ou não normativas) que tornam possível - e portanto, obrigatória - a emissão das normas legislativas susceptíveis de conferirem exeqüibilidade às normas constitucionais.

Como se denota, as normas programáticas têm sua exeqüibilidade condicionada por fatores socioeconômicos competindo aos Poderes Legislativo e Executivo avaliarem a presença dos pressupostos fáticos necessários à sua implementação, que se dá de forma gradual, segundo a evolução da própria

28 Ibidem, p. 250/1.29 Ibidem, p 252.

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comunidade conformada pelo ordenamento jurídico constitucional vigente em certo Estado e em determinado momento histórico. E, assim sendo, a omissão inconstitucional só ocorrerá se ficar evidenciada a inércia estatal em um contexto onde haja condições econômicas e sociais indispensáveis à implementação dos enunciados normativos programáticos.

Nesse cenário, contrastando o pensamento de JORGE MIRANDA, com a doutrina de ANA PAULA DE BARCELLOS30, pode-se concluir que as normas programáticas não possuem eficácia simétrica ou positiva, mas, somente, negativa, de vedação do retrocesso e interpretativa. Explica-se:

A eficácia simétrica ou positiva de uma norma jurídica é aquela que atribui um verdadeiro direito subjetivo ao destinatário da disposição aparelhando-o a exigir judicialmente a produção dos efeitos emergentes do enunciado normativo, como, é o caso das disposições contidas no artigo 208, “caput” e inciso I c/c parágrafo 1º, da Constituição Federal, nos termos das quais é dever do Estado garantir o ensino fundamental obrigatório e gratuito como direito público subjetivo.

Já a eficácia jurídica negativa da norma jurídico-constitucional permite a declaração de invalidade das normas ou atos que contravenham os ditames da Constituição Federal, como, v.g., uma lei infraconstitucional que impedisse as pessoas de certa religião de freqüentar escolas públicas, pelo simples fato de pertencerem a determinado grupo religioso, consubstanciaria manifesta afronta ao comando do artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, nos termos do qual é inviolável a liberdade de consciência e de crença. Tal lei seria passível de ser declarada nula através do controle abstrato de constitucionalidade por ação, por força da eficácia negativa do artigo 5º, VI, da Lei Maior.

Por outro lado, com base em construção doutrinária que prestigia os direitos fundamentais, fala-se que algumas normas constitucionais possuem eficácia jurídica de vedação do retrocesso a qual impediria o Estado de revogar leis ou políticas destinadas a concretizar direitos sociais fundamentais, salvo se implementar, simultaneamente, medidas substitutivas daquelas revogadas. Assim, ilustrativamente, se o Estado houver estipulado o valor do salário mínimo em um patamar consentâneo com os ditames da Constituição, ele não poderá editar nova legislação, diminuindo o valor atribuído ao salário mínimo, pois, isso representaria um retrocesso em sede de implementação dos direitos sociais e, a legislação nesse sentido seria inconstitucional.

Por fim, destaca-se a eficácia interpretativa das normas constitucionais

30 BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais - O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp 75 e segs.

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que significa que as normas infraconstitucionais devem ser interpretadas em conformidade com as normas da Constituição Federal de modo que:

[...] os princípios constitucionais vão orientar a interpretação das regras em geral (não apenas as constitucionais, é bem de ver), de modo que o intérprete se encontra obrigado a optar, dentre as possíveis exegeses que o texto admite para o caso, aquela que realiza melhor o efeito pretendido pelo princípio constitucional pertinente. Notese que se trata de uma modalidade de eficácia jurídica exatamente porque se deve poder exigir que o magistrado faça essa opção.31

Do exposto infere-se que há uma imediata conexão entre o grau de densidade normativa de um enunciado da Constituição Federal e sua eficácia e aplicabilidade, sendo correto concluir que, as normas constitucionais de maior densidade normativa têm aptidão para, diretamente e sem a interposição legislativa, produzir seus principais efeitos, ao passo de que as normas constitucionais de baixa densidade normativa não podem potencialmente gerar seus efeitos essenciais32.

As normas programáticas têm baixa densidade normativa, por expressarem valores éticos de elevado grau de abstração e generalidade, motivo pelo qual seus comandos devem, em princípio, concretizar-se através da ação discricionária do legislador e do Poder Executivo.

Por outro lado, como as normas programáticas têm sua efetividade condicionada a fatores socioeconômicos, só haverá inconstitucionalidade por omissão pelo descumprimento delas se ficar evidenciado, na situação concreta submetida ao crivo do Poder Judiciário, que existem condições fáticas propícias à implementação dos direitos consagrados pelos comandos constitucionais programáticos.

2. EFICÁCIA E EFETIVIDADE DO DIREITO À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA À LUZ DA TEORIA DO MÍNIMO EXISTENCIAL

No decorrer dos últimos séculos filósofos e juristas contribuíram para a paulatina identificação dos direitos do homem, agrupando-os, pelo seu conteúdo, titularidade e eficácia, em várias gerações edificadas progressivamente ao longo da história.

Os direitos de primeira geração, concebidos no fim do século XVII,

31 BARCELLOS, Ana Paula. Ob cit., p. 99/100.32 SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 264.

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delimitam uma esfera de autonomia individual em face do poder do Estado, sendo, por tal motivo, denominados direitos de defesa de conteúdo negativo, dirigidos à abstenção do Poder Público, compreensivos das liberdades clássicas ou formais. São os denominados direitos civis e políticos, dentre os quais destaca-se o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei33.

O individualismo do Estado Liberal de Direito, caracterizado pela submissão ao império da lei, pela divisão de poderes e o enunciado e garantia dos direitos individuais, teve que evoluir diante da pressão exercida pelos movimentos sociais dos séculos XIX e XX no sentido de que fossem realizados objetivos de Justiça Social. Daí a concepção do Estado Social de Direito destinado a compatibilizar o capitalismo, como forma de produção, com a consecução do bem-estar social geral garantindo o desenvolvimento da pessoa humana.

Eis o motivo pelo qual as Constituições ocidentais passaram a prever capítulos de direitos econômicos e sociais34, denominados de direitos de segunda geração abrangentes das liberdades sociais, como, ilustrativamente, o direito de greve, de sindicalização, a limitação da jornada de trabalho; e das prestações sociais estatais de cunho positivo, concretizadas através das políticas públicas na área da saúde, educação, cultura, lazer, trabalho, etc. (grifos nossos).

Os direitos sociais estão umbilicalmente ligados ao princípio da Justiça Social, previsto como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (CF, art. 3º, I e III). Isto porque, a implementação dos direitos sociais é mecanismo indispensável para assegurar a redistribuição de renda, permitindo que a parcela economicamente menos favorecida da população possa compartilhar do bem-estar social, concretizando, assim, a igualdade e a liberdade reconhecidas como direitos de primeira geração apenas sob o aspecto formal35.

De acordo com JOSÉ AFONSO DA SILVA36 os direitos sociais são:

[...] prestações positivas proporcionadas pelo Estado, direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo

33 BULOS, Uadi Lamêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 402/3.34 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 112/5.35 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 56/8.36 SILVA, José Afonso. Ob. cit., p. 285/6.

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dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.

A doutrina é praticamente uníssona em qualificar os direitos sociais como aqueles destinados a tutelar os menos favorecidos e a realizar o postulado da igualdade real37, afinal, os direitos sociais têm a nítida função de beneficiar os hipossuficientes, com vistas à consagração dos princípios fundamentais da justiça e da solidariedade sociais (CF, art. 3º, I e III).

Destarte, como pontua JOSÉ EDUARDO FARIA.38:

[...] os direitos sociais não configuram um direito de igualdade, baseado em regras de julgamento que implicam um tratamento uniforme; são, isto sim, um direito das preferências e das desigualdades, ou seja, um direito discriminatório com propósitos compensatórios.

No ordenamento jurídico pátrio, o direito à saúde é uma espécie de direito social, já que é previsto no Capítulo II - -Dos Direitos Sociais-, da Constituição Brasileira, e é qualificado como direito fundamental denominação que designa os “direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”39.

Isto porque, o direito à saúde está contemplado no Título II, da Lei Maior - -Dos Direitos e Garantias Fundamentais-, caracterizando-se, inequivocamente, como direito fundamental reconhecido e protegido pelo direito constitucional positivo brasileiro.

Muitos doutrinadores negam aplicabilidade direta e imediata aos direitos sociais, econômicos e culturais consagrados na Lei Maior, sob o argumento de que tais direitos, por se caracterizarem como direitos à prestações, especialmente se tiverem por objeto prestações materiais, exigem uma interposição do legislador para serem passíveis de ser exigidos judicialmente40.

Contra tal raciocínio, entretanto, existe corrente doutrinária segundo a qual o princípio da aplicabilidade direta das normas definidoras de direitos fundamentais (CF, artigo 5º, parágrafo 1º) teria força normativa suficiente para conferir plena eficácia aos enunciados normativos da Constituição

37 BULOS, Uadi Lammêgo. Ob. cit, p. 619.38 FARIA, José Eduardo. “O Judiciário e os Direitos Humanos e Sociais: notas para uma avaliação da justiça brasileira”. In: Cireitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1994, p. 105.39 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., pp. 35/6.40 SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 272.

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que veiculam direitos sociais, econômicos e culturais, sendo lícito ao Poder Judiciário proteger tais direitos contra qualquer lesão ou ameaça de lesão apresentada ao seu conhecimento, preenchendo as lacunas da norma constitucional com base na analogia, nos costumes e nos princípios gerais de direito (LICC, art. 4º)41.

Nada obstante, não se pode contrariar a natureza das coisas, sendo forçoso reconhecer que a maior parte dos denominados direitos sociais, econômicos e culturais são positivados no texto constitucional através de enunciados de baixa densidade normativa, que não são aptos a conferir aos indivíduos a prerrogativa de exigir judicialmente que o Estado cumpra o correlato dever de oferecer os pressupostos materiais necessários ao gozo integral e efetivo da saúde, educação, moradia, lazer, etc.

Nesse cenário, conclui-se que a mais consentânea interpretação do enunciado do artigo 5º, parágrafo 1º, da Lei Maior é a de que se está diante de uma norma jurídica -de cunho inequivocamente principiológico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é, estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos fundamentais.42”.

Destarte, e em que pese o postulado da plena eficácia e aplicabilidade dos direitos fundamentais, há que se reconhecer que, em função da diversa estrutura jurídicopositiva dos dispositivos constitucionais que os contemplam, são diversos os graus de eficácia e efetividade de tais direitos.

No campo dos chamados direitos de defesa (liberdade, igualdade formal, garantias institucionais, etc.), que em regra exigem apenas um comportamento estatal omissivo, no sentido da não interferência na autonomia das pessoas, a norma do artigo 5º, parágrafo 1º garante a integral justiciabilidade às pretensões dos indivíduos em face do Estado para fazer valer os direitos individuais, em sua maior parte consagrados no extenso rol do artigo 5º da Constituição Federal.

Porém, ao contrário dos direitos de defesa, para cujo respeito é preciso, apenas, conservar uma situação existente, a efetivação dos denominados direitos sociais, econômicos e culturais, depende, diretamente, da aplicação de recursos orçamentários e da edição de medidas legislativas, já que a efetividade de tais direitos impõe sejam criadas novas situações materiais para que os hipossuficientes possam ter igualdade de oportunidade, participando da riqueza produzida pela comunhão social43.

Eis o motivo pelo qual tais direitos são geralmente previstos pelo legislador

41 CUNHA JÚNIOR, Dirley. Controle judicial das omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 270/1.42 Ibidem, p. 284.43 SARLET, Ingo Wolfang. Ob cit., p. 299.

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constituinte através de normas programáticas cuja eficácia está condicionada à reserva do possível, em sua dupla dimensão: (1) fática (existência material de recursos) considerando que as necessidades públicas são infinitas e que os recursos orçamentários são limitados, há que se reconhecer que o Estado não tem condições financeiras de conferir gratuitamente a todos os indivíduos condições ótimas de existência material (moradia, lazer, saúde, educação, etc.); e (2) jurídica (poder de dispor dos recursos) - os recursos públicos só podem ser movimentados e aplicados em necessidades previamente definidas nas leis orçamentárias, não bastando, assim, a existência material das verbas, mas, também, que estas estejam destinadas a atender a necessidade eleita (grifos nossos).

