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POSTAIS Revista do Museu Correios Ano 2 - n. 5 jul./dez. - 2015 Dossiê Documentos Fundadores

Revista Postais 05 - 2015

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Revista Postal N. 5 - 2015 Dossiê Documentos Fundadores Artigos de Bernardo Arribada, Candida Malta Campos, Diego Salcedo, Luiz Guilherme Machado, Karla Bronsztein, Márcio Alves Roiter, Marileide Meneses Silva, Mauro Costa Silva, Romulo Salvino, Tida Carvalho.

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    Ano 2 - n. 5

    jul./dez. - 2015

    Dossi Documentos Fundadores

  • Imagens capas - Prdio dos Correios -

    Vale do Anhangaba/SP

    Bernardo de Barros Arribada

    Candida Malta Campos

    Diego A. Salcedo e Karla Bronsztein

    Documentos do correio-mar do Reino

    Luiz Guilherme Machado

    Mrcio Alves Roiter

    Marileide Meneses Silva

    Mauro Costa Silva

    Romulo Valle Salvino

    Tida Carvalho

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  • EditorRomulo Valle Salvino

    Conselho editorialAdeilson Ribeiro TellesAndre Henrique Quintanilha Ronzani Larissa Gauch Gomes Viana Maria de Lourdes Torres de Almeida Fonseca

    Projeto grficoJuliane Marie Tadaieski ArrudaVirgnia de Campos Moreira

    Diagramao e arteJuliane Marie Tadaieski ArrudaVirgnia de Campos Moreira

    CapaVirgnia de Campos Moreira

    Ncleo de pesquisa e documentaoAnna Priscilla Martins da Silva Campos Bernardo de Barros Arribada Camila Alves SenaJair Nazareno Xavier Jomanuela Nascimento Santos Maria do Socorro Nobre da SilvaMiguel Angelo de Oliveira Santiago Renata Assiz dos Santos Roberto Rocha Neto

    Ncleo administrativoAngela Oliveira Laborda Douglas Teixeira Nunes SantosLucilia Gomes Silva BelchiorMarcelle dos Reis Freitas Marco Antonio de SousaMaria da Glria Guimares

    AgradecimentosASCOM - Diretoria Regional dos Correios em So Paulo;Biblioteca da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo/ USPFundao Portuguesa das Comunicaes

    Postais : Revista do Museu Nacional dos Correios. N.1 ([jul./dez. 2013 ])- . Braslia : Empresa Brasileira de Correios e Telgrafos,

    Departamento de Gesto Cultural. 2013-- v. : il. ; 18cm. Semestral A partir do N.3, o subttulo da publicao passou a ser Revista do Museu Correios.

    ISSN 2317 - 5699

    1. Histria Postal Brasileira. 2. Telegrafia. 3. Museologia. Patrimnio Histrico e Cultural. 4. Ao Cultural. 5. Artes. I. Empresa Brasileira de Correios eTelgrafos, Departamento de Gesto Cultural.

    CDD 656.81 CDU 656.8(09)(081)

    P857

    A Revista Postais uma publicao semestral do Museu Correios.

    As opinies expressas nos artigos so de responsabilidade exclusiva de seus autores.

    Museu Correios

    Setor Comercial Sul, Quadra 04, nmero 256

    70304-915 Braslia - DF

    Telefone: (61) 3213 5000

    e-mail: [email protected]

  • POSTAISRevista do Museu Correios

    Ano 3 Nmero 05Braslia 2015

  • Carta Editorial

    Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imp-rio portugus: uma abordagem preliminar do caso do correio-mor e seus cargos auxiliares (sculos XVI-XVIII)Romulo Valle Salvino

    36

    Pindorama modernista influncia indgena no Art Dco brasileiroMrcio Alves Roiter

    76

    A visibilidade das religies nos selos postais comemorativos brasileiros do sculo XX

    98

    Lus Homem e a Criao do Ofcio de Correio-Mor do Reino em 1520Luiz Guilherme Gonalves Machado

    08

    Diego A. SalcedoKarla P. Bronsztein

    O lance das cartas124Tida Carvalho

    06

  • Um Varal no Litoral - O Telgrafo brasileiro no sculo XIX Mauro Costa da Silva

    168

    O eixo da Avenida So Joo e a sede dos Correios em So PauloCandido Malta Campos

    Ordenaes Filipinas

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    208

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    266

    Rio de Janeiro: espao polifnico142Marileide Meneses Silva

    Coleo telegrfica do Museu Correios como fonte documental para a histria das comunicaes no Brasil o telgrafo BrguetBernardo de Barros Arribada

    192

    Documentos do correio-mor do Reino

    Documentos do correio-mor do mar

    256

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    Os Correios so uma das mais antigas instituies brasileiras. Ao longo de sua histria, essa entidade centenria que hoje tem a personalidade de uma empresa pblica ocupou e amealhou inmeros edifcios em todo o pas, bastante significativos tanto do ponto de vista histrico quanto arquitetnico. Por isso, a Postais, desde o seu primeiro nmero, vem dando uma especial ateno a esse rico patrimnio, por meio de artigos que buscam abord-lo por diferentes ngulos.

    No poderia ser diferente nesta edio, lanada justamente quando se aproximam do fim as obras de restauro da fachada de um dos mais significativos Palcios de Correio, aquele que foi projetado e construdo em So Paulo pelo escritrio Ramos de Azevedo. O prdio hoje abriga um Centro Cultural e a maior agncia postal do Brasil, alm de outra voltada especialmente para os filatelistas. Os trabalhos de restaurao da fachada foram realizados sem que se interrompessem essas atividades, e o seu trmino marca, na realidade, o incio de mais uma etapa, j que em 2016 deve continuar a atualizao dos projetos que visam a transformar o imvel em um dos mais importantes equipamentos culturais do pas, sem que perca a sua utilizao original de unidade comercial dos Correios.

    Para marcar esse momento, o artigo de Cndido Malta Campos busca resgatar a trajetria desse imvel to importante para a memria dos Correios e Telgrafos, desde os seus primrdios, num perodo decisivo da urbanizao da regio central de So Paulo, ocorrida no incio do sculo XX, at os dias atuais, de revalorizao do patrimnio cultural por uma sociedade que pode ter no prdio dos Correios um exemplo de projeto plenamente sintonizado com a retomada consciente do centro histrico da principal metrpole brasileira.

    Alm desse trabalho, a Postais prossegue na sua atividade de trazer outros, que tambm auxiliem o resgate e a divulgao da histria dos servios postais e telegrficos. com esse objetivo que Luiz Guilherme Machado ilumina aspectos da vida do primeiro correio-mor do Reino, Lus Homem, e que Romulo Valle Salvino busca novos subsdios para a histria dos correios na Idade Moderna. Mauro Costa da Silva, por sua vez, prossegue com seu trabalho de esclarecer

  • significativas passagens da expanso dos servios telegrficos brasileiros em seus primeiros tempos. Ainda no universo da telegrafia, Bernardo de Barros Arribada aproxima-se de uma importante pea do acervo do Museu Correios, o telgrafo Brguet, para mostrar que, a despeito de raridade e da beleza das linhas desse equipamento, ele mais que um objeto-fetiche, mas permanece como documento importante de uma grande mudana tecnolgica.

    A Postais tambm no poderia deixar de lado a filatelia, essa prtica e esse saber to ligados histria dos Correios. A revista tem procurado se aproximar desse universo por meio de abordagens no tradicionais, que ressaltem a produo filatlica em seus aspectos culturais e ideolgicos. Assim, Diego A. Salcedo (que j vem se tornando um frequentador assduo e sempre generoso de nossas pginas) e Karla P. Bronsztein fazem, neste nmero, uma incurso pela histria de como o selo postal representou as diversas religies ao longo do sculo XX. A concluso no deixa de ser polmica, j que atribui a forte presena de selos com temtica catlica no perodo posterior dcada de 1980 a um esforo miditico da prpria Igreja Catlica. O debate est aberto, e o assunto certamente voltar a frequentar estas pginas.

    O mundo das artes, em suas vrias manifestaes, tem sido outra recorrncia nas pginas da revista. Assim, nesta edio, Mrcio Alves Roiter, procura analisar a influncia da esttica marajoara na produo Art Dco brasileira; Marileide Meneses Silva reflete sobre as representaes da cidade do Rio de Janeiro nas crnicas de Nelson Rodrigues; Tida Carvalho faz uma trip pelas cartas que Leminski, o epistoleiro mais rpido do oeste, enviou a Rgis Bonvicino.

    O nmero se encerra com um dossi composto por alguns documentos relacionados histria dos servios postais luso-brasileiros em seus primrdios. H de se constatar a pouca divulgao e a dificuldade de acesso de eventuais pesquisadores a esses documentos, guardados em arquivos ou apenas publicados em meios h muito esgotados ou de difcil circulao no Brasil. A Postais vem procurando sanar parcialmente essa lacuna, por meio da publicao de algumas fontes de pesquisa, seja em fac-smile, seja, como agora, por meio de transcries. O atual dossi se insere nesse esforo. Ele anuncia tambm um projeto maior do Museu Correios, que a veiculao sistemtica de documentos relativos aos perodos colonial e imperial, que devero ser reunidos posteriormente em livro a ser disponibilizado digitalmente, tambm distribudo em forma fsica para bibliotecas e universidades brasileiras.

    Telgrafo Brguet1855Foto: Fundao Portuguesa das Comunicaes.

  • Lus Homem e a Criao do Ofcio de Correio-Mor do Reino em 1520

    Luiz Guilherme G. Machado

    Keywords: Postal history; Post Master; Lus Homem.

    Palavras-chave: Histria postal. Correio-mor. Lus Homem.

    Resumo/Abstract

    Este trabalho busca contribuir, a partir de fontes primrias do sculo XVI, com o resgate de informaes biogrficas sobre o primeiro Correio-Mor do reino de Portugal, Lus Homem

    Lus Homem and the creation of the Correio-Mor (Post Master) do Reino appointment in 1520

    Based on primary sources of the 16th century, this article seeks to contribute to the effort of recovering biographical information on Lus Homem, the first holder of the Correio-mor [Post Master] appointment in the kingdom of Portugal.

  • Luiz Guilherme G. Machado

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    Contar a histria do primeiro Correio-Mor de Portugal falar dos principais acontecimentos histricos daquele tempo, nos quais Lus Homem participou direta ou indiretamente.

    Antes de ter sido nomeado para este ofcio em 1520, o primeiro Correio-Mor do Reino j tinha desempenhado outras importantes funes, as quais foram determinantes para o reconhecimento da sua competncia. Desconhece-se a sua origem, mas existe a possibilidade de ele ter sido filho de Pedro Homem, que foi Estribeiro-Mor de D. Manuel quando ainda era Duque de Beja, bem como irmo de Francisco Homem, que o sucedeu no cargo j durante o seu reinado. (FREIRE, 1944) Esse cargo tinha a funo de gerir os moos de estribeira donde provinham justamente os mensageiros oficiais da casa real. Por volta de 1512, Lus Homem era criado do Rei D. Manuel, no possuindo por essa altura qualquer outro estatuto social, mas somente a especialidade de Bombardeiro1

    (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 13, Doc. 40). De facto, muito antes de se tornar mensageiro real pela Europa afora e em especial na Flandres, foi tambm soldado no longnquo Oriente, onde desempenhou ainda que involuntariamente o papel de correio de boas novas por se encontrar na ndia a 25 de Novembro de 1510, quando Afonso de Albuquerque conquistou definitivamente a Cidade de Goa.

