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Revista da Procuradoria Geral do Estado de So Paulo

Estudos em homenagem Professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro

71 janeiro/junho 2010

REVISTA DA PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SO PAULO

CENTRO DE ESTUDOS DA PROCURADORIA

GERAL DO ESTADO DE SO PAULO

71JANEIRO/JUNHO 2010

GOVERNO DO ESTADO DE SO PAULOAlbERtO gOldmANGovernador do Estado

PROCURADORIA GERAL DO ESTADO mARCOS FbIO dE OlIVEIRA NUSdEOProcurador Geral do Estado

CARlOS JOS tEIXEIRA dE tOlEdOChefe do Centro de Estudos

CENTRO DE ESTUDOS DA PROCURADORIA

GERAL DO ESTADO DE SO PAULO

ISSN 0102-8065

R. Proc. geral do Est. So Paulo

So Paulo

n. 71

p. 1-254

jan./jun. 2010

CENTRO DE ESTUDOS PROCURADORIA GERAL DO ESTADO DE SO PAULO Rua Pamplona, 227 - 4 andar CEP 01405-902 - So Paulo - SP - brasil tel. (11) 3286-7020 - Fax: (11) 3286-7028 Home page: www.pge.sp.gov.br e-mail: [email protected] Procurador do Estado Chefe do Centro de Estudos: Carlos Jos teixeira de toledo Assessoria: Joo Carlos Pietropaulo, Jos luiz Souza de moraes e Roberto Ramos Coordenador: Jos luiz Souza de moraes Comisso Editorial Ana Paula manenti Santos, Caio Cesar guzzardi da Silva, Carla maria Rossa Elias Rosa, Carlos Jos teixeira de toledo, Celso luiz bini Fernandes, Jos luiz Souza de moraes, luciana Rita l. Saldanha gasparini, mara Regina Castilho Reinauer Ong, Patricia Ulson Pizarro Werner, maria marcia Formoso delsin, tatiana Capochin Paes leme. Revista Jos luiz Souza de moraes (Coordenao Editorial) Permite-se a transcrio de textos nela contidos desde que citada a fonte. Qualquer pessoa pode enviar, diretamente ao Centro de Estudos da Procuradoria geral do Estado, matria para publicao na Revista. Os trabalhos assinados representam apenas a opinio pessoal dos respectivos autores Foto da capa: marcelo Vigneron - acervo do Centro de Estudos da PgE tiragem: 1.800 exemplares

REVIStA dA PROCURAdORIA gERAl dO EStAdO dE SO PAUlO. So Paulo, SP, brasil, 1971-.(semestral) 1971-2010 (1-71) 1998 (n. especial) 2003 (n. especial) Cdd-340.05 CdU-34(05)

SumrioApresentao....................................................................................... .VII Tributo..Professora.Maria.Sylvia.Zanella.Di.Pietro............................ . IX . Estado,.Administrao.Pblica.e.a.posio.do.administrado............. . 1Alessandra Obara Soares da Silva

A.responsabilidade.civil.do.Estado.por.atos.jurisdionais.praticados.. no.mbito.do.processo.penal.............................................................. . 31Christiane mina Falsarella

A.responsabilidade.do.ente.pblico.como.consequncia.do.Estado. intervencionista.................................................................................... . 51daniel Pagliusi Rodrigues

A.advocacia.pblica.e.o.controle.de.juridicidade.das.. polticas.pblicas................................................................................. . 85derly barreto e Silva Filho

Consideraes.sobre.o.poder.sancionatrio.da.Administrao.Pblica... Os.ilcitos.administrativos.e.as.concesses.de.servios.pblicos.............. . 11 1dora maria de Oliveira Ramos

Uma.releitura.do.tradicional.conceito.de.discricionariedade. administrativa. ..................................................................................... . 55 . 1Fabiana mello mulato

Conceitos.jurdicos.indeterminados.e.delimitao.concreta.da. discricionariedade.administrativa.no.ps-positivismo........................ . 67 1Irene Patrcia Nohara

Supremacia.do.interesse.pblico.sobre.o.interesse.privado:.um. panorama.crtico.da.teoria.da.desconstruo.do.princpio.................. . 95 1luiz Fernando Roberto

O.contrato.de.parceria.pblico-privada.............................................. . 17 2mrio Engler Pinto Junior

Consideraes.sobre.a.natureza.jurdica.do.licenciamento.. ambiental............................................................................................. . 29 2Nilton Carlos de Almeida Coutinho

Os.bens.das.empresas.estatais.na.obra.de.Maria.Sylvia.Zanella.. Di.Pietro............................................................................................... . 41 2thiago marrara

Apresentao

u diria que o meu amor pelo Direito Administrativo veio em funo do trabalho na Procuradoria (...). Eu sempre digo que fui primeiro procuradora e depois professora. Eu entrei na Procuradoria em 70 e comecei a dar aula na segunda metade da dcada de 80 j tinha um bocado de tempo na Procuradoria. Foi o meu trabalho na Procuradoria que me entusiasmou pelo Direito Administrativo (...). A Procuradoria foi fundamental para a minha carreira como professora, como doutrinadora e como parecerista. Essas palavras foram pronunciadas pela homenageada desta edio, Maria Sylvia Zanella Di Pietro, por ocasio de entrevista reproduzida no livro Advocacia pblica: apontamentos sobre a histria da Procuradoria Geral do Estado, publicado pelo Centro de Estudos da PGE, com o apoio da Imprensa Oficial. As palavras so significativas, especialmente por percebermos o peso emocional com que so proferidas, sendo possvel pinar duas expresses que revelam, tambm, um pouco da personalidade dessa colega: amor e entusiasmo pelo Direito Administrativo e pela PGE. Outro trecho da entrevista revela a dificuldade enfrentada pelas mulheres, ao sair do curso jurdico: Na realidade, naquela poca, mulher no tinha vez na Magistratura, nem no Ministrio Pblico. Infelizmente, a comunidade jurdica sufocou muitos talentos, por fora dos preconceitos de gnero. Na PGE, porm, as mulheres encontraram um ambiente propcio para sua evoluo profissional. Quem mais ganhou? A Instituio, sem sombra de dvida. Por ocasio do lanamento desta Revista, uma nova leva de procuradores e procuradoras est ingressando nos quadros da PGE e vem muito a propsito dar a conhecer um pouco do trabalho dessa

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eminente procuradora e professora que tanto orgulha seus colegas de profisso. Ao mesmo tempo, d-se aos novos procuradores, a ttulo de inspirao, uma mostra das possibilidades de crescimento profissional que so oferecidas pela Instituio, desde que o trabalho venha orientado pelas reveladoras palavras extradas da entrevista de Maria Sylvia, e que podem servir como um dstico para todos os integrantes da PGE. Vamos repeti-las e jamais esquecer de pratic-las: Amor e entusiasmo!

MARCOS FBIO DE OLIVEIRA NUSDEOProcurador Geral do Estado

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tributo Professora maria Sylvia Zanella di PietroA mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que h nas flores. Mostra-me como as pedras so engraadas Quando a gente as tem na mo E olha devagar para elas. Fernando Pessoa

No incio dos anos 90, estava na Consultoria Jurdica da Universidade de So Paulo quando recebi a notcia de que o rgo passaria a ser chefiado por uma Professora de Direito Administrativo da Universidade, que acabara de ganhar o concurso para Professor Titular. Um misto de satisfao e receio foi o resultado: um privilgio ser chefiada por uma Professora Titular da USP. A possibilidade de crescimento profissional gigantesca. Teria uma aula por dia, pensei. Mas a responsabilidade seria diretamente proporcional. Qualquer parecer que expressasse uma ideia imprecisa seria passvel de anotao com caneta vermelha. A Professora Maria Sylvia logo chegou e encantou sua equipe de trabalho. Era determinada, firme e tinha posies precisas sobre o interesse pblico e o papel do advogado pblico diante das vontades do administrador. Conhecia e impunha, como ningum, o limite da legalidade. Com ideias modernas, sem se deixar levar pelos modismos, imps seu ritmo de trabalho. Sua inteligncia, sua dedicao foram pouco a pouco contagiando aqueles que com ela trabalhavam. Do alto de seu gigantesco conhecimento jurdico, conseguia preservar a humildade de perguntar sempre a opinio de seus colaboradores.

mARIA SYlVIA ZANEllA dI PIEtRO

Encantada com seu amor pelo Direito Administrativo, hipnotizada pelo seu exemplo, fui admitida como sua aluna na ps-graduao. Um novo mundo se abriu. Sua didtica mpar, a clareza de seus textos sem prejuzo da profundidade dos temas tratados, a dedicao na preparao das aulas: sempre temas novos, pouco explorados, que exigiam da professora intensa pesquisa. Amor e talento explcitos atividade acadmica. No tive a oportunidade de conviver com ela na Procuradoria do Estado. No pude acompanhar sua atividade na Consultoria Jurdica da Secretaria da Fazenda seu primeiro posto de trabalho aps ter sido aprovada em concurso pblico , na Procuradoria do Patrimnio Imobilirio, na Assessoria Tcnico-Legislativa ou na Assessoria Jurdica do Governo, rgos em que prestou relevantes servios ao Estado. No entanto, tendo a oportunidade de trabalhar na Procuradoria Administrativa, rgo em que ela tambm atuou, posso, at hoje, consultar seus antigos pareceres e com ela aprender a aplicar na prtica a fina teoria por ela desenvolvida em sua extensa obra jurdica. Seu Direito administrativo, incansavelmente atualizado pela autora, j passou da 22 edio. Nele, os institutos de Direito Administrativo so analisados por quem consegue conciliar o conhecimento terico com a viso prtica adquirida pelos anos vividos na Administrao Pblica. A consequncia disso que a obra se tornou um livro valioso para estudantes e profissionais. Tem vrias monografias esgotadas, de til consulta para os aplicadores do Direito Administrativo (Servido administrativa, Do uso privativo de bem pblico, Do direito privado na administrao pblica). Com o seu Discricionariedade administrativa na Constituio de 1988 ganhou o concurso para Professor Titular da Universidade de So Paulo. Tema instigante, tratado sob a perspectiva do novo texto constitucional, com preciso cientfica. Organizou duas obras coletivas. Uma sobre licitaes e contratos (Temas polmicos sobre licitaes e contratos administrativos), prestigiando seus ento colaboradores na Consultoria Jurdica da Universidade, e outra, divulgando o trabalho de pesquisa de seus alunos na psgraduao: Direito regulatrio.X