O direito à saúde é direito social fundamental que, sob o aspecto funcional, é classificado pelos constitucionalistas como uma espécie de direito à prestações materiais positivas, vinculado à realização progressiva dos fins e tarefas do Estado Social de Direito que, para eliminar gradualmente as desigualdades sociais, deve valer-se das políticas públicas dirigidas à implementação da igualdade material44.

Dada a sua característica de direito social à prestações estatais positivas, a concretização direito à saúde pressupõe a existência de recursos públicos destinados normativamente à implementar políticas sociais e econômicas tendentes à efetivar ações e serviços de saúde, o que leva à conclusão de que a norma do artigo 196 da Constituição Federal tem natureza programática, fato reafirmado pela análise do enunciado normativo do dispositivo constitucional em destaque, que contém conceitos jurídicos fluidos e indeterminados, o que, em princípio, impede sua aplicação direta pelo Poder Judiciário.

Deveras, conforme observa MARCOS MASSELI GOUVÊA45:

O art. 196 é um daqueles dispositivos da Constituição que, tradicionalmente, seriam considerados meramente programáticos, a despeito de qualificar a saúde como -direito de todos e dever do Estado-. Isto porque o termo saúde, à vista de seu caráter genérico, dificulta a definição de um campo preciso de sindicação. Em tese, seria possível aventar uma infinidade de medidas que contribuiriam para a melhoria das condições de saúde da população, decorrendo daí a necessidade de se precisar que meios de valorização da saúde poderiam ser postulados judicialmente. Um grupo de cidadãos poderia advogar que a ação do Estado, na área de saúde, fosse máxima, fornecendo tudo o quanto,

44 Ibidem, p. 228/30.45 Ob. cit., p. 206.

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ainda remotamente, pudesse satisfazer tal interesse; outros poderiam enfatizar o cuidado com as práticas preventivas, concordando com o fornecimento, pelo Estado, de vacinas de última geração, de eficácia ainda não comprovada; um terceiro grupo poderia pretender que o Estado desse impulso a uma política de saúde calcada na medicina alternativa, ou ao subsídio aos planos privados de saúde. Existem, enfim, um leque infinito de estratégias possíveis, o que aparentemente tornaria inviável sindicar-se prestações positivas, nesta seara, sem que o constituinte ou o legislador elegessem uma delas.

No mesmo sentido é o magistério de INGO WOLFANG SARLET46:

A necessidade de interposição legislativa dos direitos sociais prestacionais de cunho programático justifica-se apenas (se é que tal argumento pode assumir feição absoluta) pela circunstância já referida de que se cuida de um problema de natureza competencial, porquanto a relização destes direitos depende da disponiblidade dos meios, bem como em muitos casos da progressiva implementação e execução de políticas públicas na esfera socioeconômica.[...] Os direitos sociais prestacionais carecem de uma interpositio legislatoris pelo fato de ser extremamente difícil e, em certas situações, inviável, precisar, em nível constitucional, o conteúdo e alcance da prestação que constitui seu objeto.

Portanto, é forçoso concluir, preliminarmente, que o enunciado do artigo 196 da Constituição Federal contém um comando programático que, como tal, não é imediatamente aplicável pelo Poder Judiciário, carecendo para tanto, de interposição legislativa e/ ou administrativa (prática de atos materiais no sentido de criar e aparelhar determinado serviço público para viabilizar a concretização do comando constitucional programático), afinal “as normas-tarefa e normas-fim pressupõem, em larga medida, a clarificação conformadora efectuada pelas autoridades com poderes político-normativos”47.

Nada obstante, a compreensão integral do tema investigado exige que a referida conclusão preliminar seja complementada pelo estudo da teoria do mínimo existencial à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Confira-se:

O princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento e fim de toda a ordem jurídica, valor-fonte que condiciona a

46 Ob. cit. p. 310 e 327.47 CANOTILHO, J.J. Gomes. Ob cit., p. 1054.

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interpretação e aplicação das demais normas da Constituição Federal.48

A dignidade é qualidade inerente ao homem, irrenunciável e inalienável, atributo que qualifica a pessoa humana e dela não pode ser dissociado. Seu núcleo consubstancia a capacidade potencial de autodeterminação do indivíduo, sem referência a uma situação concreta, pois, também os incapazes possuem dignidade. Ademais, a dignidade humana possui uma dimensão cultural emergente da evolução histórica da humanidade que interage com a descrita dimensão natural, formando um todo indissociável49.

Segundo INGO WOLFANG SARLET50:

[...] a dignidade da pessoa é simultaneamente limite e tarefa dos poderes estatais. Na condição de limite da atividade dos poderes públicos, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada um e que não pode ser perdido ou alienado, porquanto, deixando de existir, não haveria mais limite a ser respeitado (considerando o elemento fixo e imutável da dignidade). Como tarefa imposta ao Estado, a dignidade da pessoa humana reclama que este guie as suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo, portanto, dependente (a dignidade) da ordem comunitária, já que é de se perquerir até que ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado ou da comunidade (este seria o elemento mutável da dignidade).

Assim é que, considerando o elemento fixo e imutável da dignidade da pessoa humana, para que esta seja efetivamente respeitada e preservada o homem deve ser tratado como um fim em si mesmo, e não como objeto, daí decorrendo o fundamento da profusão de normas jurídicas destinadas a proteger a vida e a integridade física e mental do homem, sua privacidade e liberdade, dentre as quais destacamos a vedação da tortura e das penas cruéis, a inadmissibilidade de se realizar experiências científicas com seres humanos, a proibição das provas obtidas por meios ilícitos, etc. Já, tendo como parâmetro o elemento mutável da dignidade, é dever do Estado proporcionar condições adequadas de vida ao indivíduo e sua família, dispensando-lhe

48 MENDES, Gilmar et al., Ob cit. p. 36.49 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 118/9.50 Ibidem, p. 119/20.

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proteção básica contra as vicissitudes51.Nesse cenário, impende destacar a arguta observação de LUÍS ROBERTO

BARROSO52:

[...] o conteúdo jurídico do princípio (dignidade da pessoa humana) vem associado aos direitos fundamentais, envolvendo aspectos dos direitos individuais, políticos e sociais. Seu núcleo material elementar é composto do mínimo existencial, locução que identifica o conjunto de bens e utilidades básicas para a subsistência física e indispensável ao desfrute da própria liberdade. Aquém daquele patamar, ainda quando haja sobrevivência, não há dignidade. O elenco de prestações que compõem o mínimo existencial comporta variação conforme a visão subjetiva de quem o elabore, mas parece haver razoável consenso de que inclui: renda mínima, saúde básica e educação fundamental. Há, ainda, um elemento instrumental, que é o acesso à justiça, indispensável para a exigibilidade e efetivação dos direitos.

Na mesma esteira, afirma GILMAR MENDES53 que:

[...] são vários e -gananciosamente- expansivos os âmbitos de proteção da dignidade humana, indo desde o respeito à pessoa como valor em si mesmo - o seu conceito metafísico como conquista do pensamento cristão -, até à satisfação das carências elementares dos indivíduos - e.g., alimentação, trabalho, moradia, saúde, educação e cultura -, sem cujo atendimento resta esvaziada a visão antropológico-cultural desse princípio fundamental.

Como se denota, os direitos fundamentais constituem desdobramentos do princípio da dignidade da pessoa humana54 sendo imperiosa, portanto, sua preservação e proteção para que a vontade soberana do legislador constituinte seja efetivamente implementada.

Por conseguinte, como anuncia J.J. GOMES CANOTILHO55:

51 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 122.52 O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas - Limites e Possibilidades da Constituição Brasileira. Rio de Janeiro. Renovar: 2001, p. 26/7, “apud” BONTEMPO, Alessandra Gotti. Direitos Sociais: Eficácia e Acionabilidade à luz da Constituição de 1988 .Curitiba. Juruá: 2008, p. 176.53 Ob. cit., p. 154.54 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 130.

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[...] o Estado, os poderes públicos, o legislador, estão vinculados a proteger o direito à vida, no domínio das prestações existenciais mínimas, escolhendo um meio (ou diversos meios) que tornem efectivo este direito, e, no caso de só existir um meio de dar efectividade prática, devem escolher precisamente este meio”.

-[...] todos (princípio da universalidade) têm um direito fundamental a um núcleo básico de direitos sociais (minimum core of economic and social rights), na ausência do qual o estado português se deve considerar infractor das obrigações jurídico-sociais constitucional e internacionalmente impostas. Nesta perspectiva, o -rendimento mínimo garantido-, as -prestações de assistência social básicas-, o -subsídio de desempregosão verdadeiros direitos sociais originariamente derivados da constituição sempre que eles constituam o standard mínimo de existência indispensável à fruição de qualquer direito. (grifos do autor)

E, diante da importância de se criarem políticas públicas dirigidas à implementação dos direitos sociais, econômicos e culturais para a real concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, muitos constitucionalistas pátrios defendem ser possível extrair do artigo 1º, I, da Constituição Federal determinados direitos fundamentais à prestações destinadas a assegurar aos indivíduos uma padrão de vida básico, caracterizador do denominado mínimo existencial.

Assim é que ANA PAULA DE BARCELLOS56 assinala a presença de “um núcleo de condições materiais que compõe a noção de dignidade de maneira tão fundamental que sua existência impõem-se como regra-, de maneira que, no caso de ser atingido esse núcleo essencial do princípio da dignidade da pessoa humana haverá violação da norma constitucional que, neste aspecto, têm eficácia simétrica ou positiva.

Ultrapassado esse núcleo essencial, a norma do artigo 1º, I, da Constituição Federal -mantém a sua natureza de princípio, estabelecendo fins relativamente indeterminados, que podem ser atingidos por meios diversos, dependendo das opções constitucionalmente legítimas do Legislativo e Executivo em cada momento histórico57”.

55 CANOTILHO, J.J. Tomemos a Sério os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 34. “apud” SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 353/4. Idem. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almendina, 1998, p. 470.56 Ob. cit., p. 226.57 Ibidem, p. 226.

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No mesmo sentido, LUIZ ROBERTO BARROSO58 pondera que:

O Estado constitucional de direito gravita em torno da dignidade da pessoa humana e da centralidade dos direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é o centro de irradiação dos direitos fundamentais, sendo freqüentemente indentificada como o núcleo essencial de tais direitos. Os direitos fundamentais incluem: [...] c) o mínimo existencial, que corresponde às condições elementares de educação, saúde e renda que permitam, em uma determinada sociedade, o acesso aos valores civilizatórios e a participação esclarecida no processo político e no debate público. Os três Poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário - têm o dever de realizar os direitos fundamentais, na maior extensão possível, tendo como limite mínimo o núcleo essencial desses direitos.

Sob outro enfoque, GILMAR MENDES59 deixa consignado que a norma constitucional que erige a dignidade da pessoa humana a fundamento de nossa República Federativa pode consubstanciar regra ou princípio, dependendo do caso concreto a ser analisado, em que pese seja extremamente problemática a identificação do núcleo da norma que se estabelece como regra. Assim:

[...] em relação ao que nela é princípio, existe um amplo grupo de condições de precedência, assim como um elevado grau de segurança no sentido de que, presentes tais condições, ela prevalece sobre as normas contrapostas; já com respeito à regra que ali igualmente se contém, diz-nos o mesmo Alexy que não cabe indagar em abstrato se ela precede ou não a outras normas, mas tão-somente se, numa dada situação concreta, ela foi violada, resposta que ele mesmo considera difícil porque, diante da imprecisão da norma da dignidade humana, existe um amplo espectro de soluções igualmente razoáveis para essa indagação.

O que o pensamento doutrinário exposto propugna, portanto, é a possibilidade de se atribuir eficácia simétrica ou positiva à norma constitucional que consagra a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Brasileiro, em que pese tratar-se de enunciado

58 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08. 59 MENDES, Gilmar Mendes et al. Ob. cit., p. 151.

