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1 Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras, Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 07 – 2008 ISSN 1809-3264 Revista Querubim 2008 Ano 04 Nº 07– vol. 2 – 219 p. (jul - dez/ 2008) Rio de Janeiro: Querubim, 2008 1.Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos. I. Título: Revista Querubim Digital. CONSELHO EDITORIAL Presidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFF- RJ) Secretário: Roberto Carlos Rodrigues CONSULTORES Alice Akemi Yamasaki (UFF – RJ) Elanir França Carvalho (USP – SP) Geralda Therezinha Ramos (UNIBH – MG) Guilherme Wyllie (UFMT / ILTC / IBFCRL – MT) Janaína Alexandra Capistrano da Costa (UFT – TO) Janete Silva dos Santos (UFT – TO) João Carlos de Carvalho (UFAC – AC) José Carlos de Freitas (UNIRG – TO) Jussara Bittencourt de Sá (UNISUL –SC) Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT – TO) Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS – SP) Ruth Luz dos Santos Silva (UNIBEU – RJ) Vanderlei Mendes de Oliveira (UFT – TO) Venício da Cunha Fernandes (C. PEDRO II – RJ) EDITOR Aroldo Magno Oliveira DIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TÉCNICA Aroldo Magno de Oliveira PROJETO GERAL Aroldo Magno Oliveira

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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 07 – 2008ISSN 1809-3264

Revista Querubim 2008 Ano 04 Nº 07– vol. 2 – 219 p. (jul - dez/ 2008)Rio de Janeiro: Querubim, 20081.Linguagem 2. Ciências Humanas 3. Ciências Sociais - Periódicos. I. Título: Revista Querubim Digital.

CONSELHO EDITORIALPresidente: Aroldo Magno de Oliveira (UFF- RJ)Secretário: Roberto Carlos Rodrigues

CONSULTORES

Alice Akemi Yamasaki (UFF – RJ)Elanir França Carvalho (USP – SP)Geralda Therezinha Ramos (UNIBH – MG)Guilherme Wyllie (UFMT / ILTC / IBFCRL – MT)Janaína Alexandra Capistrano da Costa (UFT – TO)Janete Silva dos Santos (UFT – TO)João Carlos de Carvalho (UFAC – AC)José Carlos de Freitas (UNIRG – TO)Jussara Bittencourt de Sá (UNISUL –SC)Luiza Helena Oliveira da Silva (UFT – TO)Mônica Cairrão Rodrigues (UNI-SÃO LUÍS – SP)Ruth Luz dos Santos Silva (UNIBEU – RJ)Vanderlei Mendes de Oliveira (UFT – TO)Venício da Cunha Fernandes (C. PEDRO II – RJ)

EDITORAroldo Magno OliveiraDIAGRAMAÇÃO E REVISÃO TÉCNICAAroldo Magno de OliveiraPROJETO GERALAroldo Magno Oliveira

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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 07 – 2008ISSN 1809-3264

SUMÁRIO01 A instrução pública como domínio ideológico na república rio-grandense (1836-1845): período

da Revolução Farroupilha – Itamaragiba Chaves Xavier 03

02 O funcionamento do léxico no texto publicitário – Ivandilson Costa 11

03 Um diagnóstico crítico da aplicabilidade de sistemas livres no ambiente educacionalJean Carlos Arouche Freire

18

04 A narrativa na poética de hemingway: em busca da simbologia – José Tupinambá de Andrade 26

05 A instauração de um novo paradigma de formação docente no Brasil: a educação a distância – Julia Malanchen

35

06 Relações Brasil-África: reflexões sobre o contraditório – Karla Alves Coelho Tertuliano 46

07 Qualquer: uma abordagem funcionalista – Letícia Lemos Gritti 52

08 O gênero do discurso no livro didático da 5a série – Lucilene Lisboa de Liz 61

09 Forças ilocucionárias e implicaturas - Lucrécio Araújo de Sá Júnior 70

10 Gramaticalização do verbo haber na língua espanhola: um estudo diacrônico – Marcelo Ribeiro Martins 85

11 Crenças de uma professora de inglês-le quanto à utilização das concepções de linguagem dentro do processo de ensino/aprendizagem – Marcia Regina Pawlas Carazzai e Tânia Aparecida Vaz

91

12 O lugar das unidades fraseológicas nos modelos lingüísticos – Márcia Socorro Ferreira de Andrade 99

13 As oficinas de artes plásticas do MAMB – Mariane Nascimento 105

14 Imigração italiana e as escolas no município de Colombo no Paraná (1882 – 1917) – Maria Cecília Marins de Oliveira, Elaine Cátia Falcade Maschio e Ana Maria Cordeiro Vogt

112

15 As imagens e as palavras na persuasão publicitária: o evangelho da mercadoria – Milena Maria Sarti 121

16 Letramento: um estudo do livro didático de Magda Soares, Português: uma proposta para o letramento - Nilma Maria Nogueira

130

17 A contribuição dos tropeiros para a formação do léxico na região sul do Brasil – Patrícia Graciela da Rocha 137

18 O que é ser adulto hoje? - Pedro Braga 143

19 Educação e arte x barbaridades – Rejane de Souza Ferreira 149

20 A (não) incorporação semântica no português do Brasil - Ronald Taveira da Cruz 156

21 Ressignificação da interdisciplinaridade: uma ruptura epistemológica com a territorialidade doRessignificação da interdisciplinaridade: uma ruptura epistemológica com a territorialidade do saber disciplinarsaber disciplinar - - Roselene de Souza Portela

163

22 A educação infantil indígena apinayé: a alfabetização bilingüe em perspectivaSeverina Alves de Almeida, Eliana Henriques Moreira e Josete Marinho de Lucena

171

23 Aprendendo inglês na internet: um projeto construído colaborativamente entre participantes de uma comunidade virtual - Susana Cristina dos Reis, Tânia Maria Moreira e Débora Lisiane Carneiro Tura

179

24 Lembrai-vos de Osvaldo Cruz: um artigo histórico-social sobre as tentativas de linchamento coletivo contra a colônia japonesa em 1946 – Thiago Abreu de Figueiredo

186

25 A Redemocratização no Brasil à luz do pensamento de Caio Prado Jr.: reforma agrária e cidadania como eixos de transformação social – Vitor Leal Santana

195

26 Ensino, discurso e seus efeitos: repercussões inconsciente - Waldivia Maria de Jesus 205

27 RESENHAS 212

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A INSTRUÇÃO PÚBLICA COMO DOMÍNIO IDEOLÓGICO NA REPÚBLICA RIO-GRANDENSE (1836-1845): PERÍODO DA REVOLUÇÃO FARROUPILHA

Itamaragiba Chaves XavierMestrando em Educação – CEIHE /FAE/UFPEL – RS

ResumoEste artigo discute a Instrução Pública sendo utilizada como elemento de dominação ideológica na República Rio-grandense(1836-1845), no período que a Província de São Pedro, atual Estado do Rio Grande do sul, esteve separada do Brasil, durante a Revolução Farroupilha. Onde intelectuais como Domingos José de Almeida percebiam a necessidade de utilizar esta ferramenta, como vinha sendo difundido nos países mais desenvolvidos. Os referenciais teóricos utilizados são: Althusser, Bourdieu e Passeron e as fontes são: os relatórios dos Presidentes de Província e o jornal O Povo, um dos diários oficiais da República Rio-grandense.Palavras-chave: Dominação Ideológica - Instrução Pública - República Rio-grandense.

AbstractThis article discusses the Public Instruction being used as an ideological domain in the Rio-grandense Republic (1836-1845), during which the Province of San Pedro, current state of Rio Grande south, was separated from Brazil, during the Farroupilha Revolution. Where intellectuals such as José Domingos de Almeida perceived the need to use this tool, as was being broadcast in the most developed countries. The theoretical benchmarks used are: Althusser, Bourdieu and Passeron and the sources are: the reports of Presidents of the Province and the newspaper “O Povo”, one of the official journals of the Rio-grandense Republic. Keywords: Ideological Domain - Public Instruction - Rio-grandense Republic.

Introdução

O presente trabalho tem como objetivo discutir qual a necessidade dos Farroupilhas referente à Instrução do Povo, pois aparentemente o domínio era mantido por laços de dependência do peão ao seu patrão, mas em vários documentos a Educação é exaltada.

O período escolhido foi de setembro de 1836 a março de 1845 por ser o espaço de tempo em que a Província de São Pedro, atual Rio Grande do Sul, esteve separada do Império brasileiro, inclusive criando a República Rio-grandense, com ideais liberais e modernos, contrapondo no discurso a Monarquia brasileira como opressora e atrasada.

Esta separação ocorreu dentro do desenvolvimento dos fatos da Revolução Farroupilha(1835-1845).

O recorte temporal é importante ter bem claro, mas nada impede que para melhor compreender o tema, se faça uma abordagem anterior ou posterior a ele, pois pode ser uma forma de melhor elucidar os acontecimentos (BARROS, 2005).

As fontes que utilizo são: relatórios dos Presidentes de Província e o jornal O Povo, um dos jornais oficiais da República Rio-grandense.

Percebe-se através das fontes que há uma valorização da Instrução popular, porém

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pautada em uma Educação mínima, para dominar, manter o Estado das coisas, criarem adeptos ao movimento Farroupilha e ao Regime Republicano.

Os referenciais teóricos que utilizo são: Althusser(1974) e Bourdieu e Passeron (1982 ), para estes a ação pedagógica tende a reprodução cultural e social simultaneamente, sendo a cultura reproduzida a da classe dominante, que na República Rio-grandense as intenções de reprodução serão os ideais de República, a passividade ao domínio e não lutarem por maiores transformações na sociedade.

A Escola inculca na classe dominada as regras dos bons costumes, da moral e assim aceitar o seu lugar na sociedade e a classe dominante é ensinada a falar bem e redigir bem, ou seja, ter conhecimento de persuasão para poder dominar. Sendo a Escola o principal aparelho ideológico de Estado Moderno, substituindo a Igreja do Antigo Regime, pois nenhum outro fica tanto tempo com a criança sob seu controle, quase todos os dias da semana(ALTHUSSER, 1974).

A Revolução Farroupilha ao se separar do Brasil quer se colocar como Nação Moderna e o que a sociedade Moderna melhor criou para legitimar a posição dominante da classe dominante foi à legitimação pela Escola, colocando todos como iguais para adquirir a ascensão, porém esquece as questões de desigualdades sociais que afetam estas possibilidades(BOURDIEU e PASSERON, 1982).

A sociedade Moderna passa a não dominar tanto pela violência física, mas sim se utiliza da dominação ideológica, onde o principal aparelho ideológico de estado é a Escola, porém “não há dominação repressiva sem ideológica e nem ideológica sem repressiva” (ALTHUSSER, 1974, p. 47). Estas transformações nas formas de dominação que estão ocorrendo na Europa, também é iniciada no Brasil e na Republica Rio-grandense.

O artigo será dividido em duas partes, sendo que na primeira faço um panorama da utilização da Educação como elemento de dominação ideológica no Brasil independente e no segundo analiso a República Rio-grandense, mas também fazendo algumas ligações com o Brasil.

Brasil (1822-1837)

Inicio pelo Brasil Independente, pois acredito que algumas das idéias que vão ter eco na República Rio-grandense, já estavam em uso.

As idéias liberais e o interesse pela Instrução surgem em vários discursos no Período Imperial e mesmo antes da independência do Brasil, como podemos observar na alocução do Deputado Francisco Moniz Tavares, representante do Maranhão, quando da ida dos deputados brasileiros a Lisboa, às Cortes Constituídas.

A Instrução é uma necessidade de todo o homem. O velho Ministério queria de propósito conservar o Brasil em total ignorância [...] há muito desinteresse deste Soberano Congresso em facilitar quanto for possível às luzes. (TAVARES, apud FERNANDES, 2006, p.30 e 31).

Políticos como Bernardo Pereira de Vasconcelos, mineiro de Vila Rica, que estudou Direito e Filosofia na Faculdade de Coimbra, 1814-1819, Deputado Geral eleito em 1824 e participou ativamente na criação do Colégio de Pedro II, inclusive escreveu o seu primeiro

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regulamento. Em 1828 na Carta aos Senhores Eleitores da Província de Minas Gerais, deixa claros os objetivos deste tema.

Ler, escrever, contar e gramática da língua pátria deve ser o primeiro estudo de todos os membros de uma nação; esta aplicação é a mais essencial [...] E porque a educação do belo sexo contribui muito para a civilização dos Estados, deve também criar-se escolas de meninas nas cidades e vilas mais povoadas. (VASCONCELOS, apud MURASSE, 2003, p. 09.).

Isto evidencia que as idéias Iluministas e atuais da Europa chegavam ao Brasil, vindas através dos alunos, que iam estudar nas Faculdades Européias e dos viajantes que visitavam o País. Demonstrando que as idéias não ficam presas a um determinado local, elas correm ao mundo.

Devemos ter o cuidado de perceber que as idéias Iluministas não se apresentam da mesma forma em todos os locais, elas se aditam às especificidades de cada sociedade. ( FALCON, 1986, p. 16-17 )

Nesse primeiro momento, pós-independência, os interesses referentes à educação estavam pautados, em afirmar o Brasil como independente, moderno, civilizado, moralizador do povo, evitando revoltas e mantendo o estado das coisas.

A primeira lei geral que sistematizou o ensino primário em todo o Império foi de 15 de outubro de 1827, mas o ensino que vai efetivamente ser sistematizado será das faculdades de Olinda e São Paulo, também criadas neste ano, que formará os políticos do Segundo Reinado, tirados da elite econômica brasileira.

Percebem-se os objetivos dos políticos Brasileiros, em criar um sistema de ensino para formar a elite dirigente do país, vinda dos “melhores berços” e assim o sistema se reproduz.

A situação se evidência, quando no Período Regencial, no Ato Adicional de 1834, art.10 §2º, passa ser responsabilidade do governo central somente as faculdades em todo o país e todos os graus da cidade da Corte, ficando o ensino primário e secundário sob a responsabilidade de cada Província. Estas não tinham recursos para sistematizar um Sistema de Ensino, tornando a Instrução provincial de pouca execução.

Os fatos demonstram que o Governo Central, através das Províncias, se interessava em dar ao povo uma Educação mínima, dispensável a sua moralização, evitando assim, possíveis revoltas.

À que realmente interessava ao Governo Imperial, era a Instrução da elite, pois em 1837 criou o Colégio de Pedro II, que era o caminho direto para as Faculdades. Os alunos oriundos deste colégio não prestariam provas para ingressar em quaisquer faculdades brasileiras. Continuando evidente o interesse na educação da elite para formar os futuros dirigentes do Brasil.

Neste período ocorrem várias revoltas pelo mundo, inclusive no Brasil, surgindo o discurso de utilizar a Educação como elemento de dominação, de moralização e com o intuito de diminuir as agitações. Na Província de São Pedro inicia a Revolução Farroupilha, em 20 de setembro de 1835, que acarretou na separação do Brasil em 11 de setembro de 1836, criando a República Rio-Grandense, que passaremos a analisar.

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República Rio-grandense (1836-1845)

Os ideais liberais estão presentes em artigos, leis e discursos no jornal O Povo, que era um dos Diários Oficiais dos Farroupilhas.

A elite econômica e intelectualizada da República Rio-grandense, tinham objetivos a serem alcançados com a Instrução Pública: apresentar a nova nação como moderna, de acordo com os ideais que eram propagados para as Repúblicas, formar o caráter Nacional, conservar firme e estável o Estado, diminuir os conflitos e as agitações, aumentando o controle sobre o Povo, usando-a como elemento de propagação ideológica e mantendo cada um no seu lugar. Como podemos observar num artigo publicado no Jornal O Povo, em 09 de maio de 1840,

[...] mas a maior parte só menos teria alguns traços de semelhança, estes traços formariam precisamente o caráter nacional.O mais eficaz dos meios, diz um profundo político da Antigüidade, de conservar firmes, e estáveis às constituições dos governos, é de educar a juventude nos princípios constitucionais. [...] este grande objeto poder-se-ia por ventura obter, sem uma Educação Pública? Quem mais, que o governo pode ter este interesse? Quem mais do que ele pode ter os meios de fazê-lo? Quem mais do que o legislador pode conhecer sua importância, e o plano para consegui-la? (O POVO, 09/05/1840, nº157).

O interesse de controlar a Educação também é evidenciada quando valorizam a Escola Pública em relação à particular, por ser dominada pelo Estado, inclusive, expondo que os professores não poderiam alterar o que estava na lei.

Nenhum dos executores deveria ter o direito de alterá-lo. [...] A Educação pública não pode nunca, com respeito ao indivíduo, ser tão perfeita como poderia ser uma Educação Privada. Mas si esta pode formar apenas algum indivíduo, aquela só pode instituir um Povo. (O POVO, 23/05/1840, nº160).

Devemos relacionar os ideais de doutrinamento das crianças, bem como, dos professores seguirem o que a lei determina, com os objetivos de Pereira e Vasconcelos, na Corte, em seu discurso de abertura das aulas do Colégio de Pedro II, em 25 de março de 1838, onde defende que sigam a risca o regulamento por ele criado,

Cumpre, pois, que longe de modificar esta regra na sua execução, seja ela ao contrário religiosamente observada[...] Só assim deixarão receios infundados de tomar a natureza de dificuldades reais, só assim se evitará o escândalo de estilos arbitrários e por ventura opostos às providências e às intenções do governo; e a mocidade de par com as doutrinas, que hão de formar o seu coração e aperfeiçoar a sua inteligência, aprenderá a respeitar as Leis e as Instituições, e conhecerá as vantagens da subordinação e da obediência. (VASCONCELOS, apud MURASSE, 2003, p.12 e13).

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Devemos ter o cuidado quando demonstramos o interesse pela Instrução do povo, pois esta tinha limites, e o principal era o de manter o estado das coisas. Observável no artigo do jornal O Povo de 16 de maio de 1840,

[...]Ela requer que todos os indivíduos da sociedade possam participar da educação do magistrado, e da Lei, cada um, porém segundo suas circunstância e sua destinação. Ela requer que o Lavrador seja educado para ser cidadão Lavrador e não para ser magistrado, ou General. (O POVO, 16/05/1840, nº159).

Não estou querendo dizer que os republicanos rio–grandense precisassem tanto da dominação ideológica, mas que intelectuais como Domingos José de Almeida, “o cérebro da Revolução Farroupilha”(LAYTANO, 1983, p.160), já percebiam a necessidade das novas relações de dominação que estão se estruturando pelo mundo.

Os políticos brasileiros também percebiam estes benefícios, segundo Auras (2004, p. 139),

Se buscarmos entender mais densamente a organização econômico-social brasileira ao longo do século XIX verificaremos que para a produção da riqueza, para o exercício do trabalho naquele tempo, a escola não era ainda, em grande medida, objetivamente necessária. Os homens e mulheres aprendiam a trabalhar trabalhando. No entanto, ao mesmo tempo e contraditoriamente, podemos perceber que, naquele contexto, as elites não podiam prescindir de todo da presença da escola, pois ela passa a ser necessária como espaço de conformação de condutas, ou seja, como lugar irradiador daquilo que se entendia como expressão de comportamento tido como civilizado [...] civilizar, então significava, antes de mais nada, estender o raio de ação da autoridade, significava generalizar o princípio de ordem.

Importante ressaltar que as citações que uso do jornal “O Povo”, são dois artigos intitulados, “Idéias Elementares de um sistema de Educação Nacional” e “Vantagens e Necessidades de uma Educação Pública”, que são de autoria do baiano Miguel Du Pin, evidenciando que as idéias atravessam fronteiras e que os objetivos a serem alcançados com a instrução do povo se relacionam com outras partes do Brasil.

Apesar desta aparência, a especificidade da República Rio-grandense têm alguns princípios diferentes. Os Farroupilhas demonstram uma efetiva preocupação com a Instrução Pública, pois necessitam desta na formação da mentalidade popular para defender a frágil ordem institucional que estava sendo implantada, um novo modelo de estado e inúmeras relações sociais precisavam ser solidificadas e, para isso, nada melhor que ampliar a rede escolar.

Em 1839 havia Escolas de Primeiras Letras em Caçapava (com 53 meninos e 22 meninas), São Gabriel (com 43 meninos e 25 meninas), Piratini (36) Rio Pardo (47), Cachoeira (32), Santana da Boa Vista (14), São Borja (08), Itaqui, Alegrete, Setembrina, Santana do Livramento, Cruz Alta, Santa Maria da Boca do Monte, Encruzilhada, Bagé e Mostarda.

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Utilizando-se do método de Lancaster em São Gabriel, professor Luis Carlos de Oliveira e em Alegrete professor Antonio Bento, estes para os meninos. E para as meninas temos em Cachoeira, a professora Ana Francisca Rodrigues Pereira e em Caçapava professora Dona Zeferina Amália de Oliveira e Silva.

O Método de Lancaster era o almejado na República Rio-grandense, por ser visto como moderno, pelo rígido controle sobre os discípulos e possibilitava a instrução em massa, a preço baixo, onde um professor podia ensinar mais de 500 alunos.

[...] outra vantagem deste sistema é o muito que se poupa em mestres. [...] mas no sistema de Lancaster um só mestre pode governar uma classe de quinhentos ou seiscentos discípulos. Outra vantagem do sistema de Lancaster é prevenir falta por meio da assídua vigilância dos monitores. (O POVO, 25/09/1839, nº104).

Através deste Método, os preceitos Republicanos chegariam a um maior número de pessoas.

Apesar da valorização, na República Rio-grandense, existiam problemas, como falta de professores habilitados no método de Lancaster e carência de prédios que abrigassem grande número de alunos.

No Brasil o Método de Lancaster foi almejado como a Salvação da Educação, desde meados da década de 1820. Em 1825 o Governo Imperial solicitou as Províncias que enviassem professores a Corte para aprenderem o método.

A província de São Pedro enviou o professor Coruja, com todos os custos pagos pela província. Em 1827, inicia sua aula Pública pelo Método de Lancaster em Porto Alegre.