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Seu livro sobre Parcerias na administrao pblica, j na 7 edio, um marco no tema. Lanado no incio do processo de reforma do Estado, suas sucessivas edies foram acrescendo as novidades trazidas pela matria. Pioneiro, desbravou temas difceis com uma perspectiva sbria. Os novos institutos so criticamente analisados com preciso cirrgica. A Professora Maria Sylvia uma grande publicista, na plena acepo da palavra. Sempre fiel s suas convices, influencia uma nova gerao de jovens administrativistas, por ela orientados na ps-graduao, e que tm a misso de levar adiante seu amor causa pblica. A Universidade de So Paulo conta com uma das maiores autoridades do pas em Direito Administrativo, que no se furta a participar de sucessivas comisses de juristas que so convocados a contribuir com a elaborao legislativa dos grandes temas do nosso Direito Pblico, como so exemplos a Lei do Processo Administrativo no mbito federal e o Anteprojeto de Lei Orgnica da Administrao Pblica. Sinto-me honrada por usufruir de sua convivncia. A Procuradoria Geral do Estado se sente honrada por t-la tido em seus quadros. A homenagem que ora se presta mais do que justa. um tributo devido excelncia, perseverana, dedicao causa pblica. DORA MARIA DE OLIVEIRA RAMOS Procuradora do Estado de So Paulo

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Estado, Administrao Pblica e a posio do administradoAlessandra Obara Soares da Silva1

Sumrio: 1 Estado. 1.1 Os modelos de Estado. 1.2 O Estado subsidirio. 2 Administrao pblica. 2.1 Administrao pblica burocrtica. 2.2 Administrao pblica gerencial. 2.3 Administrao pblica conformadora. 3 A posio do administrado. 4 Concluso. 5 Referncias.

1 Estado O constitucionalista portugus Jorge Miranda define o Estado como comunidade e poder juridicamente organizados, pois s o direito permite passar, na comunidade, da simples coexistncia coeso convivencial e, no poder, do fato instituio2. O Estado compreende, assim, um povo, um territrio e um poder, organizados pelas normas que regem a vida em comunidade. Tendo em vista que o poder deve ser regulamentado, e tudo que regulamentado limitado, as comunidades elegem uma forma de exerccio do poder, ou seja, uma forma de governo, apta a estruturar e a institucionalizar a distino entre governantes e governados. J a maneira como sistematizado o poder e o seu exerccio corresponde ao sistema de governo, que nada mais que uma forma de organizao interna do1 Procuradora do Estado de So Paulo. Juza do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de So Paulo, binio 2010/2011. Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP. Especialista em Direito Tributrio pela COGEAE, PUC-SP. 2. MIRANDA, Jorge. Formas e sistemas de governo. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 3.

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poder, ou seja, a institucionalizao das relaes entre governantes, com a delimitao de suas funes.3 Trcio Sampaio Ferraz Junior esclarece que no se pode precisar com exatido o momento do nascimento da forma Estado, sendo certo que no Velho Continente as guerras do final do sculo XV levaram Espanha, Frana e Inglaterra a se organizarem em Estados. Na Itlia, essa organizao ocorreu apenas no sculo XVII. A despeito da impreciso das datas, a certeza que a noo de soberania inerente organizao estatal, em todos os casos4. Por valiosas, transcrevemos as palavras de Ferraz Junior: Pode-se dizer, pois que o Estado Moderno surge de duas vertentes distintas na compreenso do poder poltico. Uma a viso jurdica, com base na noo de imprio. A outra a viso econmica, com base na ideia de gesto da coisa pblica. A primeira concepo jurdica do poder o v como um conjunto de positivaes no sentido de que os objetivos do poder so ou conduzem a uma estrutura circular: o objetivo do poder o bem comum, o bem comum a obedincia s leis que o poder estabelece. A viso jurdica do poder, do ponto de vista da velha soberania, eminentemente tica no sentido de que o respeito lei primrio nas relaes de governo. J a viso econmica do governo como arte, uma arte que, conforme as finalidades, nos ensina a dispor as coisas e as pessoas, diferente, posto que o centro est na ideia de clculo (Foucault, 1982, p. 188 e ss). A arte de governar est menos ligada a uma sabedoria prtica, isto , ao conhecimento da equidade, do bom julgamento, da justia, e muito mais a um clculo. A ideia de que governar bem adaptarse s circunstncias que permitem o exerccio do governo.5 A sistematizao e regulamentao do poder sofreram grandes alteraes no curso da histria da humanidade. Com a evoluo da sociedade organizada, evoluram as formas de exerccio do poder, admitindo-se,3 MIRANDA, Jorge, Formas e sistemas de governo, cit., p. 3. 4. FERRAZ JUNIOR, Trcio Sampaio. Direito constitucional. So Paulo: Manole, 2007. p. 414. 5. Ibidem, p. 422-423.

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hoje, trs referenciais ticos, na lio de Diogo de Figueiredo Moreira Neto: a licitude, como referencial moral; a legalidade, como referencial jurdico; e a legitimidade, como referencial poltico.6 Analisaremos sucintamente a evoluo do Estado e da forma de sistematizao do poder para verificar a evoluo da posio do administrado na gesto da coisa pblica. Antes, vale lembrar que gesto e gerncia so termos distintos, com diferentes significados. Como destaca Maria Paula Dallari Bucci, no direito positivo brasileiro, h uma clara diferenciao entre os dois termos. De fato, a Norma Operacional Bsica da Sade (NOB 1996) prev expressamente que gerncia a administrao de uma unidade ou rgo da rea, ao passo que gesto a atividade e a responsabilidade de dirigir um sistema de sade (...) mediante o exerccio de funes de coordenao, articulao, negociao, planejamento, acompanhamento, controle, avaliao e auditoria7. Disso, destacamos que a atividade de gesto amplssima, no s abrangendo a gerncia, mas tambm todas as atividades necessrias resoluo de problemas e a atribuio de zelar pelo funcionamento eficiente da atividade gerida. H uma relao de continncia entre gesto e gerncia, esta contida naquela. Nesse sentido, quando o ordenamento jurdico fala em gesto democrtica, quer se referir participao democrtica nas atividades de planejamento e direo, atividades de cunho decisrio, portanto. 1.1 Os modelos de Estado Os Estados, uma vez organizados e independentemente da forma de governo adotada, pretenderam, num primeiro momento, ampliar os seus territrios, para assim ampliar a sua rea de domnio. Delimitados os territrios, com a vigncia da norma pela qual os conquistados deviam obedincia aos conquistadores, prevaleceu, em regra, a forma de governo absolutista, em que o poder era concentrado nas mos de6 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Teoria do poder: parte I. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1992. p. 221. 7. BUCCI, Maria Paula Dallari. Gesto democrtica da cidade. In: DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sergio (Coords.). Estatuto da cidade: comentrios Lei federal 10.257/2001. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 336.

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uma ou de poucas pessoas, a quem incumbia editar as normas, executar e zelar pela sua execuo, alm de julgar e dirimir os mais diversos conflitos que surgissem. O Estado, nesse quadro, intervinha em tudo na vida da comunidade: dela exigia os tributos nas mais variadas formas de imposio e a ela fornecia (ou deveria fornecer) os meios bsicos de sobrevivncia. No sculo XVIII, a concentrao de poder nas mos de uma ou pouqussimas pessoas gerou a insatisfao daqueles que no detinham funo decisria ou capacidade de influenciar as decises, sequer aquelas que envolvessem diretamente seus prprios interesses sociais, econmicos ou patrimoniais. Nesse contexto, a mais famosa revoluo, a francesa, em 1789, levada a efeito pela burguesia (a ento classe operria), deu por encerrado o absolutismo. Rafael Munhoz de Mello, acompanhando lio do doutrinador portugus Srvulo Correia, afirma que o marco histrico que identifica o surgimento do Estado de Direito a Revoluo Francesa, uma vez que com ela se consagrou a legalidade nos textos constitucionais como princpio regulador da conduta dos governantes.8 o embrio do princpio da legalidade, com a submisso do poder s normas de direito que devem obrigatoriamente habilitar o prprio exerccio do poder. Nesse contexto histrico, a Administrao Pblica fica adstrita tambm s finalidades legais, ou seja, observncia do interesse pblico. Busca-se a realizao do bem-estar social, com o respeito aos direitos fundamentais dos indivduos cujo leque ampliado com a evoluo da humanidade , e o necessrio atendimento, pelo Estado, das necessidades bsicas de cada um e de todos os administrados, sem esquecer o custeio do Estado pela sociedade, com o pagamento de tributos. Superado o absolutismo, firmou-se o modelo liberal de Estado, em que vigiam os princpios da proteo liberdade, propriedade e igualdade, com atuao essencialmente negativa do Estado. Nesse momento histrico, cabia ao Estado to somente a absteno da8 MELLO, Rafael Munhoz de. Sano administrativa e princpio da legalidade. In: FIGUEIREDO, Lucia Valle (Coord.). Devido processo legal na administrao pblica. So Paulo: Max Limonad, 2001. p. 143-186.

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prtica de qualquer ato tendente a violar a liberdade, igualdade e propriedade dos administrados. A circulao da riqueza ficava a cargo da prpria sociedade, com a autorregulamentao dos mercados pela mo invisvel.9 Sem negar a existncia do direito e do princpio da legalidade a limitar a atuao estatal, no Estado Liberal, especialmente na doutrina alem, questionava-se a extenso desse princpio e o verdadeiro conceito de lei, com a recorrente distino entre ato administrativo (jungido ao princpio da legalidade) e ato interna corporis, materializado pela estruturao do Estado ou referente s relaes especiais de sujeio. Esses ltimos atos seriam autnomos, ou seja, no submetidos juridicidade.10 Como se v, o afastamento do princpio da legalidade dos atos que supostamente teriam efeitos meramente internos mostra-se como um resqucio do regime absolutista, no qual no havia limites para atuao do administrador. A Administrao era, assim, unilateral e investida ainda de alto poder de imperatividade. Todavia, os princpios liberais acabaram por criar uma profunda desigualdade social, j que incentivaram a concentrao de riquezas, sem a preocupao coletiva com o bem-estar social. Houve, assim, um grande aumento da pobreza, com a ausncia do Estado defendida pelos liberais. Nesse quadro de profundas desigualdades sociais e grandes carncias das camadas mais pobres, aps a Segunda Guerra Mundial, nasceu o Estado Social, que partia do pressuposto da existncia e necessidade de eliminao da desigualdade entre os homens. Valorizaram-se os direitos sociais e econmicos (alm da igualdade, propriedade e liberdade, que no foram deixados de lado), a fim de assegurar existncia digna aos mais pobres, herana do liberalismo. O Estado, ao qual cabiam anteriormente apenas abstenes, passou a assumir a qualidade de devedor: seria necessrio implementar,9 COUTO E SILVA, Almiro do. Princpios da legalidade da administrao pblica e da segurana jurdica no Estado de Direito contemporneo. Revista de Direito Pblico, So Paulo, Revista dos Tribunais, v. 20, n. 84, p. 46-63, out./dez. 1987. I 10..bidem, p. 46-63.