    Embarcado na armada comandada pelo Capito-Mor Gonalo de Sequeira, composta por sete naus e que em Maro desse ano de 1510 partira de Lisboa com destino ndia para o comrcio das especiarias (CORREIA, 1974, 1975; GIS, 1926), Lus Homem ir chegar a Cananor em 8 de Setembro do mesmo ano (COMENTRIOS..., 1973),

    1.Bombardeiro era um artilheiro de bombarda, pequeno canho.

    Ilustrao da Nau Flamenga comandada por Loureno Lopes.

  • Lus Homem e a Criao do Ofcio deCorreio-Mor do Reino em 1520

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    justamente quando o Governador Afonso de Albuquerque se preparava para retomar a Cidade de Goa, depois de uma primeira tentativa frustrada de conquista no incio daquele ano. Como Condestvel de Bombardeiro, Lus Homem fazia parte da tripulao da Nau Flamenga, pertencente ao mercador portugus Tom Lopes (FREIRE, 1920) e a outros armadores (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 13, Doc. 40). Provavelmente esta ter sido a nau que fora comandada por Loureno Lopes (FREIRE, 1920), um comerciante portugus estabelecido na Flandres, que por sua vez era sobrinho de um outro Tom Lopes de Andrade, Feitor em Anturpia e posteriormente Feitor da Casa da ndia, alm de Embaixador de D. Manuel junto Corte de Brabante (FREIRE, 1920), de quem o futuro Correio-Mor ser mensageiro quando da sua misso naquela Corte, conforme veremos mais adiante.

    A julgar pela qualificao de Lus Homem como comandante dos bombardeiros daquele navio, sem dvida alguma que poderia ter sido muito til na reconquista de Goa, mas tal no aconteceu. Durante a reorganizao das foras para um novo ataque quela cidade, Afonso de Albuquerque procurou auxlio nas armadas recentemente chegadas de Lisboa. Para alm da frota capitaneada por Gonalo de Sequeira, em que vinha o nosso futuro Correio-Mor, chegara uma outra composta por outras quatro naus sob o comando de Diogo Mendes de Vasconcelos, que tinha por destino o porto de Malaca. (CASTANHEDA, 1979; CORREIA, 1974, 1975; GIS, 1926).

    Num Conselho reunido em Cochim por Afonso de Albuquerque, houve grande divergncia de opinies entre os capites-mores das armadas e os outros comandantes dos navios inclusive com o clebre circum-navegador Ferno de Magalhes quanto posio a ser tomada, tanto em relao ao projeto de reconquista de Goa defendida por Albuquerque como em relao ao cumprimento das instrues rgias no tocante aos objetivos daquelas armadas.2 Ficaria contudo estipulado que a Armada de Malaca, comandada por Diogo Mendes de Vasconcelos, auxiliaria Afonso de Albuquerque naquela empresa, tendo-lhe o Governador da ndia prometido que o auxiliaria na viagem at

    2. Cf. Ata do Conselho de 10 de Outubro de 1510. In: CARTAS..., 1898.

    Afonso de Albuquerque.

  • Luiz Guilherme G. Machado

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    Malaca depois daquela misso, o que de facto veio a ocorrer no ano seguinte, altura em que o mesmo Afonso de Albuquerque acabaria por conquistar tambm aquela estratgica cidade asitica. (COMENTRIOS..., 1973; CORREIA, 1974, 1975; GIS, 1926)

    Quanto armada comandada por Gonalo de Sequeira onde se encontrava o nosso futuro Correio-Mor Lus Homem o seu comandante, bem como os outros capites dos navios, recusaram-se a participar no projeto. Alegaram como principal razo o facto de naquela viagem a armada ser composta exclusivamente por naus de mercadores e que devido ao contrato que tinham com os seus feitores, os quais representavam nessa viagem, no queriam atrasar os negcios nem participar numa empresa que poria em risco o objetivo principal daquela misso, a qual visava somente a aquisio das preciosas especiarias. (CASTANHEDA, 1979; COMENTRIOS..., 1973; CORREIA, 1974)

    Esta atitude veio indispor Afonso de Albuquerque com Gonalo de Sequeira (COMENTRIOS..., 1973), tendo o governador sentenciado que mesmo antes da armada se abastecer das especiarias, teriam eles conhecimento da conquista e seriam os portadores da notcia para o Reino, pois [...] que nestas naus havia de mandar recado a El-Rei que ele ficava descansando dentro na Cidade de Goa. (CORREIA, 1975, Vol. II, p. 138). Afirmou ainda Albuquerque, que eles arcariam com a responsabilidade de perderem uma oportunidade de servirem ao seu soberano, acrescida da vergonha de no participarem de um to grande feito (COMENTRIOS..., 1973). O governador de esprito mais guerreiro do que comercial chegou ainda a queixar-se ao monarca: [...] se Vossa Alteza quer ser rico, no venham c naus de mercadores para o negcio da ndia, naus h nela que abastem se lhe mandardes muitas lanas e muitas armas [...]. (CARTAS..., 1898, Tomo I, p. 24-25). Bem gostaria D. Manuel de seguir esse conselho, chegando a responder [...]que assim se far, prazendo a Deus [...]. (CARTAS..., 1898, Tomo I, p. 432). Contudo, a debilidade financeira da Coroa frente ao audacioso projeto do trfico indiano, j no podia dispensar

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    o patrocnio decisivo dos particulares no lucrativo comrcio asitico. (ALMEIDA, 1993)

    Reconquistada definitivamente a Cidade de Goa em 25 de Novembro de 1510, confirmou-se a proftica previso de Afonso de Albuquerque, tendo a Armada de Gonalo de Sequeira e com ela o nosso futuro Correio-Mor do Reino, acabado por trazer a Lisboa os maos de cartas com as notcias da importante conquista, bem como sobre outros assuntos e as providncias tomadas a respeito do imprio oriental que ento se construiria e que agora j possua a sua sede. (CARTAS..., 1898; CORREIA, 1975)3

    Chegando a Portugal em meados do ano de 15114, Lus Homem viajar em seguida para a Flandres, possivelmente para acompanhar as especiarias pertencentes Coroa trazidas na viagem e que eram na sua maior parte negociadas naquela regio atravs da Feitoria Portuguesa de Anturpia. Isto o que se poder deduzir de um mandado de D. Manuel datado de 18 de Agosto de 1512 (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 13, Doc. 40), no qual se refere a chegada de Lus Homem a Lisboa, vindo da Flandres, donde trazia a fazenda real, que deveria consistir no produto da venda de parte daquelas mercadorias.

    Neste mesmo documento, fica patente o valimento que Lus Homem j possua junto ao monarca, pois para alm da confiana nele depositada para trazer o seu dinheiro, D. Manuel ordenava ao Feitor e mais Oficiais da Casa da ndia, que pagassem logo a Lus Homem em pimenta o que lhe ficasse lquido dos trinta e quatro quintais que trouxera na nau em que fora ndia, para que ele a pudesse levar consigo Flandres onde era novamente enviado a servio do rei. (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 13, Doc. 40)

    Este pagamento em pimenta correspondia sua quintalada e camarote, a que Lus Homem tinha direito em virtude da sua viagem ao oriente e que era uma forma de incentivo dado pela coroa a quem participasse no grande projeto das navegaes dos descobrimentos. Consistia isso numa parte do soldo pago sob a forma de licena de importao para a

    3.Cf. sumrios das Cartas da ndia de Afonso de Albuquerque e Outros, que trouxe Conalo de Sequeira. In: CARTAS..., 1898, Tomo I, p. 419-430.

    Comrcio de Especiarias.

    4.Cf. carta de D. Manuel ao Bispo de Segvia. In: CARTAS..., 1898, Tomo III, p. 20-21, e ainda: Carta de D. Manuel I ao Rei de Arago, D. Fernando, sobre a Tomada de Goa, edio e notas de Virgnia Rau e Eduardo Borges Nunes, Lisboa, 1968. Neste ltimo trabalho, ficou comprometida a anlise que os autores fizeram desta desconhecida carta ao Rei de Arago, por terem consultado unicamente os dois primeiros tomos das Cartas de Afonso de Albuquerque, passando dessa forma desapercebida a missiva endereada ao Bispo de Segvia, publicada no tomo III, que complementava as notcias anunciadas naquela carta ao Soberano Espanhol.

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    metrpole de uma certa quantidade de especiarias, compradas com o seu prprio dinheiro, mas livre de frete. Estas mercadorias eram arrumadas em cmaras reservadas tripulao do navio e que variavam de tamanho conforme a categoria do tripulante. No caso de Lus Homem, como Condestvel de Bombardeiro, teve ele direito de trazer cinco quintais e duas arrobas de pimenta. Porm, tendo comprado tambm os lugares das quintaladas de outros onze tripulantes do navio em que viajava, totalizou o direito a trinta e quatro quintais, que aps abater a quebra de 10% e o quarto e vintena (correspondente aos direitos de alfndega), se traduziram num valor lquido de vinte quintais, duas arrobas e vinte arrteis de pimenta (cerca de 1 tonelada), que ele prprio levar para a Flandres. (GODINHO, 1982)

    Note-se, que a concesso dada a Lus Homem de poder levantar a sua parte em pimenta era uma excepo. A partir de 1504, com o monoplio real, entrou em vigor um novo regime comercial e todas as especiarias descarregadas em Lisboa passaram obrigatoriamente a dar entrada na Casa da ndia, que por sua vez as negociava a preo nico. Somente depois de vendidas, que era entregue a cada mercador o valor em dinheiro correspondente ao que l tinha depositado (GODINHO, 1982). Dessa forma, Lus Homem obteve o raro privilgio de poder negociar diretamente na Flandres o preo da sua mercadoria, conseguindo assim uma melhor remunerao do seu investimento.

    Nessa poca, a Cidade de Anturpia era j o principal centro distribuidor das especiarias e dos produtos coloniais portugueses no norte da Europa, onde Portugal tinha uma importante comunidade de mercadores reunidos em torno da Feitoria Portuguesa, que servia como uma representao comercial e diplomtica da coroa naquela regio. Os portugueses formavam uma das principais naes estrangeiras naquela cidade, possuindo vrios privilgios e isenes outorgados pela casa reinante dos Habsburgos. Ser neste ambiente de intenso trfego comercial que se estabelecero as mais estreitas relaes diplomticas entre a Corte Portuguesa e a Casa da ustria. Tais relaes tero ainda como consequncia um constante intercmbio de correspondncia epistolar entre Portugal e a

    Imperador Maximiliano I

  • Lus Homem e a Criao do Ofcio deCorreio-Mor do Reino em 1520

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    Flandres, em que Lus Homem tambm veio a participar como mensageiro real.