A partir da Lei de 15 de outubro de 1827, o Método de Lancaster, passa a ser o oficial do Brasil, porém, não atingindo seus objetivos conforme Fernando de Azevedo.Os resultados, porém, dessa lei que fracassou por várias causas, econômicas, técnicas e políticas, não corresponderam aos intuitos do legislador; o governo mostrou-se incapaz de organizar a educação popular no país. (AZEVEDO, apud ELOMAR e ARRIADA, 2005, p.9).

O poder disciplinador do Método de Lancaster na Educação Popular servia para diminuir as Revoltas, sendo idéia corrente na Europa, bem como, no Brasil e na República Rio-grandense. Segundo Bastos(1999, p.102), “Foucault considera o Ensino Mútuo uma máquina de quebrar os corpos e as inteligências”.

Ao término da Revolução Farroupilha, na primeira sessão ordinária da Assembléia Legislativa da Província, em 1º de março de 1846, Caxias em seu relatório demonstra sua preocupação e sua ação prática com o tema, pois das 51 aulas que havia (36 para meninos e 15 para meninas), 21 ele havia criado. Apresentando ainda o estatuto para o futuro Liceu, tendo como modelo o de Pedro II, do Rio de Janeiro.

A Escola de Pedro II serviria para formar a elite brasileira, sendo esta o modelo para nossa Província, demonstrando a intenção dos dirigentes do Brasil em dominar a elite local, pois a Revolução Farroupilha foi dirigida por parte desta.

Ensinando conforme os princípios do Colégio de Pedro II, dominariam as mentes da elite provincial, e caso, alunos que não fossem desta classe freqüentassem a escola, receberiam um conhecimento elitizado e assim defenderiam as idéias da classe a qual não

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pertence.O Colégio de Pedro II era modelo para as escolas do gênero nas Províncias

brasileiras, mantendo o Governo Imperial, o controle indireto das mesmas. (VECHIA, 2006, p. 88)

Conclusões preliminares

As conclusões são preliminares, pois estou aprofundando a analise sobre a Instrução Pública na República Rio-grandense na dissertação de Mestrado, na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Pelotas.

De forma geral, a Educação neste período está de acordo com os interesses da elite econômica e intelectual da República Rio-grandense, os quais tinham objetivos a alcançar com os modelos modernos e em voga na Europa, transplantado para o Brasil e também para a nova Nação. A Instrução Pública serviria para moralizar o povo, diminuir revoltas, dominar mentes e manter o estado das coisas, através de uma educação mínima.

Na nova Nação agrária e inicialmente escravocrata, talvez não fosse tão necessário à dominação ideológica, mas já era corrente no mundo as novas relações de dominação através da Instrução do povo, na construção dos Estados Modernos e, segundo Althusser( 1974, p. 47), “não há domínio repressivo de estado sem o ideológico e nem o ideológico sem o repressivo”.

Finalizando parte dos Farroupilhas demonstram uma efetiva preocupação com a Instrução Pública, pois necessitam desta na formação da mentalidade popular para defender a frágil ordem institucional que estava sendo implantada, um novo modelo de estado e inúmeras relações sociais precisavam ser solidificadas.

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O FUNCIONAMENTO DO LÉXICO NO TEXTO PUBLICITÁRIO

Ivandilson Costa

Resumo: no presente artigo, nos propomos a investigar o funcionamento de aspectos lexicográficos ligados à palavra, lexema, léxico e campos semânticos em textos publicitários. Consideramos, para tanto, anúncios veiculados em revistas de público-alvo feminino, publicadas no ano de 2002. O conjunto fez parte do corpus da pesquisa de nossa Dissertação de Mestrado em Lingüística que abordou a manutenção do mito novo na publicidade para a mulher. Palavras-chave: Lexicologia. Campos semânticos. Linguagem Publicitária.Abstract: in this article, we propose to investigate the operation of lexicology aspects related to the word, lexeme, lexical and semantic fields in text ads. We approach advertisements in magazines target audience of women, published in 2002. The set was part of the corpus of our search for Dissertation of Master in Linguistics who addressed the maintenance of the new myth in advertising for women.Keywords: Lexicology. Semantic fields. Language of advertising.

0. Vinheta Inicial

Um estudo sobre a semântica e seu papel na abordagem de aspectos da lexicologia pressupõe uma rápida visão sobre o campo da semiologia e semiótica . É com Saussure (2000) que temos a proposta de uma semiologia, ciência que se encarrega de abordar o universo de signos em geral com o objetivo de verificar o seu papel na sociedade. Já o termo semiótica é inicialmente empregado por Morris (1976), que abordam os signos de um modo geral embora tenha elegido a linguagem humana como o sistema mais analisado, de modo que o próprio termo acabaria se identificando mais fortemente com aquela. Sintaxe, semântica e pragmática apresentam-se como estágios sucessivos e progressivos (cf. MASIP, 2003: 22; cf. LEVINSON, 1984: 1): a pragmática lida com o uso; a semântica aborda o uso e focaliza primordialmente as relações das palavras com as entidades denotadas; a sintaxe observa as relações entre os signos, sem deixar de lado seus usos nem seus valores semânticos.

Mas é sob o escopo da chamada semântica lingüística que surge interesse pelo estudo do léxico. Bréal (1992) definiria a semântica como a “ciência das significações”, a fim de descobrir as leis que regiam os câmbios de significação das palavras. Um grande problema nesse âmbito seria o de categorização do campo de análise, porquanto, diferentemente da fonologia e da morfossintaxe, se tomasse o léxico como uma soma de termos de dupla dimensão (forma/conteúdo), variáveis, arbitrários, extralingüísticos e sem relações estáveis entre si, dificultando a aplicação de um método rigorosamente científico de análise.

Cabe, sob esse pano de fundo, distinguir entre lexicografia e lexicologia. A primeira se reporta à técnica dos dicionários, cuja versão embrionária se encontra nos antigos glossários e anotações de pé de página dos antigos códices, passando, com o advento da imprensa, pelos primeiros dicionários e traduzindo-se, segundo a concepção hjelmsleviana,

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numa área do conhecimento, de caráter extralingüístico, que estudaria a substância do conteúdo conceitual. Já a lexicologia, plenamente lingüística e ligada à semântica, tem como objetivo o estudo científico do léxico, mediante a formalização e organização da substância conceitual.

No presente trabalho, pretendemos discorrer acerca do funcionamento de fenômenos lexicais na construção de textos publicitários. O objetivo central de tal investigação tem sido avaliar como recursos basicamente lexicais têm influído na construção de mitos de marketing, notadamente no mito do novo, quando tomamos o texto publicitário para o público feminino. Os exemplos fizeram parte do corpus de nossa pesquisa no âmbito do mestrado em Lingüística (COSTA, 2004a), tendo sido seus resultados já postos em discussão em alguns eventos (COSTA, 2004b; 2006; 2007).

1. Palavra. Lexema. Léxico

Em que pese o fato de o conceito de palavra ter sido considerado não-científico, é reconhecidamente acertado que em todo falante existe uma consciência intuitiva de uma unidade léxica: a palavra é para o homem uma realidade psíquica. Biderman (2003, p. 99) aponta que “na primeira etapa da aquisição do signo lingüístico, a fala infantil se caracteriza pelo que os psicolingüistas chamam de ‘fala holofrástica’. Nesses primórdios da consciência semiótica, sentenças completas da fala adulta são representadas por palavras isoladas”.

A palavra, por conseguinte, se traduz como a unidade psicolingüística primordial, a primeira a se articular na linguagem humana. Entretanto, não é possível definir a palavra de forma universal, isto é, de uma forma aplicável a toda e qualquer língua. “A afirmação mais geral que se pode fazer é que essa unidade psicolingüística se materializa, no discurso, com uma inegável individualidade” (BIDERMAN, 2001, p. 115), só sendo possível identificar a unidade léxica, delimitá-la e conceituá-la no interior de cada língua.

Há vários critérios para a delimitação e definição da palavra. Queremos crer, junto a Biderman (2001, p. 137-155), que três fatores são mais decisivos para tal tarefa: o fonológico, o morfossintático e o semântico.

Sob o critério fonológico, a palavra é uma seqüência fônica que constitui uma emissão completa, após a qual a pausa é possível. Qualquer que seja a velocidade da emissão oral, os falantes fazem pausas normalmente nos limites das palavras e não no seu interior.

Ainda no nível morfossintático, podemos ter outros parâmetros que devem ser considerados quando pretendemos identificar e delimitar as unidades léxicas (BIDERMAN, 2001, p. 147-9; POLGUÈRE, 2001, p. 27-8): (a) um deles é o princípio de coesão interna da palavra, pelo fato de esta tender a ser internamente estável (em termos da ordem dos morfemas componentes), mas posicionalmente móvel (permutável com outras palavras na mesma sentença); (b) outro indicador formal é o princípio da permutação, relacionado ao grau de liberdade de colocação das palavras na oração.

A par disso, a definição e delimitação da unidade léxica não podem prescindir do critério semântico: se a fonologia nos ajuda a reconhecer segmentos coesos fonicamente e se a gramática nos leva a identificar as formas lingüísticas manifestas nesses segmentos, só a dimensão semântica nos fornece a chave decisiva para identificar a unidade léxica expressa no discurso.

Costuma-se designar lexema como a unidade léxica abstrata em língua. Os lexemas

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se manifestam, no discurso, através de formas ora fixas, ora variáveis, sendo esta última mais freqüente nas línguas flexivas e aglutinantes como o português. Às formas que aparecem no discurso, damos o nome de lexia. Desta, pode-se distinguir entre lexia simples – as que têm um único lexema ou base de sentido – de lexia complexa – as que se compõem de mais de um lexema.

Contrasta-se, por seu lado, o termo léxico, acervo dos lexemas de uma língua, a vocabulário, conjunto das lexias registradas na obra de um autor, por exemplo. Masip (2003, p. 51) fala-nos ainda de densidade lógica e densidade léxica: do ponto de vista lógico, um texto é denso quando contém muitas idéias substanciais, isto é, muitos substantivos, que são o cerne dos conceitos. Já do ponto de vista lexical, a densidade de um texto é medida pela quantidade de palavras léxicas (substantivos, adjetivos, verbos, advérbios e interjeições) detectadas.

Com efeito, as assim chamadas palavras plenas, como lembra Carvalho (1998, p. 58), funcionam como elementos fundamentais no texto publicitário, porquanto sejam densas de significado e escolhidas com bastante precisão pela própria condição do texto de caracterizar-se pela brevidade espácio-temporal.

Leech (apud BIDERMAN, 2001, p.189) propôs uma tipificação dos significados de uma palavra, como segue: (a) significado conceptual – conteúdo lógico, cognitivo ou denotativo; (b) significado conotativo – o que é comunicado em razão daquilo a que a língua se refere; (c) significado estilístico – o que é comunicado sobre as circunstâncias sociais dos usos lingüísticos; (d) significado afetivo – o que é comunicado dos sentimentos e atitudes do locutor/escritor; (e) significado refletido – o que é comunicado através de associação com outro sentido da mesma expressão; (f) significado posicional – o que é comunicado através de associação de palavras que tendem a ocorrer no ambiente da palavra; (g) significação temática – o que é comunicado por meio da forma pela qual a mensagem é organizada em termos de ordem e ênfase.

2. Campos Semânticos

Toda palavra, lembra Biderman (2001, p. 193), abrange uma rede de significações, às vezes muito extensa. Aos vocábulos que integram essa rede damos o nome de campo semântico dessa palavra. Tal idéia ganhou bastante importância nos estudos lingüísticos, especialmente no campo da semântica, principalmente por evidenciar as noções de limite, oposição, traço mínimo de significação, o que constituiria o quadro de uma nova semântica estrutural. Como nos apresenta Masip (2003, p. 57),

o campo semântico apresenta-se como uma organização de significados – dinamicamente estruturada –, cada um dos quais se desenvolve no âmbito permitido pelos demais: atinge uma forma individual ou partilhada, ou é simplesmente um traço de significação.

Segundo ressalta Biderman (2001, p. 194), “na maioria das vezes, os vocábulos componentes de um campo semântico registram numerosas nuanças de sentido, compondo um amplo leque de significados afins”. Isto caracteriza os microssistemas léxicos e respectivas estruturas semânticas. Dentro do campo semântico da expressão de novidade

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que investigamos, pudemos abordar microssistemas dos itens lexicais novo, exclusivo, chegar, inovação, revolucionário e primeiro.

Quanto aos adjetivos, no corpus analisado, além de uma mera função valorativa, se prestam a situar os fatos em um contexto especial exprimindo imaginários sociais, instanciados no discurso da novidade. Revelou-se como bastante recorrente a forma novo e correspondentes (nova/as/os), que, não raro, ocorrem simultaneamente em um mesmo texto ou em consonância com outras lexias e processos dos investigados na pesquisa. No texto [1], podemos constatar o emprego das formas novo, nova e novos praticamente numa mesma linha, o que vem tecer uma atmosfera de novidade para a mensagem publicitária que põe a mulher como escopo: “Uma nova coleção para um novo verão. Pra você mostrar nos novos dias...” Um emprego insistente e basicamente rítmico de tais lexias não foi caso raro em nosso corpus. O emprego da forma novo na publicidade, aliás, já tem sido objeto de investigação lingüística. Carvalho (1996), mencionando pesquisa de Bolt acerca da publicidade televisiva norte-americana, retrata os vinte adjetivos mais freqüentes, dentre os quais estão fine [bem], wonderful [maravilhoso], good [bom], new [novo]. Embora este último não seja atestado em pesquisa semelhante para o contexto brasileiro (CARVALHO, 1996, p. 39), assume papel de destaque na pesquisa de Sells & Gonzalez (2003), quando examinam as palavras e frases mais freqüentes na publicidade. Nesta abordagem, baseada na pesquisa de G. Leech, os adjetivos new [novo] e fresh [novo = o mais recente] surgem em uma posição freqüentativa de ponta – 1.ª e 4.ª respectivamente.

Texto [1] MAQUIAGEM NATURA: ARTE É EXPRESSAR QUEM É VOCÊColeção Alto-Verão 2002.Sombra em creme com efeito aveludado e em cores que se complementam. Batom iluminador que realçam o brilho natural de seus lábios. Emulsão com textura suave que traz pontos de luz ao seu rosto e colo. Uma nova coleção para um novo verão. Para você mostrar nos novos dias e noites várias nuances da beleza que só você tem.Natura. Bem estar bem.(Cláudia, fev. 2002, p. 11.)

Gomes de Matos (1996, p. 98), chegando a resultados semelhantes aos de Sells e Gonzalez (2003), atesta o fato de o léxico da publicidade ser composto de palavras de valor positivo, dentre as quais figuram palavras do mesmo campo de novo.

Já Vestergaard e Schrøder (1988, p. 57) examinam tal processo no quadro dos elementos constitutivos, reportando-se ao fato de que , nos títulos especialmente, há um uso freqüente de palavras hiperbólicas, dentre as quais se encontram now [agora], new [novo], improved [muito melhor], unique [único] best/biggest [o maior/melhor].

A par disso, digna de nota foi a constatação em nosso corpus do uso da forma novo com valor substantivo, como acepção de “o mais recente” , prevista na rede que formou seu microssistema léxico. No texto [2], temos um exemplo do uso do item em tal acepção no enunciado “diga Sym para o novo.” É de se notar, nesse caso, que a forma substantivada serve para instanciar, a par de outras formas que examinaremos adiante, estádios anterior e atual/posterior, dando real destaque a este último, na configuração da

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mística da novidade. Ainda no campo dos adjetivos, destacamos o item revolucionário, que vem marcar a idéia do novo quando representa aquilo que propaga idéias novas, que pretende uma nova ordem de coisas, ou mesmo que imprime novos processos, tendo determinada correspondência com o substantivo inovação e seus correlatos inovar e inovador, todos atestados em nossa pesquisa. O emprego da lexia revolucionário, tal como observada no texto [2], vem confirmar que é comum seu uso aliado ao de outras formas lexicais e processos. Neste texto especificamente, temos o emprego de um processo de formação de palavras, o da composição (“revolucionário sistema de hidrossucção...”).

Texto [2]:Limpeza de pele Anna Pegova. Você não vê a marca, mas reconhece de cara.Revolucionário sistema de hidrossucção que limpa profundamente os poros. Em 1h20 uma limpeza de pele completa sem marcas e sem dor. Para homens, mulheres e adolescentes.ANNA PEGOVA/PARISSua pele levada a sério.(Cláudia, maio 2002, p. 123)

Em [3], temos um exemplo do emprego do item inovação, também muito recorrente no corpus, dentro da proposta de tessitura do campo de novidade. Não é gratuito observar seu uso de modo aliado ao da forma verbal chegar, que examinaremos mais abaixo, bem como ao do item novo, já abordado.

Texto [3]: No tratamento da menopausa não existe mais espaço para o malmequer. Chegou ao Brasil um novo Tratamento com 50% menos hormônios.Nós sabemos o quanto é importante o seu bem-estar. E com isso não se brinca. Conheça a maior inovação no Tratamento da Menopausa já utilizada nos Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha e outros países do mundo: menor dose com muito mais segurança para você.Consulte o seu ginecologista.Somente o médico poderá orientá-la sobre a necessidade do uso da Reposição Hormonal.(Cláudia, maio 2002, p. 36-7)

No corpus, foi também relevante o emprego da forma exclusivo. No texto [14 a-b], podemos observar tal emprego. É notável sua relação com a noção de proposta única de venda, revelando-se a extensão de incompatibilidade com qualquer outra coisa previamente existente e, portanto, especial, restrito, articulado a um estádio atual.

Texto [4a]Exclusivo Ciclo Tira Manchas Brastemp com tecnologia Catalyst.Tem mancha que desaparece só de medo.BRASTEMPA melhor lavadora do mercado.Exclusivo Ciclo Tira Manchas.

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Texto [4b]Eclusivo cesto em inox. Nem tudo o que é bom dura pouco.BRASTEMPA melhor lavadora do mercado.Única com cesto em inox.(Cláudia, dez. 2002, p. 53;55;57)

Quanto aos verbos, que têm primordialmente uma função eminentemente suasória (CARVALHO, 1998, p. 60), em nosso corpus incorporou-se pela forma “chegar” uma função de marcador dos valores sociais em questão, em especial o da atmosfera do novo, por relacionar um estado atual em detrimento de um anterior, descartável, função para a qual co-ocorre, na maioria das vezes, o emprego de outras formas como os adjetivos novo/a/os/as (nesse caso, de um modo muito interligado) e a forma situativa temporal agora. Textos como [15] (“Chegou a nova sandália da Marisol...”), e [16] (“A qualidade das roupas Marisol agora tem um para perfeito: chegaram os calçados Marisol”) são reveladores dessa constatação.

Texto [5]No verão, todo mundo quer pegar uma cor.Chegou a nova sandália da Marisol. Leve, confortável e colorida, segue as novas tendências da estação. Aproveite o sol. Escola um cor e pegue a sua.Marisol.(Cláudia, dez. 2002, p. 94)

Texto [6]A qualidade das roupas Marisol agora tem um para perfeito.Chegaram os calçados Marisol.MarisolUm amor de criança.(Cláudia, maio, p. 222-3)

3. Considerações Finais

Os elementos lexicais, a despeito do fato de seu estudo ter sido relegado durante muito tempo em segundo plano, têm um potencial considerável na construção da tessitura textual, quando tomamos o fato de constituem uma classe ilimitada e aberta, possuindo as propriedades de designação e denominação.

Tal acervo léxico se apresenta com fundamental na construção do texto publicitário, a contar das chamadas palavras plenas, cuja densidade de significado funciona com precisão desde a escolha até sua característica de brevidade espácio-temporal.

Sob essa perspectiva, temos que toda palavra abrange uma rede de significações, os campos semânticos, isto é, uma organização dinamicamente estruturada de significados, cujos vocábulos registram numerosas nuanças de sentido, compondo um amplo leque de

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significados afins, para o que nos interessou aqui o campo vinculado à idéia do novo. Este aspecto foi localizado em textos especialmente voltados para o público

feminino, constituindo o que vimos chamar de mito de marketing, que, agregado, como revelou o conjunto de nossa pesquisa, a outros mitos correspondentes nesse contexto, o da musa e o da grande-mãe, o que põe o papel da mulher em nossa sociedade como ainda vinculado a um patamar secundário de inferioridade, vulgaridade, futilidade.

Referências

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UM DIAGNÓSTICO CRÍTICO DA APLICABILIDADE DE SISTEMAS LIVRES NO AMBIENTE EDUCACIONAL

Jean Carlos Arouche FreireEspecialista em Informática na Educação-PUC-MG

Especialista em Administração de Redes Linux-UFLA-MG

Resumo Atualmente, a inclusão digital vem se edificando como forma de melhorar a condição de vida social, econômica e cultural de uma determinada região ou comunidade. Dentro dessa perspectiva, a escola pode servir de agente para que instrumentos tecnológicos sejam utilizados na educação como via promissora de inclusão digital. Para isso, buscou-se fazer um diagnóstico crítico sobre a utilização do software livre, representado pelo sistema operacional GNU/Linux, no ambiente escolar. Focalizando os impactos causados no setor educacional, que podem refletir como meio facilitador para a inclusão digital através do ambiente escolar. Palavras- Chave: inclusão digital, software educativo, software livre

Abstract Nowadays, the digital inclusion has been building as a way of getting better the condition of social, economical and cultural life of a certain region or community. In this perspective, the school can serve as agent for technological instruments been used in the education as a promising way of digital inclusion. For that, it has got to do a critical diagnostics about the of the free software, represented by the GNU/Linux operational system, in the school environment. Focusing the impacts caused in the educational that can reflects as a facilitator sector for the digital inclusion through the school environment.Keywords: digital inclusion, educative software, free software

1 – Introdução

Diferente da realidade de alguns anos atrás, a comunicação humana vem se universalizando sobre uma forte influência das novas tecnologias. Com o advento do computador o mundo real vem se virtualizando, transformando profundamente as relações sociais que se constituiram durante séculos.