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fomentar, desenvolver os direitos sociais e econmicos para garantir existncia digna, especialmente aos mais necessitados. Foi evidente o sbito agigantamento das atribuies estatais. O indivduo, que no Estado Liberal no queria a atuao do Estado, no Estado Social passou a exigi-la. Maria Sylvia Zanella Di Pietro lembra que houve tambm a ampliao do poder de polcia, que se estendeu a setores ordinariamente no relacionados com a segurana, como as relaes entre particulares, j que o Estado afastou-se da ideia de poder de polcia tradicional, que apenas impunha obrigaes de no fazer, para impor tambm obrigaes de fazer, como, por exemplo, determinar o cultivo de terras, o aproveitamento do solo, etc.11 Nessa toada, o Estado Social tambm passou por uma crise, j que os recursos, escassos, ficaram ainda mais raros com o grande e repentino aumento das incumbncias pblicas, sem a necessria contrapartida da sociedade, em sua grande maioria, de carentes.12 Com o incremento das atribuies do Estado, houve aumento da interferncia pblica na esfera individual, reaproximando particular e Administrao, de sorte que se abriram canais de comunicao entre pblico e privado, inconcebveis no liberalismo.13 A evoluo da relao Estado-sociedade resumida por Jos Casalta Nabais da seguinte forma: no Estado Liberal, h clara separao entre Estado e sociedade, sendo o polo dominante a sociedade dentro da qual se insere o indivduo, da o individualismo. No Estado Social, h interpenetrao entre sociedade e Estado, com um certo equilbrio entre os dois polos.1411 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parceiras na administrao pblica. 5. ed. So Paulo: Atlas, 2006. p. 31. 12.. e fato, no era possvel cobrar o financiamento dos direitos sociais da sociedade que era D composta, em sua maioria, de pessoas carentes e mais necessitadas de auxlio estatal do que aptas a contribuir com o Estado. N 13.. OBRE JNIOR, Edlson Pereira. Funo administrativa e participao popular. Revista dos Tribunais, So Paulo, v. 91, n. 796, p. 105, fev. 2002. 14.. ABAIS, Jos Casalta. Contratos fiscais. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 62, nota de N rodap n. 155.

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Com a crise do Estado Social, passa-se ao Estado administrativo, na nomenclatura de Almiro do Couto e Silva, que identifica, nesse momento histrico, algumas razes para a crise do princpio da legalidade na contemporaneidade. Na verdade, o que ocorre a alterao da dinmica da Administrao Pblica que, com o grande e repentino aumento das suas atribuies, com a cobrana de eficincia da sociedade e a escassez de recursos (receitas), v-se obrigada a passar de um modelo burocrtico para um modelo gerencial, em nome da eficincia. , na verdade, a evoluo para a concepo de Estado essencial: nem mnimo, nem mximo; no mais onipotente. Como destaca Juarez de Freitas, passa a ser essencial que o Estado cuide de regulao, retirando-se, em parte, da execuo direta dos servios, mas mantendo-se titular da prestao de servios pblicos, de maneira irrenuncivel.15 Pari passu com a evoluo do Estado, evoluiu o conceito de interesse pblico, como resumidamente lembra Maria Sylvia Zanella Di Pietro: O princpio do interesse pblico adquire nova roupagem. No perodo do Estado Liberal, o interesse pblico a ser protegido era aquele de feio utilitarista, inspirado nas doutrinas contratualistas liberais do sculo XVIII e reforado pelas doutrinas de economistas como Adam Smith e Stuart Mill. O direito tinha que servir finalidade de proteger as liberdades individuais como instrumento de tutela do bem-estar geral, em sentido puramente material. Com a nova concepo do Estado de Direito, o interesse pblico humaniza-se, medida que passa a preocupar-se no s com os bens materiais que a liberdade de iniciativa almeja, mas tambm com valores considerados essenciais existncia digna: quer-se liberdade com dignidade, o que exige atuao do Estado para diminuir as desigualdades sociais e levar a toda a coletividade o bem-estar social. O interesse pblico, considerado sob o aspecto jurdico, reveste-se de um aspecto ideolgico e passa a confundir-se com a ideia de bem comum.1615 FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princpios fundamentais. 3. ed. So Paulo: Malheiros, 2004. p. 87. 16.. I PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 34. D

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Acompanhando esse ritmo, o prprio contedo do princpio da legalidade, inerente ao Estado de Direito, tambm sofreu alterao. Como lembra Maria Sylvia Di Pietro, substitui-se a ideia de Estado legal formal pela ideia de Estado vinculado aos ideais de justia, o que constitui o embrio do princpio da legalidade substancial, que compreende a participao do cidado (Estado Democrtico) e a justia material (Estado de Direito).17 A evoluo desse princpio fundamental do Estado de Direito o da estrita legalidade deveu-se constatao de que, quando aplicado risca, no evitaria solues desarrazoadas ou desproporcionais. Ao contrrio, acabaria por torn-las possveis e, muitas vezes, afastaria a soluo mais justa18. E, como o direito no pode tolerar solues injustas, caber ao intrprete buscar, por meio de interpretao sistemtica, a soluo mais acertada e razovel para o caso concreto. Importante destacar que no Brasil, quando colnia portuguesa e, algum tempo depois, mesmo aps a declarao de independncia, experimentamos a monarquia absolutista. Algum tempo aps a proclamao da repblica, passamos ao Estado Democrtico de Direito. Houve ainda o perodo da ditadura, que suprimiu as liberdades democrticas do brasileiro. Ao final, esse perodo de retrocesso do Estado de Direito provocou o fomento da democracia brasileira, anseio que permeou todo o texto constitucional de 1988. Ressaltamos que o Estado de Direito caracteriza-se principalmente pela submisso do Estado s normas previamente estabelecidas, sendo certo que, como afirma Almiro do Couto e Silva, hoje reconhece-se que o Estado de Direito apresenta aspectos formais e materiais. Em suas palavras: No primeiro sentido aspecto material elementos estruturantes do Estado de Direito so as ideias de justia e de segurana jurdica. No outro, o conceito de Estado de Direito compreende vrios componentes, dentre os quais tm importncia especial: a) a existncia de um sistema de direitos e garantias fundamentais;17 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 35. 18 COUTO E SILVA, Almiro do, Princpios da legalidade da administrao pblica e da segurana jurdica no Estado de Direito contemporneo, cit., p. 47.

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b) a diviso das funes do Estado, de modo que haja razovel equilbrio e harmonia entre elas, bem como entre os rgos que as exercitam, a fim de que o poder estatal seja limitado e contido por freios e contrapesos (checks and balances); c) a legalidade da Administrao Pblica e, d) a proteo da boa-f ou confiana (Vertrausensschutz) que os administrados tm na ao do Estado, quanto sua correo e conformidade com as leis.19 No mesmo sentido, Lcia Valle Figueiredo destaca que o Estado de Direito no pode ser considerado apenas na sua acepo formal20, mas lembra que a configurao desse modelo estatal no depende da consagrao da democracia, de sorte que: O Estado somente poder ser democrtico se e quando o povo exercer efetivamente o poder por meio de seus representantes, ou, em algumas circunstncias diretamente. Alm disso, e, efetivamente, ademais disso, mister que os direitos fundamentais constem das cartas polticas e sejam cabalmente respeitados. Em consequncia, o Estado de Direito estado de legitimidade.21 Mas no mundo, hoje, firmado o Estado de Direito Democrtico (como em Portugal) ou o Estado Democrtico de Direito (como no Brasil), com a consagrao da frmula do Estado provedor dos direitos individuais essenciais (Estado devedor) e garantidor da vida em sociedade, h quem aponte nova crise do Estado, com o sbito aumento das suas atribuies e a consequente presso da sociedade para ter satisfeitas todas as suas necessidades, somado impossibilidade real de a totalidade do povo arcar com os custos do agigantamento das prestaes estatais.22 Ganha fora ento o Estado subsidirio que, sem deixar de ser um Estado de Direito, nem refutar a frmula da democracia, afasta, proporcional19 COUTO E SILVA, Almiro do, Princpios da legalidade da administrao pblica e da segurana jurdica no Estado de Direito contemporneo, cit., p. 46. 20.. IGUEIREDO, Lcia Valle. Estado de direito e devido processo legal. Revista Dilogo JurdiF co, Salvador, Centro de Atualizao Jurdica (CAJ), n. 11, fev. 2002. Disponvel em: . Acesso em: 04 jan. 2010. I 21..bidem. 22.. obre os custos dos direitos, apontando a importncia de pagar tributos e a verdadeira razo S da existncia dos impostos e contribuies confira: HOLMES, Stephen; SUSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: WW Norton, 2000.