    Ser nesse contexto que D. Manuel enviar em finais de 1514 Corte do seu primo direito, o Imperador Maximiliano de Habsburgo (eram ambos netos do Rei D. Duarte), o Feitor da ento opulenta e poderosa Casa da ndia, Tom Lopes de Andrade, com amplos poderes sobre a Feitoria Portuguesa de Anturpia.5 Esta misso tinha como objetivo negociar com os grandes potentados do comrcio e das finanas alemes (Fugger, Hochstetter e Welser), o fornecimento de cobre para suprir as necessidades das Armadas da ndia e do comrcio oriental. Visava tambm tratar de questes polticas junto ao Imperador relativas s negociaes sobre o casamento da Infanta D. Leonor, sua neta, com o Prncipe herdeiro Portugus, D. Joo e da irm deste, D. Isabel, com o seu outro neto e futuro Imperador, o Arquiduque Carlos de ustria. (GIS, 1926)

    Tom Lopes de Andrade j referenciado no incio deste artigo tinha sido Feitor em Anturpia entre 1498 e 1505, justamente no tempo em que chegaram quela cidade os primeiros navios portugueses carregados de especiarias asiticas e quando por isso ali se firmou o primeiro contrato de venda daquele produto na regio, no ano de 1503 (ALMEIDA, 1993; FREIRE, 1920). Mercador experiente e arguto diplomata, era muito considerado na Corte de Brabante e foi por isso para a enviado como Embaixador entre 1509 e 1511, tendo negociado o importante acordo que concedia o estatuto de nao mais favorecida (FREIRE, 1920, p. 95-96) aos portugueses residentes naquela cidade, ficando igualmente garantida uma casa para sede da Feitoria, mediante uma doao da municipalidade de Anturpia6.

    Quando da sua chegada Augsburgo em Maio de 1515, Tom Lopes refere em carta a D. Manuel, que:

    Quando passei por esta cidade para ir ao Imperador, os governadores dela e assim os Fugger, Hochstetter, Welser e todas as outras companhias e mercadores, me fizeram muita

    6.Cf. doc. XXVII. In: FREIRE, 1920, p. 170-171.

    Jacob Fugger

    5. Cf. alvar publicado por FREIRE, 1920, p. 104.

  • Luiz Guilherme G. Machado

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    honra e me enviaram muitos presentes; e assim o fizeram quando tornei com o Imperador. (FREIRE, 1920, p. 104)

    Nesta mesma carta, numa clara aluso ao prestgio que Portugal alcanara na cena internacional daquele tempo, conclua:

    O Imperador toma grande passatempo em saber das cousas da ndia e dos reis que so sujeitos a Vossa Alteza, e h por mui grande feito a guerra de frica, assim no Reino de Fz, como no de Marrocos, sobre que muito me tem perguntado tudo. Os senhores e povos no falam em nenhuma cousa tanto, como em estas conquistas de Vossa Alteza. (FREIRE, 1920, p.105).

    J em Agosto do mesmo ano de 1515, Tom Lopes comunicava a D. Manuel que aguardava a chegada do Imperador, que vinha de Viena, para se despedir7 e seguir para Bruxelas, onde se avistaria com o neto de Maximiliano, o Arquiduque Carlos de ustria, soberano dos Estados de Brabante e herdeiro presuntivo do trono de Espanha, por ser o filho mais velho de Joana a Louca e esta a nica filha dos Reis Catlicos.

    No entanto, pouco depois, a 23 de Janeiro de 1516, o Rei Espanhol, Fernando o Catlico, viria a falecer, causando grande apreenso na Corte Portuguesa, manifestada atravs das cartas rgias datadas de 1 de Fevereiro daquele ano e enviadas aos governadores das diferentes fortalezas do Reino, para que as guardassem e velassem com toda a segurana e cuidado (FREIRE, 1920). A sucesso ao trono de Castela revelou-se uma questo delicada visto a herdeira direta, Joana a Louca, estar internada em Tordesilhas como incapaz e o seu jovem filho e herdeiro Carlos, ento soberano de Brabante, se encontrar em Bruxelas. Pelo testamento do falecido rei, ficava nomeada uma regncia para governar em nome do seu neto, o Arquiduque de ustria, at a sua chegada a Castela para ser jurado em Cortes conforme a tradio espanhola. Contudo, os acontecimentos precipitaram-se e Carlos, estando ainda em Bruxelas, apressou-se em tomar o ttulo real espanhol em Maro

    7.Cf. Doc. LV. In: FREIRE, 1920, p. 221.

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    desse mesmo ano de 1516, para assim poder negociar em melhores condies a paz com Francisco I, Rei de Frana, que viria a ser o seu principal rival no cenrio europeu daquele tempo. Tal atitude causou algum descontentamento e apreenso em Espanha, resultantes da expectativa sempre adiada da sua vinda para tomar posse e residir naquele Reino, facto que s viria a ocorrer em 7 de Fevereiro de 1518. Nesse clima de instabilidade e incerteza, o Rei D. Manuel procurar saber atravs dos seus servidores na Flandres e em Castela de todas as notcias relacionadas com o desenrolar dos acontecimentos, de forma a levar a bom termo a sua poltica europeia justamente num momento em que o seu imprio colonial se encontrava em grande expanso noutras partes do mundo (FREIRE, 1920). E neste cenrio que surgir novamente Lus Homem como elo de ligao entre a Corte Portuguesa e os seus correspondentes no estrangeiro.

    Em Bruxelas, os contactos estabelecidos por Tom Lopes com o jovem Rei Espanhol e os seus mais prximos Conselheiros, nomeadamente o Monsenhor de Chivres, Guilherme de Croy, o Gro Chanceler de Borgonha, Jean Le Sauvage, e em especial um dos Secretrios daquele monarca, o portugus Cristvo Barroso (GIS, 1926), revelar-se-o de uma enorme importncia naquela conjuntura. A confirmar este facto, veja-se a carta de um dos correspondentes de D. Manuel na Flandres, Rui Fernandes de Almada, onde se afirma que o enviado portugus, Tom Lopes, [...] tem grande crdito com estes que governam, ajudou aqui a muitos, grande amigo do Conde Dom Fernando8 e assim de todos [...]. (BARATA, 1971, p. 182-183).

    Num primeiro momento, foi inteno de D. Manuel que o seu enviado Corte de Brabante retornasse o mais depressa possvel a Portugal, depois de prestar as condolncias ao novo rei pela morte do seu av e de saber quando seria sua inteno de vir a Castela tomar posse do seu novo reino9. Ocorreu, porm, que o secretrio do soberano espanhol comunicasse a Tom Lopes que o novo monarca teria tambm muito gosto com os casamentos em perspectiva, notcia esta que o enviado portugus transmitiu imediatamente

    8. Conde Dom Fernando de Andrade, nobre castelhano que o Rei Carlos I de Espanha acolheu muito bem quando da sua visita Bruxelas para lhe prestar vassalagem, sendo ento nomeado Capito Geral de Castela.

    9.Cf. minuta da carta de D. Manuel para Tom Lopes. In: FREIRE, 1920, Doc. LVII, p. 222.

  • Luiz Guilherme G. Machado

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    a D. Manuel, atravs do futuro Correio-Mor Lus Homem, que rapidamente partiu para Portugal com as importantes novidades. (PORTUGAL, Fragmentos, Minutas de Cartas Rgias, Mao 1, n. 88).

    Para uma maior diligncia na sua viagem, Lus Homem ir aproveitar a estrutura montada por Francisco de Taxis, Mestre dos Correios da Corte do Imperador Maximiliano e o primeiro representante de uma famlia que se transformar em sinnimo de correios por toda a Europa (DELPINNE, 1978). Tendo sido encarregue pelo Imperador de criar uma rede de ligao postal dentro das fronteiras do vasto imprio da Casa dos Habsburgos, Francisco de Taxis havia j organizado por volta de 1516 vrias carreiras de postas centralizadas em Bruxelas, donde partiam correios com alguma regularidade para Viena, Roma e Madrid. Essas carreiras consistiam numa srie de cavalarias dispostas ao longo do caminho (postas), onde um Mestre chamado de Posta tinha como obrigao ter sempre pronto um certo nmero de cavalos para serem alugados aos correios ou a viajantes, os quais, por sua vez, eram revezados e substitudos nas postas seguintes. Lus Homem seguir justamente pela carreira de Madrid, tendo percorrido sessenta e oito mudas de postas entre Bruxelas e Burgos, ao custo de um cruzado cada uma. Em Burgos adquiriu um cavalo por quinze cruzados, seguindo ento at Almeirim, onde se encontrava a Corte Portuguesa.

    Lus Homem gastou ao todo no caminho com mais cinco cruzados para a despesa da sua pessoa oitenta e oito cruzados, dos quais uma parte lhe tinha adiantado Tom Lopes em Bruxelas. Esta quantia foi mandada saldar por carta rgia de 11 de Abril de 1516, pela qual D. Manuel ordenou a Silvestre Nunes, ento Feitor na Flandres, que pagasse a ambos o que lhes era devido.10

    Entretanto, Tom Lopes, que adoecera gravemente, ficar [...] aguardando cada hora por Lus Homem [...](BARATA, 1971, p.182-183)11. Embora tentando voltar Flandres o mais rapidamente possvel com a correspondncia real, o futuro Correio-Mor do Reino

    Francisco de Taxis

    Assinatura de Francisco de Taxis

    10. Cf. Torre do Tombo, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 20, Doc. 8.

    11.Cf. Carta de Rui Fernandes ao Rei D. Manuel, de 6 de Maio de 1516. In: BARATA, 1971, p. 182-183.

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    atrasa-se, levando aproximadamente dois meses para chegar a Anturpia, pois [...] veio ter Baiona e esteve a muitos dias aguardando por tempo, e da veio ter a Inglaterra e disse veio por terra [sic] at esta Vila [...]. (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 21, Doc. 82). Na sua chegada encontrou Tom Lopes moribundo, mas ainda em condies de lhe passar uma declarao a 20 de Junho do mesmo ano de 1516, do gasto de mais vinte cruzados que teve na sua viagem, [...] no qual caminho e passagem fez muito mais despesa [...] (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 21, Doc. 82).

    Tom Lopes veio a falecer uma semana depois, a 28 de Junho, dando origem a que no fossem entregues as cartas do Monarca Portugus ao jovem Rei Espanhol e nem aquela para os seus conselheiros, caso que muito desconsolou D. Manuel, pois [...] bem nos provera serem dadas nossas cartas ao menos por no passar tantos dias sem serem l sabidos nossos recados [...] (PORTUGAL, Fragmentos, Minutas de Cartas Rgias, Mao 1, Doc. 88). Esta deciso fora tomada por Loureno Lopes, j nosso conhecido, sobrinho do falecido Feitor da Casa da ndia e antigo comandante da Nau Flamenga da Armada de Gonalo de Sequeira a mesma em que Lus Homem servira como Condestvel de Bombardeiro que julgou melhor recambiar a correspondncia para Portugal, tendo em vista a delicadeza da situao. D. Manuel, compreendendo a atitude de Loureno Lopes, o fez suceder ao seu falecido tio nessa misso tornando a enviar Lus Homem Flandres com as mesmas instrues e cartas que enviara a Tom Lopes, assim como ao Rei de Castela e a seus Conselheiros, em 20 de Julho do mesmo ano de 1516 (PORTUGAL, Fragmentos, Minutas de Cartas Rgias, Mao 1, Doc. 88). Nelas, D. Manuel respondia ao Secretrio do Rei Espanhol, o portugus Cristvo Barroso, que sobre os casamentos projetados entre os prncipes de ambas as coroas,

    [...] por este negcio ser da qualidade que vedes e de tanta importncia, que convm ser praticado e falado por pessoa de que tanta confiana se tenha como o caso o requer [...] E a

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    pessoa que assim havemos de enviar, temos j ordenada e se despacha e faz prestes, para logo aps este se partir. (PORTUGAL, Fragmentos, Minutas de Cartas Rgias, Mao 1, Doc. 88).