Neste cenário tecnológico, a inclusão digital vem se edificando como forma de melhorar a condição de vida social, econômica e cultural de uma determinada região ou comunidade.

Por sua vez, nos tempos da Internet e uma economia globalizada, a escola pode servir de agente para que instrumentos tecnológicos sejam utilizados na educação como ferramenta promissora no processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, isso vai depender das políticas aplicadas na implantação e manutenção de ambientes informatizados de educação nas instituições de ensino.

Nessa direção, a informática na educação pode ser fomentada como uma via promissora de inclusão digital, e o ensino-aprendizagem ser enriquecido com ferramentas tecnológicas, colaborando para uma pedagogia inovadora e essencial nos dias atuais.

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No contexto atual, essas ferramentas tecnológicas, tem no software livre1, recursos pedagógicos emergentes que propiciam condições animadoras para um projeto de inclusão digital através do ambiente escolar. Sendo assim, o processo de ensino-aprendizagem vinculado ao software livre, além de ser atualmente um diferencial em comparação a utilização de sistemas proprietários2 em ambientes informatizados de educação, transfigura como uma alternativa progressiva e libertária no cenário tecnológico mundial.

É Nessa direção, que este estudo, fruto de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se do método de análise e síntese das literaturas consultadas, busca fazer um diagnóstico crítico sobre a utilização do software livre no ambiente escolar. Tem como abordagem principal focalizar os impactos causados no setor educacional, que podem refletir positivamente como meio para consolidar uma educação mais comprometida com o coletivo social. 2 – A Realidade da era digital

O período histórico humano tem mostrado que o domínio de tecnologias é o ponto crucial para uma sociedade desenvolvida. Dificilmente encontra-se exemplos históricos de sociedades ricas ou com qualidade de vida avançada em países que não dominam ou são produtores das principais tecnologias de sua época (Silveira & Cassino, 2003).

Para o indivíduo corresponder a uma transformação imposta pelo quadro tecnológico mundial, torna-se necessário o domínio de seus recursos cada vez mais de forma profunda.

Nessa realidade, percebe-se claramente que a preparação de uma sociedade informatizada, está intimamente ligada a qualificação tecnológica de seu cidadão. No entanto, vários fatores tem servido como precauços limitadores dessa qualificação tecnológica. Dentres esses fatores destacam-se os problemas advindos da exclusão e inclusão digital.

Sobre este questão, Macan (2005), reforça que ainda busca-se uma idéia mais concisa para o conceito de exclusão digital. Mas sabe-se que uma definição mínima passa pelo acesso ao computador e aos conhecimentos básicos para utilizá-lo. Atualmente, começa a existir um consenso que amplia a noção de exclusão digital e a vincula ao acesso à rede mundial de computadores.

Isso fortalece a idéia de que é preciso estudos e programas que viabilizem um assentamento mais objetivo de inclusão digital. Entretanto, uma política pública não se resume ao papel desempenhado só pelo Estado. Sem dúvida alguma, ele deve destinar a maior parte dos recursos, mas a formulação, a execução e a avaliação necessariamente devem envolver as comunidades locais, os movimentos sociais, e as organizações não-

1 Segundo Silveira & Cassino (2003), software livre é um programa de computador com o código-fonte aberto, possibilitando que qualquer técnico possa estudá-lo, alterá-lo, adequá-lo às suas próprias necessidades e redistribuí-lo, sem restrições.

2 Conforme Cerdeira (2005), sistemas proprietários são aqueles que são distribuídos apenas para comercialização. Não é disponilizado o código-fonte, evitando-se que possa estudá-lo, alterá-lo e adaptá-lo às necessidades.

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governamentais (Silveira & Cassino, 2003).Para Rondelli (2005), uma alternativa para diminuir a distância entre a exclusão e

inclusão digital, é a incursão de ambientes informatizados na rede de ensino. Obviamente, a rede escolar precisa estar suprida de infra-estrutura e recursos humanos preparados para fazer uso pedagógico dessas tecnologias nas instituições educacionais.

Mesmo considerando a relevância da informática na educação nas instituições de ensino, é preciso evitar uma perspectiva reducionista do uso do computador na escola. Para isso, é essencial a superação do preconceito que ainda persiste em relação à máquina no auxílio a educação, e a elaboração de um rol das principais necessidades pedagógicas em sala de aula (Bezerra & Silva, 2001).

Conforme já mencionado, uma qualificação voltada para novas tecnologias se torna essencial em uma sociedade tecnológica. Entretanto, os mecanismos utilizados para alcançar este objetivo, apresentam resultados que precisam ser revistos e discutidos de forma que melhor utilize a disseminação e uso desses recursos.

Neste cenário, um exemplo de ação por parte do governo federal, foi o lançamento do Programa Nacional de Informática na Educação - PROINFO para as escolas públicas. O PROINFO é um projeto educacional que visa à introdução das novas tecnologias de informação e comunicação nas escolas públicas como ferramenta de apoio ao processo ensino-aprendizagem. Este programa deve ser desenvolvido em parceria com os governos estaduais e municipais.

Embora o PROINFO seja direcionado para inclusão digital através do ensino público, a realidade mostrou que existiam fatores a serem estudados com mais atenção para um aproveitamento mais objetivo desses recursos tecnológicos na educação.

Entre estes fatores, pode-se destacar: os sistemas proprietários que eram utilizados nos laboratórios de informática educativa das escolas públicas; bem como, o desinteresse e a utilização inadequada de ferramentas tecnológicas por educadores no processo de ensino-aprendizagem.

3 – O Software livre e o ensino público

Como mencionado anteriormente, o PROINFO é o programa que atualmente conduz a informática na educação nas escolas públicas. Para atender as escolas beneficiadas em matéria de software, Macan & Almeida (2005) coloca que esse programa procurou ter preocupação com a defasagem da tecnologia nos laboratórios de informática educativa das escolas.

Entretanto, alguns recursos tecnológicos que o PROINFO utilizou no seu projeto inicial de informatização das escolas públicas, não foram coerentes com seus principais objetivos. Como exemplo, o mesmo priorizou o uso do modelo proprietário nos laboratórios de informática educativa quando referenciou em seu texto “interface gráfica do tipo MS-Windows”. Isto se dá, principalmente, por ter argumentos técnicos que reforçam sua preferência por modelo proprietário, inclusive com a justificativa que tal escolha é que predomina no mercado de informática.

Para Macan & Almeida (2005), seria prático, ou mesmo factível, um programa de ensino de informática que se mantivesse constantemente atualizado em matéria de software com o que está em uso no mercado. Esse argumento pode ser verdadeiro, mas os custos de

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atualizações constantes inviabilizariam o PROINFO.Isso se deve ao fato de sistemas proprietários apresentarem certas restrições em

seus produtos. Uma dessas restrições, é a sua comercialização sem disponibilizar o código-fonte, evitando-se que se possa fazer estudos e modificações para aperfeiçoamento do sistema.

Outra restrição em relação a sistemas proprietários, é o número restrito de cópias que podem ser instaladas por máquina. É considerado pirataria3 o uso ilimitado de uma única cópia de programas proprietários, em diversos equipamentos. Esse mecanismo gera custos extras na execução do sistema em máquinas distintas.

Silveira & Cassino (2003), defendem que não é correto utilizar dinheiro público para formar e alfabetizar digitalmente os cidadãos em uma linguagem proprietária. Mesmo que as licenças de uso de um sistema operacional proprietário sejam doadas gratuitamente para os programas de inclusão digital. Na realidade, o Estado estaria pagando seus professores, monitores e instrutores para adestrar e treinar usuários para aquela empresa.

Para superar essas restrições com sistemas proprietários, Site do Linux (2005) coloca que, atualmente o PROINFO já apresenta sinais de mudanças estruturais sobre as limitações imposta pelos sistemas proprietários. Informando que o processo de migração começou com cinco mil computadores que foram fornecidos para as escolas públicas em diversas regiões do Brasil, com software livre instalado.

Apesar do PROINFO ter aderido ao software livre, a precursora dessa idéia foi a Rede Escolar Livre4 no estado do Rio Grande do Sul, difundindo uma nova visão tecnológica na educação pública.

A Rede Escolar Livre é uma amostragem inovadora e pioneira para ambientes informatizados de educação no ensino público. Esse fato deve-se principalmente pela preferência aos produtos e filosofia do software livre, lançando no Brasil um novo modelo de inclusão digital, através da educação pública.

É perceptível o motivo pelo qual o governo estadual do Rio Grande do Sul optou pelo software livre nos laboratórios de informática na rede oficial de ensino. Além do baixo custo comparado aos sistemas comerciais, traz uma maior flexibilidade e independência tecnológica em seu projeto de desenvolvimento.

Isso favorece um melhor ajuste tecnológico nos laboratórios de informática educativa das escolas. Dentre as vantagens dos sistemas livres, consiste a não limitação do uso de cópias por máquina. E também oferecer mecanismos computacionais que possibilitem pesquisas e avanços tecnológicos no aperfeiçoamento e atualização do sistema.

Essas vantagens são possíveis, uma vez que, o software livre defende à liberdade dos usuários executarem, copiarem, distribuírem, estudarem, modificarem e aperfeiçoarem o sistema, sem ter que pagar para isso. Precisamente, o software livre se refere a quatro tipos de liberdade apontadas por Norton & Griffith (2002):

•1ª) A liberdade de executar o programa, para qualquer finalidade;•2ª) A liberdade de estudar como o programa funciona, e adaptá-lo para as suas necessidades. Acesso ao código-fonte é um pré-requisito para esta liberdade;

3 Segundo Ortensi (2005), pirataria é copiar programa de computador, material audiovisual ou fonográfico, etc., sem autorização do autor ou sem respeito aos direitos de autoria e cópia, para fins de comercialização ilegal ou para uso pessoal.

4 Rede Escolar Livre: http://www.redeescolarlivre.rs.gov.br/index.htm.

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•3ª) A liberdade de redistribuir cópias de modo que você possa ajudar o seu próximo;4ª) A liberdade de melhorar o programa, e mostrar os seus aperfeiçoamentos para o público, de modo que toda a comunidade se beneficie.

Para garantir essa liberdade, a FSF - Free Software Foundation5 criou a licença GNU - General Public License (Licença Pública Geral). Sendo que uma das principais funções dessa licença, é justamente evitar que alguém se aproveite de patentear sistemas livres e transformá-los em proprietários.

As categorias de liberdade do software livre, recaem de modo favorável para uma informática educativa mais flexível, contribuindo para que a escola possa desempenhar um papel mais significativo diante da atual conjuntura computacional mundial.

Raymound, apud Silveira & Cassino (2003) analisando o diferencial do software livre, comparou dois estilos completamente distintos de desenvolvimento de sistemas. Um modelo de programação comercial denominado catedral e o modelo de desenvolvimento do código aberto denominado de bazar.

No modelo bazar, qualquer um com acesso a Internet e habilidades de programação pode integrar-se no processo de desenvolvimento de um software livre. Em que se caracterizaria pela atualização e liberação frequente na Internet do sistema produzido. Este produto é testado por um número maior de pessoas, que também teriam acesso ao seu código-fonte e poderiam sugerir alterações. O software seria quase que naturalmente mais evoluído.

Já no modelo catedral, os produtos só podem ser liberados após inúmeros testes e superação de todos os bugs. Os usuários não tem acesso ao código-fonte e não participam do constante aprimoramento do programa.

Com o modelo bazar de programação, contextualiza-se um novo quadro tecnológico para as escolas públicas, pelo qual a união do software livre com a educação, resulta em um objeto promissor no processo de ensino-aprendizagem.

4 – O GNU/Linux como sistema operacional nos laboratórios de informática educativa das escolas públicas

O sistema operacional GNU/Linux, é uma representação expressiva da filosofia do software livre. Nele estão reunidos os esforços de uma comunidade de programadores voluntários, que durante muitos anos dedicaram-se na construção desse sistema.

Para Lozano (2002), o sistema operacional GNU/Linux é chamado erroneamente de apenas “Linux”. Realmente existe o termo, entretanto só se refere apenas ao kernel (núcleo) do sistema desenvolvido por Linus Torvalds. Porém, na formação da base do sistema operacional foram também acoplados os programas do projeto GNU, devido a isto, o termo mais apropriado para esse sistema operacional é GNU/Linux.

No contexto educacional, o sistema operacional GNU/Linux pode servir de agente para ampliar a possibilidade de expressão, informação e comunicação, de construção de conhecimento, troca de saberes e de interação relacional nas escolas. Isso se deve ao fato do sistema operacional GNU/Linux, possuir um projeto computacional direcionado para

5 Freee Software Foundation: http://www.fsf.org

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usar livremente o conhecimento tecnológico de forma solidária e mais distribuído. Esses modis operandi precisa ser cultivado nos ambientes educacionais, incentivando

a disponibilidade do conhecimento entre os alunos. Isso pode propiciar não somente uma alternativa viável na construção de uma sociedade tecnologicamente preparada, como também possibilitar que os alunos utilizem essa forma de lidar com o conhecimento para o seu aprendizado.

Nesse conjunto de liberdade proporcionado com sistemas livres, o compartilhamento de informações e a descentralização no desenvolvimento de sistemas, podem surtir resultados promissores na educação de um cidadão de uma nação. Isso é reforçado por Aguiar (2004):

Aqui surge uma nova ordem. Não estou mais falando de detalhes técnicos de como o GNU/Linux é melhor; não estou apenas falando de que vantagens econômicas eu terei, não estou falando apenas de uma postura comprometida com a responsabilidade social e inclusão digital; estou falando sim de uma possibilidade de prática pedagógica fundamentada e amparada em um discurso epistemológico legítimo. Um olhar dentro do viés pedagógico de um mundo que até então eram comandos, configurações, instalações, etc, etc. É o GNU/Linux como caminho para qualificar e possibilitar uma nova escola, um novo aluno, um novo homem.

Aguiar além de mencionar os benefícios técnicos, sociais e econômicos do software livre, através do sistema operacional GNU/Linux, destaca que suas vantagens não pode ser visto somente a critérios técnicos, mas extendê-lo também a uma perspectiva pedagógica.

Cabe destacar que além desse sistema operacional GNU/Linux encontrar disponibilizado na Web, seus usuários tem a possibilidade de buscar acompanhar e participar de um movimento que acontece simultaneamente. Esse movimento segundo Simão Neto (2002), seria a aplicação dos programas com fins educativos nas escolas. Pois apresentam recursos computacionais que auxiliam a construção do conhecimento do aluno.

Sendo assim, talvez alguns dos empecilhos para uma maior inserção do sistema operacional GNU/Linux em ambientes informatizados de educação, seja de cunho cultural e político. Dentre esses empecilhos podem ser referenciado aqueles oriundos de costumes, hábitos e interesses comercais de pessoas atreladas a sistemas proprietários, no qual alastram-se em forma de monopólios.

5 – Conclusão

Atualmente, o mundo vem passando por um processo tecnológico muito acelerado. Isso se deve muito ao fato da influência das novas tecnologias da comunicação e da informação nas relações sociais, econômicas e culturais de uma sociedade.

Diante desse fenômeno tecnológico, um cidadão da atual sociedade de informação, precisa ser preparado pelo menos com uma prévia noção de informática em sua qualificação profissional, ou então, estará propício de ficar desamparado profissionalmente.

A escola como um organismo formador da célula social, pode servir como via

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promissora para favorecer um melhor preparo tecnológico do cidadão. Porém, precisa oferecer recursos estruturais e humanos para tal perspectiva.

Infelizmente, o modelo de informática na educação que foi introduzido nas escolas públicas com sistemas proprietários, tem provado que além de comprometer o orçamento do Estado, também deixa o processo de inclusão digital irrigado de filosofias adversas ao desenvolvimento do progresso científico e tecnológico.

Nesse sentido, oportunizar um ambiente informatizado de educação, rico em recursos pedagógicos, implica proporcionar instrumentos de grande valia na formação tecnológica dos alunos na escola pública.

Para esse contexto, a adoção do sistema operacional GNU/Linux, junto a seus programas com fins educativos, abre um universo emergente para que o cidadão tenha oportunidade competir na atual conjuntura de exigência por qualificação profissional, imposta pela sociedade tecnológica.

A adesão a sistemas livres, favorece a diversidade e um número mais amplo de colaboradores no desenvolvimento de programas com fins educativos. Isso pode ampliar discussões para produção de sistemas educativos com melhor qualidade didática.

Sendo assim, na tentativa de melhor explanar os impactos positivos na utilização de sistemas livres no ambiente escolar, a presente pesquisa, buscou apreciar de forma crítica, alguns aspectos que podem ser importantes para esse contexto. Como programas de informatização das escolas, e a relevância pedagógica utilizando recursos computacionais.

Esses aspectos pesquisados, tem como intuito de servirem como um ponto de reflexão para um melhor aproveitamento dos recursos materiais e humanos do Estado na rede oficial de ensino. De forma que as novas tecnologias, possam favorecer a construção do conhecimento do aluno quando bem aplicadas na educação. Onde poderá ser alicerçado, com a utilização do sistema operacional GNU/Linux nas instituições de ensino.

Nessa direção, o sistema operacional GNU/Linux pode constitui-se como meio facilitador para a inclusão digital através do ambiente escolar, e também no desenvolvimento de sistemas educativos. Abrindo perspectivas elevem as análises e discussões na construção de programas com fins educativos de forma colaborativa e mais distribuída. Refletindo em objetividade didática para essas ferramentas tecnológicas

6 – Referências bibliográficas

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A NARRATIVA NA POÉTICA DE HEMINGWAY: EM BUSCA DA SIMBOLOGIA

José Tupinambá de AndradeMestrando do CMLA/UECE

Docente da Universidade Federal do Ceará - UFC

Resumo: Este trabalho é resultante da pesquisa, à luz da Semiótica, sobre a utilização de animais como símbolo para expressar o psicológico das personagens nos contos de Ernest Hemingway. Para tanto, o trabalho conduz a uma breve exposição da Semiótica de Roland Barthes que em seus processos de análise de textos propõe a divisão do texto em Lexias e a criação de um Inventário de Código. Por fim, com base na análise do conto Cat in the Rain, através da aplicação do inventário proposto, pretende-se mostrar a incidência de símbolos no referido conto, como constatação de que para tornar-se um símbolo, a imagem ou a metáfora deve apresentar reiteração persistente e/ou valorização universal.Palavras-chave: Semiótica; Símbolo; Contos

Abstract: This essay is a result of a research, in view of Semiotics, about the use of animals as symbols to express the characters’ state of mind in Ernest Hemingway’s short stories. In this way, the presentation leads to a brief explanation on Roland Barthes’s Semiotics that in its text analyzing processes proposes the division of the text into Lexias and the creation of an Inventory of Codes. Finally, based on the analyses of the short story Cat in the Rain, applying the proposed inventory, we intend to show the incidency of symbols in the short story mentioned above, proving that to become a symbol, an image or a metaphor must present persistent reiteration or universal valorization.Key words: Semiology; Symbols; Short Stories

Introdução

Tendo utilizado a simbologia como ferramenta para representar, através dos elementos e personagens de suas obras, sua visão de mundo, Ernest Hemingway cria através de seu linguajar simples e real e de um ponto de vista de um narrador omisso de julgamento, um novo estilo de comunicação ao mesmo tempo em que desperta a curiosidade e a vontade de estabelecer uma ligação entre vida e arte, realidade e ficção.

Pretendemos apresentar a pesquisa e o consequente estudo, à luz da Semiótica, sobre a utilização de animais como símbolos para expressar o psicológico das personagens nas obras de Hemingway. Podemos notar que ao lançar mão de tal artifício, ele criou um novo estilo, um estilo lacônico. Tanto que em determinado momento afirmou: “A majestade do movimento de um iceberg é devida a que apenas um oitavo de sua altura mostra-se fora da água.” 6 Em um processo de comunicação se faz necessário mostrar apenas a ponta do iceberg, o restante fica submerso, possibilitando diferentes leituras.

6 Ernest HEMINGWAY apud Marcelo W. PAIVA, Hemingway Por Ele Mesmo, 1990, p. 44.

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A Semiótica de Roland Barthes: análises textuais

A Teoria Geral dos Signos, ciência que sistematiza os signos em suas aplicações mais amplas, foi outrora considerada, indistintamente, Semiologia ou Semiótica. De fato Semiótica e Semiologia estão interligadas, contudo, de acordo com alguns estudiosos, há uma diferença que as separa. A Semiótica está em um nível mais elevado, no sentido que é mais abrangente. Engloba e sistematiza diversos sistemas, desde que se utilize de signos. Já a Semiologia está mais próxima de seu conhecido subsistema: a Lingüística. Porém, a Lingüística não vai além da sistematização da fala, da organização de signos, enquanto palavras, na formação de um texto. E em um texto a combinação de signos nos permite inúmeras leituras, ou melhor, nos permite uma “leitura horizontal” e várias “leituras transversais”.

Com base na pluralidade de significação de um texto, Roland Barthes propõe que a análise da narrativa seja realizada tomando-se dois caminhos distintos. O primeiro é através da ANÁLISE ESTRUTURAL, onde o objeto de estudo é a estrutura do texto e tem como base os níveis da gramática estrutural. Essa análise se subdivide em três níveis: Nível das Funções, Nível das Ações e Nível da Narração. O Nível das Funções consiste no levantamento das Funções, das Catálises, dos Índices e dos Informes existentes; no Nível das Ações são estudados os personagens. A “Análise Estrutural” não os concebe como um ser, uma pessoa, mas como agentes participantes da ação; e a análise no Nível da Narração consiste em procurar descrever o código através do qual um narrador se comunica com um narratário, já que a narrativa pressupões uma comunicação entre ambos.