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e razoavelmente, o Estado de algumas atividades que podem ser melhor prestadas pela prpria sociedade, quando organizada em comunidades menores, ou at individualmente. 1.2 O Estado subsidirio O desenvolvimento da ideia de Estado subsidirio, concebido h longa data, evidencia a necessidade de aproximao entre Administrao e particular, no sentido de organizar o exerccio da funo administrativa para conferir maior eficincia e bem-estar social no dia a dia dos administrados. Em outras palavras, no Estado subsidirio, que no chega a ser propriamente um modelo de Estado autnomo, h uma otimizao no desenvolvimento das atividades necessrias para garantir a vida digna em sociedade, com a Administrao envidando esforos para realizar atividades de maior amplitude e permitindo que os administrados, individualmente ou organizados em pequenos grupos, possam cuidar de interesses locais comuns. A subsidiaridade da atuao estatal decorre, apontam alguns, da incapacidade do Estado como eficiente prestador de servios pblicos. Da ineficincia ou comprovada impossibilidade de atender a contento todas as necessidades da sociedade, ganha fora a ideia de diminuio das atividades estatais, respeitando-se os direitos individuais, sem deixar de tutel-los. Ao Estado cabe abster-se de exercer atividades que o particular pode exercer sozinho, com seus prprios recursos. incentivada a atividade de fomento estatal para colaborar com o sucesso do particular no desempenho das atividades voltadas para o bem comum. No se pode esquecer que o lucro no (nem poderia ser) excludo, j que a riqueza (e a sua circulao) que gera o bem-estar social almejado pelo ordenamento jurdico.23 Na lio de Silvio Lus Ferreira da Rocha, o princpio da subsidiariedade prope algo de novo entre a interveno total do Estado e a23 Nesse sentido o artigo 3, IV, da Constituio Federal: Constituem objetivos fundamentais da Repblica Federativa do Brasil: (...) promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raa, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminao.

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supresso da autonomia privada e o liberalismo clssico e sua poltica de interveno mnima do Estado24. Acrescenta Diogo de Figueiredo Moreira Neto que esse princpio permite um escalonamento de atribuies estatais, em funo da complexidade da prestao pblica. Esse escalonamento definido da seguinte forma: num primeiro nvel, os indivduos atuam para satisfazer com meios prprios seus interesses individuais; em segundo nvel, grupos sociais menores atuam para satisfazer, com seus prprios recursos, seus interesses coletivos; em terceiro nvel, grupos sociais maiores atuam para satisfazer seus interesses coletivos, de maior abrangncia, tambm com recursos prprios; e, num quarto nvel, a sociedade civil como um todo atua e decide a respeito da realizao de seus interesses gerais.25 O melhor enunciado do princpio da subsidiariedade, para Silvio Luis Ferreira da Rocha, encontra-se na Encclica Quadragesimo Anno, no item n. 79: Assim como injusto subtrair aos indivduos o que eles podem efetuar com a prpria iniciativa e trabalho, para confi-lo comunidade, do mesmo modo passar para uma comunidade maior e mais elevada o que comunidades menores e inferiores podem realizar uma injustia, um grave dano e perturbao da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ao coadjuvar os seus membros, e no destru-los nem absorv-los.26 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, discorrendo sobre esse princpio, destaca que em 1961 o Papa Joo XXIII, na encclica Mater et Magistra, definiu o bem comum como o conjunto de condies sociais por onde os homens tornam-se capazes de alcanar mais facilmente a plenitude de seu desenvolvimento27. A autora destaca que essa ideia de bem comum evidencia a necessidade de o Estado assegurar a existncia das condies para que os prprios particulares o atinjam. Destaca tambm que o princpio da subsidiariedade foi inserido no Tratado da Unio Europeia

24 ROCHA, Silvio Lus Ferreira da. Terceiro setor. 2. ed. So Paulo: Malheiros, 2006. p. 16. 25.. OREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutaes do direito administrativo. 3. ed. Rio de M Janeiro: Renovar, 2007. p. 20. 26.. OCHA, Silvio Lus Ferreira da, op. cit., p. 17. R 27.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 36.

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como forma de preservar a soberania dos pases-membros. E, no mbito interno de cada pas componente do bloco europeu, esclarece que os direitos fundamentais do homem so reconhecidos no mais como uma barreira atuao estatal, mas como a prpria razo de ser do Estado, ao qual cabe promover e estimular com aes efetivas o desenvolvimento livre e igualitrio dos indivduos dentro da sociedade. Para tanto, incentivada a participao do cidado no processo poltico e no controle das atividades governamentais, consagrando-se, assim, a sociedade pluralista que viabiliza a participao igualitria de todos os setores da sociedade, e no apenas dos grandes grupos.28 Franco Frattini, resume: [...] A ordem social, por conseguinte, deve ser encarada pelo princpio da funo subsidiria (subsidiarii officii principium): indivduo, famlia e instituies coexistem entre si em uma sobreposio em crculos concntricos de diversos nveis de direitos e deveres cuja ordem de funcionamento regulada pelo princpio da subsidiariedade. E como Estado e sociedade so uma consequncia da evoluo das exigncias do indivduo, os mesmos s devem vir em socorro quando ele no possa realizar-se por si com as prprias foras.29 Ainda sobre o princpio da subsidiariedade e sua aplicao, Maria Sylvia Zanella Di Pietro indica as tendncias atuais. Dentre elas, destaca a privatizao das atividades estatais, para a eficincia na sua prestao; a inexistncia de um singular interesse pblico, mas a consagrao de diversos interesses pblicos de diversos setores da sociedade, decorrncia do pluralismo. Com isso, amplia-se a atividade de fomento administrativo. A autora identifica ainda a tendncia da desregulamentao, com vistas a uma nova configurao da relao entre liberdade e autoridade, retomando, com critrio, algumas ideias do liberalismo, para alavancar o desenvolvimento sustentado da indstria, comrcio e profisses liberais, restringidas pelo excesso de regulamentao. Com tudo isso,28 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 37. 29.. RATTINI, Franco, apud DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao F pblica, cit., p. 37.

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mostra-se a tendncia de mudana da noo de interesse pblico, para utilizao dos instrumentos administrativos preferencialmente em benefcio do cidado, com melhor qualidade e eficincia na prestao dos servios.30 Para concluir, Silvio Luis Ferreira da Rocha destaca que: A grande virtude do princpio est em que a partir dele d-se a primazia ao grupo social e ao indivduo, com a devoluo, sociedade civil, de matrias de interesse geral que possam ser eficazmente por ela realizadas. A subsidiariedade eleva a sociedade civil a primeiro plano na estrutura organizacional do Estado e concebe a cidadania ativa como pressuposto bsico para sua realizao, colocando a instncia privada a servio do interesse geral, a partir, tambm, da ideia de solidariedade, que se funda, principalmente, na maior eficincia da ao social sobre a ao estatal junto a grupos menores.31 Como se v, com a percepo de que o Estado poderia no prestar a contento certas atividades, a prpria sociedade assumiu a responsabilidade pela realizao de algumas prestaes. Ela prpria deixou de apenas exigir, saindo de uma posio passiva, para colocar-se frente de certas atividades, numa verdadeira concretizao do princpio da solidariedade, com a conscincia de que tal atitude beneficia a ela prpria. De fato, a subsidiariedade reverte em benefcio para a prpria sociedade, sem a formao, no entanto, de poderes paralelos, j que a segurana pblica e a jurisdio (no sentido estrito do termo, ou seja, soluo de litgios com atributos de imperatividade, efeito erga omnes e definitividade) continuam sempre monoplio do Estado, nada impedindo que grupos sociais se organizem para tentar solucionar suas controvrsias internas sem armas e respeitando os direitos fundamentais e at mesmo garantir certa segurana para si, mas sempre sob a superviso do Estado que, nesses casos, assume um papel de fomento, como bem lembrado por Silvio Luiz Ferreira da Rocha.30 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 37-41. 31 ROCHA, Silvio Lus Ferreira da, Terceiro setor, cit., p. 19.

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Assim, assistimos, hoje, a mais uma evoluo do direito e da sistematizao do exerccio da funo administrativa, que passa a contemplar tambm a subsidiariedade na atuao do Estado. Ou seja, sempre que o particular puder prestar a contento determinada atividade, se ela for conforme o ordenamento jurdico, deve o Estado abster-se de interferir naquela atividade e, mais ainda, deve foment-la. Como se v, no possvel afirmar com preciso o momento a partir do qual se passa de um modelo de Estado para outro, principalmente porque a subsidiariedade no constitui tipo autnomo de Estado e no substitui o Estado de Direito ou o Estado Democrtico de Direito. , na verdade, a aparente retomada de alguns princpios do liberalismo, sem o afastamento de outros princpios do socialismo. Importante destacar que o Estado subsidirio no deixa de ser fruto de um amadurecimento da sociedade, que abandona parcial e paulatinamente a posio passiva de mera expectadora do exerccio da funo administrativa, quando muito exigindo prestaes do Estado, para adotar uma posio ativa, assumindo algumas prestaes com maior eficincia que o gigante Estado e participando concretamente da tomada de decises coletivas. 2 Administrao pblica A expresso administrao pblica pode ser utilizada no seu sentido objetivo ou subjetivo, conforme se refira atividade desenvolvida ou ao titular dessa mesma atividade, respectivamente. Afora isso, pode ser compreendida em duas acepes, lembradas por Paulo Modesto32, quais sejam na acepo de poder, como adotada por Renato Alessi e Santi Romano, ou na acepo da atividade desenvolvida, como nas lies de Jos Roberto Dromi e Gabino Fraga. A administrao pblica incumbe, de acordo com a clssica tripartio das funes estatais extremamente difundida nos ordenamentos jurdicos ocidentais, ao Poder Executivo, j que ele titulariza precipuamente o exerccio da funo administrativa. Essa definida por Celso Antnio Bandeira32 MODESTO, Paulo. Funo administrativa. Revista Eletrnica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Pblico da Bahia, n. 5, jan./fev./mar. 2006. Disponvel em: . Acesso em: 14 jul. 2009.