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normativo excessivamente genérico e abstrato, com natureza prevalente de princípio, carente, portanto, de densidade normativa.

O problema que se evidencia, neste ponto, é que a delimitação do que seja o núcleo essencial de direitos fundamentais caracterizáveis como direitos subjetivos que poderiam ser diretamente extraídos do artigo 1º, I, da Constituição Federal, seria carreada ao Poder Judiciário, que, a partir da análise do caso concreto: (1) verificaria a eventual inexistência de uma política pública idônea a preservar a dignidade da pessoa humana na dimensão do mínimo existencial (definição da hipótese de incidência normativa) e, em seguida,; (2) atribuiria efeitos jurídicos a tal constatação, determinando as ações a serem implementadas pelo Poder Público para corrigir a omissão inconstitucional (estabelecimento da conseqüência jurídica).

E, assim agindo, o Poder Judiciário estaria proferindo uma sentença determinativa60 supressiva de uma lacuna constitucional heterônoma61, em nítida atividade de integração legislativa, já que, como sobredito, o artigo 1º, I, da Constituição Federal é norma constitucional desprovida da necessária densidade para ser diretamente aplicável.

Então, sobressaem duas problemáticas sobrepostas.A primeira consiste em saber se para regular o caso concreto há de fato

uma lacuna constitucional heterônoma ou, apenas, uma abertura intencional para regulamentação da norma pelo Poder Legislativo viabilizando -a luta política, a liberdade de conformação do legislador, a adaptação da disciplina normativa à evolução da vida (realidade) constitucional-62. Nessa última hipótese, o deficiente grau de eficácia da norma constitucional é conforme ao projeto regulador estipulado pelo legislador constituinte, enquanto que a existência de lacunas heterônomas contraria tal projeto, autorizando a intervenção do Poder Judiciário para apontar a omissão legislativa violadora de um direito fundamental.

A segunda problemática consiste em saber se, uma vez constatada a existência da lacuna constitucional, seria possível reconhecer ao Poder Judiciário a competência para criar uma regra jurídica que discipline o conflito

60 A sentença determinativa é concebida pela doutrina civilística como aquela através da qual o Juiz, instado a promover a revisão das cláusulas de determinado negócio jurídico para fazer valer os princípios da função social do contrato (CC, art. 421) e da boa fé objetiva (CC, art. 113), se vê na contingência de estabelecer novas cláusulas contratuais, integrando o negócio jurídico - NERY JÚNIOR, Nelson, et al. Código Civil Comentado. São Paulo: RT, 2006, p. 417.61 A lacuna constitucional heterônoma tem lugar quando não houverem sido editadas normas jurídicas infraconstitucionais aptas a completar a lei constitucional, consubstanciando-se uma clara violação aos princípios impositivos da Constituição diante da não consecução do plano regulamentar definido pelo legislador constituinte originário - CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1108.62 CANOTILHO, J. J. Gomes. Ob. cit., p. 1108.

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de interesse, diretamente a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, compelindo o Poder Executivo a ofertar ao indivíduo postulante da tutela jurisdicional uma prestação material apta a concretizar o direito fundamental lesado ou ameaçado de lesão.

Uma tal atividade judicial consubstanciaria, claramente, a promoção de uma política pública, ainda que referida a um indivíduo particularmente considerado. Assim, é mister indagar se Poder Judiciário teria legitimidade para regular imediatamente a situação concreta na hipótese aventada sem violar o princípio da Separação de Poderes e o postulado do Estado Democrático de Direito.

Ressalvando que o regime democrático pressupõe a formulação e a execução de políticas públicas pelo Poder Executivo, LUIZ ROBERTO BARROSO63 oferece resposta à indagação formulada, nos seguintes termos:

Como visto, constitucionalismo traduz-se em respeito aos direitos fundamentais. E democracia, em soberania popular e governo da maioria. Mas pode acontecer de a maioria política vulnerar direitos fundamentais. Quando isto ocorre, cabe ao Judiciário agir. É nesse ambiente, é nessa dualidade presente no Estado constitucional democrático que se coloca a questão essencial: podem juízes e tribunais interferir com as deliberações dos órgãos que representam as maiorias políticas - isto é, o Legislativo e o Executivo -, impondo ou invalidando ações administrativas e políticas públicas? A resposta será afirmativa sempre que o Judiciário estiver atuando, inequivocamente, para preservar um direito fundamental previsto na Constituição ou para dar cumprimento a alguma lei existente. Vale dizer: para que seja legítima, a atuação judicial não pode expressar um ato de vontade própria do órgão julgador, precisando sempre reconduzir-se a uma prévia deliberação majoritária, seja do constituinte, seja do legislador.

O questionamento, porém, está longe de ser equacionado, sendo mister promover uma mais acurada análise da problemática nos capítulos subseqüentes, onde serão abordados os óbices à atuação do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas. Entretanto, antes de encerrar este capítulo, é mister abordar a questão da eficácia do direito fundamental à saúde

63 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.

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sob a ótica da teoria do mínimo existencial. Senão vejamos:

A teoria do mínimo existencial tem sido utilizada para corroborar o raciocínio de que também é possível identificar um núcleo essencial de direitos fundamentais nas normas jurídicas que veiculam comandos programáticos, no sentido de conferir-lhes a máxima efetividade.

INGO WOLFANG SARLET enumera os pressupostos necessários ao reconhecimento da eficácia simétrica ou positiva das normas constitucionais que enunciam direitos sociais, econômicos e culturais, a saber: (1) a indispensabilidade da garantia efetiva do direito social ao exercício das liberdades fáticas (direitos de defesa); (2) a inexistência de séria afronta ao princípio da separação de poderes, especialmente no que concerne à edição e execução das leis orçamentárias, e a direitos fundamentais de terceiros. Em arremate, o multicitado doutrinador afirma que o padrão mínimo existencial, no campo dos direitos sociais, compreende “[...] formação escolar e profissional, uma moradia simples e um padrão mínimo de atendimento na área de saúde64”.

Em sintonia com o pensamento exposto, MARCOS MASELLI GOUVÊA65

ressalta que:

[...] mesmo normas prima facie programáticas podem ter um núcleo-jurídico positivo: embora não se possa obter do Estado uma prestação determinada, pode-se exigir que ao menos alguma atitude, dentre as eficazes, seja tomada diante de um certo problema de saúde. Existindo apenas uma opção de atuação eficaz, que permita a melhoria das condições de saúde ou a manutenção da vida da pessoa interessada, é esta mesma a conduta que deve ser adotada pelo poder público.

Na mesma esteira, ilustrando sua análise com o direito social à saúde, INGO WOLFANG SARLET66 assim se manifesta:

Tomando-se como exemplo o direito à saúde, verifica-se que assim como é correto (pelo menos é o que se irá sustentar mais adiante) deduzir da Constituição um direito fundamental à saúde (como complexo de deveres e direitos subjetivos negativos e positivos), também parece certo que ao enunciar

64 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 368/9.65 Ob. cit., p. 210.66 Ob. cit., p. 312.

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que a saúde - além se ser um -direito de todos-, -é dever do Estado, mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos...- (art. 196 da CF de 1988), a nossa Lei Fundamental consagrou a promoção e proteção da saúde para todos como um objetivo (tarefa) do Estado, que, na condição de norma impositiva de políticas públicas, assume a condição de norma de tipo programático. Importa notar, portanto, que a assim designada dimensão programática convive com o direito (inclusive subjetivo) fundamental, não sendo nunca demais lembrar que a eficácia é das normas, que, distintas entre si, impõe deveres e/ou atribuem direitos, igualmente diferenciados quanto ao seu objeto, destinatários, etc.

Deveras, o direito à saúde, por ser o mais estritamente relacionado à vida e à proteção da integridade física e mental do homem, é um dos mais imediatamente ligados ao princípio da dignidade da pessoa humana, já que a vida é o substrato dos demais direitos humanos fundamentais67.

Destarte, e com apoio nos posicionamentos doutrinários destacados, é possível inferir que a norma jurídica contida no enunciado do artigo 196 da Constituição Federal possui uma dupla dimensão de eficácia: no que concerne à garantia do núcleo essencial do direito à saúde (mínimo existencial), a norma em destaque tem eficácia simétrica ou positiva, impondo ao Poder Público o dever de disponibilizar à população as prestações materiais básicas na área de saúde voltadas à preservação da vida humana digna. Por outro lado, em relação à esfera periférica do direito à saúde, compreensiva de prestações materiais destinadas à melhoria da qualidade de vida das pessoas, a norma comentada tem natureza programática, cuja eficácia depende da atuação discricionária do legislador e do Poder Executivo, que têm liberdade de escolher os meios e a oportunidade ótima para regulamentá-la.

A complexidade da matéria, porém, não se esgota na conclusão apresentada, comportando ulteriores considerações, especialmente no que toca às limitações orçamentárias e ao conflito entre direitos fundamentais, afinal, não se pode desconsiderar que a implementação dos direitos sociais está condicionada por fatores socioeconômicos que podem representar sérias limitações à ação estatal, especialmente nos países em desenvolvimento, como é o caso do Brasil.

67 SARLET, Ingo Wolfang. Ob, cit., p. 344.

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3. OBJEÇÕES À INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NA ESFERA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA

No desenho institucional estabelecido pela Constituição da República Federativa do Brasil a atribuição de realizar políticas públicas68 pertence, inequivocamente, ao Poder Executivo, seja por força da legitimidade democrática de que o mesmo se reveste, seja por razões técnico-operacionais, já que a administração pública, com uma visão macroscópica da sociedade brasileira, tem maiores condições de detectar as carências da população e, a partir de tal diagnóstico, pode definir qual a dimensão dos recursos a ser investida, e quais as ações prioritárias a serem implementadas no sentido de garantir ao maior número de pessoas a realização de seus direitos sociais, econômicos e culturais.

Porém, para que o Poder Executivo alcance os objetivos, fins e metas a que se propõe, deve, preliminarmente, estar autorizado pelo Poder Legislativo, através das leis orçamentárias, a despender recursos públicos para executar ações e tarefas eleitas como prioritárias, a partir de critérios técnicos fundamentados e razoáveis.

Essa dinâmica institucional está fincada no princípio a Separação de Poderes que, além da vertente política fundamentada na soberania popular, também compreende uma dimensão técnico-operacional, como elucida MARCOS MASELLI GOUVÊA69:

O Legislativo e o Executivo acham-se aparelhados de órgãos técnicos capazes de assessorá-los na solução de problemas mais complexos, em especial daqueles campos que geram implicações macropolíticas, afetando diversos campos de atuação do poder Público. O Poder Judiciário, por sua vez, não dispõe de iguais subsídios; a análise que faz do caso concreto tende a perder de vista possíveis implicações fáticas e políticas da sentença, razão pela qual os problemas de maior complexidade - incluindo a implementação de direitos prestacionais - devem ser reservados ao administrador público.

Nesse cenário, e considerando que o direito fundamental à saúde, dada sua natureza de direito social prestacional, deve ser implementado através 68 Segundo AMÉRICO BEDÊ FREIRE JÚNIOR política pública significa -um conjunto ou uma medida isolada praticada pelo Estado com o desiderato de dar efetividade aos direitos fundamentais ou ao Estado Democrático” - O controle Judicial de Políticas Públicas. São Paulo: RT, 2005, p. 46.69 GOUVÊA, Marcos Maselli. O Controle Judicial das Omissões Administrativas. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 22-3.

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70 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.71 A Organização Mundial da Saúde publica periodicamente listas de medicamentos considerados essenciais e que devem ser obrigatoriamente disponibilizados à população dos vários Estados como direito humano à prestação material. As listas constam do “site” da Organização Mundial da Saúde e estão disponíveis em http://www.who.int/childmedicines/publications/EMLc%20(2).pdf e em http://www.who.int-medicines-news-Lancet_EssMedHumanRight.pdf, acesso em 05/05/2008.

de políticas públicas (CF, art. 196), evidencia-se competir ao Poder Executivo o dever de concretizálo através da adoção de medidas destinadas à redução do risco de doença e de outros agravos e que proporcionem aos indivíduos acesso às prestações positivas de promoção, proteção e recuperação da saúde.