    Tratava-se de Pedro Correia, do Conselho do Rei, Fidalgo da Casa Real e Senhor de Belas, descendente de antigos servidores da famlia de D. Manuel enquanto Duques de Beja e amigo pessoal de Afonso de Albuquerque (FREIRE, 1920). Para alm de Pedro Correia, como Embaixador, faziam parte da comitiva Joo Brando (que fora e tornaria a ser Feitor em Anturpia) como Escrivo da Embaixada, bem como Lus Homem, que iria servir como Correio. Recomendou D. Manuel a Loureno Lopes, que auxiliasse o embaixador no que fosse necessrio.12

    Tendo partido a Embaixada de Lisboa somente a 15 de Outubro de 1516, ocorreu neste meio tempo um facto que julgamos determinante no desenrolar desta misso diplomtica. Aproximadamente um ms antes da partida, a 8 de Setembro, nascera o Infante D. Antnio, dcimo filho do Rei D. Manuel com a sua segunda mulher, a Rainha D. Maria, que tendo sido baptizado dois dias depois e sem cerimnias [...] por o Infante estar doentinho [...], veio a falecer logo a 1 de Novembro seguinte.13 Damio de Gis relata na sua Crnica de D. Manuel, que

    [...] a Rainha Dona Maria ficou to mau tratada do parto do Infante Dom Antnio, que at hora da morte nunca se mais achou bem porque se lhe gerou uma apostema dentro nas entranhas, sem em toda a medicina haver cousa que lhe pudesse dar sade, pelo que procedendo esta m disposio com que se lhe acrescentavam de dia em dia gravssimas dores, faleceu em Lisboa nos Paos da Ribeira aos sete dias do ms de Maro do ano do Senhor de mil quinhentos e dezassete, em idade de trinta e cinco anos. (GIS, 1926, p.49)

    Assim sendo, quando da partida da Embaixada de Pedro Correia, j se perspectivava na Corte a possibilidade de uma nova viuvez de D. Manuel, facto este que veio a ocorrer seis meses depois, ainda durante a permanncia da embaixada na Flandres, que s viria a

    12. Cf. Doc. LXIV. In: FREIRE, 1920, p. 227.

    13. Cf. Relaes de Pero de Alcova Carneiro, Conde da Idanha, do Tempo que Ele e seu Pai, Antnio Carneiro, Serviram de Secretrios (1515 a 1568), Ed. de Ernesto de Campos de Andrada, Lisboa, 1937, p. 195.

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    concluir-se em 15 de Abril daquele ano de 1517. (FREIRE, 1920)

    Pedro Correia e a sua comitiva tinham seguido por terra at Paris, onde se avistaram com o Rei de Frana, Francisco I, que recentemente assinara em Noyon, a 13 de Agosto de 1516, o almejado tratado de paz com o novo Monarca Espanhol, Carlos I. Em seguida continuaram a viagem at ao seu destino, a Corte de Bruxelas, onde finalmente chegaram a 8 de Janeiro de 1517. (FREIRE, 1920).14 L, o Embaixador Portugus escreveu a 13 de Janeiro a sua primeira carta relatando as conversaes iniciais que tivera com algumas personagens que se encontravam naquela Corte e na qual constava que em relao aos casamentos em perspectiva, [...] todos ho por certo que eu no venho outra cousa seno a isso e esto mui ledos com a minha vinda [...]. (FREIRE, 1920, p. 225). Cristvo Barroso (Secretrio do Rei Espanhol e principal interlocutor do assunto), acrescentava ainda [...] que se eu nisso no falar, que mo no ho de cometer nem tocar, pela vergonha que c entre eles as mulheres cometerem os homens [...].(FREIRE, 1920, p. 225).

    Na realidade, tal observao significava muito mais que apenas um escrpulo protocolar ou social. A posio dos negociadores flamengos era no sentido de procurarem uma forma vantajosa de iniciarem as difceis discusses sobre os dotes dos casamentos e de valorizarem ao mximo a aliana que surgiria entre as duas Coroas com aqueles enlaces. Por outro lado, essa postura traduzia tambm uma atitude de afirmao poltica por parte da Casa de Habsburgo face sua crescente posio na Europa, que em breve se expandiria para o resto do mundo. No obstante, as instrues de Pedro Correia eram no sentido de esperar pela oferta espontnea da mo de Madama Leonor, tendo em vista os contactos j efetuados com o falecido Tom Lopes e do longo tempo em que se vinha trabalhando nesse assunto. Alm de que, assinalava tambm o embaixador na sua carta, a concretizao desse casamento passaria por uma elevada despesa pecuniria com os intermedirios do negcio, pois [...] este uso de se fazerem as cousas por dinheiro, anda c mui praticado [...] (GIS, 1926, Parte VI, p. 73). Pedro Correia tivera informaes de pessoa muito prxima ao Imperador Maximiliano, que em relao aos casamentos ele [...] desejava muito de se

    Rei de Frana Francisco I

    14. Cf. Doc. LXII. In: FREIRE, 1920, p. 225.

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    fazerem e que seria bem Vossa Alteza dar XXX mil cruzados a Chivres por consentir nisso [....](FREIRE, 1920, Doc. LXII, p. 225-226).

    Noutra carta de 5 de Fevereiro de 1517, o Embaixador Portugus, relatando a sua primeira audincia com o jovem Soberano Espanhol que ainda no completara 17 anos de idade, observava que [...] os negcios de c todos so na mo de Chivres e do Chanceler [...], (FREIRE, 1920, Doc. LXII, p. VII) sendo somente atravs deles que se resolveria algum assunto. Dessa visita, comentava ainda o Embaixador que

    [...] El-Rei tem mui boa disposio de corpo e gentil homem de rosto, pero na boca tem alguma desgraa por no chegar bem um beio ao outro; fala mui pouco e a meu parecer no tem a lngua bem despejada; no entende em negcios seno quando alguma hora o Chivres chama e faz estar em algum; sua ocupao principal brincar com flamengos sem querer que castelhanos nisso entrem, antes me dizem que lhe aborrecem; no fala nada espanhol nem creio que o entende, seno se for algumas poucas palavras. (FREIRE, 1920, Doc. LXV, pp. 229)

    Em relao almejada noiva, descreve ainda que

    Madama Leonor no mui formosa nem lhe podem chamar feia, tem boa graa e bom despejo, e parece-me de condio branda e avisada; no tem bons dentes e pequena de corpo, e pareceu ainda mais porque c no trazem chapins que passem da altura de dois dedos; grande danarina e folga de o fazer. (FREIRE, 1920, Doc. LXV, pp. 229)

    A estas consideraes, acrescentava Pedro Correia enfaticamente que

    [...] toda esta Corte h por cousa mui certa que eu no venho a al seno a seu casamento e falam nisso publicamente, tendo sabido que ela e todos os de sua casa o desejam quanto razo, e parece-me que ficariam mui desconsolados se soubessem como a isso no so vindos. (FREIRE, 1920, Doc. LXV, pp. 229)

    Rei de Espanha Carlos I

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    Logo em seguida, a 8 de Fevereiro, o Embaixador teve a sua primeira entrevista com o Imperador Maximiliano na Cidade de Anturpia, na qual o Imperador nunca se referiu ao assunto dos casamentos em causa. Assim, depois destes primeiros contactos e no havendo da parte daquela corte nenhum sinal claro sobre o incio das negociaes, determinou Pedro Correia [...] no deter mais Lus Homem [...]. (FREIRE, 1920, Doc. LXVIII, p. 233). Para isso tinha j ordenado ao Feitor de Flandres, Silvestre Nunes, que lhe entregasse cem cruzados [...] como lhe j outras vezes foram dados para fazer o dito caminho [...] (FREIRE, 1920, Doc. LXIII, p. 227). Partindo para Portugal no dia 9 de Fevereiro de 1517, o futuro Correio-Mor chegar a Lisboa por volta do dia 26 de Fevereiro.

    D. Manuel, avaliando a reaco do Rei de Castela, dos seus Conselheiros e do Imperador Embaixada que enviara, resolveu responder a Pedro Correia que [...] vendo como por ele ou da sua parte vos no foi falado no negcio dos casamentos nem tambm o Imperador, pois a se acertaria [...]. (FREIRE, 1920, Doc. LXXII, p. 236), ordenava [...] que vs no faais l mais deteno nem falais em cousa alguma tocante aos ditos casamentos [...]. (FREIRE, 1920, Doc. LXXII, p. 236). E que no caso de haver por parte de algum dos conselheiros rgios alguma insistncia em iniciar as negociaes depois dessa notcia, que ento [...]trabalhareis o que puderdes de saber de vosso, pela melhor maneira que vos parecer, o que se far no dote. (FREIRE, 1920, Doc. LXXII, p. 236, grifo nosso), acrescentando [...] que pois tanto se afirma a vinda Del-Rei este Vero Castela, ele devia folgar de trazer consigo Madama Leonor, sua irm, porque ordenando Nosso Senhor neste casamento se entender, estivesse c mais perto. (FREIRE, 1920, Doc. LXXII, p. 236).

    Munido dessas instrues e de outras cartas com que o Rei D. Manuel mandava o seu Feitor em Anturpia recompensar pecuniariamente e atravs de promoes em cargos, vrias personagens que auxiliaram aquela embaixada, retornou Lus Homem Flandres em 3 de Maro de 1517. Tendo chegado Bruxelas a 17 do mesmo ms (FREIRE, 1920),

    Madame Leonor.

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    levou ao todo somente 37 dias na sua misso de levar as correspondncias e voltar com as respostas, como vemos pela carta do Escrivo da Embaixada, Joo Brando, de 30 de Maro de 1517:

    Senhor, por um correio que daqui partiu sete ou oito dias h, escrevi a Vossa Alteza tudo o que at aqui era passado e entre outras algumas cousas lhe escrevi como Lus Homem chegara a esta Vila de Bruxelas a 17 dias deste ms de Maro, s 8 horas do dia; e por conta achramos que no pusera no caminho que pouco mais de catorze dias e meio, se partiu a dois dias de Maro como me o secretrio escreveu, ainda que ele diz que ele partira a 3 do dito ms. Como quer que seja, fez mui grande diligncia segundo c dizem todos os que sabem de postas e isto pelo mal aviamento que tem em Portugal, porque doutra feio, no seria muito ir em dez dias se tivesse o aviamento que tem por Frana, porque em cinco dias vai uma posta daqui a Burgos que so trezentas lguas. E por ele recebemos todas as cartas que nos por ele mandou Vossa Alteza, as quais mui bem vimos e entendemos e em todo, Senhor, se far como manda e ordena. (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 21, Doc. 72)

    Apesar dessa eficincia, Lus Homem ir reclamar cerca de um ano depois, que Pedro Correia tinha mandado descontar do seu salrio [...] certo tempo que gastei em vir c a Portugal com cartas a Sua Alteza, o qual tempo ainda me devem [...]. (FERREIRA, 2008). A verdade, porm, que ao ter demonstrado mais uma vez a sua vocao para o servio postal, vir em breve a ser recompensado pela sua dedicao e fidelidade coroa.