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de Mello como a funo que o Estado, ou de quem lhe faa as vezes, exerce, na intimidade de uma estrutura e regime hierrquicos e que no sistema constitucional brasileiro se caracteriza pelo fato de ser desempenhada mediante comportamentos infralegais ou, excepcionalmente, infraconstitucionais, submissos todos a controle de legalidade pelo Poder Judicirio.33 Fala-se, assim, em administrao pblica como exerccio da funo administrativa por ente competente. Essa funo, de acordo com a diviso do exerccio do poder pelos representantes do povo, na frmula da democracia representativa, se d de forma tpica pelo Poder Executivo, cujo chefe, no Brasil, eleito pelo voto direto dos cidados. Aqui, cuidaremos do exerccio da funo administrativa no apenas no sentido de mera execuo da lei, mas no sentido amplo, que engloba as funes de execuo e de planejamento, ideia que se aproxima da adotada por Maria Sylvia Zanella Di Pietro, acompanhando a lio de Renato Alessi: Basicamente, a funo poltica compreende as atividades co-legislativas e de direo; e a funo administrativa compreende o servio pblico, a interveno, o fomento e a polcia.34 O exerccio da funo administrativa lato sensu, assim, pode confundir-se com a gesto conceituada como o exerccio de funes polticas e administrativas, formuladas conjuntamente pela Administrao Pblica e Poder Legislativo e executadas pelo Poder Executivo, com o propsito de tutelar o interesse pblico.35 Enquanto o Estado evoluiu de absolutista para liberal, interessante lembrar, com Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que o Poder Executivo no acompanhou essa evoluo com a mesma intensidade, uma vez que houve uma consagrao do poder de imprio do Estado, como a competncia discricionria, a autotutela e autoexecutoriedade, na contramo dos princpios liberais.3633 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administrativo. 26. ed. So Paulo: Malheiros, 2009. p. 36. 34.. I PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 15. ed. So Paulo: Atlas, 2003. D p. 56. 35.. ENCIO, Mariana, Regime jurdico da audincia pblica na gesto democrtica das cidaM des, cit., p. 24. 36 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Mutaes do direito administrativo, cit., p. 9.

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Nesse contexto histrico, prossegue o autor, nasceu o direito administrativo como cincia autnoma do direito, na Frana, de forma a preservar o poder da Administrao Pblica da influncia do liberalismo que privava o Estado de grande interferncia na sociedade, viabilizando, assim, a manuteno e at o crescimento do poder de polcia. Prova disso seria a criao do Contencioso Administrativo francs, afastando o Poder Administrativo do controle da justia comum: Assim que conceitos como o da imperatividade, da supremacia do interesse pblico, o da insindicabilidade do mrito e o dos chamados poderes administrativos, entre os quais o hoje polmico poder de polcia, assomaram tal importncia estruturante que a literatura jurdica do direito administrativo tornou-se praticamente unnime quanto articulao dogmtica da disciplina sobre a ideia central de que o interesse pblico um interesse prprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidados.37 Em suma, a evoluo da administrao pblica passou pelas fases do absolutismo, do estatismo e da democracia. Na primeira, prevalecia o interesse do rei (administrao regaliana), na segunda, o interesse do Estado, caracterizando a administrao burocrtica. Na terceira fase, prevalece o interesse da sociedade, caracterizando a administrao gerencial38. Diogo de Figueiredo Moreira Neto ainda destaca que, no Brasil, a passagem da segunda para a terceira fase iniciou-se antes de completa a transio da primeira para a segunda fase, sendo certo que o motor da mudana foram os princpios da eficincia e da legitimidade, com suas derivaes, quais sejam, a subsidiariedade do Estado e a crescente participao poltica dos administrados, fomentada tambm pela difuso das informaes em incrvel velocidade e distncia, alcanando praticamente toda a sociedade. No entanto, fato que onde h exerccio de funo, h atividade realizada em interesse alheio. No caso da funo administrativa, interesse37.. OREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Mutaes do direito administrativo, cit., p. 11, M grifos do original, citando Umberto Allegretti. 38.Ibidem, p. 17.

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pblico. E, para desincumbir-se do exerccio da funo, o administrador recebe do ordenamento jurdico uma gama de poderes instrumentais, destinados exclusivamente ao atingimento das finalidades pblicas. Aqui a ideia de dever-poder: (...) cria-se uma entidade ou rgo pblico para satisfazer interesses pblicos (finalidade), atribuindo-se-lhe poderes em tese (competncia) para que sejam exercidos da forma necessria (flexibilidade) para efetivamente atend-los em concreto (eficincia).39 Assim como o Estado e a democracia, a administrao pblica sofreu (e continua sofrendo) mutaes, atendendo ao dinamismo da sociedade. Nasceu, assim, para exercer suas atribuies de forma burocrtica, evoluindo para uma forma gerencial e tendente a passar para a administrao democratizada, com a crescente valorizao da participao popular direta na gesto da coisa pblica. 2.1 Administrao pblica burocrtica Maria Sylvia Zanella Di Pietro lembra que a administrao pblica burocrtica concebida na segunda metade do sculo XIX, na poca do Estado Liberal, visava a combater a corrupo e o nepotismo patrimonialista. Com esses objetivos, e partindo da desconfiana prvia em relao aos administradores pblicos, privilegiava a rigorosa seleo de pessoal, a formao profissional, organizao em carreira, hierarquia funcional, impessoalidade e formalismo, em detrimento da eficincia na prestao do servio pblico.40 A burocracia nasceu, assim, como uma forma de controlar a atividade administrativa, na medida que todos os requisitos para a expedio de qualquer ato administrativo, em consonncia com o princpio da estrita legalidade, deveriam estar previstos em lei. Era uma forma de garantia do administrado. E continua sendo. Muito embora se admita a evoluo do princpio da estrita legalidade, ainda assim h um grande respeito procedimentalizao e previso de toda atividade administrativa. E isso est em absoluta consonncia com39 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Mutaes do direito administrativo, cit., p. 29-30, grifos do original. 40.DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 51.

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o ordenamento jurdico vigente. A famosa frase de Rudolf von Ihering a forma irm da liberdade e inimiga jurada do arbtrio no pode ser ignorada. Mas, com a evoluo da sociedade, evidente que o prprio princpio da estrita legalidade, principal molde de positivao da burocracia, evoluiu. Hodiernamente, o princpio da estrita legalidade , numa interpretao sistemtica do ordenamento jurdico, temperado com o princpio da razoabilidade e, principalmente, com o princpio da eficincia. A doutrina fala, em coro, na expanso do princpio da legalidade, que deixa de ter como nico parmetro a lei, para que toda atividade administrativa esteja amparada, antes de tudo, na Constituio. Muitos confundem essa evoluo com uma suposta crise do princpio da legalidade, assunto que ser tratado mais adiante. Por ora, importa salientar que o princpio da legalidade continua existindo, em conjunto com outros princpios de estatura constitucional. Nesse sentido, Lucia Valle Figueiredo lembra a lio de Massimo Severo Giannini que, ao abordar o princpio da legalidade, dizia que na contemporaneidade, o princpio estaria atenuado, passando-se de uma interpretao negativa para uma interpretao de sentido positivo, na medida que a norma discipline implicitamente um provimento. 41 Acompanhando a evoluo da sociedade, a administrao pblica no deixa de ser burocrtica, mas a ela, Administrao, o ordenamento jurdico hoje impe a necessidade de conciliar a burocracia com a eficincia e razoabilidade no exerccio de sua atividade. H assim um descortinamento da atividade gerencial da Administrao Pblica. 2.2 Administrao pblica gerencial Conforme o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, elaborado pelo Ministrio da Administrao Federal e da Reforma do Estado e aprovado em 21.09.1995 pela Cmara da Reforma do Estado,41 FIGUEIREDO, Lcia Valle. Curso de direito administrativo. 9. ed. So Paulo: Malheiros, 2008. p. 42-43.

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composta pelos ministros da Administrao e Reforma do Estado, do Trabalho, da Fazenda e do Planejamento e Oramento, e pelo ministro chefe do Estado-Maior das Foras Armadas, a administrao gerencial emerge da segunda metade do sculo XX, para conformar a expanso das funes econmicas e sociais do Estado com o desenvolvimento tecnolgico e a globalizao da economia mundial. A reforma do Estado, ento, passa a ser orientada clara e expressamente pelos valores da eficincia e qualidade na prestao do servio pblico.42 Analisando o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, Maria Sylvia Zanella Di Pietro concluiu que na administrao gerencial so definidas com preciso as metas de cada rgo, atribuindo-se maior autonomia ao administrador na gesto dos recursos, permitindo o controle posterior de resultados.43 Para a autora, a evoluo do direito brasileiro, ao acompanhar a evoluo da sociedade, apresentou progressos e retrocessos. Esse plano desenvolvido no mbito federal representa um progresso, na medida que altera o foco do desempenho da funo administrativa para contemplar a realizao das metas previamente estabelecidas. De seu turno, Silvio Lus Ferreira da Rocha entende que o modelo proposto pela Reforma do Estado no adequado nossa realidade constitucional, de sorte que sua efetiva implementao depende de alterao da Constituio Federal: Neste modelo em que o Estado se apresenta como um fomentador destas atividades, os recursos so repassados aos particulares mediante a celebrao dos contratos de gesto e dos termos de parceria. Este modelo, contudo, no pode ser implantado luz do texto constitucional que atribuiu ao Estado o dever de prestar, entre outros, os servios de sade e os servios de educao (arts. 199 e 205 da CF), no podendo o Estado renunciar a estas competncias. Por outro lado, a atividade administrativa de fomento, como visto, est marcada, especialmente, pelo princpio da subsidiariedade e o da repartio dos riscos, o que impede o42 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Parceiras na administrao pblica, cit., p. 51. 43.Ibidem, p. 50.

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Estado de promover, com recursos exclusivos do Tesouro Nacional, as atividades socialmente relevantes desempenhadas pelos particulares, que, por conta dos citados princpios devem investir recursos prprios nas atividades desenvolvidas, a fim de evitar que a filantropia venha a ser exercida exclusivamente com recursos alheios (governamentais) e o fomento transforme-se em sustento, com burla aos princpios da obrigatoriedade de realizar procedimento licitatrio para contratar terceiros.44 Interessante mencionar aqui a crtica que Emerson Gabardo faz queles que associam o advento da administrao pblica gerencial com a importao de um modelo privado de gesto. Para ele, somente Administrao Pblica pode ser imputada a obrigatoriedade legal de eficincia, sendo que, na esfera privada, a eficincia pode ser uma opo do empreendedor, que lida com interesses essencialmente particulares. Essa opo jamais pode ser transferida ao encarregado da execuo de funo administrativa, dada a necessidade de realizao do interesse pblico no modelo republicano e democrtico de Estado45. Guardadas as devidas propores, vez que o empreendedor privado no est fora do direito, podendo ser responsabilizado por m gesto, a verdade que a crtica procedente, na medida que, no trato da coisa pblica, nunca se admitiu a possibilidade de o administrador agir de forma ineficiente. Tanto assim que muitos doutrinadores criticaram a constitucionalizao do princpio da eficincia (introduzido no art. 37 da CF pela EC n. 19/98). A mais contundente crtica a de Celso Antnio Bandeira de Mello: Quanto ao princpio da eficincia, no h nada a dizer sobre ele. Trata-se, evidentemente, de algo mais do que desejvel. Contudo, juridicamente to fluido e de to difcil controle ao lume do direito, que mais parece um simples adorno agregado ao artigo 37 ou o extravasamento de uma aspirao dos que burilam no texto. De toda sorte, o fato que tal princpio no pode ser concebido (entre ns nunca demais fazer ressalvas bvias) seno na intimidade do princpio da legalidade, pois jamais uma44 ROCHA, Silvio Lus Ferreira da, Terceiro setor, cit., p. 40-41. 45.. ABARDO, Emerson. Princpio constitucional da eficincia administrativa. So Paulo: DiaG ltica, 2002. p. 21.