O segundo caminho sugerido por Barthes é o da ANÁLISE TEXTUAL. Esse tipo de análise não se fundamenta na desconstrução do texto, mas na sua decomposição em partes para que se possa alcançar possibilidades diferentes de leitura de uma narrativa. Um texto pode gerar inúmeras leituras, apresentar uma pluralidade de significações. Dessa forma a “Análise Textual” não se restringe a uma única leitura da narrativa, mas proporciona a abertura do texto a uma pluralidade de interpretações através da diversidade de sentido de seus signos.

Essa diversidade de interpretação, oriunda das variadas possibilidades de leitura do signo, também conhecida como “leitura transversal”, ou seja, a ligação de um texto base com outros textos, com outros “momentos sociais”, resulta no que chamamos de intertextualidade. Tal processo ocorre quando cada leitor traz para o texto original seus conhecimentos prévios, seus outros textos, permitindo uma pluralidade de leituras e interpretações.

Ao se estudar a estruturação de um texto, procedendo à “Análise Textual” do mesmo, segundo R. Barthes, faz-se necessário o desmembramento do referido texto em Lexias. Conforme Orlando Pires Lexias são:

“... unidades de leitura, constituídas por segmentos contíguos, de pequena extensão (um trecho de frase, uma frase, pequeno grupo de frases – podendo, em alguns casos, ser representada por uma palavra), delimitados de livre arbítrio pelo analista, tendo em vista o levantamento dos códigos, que permitirão diferentes sentidos ao texto.” 7

Portanto, para realizarmos essa “Análise Textual”, devemos inicialmente dividir o

7 Orlando PIRES, Manual de Teoria e Técnica Literária, 1985., p.168.

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texto em lexias (incluindo o título do texto), em seguida devemos proceder ao levantamento das conotações das lexias e posteriormente organizar o inventário dos códigos. Esse último passo pode ser de criação do próprio analista da narrativa. Roland Barthes elaborou sua própria lista de códigos:

Inventário de Códigos conforme Roland Barthes 8

•Código Cultural (ou Referente) – a voz do Saber (saber estereotipado e convencional):oCódigo Científico (experiências ou conceitos da ciência)oCódigo Retórico (formas de narrativa, lírica, oratória, drama etc.)oCódigo Cronológico (referentes ao conjunto temporal)oCódigo sócio-histórico (a respeito de acontecimentos e personalidades)•Código Hermenêutico (ou Enigmático - a voz da Verdade (enigma da narrativa)•Código Sêmico – a voz da Caracterização (traços característicos de personagens, locais etc.)•Código Simbólico – a voz do Ser (linguagem cujo valor conotativo não é nitidamente percebido numa leitura superficial)•Código das Ações – a voz do Fazer (organização que sustenta a animação da intriga; o que vem depois, causado por temporalidade e causalidade)•Código da Comunicação (relacionamentos entre narrador/narratário)

Neste trabalho estaremos principalmente interessados em observar o aspecto simbólico, em especial no que tange à simbologia dos animais para expressar o psicológico das personagens. Para tanto definiremos como código simbólico somente as lexias que sugiram esta simbologia, apesar da existência de uma vasta variedade de outros símbolos que no momento não nos interessa.

Análise Textual de “Cat in the rain” à luz do método de Barthes

9[CAT IN THE RAIN]10[There were only two Americans stopping at the hotel. They did not know any of

the people they passed on the stairs on their way to and from their room. Their room was on the second floor facing the sea. It also faced the public garden and the war monument. There were big palms and green benches in the public garden. In the good weather there was always an artist with his easel. Artists liked the way the palms grew and the bright colours of the hotels facing the gardens and the sea.] 11[Italians came from a long way off to look up at the war monument. It was made of bronze and glistened in the rain]. 12[It was raining. The rain dropped from the palm trees. Water stood in pools on the gravel paths. The sea broke in a long line in the rain and slipped back down the beach to come up and break again in a long line in the rain. The motor cars were gone from the square by the war monument. Across the square in the doorway of the café a waiter stood looking out at the empty square.]

8 ibidem, p. 169.9 CÓDIGO ENIGMÁTICO N.º2 (Qual a importância de um gato na chuva?)10 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Descrição do local)11 CÓDIGO CULTURAL Nº.1 (SÓCIO-HISTÓRICO) (Identificação do período pós-guerra)12 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Descrição do cenário)

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13[The American wife stood at the window looking out.] 14[Outside right under their window a cat was crouched under one of the dripping green tables.] 15[The cat was trying to make herself so compact that she would not be dripped on.] 16[“I’m going down and get that kitty”, the American wife said.

“I’ll do it,” her husband offered from the bed.“No, I’ll get it.] 17[The poor kitty out trying to keep dry under a table.”]18[The husband went on reading, lying propped up with the two pillows at the foot

of the bed.]19[“Don’t get wet,” he said.]20[The wife went downstairs and at the hotel owner stood up and bowed to her as

she passes the office.] 21[His desk was at the far end of the office. He was an old man and very tall.]

22[“Il piove,” the wife said. She liked the hotel-keeper.“Si, si Signora, brutto tempo. It is very bad weather [.”]23[He stood behind his desk in the far end of the dim room. The wife liked him.

She liked the deadly serious way he received any complaints. She liked his dignity. She liked the way he wanted to serve her. She liked the way he felt about being a hotel-keeper. She liked his old, heavy face and big hands.]

24[Liking him she opened the door and looked out.] 25[It was raining harder. A man in a rubber cape was crossing the empty square to the café. The cat would be around to the right.] 26[Perhaps she could go along under the leaves. As she stood in the doorway an umbrella opened behind her. It was the maid who looked after their room.]

27[“You must not get wet,” she smiled, speaking Italian. Of course, the hotel-keeper had sent her.]

28[With the maid holding the umbrella over her, she walked along the gravel path until she was under their window.] 29[The table was there, washed bright green in the rain,] 30[but the cat was gone.] 31[She was suddenly disappointed. The maid looked up at her.]

32[“Há perduto qualque cosa, Signora?“There was a cat,” said the American girl.]

13 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº.5 (Descrição da não-ação)14 CÓDIGO ENIGMÁTICO N.º2 (Porque o gato é importante?)15 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº.4 (O gato tenta tornar-se menor)16 CÓDIGO CULTURAL Nº1(RETÓRICO)(Diálogo)/CÓDIGO SIMBÓLICO N.º4 (Identificação com a gata)17 CÓDIGO SIMBÓLICO N.º4 (tratamento carinhoso e identificação com a gata)18 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº.5 (Ações do marido)19 CÓDIGO CULTURAL Nº.1 (RETÓRICO) (O marido adverte a esposa)20 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº.5 (O encontro entre a garota e o gerente)21 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Descrição do gerente e local de trabalho)22 CÓDIGO CULTURAL Nº.1(RETÓRICO)(Diálogo)/CÓDIGO SÊMICO N.º3(Personalidade da garota)23 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Sentimentos da garrota)24 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota observa)25 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Deswcrição da praça)26 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota decide sair e é protegida)27 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (Comunicação entre a empregada e a garota)28 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota sai do hotel)29 CÓDIGO SÊMICO N.º3 (Descrição: a mesa continuava lá) 30 CÓDIGO ENIGMÁTICO N.º2 (Para onde havia ido o gato?)31 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota desapontada)32 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO)/(SÓCIO-HISTÓRICO) (Diálogo em italiano)

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33[“A cat?”“Si, Il gatto,”“A cat?” the maid laughed. “A cat in the rain?”“Yes”, she said, “under the table.” Then, “Oh, I wanted it so much, I wanted a

kitty.”]34[When she talked English the maid’s face tightened.]35[“Come, Signora,” she said, “We must get back inside. You will be wet.”“I suppose so,” said the American girl.]36[They went back along the gravel path and passed in the door. The maid stayed

outside to close the umbrella. As the American girl passed the office, the padrone bowed from his desk.] 37[Something felt very small and tight inside the girl. The padrone made her feel very small and at the same time really important. She had a momentary felling of being of supreme importance.] 38[She went on up the stairs. She opened the door of the room. George was on the bed, reading.]

39[“Did you get the cat?” he asked, putting the book down.“It was gone.”Wonder where it went to,” he said, resting his eyes from reading.]40[She sat down on the bed.]41[“I wanted it so much,” she said. “I don’t know why I wanted it so much. I

wanted that poor kitty. It isn’t any fun to be a poor kitty out in the rain.”]42[George was reading again.She went over and sat in front of the mirror of the dressing table looking at herself

with the hand glass. She studied her profile, first one side and then the other. Then she studied the back of her head and her neck.]

43[“Don’t you think it would be a good idea if I let my hair grow out?” she asked, looking at her profile again.]

44[George looked up and saw the back of her neck, clipped close like a boy’s.]45[“I like it the way it is.”“I get so tired of it,” she said.] 46[“I get so tired of looking like a boy.”] 47[George shifted his position in the bed. He hadn’t looked away from her since she

started to speak.]48[“You look pretty darn nice,” he said.]

33 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO)(Diálogo)/CÓDIGO SIMBÓLICO Nº.4 (identificação)34 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A empregada reage ao inglês)35 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (Proteção enviada pelo gerente)36 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (As duas caminham. O gerente cumprimenta)37 CÓDIGO SIMBÓLICO N.º4 (O gerente a faz sentir-se pequena e protegida)38 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (Retorno ao quarto)39 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO)(Diálogo)40 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota senta na cama)41 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (A garota deseja e compara-se com a “gatinha”)42 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (A garota se examina enquanto George lê)43 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (Diálogo)44 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5/CÓDIGO SIMBÓLICO Nº.4 (Desprotegida como um garoto)45 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (Ele gosta do cabelo, ela não)46 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (A garota está cansada de ser tratada como uma criança)47 CÓDIGO DAS AÇÕES N.º5 (George muda de posição)48 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (Ele acha a garota bonita)

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49[She laid the mirror down on the dresser and went over to the window and looked out. It was getting dark.]

50[“I want to pull my hair back a tight and smooth and make a big knot at the back that I can feel”, she said “I want to have a kitty to sit on my lap and purr when I stroke her.”]

51[“Yeah” George said from the bed.]52[“And I want to eat at a table with my own silver and I want candles. And I want it

to be spring and I want to brush my hair out in front of a mirror and I want a kitty and I want some new clothes.]

53[“Oh, shut up and get something to read,” George said.] 54[He was reading again.]55[His wife was looking out of the window. It was quite dark now and still raining in

the palm trees.“Anyway, I want a cat,” she said. “I want a cat. I want a cat now. If I can’t have long

hair or any fun, I can have a cat.”]56[George was not listening. He was reading his book. His wife looked out of the

window where the light had come on in the square.Someone knocked at the door.]57[“Avanti,” George said. He looked up from his book.]58[In the doorway stood the maid. She held a big tortoise-shell cat pressed tight

against her and swung down against her body.“Excuse me,” she said, “the padrone asked me to bring this for the Signora.”]

Comentário do aspecto simbólico

No conto “Gato na Chuva” (Cat in The Rain), o animal utilizado como principal símbolo da história é tão importante para a compreensão da história que faz parte do próprio título do conto, ou seja, o título já nos dá uma idéia do que se passa ao mesmo tempo em que nos leva a questionar o significado de um gato na chuva [lexia n.º1]. O que “um gato na chuva” realmente pretende comunicar é o que será desvendado ao lermos o conto em evidência [lexia n.º25].

O gato que se encontra na chuva é o símbolo do estado emocional da personagem principal, a garota americana. Quando o animal é observado pela primeira vez comprimindo-se em baixo de uma mesa verde na chuva [lexia n.º7], o animal é tratado como uma gata, “ela”, apesar da proximidade não permitir à garota americana determinar com precisão o sexo do animal. Isto nos leva a crer, pois, que se trata de uma identificação entre a gata e a garota americana, a única figura feminina mencionada até este ponto da estória [lexia n.º9].49 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (Ela para e observa)50 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (Ela necessita de algo concreto para amar: uma criança?)51 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (Ele concorda sem dar atenção)52 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (A garota deseja realizar seus sonhos)53 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO) (George é rude)54 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (Ele permanece lendo)55 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (A natureza chora, ela deseja a gata)56 CÓDIGO DAS AÇÕES Nº. 5 (Ele continua lendo enquanto a garota observa a noite cair)57 CÓDIGO CULTURAL Nº. 1 (RETÓRICO)/(SÓCIO-HISTÓRICO) (A empregada entra)(Ele fala em italiano) 58 CÓDIGO SIMBÓLICO Nº. 4 (A gata: símbolo da realização dos desejos da garota)

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A garota americana sai do quarto do hotel em defesa da pequena gata, provavelmente por sentir-se tão pequena quanto a gata, sem proteção e sem o carinho desejado. Por várias vezes o marido da garota americana, George, assim como a empregada do hotel, a mandado do gerente, dizem insistentemente que a garota não deve se molhar [lexia n.º27]. Molhar-se é, contudo, menos importante do que perder a gata para a garota americana, pois há uma empatia entre ambas, a garota e a gata. A garota americana sente na pele o descaso do marido, portanto já sabe que não é nada interessante permanecer desprotegida na chuva, assim como ela é desprezada pelo marido [lexia n.º33].

A falta de atenção do marido, George, deixa bem claro no decorrer de toda a estória que a garota americana se sente encurralada pelo descaso do marido assim como a gata está acuada, tentando proteger-se da chuva. George é, portanto, o causador de toda a sua angústia e sua insatisfação. Ele mostra-se indiferente a todas as suas atitudes, voltando sua atenção única e exclusivamente para sua leitura. Ele não demonstra dedicar afeto à garota americana, muito menos dar atenção aos seus desejos mais simples.

A garota americana deseja, dentre outras coisas, a gata, para que ela possa senti-la, abraçá-la, colocá-la próxima ao seu corpo e acariciá-la; para que possa ronronar [lexia n.º42] [lexia n.º44] [lexia n.º47].

De fato a gata é um símbolo para a garota americana na medida em que ela deseja que alguém faça a ela o mesmo que ela deseja fazer à gata: acariciá-la, tocá-la, tanto física quanto emocionalmente. Toda essa falta de atenção e de carinho, apesar da existência do marido, a faz sentir-se como um garoto, com o cabelo curto, não como uma mulher [lexia n.º36] [lexia n.º38].

No final da história, o gato é trazido da chuva para a garota americana. O gerente do hotel é o responsável pelo presente. É ele que atende aos seus apelos e talvez seja ele que a satisfará física e psicologicamente, não o marido, George. O gerente do hotel foi o responsável por ela sentir-se pequena como a gata e ao mesmo tempo protegida [lexia n.º29]. Ela gostou dele sob todos os aspectos: do seu tipo alto e magro, de sua maneira educada de cumprimentar os clientes. Acima de tudo ela gostou da atenção que veio do gerente do hotel. A enviada do gerente do hotel, a empregada, é o meio encontrado para, discretamente, entregar o símbolo da realização dos sonhos da garota americana. Ao segurar a gata como se segura um bebê, a empregada também deixa claro, através dessa simbologia, que acima dos anseios físicos e psicológicos, os desejos sexuais da garota podem ser atendidos pelo gerente do hotel [lexia n.º50].

Análise de Resultados

Em vários de seus contos, Hemingway utiliza um ou mais animais como símbolos em torno dos quais a história se desenvolve. Como símbolos centrais de muitos de seus contos, os animais escolhidos por Hemingway representam o(s) estado(s) psicológico(s) e os desejos das personagens em suas obras literárias. Tais símbolos como ficaram constatados através da análise realizada, não têm um caráter de “valorização universal”, visto que não funcionam como um código padronizado em nível mais abrangente. Esses símbolos representam casos específicos determinados por Hemingway em cada um de seus contos ou romances. Como exemplo, podemos comparar o valor simbólico do gato no

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conto “Gato na Chuva” com outra conotação dada ao gato em “O Velho na Ponte”: no primeiro representa a fragilidade e abandono e no segundo a independência e vivacidade.

Ainda com relação aos símbolos, podemos dizer que eles têm duas funções primordiais. A primeira é a função de possibilitar ao leitor uma pluralidade de interpretações. Pois, dependendo do tipo de leitura que o leitor proceda, seja uma leitura horizontal baseada nas consciências paradigmática e sintagmática ou uma leitura transversal baseada em uma consciência simbólica, os resultados podem ser diversos. A segunda função é motivar o leitor no sentido de deixar sob sua responsabilidade grande parte da descoberta das emoções. Aqui nos cabe lembrar o que Hemingway afirma sobre uma obra literária, comparando-a a um iceberg, que em outras palavras se traduz por: quanto menos for mostrado ao leitor, de melhor qualidade será a obra.

O símbolo é na verdade um veículo oferecido ao leitor para que ele possa compreender melhor as personagens e suas experiências emocionais sem precisar que o escritor lhe forneça todos os detalhes e o conduza durante toda a leitura. Através desse veículo a obra de Hemingway assume uma forma lacônica que caracteriza seu estilo de escrever e comunicar.

Em “Gato na Chuva” o gato, símbolo central da história, aparece trinta vezes. Essas repetições são, contudo, colocadas de maneiras diferentes, pois o gato é abordado através de funções gramaticais e termos diversos como mostra a tabela abaixo:

OCORRÊNCIAS SÍMBOLO TRADUÇÃO FUNÇÃO GRAMATICAL

13 Cat Gato/gata Substantivo1 She Ela Pronome pessoal4 Kitty Gatinho(a) Substantivo5 It Ele/Ela Pronome Objetivo3 Poor kitty Pobre gatinho(a) Substantivo1 Ill gatto O gato Substantivo1 Her A/Lhe Pronome objetivo

1 This Isto/Isso Pronome demonstrativo

1 A big tortoise-shell cat Um gato malhado Substantivo

Constatamos que a metodologia da repetição é também um dos elementos característicos da obra de Hemingway. Esse é um dos aspectos que compõem o seu estilo. A repetição de símbolos em sua obra tem sua importância reafirmada por Welleck e Warren, que defendem que:

“Uma imagem pode invocar-se como metáfora uma vez, mas se repete persistentemente, converte-se às vezes em símbolo. Para tornar-se um símbolo a imagem ou metáfora deve apresentar reiteração persistente e/ou valorização universal” 14.

1 4 Welleck and Warren Apud. Henio da Cunha Tavares, 1985, pp. 370-371

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Hemingway fugiu ao estilo rebuscado e decidiu por outro mais simples e direto. Contudo, ele sabia comunicar os fatos reais, as “fatias da vida”, mas não o fazia de maneira vulgar; utilizava-se de elementos como o símbolo para através de uma prosa aparentemente linear causar efeitos bem peculiares.

Conclusão

Hemingway contribuiu notavelmente para renovar a língua inglesa e para ampliar-lhe a conquista de novos domínios. Esforçou-se por restaurar as relações vivas entre as palavras e as coisas, entre a linguagem e a realidade. Toda sua carreira é um testemunho da condição do homem moderno. Desesperadamente consciente de sua solitude e de sua impotência num universo indiferente há muito privado de valores morais, Hemingway tentou inventar um código de comunicação que lhe assegurou um lugar entre os melhores literatos. Inspirado por predecessores, empreendeu renovar a linguagem, escrever um estilo direto, concreto e reintroduzir o ritmo da conversação na literatura. Na sua ficção, considerada moderna, os efeitos de suas histórias são frequentemente reforçados pelo uso de símbolos.

Bibliografia

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A INSTAURAÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA DE FORMAÇÃO DOCENTE NO BRASIL: A EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Julia MalanchenMestre em Educação - UFSC/SC

Docente do Curso de Pedagogia da Unioeste – Cascavel - PR Coordenadora Pedagógica - SME de Cascavel

Grupo de Pesquisas HISTEDOPR

Resumo: Este trabalho trata de questões relativas à política de formação de professores no Ensino Superior sob a perspectiva da Educação a Distância (EAD), que está sendo implantada nas últimas décadas em nosso país, tendo em vista que a formação docente tem sido redesenhada nesse período.

Palavras-chaves: Educação a distância, políticas educacionais, formação de professores

THE INSTAURATION OF A NEW PARADIGM FOR TEACHING FORMATION IN BRAZIL: THE EDUCATION IN THE DISTANCE

Abstract: This work in the distance deals with relative questions to the politics of formation of professors in Superior Ensino under the perspective of the Education (EAD) that she is being implanted in the last few decades in our country, in view of that the teaching formation has been redesigned in this period.

Keywords: Education in the distance, educational politics, formation of professors,

As Diretrizes Curriculares1 para a Formação de Professores da Educação Básica no Brasil, gestadas no âmbito da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN)n º 9394/96, enquanto componente de um novo modelo de formação, preconizou a criação de una nova agência de formação de professores: o Instituto Superior de Educação (ISE). Trata-se, no entanto, de diretrizes que precisam ser vistas como uma proposição das políticas educacionais, bem como, enquanto uma orientação vinculada a um conjunto mais amplo de reformas sociais.

Quanto à criação dos ISE, já regulados pela Resolução 01/99 do Conselho Nacional de Educação (CNE) e configurados nos Pareceres CNE/CP 009/20012 e CNE/CP 28/20013, é preciso considerar que a mesma vem ocorrendo, fundamentalmente, a partir de iniciativas do setor privado, ao mesmo tempo em que se aproxima da anunciada reforma do ensino superior, mais conhecida como Reforma Universitária. Compreende-se com isso, que se tratam de novas orientações oriundas da LDB, e que atreladas a um projeto4 maior em vigor e que se encontram situadas num campo bem mais amplo do que o das políticas sociais, dentre as quais estão as políticas educacionais.

Sguissardi & Silva Junior (1999)5 refletindo sobre as estratégias e ações governamentais para a reconfiguração do Estado e da educação superior alertam que estes

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se constituem em fenômenos que não exclusivos do Brasil e, em suas palavras, consideram que se tratam de fenômenos que acompanham as transformações da base econômica dos diferentes países, a começar pelos do chamado Primeiro Mundo, e especialmente da Europa ocidental, onde o trânsito do Fordismo para um novo regime de acumulação e a crise do Estado do Bem-Estar Social se fazem sentir antes e com maior intensidade do que nos demais países desde os anos 60 e 70 e especialmente nos anos 80.6

Desse modo, a indicação de que “A formação em nível superior de professores para a atuação multidisciplinar destinada ao magistério na Educação Infantil e as Séries Iniciais do Ensino Fundamental, far-se-á preferencialmente em Cursos Normais Superiores”, oferecidos por institutos superiores de educação ou por universidades7, de acordo com o decreto presidencial nº 3.554/20008, encontra-se associada à referida reforma.