    Entretanto, as novas instrues de D. Manuel para que regressasse a Portugal a embaixada que enviara, causaram uma surpresa geral, a comear pelo prprio Embaixador Pedro Correia, que escreveu: [...] ainda que sempre me pareceu que Vossa Alteza no voava de boa vontade esta perdiz, algum tanto estava descuidado de me mandar assim ir sem passar mais avante no negcio [...]. (PORTUGAL, Cartas Missivas, Mao 2, Doc. 155), acrescentando que quando falou da sua ida ao poderoso Monsenhor de Chivres e ao Chanceler Le Sauvage, [...] ficaram to enleados que no puderam dissimul-lo [...]. (PORTUGAL, Cartas Missivas, Mao 2, Doc. 155). Rui Fernandes de Almada, que acabava

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    de ser nomeado Escrivo da Feitoria de Flandres, escreveu tambm: Aqui soube do descontentamento que estes homens todos tm por Vossa Alteza mandar ir o embaixador, porque certo eles sempre cuidaram que ele vinha ao que todo mundo presumia [...] .(FREIRE, 1920, Doc. LXXXIII, p. 247) e que somente [...] eles aguardavam a vinda de Lus Homem para que se abrisse caminho [...] (FREIRE, 1920, Doc. LXXXIII, p. 247).

    Esta notcia foi provavelmente bem recebida por Francisco I de Frana, conforme a opinio de Pedro Correia, que observara nas conversaes que tivera naquela Corte o desagrado com os casamentos planeados, pois em Frana estariam mais interessados em enfraquecer as novas alianas do Rei de Espanha do que propriamente incentiv-las (FREIRE, 1920, Doc. LXXVIII, p. 241-242). Contudo, por uma ironia do destino, D. Leonor, que viria a ser Rainha de Portugal, atravs do terceiro casamento de D. Manuel, foi tambm Rainha de Frana. Aps enviuvar do Rei Portugus, viria a contrair novo casamento em 1530, justamente com Francisco I. Seria este enlace uma das consequncias do Tratado de Paz das Damas, assinado em Cambraia entre os eternos rivais: Carlos V e aquele Soberano Francs.

    Depois de despedir-se dos Monarcas Habsburgos e seguindo as instrues que recebera, retornou Pedro Correia com a sua comitiva a Portugal, passando primeiramente por Inglaterra, para cumprimentar Henrique VIII em nome de D. Manuel e em seguida novamente por Frana, para mais uma vez se avistar com Francisco I (FREIRE, 1920; Torre do Tombo, Cartas Missivas, Mao 2, Doc. 155). Terminava assim a to pouca conhecida embaixada portuguesa aos principais soberanos europeus daquele tempo (FREIRE, 1944). Para Lus Homem, essa misso diplomtica serviu para demonstrar mais uma vez as suas capacidades como mensageiro real, alm da oportunidade de tomar conhecimento mais preciso do servio postal montado pela Famlia Taxis, que lhe viria a servir de exemplo quando da tentativa de montar uma estrutura semelhante em Portugal.

    Rei de Inglaterra Henrique VIII

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    Entretanto, o recado de D. Manuel ao seu sobrinho Carlos para que levasse consigo a sua irm Leonor a Castela, foi prontamente atendido. A notcia do falecimento da Rainha Portuguesa D. Maria e a surpresa causada pelo retorno inesperado da embaixada de Pedro Correia, teriam contribudo para que a Corte Castelhana no perdesse mais uma oportunidade de aprofundar a sua aliana com o seu poderoso vizinho e assim retomar a estratgia de construo de uma futura Unio Ibrica. Por seu lado, D. Manuel tambm aspirava ao mesmo fim, alm de desejar contribuir para uma paz duradoura na pennsula e poder continuar com a sua expanso ultramarina, que nessa poca se encontrava no auge.

    Quando o jovem Rei Espanhol prestou juramento s Cortes reunidas em Valhadolide, em Fevereiro de 1518, D. Manuel enviou como Embaixador quela Corte o seu Camareiro-Mor, lvaro da Costa, para lhe prestar homenagem e negociar o casamento, que ao contrrio do que se esperava, j no seria o do seu filho, mas sim o dele prprio. Esse desfecho foi to surpreendente conforme nos relata Frei Lus de Sousa nos seus Anais Del-Rei Dom Joo III , que sobre a reviravolta e final desenlace destas negociaes:

    [...] sendo o mandado pblico dar-lhe parabns da vinda, foi o secreto que trabalhasse para si, matrimnio com a Infanta D. Leonor sua irm; e foram os poderes que lhe deu to largos e sem limite, que primeiro se soube em Portugal estar concludo, que comeado. (SOUSA, 1844, p. 16)

    No entanto e apesar de ter prevalecido essa verso na historiografia portuguesa sobre o inesperado desfecho desse casamento, j que originalmente o enlace seria com o sucessor de D. Manuel, o Prncipe D. Joo, a verdade que a proposta de casamento com o prprio Rei Portugus foi originalmente sugerida pela Corte Espanhola. De acordo com as instrues recebidas por D. Miguel da Silva Embaixador Portugus em Roma e encarregado de obter junto ao Papa Leo X, a Bula de Dispensao para aquele casamento, exigida por causa da consanguinidade dos noivos , D. Manuel afirmava claramente que a iniciativa da oferta partira de Castela. Atravs da carta rgia de 29 de Maio de 1518, informava

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    o Rei Portugus ao futuro Bispo de Viseu, D. Miguel da Silva, que lvaro da Costa, ao visitar o Rei Espanhol, [...] se ofereceu lhe ser l falado em casamento da Infanta Dona Leonor, sua irm, connosco. (SILVA, 1865, p. 10, grifo nosso) Argumentando o monarca, que por nos parecer pelos impedimentos que havia e at agora h nos casamentos de meus filhos [...], quisemos nisso entender e aceitar o quanto da parte de l nos foi falado e requerido. (SILVA, 1865, p. 10). Acrescentando ainda, que comunicasse ao Papa que [...] folgamos de entender neste casamento para que fomos requerido, quando para outras cousas se nos apresentaram grandes impedimentos (SILVA, 1865, p. 10). Seria esta uma soluo de consenso para ambas as Coroas, apesar do mal estar gerado nalguns setores mais prximos do Prncipe D. Joo, postura essa bem exemplificada pelo caso de D. Lus da Silveira seu Conselheiro e futuro Conde de Sortelha que acabou sendo desterrado da Corte por D. Manuel, por haver patenteado o seu desagrado (SOUSA, 1844).

    No ficariam por a os entendimentos sobre esse casamento. O Embaixador lvaro da Costa confirmara a D. Manuel a ideia j ventilada por Pedro Correia, de que seria necessrio fazer uma considervel despesa com os Conselheiros do Rei Espanhol para a viabilizao daquele enlace. Assim sendo, D. Manuel instruiu o seu Embaixador em Castela por carta rgia de 28 de Abril do mesmo ano de 1518, que

    [...] posto que em nossas cousas no tenhamos este costume como sabeis, pero pelo que nisso vos temos mandado que fizsseis e tendes feito e falado com o Chanceler, e pelo ponto em que este negcio j est e porque mais prestes se conclua, ns havemos por bem de a Chivres e ao Chanceler, fazermos merc de vinte mil cruzados. (REGO, 1975, p. 205-206)

    Entretanto, haveria ainda mais uma outra despesa significativa, sendo agora para com o clebre Papa Leo X, que naquele tempo se achava empenhado em obter maiores recursos para poder concluir a Baslica de So Pedro e tambm decor-la com a arte mais preciosa. Teria sido esta, alis, uma das razes da reaco de Martim Lutero contra a venda de

    Papa Leo X.

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    novas indulgncias para aquele fim. Porm, a ela no pde escapar D. Manuel, ao requerer atravs do seu Embaixador em Roma a tal Bula de Dispensao to necessria legitimidade do seu casamento.

    A instruo do Rei Portugus fora para que D. Miguel da Silva gastasse [...] at oito ou dez mil cruzados se tanto se houver mister despender nisso [...], contudo [...] vs, como sempre nos servis tanto a nosso prazer, vede se isto se pode fazer grtis ou ao menos com pouca cousa. (SILVA, 1865, p. 11). Sobre a entrevista para o pedido daquela Bula pelo futuro Bispo de Viseu ao Papa Leo X, o Embaixador Portugus narrava que

    Sua Santidade no se espantou nada porque havia quatro ou cinco dias que o Nncio lhe escrevera fumo disto, mas mostrou tanto prazer que cuidei certo que me havia de despachar tornando-me em cima dinheiro. (SILVA, 1865, p. 16).

    De facto, D. Miguel relatava que o Papa [...] respondeu-me que era contente e que a dispensao se fizesse, mas que aparelhasse muitos mil ducados [...](SILVA, 1865, p. 16), ao que respondera o embaixador: [...] que cria que Sua Santidade zombava e me queria fazer estimar mais a graa, pois se me em falar de siso e pedia quinze mil ducados, ento de siso mais pedia que me fazia medo. (SILVA, 1865, p. 16). Depois de muita negociao,

    [...] por derradeiro desceu a quatro mil, jurando-me de verdade que por menos um real a no havia de haver e dizendo-me que lhe mostrasse a carta de Vossa Alteza e que me prometia de me quitar dois mil ducados da comisso que por ela me dava, (SILVA, 1865, p. 17) o qual o embaixador ponderou que no lhe podendo mostrar a carta que me tanto mais larga comisso dava [...] no me pareceu desservio de Vossa Alteza aceit-la a Bula e acerca da paga disse que eu no tinha mais de trs mil; que aprouvesse a Sua Santidade os mil descontar da dvida que me devia. Foi disso contente e assim houve a Bula (SILVA, 1865, p. 17).

    Casamento de D. Manuel com D. Leonor

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    Informava ainda D. Miguel, que a remeteria Corte de Castela por um correio expresso, conforme as ordens recebidas e que [...] se for com tamanha presteza como aqui foi despachada e mandada, bem ir, que nunca se viu em um mesmo dia haver o correio e despachar Bula, e despachar outro [...]" correio. (SILVA, 1865, p. 17)

    Finalmente e depois de tantas peripcias, consumou-se o casamento em Novembro daquele ano de 1518. Porm, foram prematuramente logrados os intentos iniciais do Rei Portugus devido ao seu falecimento trs anos depois, a 13 de Dezembro de 1521. D. Manuel chegou ainda a ter uma filha desse casamento, a cultssima Infanta D. Maria, personagem importante do Renascimento Portugus do sc. XVI e possvel musa inspiradora de Cames (RODRIGUES, 1910), falecida em 1577.