A Constituição Federal, desde logo orientando a ação dos Poderes Legislativo e Executivo, traçou os contornos do Sistema Único de Saúde como rede regionalizada e hierarquizada organizada segundo os critérios: (1) da descentralização, com direção única em cada esfera de governo; (2) do atendimento integral, com prioridade para ações preventivas e (3) da participação da comunidade, evidenciando o caráter democrático do sistema (CF, art. 198).

E os comandos constitucionais em destaque foram minudenciados pela Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90) que prevê, no elenco de serviços ofertados no âmbito do Sistema Único de Saúde, a prestação de assistência terapêutica integral, inclusive farmacêutica (art. 6º, I, “d”).

E, para concretizar o comando legal em destaque, dentre outros vários atos administrativos, foi editada a Portaria n. 3.916/98, do Ministério da Saúde, que veicula a Política Nacional de Medicamentos, por força da qual, cada pessoa política deve elaborar listas de medicamentos a serem adquiridos e fornecidos gratuitamente à população, competindo ao gestor federal a formulação da Política Nacional de Medicamentos, com o auxílio aos gestores estaduais e municipais, e a elaboração da Relação Nacional de Medicamento (RENAME). Aos Municípios compete estabelecer a relação municipal de medicamentos essenciais, com base na RENAME e executar a assistência farmacêutica, de modo que o objetivo prioritário da atuação municipal é disponibilizar medicamentos destinados à atenção básica à saúde, além de outros considerados essenciais que estejam definidos no Plano Municipal de Saúde (grifos nossos)70.

Os medicamentos essenciais previstos na RENAME são escolhidos a partir dos parâmetros da Organização Mundial da Saúde71 que define medicamentos essenciais como aqueles que satisfazem às necessidades de saúde prioritárias da população, os quais devem estar acessíveis em todos os momentos, na dose apropriada, a todos os segmentos da sociedade, além de serem selecionados

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segundo critérios de relevância em saúde pública, evidências de eficácia e segurança e estudos comparativos de custo-efetividade.

Por força da Portaria n. 2.577/06/GM72, compete à União, em parceria com os Estados e o Distrito Federal, adquirir e distribuir os medicamentos de caráter excepcional que são destinados ao tratamento de patologias específicas, que atingem número limitado de pacientes, e que apresentam alto custo, seja em razão do seu valor unitário, seja em virtude da utilização por período prolongado (grifos nossos).

Portanto, o Poder Público, nas várias esferas de Governo, tem empreendido ações e programas de distribuição gratuita de medicamentos, desde os destinados à atenção básica, para o tratamento de doenças mais comuns, até os de caráter excepcional, voltados principalmente ao tratamento contínuo de doenças crônicas.

Porém, frente ao crescente e ininterrupto progresso tecnológico no campo da indústria farmacêutica, é impraticável a inclusão imediata dos medicamentos recentemente lançados nas listas elaboradas pelo Poder Público, seja por força da necessidade de avaliar previamente a eficácia terapêutica das novas drogas, seja em razão do elevadíssimo custo de alguns medicamentos e dos inegáveis impactos orçamentários de sua padronização.

Eis o motivo pelo qual proliferam ações judiciais em que se busca instar o Poder Público a fornecer gratuitamente ao postulante da tutela jurisdicional medicamentos que não são contemplados nas listas dos programas oficiais de assistência farmacêutica ou, remédios que, ainda que previstos nas listas referidas, não estejam indicados, segundo os protocolos clínicos oficiais, para tratar a patologia que acomete o demandante.

E o Poder Judiciário tem tutelado as pretensões deduzidas pelos particulares nesta seara, interferindo, dessa maneira, na política pública de assistência farmacêutica promovida pelo Poder Executivo, nas várias esferas de governo. Logo o argumento central contra os mandados judiciais de entrega de medicamentos tem sido o princípio da Separação de Poderes, afinal, no desenho institucional concebido pelo legislador constituinte, quem tem poder discricionário para promover políticas públicas é o Poder Executivo.

A teoria da Separação de Poderes formulada no âmbito do Estado Moderno por Montesquieu teve por escopo a proteção de liberdades individuais contra a atuação de Governantes hegemônicos, consagrando os ideais do liberalismo

72 A Portaria N. 2.577/GM, de 27 de outubro de 2006, aprova a lista de medicamentos cuja aquisição e distribuição gratuita é tarefa da União - http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-2577.htm, acesso em 15/05/2008.73 FERREIRA, Camilia Duran, et al. O Judiciário e as Políticas de Saúde no Brasil: o caso da AIDS. Disponível em: http://getinternet.ipea.gov.br/SobreIpea/40anos/estudantes/monografiacamila.doc. Acesso em: 06/05/08.

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econômico voltados à preservação dos chamados direitos de defesa, ou de primeira geração (vida, liberdade, segurança, propriedade, etc.)73.

A Separação de Poderes na forma originariamente concebida não contemplava uma atuação estatal no sentido de assegurar o bem-estar das pessoas, através da oferta de serviços públicos, limitando-se o Estado Liberal a garantir a segurança jurídica, mediante a salvaguarda das liberdades individuais.

Por conseguinte, o surgimento do Estado do Bem-Estar, entre os séculos XIX e XX causou inegável impacto no princípio da Separação de Poderes, com o fortalecimento institucional do Poder Executivo, instância responsável pela organização e execução dos serviços públicos de assistência social.

No Brasil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, com nítida feição dirigente, a tarefa de promover a redistribuição de renda e realizar a Justiça Social através da concretização dos direitos sociais, especialmente os direitos a prestações materiais, passou a ser o principal desafio do Poder Executivo a ser realizado através das políticas públicas.

Entretanto, para que o Poder Executivo exerça regularmente a atribuição de implementar políticas públicas ele necessita estar imbuído da chamada competência discricionária que é exercida nos termos e limites da lei a qual delimita os contornos da ação estatal e autoriza a realização das despesas destinadas à implantação efetiva dos serviços públicos de assistência social (leis orçamentárias).

Em princípio, a competência discricionária do Governo para implementar políticas públicas segundo critérios de conveniência e oportunidade, desde que contida nos limites da lei, não pode ser reavaliada pelo Poder Judiciário, exatamente por força do princípio da Separação de Poderes. Logo, no caso específico da assistência farmacêutica, a tutela conferida às pretensões individuais deduzidas em juízo seria, aparentemente, desbordante da competência jurisdicional por representar nítida interferência no campo da ação institucional do Poder Executivo.

Ocorre que, a real presença da discricionariedade administrativa só pode ser avaliada perante o caso concreto, pois, “[...] a compostura do caso concreto excluirá obrigatoriamente algumas das soluções admitidas in abstracto na regra e, eventulamente, tornará evidente que uma única medida seria apta a cumprir-lhe a finalidade”74.

Destarte, o Poder Executivo, ao implementar ações e serviços voltados à assistência farmacêutica atuará discricionariamente se existirem várias alternativas terapêuticas para tratar determinada patologia e uma delas for disponibilizada gratuitamente aos pacientes. Nessa seara, a interferência jurisdicional será ilegítima, pois, é ínsito ao conceito de discricionariedade

74 Ibidem, p. 907.

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administrativa o poder de eleger, dentre as alternativas viáveis, aquela mais conveniente e oportuna ao atendimento da necessidade pública identificada.

Ainda, o Poder Judiciário não pode instar o Poder Público a fornecer aos postulantes de tutelas jurisdicionais medicamentos cuja eficácia terapêutica seja questionável, seja por falta de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, seja por indicação “off label”75, pois, a competência discricionária da administração pública abrange a definição de critérios técnicos acerca da eficácia e segurança dos medicamentos que não são sindicáveis na esfera jurisdicional.

Porém, se para o tratamento de certa doença, existir somente uma opção terapêutica eficaz da qual dependa a preservação da vida do paciente, o Poder Executivo estará em princípio vinculado adotá-la, já que, se no caso concreto só houver uma alternativa idônea a preservar o direito fundamental à vida, não há campo para o exercício do poder discricionário do Governante. Em tal hipótese, havendo omissão do Poder Público, poderá este ser compelido judicialmente a fornecer o medicamento de alto custo, com fundamento na teoria do mínimo existencial, afinal, em que pese o princípio da Separação de Poderes, é possível afirmar que a vontade soberana do legislador constituinte deve prevalecer quando se trata de preservar o direito fundamental à vida da pessoa humana.

Nada obstante, esta última afirmação só é verdadeira se a aquisição do medicamento de alto custo no caso concreto submetido à apreciação judicial não colocar em risco outras ações e serviços em prejuízo aos demais usuários do Sistema Único de Saúde - SUS. Explica-se:

O financiamento do Sistema Único de Saúde é realizado por todas as pessoas políticas que são obrigadas a investir determinados percentuais mínimos de receitas públicas na

75 Muitas vezes o postulante da tutela jurisdicional busca receber medicamento com amparo na prescrição “off label”, mediante a qual o médico dispensa determinado medicamento já conhecido no mercado farmacêutico, mas para tratar patologia não contemplada na indicação terapêutica da bula do remédio. A prescrição, no caso, é baseada em conhecimentos adquiridos em congressos e na literatura científica. Em tal hipótese, a responsabilidade pela eficácia do tratamento e dos possíveis efeitos colaterais é integralmente atribuída ao médico que avia a receita, pois, a indicação proposta não tem amparo da Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, que aprovou a droga para tratamento de patologia diferente daquela que acomete o paciente (VIVIANO, Lúcia. Uso “off label” De Medicamentos. Disponível em: http://www.cvs.saude.sp.gov.br/pdf/bfarmaco_2.pdf. Acesso em 15/04/2008.) Na verdade, a prática deveria ser autorizada, unicamente, na esfera das pesquisas clínicas patrocinadas pelo próprio laboratório fabricante da droga, pesquisas estas que devem ser aprovadas pelo Ministério da Saúde, com o cumprimento de rigoroso protocolo clínico pelos pesquisadores, a fim garantir a segurança dos pacientes.

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implementação das ações e serviços de saúde, de acordo com o que for definido em lei complementar (CF, art. 198, parágrafo 2º). A referida lei complementar, até hoje, porém, não foi editada, estando em vigor, portanto, o disposto no artigo 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que estabelece percentuais mínimos de receita a serem aplicados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios nas ações e serviços de saúde.

O descumprimento das disposições constitucionais em destaque é fundamento para decretação de intervenção federal nos Estados e Distrito Federal (CF, art. 34, VII, “e”) e destes nos Municípios (CF, art. 35, III), e pode ser invocado como condição que impede a transferência de receitas tributárias da União aos Estados e ao Distrito Federal e destes aos Municípios (CF, art. 160, parágrafo único, II).

A elaboração da proposta orçamentária do Sistema Único de Saúde é atribuição de todas as pessoas políticas e deve corresponder às exigências de aportes financeiros destinados a realizar o plano de saúde governamental para o exercício respectivo (art. 15, Lei n. 8080/90).

Ademais, os recursos destinados à concretização das finalidades do Sistema Único de Saúde são previstos na Lei Orçamentária Anual, elaborada segundo proposta orçamentária da direção nacional do SUS, com a participação dos órgãos da Previdência Social e da Assistência Social, tendo em vista as metas e prioridades estabelecidas na Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 31, Lei n. 8080/90).

Por força do princípio da legalidade orçamentária, as despesas realizadas pelos órgãos integrantes do Sistema Único de Saúde só podem ser financiadas com recursos previstos no orçamento respectivo.

Eis o motivo pelo qual a Lei n. 8080/96 determina que os planos de saúde serão a base das atividades e programações de cada nível de direção do Sistema Único de Saúde (SUS), e seu financiamento será previsto na respectiva proposta orçamentária (art. 36, parágrafo 1º), sendo vedada a transferência de recursos para o financiamento de ações não previstas nos planos de saúde, exceto em situações emergenciais ou em caso de calamidade pública (art. 36, parágrafo 2º).