Trata-se de uma associação que assim é evidenciada por Freitas, (1999, p. 3) “As medidas no campo da formação regulamentadas pelo CFE, tem se caracterizado por aprovação pontuais de pareceres e resoluções que vão conformando a reforma universitária no campo da formação”.9

Também, Shiroma, Moraes & Evangelista (2002)10 ao relembrar que no programa de campanha de governo de Fernando Henrique Cardoso a educação aparecia enquanto uma das cinco metas prioritárias, aparecendo com destaque ao seu papel econômico enquanto elemento de sustentação para o desenvolvimento, afirmam que: “O dinamismo e sustentação dessa base viriam da verdadeira parceria que deveria ser constituída entre o setor privado e governo, entre universidade e indústria”11. Logo em seguida, alertam as autoras quanto a semelhança existente entre esta concepção de educação e a concepção dos organismos12 multilaterais, as quais vieram futuramente ordenar a LDB aprovada em 1996.Assim, é que a educação, vem sendo posta enquanto setor fundamental para a consolidação e implementação de políticas sociais e econômicas sustentadas pela mundialização do mercado capitalista, a ela são dirigidas um conjunto de ações reformadoras voltadas para a Educação Básica, para o Ensino Superior e para a Formação de Professores. Sobre o que, Freitas (1999) considera,

A criação de novos cursos e instituições - como os Institutos Superiores de Educação e o Curso Normal Superior - específicos para a formação de professores é parte da estratégia adotada pelo governo brasileiro, em cumprimento às exigências dos organismos internacionais, para o que seria a segunda etapa da reforma educacional: a reforma no campo da formação de professores.13

Consequentemente, a partir disso se instaura tanto uma distinção entre universidades de pesquisa e universidades de ensino, como entre o ensino superior universitário e o não universitário, o que normatiza uma hierarquia no interior do ensino superior, que não despretensiosamente, estabelece como local prioritário para a formação dos docentes o nível mais baixo dessa hierarquia (SCHEIBE & BAZZO, 2001)14.

Mais do que isso, em tais propostas aparece um significativo aligeiramento na formação de professores, o qual pode ser evidenciado pelo tempo previsto para a duração dos cursos, como é o caso do Curso Normal Superior, o qual prevê um total de 3200h, sendo que desse total um aluno egresso de curso de magistério em nível médio, dispõe da

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possibilidade de redução de 800h (CERISARA, 2002)15. No caso de aluno atuante na educação básica pode ocorrer a redução de mais 800h, podendo, portanto, esta formação ser concluída com o total de 1600h.

Trata-se de uma determinação que, ao recomendar uma utilização mais “eficiente” de professores, também prevê a redução de custos, seja pelo emprego de professores qualificados com baixos salários, seja pela participação daqueles dada a pouca qualificação, a mão de obra já é barata.

Segundo Freitas (1999), também, no âmbito destas políticas de formação a idéia de qualidade da educação aprece vinculada a determinados fatores, tais como o tempo de formação, os livros didáticos e a melhoria do conhecimento dos professores (privilegiando a capacitação em serviço sobre a formação inicial e estimulando as modalidades à distância)16. Entretanto, diminuir o custo dos professores pode envolver, conforme recomenda o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), também sua distribuição e utilização de modo mais eficiente, assim como o uso de profissionais voluntários e membros da comunidade, como é o caso do projeto Amigos da Escola. Sobre isso, Shiroma, Moraes e Evangelista (2003) ao pronunciarem-se quanto a um documento da UNICEF, redigido por Peter Buckland (2000) considera que ele sugere que investimentos na formação em serviço, apoiados pela educação a distância, são preferíveis ao treinamento inicial como estratégia para expandir rapidamente o fornecimento de professores relativamente baratos 17.

Trata-se de uma situação que poderia ser compensada por treinamento em serviço, ou seja, os professores, neste caso, não necessitam de longos programas iniciais de formação, pois, aprender fazendo, em serviço, torna-se uma preparação suficiente, sendo que, para tanto, a educação a distância é indicada enquanto meio mais eficiente e eficaz. Portanto a idéia de distanciamento ligada a de aligeiramento e barateamento da educação é operacionalizada pela possibilidade de oferta de programas de educação a distância promovidos por institutos, faculdades ou centros de educação.

No âmbito destas políticas, a flexibilização das instituições formadoras de professores, assim como do perfil destes profissionais, constituiu ações estratégicas no sentido de adequá-los às ditas novas necessidades do mercado de trabalho no atual estágio de racionalidade técnico-científica dos processos profissionais. Observa-se, portanto, que na essência de todo o processo de reforma do Estado, que visa à realização de uma política de ajuste estrutural e da estabilidade econômica, insere-se a reforma educacional brasileira (LEHER, 1998)18.

De fato, as reformas educacionais efetivadas nos anos de 1990 e com continuidade nesse novo milênio, procuraram traduzir as demandas postas pela lógica do capital. Assim, as reformas efetivadas nos últimos anos partem dos mesmos princípios: as mudanças econômicas impostas pela globalização19, exigindo maior eficiência e produtividade dos trabalhadores a fim de que eles se adaptem mais facilmente às exigências do mercado.

Constata-se que as reformas se apresentam politicamente bem definidas e envolvem a estrutura administrativa e pedagógica da escola, a formação de professores, os conteúdos a serem ensinados, os fundamentos teóricos a serem seguidos e o modelo de gestão a ser aplicado. É nesse contexto que os órgãos governamentais brasileiros evidenciam a necessidade de adequação do trabalho docente às novas exigências profissionais advindas das inovações tecnológicas e da conseqüente mudança do mundo do trabalho apregoado pelos princípios de flexibilidade e eficiência. Desse modo, o Estado regulador e avaliador

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tem intervido na questão, procurando instituir mecanismos que induzam os docentes a adequarem as atividades inerentes à profissão de acordo com os resultados estabelecidos pelos interesses mercantilistas.

Por meio de orientações oriundas de documentos dos organismos internacionais, foi organizada e efetivada a reformulação da política educacional no Brasil e na América Latina, que indica os seguintes pressupostos: a ampliação de acesso à educação básica, a diversificação das instituições de ensino superior e dos cursos e a diversificação das fontes de financiamento deste nível de ensino. Esses pressupostos são apresentados como elementos significativos para a criação de um engodo de democratização e do aumento de escolarização, mascarando dois fenômenos que vêm ocorrendo nos países periféricos: o aligeiramento da formação inicial e o processo de certificação em larga escala.

Nesse quadro, podemos destacar a reforma universitária pela qual se abriu um nicho de mercado para a iniciativa privada, juntamente com a retirada da formação docente da universidade nos moldes tradicionais. Segundo Aguiar & Scheibe (1999) a formação de professores nesses novos ambientes estrutura-se num patamar de menor valorização.20

Observamos, durante este estudo, que os organismos internacionais têm atuado ativamente no projeto de reforma no qual se efetiva a mercantilização da educação superior nos países periféricos, que ocorre por meio da privatização de setores estratégicos dos mesmos, não apenas em termos nacionais, mas com iniciativas de desnacionalização da educação, da ciência e da tecnologia. De acordo com Lima (2002) esta desnacionalização se expressa na pressão que estes organismos realizam no sentido de garantir a abertura para que as empresas estrangeiras controlem empresas nacionais, escolas e centros de pesquisa dos países da periferia do capitalismo.21

Nessa linha de atuação, o governo brasileiro vem cumprindo as recomendações dos organismos internacionais para o campo educacional, em especial as do Banco Mundial que defende capacitação, prioritariamente, em serviço, em detrimento da formação inicial; mecanismos de controle de qualidade externos e internos, com ênfase em uma avaliação das competências dos professores e uso intensivo das novas tecnologias da comunicação e da informação lastreado na modalidade de educação a distância.

Esse é o âmbito – reforma do Estado e da educação – do qual emerge nosso tema de pesquisa. Buscamos evidenciar que no campo educacional de nosso país, associada à Reforma Universitária e à reforma da formação dos professores22, a Educação a Distância tem revelado um grande crescimento no último decênio. Os dados coligidos demonstram que, no campo das políticas públicas para o ensino superior, a EAD está posta como modalidade de formação em emergência, principalmente no que tange à formação docente. A modalidade de EAD, em torno da qual este trabalho se desenvolve, é tema em voga na sociedade do momento. Encontramos facilmente nos meios de comunicação e, principalmente, nos meios virtuais, a grande difusão de notícias sobre o desenvolvimento e incentivos a essa modalidade, na qual o governo brasileiro, por meio da Secretaria de Educação a Distância (SEED) – reestruturada nos últimos anos com a intenção de regulamentar e fomentar a expansão de cursos de graduação – está investindo maciçamente com incentivos ao ensino superior por meio de legislação específica aprovada aceleradamente. De acordo com Marques (2005) no ano de 2004 pelo menos 1.137.908 de brasileiros se beneficiaram de algum tipo de curso a distância, desse total, 309.957 estavam matriculados em cursos oferecidos por 166 entidades credenciadas, como universidades públicas ou privadas que seguem

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uma regulamentação específica do poder público.23

O excerto acima, advindo de notícia da Folha online, traz a informação de que o crescimento das matrículas na EAD até 2003, em nível de graduação e pós-graduação, foi de 44 vezes mais alunos e, se incluídos os dados de 2004, esse número aumenta para até 90 vezes mais matrículas. A notícia ainda afirma que a maioria dos cursos a distância no Brasil forma professores, “Seria impossível formar um número tão grande de professores pelo método presencial, uma sala de aula normalmente possui 40 alunos, a educação a distância quadruplica, no mínimo, esse número, onde são atendidas em cada turma cerca de 150 pessoas” (MARQUES, 2004)24.

Foi também divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) o grande crescimento da EAD no ano de 2005 por meio de ações do governo em todo o Brasil:

Uma série de avanços em programas que utilizam recursos das tecnologias da educação a distância (EAD) é o destaque no balanço de 2005 da Secretaria de Educação a Distância (SEED/MEC). As ações vão da formação do professor que leciona nas classes do ensino infantil, fundamental e médio à consolidação da Universidade Aberta do Brasil (UAB), que vai possibilitar a expansão da EAD em mais de cinco mil municípios no próximo ano. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2005a).25

Na avaliação do Secretário de Educação a Distância, Ronaldo Mota, o ano de 2005 termina com um “convencimento muito grande” de que é fundamental a utilização das tecnologias da EAD na educação em todos os níveis. De acordo com o Secretário, em 2006 será possível juntar a demanda por cursos de graduação com a capacidade de oferta e, simultaneamente, a capacidade financeira do MEC e o financiamento das estatais. Nós queremos que as grandes estatais – Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Infraero, Petrobrás, Correios, Eletronorte, BNDES – cooperem diretamente com os municípios na criação de pólos e que as IFES possam colocar sua capacidade de ofertar cursos. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2005a)26.

Do conjunto de ações em EAD, Mota destaca em 2005 a criação da Universidade Aberta do Brasil (UAB), projeto do MEC com o Fórum das Estatais pela Educação e em parceria com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). O primeiro vestibular foi oferecido em fevereiro de 2006 para Administração de Empresas. Participarão seis Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) com o apoio do Banco do Brasil. No decorrer do ano, a SEED pretende firmar convênios com municípios que desejam ter cursos de graduação gratuitos, ofertados pelas IFES, por meio da UAB. A prioridade do MEC, disse Mota, é atender à demanda de quase um milhão de professores em exercício no ensino básico que não têm a formação necessária. A capacitação será feita usando as tecnologias de EAD e eles serão incentivados a utilizar as mídias em sala de aula.

O objetivo da SEED é abrir espaço aos municípios, estados e Distrito Federal para que digam se querem e como planejam oferecer educação a distância, pública e em parceria com as IFES e com os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs). As aulas serão dadas por meio de televisão, teleconferência, Internet ou outro meio tecnológico. Na continuidade da implantação de ações para expandir a EAD no Brasil encontramos outras notícias como a que segue: A EAD (educação a distância) está invadindo as instituições acadêmicas. O MEC (Ministério da Educação), por intermédio da SEED (Secretaria de Educação a Distância),

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aprovou mais recursos para a implementação de cursos de graduação a distância. Desta vez, a verba foi destinada à UEM (Universidade Estadual de Maringá) para a oferta de dois cursos do Programa de Formação Inicial para Professores do Ensino Fundamental e Médio (Pró-Licenciatura). Os cursos liberados são os de Letras e de Biologia. A UEM aguarda para os próximos dias a resposta sobre outros dois cursos da mesma modalidade: Física e História. A Universidade já oferece o curso Normal Superior a Distância, com 2.100 vagas. (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA, 2005b).27

A iniciativa está inserida no conjunto de ações que oferece cursos de licenciatura para professores da rede pública em exercício nas Séries Finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, sem habilitação na disciplina em que estejam exercendo a docência. Em parceria com a Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí e Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, os cursos, exceto o Normal Superior, receberão recursos financeiros do MEC e serão desenvolvidos com 20% de aulas presenciais e 80% a distância. As aulas foram previstas para o início do segundo semestre de 2006.

Devido a essa expansão da EAD, encontramos em grande parte das universidades públicas e em maior número nas privadas, Centros ou Núcleos de Educação a Distância que ofertam cursos de graduação em diversas áreas e evidenciamos, em números expressivos28 no campo da formação docente. Em algumas universidades, os centros ou núcleos são bastante divulgados pelo trabalho realizado na EAD. Um dos casos é o da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) que organizou o primeiro curso de graduação à distância em 1993, iniciado de forma experimental em 1995.

O Programa, hoje, encontra-se em fase de expansão, com a oferta de 2000 novas vagas e em sua última reestruturação propõe a meta de profissionalizar, até 2011, todos os professores da rede pública de ensino do Estado. Essa Universidade integrou-se, recentemente, à rede do programa Centro de Aprendizagem e Formação de Recursos Humanos em Educação a Distância (CEARENAD). A rede integra também a Télé-Université du Quebec, Pontifícia Universidade Católica do Chile, Universidad Estatal a Distância da Costa Rica, Escola Superior de Formação de Professores do Senegal e Instituto de Professores das Ilhas Maurício. Essa rede realiza o intercâmbio e a produção de material multimídia, de software de gestão de redes educativas e, principalmente, a concretização de projetos conjuntos de Educação a Distância (MARTELLI, 2003)29.

O curso –Programa de Licenciatura Plena em Educação Básica – 1ª a 4ª série do 1ºgrau para formação dos professores das séries iniciais – realiza-se sob a responsabilidade do Núcleo de Educação Aberta (NEAD). Outra experiência bastante divulgada é a do Centro de Educação a Distância (CEAD), da Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC), autorizada desde o ano 2000 a ofertar curso de Pedagogia a distância, atingindo um número grande de professores em serviço do estado. Os núcleos de educação a distância da Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) têm grande destaque em razão do trabalho que desenvolvem e são referência em âmbito nacional. É o caso também da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participa do Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ)30.

Nesse contexto, o que encontramos no ano de 2005 e 2006 foi o ápice da abertura de cursos de graduação a distância em todo o país. Tal crescimento resulta dos incentivos

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promovidos por órgãos responsáveis pelas políticas públicas educacionais, que tiveram fortes impulsos a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN), Lei nº 9.394, de 1996. Estes órgãos realizam um grande movimento pela instauração de um novo modelo de formação superior e visam atender as diretrizes de organismos internacionais para ajustes em nossa estrutura econômica e social.

Dentre esses organismos internacionais destaca-se o Banco Mundial como agência financiadora de projetos educacionais em países em desenvolvimento. Dessa forma sugere que seus parâmetros educacionais sejam remodelados e deixa claro em seu documento sobre o ensino superior que a EAD é uma forma de aumentar a um custo moderado o acesso dos grupos desfavorecidos a esse nível de instrução. Assim, verificamos os prenúncios desse Banco que considera essa modalidade de ensino uma forma de atender a demanda, sobretudo do ensino superior, daqueles que não têm condições de freqüentar uma universidade nos moldes tradicionais, ou seja, presencial.

Segundo o documento organizado pelo BM em 1995, a EAD representa uma forma eficaz de ampliar o acesso ao ensino superior no que se refere à diminuição de custo e tempo, principalmente quando recomenda que se devam aumentar os incentivos ao setor privado. Na perspectiva do Banco Mundial, la educación a distancia puede ser eficaz para aumentar a un costo moderado el acceso de los grupos desfavorecidos que por general están deficientemente representados entre los estudiantes universitarios (BM, 1995).31

Comungando com essa perspectiva, o governo brasileiro apresenta a EAD como solução do velho problema da universalização da educação. Com a mesma tônica, a Unesco tem participado, com seus projetos32, da reflexão sobre as inúmeras oportunidades criadas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) na ciência, na cultura e mais diretamente na educação mediante a EAD. Com isso apóia iniciativas no campo educacional e, principalmente, na formação docente. Segundo Menezes (1998):

[...] por suas dimensões continentais, o Brasil é freqüentemente indicado como o país que reúne todas as condições para se tornar uma success story no uso de tecnologias eletrônicas em educação. Por isso a Unesco apóia e participa do Programa TV Escola, do MEC e também desenvolve a iniciativa Educação à Distância para os nove países mais populosos (onde estão 72% dos não-alfabetizados do mundo) da qual o Brasil participa.33

As vantagens da Educação a Distância, segundo alguns organismos internacionais, são diversas. Entre elas, encontramos a contribuição para ampliar as oportunidades, por meio da ampliação de vagas, permitindo uma educação mais justa, bem como a familiarização do cidadão com tecnologias que estão no seu cotidiano. Assim, se oferecem respostas flexíveis e personalizadas a uma diversidade cada vez maior de tipos de informação, educação e treinamento, por meio da atualização rápida do conhecimento técnico.

Com essas recomendações, a Educação a Distância é uma alternativa para o Estado no que se refere à possibilidade de expansão do ensino, racionaliza os recursos, já que a forma de ensino utilizada até então, para esses organismos, não oferecia resultados satisfatórios e, ao mesmo tempo, demandava custos que o Estado considera elevados. Os elementos suscitados nesta pesquisa demonstram e autorizam afirmar que tem crescido

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de maneira incisiva a campanha em prol da utilização da modalidade de EAD no ensino superior. Conforme informa Pasqualotto (2003):

Até 1999 as atividades educacionais a distância, incluindo teleconferências já tinham atingido mais de 150.000 pessoas; a Universidade de Brasília – UnB implantou o programa UnB Virtual, com vários cursos através da Internet, especialmente o Curso de Especialização em Educação a Distância, tendo recebido 320 inscritos em 1999; a Universidade do Pará – UFPA desenvolveu o curso de licenciatura em matemática oferecido em parceria com a Open University da Inglaterra; Universidade Federal do Ceará – UFC ofereceu (curso de graduação) com licenciatura plena em biologia, química, física e matemática, também em parceria com a Open University da Inglaterra; Universidade de São Paulo – USP com várias iniciativas em EAD. A USP conta também com um núcleo especializado no desenvolvimento de novas tecnologias em educação (a escola do futuro tem tido importante atuação na área); Universidade Federal do Paraná – UFPR implantou um núcleo de Educação a Distância, e já oferece mestrado em gestão de qualidade e um curso de especialização para formação de professores em EAD, iniciado em 1999.34

Presenciamos, portanto, o comprometimento do MEC em expandir a EAD, baseado nos argumentos de que a formação inicial é ineficiente, de que o ensino presencial não indica qualidade e de que a EAD facilita o cumprimento do princípio de igualdade de oportunidade. Por meio da EAD leva-se a educação a grupos sociais com poucas possibilidades de acesso ao ensino, à população dispersa e desprestigiada geograficamente, com escassos recursos financeiros e a grupos em condições desvantajosas, bem como explora possibilidades das TIC.

Em meio a esse discurso, o que se presencia no contexto atual de nosso país é o aumento da oferta de formação de professores, preferencialmente implantada por meio da modalidade de EAD. Com isso, verifica-se uma forma de banalizar o conhecimento e favorecer o desmonte das universidades no que diz respeito à formação de professores. O quadro que se delineia na formação dos professores é esse, em que se insere e valoriza o instrumental, o técnico e retira-se o político, o teórico, enfim, o caráter científico do conhecimento, por meio de um discurso que naturaliza a necessidade da informatização. (LIMA, 2004)35.