    No entanto, cerca de um ano antes, em vora, por carta rgia datada de 6 de Novembro de 1520, ordenava D. Manuel:

    [...] que havendo ns respeito aos servios que temos recebidos e ao diante esperamos receber de Lus Homem, Cavaleiro de nossa Casa, e por ser pessoa que no Ofcio de Correio-Mor de nossos Reinos nos saber bem servir e assim a todos mercadores e pessoas que quiserem enviar cartas de umas partes para outras, e com todo recado, fieldade e segredo que para tal caso cumpre, e querendo-lhe fazer graa e merc: temos por bem e o damos novamente, daqui em diante, por Correio-Mor em nossos Reinos. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37, fl. 98)

    Culminava dessa forma o processo iniciado anos antes, quando Lus Homem servira como soldado no Oriente e depois como mensageiro real pela Europa afora, vendo agora os seus servios recompensados atravs de um novo estatuto social. Passava no s a ter um ttulo de nobreza, como Cavaleiro da Casa Real, mas recebia ainda um ofcio pblico indito em Portugal e claramente inspirado no modelo da Famlia Taxis. Conforme

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    afirmava D. Manuel na mesma carta rgia: [...] queremos e nos praz que ele tenha com o dito ofcio, todos os privilgios, graas e liberdades que os Correios-Mores tem nos outros reinos onde os h e soi de haver. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37). Para uma melhor compreenso deste importante diploma, especificaremos a seguir os seus principais dispositivos.

    Quanto s suas obrigaes, Lus Homem teria que

    [...] dar continuadamente em nossa corte e assim ter por si pessoa que por ele esteja na nossa Cidade de Lisboa, e de ter sempre todos os correios que forem necessrios para irem a quaisquer partes que seja, assim com cartas nossas, como de quaisquer mercadores e pessoas que lhas quiserem dar. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37)

    Entretanto e como remunerao desse trabalho, [...] levar por isso o preo que se com cada pessoa concertar segundo a disposio do tempo e os lugares para onde as tais cartas houverem de ir e o tempo em que quiserem que lhas levem.(PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37).

    Para garantia do monoplio postal, especificava que

    [...] nenhum mercador nem pessoa outra, no poder fazer correio que leve cartas para nenhuma parte de que se haja de levar porte, seno por mo do dito Lus Homem, salvo se quiserem mandar suas cartas por outras pessoas que no sejam correios, pod-lo-o fazer (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37).

    Ou seja, no se impedia a troca de correspondncia em geral, somente se salvaguardava o ofcio especfico de mensageiros correios, franqueando, por assim dizer, os moos de recados. Alertava-se, porm, [...] sob pena de qualquer que os ditos correios fizer, pagar cem cruzados por cada vez, a metade para a nossa cmara e a outra metade para o dito

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    Lus Homem. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37).

    Como proventos do seu ofcio, Lus Homem

    [...] levar aos correios que assim fizer, o dzimo do que houverem de portes das ditas cartas, como se costuma levar nas outras partes, e ser obrigado de os encaminhar e fazer agasalhar, e lhe arrecadar e fazer bons seus portes, de maneira que no possam perder nenhuma cousa. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37)

    Por outro lado, como acima foi referido, [...] este dzimo levar aos correios que ele tiver somente, e os mercadores podero dar suas cartas e envi-las por quaisquer pessoas que quiserem, no sendo os prprios correios que o dito Lus Homem tiver. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37).

    E para o bom funcionamento das carreiras de postas que seriam criadas, ordenava ainda El-Rei D. Manuel:

    [...] e assim nos praz para melhor aviamento dos ditos correios, que nos lugares de nossos reinos onde parecer ao dito Lus Homem que so necessrios cavalos de postas, haja em cada lugar at dois homens obrigados a terem os ditos cavalos e de os darem aos ditos correios por seu dinheiro; e estes queremos que sejam escusos de todos os encargos do concelho, como se tivessem disso privilgios por ns assinados e passados pela nossa chancelaria. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37)

    Especificando ainda, que [...] estes homens privilegiados, sero nos lugares que ns, por nosso regimento, ordenarmos. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, Livro 37)

    Com a sucesso de D. Joo III ao trono portugus, aps a morte do Rei D. Manuel em 1521, Lus Homem foi confirmado no ofcio pela carta rgia de 2 de Agosto de 1525. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Joo III, Livro 8) Nesse novo diploma especificou-se melhor que:

  • Luiz Guilherme G. Machado

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    [...] nenhum correio que de fora vier de qualquer partes que sejam, no se apear nem dar nenhumas cartas a nenhuma pessoa, sem primeiro ir buscar o dito Correio-Mor ou a pessoa que por ele servir e a ela dar as ditas cartas para ela as dar a quem vo, ora sejam para mim ou para qualquer outra pessoa assim em minha corte, como na cidade de Lisboa, dos quais correios se forem de dentro de Espanha, levar de apresentao de cada um, dois reais de prata ou trs vintns por eles, e se for de fora de Espanha, lhe pagaro um cruzado cada um. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Joo III, Livro 8, fl. 94).

    Numa perspectiva histrica-institucional, em que consistiria ento, o ofcio de Correio-Mor? Antes de mais nada, num ofcio de natureza pblica e burocrtica. Ou seja, atravs da criao e provimento dos mais diversos e variados ofcios pblicos por parte dos soberanos portugueses durante o Antigo Regime (entre os sculos XV e XVIII), procurava a coroa, ento em franco processo de centralizao poltica, delegar poderes e funes em reas em que o poder real ainda no poderia se organizar e expandir de maneira satisfatria, por no ter ainda uma estrutura funcional suficientemente ampla. Surgia dessa forma, a gnese da moderna burocracia. Os ofcios pblicos, ento criados, tinham um carcter de patrimnio em que a pessoa que o servia possua a sua funo, caracterizada [...] como um conjunto de direitos e deveres exercitveis no interesse pblico (HESPANHA, 1982, p. 394). A ideia do monoplio postal na mo de um nico indivduo, vinha suprir a necessidade embrionria de uma estrutura de correios organizada para servir o pblico em geral e aos mercadores em particular, abrindo caminho para o seu desenvolvimento. Por outro lado, constitua uma soluo racional por parte do Estado, tendo em vista a impossibilidade da coroa em arcar com o nus da criao de uma infra-estrutura postal pblica permanente, permitindo dessa forma o recurso iniciativa de particulares para superar as lacunas da sua administrao. O provimento dos ofcios pblicos corresponderia tambm, ao reconhecimento rgio da dedicao e fidelidade dos seus vassalos mais prestimosos e serviria como compensao de servios relevantes prestados coroa.

    Correio a cavalo sculo XVI (Fonte: Fundao Portuguesa das Comunicaes)

  • Lus Homem e a Criao do Ofcio deCorreio-Mor do Reino em 1520

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    No entanto, h que chamar a ateno para um outro facto da maior importncia. A criao do ofcio de Correio-Mor no surgia de uma necessidade premente de melhoramento do servio de comunicaes da coroa, conforme se poderia presumir dentre as obrigaes de Lus Homem e que consistia em [...] ter sempre todos os correios que forem necessrios para irem a quaisquer partes que seja, assim com cartas nossas, como de quaisquer mercadores e pessoas que lhas quiserem dar. (PORTUGAL, Chancelaria de D. Manuel I, livro 37, fl. 37v, grifo nosso) De facto, a coroa j possua naquela poca um servio para o transporte das suas correspondncias praticado pelos Moos de Estribeira, cuja responsabilidade estava a cargo de um alto funcionrio da Casa Real, o Estribeiro-Mor, como j foi dito no incio deste artigo. Nesse tempo, os moos de estribeira supriam praticamente toda a necessidade de correios da coroa, sendo Lus Homem uma excepo por no ter pertencido ao seu nmero, apesar de poder ter sido filho e irmo de um Estribeiro-Mor. J Lus Afonso, seu sucessor no Ofcio de Correio-Mor do Reino aps o seu falecimento em 1532, foi escolhido dentre os moos de estribeira que serviam a casa real e cuja funo exercia pelo menos desde 1514. (PORTUGAL, Corpo Cronolgico, Parte 1, Mao 16, Doc. 25). Assim, em primeiro lugar, mais do que suprir uma necessidade do Estado, a criao do ofcio de Correio-Mor veio preencher uma lacuna na organizao do servio postal regular para um pblico mais diversificado, vindo posteriormente complementar e melhorar as necessidades de comunicao da prpria coroa portuguesa.

    Entrega de Carta.

  • Luiz Guilherme G. Machado

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  • Lus Homem e a Criao do Ofcio deCorreio-Mor do Reino em 1520

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    Luiz Guilherme G. Machado Licenciado em Museologia pela Universidade do Rio de Janeiro e Ps-Graduado em Histria pela Universidade de Lisboa.

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus: uma abordagem preliminar do caso do correio-mor e seus cargos auxiliares (sculos XVI-XVIII)

    Romulo Valle Salvino O artigo busca estudar o caso do correio-mor em Portugal e na Amrica portuguesa a partir das descobertas de recentes pesquisas sobre os mecanismos de provimento dos ofcios no Antigo Regime, tendo como referencial os conceitos de venalidade e patrimonializao.

    Keywords: Portuguese monarchy. Official appointments; Post Master.

    Palavras-chave: Correio-Mor. Bandeirantes. Correio Martimo.

    Resumo/Abstract

    This article approaches the Correio-mor [Post Master] case in Portugal and the Portuguese America, based on findings of recent researches on the appointment mechanisms of the monarchic regime. The references of the study are the concepts of venality and patrimonialism.

    Patrimonialization and venality in the official appointments of the Portuguese empire: a preliminary approach to the Correio-mor [Post Master] case and his assistants (16th to 18th centuries)

  • Romulo Valle Salvino

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    Introduo

    No objetivo deste artigo aprofundar-se nos mecanismos de provimento dos cargos e ofcios durante o Antigo Regime portugus - sistema complexo em que se cruzavam fatores diversos, como a economia das mercs, o reconhecimento de mritos pessoais, as distines tpicas de uma sociedade corporativa, as influncias das redes clientelares e interesses os mais variados. No se procura aqui nem sequer aprofundar a abordagem dessas figuras chamadas por certa historiografia de patrimonializao e venalidade, pois so muitos os desdobramentos possveis de um tema cujo estudo requer o esmiuamento de vrios casos particulares e um grande apuro metodolgico. O que se pretende com este texto to somente apropriar-se de alguns elementos de pesquisas publicadas at o momento para aproximar-se de um caso especfico, quase sempre colocado margem: o dos ofcios ligados ao correio-mor.

    Tal escolha fruto da percepo de que tais mecanismos a patrimonializao e a venalidade podem fornecer pistas para a melhor compreenso de determinados desdobramentos histricos, referentes ao malogro da implantao do correio-mor nas conquistas americanas. Algumas possveis motivaes de certos agentes envolvidos nesses episdios, ainda obscuros, poderiam talvez ser parcialmente explicadas luz desses mecanismos. bvio que, no caso, tais hipteses no almejam fornecer uma explicao exclusiva e nem mesmo a mais importante; todavia, dentre outros fatores, podem contribuir para uma compreenso mais matizada de alguns eventos, razo que parece suficiente para a sua abordagem.