A premente necessidade de atender aos mandados judiciais que estipulam prazos exíguos para o fornecimento de remédios consubstancia, inequivocamente, situação emergencial na forma prevista pelo parágrafo 2º, do artigo 36, da Lei n. 8080/96, a qual autoriza a transferência de recursos de uma ação e serviço de saúde para outra, pois, do contrário, a pessoa política destinatária da ordem judicial poderá ser penalizada, seja pela incidência de

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multa diária, seja com o bloqueio de verbas públicas76.Logo, o Administrador, premido pela necessidade de atender às leis

orçamentárias, notadamente ao princípio da legalidade, e para cumprir com presteza as ordens judiciais, simplesmente retira recursos do próprio orçamento da saúde para adquirir os medicamentos e insumos farmacêuticos solicitados pelos demandantes, o que representa inegável prejuízo à população que é atendida pelo Sistema Único de Saúde - SUS, cujas ações podem ficar comprometidas para dar atendimento às requisições judiciais de medicamentos.

Assim, o óbice da reserva do possível não pode ser simplesmente desprezado pelas decisões judiciais que, especialmente em um cenário de multiplicação de demandas, podem potencialmente, desorganizar o Sistema Único de Saúde afetando o integral atendimento dos pacientes regularmente credenciados em programas públicos de acesso gratuito a medicamentos, os quais são imediatamente atingidos pelo desvio de recursos originariamente alocados.

Na matéria, destaca-se a arguta observação de LUIS ROBERTO BARROSO77:

São comuns, por exemplo, programas de atendimento integral, no âmbito dos quais, além de medicamentos, os pacientes recebem atendimento médico, social e psicológico. Quando há alguma decisão judicial determinando a entrega imediata de medicamentos, freqüentemente o Governo retira o fármaco do programa, desatendendo a um paciente que o recebia regularmente, para entregá-lo ao litigante individual que obteve a decisão favorável.

Evidencia-se, portanto, que a situação descrita consubstancia verdadeira colisão entre os direitos fundamentais à vida e à saúde do postulante da tutela jurisdicional, de um lado, e do paciente que é cadastrado previamente no programa do Governo, de outro, que corre o risco de ficar sem atendimento, sendo possível afirmar que nessa seara o óbice da reserva do possível merece

76 É expressiva a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o descuprimento de mandados judiciais que determinam ao Poder Público a entrega de medicamentos aos beneficiários das tutelas jurisdicionais enseja o bloqueio de verbas públicas, com base no artigo 461, parágrafo 5º, do CPC, como meio de efetivar o direito do postulante. Nesse sentido, confira-se os seguintes julgados: AgRg no REsp 935083; AgRg no REsp 880955; REsp 900458; AgRg no REsp 851797; REsp 836913; AgRg no REsp 888325; REsp 890441; REsp 840912.77 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.

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consideração, conforme alerta INGO WOLFANG SARLET:

A reserva do possível constitui, em verdade (considerada em toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflitos de direitos, quando se cuidar da invocação - observados sempre os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos - da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental.78

Na mesma esteira, há julgados recentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo acolhendo a tese de ser inviável a salvaguarda do direito à vida e à saúde do postulante da tutela judicial se ficar demonstrado que a despesa pública efetuada para fornecer o medicamento pretendido é idônea a comprometer o orçamento destinado à saúde pública, em prejuízo de outras parcelas da população que ficariam sem acesso às ações e serviços de saúde. Eis alguns trechos emblemáticos extraídos dos votos proferidos pelos Desembargadores Relatores dos acórdãos:

A aquisição a preço de mercado de medicamento específico para um paciente, que teve a felicidade de conseguir o concurso de um advogado para acionar o Poder Judiciário, custa, economicamente, desvio de verbas da saúde, com o risco do perecimento de centenas de crianças carentes por falta de uma simples vacina. Lastima-se o mal que só pode ser combatido com medicamentos caríssimos e importados mas, direcionar-se recurso público para esse particular paciente implica em sacrificar o necessário recurso que seria destinado a uma vacina, medida preventiva indispensável para a sobrevivência de milhares de crianças originárias, igualmente de bolsões de miséria que cercam s grandes cidades. Trata-se de evidente inversão de valores.79 (Apelação Cível 646.308-5/5-00, 7ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Cláudio Marques, julgado em 09/11/2007)

Há de se ter em mente que causas como a presente, versando sobre a distribuição gratuita de medicamentos, possuem implicações muito mais

78 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. Cit. Pp. 305.79 Apelação Cível 646.308-5/5-00, 7ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Cláudio Marques, julgado em 09/11/2007 - www.tj.sp.gov.br , acesso em 27/04/2008.

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amplas e complexas do que se poderia inicialmente imaginar. A proliferação indiscriminada de ordens judiciais determinando a aquisição de medicamentos caríssimos e não devidamente incorporados às listas e programas oficiais acaba, em última instância, comprometendo totalmente o planejamento realizado pelo Poder Executivo para a já combalida área da saúde pública no país. Apenas a título de exemplo, pesquisas recentes indicam que no Estado de São Paulo quase um terço da verba para a compra de medicamentos é consumida no cumprimento de decisões judiciais que beneficiam menos de um décimo da população que recebe gratuitamente remédios na rede pública. É fácil perceber que ta quadro torna quase que inviável a concretização de políticas públicas visando a redução da desigualdade e a realização tão reclamada da justiça social.80

Com efeito, num contexto em que se multiplicam as demandas judiciais para que o Estado forneça gratuitamente aos indivíduos os medicamentos mais modernos, de última geração e de elevadíssimo custo, há evidente comprometimento da eficiência do Sistema Único de Saúde - SUS, conforme alerta LUIZ ROBERTO BARROSO81:

Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamento irrazoáveis - seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade -, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal - União, Estados e Municípios - deve ser responsabilizada pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e de defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.

Forçoso concluir, assim, que o deferimento indiscriminado de tutelas jurisdicionais para garantir o direito à saúde de uns, em detrimento de outros, pode não ser a melhor solução para equacionar o problema da falta de

80 Apelação Cível 734.721-5/9-00, 2ª Câmara Cível do TJSP, Relator Des. Corrêa Vianna, julgado em 26/02/2008 - www. tj.sp.gov.br , acesso em 27/04/2008.81 BARROSO, Luiz Roberto. Da Falta de Efetividade à Judicialização Excessiva: Direito à Saúde, Fornecimento Gratuito de Medicamentos e Parâmetros para a Atuação Judicial. Artigo publicado em: www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf - Acesso em 26/04/08.

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efetividade das ações e serviços de saúde no Brasil. A questão é mais profunda, e perpassa pela legitimidade do Poder Judiciário para interferir na elaboração das leis orçamentárias, única maneira efetiva de garantir que não haverá injustiças na distribuição dos parcos recursos que integram o orçamento da saúde. Essa temática, porém, não será desenvolvida no presente estudo, cujo objetivo é, singelamente, identificar os limites da atuação do Poder Judiciário na tutela de pretensões individuais ao fornecimento gratuito de medicamentos de alto custo pelo Poder Público.

4. A JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A TUTELA DO DIREITO INDIVIDUAL AO FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS DE ALTO CUSTO

Há mais de dez anos o Supremo Tribunal Federal fixou entendimento de que nossa Constituição abriga o direito público subjetivo à saúde, como conseqüência imediatamente dedutível do direito à vida, inviolável e indisponível, e consagrado no artigo 5º, “caput”, da Lei Maior, sendo, por conseguinte, dever do Estado zelar pela sua implementação.

Ilustrativamente, em julgamento de 29 de junho de 1999, a 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, confirmou acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, pelo qual o Estado fora condenado a fornecer gratuitamente à pessoa carente, os medicamentos necessários ao tratamento da AIDS. Considerou-se que, por força da Lei Estadual n. 9.908/93, o Estado do Rio Grande do Sul vinculara-se a programa de distribuição gratuita de medicamentos, não podendo, portanto, furtar-se à obrigação de fornecer os remédios à população, ante o comando emergente do artigo 196 da Constituição Federal (RE 242.859/RS - DJ 17/09/99).

Na ocasião, os argumentos clássicos no sentido de obstar o deferimento da tutela individual ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Estado, a saber, o princípio da reserva do possível, sob os aspectos econômicos (recursos limitados X necessidades públicas infinitas) e jurídicos (limitações orçamentárias - compete ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo estabelecer a aplicação da receita pública), não foram acolhidos como idôneos a afastar o dever do estatal de concretizar o direito à saúde.

Esse entendimento, por seu turno, também foi acatado pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, que, em julgamento realizado em 12 de setembro de 2000, afirmou que o Estado (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) não pode furtar-se ao dever de zelar pela vida humana, para cuja preservação a saúde é condição essencial, sob pena de incorrer em grave omissão inconstitucional. Os Ministros admitiram que a norma do artigo 196 da Constituição Federal é programática, mas obtemperaram que entre

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proteger um interesse financeiro do Estado (reserva do possível), e tutelar o direito à vida e à saúde, há que se privilegiar este último, por razões de ordem ético-jurídica (RE-AgR 271286/RS - Julgamento 12/09/00 - DJU 24/11/00).

No mesmo sentido, os seguintes julgados da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal: AI-AgR 616551/GO - DJU 30/11/07; AI-AgR 648971/RS - DJU 28/09/07; AI-AgR 604949/RS - DJU 24/11/06; RE-AgR 255627/RS - DJU 23/02/00.; RE-AgR 393175/ RS - DJU 12/12/06.

Sintetizando os argumentos que fundamentam os julgados de nossa Corte Constitucional, acerca da atuação do Poder Judiciário na implementação da política pública de assistência farmacêutica, pode-se destacar o seguinte:

- o direito à saúde é conseqüência indissociável do direito à vida (CF, art. 5º, “caput”), qualificando-se como direito fundamental, sendo relevante expressão das liberdades reais e concretas;

- deve-se reconhecer efetividade aos preceitos fundamentais da Constituição Federal, não bastando a proclamação do reconhecimento formal do direito à saúde, sendo mister respeitá-lo e garanti-lo;

- a norma do artigo 196 da Constituição Federal tem natureza programática, mas não pode ser convertida em promessa constitucional vazia, sob pena do Estado descumprir a vontade soberana do legislador constituinte originário;

- a função primordial do Estado é proporcionar às pessoas o mínimo existencial apto à assegurar a preservação da dignidade humana;

- no conflito entre a inviolabilidade do direito à vida e à saúde e o interesse financeiro do Estado, deve prevalecer o direito à vida e à saúde.

Infere-se, assim, que o Supremo Tribunal Federal tem se mostrado sensível ao acolhimento das pretensões individuais no sentido de obrigar o Estado, em sua acepção genérica (União, Estados, Distrito Federal e Municípios), ao fornecimento gratuito de medicamentos, sem delimitar parâmetros seguros para definir o conteúdo do direito subjetivo à saúde assegurado pela Lei Maior.

A orientação jurisprudencial parece fincar-se na concepção de que:

[...] ao Estado não apenas é vedada a possibilidade de tirar a vida (daí, por exemplo, a proibição das pena de morte), mas

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também que a ele se impõe o dever de proteger ativamente a vida humana, já que esta constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer direito (fundamental ou não).82

Por outro lado, as decisões de nossa Corte Constitucional superam o óbice da falta de legitimidade democrática do Poder Judiciário para implementar políticas públicas com o argumento de ser inquestionável a vontade do legislador constituinte federal em preservar a vida da pessoa humana, pois, “[...] na esfera das condições existenciais mínimas encontramos um claro limite à liberdade de conformação do legislador”83. Do mesmo modo, a limitação imposta pelo princípio da reserva do possível é rechaçada sob a fundamentação de que no conflito entre o direito à vida da pessoa humana e os interesses financeiros do Estado, há de prevalecer àquele.

E, com base na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem sido crescente a multiplicação de demandas individuais em que se postula o fornecimento gratuito de medicamentos, gerando um significativo comprometimento do orçamento público alocado para a assistência farmacêutica que é desviado para cumprimento dos mandados judiciais de entrega de medicamentos, em detrimento de outros pacientes previamente cadastrados em programas oficiais.