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suposta busca de eficincia justificaria postergao daquele que o dever administrativo por excelncia.46 De toda sorte, a atividade administrativa no se concebe mais como puramente burocrtica, como adstrita pura e simplesmente ao princpio da estrita legalidade. As amarras da estrita legalidade no se sustentam diante de uma interpretao sistemtica do ordenamento jurdico. A administrao gerencial, assim entendida a gesto constitucional, legal, razovel e eficiente da coisa pblica, consolida-se em substituio gesto legalista do bem e interesse pblicos. Mas a evoluo no parou por a. 2.3 Administrao pblica conformadora A ordem constitucional de 1988 consagrou largamente a democracia, resguardando a participao direta dos administrados na gesto da coisa pblica, em diversas oportunidades. Essa participao pode ser entendida como um passo alm da administrao gerencial, para a administrao conformadora. Nas palavras de Onofre Alves Batista Junior: Enfim, verifica-se a coexistncia de uma Administrao agressiva, prestadora e prospectiva. (...) A Administrao, portanto, no se restringe a se posicionar perante o administrado como entidade eminentemente autoritria, como sequer se limita a ser um complexo de fornecimento de prestaes individualizadas, mas possui indiscutvel funo conformadora da sociedade, cabendo-lhe zelar pelo equilbrio de posies jurdicas contrapostas. A Administrao Pblica conformadora [...] transforma-se em uma grande entidade de composio de interesses (pblicos e privados) das mais diferentes naturezas, iluminada pelo desiderato de eficincia administrativa, que deve contemplar o longo prazo.47 Evolui a ideia da consensualidade aplicada Administrao Pblica como uma forma de incrementar a legitimidade de seus atos e comea46 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio, Curso de direito administrativo, cit., p. 117-118. 47.. ATISTA JUNIOR, Onofre Alves. Transaes administrativas. So Paulo: Quartier Latin, B 2007. p. 51.

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a descoberta da possibilidade de pactuar com os interesses particulares, sem desviar-se do interesse pblico. Nesse sentido: A consensualidade na tomada da deciso administrativa (deciso consensual) d-se atravs da promoo do interesse pblico pela funo decisria administrativa seja ela em concreto ou em abstrato. Na deciso consensual coadjuvante o ente pblico deve buscar a audincia dos interessados e, se possvel, com eles manter o dilogo e a negociao do interesse, mas somente a ela caber a deciso, justificando-as motivadamente, por exemplo: coleta de opinio, debate pblico, audincia pblica e assessoria externa. A deciso consensual determinante pode ser promovida atravs do plebiscito, referendo, audincia pblica, cogesto e delegao atpica.48 Reprise-se: sem desvios dos pilares bsicos do direito administrativo enumerados por Massimo Severo Giannini e lembrados por Edilson Pereira Nobre Jnior, quais sejam, o princpio da separao dos poderes, a legalidade da ao administrativa como limitao arbitrariedade, o postulado da jurisdio absoluta e a existncia de normas especiais para regular a atividade administrativa, normatizando e restringindo os antes arbitrrios poderes do Estado.49 possvel conceber uma maior participao democrtica dos verdadeiros titulares do poder (o povo) no exerccio diuturno da funo administrativa. Essa ideia, importante destacar, vai ao encontro do ideal de flexibilidade, maleabilidade, adaptabilidade do direito, permitindo sua perpetuao. Em outras palavras, com a evoluo da sociedade e das formas de exerccio do poder, a flexibilidade do direito, sem distanciar-se dos pilares fundamentais, evita a completa ruptura, ao aceitar a adaptabilidade. Na doutrina portuguesa, encontramos a lio de Pedro Machete, que defende que da aproximao entre Administrao e administrado48 SANTOS, Andr Luiz Lopes; CARAATO, Gilson. A consensualidade e os canais de democratizao. In: CARDOZO, Jos Eduardo Martins; QUEIROZ, Jos Eduardo Lopes; SANTOS, Mrcia Walquiria Batista dos. Curso de direito administrativo econmico. So Paulo: Malheiros, 2006. v. 1, p. 809, grifos do original. 49.NOBRE JNIOR, Edilson Pereira, Funo administrativa e participao popular, cit., p. 105.

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decorre a paridade entre Poder Pblico e indivduo. O doutrinador, lembrando Vasco Pereira da Silva, destaca que tanto a Administrao quanto o administrado so sujeitos de direitos em identidade de posies de base, relacionando-se juridicamente em igualdade de condies, afastando a ideia de administrado como objeto de poder.50 De toda sorte, esses autores portugueses no afastam a existncia da supremacia do interesse pblico (perseguido pela Administrao Pblica) sobre o particular, em caso de irremedivel conflito entre eles. A paridade a que se referem, na verdade, nada mais que a superao da ideia arcaica do absolutismo disfarado. O indivduo deixa de ser visto como sdito, para ser visto pelo ordenamento jurdico como sujeito e titular de direitos e deveres. Dentre os direitos, destacamos o direito de participao ativa na tomada de decises administrativas. Essa participao contempla a possibilidade de conformar o interesse privado com o pblico, sempre que respeitados os pilares bsicos do direito administrativo, j mencionados. Assim, admite-se a evoluo do exerccio da funo administrativa para aceitar que a Administrao se conduza de forma mais democrtica, sem abrir mo dos poderes necessrios para desincumbir-se a contento dos seus deveres mas de forma menos impositiva ou autoritria aproximando-se da sociedade. 3 A posio do administrado Como se v da anlise de modelos de Estado e modelos de administrao pblica, a evoluo do direito administrativo demonstra uma consagrao do administrado como sujeito de direitos e deveres. Demonstra ainda a busca pela igualdade formal e material dos indivduos, especialmente sem distino de classes. No Estado Absolutista, a pessoa era tratada como sdito, a quem cabia somente obedecer aos comandos do governante. J na era do Estado de Direito, no modelo liberal, o indivduo era tido como autossuficiente,50 GAMA, Vasco Pereira da, Em busca do ato administrativo perdido, 1996, apud MACHETE, Pedro. Estado de Direito Democrtico e administrao paritria. Coimbra: Almedina, 2007. p. 33.

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titular de direitos fundamentais, mas sem a possibilidade de reclamar ao Estado a garantia de seus direitos. No Estado Social, visto como titular de direitos, com a possibilidade (e o dever) de exigir do Estado prestaes positivas garantidoras de seus direitos individuais e coletivos. No modelo de Estado Administrativo, o indivduo coletivamente considerado titular de direitos e deveres, com capacidade para exigir prestaes positivas do Estado, mas tambm para satisfazer suas necessidades individuais e coletivas de forma autnoma, caracterizando o Estado essencial, nem mnimo, como no liberalismo, nem mximo, como no socialismo. Na administrao burocrtica, o indivduo encontrava dificuldades para entender os meandros administrativos e ter resguardados, ainda que administrativamente, os seus direitos. Na administrao gerencial, o indivduo tratado como cidado, com poderes para exigir uma prestao adequada, eficiente e econmica dos servios pblicos. Na administrao conformadora, ele chamado a participar da formao das decises administrativas, com a consagrao da cidadania ativa. Vale lembrar que a viso de Estado como mero instrumento de realizao da pessoa humana nasceu com os movimentos liberais que eclodiram no Ocidente nos sculos XVII, XVIII e XIX.51 No restam dvidas quanto necessidade de respeito e ampliao da participao popular direta em todos os mbitos do Estado. Em especial, a Constituio Federal de 1988 consagrou, s claras, o princpio da soberania popular.52 De fato, o artigo 1, pargrafo nico da Constituio Federal de 1988 nada mais que a constitucionalizao do princpio da soberania popular, que inerente a todo Estado que se diz democrtico. Independentemente da forma de democracia vigente, ela pressupe a igualdade e liberdade dos indivduos, em especial porque o povo o fundamento da legitimidade do poder.51 RAMOS, Elival da Silva. A ao popular como instrumento de participao poltica. So Paulo: Revista dos Tribunais, 1991. p. 16. 52 Constituio Federal de 1988: Artigo 1 - Pargrafo nico - Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituio.

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Nesse sentido, claro que a participao popular pressuposto do sistema poltico democrtico (governo pelo povo), j que por meio dela se concretiza o princpio da soberania popular. Nas palavras de Elival da Silva Ramos, est-se diante de um instrumento que o nico adequado obteno dos fins do Estado democrtico: a chamada democracia instrumental condio sine qua non da democracia dita substancial.53 Falamos em instrumento porque a participao popular no pode ser considerada um fim em si mesma, mas apenas uma forma de legitimar o poder constitudo segundo o regime democrtico. Sem participao popular, no h democracia. Sem democracia, no h soberania popular. Nas palavras precisas de Georges Burdeau, s h democracia autntica quando o povo, suporte do poder poltico, est habilitado a exerc-lo diretamente, pelo menos a controlar-lhe o exerccio.54 Destarte, conclui-se que o sistema poltico ptrio democrtico, com a consagrao do princpio da soberania popular no artigo 1, pargrafo nico, da Constituio Federal. Podemos dizer incorporado ao direito brasileiro, como direito fundamental, o direito de participao popular, na forma consagrada na Constituio Federal. Concretamente, a participao popular pode ocorrer de duas formas, quais sejam, o controle social a posteriori e a efetiva interferncia no processo decisrio. Diz Juarez Freitas, ao tratar do controle social posterior edio do ato administrativo, que a dialeticidade da atividade administrativa representa a perda de espao das atitudes exorbitantes do direito comum para a consensualidade, sem prejuzo da coercibilidade que ainda pode remanescer nas mos da Administrao.55 Essa tendncia no exclusividade do direito brasileiro. Na verdade, a ONU reconhece a necessidade de ampliao da participao democrtica dos indivduos na formao das decises administrativas e53 RAMOS, Elival da Silva, A ao popular como instrumento de participao poltica, cit., p. 21, grifos do original. 54 BURDEAU, Georges, apud RAMOS, Elival da Silva, A ao popular como instrumento de participao poltica, cit., p. 23. 55 FREITAS, Juarez, O controle dos atos administrativos e os princpios fundamentais, cit., p. 87.