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Referências

1 As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação Básica, em nível superior, curso superior de graduação plena, foram aprovadas em 08/05/2001 pelo CNE e homologadas em 17/01/2002.2 Este Parecer teve como base a Proposta de Diretrizes para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica, em cursos de Nível Superior. A que também foi base para a resolução 02/2002, aprovados pelo CNE, instituindo, portanto as Diretrizes Nacionais para a Formação de Professores.3 Dá nova redação ao parecer CNE/CP 021/2001, que estabelece a duração e a carga horária dos cursos de formação de professores de educação básica, em nível superior, curso de licenciatura de graduação plena, aprovado em 02/10/2001 e homologado em 17/01/2002.4 A referência aqui dirigida à “projeto maior” diz respeito aos novos rumos e orientações do capitalismo mundializado em vista de suas investidas à mercadorização da vida privada e em defesa do novo projeto neoliberal.5 SILVA, Jr. João dos Reis; SGUISSARDI, Valdemar. Novas faces da Educação Superior no Brasil. Reformas do estado e mudanças na Produção. Bragança Paulista: EDUSF, 1999.6 SILVA & SGUISSARDI, 1999, p. 25.7 Segundo a LDB nº. 9394/96 as instituições de ensino superior passaram a ser classificadas em Universidades, Centros Universitários, Faculdades Integradas, Faculdades e Institutos Superiores ou Escolas Superiores. Sobre esta diversificação no âmbito das instituições de ensino superior ver Scheibe & Bazzo (2001).8 Este decreto veio substituir o decreto presidencial 3.276/99 que determinava como local exclusivo de formação de professores os Institutos Superiores de Educação.9 FREITAS, H. C. L. A reforma do ensino superior no campo da formação dos profissionais da educação básica: as políticas educacionais e o movimento dos educadores. Educação e Sociedade, Campinas, 1999, ano XX, nº 68, p.3.10 EVANGELISTA, O.; MORAES, M. C. M.; SHIROMA, E. O. Política Educacional. Rio de Janeiro, DP&A, 2002.11 Idem p. 7712 Os organismos multilaterais, vinculados aos denominados acordos multilaterais, liderados pelo Banco Mundial e instituições a ele afiliadas, pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), pela Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências especializadas, se constituem enquanto agentes dinamizadores da política externa de desenvolvimento econômico também voltado para a educação escolar para dos países subdesenvolvidos.13 FREITAS, 1999, p. 6.14 SCHEIBE, Leda & BAZZO, Vera Lúcia. Políticas governamentais para a formação de professores na atualidade. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 22, n. 3, p. 9-22, maio 2001.15 CERISARA, Ana Beatriz. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil no contexto da reformas. Educação e Sociedade, Campinas v. 23 n. 80 set. 2002.16 FREITAS, 1999, p. 2.17 EVANGELISTA, O.; MORAES, M. C. M.; SHIROMA, E. O. Iluminismo às avessas:

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produção de conhecimento e políticas de formação docente, Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 64.18 LEHER, Roberto. Da ideologia do desenvolvimento à ideologia da globalização: a educação como estratégia do Banco Mundial para “alívio” da pobreza. Tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Educação da USP, SP, 1998.19 Entendemos globalização de acordo com definição de Castro (2001, p.6): “globalização não é, propriamente falando, uma teoria; mas um constructo ideológico encomendado para legitimar, dissimular a forma unidimensional, economicista, de unificação financeira de um mundo socialmente dividido por desigualdades cada vez mais profundas e inconciliáveis.20 AGUIAR, Márcia; SCHEIBE, Leda. Formação de profissionais da educação no Brasil:O curso de pedagogia em questão. Revista Educação & Sociedade, ano XX, nº 68, Dezembro, 1999.21 LIMA, Kátia R. S. Organismos internacionais: o capital em busca de novos campos de exploração. In Neves, M.L.W. (org.). O empresariamento da educação – novos contornos da educação superior no Brasil nos anos 1990. SP: Xamã, 2002, p.60.22 Cf. Número especial (68) da Revista Educação e Sociedade.23 MARQUES, Camila. País teve mais de 1,1 milhão de alunos no ensino a distância em 2004. Folha Online, SP, 18 de abril de 2005. Disponível em <www.folha.com.br> . Acesso em 25 de abril de 2005. 24 MARQUES, Camila. Maioria dos cursos a distância no Brasil forma professores. Folha Online, SP, 29 de abril de 2004. Disponível em <www.folha.com.br> . Acesso em 25 de abril de 2005. 25 BRASIL. MEC. Secretaria de Educação a Distância. Seed expande educação a distância por todo o País. Portal do MEC, Brasília, 2005a. Disponível em <www.portal.mec.gov.br> . Acesso em 22 de janeiro de 2006.26 Idem, 2005a.27 BRASIL. MEC. Secretaria de Educação a Distância. MEC aprova recursos para dois cursos a distância na UEM. Portal do MEC, Brasília, 2005b. Disponível em <www.portal.mec.gov.br> . Acesso em 22 de janeiro de 2006.28 Evidenciamos em pesquisa de mestrado que até 1998 havia poucas instituições que ministravam EAD. A partir de 2000 foram expandindo-se autorizações e nos anos de 2004 e 2006 foi o ápice de abertura e cadastramento para ofertar cursos de EAD. Em fevereiro de 2007 contabilizamos os dados e foram encontradas 97 instituições autorizadas a ofertar formação inicial a distância para professores sendo que deste total 62 são públicas e 35 privadas. Para maiores informações consultar o endereço www.seed.mec.gov.br 29 MARTELLI, Ivana. EAD: Uma alternativa de políticas educacionais para a formação de professores. Tese de doutorado. Universidade Estadual paulista Julio Mesquita Filho (UNESP) Campus de Marilia, 2003. (mimeo).30 O Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro é um consórcio formado pelas seis universidades públicas sediadas no Estado, UENF, UERJ, UFF, UFRJ, UFFR e UNIRIO. Segundo informação que consta no endereço eletrônico, foi criado com o objetivo fundamental de democratizar o acesso ao ensino superior público, gratuito e de qualidade. Hoje, o consórcio, criado com a união da autarquia Centro de Ciências do Estado do Rio de Janeiro – CECIERJ, conta com 19 pólos no Estado do Rio de Janeiro, que oferecem cursos superiores à distância. Disponível em: www.cederj.edu.br . Acesso em: 22/01/06.

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31 Destacam-se os seguintes organismos: Banco Mundial (BM), Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO), Fundo Monetário Internacional (FMI), Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização dos Estados Americanos (OEA) e Organização dos Estados Ibero-americanos para a Educação, Ciência e Cultura (OEI).32 O Grupo Banco Mundial compreende: o Banco Internacional de reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), a Corporação Financeira Internacional (IFC), a Agência Multilateral de Garantia de Investimentos (MIGA), a Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), o ICSID (Centro Internacional para Resolução de Disputas de Investimentos) e, mais recentemente, passou para a coordenação do Banco, o GEF (Fundo Global para o Meio Ambiente).33 BANCO MUNDIAL. La Enseñanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia. Banco Mundial. Washington-DC. Primeira Edição em Espanhol, junho de 1995, p. 36. 34 Um dos projetos organizados e dirigidos pela UNESCO é o Projeto Regional para a Educação no Caribe e na América Latina (PRELAC).35 MENEZES, M. B. A educação à distância na atualidade. In. Perspectiva da Educação à distância. Seminário de Brasília 1997. Brasília: Ministério da Educação e Desporto, SEED, 1998 (Séries de Estudos. Educação a distância). 1997, p. 67.36 PASQUALOTTO, Lucyelle Cristina. A educação a distância entre mitos e desafios frente ao processo de mercadorização da educação. Dissertação defendida na Universidade Estadual de Maringá. (mimeografada), 2003, p.114.37 LIMA, K.R.S.Reforma universitária do governo Lula e educação a distância: democratização ou subordinação das universidades públicas à ordem do capital? Trabalho apresentado no seminário local preparatório do 5º CONED. Eixo 1: organização da educação nacional. Mesa 1:educação à distância. ADUFU. 02/05/2004.

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RELAÇÕES BRASIL-ÁFRICA: REFLEXÕES SOBRE O CONTRADITÓRIO

Karla Alves Coelho TertulianoEspecialista em História da África e Afro-americana

Especialista em Planejamento Educacional e Gestão EducacionalSecretaria Municipal de Educação, Ciência e Tecnologia de Anápolis, SEMECT

ResumoRelações Brasil-África, dois lados do mesmo oceano, é uma realidade que, hoje, não nos parece desconhecida, mas como as faces da moeda, o encontro entre esses dois lados, por vezes, mostra-se de difícil possibilidade. A intrínseca relação cultural entre África e Brasil não pode ser negada, os séculos de história de contatos espontâneos e forçados entre esses dois lados do Atlântico não permitem dúvidas sobre as influências recíprocas entre o imenso continente africano e o país de dimensões continentais que é o Brasil e é a respeito da realidade histórica das relações entre eles que pretendemos analisar no espaço deste artigo.Palavras-chave: Relações intercontinentais, Brasil, África.

ResumenRelaciones Brasil y África, las dos partes del mismo océano, es una realidad que hoy no se desconoce, pero como las caras de la moneda, la reunión entre las dos partes, a veces, es difícil posibilidad. La intrínseca relación cultural entre África y Brasil no se puede negar, los siglos de la historia de los traslados forzosos y espontáneos, los contactos entre los dos lados del Atlántico no permiten dudas sobre la influencia recíproca entre el gran continente africano y el país de dimensiones continentales que es Brasil y es acerca de la realidad histórica de las relaciones entre ellos que queremos examinar en el espacio de este artículo.Palavras-clave: Relaciones intercontinentales, Brasil, África

Brasil e África, como duas faces da mesma moeda, ou melhor, do mesmo oceano, é uma realidade que, hoje, não nos parece desconhecida, mas como as faces da moeda, o encontro entre esses dois lados, por vezes, mostra-se de difícil possibilidade.

A intrínseca relação cultural entre África e Brasil, de maneira alguma, pode ser negada, os séculos de história de contatos espontâneos e forçados entre esses dois lados do Atlântico não permitem dúvidas sobre as influências recíprocas entre o imenso continente africano e o país de dimensões continentais que é o Brasil . Segundo Alberto da Costa e Silva:

O Brasil é um país extraordinariamente africanizado. E só a quem não conhece a África pode escapar o quanto há de africano nos gestos , nas maneiras de ser e de viver e no sentimento estético do brasileiro. Por sua vez, em toda a outra costa atlântica se podem facilmente reconhecer os brasileirismo.(2003 p. 72)

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Quando falamos do difícil encontro entre Brasil e África, a isto nos referimos a partir do século XX, ou melhor desde os finais do século XIX, pois desde a abolição oficial e forçada da escravidão no Brasil e a sistematização do colonialismo europeu no continente africano que as relações entre as duas costas atlânticas foram se esgarçando até chegarmos ao ponto em que o Brasil, por desconhecimento quase que total de África, negligenciou sistematicamente as relações, não com um país ou outro do continente, mas com todo ele.

Porém esta realidade, de desconhecimento e ignorância, nem sempre ocorreu. Alberto da Costa e Silva fez um levantamento, muito eficiente, da qualidade e quantidade de relações entre o continente africano e o Brasil ao longo do século XIX mostrando que a idéia da ignorância de uma costa em relação à outra é algo criado, principalmente no inicio do século XX, e as relações das quais fala Costa e Silva não são apenas culturais, estas são sim ponto importantíssimo, fundamental e também tangível, mas segundo Costa e Silva existe também um intenso contato comercial e, por vezes, político entre o Brasil e vários pontos da costa atlântica do continente africano.

O comércio durante muitos anos, principalmente de escravos mas também de diversos outros produtos como noz-de-cola, pano-da-costa e etc, foi muito intenso entre Brasil e África e este comércio, como não poderia deixar de ser, desdobrou-se em relações políticas e diplomáticas ao longo de todo o século XIX gerando um imenso contingente de conhecimento entre os dois, conhecimento cultural, político, econômico e também, muitas das vezes, relações de apoio. Ainda segundo Costa e Silva as relações entre Angola e Brasil eram muito mais intensas no século XIX do que entre Angola e Portugal. Foram soberanos africanos, o de Benin e o de Lagos, a primeiro reconhecerem a independência brasileira em 182459 e as relações entre Angola e Brasil eram tão significativas que levaram o governo português a temer uma possível união entre os dois países e por isso quando da assinatura do Tratado de Reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal, em 1825, foi incluído no artigo III a proibição de aceitação de união de qualquer colônia portuguesa ao Império do Brasil60. Ao aceitar este artigo o Brasil começa a “virar as costas” para o continente africano.

As relações diretas do Brasil com os reinos africanos e as cidades-estado deste continente foram sendo paulatinamente substituídas por relações políticas intermediadas pelas nações européias e tais relações intermediadas vão desfocando a comunicação entre o Brasil e as Áfricas ao ponto que em meados do século XX, durante o governo de Juscelino Kubistchek e período das movimentações de independências das colônias européias no continente africano, o Brasil se coloca ao lado de Portugal, política e ideologicamente, e contra as colônias africanas que reivindicavam sua independência em relação àquele país61, da mesma forma que o Brasil o fizera pouco mais de um século antes. Mas o que levou a estas transformações nas relações entre Brasil e África? Falamos de Brasil e África por que este artigo não tem suporte para discutir a relação do ponto de vista da costa oeste do Atlântico, mas pretende somente refletir em alguns pontos nas relações que ao longo dos séculos XIX e XX se constituíram entre os dois lados do Atlântico tendo

59 Alberto da Costa e Silva cita este fato com base em documentos do Arquivo Nacional brasileiro de 4 de dezembro de 1824. Ver Costa e Silva, Alberto. As relações entre o Brasil e a África Negra, de 1822 à Primeira Guerra Mundial.

60 Ob. Cit.61 Segundo o artigo Brasil e África nos anos Kubistchek -1956-1961de Penna Filho

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como ponto de partida os estudos de alguns pensadores brasileiros que se debruçaram sobre este mesmo tema.

O espaço de tempo que separa o apoio brasileiro ao governo de Lagos contra os britânicos em 185262 e a posição política e ideológica de estar a favor de Portugal na questão das independências das colônias portuguesas, sobretudo as em África é notadamente marcado pela estruturação do Brasil enquanto nação. A forma como tal estruturação e construção da nação e da identidade nacional brasileira foram conduzidas levaram o Brasil a aproximar-se muito mais das nações européias63 do que daquelas que poderiam ser seus pares, enquanto nações que passaram por processos de colonização e submissão semelhantes, e por mais incrível que pareça as vantagens que o Brasil obteve deste tipo de construção mostraram-se infimamente insignificantes, a nossa Ocidentalização, no sentido que pensa Said em O Orientalismo, distanciou-nos das nações africanas ao longo do século XX e tentou de alguma forma equiparar-nos aos países Ocidentais sem sucesso tangível.

Na verdade, a construção do Brasil como um país miscigenado, orgulhoso desta miscigenação e portanto democraticamente racial serviu muito mais aos interesses europeus e foi um dos pontos aos quais Portugal se apegou quando da negação do reconhecimento das independências de suas colônias em África. O lusotropicalismo, a teoria de Gilberto Freyre de que os portugueses construíram no Brasil uma democracia que integrava as raças, foi um dos aportes que permitiu a Portugal ser uma das ultimas nações européias a retirar-se, enquanto colonizador, do continente africano. A opção pelo branqueamento da população, claramente vista com o incentivo a vinda de milhares de europeus para o Brasil no fim do século XIX e inicio do século XX juntamente com as leis de impedimento da entrada de negros no Brasil ocorridas, principalmente, nas primeiras décadas do século XX, levaram o Brasil pouco a pouco a se distanciar, propositalmente, do continente africano. À proposta de invisibilizar o negro e ocultar a cultura africana sob o signo da mestiçagem vinham somar-se a negligenciação das relações políticas com os países do continente africano. Nesse sentido, ao que relata Costa e Silva, parece que a relação política oficial entre o Estado brasileiro e o continente africano já eram escassas desde meados do século XIX, contudo as relações comerciais e as trocas culturais eram intensas, porém vão ao longo do século XX igualmente escasseando, devido à opção ao alinhamento aos países Ocidentais.

O fim do tráfico negreiro, em meados do século XIX ,também acaba por diminuir significativamente as relações comerciais diretas entre o Brasil e o continente africano, visto que não eram somente pessoas escravizadas e suas culturas que iam e vinham nos navios negreiros, muitas mercadorias também eram transportadas fazendo do Atlântico uma movimentada rota comercial que foi fechada através da ação britânica de impor, não exclusivamente por motivos humanitários, o fim do tráfico de pessoas através do oceano Atlântico, deixando ao governo britânico a quase exclusividade do comércio neste oceano.

Depois disto, quase um século depois, segundo Pio Penna Filho, em meados do século XX as relações comerciais entre Brasil e África ainda são insipientes, o Brasil via nos países do continente africano rivais econômicos, visto serem tais quais o Brasil 62 Costa e Silva. Ob. Cit.63 Com base no pensamento pós-colonial o Brasil teria tentado se ocidentalizar para não ser visto como

o outro.

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fornecedores de matérias-prima e produtos agrícolas porém:

o fato de grande parte da África estar sob o domínio colonial europeu neste período (até 1960) e de apresentar economia similar à brasileira não explica de todo este baixo nível comercial. Além disso há de se destacar que havia um grande desinteresse do Brasil relativamente ao continente africano.

Ou seja, o Brasil continuava de “costas viradas” para o continente africano. À partir do fim da década de 1960 o governo militar no Brasil estrutura uma

política de alinhamento com os países do então chamado Terceiro Mundo como forma de ter mais força para competir no cenário mundial, ao contrário do que ocorreu até 1960.

Também neste período esta havendo a estruturação dos países do continente africano e isto contribui para ter inicio em nosso país uma movimentação pela busca do conhecimento do continente africano, para os países de formação análoga a do Brasil e neste ponto os países africanos que acabam de tornar-se independentes, sobretudo os de língua portuguesa poderiam tornar-se excelentes interlocutores brasileiros, tanto no que diz respeito a compreensão da realidade social, como no que se refere a retomada, mesmo que de forma lenta, das relações comerciais entre os dois lados do oceano Atlântico, isto fica claro a partir da criação da Câmara de Comércio Afro-brasileira em 1968 que visava desenvolver uma cooperação não somente de troca de mercadorias, mas também de troca de informações comerciais e o desenvolvimento de programas de ajudas mútuas e etc. Santana(2003) relata os objetivos da Câmara de Comércio Afro-brasileira:

De acordo com seus estatutos, a Câmara de Comércio Afro-Brasileira (CCAB), objetivava: a) promover a cooperação das entidades congêneres nos respectivos países; b) instituir e desenvolver esquemas informativos sobre mercadorias, tarifas, direitos e isenções aduaneiras, câmbio, navegação, tratados comerciais, legislação e jurisprudência relacionadas ao convênio bilateral; c) promover, organizar ou participar de congressos, seminários, simpósios, conferências, feiras, exposições e reuniões; d) formular proposições e elaborar programas visando ao aperfeiçoamento das trocas comerciais entre o Brasil e a África; e) organizar, coordenar e prestar assistência a missões comerciais brasileiras na África e vice-versa; elaborar e publicar análises setoriais e conjunturais das economias africanas; f) recepcionar delegações dos países do Continente africano em visita ao território brasileiro; promover a capacitação de recursos humanos para as atividades do comércio internacional, qualificando mão-de-obra especializada; g) editar revistas, jornais, boletins informativos, monografias, perfis promocionais e publicações similares, a fim de divulgar tudo que possa interessar à promoção, bem como à intensificação da atividade diplomática, comercial e cultural entre o Brasil e os países do Continente africano (p. 526).

Percebemos assim, que a cooperação pretendida ia além da já histórica relação comercial, envolvia também as questões políticas e culturais das quais o comércio não pode

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fugir. Hoje, ainda segundo Santana (2003), as relações comerciais entre Brasil e o continente africano estão basicamente nos países petrolíferos e na África do Sul, mas já mostram-se em crescimento de qualidade e quantidade.

As relações entre Brasil e África no que diz respeito às instituições acadêmicas, segundo Berluci Bellucci do Centro de Estudos Afro-Asiáticos do Rio de Janeiro, possui dois âmbitos, a cooperação desejável e a cooperação possível e nota que sem o governo e o Ministério das Relações Exteriores nem a cooperação possível se fará executável e muito menos a desejável. É importante observar que, quanto ao Ministério das Relações Exteriores, durante o governo Kubistchek , ele foi considerado o órgão em que mais se destacava a invisibilidade dos negros no Brasil pelos integrantes de movimentos negros e isto prejudicava as relações, em todos os âmbitos, entre o Brasil e a África64, por isso Bellucci afirma que este órgão é essencial no que diz respeito a um programa de cooperação acadêmica, inclusive.

Fonseca (2004) pensa em um eixo de cooperação sul-sul, não apenas no âmbito acadêmico, mas social, política e econômica, visto que, segundo Fonseca o Brasil, assim como os países africanos possuem uma analogia nas condições sócio-politico-econômicas da mesma forma que pensa os propositores do projeto internacional de investigação “El Atlántico Sur, hombres, productos, ideas y técnicas, intercambios entre América Latina y Africa: historia y prospectiva” que pensam as relações entre os dois lados do Atlântico não apenas como uma forma de cooperação restrita a um setor da sociedade, mas como essencial para a compreensão e desenvolvimento das sociedades envolvidas.

A cooperação acadêmica entre Brasil e o continente africano, sobretudo com os países de língua portuguesa vem ocorrendo de forma gradual, mas na maioria das vezes de forma pontual e isolada, o que falta, segundo Belluci é uma soma de esforços para que os projetos possam promover intercâmbios de informações diretas, ou seja, não haver a necessidade de ir a Portugal para poder se estudar Moçambique, fortalecer a rede de comunicações sul-sul com seminários, congressos, cursos, pesquisas, isto tornaria possível acabar com as relações triangulares, onde todas as informações tem que, quase necessariamente, passar pelo continente europeu.

Num primeiro olhar as relações acadêmicas entre o Brasil e os países do continente africano poderiam ser as mais simples de serem efetivadas, mas na verdade, ao que parece, mostram-se tão complexa que muitas das vezes acabam por desestimular aqueles que pretendem fazê-lo. Temos assistido no Brasil a uma crescente busca pelo continente africano, mas ainda temos muito de desmistificar deste continente, a idéia de que alguém que queira estudar as relações entre Brasil e Angola, por exemplo, e veja a necessidade de ir até o outro ponto, Angola, para muitos dentro da academia é um absurdo, pois “aquele país só tem pobreza, guerra e doenças para oferecer, se que estudar essas relações vá a Portugal”.

É verdade que muitos documentos encontram-se em Portugal, mas a idéia do projeto desenvolvidos por Aguëro do Colegio Del México de construir bancos nos próprios países para trocas de informações tornaria a relação sul-sul, em termos acadêmicos, muito mais fácil, eficiente e nos desobrigaria de continuarmos tributários das academias européias, fortalecendo as relações entre esses dois pontos do Atlântico que são

64 Ver Penna Filho, Pio. Ob. Cit.

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credores mútuos e que precisarão de mais algumas décadas para, efetivamente, conhecerem-se e começarem a integrarem-se assim como os antepassados dos seus povos fizeram há alguns séculos.