Em sintonia com tal circunstância, e diante da necessidade de traçar limites à atuação do Poder Judiciário, as recentes decisões da Ministra Ellen Gracie, proferidas em pedidos de Suspensão de Tutela Antecipada, Suspensão de Liminares e Suspensão de Seguranças, apontam no sentido de que o direito ao fornecimento gratuito de medicamentos pelo Poder Público deve ser reconhecido de acordo com os princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Daí os pedidos terem sido analisados de forma casuística, não se admitindo análise genérica, mas, necessariamente tópica.

Os principias parâmetros identificados no sentido da manutenção da decisão de fornecer medicamentos aos pacientes, explicitados nas decisões da Ministra Ellen Gracie, foram os seguintes:

- a hipossuficiência econômica do beneficário da tutela jurisdicional questionada84;- a gravidade da doença (risco de morte e/ou seqüelas

82 SARLET, Ingo Wolfang. Ob. cit., p. 373.83 Ibidem, p. 373.84 STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/ RJ, DJU: 21/06/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.

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graves)85 ;- o registro do medicamento na ANVISA ou a existência de outro meio técnico confiável de comprovação da eficácia terapêutica86 .- a comprovação por laudo médico de que a doença não responde a outros tratamentos ofertados pelo SUS87.

No sentido da inadmissibilidade da manutenção do fornecimento dos medicamentos, podem ser elencados os seguintes argumentos extraídos das decisões da Ministra Ellen Gracie:

- a existência de alternativas de tratamento mais baratas e eficientes, ainda que não ofereçam o mesmo conforto, pois, v.g., a forma de aplicação é mais dolorosa88;- o fato da eficácia do medicamento não ser comprovada, seja por falta do registro na ANVISA, seja por comprovação por laudo científico de instituição abalizada apresentado pelo Estado89;- o fato da doença não representar risco à vida e à saúde do paciente, como é o caso da infertilidade feminina90.

Estas decisões demonstram ser imperioso aplicar o princípio da razoabilidade na solução de controvérsias propostas nesta seara. Afinal, como alerta INGO WOLFANG SARLET91:

[...] a prestação reclamada deve corresponder ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir da sociedade, de tal sorte que, mesmo em dispondo o Estado dos recursos e tendo o poder de disposição, não se pode falar em uma obrigação de prestar algo que não se mantenha nos limites do razoável.

85 SL 188/SC, DJU: 01/02/08; STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/ RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.86 STA 162/RN, DJU: 25/10/07; STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3158/RN, DJU: 08/06/07; SS 3183/SC, DJU: 13/06/07; SS 3231/RB, DJU: 01/06/07; SS 3382/RN, DJU 29/11/07, SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SL 166/RJ, DJU: 21/06/07; SS 3403/ PR, DJU: 04/12/07.87 STA 138/RN, DJU: 19/09/07; SS 3205/AM, DJU: 08/06/07; SS 3345/RN, DJU: 19/09/07; SS 3196/RN, DJU: 15/06/07.88 STA 139/RN, DJU: 10/09/07; SS 3145/RN, DJU: 18/04/07.89 SS 3073/RN, DJU: 14/02/07; SS 3403/PR, DJU: 04/12/07.90 SS 3322/GO, DJU: 26/09/07; SS 3350/GO, DJU: 23/08/07; SS 3274/GO, DJU: 22/08/07; SS 3263/GO, DJU: 02/08/07; SS 3201/GO, DJU: 27/06/07.91 Ob. cit., p. 304, 347 e 376.

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Assim, poder-se-ia sustentar que não haveria como impor ao Estado a prestação de assistência social a alguém que efetivamente não faça jus ao benefício, por dispor, ele próprio, de recursos suficientes para o seu sustento.

[...] o princípio da proporcionalidade também opera nesta esfera e que não se afigura como proporcional (e até mesmo razoável) que um particular que disponha de recursos suficientes para financeira um bom plano de saúde privado (sem o comprometimento de um padrão digno de vida para sai e sua família, e sem prejuízo, portanto, do acesso a outros bens fundamentais como educação, moradia, etc) possa cessar, sem qualquer tipo de limitação ou condição, o sistema público de saúde nas mesmas condições que alguém que não esteja apto a prover com recursos próprio a sua saúde pessoa. (...) Em termos de direitos sociais básicos a efetiva necessidade haverá de ser um parâmetro a ser levado a sério, juntamente com os princípios da solidariedade e da proporcionalidade.

[...] De outra parte, resulta igualmente evidente que - consoante admitido pelo próprio Alexy e já frisado - mesmo no plano de um mínimo existencial (inclusive quando restrito a um mínimo de sobrevivência, a depender das circunstâncias) não deixa de ocorrer, por vezes, agudo comprometimento dos recursos públicos, especialmente em países com grandes parcelas da população compostas por pobres e miseráveis, onde, portanto, largas parcelas dos cidadãos dependem das prestações públicas na esfera da proteção social básica.

Esse derradeiro aspecto, concernente ao princípio da reserva do possível fática, foi especialmente prestigiado pela Ministra Ellen Gracie ao deferir pedido de suspensão da tutela antecipada formulado pelo Estado de Alagoas em face de decisão do Presidente do Tribunal de Justiça do Estadual que, no âmbito de ação coletiva, determinava, genericamente, que o Estado fornecesse todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados renais e pacientes renais crônicos (STA 91/AL, DJU 05/03/07). Eis alguns trechos da decisão da Ministra:

(...) a liminar impugnada é genérica ao determinar que o Estado forneça todo e qualquer medicamento necessário ao tratamento dos transplantados renais e pacientes renais crônicos. (...) o fornecimento de medicamentos, além daqueles relacionados na Portaria nº 1.318 do Ministério da Saúde e sem o necessário cadastramento dos pacientes, inviabiliza

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a programação do Poder Público (...) a gestão da política nacional de saúde, que é feita de forma regionalizada, busca uma maior racionalização entre o custo e o benefício dos tratamentos que devem ser fornecidos gratuitamente, a fim de atingir o maior número possível de beneficiários. Entendo que a norma do art. 196 da Constituição da República, que assegura o direito à saúde, refere-se, em princípio, à efetivação de políticas públicas que alcancem a população como um todo, assegurando-lhe acesso universal e igualitário, e não a situações individualizadas. A responsabilidade do Estado em fornecer os recursos necessários à reabilitação da saúde de seus cidadãos não pode vir a inviabilizar o sistema público de saúde. No presente caso, ao se conceder os efeitos da antecipação da tutela para determinar que o Estado forneça os medicamentos relacionados “(...) e outros medicamentos necessários para o tratamento (...)” (fl. 26) dos associados, está-se diminuindo a possibilidade de serem oferecidos serviços de saúde básicos ao restante da coletividade. Ademais, a tutela concedida atinge, por sua amplitude, esferas de competência distintas, sem observar a repartição de atribuições decorrentes da descentralização do Sistema Único de Saúde, nos termos do art. 198 da Constituição Federal. Finalmente, verifico que o Estado de Alagoas não está se recusando a fornecer tratamento aos associados (fl. 59). (...) defiro parcialmente o pedido para suspender a execução da antecipação de tutela, tão somente para limitar a responsabilidade da Secretaria Executiva de Saúde do Estado de Alagoas ao fornecimento dos medicamentos contemplados na Portaria n.º 1.318 do Ministério da Saúde (...). (grifos nossos)

Como se denota, na decisão em destaque evidencia-se especialmente o choque entre direitos fundamentais imposto por força do princípio da reserva do possível, tendo a Ministra Ellen Gracie reconhecido, implicitamente, não ser admissível colocar em risco o atendimento regular de pacientes previamente cadastrados no Sistema Único de Saúde (direito a vida e à saúde de uns), para tutelar a pretensão do postulante da tutela jurisdicional (direito à vida e à saúde de outros).

CONCLUSÃO

A afirmação de que o ser humano é livre e igualmente amparado pelo sistema normativo posto não assegura que, no mundo fenomênico, todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades sociais de desenvolver os vários

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aspectos de sua personalidade. Por força dessa constatação, entre os séculos XIX e XX foi concebido o denominado Estado do Bem Estar Social ao qual compete proporcionar às pessoas a fruição de bens e utilidades para que todos possam viver dignamente.

Um dos meios jurídicos idôneos a alcançar o desiderato do -Welfare State- é a oferta de serviços públicos voltados à concretização do direito social às prestações materiais, garantindo a igualdade de oportunidade, inclusive para que os cidadãos possam efetivamente participar de decisões políticas necessárias à manutenção e ao desenvolvimento do Estado, exercendo, de fato, a democracia.

O Brasil qualifica-se como Estado Social de Direito, pois, a República Federativa do Brasil tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), e como objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização, para reduzir as desigualdades sociais e regionais (CF, art. 3º, I e III), além do legislador constituinte contemplar um vasto rol de direitos sociais que permeiam todo o texto da Lei Maior.

Nesse cenário, a implantação de políticas públicas que concretizem direitos sociais é instrumento indispensável para realizar a Justiça Social, tão cara ao legislador constituinte brasileiro, competindo ao Poder Executivo, executando o orçamento aprovado previamente pelo Poder Legislativo, implementar políticas públicas tendentes à promoção e proteção da saúde, educação, cultura, lazer, etc.

Porém, os brasileiros estão insatisfeitos com o desempenho institucional do Poder Executivo no sentido de concretizar os direitos sociais a prestações materiais através das políticas públicas, e, assim, têm recorrido ao Poder Judiciário buscando alcançar utilidades não disponibilizadas pelo Poder Público, principalmente na área da saúde. A par da receptividade do Poder Judiciário, inclusive no âmbito do Supremo Tribunal Federal, em acolher as pretensões individuais deduzidas com o objetivo de instar o Estado a fornecer gratuitamente medicamentos de alto custo, desenvolveu-se, no âmbito da doutrina constitucionalista pátria, a teoria do mínimo existencial com o escopo de fundamentar a atividade judicial de promoção de políticas públicas.

Por conseguinte, multiplicam-se as demandas judiciais para que o Estado forneça gratuitamente aos indivíduos os medicamentos mais modernos, de última geração, que, muitas vezes, sequer estão registrados na ANVISA92, ou que são objeto de prescrição “off label”.

O problema que se evidencia é que os elevadíssimos custos de certos tratamentos postulados e a incessante multiplicação de demandas para entrega gratuita de remédios ameaça a manutenção de programas oficiais de assistência farmacêutica, já que para atendimento dos mandados judiciais

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de entrega de medicamentos são utilizados recursos públicos oriundos do próprio orçamento da saúde.