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legislativas e, mais concretamente, de forma j positivada, a Carta dos Direitos Fundamentais da Unio Europeia prescreve, em seu artigo 41: 1. Todas as pessoas tm direito a que os seus assuntos sejam tratados pelas instituies e rgos da Unio de forma imparcial, equitativa e num prazo razovel. 2. Este direito compreende, nomeadamente: o direito de qualquer pessoa ser ouvida antes de a seu respeito ser tomada qualquer medida individual que a afete desfavoravelmente; o direito de qualquer pessoa a ter acesso aos processos que se lhe refiram, no respeito dos legtimos interesses da confidencialidade e do segredo profissional e comercial.56 Interessante lembrar que a democratizao da Administrao Pblica est umbilicalmente ligada ao grau de participao popular no exerccio da sua atividade principal. Se ultrapassado o patamar de participao para alm do direito de eleio de seus representantes, mais democrtica ser a gesto da coisa pblica. Como resume Diogo de Figueiredo Moreira Neto, a forma de participao mais simples a informao prvia, contempornea ou posterior edio do ato do Poder Pblico. Numa forma mais completa, a participao popular pode influenciar a deciso pblica ou sua execuo. Mais contundente ainda a participao na elaborao da deciso, com a possibilidade de manifestao formal do interessado e considerao de tudo quanto alegado. E a manifestao mais concreta da participao popular na gesto pblica a coautoria na deciso, levando corresponsabilidade pelo seu contedo. De toda forma, a possibilidade de conhecimento prvio dos procedimentos de tomada de decises amplia os limites do controle dos atos do Poder Pblico e confere maior legitimidade atividade pblica.57 Assim, a participao direta do administrado no exerccio da funo administrativa possui graus identificveis pelo momento em que 56 FREITAS, Juarez, O controle dos atos administrativos e os princpios fundamentais, cit., p. 28, nota de rodap n. 11. 57 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Direito da participao poltica legislativa, administrativa e judicial: fundamentos e tcnicas constitucionais da democracia, 1991, p. 72, apud MENCIO, Mariana, Regime jurdico da audincia pblica na gesto democrtica das cidades, cit., p. 69.

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deferida e a influncia que tal atitude ter na formao da deciso pelo rgo competente. A participao popular direta constitui, assim, instrumento essencial de concretizao do sistema poltico democrtico, inerente ao modelo de Estado de Direito adotado no Brasil, especialmente em virtude da consagrao do princpio da soberania popular. 4 Concluso A atividade administrativa praticamente toda procedimentalizada, especialmente em razo da exigncia de previsibilidade das decises administrativas (decorrente diretamente do princpio basilar do Estado de Direito, qual seja, a segurana jurdica) e da ampliao dos limites do controle do exerccio da funo administrativa. A tomada de decises pela Administrao Pblica tambm constitui um processo, que culmina num ato administrativo dotado dos atributos da presuno de veracidade e imperatividade. O fato de a Repblica brasileira ser, por imposio constitucional, Estado Democrtico de Direito, privilegiando a forma participativa de democracia, faz com que tenham maior legitimidade os atos administrativos que contaram, em seu processo de formao, com participao dos interessados (destinatrios diretos ou indiretos do ato administrativo). Essa participao direta, para concretizar a maior legitimidade das decises administrativas e para ser vlida em termos jurdicos, deve ter sido efetiva, ou seja, precedida de publicidade eficiente, com dialeticidade a permitir a oportunidade de manifestao e considerao das razes propostas, e com divulgao das concluses que a Administrao extraiu do processo de participao. A evoluo pela qual passou a sociedade e o modelo de administrao pblica, com a consagrao da qualidade do administrado no s como cidado, mas como cidado ativamente participante das decises mais importantes, no h como admitir um retrocesso no direito administrativo a ponto de aceitar a supresso da participao popular direta no exerccio da funo administrativa do ordenamento jurdico ptrio. Somemos a isso o fato dessa participao influir na reduo da conflituosidade, da litigiosidade e aumentar a eficincia e transparncia da Administrao Pblica, verdadeiros pilares do Estado Democrtico de Direito.26 27

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A responsabilidade civil do Estado por atos jurisdionais praticados no mbito do processo penalChristiane mina Falsarella1Sumrio: 1 Introduo. 2 Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais. 3 Previso legal. 4 O processo penal. 5 Condenao decorrente de erro judicirio. 6 Priso cautelar. 7 Consideraes sobre o requerimento de indenizao em reviso criminal. 8 Concluso. 9 Referncias.

1 Introduo O tema da responsabilidade civil estatal no campo extracontratual foi objeto de conhecida evoluo terica, partindo da teoria da irresponsabilidade do Estado por seus atos, passando por teorias de responsabilidade subjetiva baseadas na culpa, at culminar na teoria da responsabilidade objetiva. De acordo com essa ltima, surge a obrigao de indenizar a leso causada a terceiro com a mera comprovao de nexo causal entre o comportamento e o dano.2 Atualmente, o direito brasileiro consagra como regra a responsabilidade civil objetiva do Estado, como se depreende do artigo 37, pargrafo 6, da Constituio Federal, que dispe: As pessoas jurdicas de1 Procuradora do Estado de So Paulo. 2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antnio. Curso de direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Malheiros, 2007. p. 969-970.

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direito pblico e as de direito privado prestadoras de servios pblicos respondero pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsvel nos casos de dolo ou culpa. Com relao aos atos administrativos, est assente na doutrina e na jurisprudncia a incidncia da responsabilidade estatal, diante da regra constitucional. Todavia, no tocante aos atos jurisdicionais, a questo mais intrincada, uma vez que doutrina e jurisprudncia no so pacficas quanto existncia de responsabilidade do Estado por tais atos. H corrente que afasta a responsabilizao estatal por atos jurisdicionais. Dentre aqueles que a admitem, h diferentes entendimentos quanto amplitude da responsabilidade. O presente trabalho aborda a discusso acerca da responsabilizao estatal por atos jurisdicionais, em especial os praticados no mbito da persecuo criminal. 2 Responsabilidade civil do Estado por atos jurisdicionais O tema da responsabilizao do Estado por atos praticados pelo Poder Judicirio objeto de diviso doutrinria e jurisprudencial. O prprio Supremo Tribunal Federal ainda no adotou posicionamento uniforme quanto questo3. A divergncia surge em se tratando de atos tpicos do Poder Judicirio, pois quanto aos atos administrativos que realiza, h consenso sobre a incidncia da regra geral do artigo 37, pargrafo 6, da Constituio Federal, com a responsabilidade objetiva do Estado.43 No julgamento do RE n. 505.393/PE, em que se discutia a responsabilidade da Unio por indenizao em funo de priso preventiva e de condenao desconstituda em sede de reviso criminal, o relator Ministro Seplveda Pertence decidiu submeter o caso Turma, dada a pobreza de nossa jurisprudncia [do Supremo Tribunal Federal] a respeito. Na oportunidade, por maioria de votos foi reconhecido o direito indenizao. O Ministro Ricardo Lewandowski foi voto vencido, salientando que no pretendia aderir tese da responsabilidade de modo incondicional, uma vez que a questo merece maiores reflexes. Entendeu no ser possvel generalizar a tese da responsabilidade, pois h hipteses de absolvio em reviso criminal que claramente no acarretam a responsabilidade objetiva do Estado. 4 De acordo com Maria Sylvia Zanella Di Pietro: Com relao a atos judiciais que no impliquem exerccio de funo jurisdicional, cabvel a responsabilidade do Estado, sem maior contestao, porque se trata de atos administrativos, quanto ao seu contedo. (Direito administrativo. 22. ed. So Paulo: Atlas, 2009. p. 660).

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Hely Lopes Meirelles, a ttulo de exemplo, afirma que tratando-se de atos tpicos do Poder Judicirio, a responsabilidade subjetiva, dependendo da comprovao de culpa. Nesse caso, os atos judiciais no poderiam ser abrangidos pela mencionada disposio constitucional. Segundo Hely Lopes, Essa distino resulta do prprio texto constitucional, que s se refere aos agentes administrativos (servidores), sem aludir aos agentes polticos (parlamentares e magistrados), que no so servidores da Administrao Pblica, mas sim membros de Poderes de Estado.5 Vicente Greco Filho possui opinio semelhante, ao afastar a aplicao da regra constitucional em caso de decises judiciais, por entender que o magistrado no funcionrio pblico6. O processualista, contudo, restringe o mbito da responsabilidade subjetiva na hiptese, entendendo no ficar ela caracterizada nos casos em que houver mera culpa do juiz, por ser ela incompatvel com o sistema de aplicao do direito: Se o juiz pudesse ser responsabilizado pelo erro judicirio, ainda que com culpa, a justia ficaria comprometida porque o magistrado restaria temeroso em decidir. Da justificar-se a restrio da responsabilizao apenas no caso de dolo ou fraude e retardamento ou omisso devidamente constatados.7 Jos Joaquim Gomes Canotilho, analisando a Constituio portuguesa no aspecto, defende a responsabilizao, com a seguinte ressalva: Sob pena de paralisar o funcionamento da justia e perturbar a independncia dos juzes, impe-se aqui um regime particularmente cauteloso, afastando, desde logo, qualquer hiptese de responsabilidade por actos de interpretao das normas de direito e pela valorao dos factos e da prova.8 Ao discorrer sobre a questo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro enumera os principais argumentos utilizados pelos defensores da tese da5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed. So Paulo: Malheiros, 2002. p. 625-626. 6 GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro. 21. ed. So Paulo: Saraiva, 2009. v. 1, p. 246. 7 Ibidem, p. 245. 8 CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Direito constitucional. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 509.