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    Pensar a respeito da patrimonializao dos cargos de correios pode permitir, por exemplo, uma viso mais clara dos possveis motivos de a coroa ter postergado por dcadas a reapropriao do servio postal, apesar de essa retomada j ter sido sugerida pelo menos desde o incio do sculo XVIII. Pode contribuir tambm na busca de uma explicao plausvel para as barreiras colocadas a uma possvel entrada do correio-mor na Amrica. As possveis ocorrncias de venalidade no preenchimento de posies auxiliares do servio postal, por outro lado, talvez possam lanar alguma luz sobre os motivos da omisso do titular do maior cargo postal do reino quando dos embates sobre efetivao de seus assistentes nas conquistas americanas.

    Contudo, alm desses motivos, que so os que mais me interessam para um trabalho especfico sobre as tentativas de implantao do correio oficial na Amrica Portuguesa, as pginas que se seguem talvez possam oferecer uma pequena contribuio - mesmo que esse no seja o seu intuito maior - para que se conheam algumas das variveis envolvidas no provimento dos ofcios no Antigo Regime, na medida em que a histria dos cargos postais, por um lado, alinha-se com padres ento vigentes e, de outro, parece afront-los, dando pistas sobre os seus limites e alternativas.

    Patrimnio, patrimonializao

    Inicialmente, importante acentuar que, como lembra Stumpf (2014, p. 614) o termo patrimonializao, corrente em certos estudos sobre o provimento dos cargos e ofcios no Antigo Regime, no era usado na Idade Moderna. O substantivo em questo, ou o adjetivo patrimonializado, dele derivado, remetem a um conceito ou categoria atualmente

    Folha de rosto do Dicionrio Bluteau. (1728).

  • Romulo Valle Salvino

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    usado para tentar compreender um fenmeno que naquela poca ainda no tinha nome, apesar de corresponder a uma dada realidade social e cultural, talvez por parecer intrnseco, quase natural ao exerccio dos cargos1.

    Roberta Stumpf (2014, p. 614) aponta, basicamente, duas modalidades de preenchimento dos ofcios no regime luso:

    [...] a concesso precria do ofcio, em que se concedia temporariamente o exerccio ou a funo (por vezes denominada em serventia) e outra, comumente referida como em propriedade, cuja concesso era vitalcia e tendencialmente hereditria [...]

    Tendencialmente hereditria porque apesar de essa caracterstica no derivar de um dispositivo formalmente expresso encontrava respaldo nos costumes, vale dizer no direito consuetudinrio. Ainda de acordo com Stumpf, na Espanha era praticada a nomeao em juro e herdade, que dava aos cargos carter perptuo e transmissvel por herana de forma automtica, enquanto [...] na monarquia portuguesa somente alguns cargos mais elevados eram concedidos dessa forma, vale dizer, transmissveis aos filhos apenas com a confirmao rgia e, mesmo assim, com muita raridade. (STUMPF, 2014, p.614). A concesso em propriedade, no caso portugus, apesar de seu carter vitalcio, teria, assim, segundo a autora, uma hereditariedade apenas semiautomtica, por necessitar sempre do aval rgio, seja nos casos em que o ato de provimento inicial inclua a possibilidade de transmisso para os descendentes, seja quando isso se dava apenas em ateno aos costumes.

    Se na poca no se falava em patrimonializao, o Dicionrio Bluteau (1746) registra a palavra patrimnio: [...] em rigor de direito, so os bens deyxados dos pays, & os que succeviamente se herdo na mesma famlia. Tome-se tambm esta palavra por bens de qualquer natureza, & por cousas que se tem justamente adquirido [...] (grife-se).

    1, Os termos patrimonializao ou patrimonializado aparecem, por exemplo, nos trabalhos de Monteiro (2012), Stumpf (2012a) e Miranda (2012), dentre outros; De acordo com Stumpf (2014, p.614): O termo patrimonializao no era utilizado poca. No entanto, pode-se dizer que uma parte dos atores de ento tinha uma noo desta realidade, associando a propriedade de ofcios sua transmisso hereditria.

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    O patrimnio no , ento, apesar do pater que raiz da palavra, apenas aquilo que se recebe ou passa em herana. Bluteau, citando Ccero, faz questo de enfatizar isso: Patrimnio differe de herana. O patrimnio , nesse sentido, a propriedade justamente adquirida - seja por transmisso hereditria, conquista, compra, doao ou merc.

    preciso no esquecer, assim, que o sentido, ou pelo menos os atributos legais, de uma propriedade na poca, no eram exatamente os mesmos de hoje, e que se um patrimnio no era automaticamente hereditrio, dovel ou vendvel, havia uma expectativa social de que fosse passado de pai para filho.

    Como lembra Stumpf (2014, p. 624):

    [...] Ainda que no houvesse consenso sobre a matria, a verdade que os ofcios concedidos em propriedade no aparecem na documentao como se tratassem de um bem particular. No constam, por exemplo, nos inventrios [...].

    Pelo menos em Portugal, tratava-se, portanto, de uma propriedade formalmente restrita ao sdito a quem fosse concedida, e que, como j mencionado, dependia, a princpio, da confirmao rgia para que fosse transmitida em herana.

    justamente o trecho de um inventrio, citado pela mesma autora, que pode esclarecer porque esses ofcios no eram, em regra, automaticamente objetos de partilha e de herana. No documento em questo, de modo surpreendente, violando a regra geral, a propriedade de um ofcio consta da lista dos bens de raiz. Todavia, no mesmo processo surge tambm a seguinte ressalva do juiz, que por meio dela corrige a situao:

    [...] que no de partilha e mandou que no viesse nela posto que sasse do dote da viva assim por no serem partveis os ofcios nem a estimao deles por serem da merc e data do prncipe que as pode tirar e extinguir sem que sua real fazenda fique obrigada

  • Romulo Valle Salvino

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    a satisfao alguma [...] (ANTT/Inventrios Orfanolgicos. Letra V, mao 16, n. 6, apud Stumpf, 2014, p. 625, grife-se).

    A propriedade do ofcio , desse modo, objeto de uma concesso rgia, fruto de uma economia especfica (a das mercs) e limitada pela vontade do soberano. Se de um lado, porm, essa propriedade pessoal, havia de outro, sem dvida, a expectativa de que o ofcio pudesse ser passado aos herdeiros, por um novo ato de graa do prncipe que o concedera - costume que, como veremos frente, chegou a motivar litgios judicirios.

    A regra era que os cargos fossem ocupados por tempo determinado, mas multiplicaram-se os casos de concesso em propriedade, isto , em carter vitalcio. Stumpf (2014, p. 621) afirma que a incidncia desse tipo de provimento concentrou-se mais nos cargos intermdios e aventa uma hiptese para isso:

    Sem dvida que, no havendo um nmero suficiente de cargos mais importantes da monarquia para retribuir a tantos benemritos, ao se conceder um cargo intermdio em propriedade, em vez de d-lo em serventia (normalmente trienal), estava-se a se retribuir os servios de forma mais honrosa e valiosa, inclusive pecuniariamente.

    Embora, de modo geral, no houvesse previso de hereditariedade nesse tipo de concesso, o [...] herdeiro privilegiado, segundo o direito consuetudinrio, poderia requerer a carta e se tornar o novo proprietrio [...] (STUMPF, 2014, p.621). possvel explicar essa tendncia por dois motivos.

    Primeiro, na lgica da sociedade estamental e corporativa, as virtudes dos pais eram, a princpio, transmissveis aos filhos, razo por que se podia explicar a hereditariedade da nobreza e a prpria continuidade no poder da linhagem real, ainda que essa dependesse,

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    pelo menos nominalmente da confirmao das Cortes. Se algum tinha qualidades suficientes para assumir uma determinada funo, por que o seu filho no a teria? Por esse motivo, eram comuns os casos de filhos buscarem a concesso de mercs, tendo por base a prestao de servios pelos pais.

    Depois, a possibilidade de transmisso do cargo aos filhos podia ser encarada como um incentivo a que os pais o bem servissem. Essa explicao aparece, por exemplo, em Joo Pinto Ribeiro, no clssico Usurpao, Reteno e Restaurao de Portugal:

    Era t a dos principes Portuguezes obrigar com este favor, & esperanas, aque os pays elevados do amor dos filhos, se esforassem a viver ajustadamente na goarda de seus regimentos, pera assi lograssem os vassalllos aquietaa, & bons procedimentos dos officiaes, & a Republica fosse bem servida, que ninguem, sem esperana de premio se ajusta com obem publico. (RIBEIRO, 1642b, p. 32)

    A concesso aos descendentes de cargos anteriormente ocupados pelos pais no se limitava aos ofcios intermedirios. Nuno Gonalo Monteiro (2012) mostra que alguns dos ofcios principais da monarquia eram monopolizados pelas grandes famlias aristocrticas. Alguns deles eram ligados quela que Antnio Manuel Hespanha chamou de administrao central2 ou pertenciam administrao da Casa Real. Segundo Monteiro (2012, p. 44) esses cargos podiam mesmo ser

    [...] doados em vida ou excepcionalmente em juro e herdade. Simplesmente, como os despachos nos mesmos acompanhavam os dos restantes bens da Coroa (onde se incluam) e Ordens, a tendncia era para se perpetuarem nas Casas, tal como os restantes bens. Desta forma, a maior parte dos ofcios antigos da Casa Real foram detidos com bastante continuidade ao longo da dinastia brigantina [...]. (grife-se)

    2. Citem-se, nesses casos, por exemplo a doao em vida do ofcio de Regedor da Casa de Suplicao (1510), depois atribudo muitas vezes a membros de uma mesma famlia, ou a doao do cargo de Governador da Casa do Porto Casa dos Sousas durante o perodo filipino (cf.MONTEIRO, 2012, p. 45).

    Folha de rosto do livro Usurpao, Reteno, Restaurao de Portugal.

  • Romulo Valle Salvino

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    Venal, venalidade

    Contudo, sabe-se que a regra de os ofcios serem concedidos estritamente de acordo com a lgica da economia das mercs foi muitas vezes rompida por operaes de compra e venda, explcitas ou no, o que coloca em cena aquilo que uma historiografia mais recente vem chamando de venalidade dos cargos e ofcios, bem como levanta questes relativas legalidade e moralidade dessas operaes.

    O mesmo Dicionrio Bluteau, anteriormente citado, traz os verbetes venal e venalidade. O primeiro deles, na viso do dicionarista, alm de ter um primeiro significado, bastante neutro, cousa que se vende (BLUTEAU, 1746, p. 412), tambm possui outro, negativo: [...] he muito usado no sentido metafrico & moral, falando em quem se deixa peitar, & em cousas de honra, ou sciencia, que se fazem s por dinheiro. (BLUTEAU, 1746 p.412). Assim, homem venal o que [...] est prompto para fazer qualquer cousa por dinheiro [...] (BLUTEAU, 1746, p. 412) aquele, portanto, que se vende, que nesse sentido se iguala coisa. Esse tom negativo, como veremos, de algum modo contaminava a percepo da venda de cargos naquela poca. Dicionrios de nossos dias continuam registrando as duas acepes e tambm apontam a segunda como figurativa (ver, por exemplo, o dicionrio Houaiss).