Referências Bibliográficas

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QUALQUER: UMA ABORDAGEM FUNCIONALISTA65

Letícia Lemos Gritti66

Resumo: Este artigo investigou as funções em uso do termo 'qualquer', segundo noções sistematizadas em Nichols (1984) apud Cunha et al (1990). As funções encontradas foram correlacionadas aos princípios norteadores do funcionalismo; a iconicidade e a marcação segundo Givón (2001), e, posteriormente, propôs-se uma classificação. Descobriu-se que o termo é polissêmico e que nos dados do Nurc, ao contrário das do Varsul, as funções foram mais equilibradas, isso se deve ao fato desses informantes possuírem um maior contato com a escrita que pode influenciar suas falas, segundo Kato (1999, p. 202).Palavras-chave: Lingüística; sintaxe funcional; funcionalismo.

Abstract: This article investigates the functions of the term ‘qualquer’ in use, following systematized notions by Nichols (1984) apud Cunha et al (1990). The functions found on the corpora (VARSUL, NURC) were correlated to the guided principles of the functionalism: the iconicity and the marking, and, afterwards, a classification were proposed. It was found out that the term is polysemous and in the NURC’s data the functions were more balanced, on the contrary to the VARSUL’s; it is due to the fact that the NURC’s informers having more contact to writing, which, following Kato (1999, p. 202) could influences on their speaking.Keywords: Linguistics; functional syntax; functionalism.

1 – Introdução

O objeto, em questão, neste estudo, tratado como pronome indefinido pelas gramáticas tradicionais e também mencionado por Faraco e Moura (2001), Ernani Terra (1996) e Celso Cunha (1971) por apresentar um caráter depreciativo quando aliado ao numeral um, será tratado neste estudo como um operador argumentativo, pois produz um efeito de sentido. Para Koch (2002, p. 102), os operadores argumentativos ou discursivos são capazes de constituir um enunciado, orientando a seqüência do discurso e determinando os encadeamentos possíveis com outros enunciados. Prova disso está no fenômeno da escalaridade, carregado pelo qualquer no qual Ilari & Geraldi (2003) enquadram vários operadores argumentativos, que por sua vez organizam vários argumentos segundo uma hierarquia, ou uma escala, como pode ser visualizado no exemplo abaixo67:

(01) [...] a gurizada nova você vê qualquer briguinha estão puxando faca, revólver. (Varsul Lages, 16, 0830).

65Artigo elaborado sob a orientação da Profª Drª Edair Maria Görski.66Programa de Pós-Graduação em Lingüística (PGL) - Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) –Capes.67Os dados coletados do Varsul serão seguidos da cidade, Nº da entrevista e linha onde se encontra o dado; os do NURC serão mostrados seguidos da cidade, do tipo e Nº da entrevista.

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De fato, é o qualquer que está “qualificando” a briga, é ele quem dá o efeito de sentido que pode ser a menor briga, vale ressaltar, também, a existência do diminutivo, que é um reforçador, porém, é o qualquer que dispara uma escala de brigas, na qual a briga em questão é a menor delas. Por fim, o qualquer expressa segundo Pires de Oliveira (2005) livre escolha que é caracterizada pela presença, como informação compartilhada, de um conjunto máximo de alternativas igualmente plausíveis, tomadas como certo, isto é, como pressuposto, que todas elas são válidas.

Logo, a verificação da verdade da sentença não consiste em avaliar cada uma das alternativas, mesmo porque já se sabe o resultado, mas na escolha de uma alternativa de maneira cega, aleatoriamente. (PIRES DE OLIVEIRA, 2005, p. 255)

Isso pode ser facilmente comprovado pelos exemplos abaixo:

(02) Ah, ele sai em qualquer ala [que ele]- na bateria, ele se diverte(Varsul, Florianópolis, 17, 0275)

(03)[...] toda e qualquer manifestação que a gente for procurar vai ter que estar necessariamente ligada...a esta preocupação [...] (NURC São Paulo, EF, 405).

Em (02) há a possibilidade de ele sair em qualquer ala, ou seja, ele tem alternativas de alas e pode sair em todas elas, pois todas são válidas. Da mesma forma com relação às manifestações, aquelas que fazem parte das alternativas igualmente plausíveis. Ambos os exemplos demonstram usos diferenciados de um mesmo sintagma nominal, a razão disso será verificada ao longo do texto.

2 - Iconicidade

Para entender o que é iconicidade, antes disso, contudo, é preciso saber que os enunciados assumem várias funções68. Essas múltiplas funções encontradas para uma determinada forma chama-se no funcionalismo iconicidade, princípio que “permite uma investigação detalhada das condições que governam o uso dos recursos de codificação morfossintática da língua” (CUNHA et al, 2003). Diante da tamanha diversidade nos conceitos de iconicidade, será adotado Givón (2001) que faz uma relação de “um para um” entre forma e função, considerando a estrutura lingüística icônica e a linguagem como uma atividade sócio-cultural. Para que haja esta correlação entre forma e função é necessário descobrir as condições e os fatores que influenciam este uso dos recursos. Contudo, nem só o princípio da iconicidade será levado em consideração, mas também o da marcação 68Função segundo Nichols (1984 apud Cunha et al 1990) é um termo polissêmico e não um conjunto de homônimos. Para ela, todos os sentidos do termo de certa forma se relacionam estruturalmente, por um lado e com elementos de outra ordem, por outro, dessa forma, o sentido é mais alargado, incluindo aspectos pragmáticos e considerando a função como relação e como significação e isso pode ser facilmente verificado no quadro da seção 6. Para Garvin (1978 apud Dillinger 1991, p. 336) função pode designar as relações entre uma forma e outra, entre uma forma e seu significado, ou entre o seu sistema de formas e seu contexto; assim denominadas por ele de função interna, função semântica ou função externa, respectivamente. Já Croft (1990, p. 164 apud Neves 2004) fala mais simples sobre iconicidade, diz que a estrutura da língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência, ou seja, a estrutura do mundo, é imposta pelo falante.

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para distinguir as categorias marcadas e as não-marcadas.

3 - Marcação

Ao princípio da marcação está relacionada à complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa (ou maior) que a estrutura não-marcada correspondente; a freqüência: a estrutura marcada tende a ser menos freqüente do que a estrutura não-marcada correspondente; e por fim a complexidade cognitiva: a estrutura marcada tende a ser cognitivamente mais complexa do que a estrutura não-marcada correspondente, neste são incluídos esforço mental, demanda de atenção e tempo de processamento (GIVÓN, 2001). No caso dos dados de fala desta pesquisa analisar-se-á o qualquer que significa somente a livre escolha em contraposição ao qualquer que está sempre aliado a um substantivo anterior a ele, que por sua vez vem precedido do pronome indefinido um [um + nome + qualquer]. Confira os exemplos a fim de clarear:

(04) Onde tu chegares lá tem o chimarrão pronto a qualquer hora. (VarsulLages, 10, 1308).(05) [...] vem com o dinheiro e compra por qualquer preço [...] (VarsulFlorianópolis, 21, 0721).(06) [...] tem tantas mil esferas por...por galão...por (nao sei) uma unidade qualquer de medida e que você:...espicha então controla o número de esferas. (NURC Salvador, D2, 98)

Tanto na amostragem do corpus do Varsul, quanto na do Nurc, somente duas foram as ocorrências do qualquer precedido de [UM + nome], caso mostrado em (06) sentido pejorativo depreciativo que contrasta com (4) e (5) menos marcados. Esse caráter fica mais evidenciado quando o nome é [+ humano]. Mesmo a estrutura referida sendo incomum, tem uma função distinta a que o termo qualquer, normalmente, desempenha.

Dessa forma, pode-se considerar um exemplo da atuação do princípio de marcação, sendo marcada com relação ao critério da complexidade estrutural, pois é maior e mais complexa se comparada ao [qualquer + nome] em outras sentenças. Com relação à freqüência, é notável a diferença e certamente muito menos freqüente que as outras formas encontradas nos dados coletados. E, finalmente, quanto à complexidade cognitiva, ela tende a ser mais complexa, exigir um esforço mental maior para ativar uma escala em que o referente é o elemento mais baixo.

Parece que nas 117 ocorrências encontradas com o termo qualquer há a hipótese de que a escala está presente na interpretação e é disparada justamente pelo item. Este tem a função de destacar o elemento mínimo de uma escala e escolhê-lo, como pode ser verificado no exemplo (3), em que até para a pior manifestação, ela terá de estar ligada à esta preocupação. Buscando um ponto máximo na escala, há, uma negação metalingüística69 do qualquer em interação com o não, em exemplos como [ela não é uma amiga qualquer] implica-se (negativamente) do mínimo para o máximo que ela não é uma amiga fajuta e sim, uma amigona, a melhor amiga.

69 Interpretação esta que não apareceu em nenhuma entrevista analisada nesta pesquisa.

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Portanto, pode-se caminhar para cima ou para baixo na escala, ou ainda, pegar todos os elementos do maior para o menor dentro dela. Mesmo as ocorrências que são mais genéricas como [qualquer + tipo ou qualquer + coisa] abarcam uma escala. Se entendida pelo viés da marcação, estrutura escalar mais acentuada é, também, a mais marcada, pois se trata de uma forma mais complexa estrutural [qualquer + um] e cognitivamente, pois é preciso de um arcabouço maior do contexto compartilhado para supor quem poderia ser este um.

5 – Corpus

Levando em consideração dados de fala, porém com o fator escolaridade distinto entre os corpora, foram selecionadas duas amostras, uma retratando a realidade da fala de informantes com escolaridade entre Primário e Ensino Médio e outra de informantes com nível superior. O intuito de analisar escolaridades distintas é tentar perceber se há diferenças no uso do qualquer e se tiver, a hipótese é a de que os informantes com mais escolaridade possam ter mais contato com a escrita e esta possa estar influenciando, de alguma maneira, em sua fala. Para isso foi utilizada a idéia de Mary Kato (1999, p. 202) que relaciona a fala e a escrita. A autora sustenta que o processo de escrita se baseia numa escrita 1, influenciada pela fala e numa escrita 2 que influencia a fala, cujas características marcam-se pela presença das formas conservadoras adquiridas no processo de escrita, transportadas à fala.

O primeiro corpus contém dados retirados de entrevistas arquivadas no Banco de Dados do Varsul, de três cidades catarinenses: Florianópolis, Lages e Chapecó, com 42 entrevistados selecionados, distribuídos entre feminino e masculino. A escolha de somente 42 informantes (e não o corpus inteiro do Varsul) se deu para que não houvesse tanta disparidade entre o número de informantes dos dois bancos de dados, pois são somente 12 informantes do Nurc. Foram 79 ocorrências; sendo que 17 dos informantes não usaram o termo qualquer. As entrevistas analisadas possuíam uma hora de gravação de cada informante, as faixas etárias foram diversificadas: dos 15 a 24 anos, dos 25 a 49 anos e acima dos 50 anos e a escolaridade também variou entre Primário, Ensino Fundamental e Ensino Médio.

O segundo corpus analisado foi o do NURC, retirados de variados arquivos e inquéritos, contém dados de fala culta. Doze foram os informantes e 45 foram as ocorrências do qualquer, sendo que em todas as entrevistas dos informantes selecionados foram encontradas ocorrências do qualquer. Fato que não aconteceu com os dados do Varsul. Os entrevistados também variavam com relação ao sexo (mulheres e homens), de várias faixas etárias, das seguintes cidades: Porto Alegre, Recife, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, com informantes de nível superior.

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6 – Funções encontradas

Quadro 1. Funções encontradas nos dois copora

Funções do qualquer

Fala (Varsul, 42 informantes) %

Ocorrências Fala (Nurc, 12 informantes) %

Ocorrências

1. Qualquer + nome (função usual de indefinição)

50,64% 39 35,00% 14

(07) porque ninguém se reúne, qualquer grupo que se reúne, normalmente, o tema, digamos, o ponto de partida é come(r) alguma coisa (NURC, Porto Alegre, D2, 291)2. Mas + de + qualquer + forma (função conector de sentenças)

2,6 2 7,5 3

(08) De qualquer forma a gente tem pai e mãe que gostam ainda dessa [...] (NURC, Salvador, DID, 231).3. De + qualquer + forma (conector de sentenças)

0 0 7,5 3

(09) De qualquer forma a gente tem pai e mãe que gostam ainda dessa [...] (NURC, Salvador, DID, 231). (10) [...] vamos respeitar a proporção, né? De adiantamento de progresso, mas de qualquer forma a nível de tradição a região é toda ela muito parecida. (NURC, São Paulo, EF, 405).4. Toda + e + qualquer (função reforçador)

1,3 1 15,00% 6

(11) [...] que são realmente indispensáveis... a: toda e qualquer... coletividade [...] (NURC, Recife, DID, 131).

5. Qualquer (função de nenhum)

1,3 1 2,5 1

(12) “Eu me criei sempre pobre, não tinha qualquer brinquedo que outra criança tinha [...]”. (Varsul, Florianópolis, 07, 0005)6. Um + nome 2,6 2 5 2

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+ qualquer (função qualificadora, pejorativo)(13) uma unidade qualquer de medida e que você:...espicha entao controla o número de esferas. (NURC, Recife, DID, 131).7. Qualquer + tipo ou coisa (função + indefinidora por aliar-se com genéricos)

37,66 29 20 8

(14) [...] línguas, fazer qualquer coisa, logicamente eu gostaria de fazer [...] (NURC, Rio de Janeiro, D2, 355). (21) Eu acho que por isso, por qualquer tipo de droga, né? (Varsul, Florianópolis, 12, 0261).8. Qualquer + um (a) (função qualificadora, depreciativa)

3,9 3 7,5 3

(15) Pegar qualquer um, assim, né? Hoje em dia tem gente não olha, pega qualquer um e já leva pra cama e já não liga nada. (Varsul, Florianópolis, 23, 0766).Outras funções isoladas

0 0 - 5

Total 100,00% 77 100,00% 45

As funções contidas no quadro acima foram encontradas nos dois corpora, salvo a exceção da função 3, que não apareceu no corpus Varsul. É inegável o caráter decaracterísticas marcantes, e por isso se pode pensar em uma macrofunção de indefinição – função prototípica do termo - e alternativas que recobrem as demais funções numa espécie de hierarquia funcional: macrofunção > funções. Ela envolve, em todos os seus níveis, a noção de ‘função/significação’. Isso significa que, muito embora o item possa ter diferentes funções, apresenta uma relação, ou seja, possui uma ou mais características comuns.

Contrariamente ao Varsul, os dados retirados dos informantes do NURC apresentaram um número mais elevado de ocorrências. A possível explicação para tal fato poderia vir através da variável escolaridade. Os informantes do Nurc são todos de nível superior e constituem um público que possivelmente tenha mais contato com a escrita, ampliando, assim, os contextos de uso do qualquer, o que dá margem a outras funções. Além dos diferentes usos encontrados, a distribuição de informantes entre as funções foi mais equilibrada. A função mais comum do qualquer, que se configura como qualquer + nome e quer simplesmente denotar múltipla escolha e não exatidão teve menor incidência no

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Nurc com 35%, contra 50,64% do Varsul.Outra função interessante do qualquer é aquela em que ele pode ser substituído por

nenhum. Veja o que acontece quando aliado à negação:

(16) “Eu me criei sempre pobre, não tinha qualquer brinquedo que outra criançatinha [...]”. (Varsul, Florianópolis, 07, 0005)

(17) Eu me criei sempre pobre, tinha qualquer brinquedo que outra criança tinha.

Note que em (16) o qualquer assume a função de nenhum, ou seja, ele não tinha nenhum brinquedo que outra criança tinha, neste, a criança não possui brinquedo. Já em (17) com a retirada do não se percebe que a criança tinha no mínimo um brinquedo. Neste caso há acréscimo, a presença da negação, marcada pelo não e o leitor pode achar que a diferença de sentidos está em sua retirada, porém repare na sentença abaixo:

(18) “[...] eu não tinha qualquer brinquedo que outra criança tinha [...]”. (Varsul,Florianópolis, 07, 0005).

Se retirarmos parte da sentença que estimula um contexto e cria um cenário para a sentença, pode-se perceber que a mesma sentença encontrada em (18), agora semcontexto, pode significar ainda uma outra função do qualquer, aquela que dá juízo de valor, que qualifica o ser ou o objeto tratado. Ou seja, em (18) pode-se ter a interpretação de que o sujeito (eu) em questão não tinha qualquer brinquedo, mas sim, um brinquedo muito bom (negação metalingüística). É claro que com o contexto em (16) essa interpretação, menos usual, não se manteria.

Deste quadro se pode depreender que há dois grandes grupos: um que agrupa todas as ocorrências com um forte caráter depreciativo e pode ser substituído por a toa ou insignificante, abarcando as funções 6 e 8 e outro que engloba todas as outras funções sejam elas, mais conectoras, reforçadoras ou indefinidoras.

Interessantes também são as cinco funções isoladas do qualquer aliado a outros itens ou sintagmas, mas que, na coleta de dados do Varsul, não apareceram, por isso nem foram contabilizados na porcentagem. Eis os casos com seus respectivos exemplos:

- um + qualquer + nome;(19) Encontrei um qualquer livro na livraria.

- qualquer + de (dos) + nome;(20) Qualquer dos entrevistados terá o mesmo tratamento. (N, Porto Alegre, D2,291).

- qualquer + um + dos;(21) Não importa o professor, qualquer um dos escolhidos será ótimo. (N, SãoPaulo, DID, 234).

–expressão “um qualquer” sem ser acompanhado de nome - qualquer é substantivado.

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(22) Ela casou-se com um qualquer. (N. Porto Alegre, EF, 278).

qualquer + coisa + de(23) Eu notei qualquer coisa de estranho naquele lugar. (N. São Paulo, D2, 360).

Considerações Finais

Mediante os dados, o qualquer se liga facilmente a outras palavras, por conseguinte adquire novas funções e seus sentidos se modificam: ora para depreciar, orapara simplesmente indefinir, mas nunca deixa de carregar o caráter de múltipla escolha e/ou indefinição, porém quando unido a outras formas, ele passa a assumir também novas funções que não somente a sua de base. A pergunta é: a multifuncionalidade do termo configura um quadro de ambigüidade ou polissemia? Os indícios mostrados ao longo do trabalho corroboram ao fato da polissemia, pois todas as funções encontradas possuem aspectos em comum como o da indefinição e o das alternativas.

Vale ressaltar o cruzamento de corpora. Embora ambos tenham apresentadopraticamente as mesmas funções para a forma qualquer, o que se evidenciou foi que, nos dados do Nurc, as funções foram mais bem equilibradas e cada uma delas foi utilizada por mais falantes, em contraposição aos do Varsul, em que a grande massa se deteve em somente duas funções, as mais comuns. Uma das possíveis explicações pode vir através da variável escolaridade. Esta foi diferenciada nos dois corpora. Enquanto os informantes do Nurc tinham nível superior, os do Varsul apresentavam no máximo Ensino Médio. O maior contato com a escrita pode ser o responsável pela melhor distribuição das funções. Em todas as entrevistas do Nurc selecionadas, houve pelo menos uma ocorrência do qualquer, algo que não aconteceu com os dados do Varsul, que dos 42 informantes analisados, 17 não utilizaram o qualquer. Por isso a recorrência do termo em dados do Nurc é bem maior que no do Varsul.

A hipótese configurada é que quanto maior o nível de escolaridade, maior contato com a escrita e isso corrobora a idéia de Mary Kato (1999, p. 202), em que o processo de escrita, se baseia numa escrita 1, influenciada pela fala e numa escrita 2 que influencia a fala, cujas características marcam-se pela presença das formas adquiridas no processo de escrita. Parece que isso aconteceu nas ocorrências do Nurc, sendo que o maior e mais bem distribuído número de funções, talvez possa estar relacionado ao fato da escrita ser mais elaborada e utilizar mais funções deste termo, pois a fala é mais dinâmica, não havendo aquele momento de parar e elaborar o que será dito, exceto em situações bem específicas. A tendência, nesta última, é utilizar o que é mais recorrente e mais comum.

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Referências

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O GÊNERO DO DISCURSO NO LIVRO DIDÁTICO DA 5A SÉRIE

Lucilene Lisboa de Liz Doutoranda em Lingüística (PGL /UFSC)70

Resumo: Esta discussão tem como objetivo verificar como os livros didáticos estão trabalhando com as novas concepções trazidas pelos PCNs (1998). Pelo fato de a escola ser o único lugar em que a maioria dos alunos tem acesso à produção escrita, os PCNs entendem, que a escola deveria oferecer a eles uma “diversidade de textos que caracterizam as práticas sociais”. Pela concepção implementada nos PCNs , o aluno deve ser preparado para trabalhar com a diversidade de gêneros.

Palavras-Chave: Livro didático; PCN; interação social.

Abstract: The aim of this paper is to investigate how are the textbooks dealing with the new conceptions brought by the PCNs (1998). Since for most students the school is the only place where they have access to written production, the PCNs suggest that the school should offer them a "diversity of texts which characterize the social practices". According to the conception implemented by the PCNs, the student should be prepared to work with the diversity/a variety of textual genders. Key-Words: Text book; PCN; social interaction.

1 – Introdução

A necessidade de mudanças no ensino de Língua Portuguesa já vem sendo discutida há algum tempo; essas alterações não seriam apenas no modo de conceber a gramática, mas também no modo de trabalhar e até mesmo na forma de olhar para o texto.Abandonar antigas concepções não requer apenas força de vontade, mas, sobretudo embasamento teórico. Entender que as formas de se trabalhar o texto não devem se resumir a exercícios de interpretação temática ou a escrever dissertações é muito difícil se os profissionais não estiverem expostos às discussões atualizadas, uma vez que a prática foi sempre esta.