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irresponsabilidade estatal. So eles: a soberania do Poder Judicirio; a independncia dos juzes no exerccio de suas funes; o fato de no estar o juiz includo entre os funcionrios pblicos; a incontrastabilidade da coisa julgada; a falibilidade dos juzes; o risco assumido pelo jurisdicionado e a ausncia de texto expresso de lei.9 A autora apresenta ainda os argumentos utilizados para refutar esse posicionamento. Afirma que no possvel invocar a soberania do Poder Judicirio, uma vez que o atributo da soberania refere-se ao Estado como um todo. Alm disso, tal argumento, para manter a coerncia, seria aplicvel para afastar a responsabilidade estatal por atos praticados pelo Poder Executivo, o que inadmissvel. Quanto independncia dos magistrados, afirma Maria Sylvia Zanella Di Pietro: A esse argumento, responde-se que, no obstante seja indiscutvel a necessidade de assegurar-se independncia ao magistrado, a mesma no pode ir ao ponto de isentar o Estado de responder pelos erros decorrentes de sua atuao, especialmente se eles forem graves.10 O argumento da falibilidade dos juzes igualmente rechaado pela autora, pois o fato de os julgadores serem suscetveis de cometer erros no impede a responsabilizao do Estado pelos danos causados, pelas mesmas razes que no serve de escusa a qualquer pessoa, na vida pblica ou privada11. Realmente, todas as pessoas podem vir a cometer erros, circunstncia que por si s no as exime de responsabilidade. Da mesma forma, no se sustenta o argumento de que o jurisdicionado assume o risco de vir a sofrer danos ao acionar o Poder Judicirio, quer pelo fato de ser compelido a se valer do Judicirio (no caso do autor), diante da vedao, salvo algumas excees, de se fazer justia pelas prprias mos, quer ainda pelo fato de ser o Estado obrigado a promover a prestao jurisdicional de modo adequado.129 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, cit., p. 658; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional. Revista de Direito Administrativo, v. 198, p. 86-90, out./dez. 1994. 10 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional, cit., p. 89. 11 Ibidem, mesma pgina. 12 Ibidem, mesma pgina.

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Ademais, o fato de o juiz ser um agente poltico, no se enquadrando na categoria geral de funcionrio pblico, conforme argumentou Hely Lopes Meirelles no excerto transcrito acima, no exclui a responsabilidade estatal no caso. Realmente, ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro que a Constituio Federal, ao tratar do tema, se referiu a agentes exatamente para abranger todos aqueles que prestam servios ao Poder Pblico.13 Para a autora o argumento mais consistente seria aquele relacionado com o bice da coisa julgada. Pondera, no entanto, que no h qualquer modificao na deciso, que permanece vlida para as partes, ainda que condenado o Estado a indenizar os danos por ela causados14. Assim, a responsabilizao do Estado pelos atos jurisdicionais no afeta a coisa julgada.15 Quanto necessidade de texto expresso de lei, a discusso ser melhor analisada no tpico seguinte. 3 Previso legal Maria Sylvia Zanella Di Pietro entende que a responsabilidade do Estado por atos jurisdicionais decorre da regra geral do artigo 37, pargrafo 6, da Constituio Federal. Uma previso legal especfica seria aconselhvel, para melhor disciplinar a responsabilidade estatal nessa seara, bem como para dirimir as dvidas que a questo suscita, mas no imprescindvel para fixar a responsabilidade do Estado.1613 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito administrativo, cit., p. 659. 14 Ibidem, mesma pgina. 15 Segundo Ruy Rosado de Aguiar Jnior: O impedimento desaparece, porm, com o desfazimento da coisa julgada. Se o interessado intentar, no prazo decadencial de dois anos, ao rescisria do julgado cvel (art. 485 do CPC), ou, em qualquer tempo, a reviso da sentena criminal (art. 622 do CPP), poder obter, na mesma sentena de resciso, ou em outra ao, a pretendida indenizao. A alegao da existncia da coisa julgada no pode, pois, servir de motivo para a irresponsabilidade pelos atos jurisdicionais, porquanto a sentena com tal eficcia pode ser desfeita. (A responsabilidade civil do Estado pelo exerccio da funo jurisdicional no Brasil. Interesse Pblico, Belo Horizonte, Frum, ano 9, n. 44, jul./ago. 2007. Disponvel em: . Acesso em: 11 fev. 2010). 16 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional, cit., p. 90.

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Outros autores, entretanto, entendem que no caso de atos jurisdicionais, s h responsabilizao estatal nos casos expressamente previstos. E a Constituio Federal prev hiptese de responsabilidade por ato jurisdicional em seu artigo 5, inciso LXXV, que dispe: o Estado indenizar o condenado por erro judicirio, assim como o que ficar preso alm do tempo fixado na sentena. Existindo dispositivo especfico para os atos jurisdicionais, ele deve incidir. esse o posicionamento de Srgio Cavalieri Filho: Da o entendimento predominante, no meu entender mais correto, no sentido de s poder o Estado ser responsabilizado pelos danos causados por atos judiciais tpicos nas hipteses previstas no artigo 5, LXXV, da Constituio Federal.17 No mesmo sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal: Constitucional - Administrativo. Civil. Responsabilidade civil do Estado pelos atos dos juzes. Artigo 37, pargrafo 6, da Constituio Federal. I. A responsabilidade objetiva do Estado no se aplica aos atos dos juzes, a no ser nos casos expressamente declarados em lei. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. II. Decreto judicial de priso preventiva no se confunde com erro judicirio CF, art. 5, LXXV mesmo que o ru, ao final da ao penal, venha a ser absolvido. III. Negativa de trnsito ao RE. (RE n. 429.518/SC, rel. Min. Carlos Velloso). Ruy Rosado de Aguiar Jnior igualmente entende que o artigo 37, pargrafo 6, da Constituio Federal no se aplica aos atos jurisdicionais: O princpio da responsabilidade objetiva, que se satisfaz com a causao do dano, no pode ser aceito no mbito dos atos judiciais porque sempre, ou quase sempre, da atuao do juiz na jurisdio contenciosa resultar alguma perda para uma das partes. Se esse dano17 CAVALIERI FILHO, Srgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. So Paulo: Atlas, 2010. p. 275.

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fosse indenizvel, transferir-se-iam para o Estado, na mais absoluta socializao dos prejuzos, todos os efeitos das contendas entre os particulares. por isso que a regra ampla do artigo 37, pargrafo 6, da Constituio deve ser trazida para os limites indicados no seu artigo 5, LXXV, que admite a indenizao quando o ato falho (erro na sentena) ou quando falha o servio (excesso de priso).18 Para os adeptos dessa corrente, se a Constituio estabeleceu hiptese especial de responsabilizao para os atos jurisdicionais (art. 5, inc. LXXV), porque no pretendia que tais atos fossem includos na regra geral de responsabilidade estatal (art. 37, 6). Portanto, deve ser considerada apenas a hiptese constitucionalmente prevista de responsabilizao, referente ao processo penal. Fora da, no seria possvel obrigar o Estado a indenizar os danos causados no exerccio da atividade jurisdicional. No processo civil, a nica previso legal sobre o tema envolve a responsabilidade pessoal do juiz por perdas e danos em caso de dolo ou fraude (art. 133 do CPC). Nesse ponto, a despeito de cuidar-se de responsabilidade por ato praticado no exerccio da funo jurisdicional, no temos a responsabilidade precpua do Estado, mas do magistrado, diretamente.19 Registre-se a posio de Srgio Cavalieri Filho acerca da expresso condenado por erro judicirio, qual empresta sentido mais amplo, para abranger no s os condenados pela Justia Penal, mas tambm pela Justia Civil20. Com isso, o dispositivo constitucional no estaria restrito ao campo do processo penal. Os erros cometidos no campo civil em sentido amplo tambm seriam indenizveis, com base no artigo 5, inciso LXXV, da Constituio.18 AGUIAR JNIOR, Ruy Rosado de, A responsabilidade civil do Estado pelo exerccio da funo jurisdicional no Brasil, cit. 19 Lair da Silva Loureiro Filho entende que o dispositivo admite, a critrio da vtima, a propositura de demanda diretamente contra o juiz, ou em face do Estado, ao qual cabe o direito de regresso perante o magistrado causador do dano (Responsabilidade pblica por atividade judiciria. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 259). 20 CAVALIERI FILHO, Srgio, Programa de responsabilidade civil, cit., p. 275.

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4 O processo penal Independente da posio que se adote no mbito cvel (irresponsabilidade pelos atos praticados, responsabilidade com fundamento no art. 37, 6, da CF, ou, ainda, abrangncia pelo art. 5, inc. LXXV), o fato que na jurisdio penal, objeto principal deste estudo, certa a possibilidade de responsabilizao estatal. No se questiona a existncia de disposies especficas acerca da responsabilidade estatal por danos causados no exerccio da atividade jurisdicional penal21. A par do mencionado artigo 5, inciso LXXV, da Constituio Federal, h o artigo 630, caput, do Cdigo de Processo Penal, que estabelece que o Tribunal, se o interessado o requerer, poder reconhecer o direito a uma justa indenizao pelos prejuzos sofridos. Assim, tendo o condenado suportado prejuzos em razo de erro judicirio penal, faz jus ao recebimento de indenizao pelo Estado.22 Uma interpretao literal do artigo 5, inciso LXXV, da Constituio Federal assegura a indenizao ao prejudicado por erro judicirio apenas nas hipteses de condenao. Decises no condenatrias proferidas no curso do processo no autorizariam o recebimento de indenizao, ainda que houvesse prejuzo resultante de erro judicirio. Em uma interpretao ampla, outras hipteses, que no a mera condenao indevida, estariam abrangidas pelo dispositivo. Desse modo, tambm acarretaria a responsabilidade estatal a priso indevida,21 O direito brasileiro preocupou-se somente com o erro penal, quer em nvel constitucional (art. 5, inc. LXXV, da Constituio), quer em nvel de legislao ordinria (art. 630 do CPP). (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Responsabilidade do Estado por ato jurisdicional, cit., p. 91). 22 O exemplo mais emblemtico de erro judicirio na jurisprudncia nacional o caso dos irmos Naves. A condenao por latrocnio resultou de uma sucesso de erros e abusos. Ao fim, o pretenso morto apareceu. Aps mais de duas dcadas do suposto crime, foi fixada definitivamente pe