Logo, os órgãos jurisdicionais devem agir com redobrada cautela ao instar o Poder Público a fornecer medicamentos de alto custo, só sendo legítimo atender às pretensões individuais se ficar demonstrado, inequivocamente, que:

- não haverá violação do direito fundamental à saúde de outros usuários do Sistema Único de Saúde - SUS, por força do redirecionamento das receitas orçamentárias;- o postulante da medida judicial não tem condições financeiras de pagar o tratamento, afinal, o objetivo do legislador constituinte ao prever os direitos sociais foi realizar a Justiça Social, mediante a redistribuição de renda e a eliminação das desigualdades econômicas;- o medicamento é comprovadamente eficaz e tem registro na ANVISA, sendo objeto de prescrição médica regular (não “off label”);- a patologia é grave sendo o remédio indispensável para manutenção da vida ou da higidez física e mental do doente;

92 Conforme noticia ANA CRISTINA KRMER ( O Poder Judiciário e as ações na área da saúde. Disponível em: http:// www.revistadoutrina.trf4.gov.br/artigos/edicao015/Ana_Kramer.htm. Acesso em: 22/02/2008), o Poder Público tem sido instado a fornecer medicamentos não registrados na ANVISA, como ilustra a matéria jornalística publicada no Jornal Zero Hora, de 12/06/05, p. 38/9, sob o título Remédios caros são empurrados para o SUS - O Poder Público tem sido obrigado pela Justiça a fornecer a pacientes medicamentos sequer reconhecidos pelo Ministério da Saúde , da qual se destaca o seguinte trecho: “O Iressa (gefitinib, pelo princípio ativo) ganhou páginas em revistas especializadas que o apresentavam como smart bomb (bomba inteligente) na luta contra o câncer. Conforme o laboratório, ele atacaria só as vulnerabilidades das células cancerígenas - diferentemente da quimioterapia tradicional. Com o uso nos EUA surgiram as primeiras dúvidas. Os testes clínicos que embasaram sua aprovação em regime de urgência pela Food and Drug Administration (FDA) norte-americano logo indicaram o baixo QI da droga inteligente: ela não acrescia sobrevida aos pacientes, não estendia o tempo de progressão da doença, nem alterava o índice de resposta em relação às drogas anteriores. Tinha efeitos colaterais clássicos - como acne, náuseas, diarréia e perda de apetite - e acrescentava, em pequeno percentual, outros riscos: pneumonias e acredite, a morte. Uma pesquisa publicada no Journal Of Clinical Oncology , revista da sociedade norte-americana de oncologia Clínica, comparou-o a uma pílula ineficaz (placebo) e concluiu que o Iressa não era mais eficiente. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) seguiu decisões européias e recusou o registro. Ocorre que, em dezembro, por indicação médica, uma paciente solicitou à Justiça gaúcha o tratamento com Iressa. Mesmo se referindo a uma droga sem registro e fora dos protocolos brasileiros a Justiça lhe foi favorável. O Estado só não pagou o tratamento em razão da morte da paciente. Em São Paulo, o governo é obrigado pelo STJ a importar o remédio. O custo: R$ 23.000,00 por paciente, durante três meses”.

- inexistem alternativas terapêuticas já disponibilizadas pelo Poder Público, ou mais baratas, idôneas a substituir o medicamento postulado, ainda que não garantam o mesmo conforto ao paciente.

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EDUCAÇÃO AMBIENTAL E A RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO PELA OMISSÃO E

A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL NO DIREITO BRASILEIRO

JOAQUIM JOSÉ MARQUES MATTAR

ResumenA Constituição Federal de 1988 positivou no ART. 225, parágrafo 1º . Do inciso VI, impôs ao Poder Público, incumbindo-o a efetividade desse direito, como um poder/dever de assegurar para esta e as futuras gerações a defesa e a preservação de um meio ambiente ecologicamente equilibrado por tratar-se de bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida ao povo brasileiro. Há que ressaltar, que a nova dogmática jurídica balizada na Supremacia da Constituição faz uma nova e pós-positivista interpretação do texto constitucional, utilizando os instrumentos da argumentação nos princípios constitucionais, evocando as bases axiológicas das normas jurídicas e o alcance almejado pelo legislador no amparo aos princípios fundamentais na ordem estabelecida. A hermenêutica jurídica tem como condão buscar a interpretação das leis, levando em consideração seus aspectos materiais e subjetivos, para que possamos entender a amplitude da proteção dos direitos e garantias fundamentais no que concerne à dignidade da pessoa humana, fundamento do Estado Democrático de Direito. O ART. 170 da CF, que regula os princípios gerais da atividade econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente. Ocorre, que o Estado não vem cumprindo seu papel em respeito às normas positivadas na Lei Suprema, se omitindo da responsabilidade expressa nos artigos 225, parágrafo 1º ., VI e 170, VI da Constituição Federal, onde os governantes eleitos pelo sufrágio universal, sonegam políticas públicas de extrema importância, pecando contra aspectos basilares de soberania nacional, que é o oferecimento de educação ambiental ao ensino público brasileiro. A política governamental num Estado que mescla o perfil de um Estado Liberal de Direito e um Estado Social de Direito, não assume as responsabilidades do mandato político em respeitar a Constituição Federal, desatendendo aspectos cruciais, fazendo com que o Estado se furte do dever constitucional como agente normativo e regulador da atividade econômica na forma da lei, e ainda, se omitindo como agente das funções de fiscalizador, incentivador e planejador, como fator determinante para o setor público e em segunda instância indicativo para o setor privado, conforme preceitua o art. 174 da CF/88.A educação ambiental elevada como valor econômico pelo texto constitucional tem como premissa maior assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.

La Constitution fédérale de 1988, dans positivou ART. 225, paragraphe 1. Le point VI, a ordonné la puissance publique, responsable de l’efficacité de ce droit, en tant que pouvoir / devoir d’assurer aux générations futures, et la défense et la préservation d’un environnement écologiquement équilibré car il est bien à l’utilisation en commun de personnes et essentiel À la bonne qualité de vie pour le peuple brésilien. Il convient de noter que le nouveau cadre légal dogmatique Supremacia marqué dans la Constitution est un nouveau poste - positiviste interprétation du texte constitutionnel, à l’aide des outils de l’argumentation sur les principes constitutionnels, évoquant axiológicas les bases de normes juridiques et de la mesure souhaitée par les Législateur dans le refuge dans les principes fondamentaux de l’ordre établi.

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1. O MEIO AMBIENTE POSITIVADO COMO VALOR ECONÔMICO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

O Título VII da Constituição Federal de 1988 no Capítulo I que trata “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, em seu ART. 170, inciso VI, o meio ambiente foi tratada pelo legislador pátrio como valor econômica na ordem estabelecida. 1Para que haja uma vida digna ao cidadão ele precisa viver num ambiente ecologicamente equilibrado, oferecendo-lhe existência digna e só assim teremos a justiça social. Fundamentos do Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana, envolve seu inter-relacionamento e a sua forma universal de conviver com pessoas e seres, num ecossistema auto-sustentável.

[...] Deveras, é o princípio da dignidade da pessoa humana que confere unidade de sentido e legitimidade à ordem constitucional, existindo redobradas razões para constituir o fim mesmo da ordem econômica.

A legitimidade que o princípio da dignidade da pessoa humana conferindo sentido e unidade a ordem constitucional é fator preponderante para que o Estado faça sua lição de casa, ao cumprir a norma positiva, que incumbe ao Poder Público o dever/poder ou poder/dever de “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública

L’herméneutique juridique a comme condão solliciter l’interprétation de la loi, en prenant en considération les aspects matériels et subjectifs, de sorte que nous pouvons comprendre l’ampleur de la protection des droits fondamentaux et des garanties quant à la dignité de la personne humaine, fondement d’un État démocratique. L’ART. 170 de la FA, qui régit les principes généraux de l’activité économique, fondé sur l’exploitation du travail humain et de la libre initiative vise à faire en sorte que tous les existence digne, comme les exigences de la justice sociale, a observé les principes suivants: - milieu VI Défense environnement. Il arrive que l’État ne s’acquitte pas de son rôle en ce qui concerne les normes positivadas la loi suprême, si la responsabilité d’omettre exprimées dans les articles 225, paragraphe 1. , VI et 170, VI de la Constitution fédérale, où les gouvernements élus par le suffrage universel, sonegam politiques publiques d’une extrême importance, contre pecando aspects fondamentaux de la souveraineté nationale, qui offre l’éducation à l’environnement à l’éducation du public au Brésil. La politique du gouvernement dans un État qui allie le profil d’un Etat de droit libéral social, et un État de droit, ne pas assumer les responsabilités du mandat politique de respecter la Constitution fédérale, desatendendo domaines cruciaux, provoquant l’État est le devoir constitutionnel comme Furte législatif et l’agent régulateur de l’activité économique sous la forme de la loi, et même si en tant qu’agent d’omettre des fonctions de surveillance, d’instigateur et organisateur, comme un facteur déterminant dans le secteur public et de deuxième instance d’orientation pour le secteur privé, en tant que Prévoit l’art. 174 du CF/88. L’éducation à l’environnement comme une valeur économique élevée par le texte constitutionnel a le plus de veiller à ce que tous prémisse existence digne, comme les exigences de la justice sociale.

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para a preservação do meio ambiente”.Data vênia deve trazer a luz da memória histórico-social-econômica-

política brasileira, que a educação sempre ficou no banco da regra três, mesmo a educação de base, e quando digo base, alço o vôo da memória aos bancos do ensino fundamental brasileiro, mais especificamente a escola pública nacional, onde o Estado tem por dever/poder de oferecer ensino gratuito e de qualidade a todo o cidadão brasileiro. O poder político vem pecando nas três esferas de atuação: União, Estados e Municípios, na sonegação de políticas públicas na área educacional, continuando o mesmo pensamento colonial-burguês de dominantes e dominados, tratando a educação como aspecto secundário na libertação da ignorância, para trilhar caminhos fora do desenvolvimento tardio, envergando no corpo da nação 40% de analfabetos funcionais.

1.1. A promoção da educação ambiental como fator prioritário para o desenvolvimento nacional.

O Brasil vem ocupando os últimos lugares em desenvolvimento auto-sustentável se levarmos em consideração dados cruciais e alarmantes no que diz respeito às políticas públicas nas áreas de água, saneamento básico, coleta de resíduos sólidos, doenças originárias da falta de infra-estrutura urbana e da falta do poder de polícia e de fiscalização do Estado sobre a produção industrial.

[...] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1996, 40 milhões de brasileiros não dispunham de água canalizada e 70 milhões não tinham esgoto encanado ligado às suas moradias. Em 1989, foi aprovado o artigo 279 da Constituição Estadual do Rio de Janeiro que obriga a Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) a divulgar semestralmente dados sobre a qualidade da água da rede. Em 1991, a associação ecológica Defensores da Terra ajuizou uma ação exigindo que a Cedae cumprisse esse dispositivo constitucional. Obteve os seguintes dados: 22 municípios, entre eles os da Baixada Fluminense (mais populosos), os da Costa Verde e os do norte do estado, estavam com a água das torneiras cheias de coliformes fecais. Todos apresentavam índices muito acima do permitido pelo padrão nacional, que é de no máximo cinco amostras positivas em cada 100. O padrão do Ministério da Saúde, válido para todo o país, exige que pelo menos 95% das amostras domiciliares apresentem total ausência de coliformes. (MINC, 2002, p.50-51).

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O que se pretende demonstrar com o presente tema é que, como diz o filósofo Pitágoras: “Educai as crianças e não será preciso punir os homens”. A educação ambiental é demonstrar de forma dirigida à atenção que as pessoas devem ter no lugar onde vivem e sua interrelação com o meio. A observação das pessoas, o dia-a-dia, o que se vê e o que se sente, o seu microcosmo (a vida no bairro) e o seu macrocosmo (a cidade, como um todo), como se tratam outros aspectos como a saúde e o que e como se pode melhorar para se ter melhor qualidade de vida. Uma forma de educar de forma gregária, interativa, homem, natureza, sociedade, solidariedade, consumo, humildade e desejo de se construir um lugar mais saudável entre pessoas e o ambiente dinâmico que envolve toda uma comunidade.

A mudança de comportamento pela educação ambiental, induz o menino, a menina, o adolescente e mesmo o adulto a um aprofundamento científico e teórico, através de experimentações práticas e observações constantes sobre a forma como se trata os objetos, os seres, fora do ambiente escolar. Vejo a educação ambiental como fator prioritário do desenvolvimento nacional, por ser a educação um instrumento de busca de “maioridade espiritual”. Quando se muda comportamentos com o espírito aberto em aprender o respeito pelo outro, pelas plantas, pelos animais, pela limpeza da calçada, pela atenção da coleta seletiva de lixo - nasce os mais nobres sentimentos do coração, que é a solidariedade. O solidário tem a liberdade como fator principal na construção da cidadania.

1.2.1. A responsabilidade objetiva do estado e o não atendimento ao princípio da moralidade por omissão na promoção da educação ambiental no ensino fundamental.