    Bluteau (1746, p. 412), por outro lado, apresenta venalidade como sinnimo de venda. O dicionarista, depois de trazer cena esse significado, completa-o com dois exemplos obviamente crticos: o primeiro deles justamente a venalidade dos cargos, officios, etc., ao passo que o segundo a venalidade da justia (BLUTEAU, 1746, p.412). Mais frente, o estudioso traz mais uma citao: [...] he peste da Monarquia a venalidade dos mritos [...] (BLUTEAU, 1746, p.412). Que esses exemplos tenham sido escolhidos por Bluteau, a par de alguma inteno crtica de carter mais pessoal,

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    um bom indcio de que provavelmente eram correntes na poca.

    Na linguagem atual, essa sinonmia destacada por Bluteau entre venalidade e venda (ou seja, a operao de transmisso de um bem ou servio mediante um determinado preo) praticamente se perdeu no uso corrente. Dicionrios como o Houaiss e o Aurlio no a registram mais. O Houaiss (2001, p. 2.839), por exemplo, assinala que venalidade, por uso, significa a [...] condio ou qualidade do que pode ser vendido [...]. Boa parte deles coloca a nfase na acepo de qualidade daquele que se vende, prostitui ou se deixa corromper por dinheiro ou outros valores. Diz o mesmo Houaiss, por exemplo, que venalidade a [...] natureza ou qualidade do funcionrio pblico que exige ou aceita vantagens pecunirias indevidas no exerccio de seu cargo [...]. Esse significado ecoa a concepo negativa do passado.

    Por outro lado, o Bluteau no regista (embora possa ser resgatado por derivao a partir do verbete venal), esse significado atual de [...] condio ou qualidade do que pode ser vendido [...], bem mais prximo daquele adotado pela historiografia contempornea para referir-se a um dos fenmenos que objeto deste trabalho. Assim, quando Bluteau refere-se venalidade dos cargos e ofcios, ele no est dizendo exatamente a mesma coisa que um historiador de hoje diz ao usar a mesma palavra. O historiador, ao utilizar o termo, traz cena uma qualidade que, por determinadas razes histricas, em determinadas condies, foi atribuda a esses cargos ou ofcios, qual seja, a de ser vendvel. Para o dicionarista do sculo XVIII, o sentido denotativo refere-se transmisso de um bem a troco de dinheiro, enquanto para o historiador atual a palavra denota a qualidade de algo ser vendvel. no plano conotativo (metafrico e moral), porm, que Bluteau registra a aplicao do termo no terreno das coisas de honra e cincia ou justia. Enquanto para o historiador a palavra tem um sentido que se quer neutro, o dicionarista, nas entrelinhas, cerca-a de um tom negativo ao tratar de um sentido muito usado em sua

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    poca. Sobre essa viso negativa, voltaremos um pouco mais frente.

    O fato que a venalidade dos ofcios se trata de tema de estudo relativamente recente e sobre o qual no h um consenso terminolgico, terico ou metodolgico. Observa-se, a princpio, um uso mais alargado do conceito pelos historiadores de lngua espanhola e outro mais restrito por brasileiros e portugueses - na realidade, pelo menos at o momento, trata-se de uma preocupao mais da historiografia portuguesa que da brasileira, apesar de um relativamente intenso movimento de vendas de cargos das conquistas americanas em meados do sculo XVIII. Algumas das abordagens concentram-se nos casos estritos de operaes envolvendo troca direta por dinheiro, enquanto outras, s vezes no caso de um mesmo autor (compare-se, nesse sentido, Stumpf, 2011 e Stumpf, 2012a) - em ateno seja a uma evoluo das pesquisas seja a objetivos tticos diversos dos diferentes textos - estendem o conceito para aqueles provimentos em que o cargo ou ofcio concedido em troca de servios pecunirios extraordinrios (STUMPF, 2012a).

    Em texto pioneiro sobre a venalidade de ofcios no Antigo Regime portugus, Francisco Ribeiro da Silva lembrava que na Europa da Idade Moderna

    [...] no sendo clara a distino entre o que pertencia ao sector privado e o que competia ao domnio pblico, os ofcios do Estado e da Administrao foram objeto de compra e venda e funcionaram como parte integrante dos bens patrimoniais transmissveis por herana ou por doao [...] (SILVA, 1988, p. 203)

    A prtica parece ter sido caracterstica de boa parte dos regimes europeus naquele perodo, tendo declinado apenas quando, ao longo do sculo XVIII, uma nova racionalidade administrativa veio a pautar novas formas de preenchimento dos cargos administrativos ainda assim com permanncias durante boa parte do sculo XIX. Enquanto duraram, a patrimonializao dos cargos e a venalidade em seu preenchimento parecem ter sido

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    elementos importantes do prprio funcionamento da mquina administrativa.

    As vises da historiografia sobre o fenmeno, por outro lado, so dspares: de acordo com Francisco Ribeiro da Silva (1988, p. 204), h os que o julgam [...] um processo de deformao e enfraquecimento do Estado [...], enquanto outros [...] consideram que o acesso de novos elementos s funes pblicas insuflou ventos de modernidade nesse mesmo Estado. A segunda viso pauta-se, em parte, pelas prticas venais terem garantido o acesso, por meio de determinados cargos, de elementos vindos das camadas inferiores aos processos de nobilitao, e pelo fato de a transmisso hereditria em favor das mulheres (ainda que no fossem elas que assumissem os ofcios, mas seus maridos) ter contribudo para novas formas de mobilidade social3. Ambas as vises, todavia, no deixam de padecer de certo anacronismo, por embutirem julgamentos de uma realidade completamente diferente da atual por meio da contemplao dos movimentos do passado com olhos do presente, ainda que a partir de diferentes ngulos.

    Francisco Ribeiro da Silva baseia parte de seu estudo no trabalho de Roland Mousnier (1986), historiador que, ao tratar da venda explcita ou concesso de cargos mediante aportes pecunirios, distinguiu entre uma venalidade pblica e outra privada. A primeira acontecia sempre que o soberano [...] vendeu um ofcio, ou quando, por razes de penria do Tesouro, em vez de dinheiro, penso, gratificao ou indemnizao, deu a algum um posto pblico na pressuposio de que este o pudesse vender a um terceiro. (SILVA, 1988, p. 204). A segunda materializava-se

    [...] quando o proprietrio de um ofcio recebeu uma quantia em dinheiro ou um objecto de valor equivalente para se demitir em favor de quem lhe deu o dinheiro ou o objecto. Ou ento quando algum, no sendo embora detentor de um ofcio, teve valimento para o conseguir para outrem, mediante alguma paga. (SILVA, 1988, p. 204)

    3. H pelo menos um caso em que uma mulher foi nomeada para assumir um ofcio ligado s atividades postais em Portugal. Trata-se da nomeao, em 20 de dezembro de 1656, de D. Catarina da Cunha, viva do correio-mor de Braga, Adriano de Teive e Almeida, para o mesmo cargo (conforme Arquivo Distrital de Braga, Chancelaria da Corte Episcopal, Liv. 16, f. 64, apud DOCUMENTOS, 2008, p. 238). Lembre-se que o correio-mor do arcebispado de Braga no era subordinado ao correio-mor de Portugal, tratando-se de ofcio criado regionalmente e que somente em 1728 foi anexado quele.

    Cocheiro da Mala-Posta (1798) . Reconstituio do pintor Alberto de Sousa.

  • Romulo Valle Salvino

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    Ou seja, em linhas gerais, o que se estabelece a uma distino entre uma venalidade praticada diretamente pelo soberano e outra entre particulares. De acordo com Mousnier (1986 apud SILVA, p. 203), essa ltima prtica ter-se-ia tornado completamente legal apenas na Frana, por meio das survivances (sculo XVI) e a paulette (sculo XVII). Mas o prprio Francisco Ribeiro da Silva ressalta que a realidade era bem mais complexa: alm da legislao promulgada, a abordagem da questo deve levar em conta tambm o direito costumeiro e a realidade efectiva (SILVA, 1988, p. 204). Ou seja, haveria um jogo de foras entre a lei, os costumes e as prticas, com os dois ltimos afrontando ou modificando a primeira. Como lembra Antnio Manuel Hespanha (2006), no perodo em questo, uma lei geral podia ser limitada por normas particulares, como aquelas consuetudinrias. Determinados abusos, pela repetio, podiam ser defendidos como prticas ou costumes locais, configurando, portanto, um sistema sujeito a muitos deslocamentos. A percepo dessa complexidade e dos possveis deslizamentos entre esses elementos de anlise crucial para aproximar-se dos casos ibricos.

    Percebe-se na historiografia uma diferenciao na abordagem do fenmeno em Espanha e Portugal. Francisco Ribeiro chega a se perguntar: Mas ter existido uma venalidade em Portugal? (SILVA, 1988, p. 204). No caso espanhol, embora no houvesse um substrato legal como em Frana, a venalidade era praticada largamente, inclusive quando se tratava de cargos principais. Em Portugal, por outro lado, ela parece ter sido bem mais limitada, ou pelo menos, na medida do possvel, praticada s escondidas (STUMPF, 2011), o que contribuiu para certa rarefao de documentos sobre o assunto.

    Roberta Stumpf defende que, se no caso portugus a venalidade rgia no se marcava pela ilegalidade, era, entretanto, considerada imoral por parte dos contemporneos. Francisco Ribeiro da Silva, no artigo aqui citado, demonstra, de forma brilhante, que embora a legislao portuguesa proibisse expressamente a venda de determinados cargos,

  • Patrimonializao e venalidade no provimento de ofcios no imprio portugus

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    ela apresentava diversas ambiguidades e possiblidades de contornar as restries. Percebe-se que os objetivos das proibies visavam mais manuteno da autoridade rgia e ao impedimento de transaes diretas entre particulares que ao cerceamento das vendas em si. As excees legais tinham como ponto em comum a necessidade de autorizao rgia prvia, o que certamente fornecia substrato legal a operaes de venda realizadas diretamente pela prpria coroa. Nesse sentido, preciso lembrar que, apesar de se conhecerem casos de vendas de cargos j no sculo XVI, antes, portanto, da incorporao de Portugal coroa dos ustrias, a prtica acabou associada aos supostos defeitos da monarquia espanhola.

    possvel resgatar, nesse sentido, um texto clssico da chamada literatura autonomista, j citado aqui, a obra Usurpao, Reteno e Restaurao de Portugal, de Joo Pinto Ribeiro, publicada em 1642. Nela, o autor dizia que

    [...] as vendas dos officios, ainda que fossem de justia, paraticado j com tta de mazia, & excesso que o vassallo deste Reyno, que no tinha dinheyro, no tinha merecimentos. Era ley inviolavel nascida, do antigo custume que sempre nisso goardavo os senhoresReys deste Reyno, que per fallecimento dos pays, que procedera bem em seus officios, se dessem a seus filhos [...] Porm alterandos este santo governo, porque faltava em os Reys de Castella o amor deseus vassallos, & aquelle glorioso titulo de pays da patria, os officios se tirava aos filhos, & se vendia, & dava a quem de todo os desmerecia, & levandoselhe o dinheyro, era obrigados a jurar na chancelaria, que nada dera por elles., nem os pretendera por interposta pessoa. Como se tanta facilidade, & perjuro ta manifesto se pudesse enconder a Deus. Acrescentavase, a estas injustias, a tirania de prohibir virem as partes com embargos