O ART. 5º. , inciso LXXIII da Constituição Federal de 1988 positiva que: “ qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência;”. Dentro da melhor hermenêutica nos aspectos que envolvem a axiologia jurídica, a norma constitucional deixa protegendo o direito do cidadão, nas questões onde o Estado, através da administração pública, venha a infringir de forma ativa ou passiva, por ação ou por omissão, que não atendendo a um dos princípios constitucionais apostos na Lei Maior, venha a responder por Ação Popular por deixar de fazer aquilo a que foi incumbido pelo próprio texto da lei, utilizando de forma inapropriada o Erário Público, quando os agentes políticos não aplicam as verbas públicas destinadas à educação, previstos no Orçamento Plurianual. A união aplicará

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18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios 25%. Ora, o simples ato de se omitir no atendimento da “não promoção de educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”, já caracteriza a inadimplência de uma obrigação de fazer. Não podemos nem sequer falar em conflito de normas ou de leis, vez que, o Poder Público assumiu pelo texto constitucional a incumbência de assegurar a efetividade desse direito que é um bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

Quando falamos de vida, falamos dos princípios fundamentais que ancora os ordenamentos jurídicos pátrio, que é a própria dignidade da pessoa humana. A dignidade envolve uma educação de qualidade, um preparo em conhecimentos, no desenvolvimento da consciência crítica, numa saudável relação com o ecossistema, para que através de um desenvolvimento auto-sustentável, possamos galgar o Estado Social de Direito, que é a meta do Estado Democrático de Direito.

A Constituição Federal é uma sistematização de normas hierarquicamente harmonizadas que compõe um todo indissolúvel. As partes não podem subsistir sem a presença do todo. É princípio de ciência, é princípio de razoabilidade, de proporcionalidade, de ponderação e equilíbrio, que consagra a própria existência da razão e da vida, espelhos hermenêuticos da equidade e do bom senso que compõe o corpo do ordenamento jurídico.

[...] Faltam 710 mil professores no País. Uma estimativa do Ministério da Educação aponta que faltam cerca de 235 mil professores no ensino médio no País. Os números do déficit de profissionais no ensino fundamental de quinta a oitava séries são ainda mais pessimistas. De acordo com as projeções, 475 mil cargos de docentes seriam necessários para completar os quadros. Os dados são baseados no censo escolar de 2002 e apenas dão uma idéia geral da situação. Eles referem-se às chamadas “funções docentes”, expressão que está relacionada a cada cargo, ou seja, um professor que dá aula em duas escolas tem duas funções docentes. Entre as disciplinas, a demanda é maior por licenciados em matemática, física, química, biologia.

O Estado ao se furtar da responsabilidade de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino, ao nosso ver, está se furtando de um dever, que fere os princípios gerais de direito, ao atingir as necessidades primárias do individuo, que é o direito a educação. O alimento do conhecimento sacia a fome da mente e da alma e o faz ser auto-suficiente para buscar o alimento do corpo. A descoberta do mundo, induz ao fortalecimento da alma,

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o fluxo contínuo de vida que alimenta a chama da vida.

[...] Outro saber de que não posso duvidar um momento sequer na minha prática educativo-crítica é o de que, como experiência especificamente humana, a educação é uma forma de intervenção no mundo. Intervenção que além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos implica tanto o esforço de reprodução a ideologia dominante quanto o seu desmascaramento.

A questão política da educação, no caso específico, a educação ambiental, nos faz repensar sobre qual é o papel do Estado, através de seus governantes em omitir políticas públicas no que se refere ao incentivo e a promoção da conscientização populacional desde o ensino fundamental até a universidade, da importância do respeito ao meio ambiente, e a sua profunda relação com os atos governamentais? Devemos pensar sobre isto, de uma maneira multidisciplinar, para entendermos os aspectos axiológicos, ideológicos e finalísticos que compõe a Constituição Federal de 1988, sonegada pelos agentes políticos na constante troca do Poder ( desde a ditadura militar até os governos civis ).

2. A AXIOLOGIA E O PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE NO ATENDIMENTO AO PARÁGRAFO 1O. DO INCISO VI DO ART. 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.

Data vênia, a Constituição Federal é um tratado que congrega valores legais, morais e espirituais que regem o destino de um povo. Consagrado como sagrado, o texto constitucional se eleva a Lei Maior de uma Nação na defesa dos direitos onde os deveres estão encetado na própria razão de existir do equilíbrio que recepciona a balança da Justiça. Conforme preceitua os nobres constitucionalistas Luiz Alberto David de Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior:

[...] O princípio da publicidade é aquele cujo objetivo reside em assegurar transparência nas atividades administrativas. Fincado no pressuposto de que o administrador público é o responsável pela gestão dos bens da coletividade, esse princípio fixa a orientação constitucional de que ele deve portar-se com absoluta transparência, possibilitando aos administrados o conhecimento pleno de suas condutas administrativas. O conteúdo exegético do princípio em causa foi reforçado pelo disposto no art. 5º., XXXIII, de nossa Lei

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Maior, visto que este assegura o direito de “ receber dos órgãos públi cos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

Pois bem, o ART. 5º. caput assim se expressa:

[...] Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

Trilhando os caminhos da hermenêutica jurídica, podemos traduzir que o Estado através da administração pública tem o poder/derver de levar a Todos (caput, art. 5º. inciso XXXIII) (grifo nosso) conforme explicitado no texto constitucional as informações que são de interesse coletivo, o meio ambiente, por tratar-se de direitos e garantias fundamentais, as questões relativas a Educação Ambiental, seja com relação a sua omissão em não promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública; seja com relação o porque não atende o princípio constitucional positivado na norma do art. 225, parágrafo 1º. do inciso VI, sob pena de responder por responsabilidade, com a atenuante, de que a norma não coloca prazo na concretização da política pública específica, ficando com prazo indeterminado, ferindo toda a relação contratual - tratadista, entre a obrigação de fazer do Poder Público e o direito de receber tal benefício pelo povo, vez que, trata de interesse público, bem da coletividade.

2.1. O poder econômico, o direito à vida e o papel dos principios no direito brasileiro.

O grande desafio é conciliar crescimento econômico, meio ambiente, capitalismo selvagem e justiça social. Os famigerados neoliberais de plantão estão voltados exclusivamente para o lucro na contra-mão das intenções de conter as desigualdades sociais e regionais em busca do desenvolvimento sustentável. É como se Davi estivesse na frente de Golias e o herói bíblico não contasse com a Misericórdia Divina para vencer a batalha dos justos. A complexidade e colisão de normas, pela falta de bom senso de uma parcela atrasada e reacionária da doutrina e da jurisprudência que compõe os operadores no Direito Brasileiro, se eximindo dos princípios da ponderação,

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da argumentação, nas questões que envolvem o caso concreto, ao pensarem o direito de forma osmótica e subsuntiva, estão aprofundando para o caos as razões cativas e reais para buscarmos um viés equânime no deslinde da Justiça. Digo isto, me sentindo a vontade, uma vez, que não consigo achar um consenso geral sobre as questões humanistas num mundo globalizado (palavra inventada pelos donos do capital) e selvagem onde a supremacia do lucro vence de forma cínica e deslavada as teses que defendem a vida do homem, a liberdade, a igualdade, a solidariedade e a fraternidade. É como se a doutrina pós-positivista que se levanta das cinzas do passado, com tendência ao direito natural, defendendo os mais altos valores da vida, se transformassem no amável e indomável personagem de Cervantes lutando contra os moinhos de vento.

Os Princípios no Direito Brasileiro é a franca expressão da busca da verdade, escondida atrás do véu da linguagem, tentando a utopia da semiótica, na busca incansável da semântica, para converter o frio e concreto texto da lei, na real roupagem de carne, osso e sangue corpo vivo do cidadão, e a espada defensora do Direito e da Justiça.

[...] O princípio da dignidade da pessoa humana identifica um espaço de integridade moral a ser assegurado a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É um respeito à criação, independentemente da crença que se professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-se tanto com a liberdade e valores do espírito como com as condições materiais de subsistência. Não tem sido singelo, todavia, o esforço para permitir que o princípio transite de uma dimensão ética e abstrata para as motivações racionais e fundamentadas das decisões judiciais, Partindo da premissa anteriormente estabelecida de que os princípios, a despeito de sua indeterminação a partir de um certo ponto, possuem um núcleo no qual operam como regras, tem-se sustentado que no tocante ao princípio da dignidade da pessoa humana esse núcleo é representado pelo mínimo existencial. Embora existam visões mais ambiciosas do alcance elementar do princípio, há razoável consenso de que ele inclui pelo menos os direitos à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e acesso à justiça.

A questão dos princípios no Direito Brasileiro encarna o papel da responsabilidade dos operadores do Direito em observarem de forma detida a aplicação da norma ao caso concreto, tendo como premissa básica o respeito à dignidade da pessoa humana, como elemento e ponto fundamental na busca da Justiça. A educação fundamental, a educação ambiental é uma forma de

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preservar a vida como um todo para esta e as futuras gerações. Estamos falando da supremacia do homem sobre todos os demais interesses, sejam eles, econômicos, particulares, etc. O interesse público é fundamento para a razão de existir do Estado, nas denominadas democracias de cunho liberal e social.

A conciliação entre desenvolvimento econômico, desenvolvimento sustentável e justiça social, só poderá existir se houver uma mudança no coração do homem e na forma como se conduzir à doutrina e a jurisprudência, nos caminhos de um Estado Democrático de direito, que através da interpretação da lei ordinária, possa colocar a dignidade da pessoa humana como o centro decisório iluminando os caminhos da Justiça.

2.1.1. O poder público e o não cumprimento constitucional positivado no art. 208, Inciso vii, parágrafo 2o. Na promoção da educação ambiental no ensino fundamental.

O Estado Democrático Brasileiro vem pecando em seu papel como agente controlador, regulador e fiscalizador nos deveres a ele atribuídos pela Lei Maior de 1988. Vê-se claramente que a educação congrega os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, positivados e balizador de todo o texto constitucional. O Estado deve garantir e efetivar a educação, conforme preceitua o ART. 208, inciso VII, parágrafo 2º., que assim se expressa:

[...] ART. 208 - O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

I - .............................................................

VII - atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar (grifo nosso), alimentação e assistência à saúde.

Parágrafo 2º. O não oferecimento do ensino obrigatório pelo Poder Público, ou sua oferta irregular, importa responsabilidade da autoridade competente (grifo nosso).

Data vênia, é publico e notório o descaso das autoridades públicas e dos órgãos competentes, principalmente do Ministério da Educação e da Cultura, que tem o dever/poder de respeitar os princípios constitucionais elencados no presente artigo da CF/88 no que concerne às responsabilidades da União e a responsabilidade das Secretárias de Estado da Educação e das Secretarias Municipais, naquelas da alçada dos Estados e dos Municípios, principalmente

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Ano Valor Decreto Presidencial Valor Legal Complementação

efectuada pela UniãoComplementação prevista em Lei Divida da União

1998 R$ 315,00 R$ 418,56 R$ 486.656.300 R$ 1.971.322.800 R$ 1.484.666.500

1999 R$ 315,00 R$ 418,56 R$ 579.989.000 R$ 1.852.827.000 R$ 1.272.838.000

2000 R$ 333,00 e R$ 349,65

R$ 455,23 e R$ 478,00

R$ 485.455.000 R$ 1.988.498.900 R$ 1.503.043.900

2001 R$ 363,00 e R$ 381,15

R$ 522,13 e R$ 548,23

R$ 445.258.200 R$ 2.310.316.600 R$ 1.865.058.400

2002 R$ 418,00 e R$ 438,90

R$ 613,67 e R$ 644,35

R$ 871.868.800 R$ 3.665.728.700 R$ 2.793.859.900

Total -- -- R$ 2.869.227.300 R$ 11.788.694.000 R$ 8.919.466.900

nas verbas públicas estabelecidas para a educação dentro dos devidos Orçamentos Anuais, além, dos alarmantes casos de desvios de finalidades naquilo que é oferecido a educação pública no Brasil.

De acordo com o Deputado Paulo Rubem em seu Site na Internet:

[...] Nas verbas destinadas à educação fundamental, repassadas através do FUNDEF, os mecanismos se repetem, com fraudes na reforma de escolas, na compra de bancas e outros bens necessários ao funcionamento das instituições de ensino. Enquanto isso crianças estão fora das salas de aula, os índices de repetência e evasão não são reduzidos e as distorções idade-série se acentuam já nos primeiros anos do ensino fundamental. (RUBEM, Paulo, 28/09/2006).

Repasse da União para o FUNDEF (em R$)

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