Contudo, acreditamos que o grande passo para concretizar essas mudanças foi a elaboração dos PCNs (1998). Os PCNs representam um avanço ao adotar a teoria dos gêneros do discurso, ao discorrer sobre uma concepção de língua bakhtiniana, enfim, ao perceber que o ensino agonizava e transformações eram imprescindíveis.Por ser a escola o único lugar em que a maioria dos alunos tem acesso à produção escrita, os PCNs entendem, a escola deveria oferecer a eles uma “diversidade de textos que caracterizam as práticas sociais”. De acordo com os PCNs, os textos como são 70 Doutoranda em Lingüística pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e orientada pela Dra.

Ruth E. Vasconcellos Lopes da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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apresentados aos alunos são formas falsificadas que diminuem a complexidade das formas de gênero do discurso e que de modo enganoso dão ao texto um tratamento homogêneo. Seguindo a nova visão implementada nos PCNs (1998) o aluno, antes de tudo, deve ser capacitado para trabalhar com a diversidade de gêneros que o cerca e “a diversidade não deve contemplar apenas a seleção dos textos; deve contemplar, também, a diversidade que acompanha a recepção a que os diversos textos são submetidos nas práticas sociais de leitura” (PCNs, 1998, p. 26).

Nossa meta ao analisar o livro do professor é além de verificar como o Livro didático (doravante LD) trabalha o gênero do discurso, checar, em alguns momentos, como as orientações, apresentadas nos LDs, estão sendo fornecidas ao professor. 71

2 – Língua, falante/ouvinte e gênero do discurso: uma abordagem bakhtiniana

Ao abordamos a Teoria de Gênero do Discurso é imprescindível que nos situemos num primeiro momento no campo da língua; para nos localizarmos nesse domínio é, antes de tudo, necessário que entendamos minimamente o que pensa Bakhtin sobre língua e sobre o papel do falante/ouvinte na cadeia da comunicação.

Segundo Bakhtin (2003), a língua ocorre em forma de enunciados, num processo de interação constante, e só através dele - do enunciado - poderemos compreender as unidades da língua. Mas para que entendamos o que o autor quer dizer com essa noção, bem como a respeito da própria definição de Gênero do Discurso, temos que compreender primeiramente qual o significado do termo “enunciado”. Para entendê-lo, tomemos a distinção que o autor realiza entre oração, como unidade da língua, e enunciado como unidade da comunicação (Bakhtin, 2003, p.276).

Segundo Bahtin, o ouvinte exerce uma função ativa em relação ao falante, ou seja, ele nunca é passivo, ainda que sua resposta seja o silêncio, pois para Bakhtin (2003, p.293), o que parece ser o silêncio, é na verdade “apenas um momento abstrato do ato pleno e real de compreensão ativa responsiva”. Percebe-se então que para este autor a função do “outro” como sujeito ativo é primordial na cadeia da comunicação.

Depois dessa breve incursão sobre os termos basilares da teoria bakhtiniana, podemos situar a noção de Gênero do Discurso, já que para Bakhtin (2003.p.293), “o Gênero não é uma forma de língua, mas uma forma do enunciado”, considerado uma atividade tão significativa para a compreensão entre os indivíduos quanto a própria língua, o que quer dizer que, o indivíduo no exercício de suas inúmeras atividades serve-se da língua para as mais diversas finalidades e este servir-se de diversas formas de enunciados para um determinado fim é o que Bakhtin entende por gênero do discurso.

Para o autor, gêneros “tipos relativamente estáveis de enunciados” (Bakhtin, 2003, p.277). O termo “relativamente” aplicado à denominação bakhtiniana se justifica pelo próprio entendimento do que seja o gênero do discurso para o autor, pois, para ele, o gênero evolui histórica e socialmente, e assim seria incoerente formular uma definição de Gênero como algo estável, pois tal como a sociedade e sendo este fruto de atividade humana é passível de mudança. 71 Analisaremos o Manual do Professor, denominando-o também como Livro Didático, já que esse além de ser idêntico ao do aluno, vêm com as orientações para o professor trabalhar.

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Se somos competentes para falar uma língua, do mesmo modo, para Bakhtin, somos competentes para utilizar os gêneros do discurso. Isto, porém, não significa que o falante domina todas as formas de gênero, pois aí entra o papel fundamental da escola, que é o de tornar o aluno eficiente no conhecimento e na “utilização” de determinado gênero.

2.1 – Os PCNs: uma importante função

Parece-nos fundamental salientar aqui que os PCNs (1998) foram os grandes difusores da teoria bakhtiniana do gênero do discurso nas escolas, ainda que nem sempre interpretado ou entendido de maneira adequada. Bonini (2002) é bastante claro a esse respeito quando afirma que as linhas reguladoras do ensino de língua não são inteiramente transparentes, mas que é evidente a busca por novas práticas. Deixemos claro que não estamos pretendendo afirmar que os PCNs não têm problemas teóricos e mesmo de aplicação, não estamos fechando os olhos para isso, no entanto, nosso objetivo único é apontar os pontos positivos e os avanços que eles trouxeram para o ensino da língua.

A abordagem trazida pelos PCNs não é algo inovador, as teorias e pilares para o ensino da língua ali presentes já estão em debate há muito pelos estudiosos preocupados com o ensino da língua materna. Contudo, essas discussões nem sempre ou quase nunca chegam aos professores e, nesse sentido, não se pode negar que os PCNs foram o grande alavancador da mudança do ensino da língua.

Os PCNs mostram a preocupação em não centralizar o ensino no estudo do conteúdo gramatical, trouxeram também a possibilidade de se trabalhar com as variedades lingüísticas nacionais e ainda apresentaram como objetivo dirimir a produção escolarizada de textos e mostrar que a leitura e a produção textual são os alicerces na formação do aluno; dessa forma, abriram espaço para o estudo do gênero do discurso. Os PCNs norteiam o professor na prática em sala de aula, indicando que o aluno deve trabalhar conteúdos que lhe sejam úteis no cotidiano e que devem mormente desenvolver diferentes habilidades lingüísticas.

Talvez a principal barreira que o aluno tem diante de si, frente à produção textual , segundo as preocupações de estudiosos como Bonini (2002),, é não saber para quem está escrevendo ou, dito de outro modo, é a ausência de um interlocutor ativo para quem o aluno deva se dirigir na consecução desta atividade. Assim é que devemos destacar como é crucial a crítica que o método interacionista lançou ao “papel castrador do professor”, pois segundo esse método, o professor não deve exercer um papel autoritário sobre o aluno que, por sua vez, precisa saber que não tem de escrever o que o professor gostaria de ler, mas o que é adequado a determinada “situação” social.

No que tange ao terceiro ponto levantado pelos PCNs, a saber, de fazer o aluno refletir sobre a linguagem para utilizá-la, os PCNs têm tentado mostrar que é a diversidade de gêneros que fará com que o aluno reflita sobre questões de linguagem, pois terá diante de si, textos orais e escritos, textos em língua padrão e coloquial e textos mais e menos formais.

Como vimos, a tarefa que os PCNs busca transmitir ao professor não é simples nem trivial, pois trata-se acima de tudo de um processo de desconstrução, no sentido de que o professor terá de rever o ensino de língua portuguesa até então e desconstruí-lo a partir de novas concepções e, além disso, não se pode ignorar as dificuldades materiais

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para tal passo.

3 – Os gêneros do discurso e os livros didáticos

O PCN de língua portuguesa afirma que os principais eixos do ensino são a leitura e a escrita, nas próximas seções analisaremos como os Livros Didáticos (LDs) vêm trabalhando essas atividades que estão atreladas ao estudo das diversas formas de gênero do discurso.

A coleção eleita para análise foi a do 3º e 4º ciclos do ensino fundamental dos autores Cássia Garcia de Souza e Márcia Paganini Cavéquia.

3.1 – Como a coleção está estruturada

Os LDs dessa coleção estão organizados em dez unidades, que são dividas em Abertura, Momento do Texto, Painel do Texto, Estudo do Texto, Ampliação de Vocabulário, Questões Textuais, Produção Escrita, Produção Oral, Estudo da Língua e Espaço de Criação.

Para os propósitos desse estudo interessa-nos a seção Momento do Texto.

3.1.1 O LD de 5ª SérieA seção Momento do Texto do LD da 5ª série está assim ordenado72:

Unidade Conteúdo1 (Sem título) – Eva Furnari

História em quadrinhosO segredo da casa amarela, /Giselda Laporta Nicolelis – Editora Atual.Capa e quarta capa do livro

2 (Sem títulos) – Origem popularQuadras“Proezas de João Grilo”- João Martins AtaídePoema de Cordel

3 “A perigosa Yara”- Clarice LispectorLenda“Origens” - Vários autoresArtigo Informativo“As lágrimas de Potira”- Carlos Felipe Melo M. HortaLenda“O cão e a lebre” – Esopo (Tradução de Odail U. sobral e Maria Stela Gonçalves)Fábula“A raposa e as uvas –Esopo (Tradução de Heloísa Jahn)Fábula“A Raposa e as uvas” – Millôr Fernandes

72 O quadro a seguir foi retirado do manual do professor desta coleção da 5ª série (p. 06-07).

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5 “ A Bela Adormecida”- Neil Philip (Tradução de Hildegard Feist)Conto de Fadas“Hoz Malepon Viuh Echer ou O caçador”- Fávio de Souza

6 “Fura- Redes”- Jorge AmadoExcerto narrativo-descritivoFutebol – Candido PortinariTela(Sem título e sem autor definido)Ingresso

7 “Além da imaginação”- Ulisses TavaresPoema“Outras tintas”- Revista EducaçãoReportagem“Inocência na lama”- Luciano Augusto

8 “Os três astronautas”- Umberto Eco e Eugenio CarmiConto“Abdulla”- Cristina VonConto“Era uma vez... um jornal que virou cesta”- Revista ManequimTexto instrucional

9 (Sem título)- Embratur/ Ministério do Esporte e Turismo/ governo FederalAnúcio publicitário“Jaguatirica presa em sítio”- Estado de MinasNotícia

10 “O retrato oval”- Edgar Allan PoeConto“uma armadilha para o conde Drácula”- Heloísa PrietoConto(Sem título) – DaniCarta Pessoal

De acordo com Souza e Cavéquia (2005, p.06) a escolha pelos textos desta seção Momento do Texto foi feita com base em alguns critérios, tais como:

- diversidade de gênero, registro e contexto;- diversidade e representatividade de autoria (época, região, nacionalidade);- valorização de textos da tradição oral;- adequação à idade e à série dos alunos;- equilíbrio entre textos literários e não-literários;- predominância de textos autênticos e integrais; quando fragmentados, procurou-se manter

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a unidade textual.

Após apresentada a forma de organização da seção Momento do texto, iremos analisá-la com base no seu desdobramento na seção Estudo do Texto, procurando num primeiro momento destacar os pontos negativos e num segundo momento salientar os positivos.

3.1.1.2 – O Gênero do discurso no material da 5ª Série

O primeiro gênero trazido pelo LD é a história em quadrinhos. Na seção Estudo do Texto, a primeira questão que se coloca é para que os alunos expliquem as características de textos desse gênero. A crítica que lançamos no tocante a ela é: se o aluno se deparou, no LD, apenas com uma história em quadrinhos, como é que ele vai perceber as características e regularidades “de textos” desse gênero? Como ele irá comparar e confrontar textos de um mesmo gênero se só lhe apresentaram um neste momento? No Manual do professor (p.16) um outro problema encontrado é a sugestão feita ao professor para que explique a noção de gênero para os alunos:

Explicar aos alunos o conceito de gênero textual: textos que compartilham certas características: estrutura, assunto, linguagem. É como se pertencessem à mesma família. Desse modo, as fábulas pertencem ao mesmo gênero, assim como os contos de fadas, os poemas, as cartas, os bilhetes etc. são considerados gêneros textuais.

O equívoco dos autores está justamente em estimular discussões puramente declarativas como foco. Percebemos, além disso, que não há uma preocupação nesse momento em expor as condições de produção do texto que está sendo trabalhado.

Nas páginas 19, 20 e 21 do LD, há uma mistura entre os gêneros, entre o que se apresenta como gênero, capa e quarta capa, e um novo gênero, resenha, que é introduzido ao aluno sem preparo algum para que o aluno possa atender à questão proposta. A questão que se coloca, após a apresentação do gênero capa e quarta capa é a seguinte: “O texto que aparece na quarta capa é uma resenha. Qual a finalidade dela”?

A crítica que se faz aqui não é apenas pela mescla dos gêneros, mas principalmente, por não se trabalhar adequadamente o gênero proposto e ainda inserir outro, sobre o qual o aluno pode não ter conhecimento algum para responder, imaginamos que realmente na 5ª Série, o aluno possa realmente não saber o que é uma resenha.

Uma abordagem no LD que merece destaque é a seção Questões Textuais (p.23) em que, apesar de buscar trabalhar o conhecimento declarativo sobre gênero, algo que até poderia ser feito numa etapa final de trabalho, trabalha a noção de gênero com bastante propriedade. Nesta seção, os autores estão colocando o aluno diante de formas de gênero distintas como: embalagem, poema, piada, receita culinária, classificado de jornal, passe de ônibus. Ainda que isso esteja sendo bem contemplado no LD, seria necessário explicitar ao professor que a atividade de produção textual não necessariamente deva se aplicar a todos os gêneros, algumas formas de gênero poderiam ser cobradas do aluno como parte da

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prática de leitura como é o caso de uma embalagem, por exemplo. Nesse caso, o aluno teria de aprender a ler uma embalagem, percebendo os elementos que as constituem.

A seção Momento do Texto 2, que pela estrutura recorrente do livro deveria ser espiral e trazer mais discussões no que tange à forma de gênero explorada na seção Momento do Texto 1, apresenta um novo gênero, a resenha. O ponto negativo desta abordagem é que os autores expõem o aluno a apenas uma resenha e a um tipo de resenha, fazendo com que o aluno ignore que diferentes tipos desta forma de gênero. O ponto positivo é que ainda que minimamente os Souza e Cavéquia (2005, p.25) conseguem explorar as condições de produção para o tipo de resenha que apresentam:

A resenha que aparece na quarta capa apresentada na página 20, por exemplo, tem por objetivo despertar no leitor o interesse em ler o livro em questão, portanto, o produtor da resenha faz uma apresentação em poucas palavras, das características básicas da obra, com a finalidade de transmitir uma idéia geral a respeito dela. [...] agora é a sua vez. Escolha um livro que você já tenha lido e de que tenha gostado e produza a resenha dele. Não se esqueça de usar uma linguagem adequada ao seu público-alvo, ou seja, seus colegas de classe. E, tendo sempre em mente que seu objetivo com essa produção escrita é estimulá-los a ler o livro, o uso de adjetivos é sempre importante (grifo meu).

Ainda que seja complicado para o aluno com apenas um ou dois exemplos conseguir produzir uma resenha, os autores conseguem explorar algumas das condições de produção, fazendo com que ele atente para questões como: para quem eu estou escrevendo, qual a linguagem adequada para o meu tipo de público, qual o objetivo que esta forma de gênero deve contemplar.

Mas ao mesmo tempo que considera parcialmente a questão das condições de produção, os autores fazem uma miscelânea dos conceitos de gênero e seqüências textuais. Isso fica evidente ao observar a unidade 6, na qual após a apresentação do gênero ingresso, os autores apresentam e caracterizam a seqüência descrição. O assunto ganha enfoque na produção textual, momento em que, os alunos deverão produzir uma descrição com base nas imagens que lhes são apresentadas:

Agora é sua vez de produzir uma descrição, que poderá ser técnica ou literária.Para isso, escolha algo que deseje descrever (um lugar, um sentimento, um objeto, um animal, uma pessoa) e mãos à obra. De acordo com o que escolher,poderá utilizar um dos roteiros abaixo (SOUZA e CAVÉQUIA, 2005, p.136).73

O que se vê a partir disso é uma confusão de conceitos , em que os autores apresentam, em meio às diferentes formas de gênero, a seqüência textual descrição. Os

73 Para o acesso às imagens, consulte-se Souza e Cavéquia, 2005, p.136).

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PCNs (1998, p.26) parecem bastante claros quando afirmam que o aluno deve ser exposto a gêneros que fazem parte do dia-a-dia do aluno:

[...] a seleção de textos deve privilegiar textos de gêneros que aparecem com maior freqüência na realidade social e no universo escolar, tais como notícias, cartas argumentativas, artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, romances, entre outros.

O aluno deve reconhecer a seqüência textual descrição, não estamos negando a legitimidade desse aprendizado, mas acreditamos que este trabalho deva ser desenvolvido no próprio estudo do gênero.

Ainda uma discussão que gostaríamos de pontuar é a de que os PCNs (1998, p.28) apontam como fundamental a atividade de refacção textual para que o aluno reflita sobre esta atividade, sobre o que produziu, para isso deve-se “tomar como objeto de reflexão os procedimentos de planejamento, de elaboração e de refacção dos textos”.

Mas parece que a proposta não foi bem interpretada pelos autores dos LDs em questão, já que a atividade que eles propõem discrepa da proposta dos PCNs. Observe o que Souza e Cavéquia (2005, p.137) trazem como proposta de refacção ainda na atividade de produção da descrição:

Refletindo sobre a produçãoAntes de passar seu texto a limpo, avalie-o considerando as seguintes questões:- Minha descrição está de acordo com a linguagem que escolhi: técnica ou literária?- Utilizei adjetivos que auxiliassem na caracterização?- empreguei adequadamente os sinais de pontuação?- Verifiquei se há erros ortográficos?”

Ao que tudo indica a função que o aluno tem de exercer, dadas as coordenadas acima, é a de um revisor de textos, não que pensar sobre questões lingüísticas não seja relevante, ao contrário, é de suma importância. Mas e o trabalho de refacção em que lugar será efetuado? Pela nossa análise do material, não há qualquer menção ao trabalho de refacção textual, atividade em que o aluno entrega ao professor a sua produção e, após o feedback deste, realiza um trabalho de reflexão sobre os problemas apontados.

A produção escrita com base ou não nos gêneros ainda é um problema a ser superado no LD, visto que, as atividades se limitam muito comumente ao método siga o modelo. Um bom exemplo deste fato pode ser verificado quando os autores apresentam o gênero poema. Os autores destacam um poema em francês, La fourmi, e um em português, Quando eles souberem; a seguir orienta o aluno para que reflita sobre a estrutura dos poemas comparando-os com textos em prosa. O próximo passo é justamente pedir ao aluno que elabore um poema com base em três outros poemas que podem “lhes servir de inspiração”.

4 – Considerações finais

Nossa discussão em torno do material didático da 5ª série se preocupou com a

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discussão sobre os textos selecionados e como a produção escrita e questões textuais foram trabalhadas. Vimos que o material apresenta muitas falhas, a principal ao nosso ver, é a mistura que ainda se faz de terminologias e mesmo de conteúdos ao tratar de gênero e seqüência textual; a predominância de atividade escrita como ponto crucial para se trabalhar o gênero e a falta de “aproveitamento” da proposta de gênero para enfatizar outras atividades de suma importância, tais como oralidade e leitura.

Os PCNs, com a inovação de propor que se abandonem as antigas formas de se trabalhar o texto, trouxeram também um grande problema: como trabalhá-lo, como lidar com a novidade. As análises que fizemos, ainda que de modo rápido e superficial, evidenciam as falhas ao tentar aliar a teoria à prática. A teoria que traz o Manual do Professor está desvinculada do que se realiza no estudo do gênero e ainda na atividade de leitura e de estudo da língua. O gênero do discurso é trazido para sala de aula através do LD, a intenção é realmente nobre, porém o seu exercício prático muitas vezes fracassa, visto que o que geralmente se apresenta é uma nova tecnologia, mas com a aplicação de métodos tradicionais que não dão resultados diferenciados

Referências Bibliográficas

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FORÇAS ILOCUCIONÁRIAS E IMPLICATURAS

Lucrécio Araújo de Sá Júnior Doutorando pelo PROLING

Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Universidade Federal da Paraíba e da Universidade de Lisboa

Resumo: Este artigo tem como objetivo identificar que o trabalho de Austin, Searle, Grice, Vanderveken contribuíram para a análise da linguagem comum. De acordo eles o significado do falante é a unidade primeira no uso e na compreensão das línguas naturais, é por isso que se considera o ato ilocucionário com suas condições de felicidade ao contrário das proposições com condições de verdade que são comumente assumidas na tendência lógica. É de acordo com os atos ilocucionários que o falante expressa e comunica seus pensamentos na realização do discurso. Eu me remeterei às palavras de Austin, Searle, Grice, Vanderveken para investigar a natureza da relação entre falante, linguagem e mundo a fim de contribuir com a teoria do significado.Palavras-chave: significado; falante; intencionalidade; contexto.

Illocutionary force and implicatures

Abstract: This paper aims at identifying what work Austin, Grice, Searle, Vanderveken, and others contributed for a ordinary language analysis. According theirs the primary units of speaker meaning in the use and communication of natural languages are therefore illocutionary acts with felicity conditions rather than propositions with truth conditions as it is commonly assumed in the logical trend. It is in the attempted performance of illocutionary acts that speakes express and communicate their thoughts in the conduct of discourse. I am referring to works by Austin, Grice, Searle, Vanderveken who have clarified the nature of the relationship between the speaker, language and the world by contributing to the theory of meaning.Key-words: meaning; speaker; intentionality; structure.

Introdução

No desenvolvimento deste estudo servimo-nos da teoria dos atos de fala para caracterizar as especificidades do discurso, como se estabelecem seus jogos de linguagem e como aparece o sujeito em meio às regras da linguagem. Da mesma maneira como ocorre em outras áreas da ciência, o estudo da linguagem tem sido afetado pelas inconsistências e hesitações originadas na pretensão filosófica de que o conhecimento científico deva ser justificado racionalmente. Assim é que, desde a antigüidade, teorias têm sido propostas a respeito da origem e da natureza da linguagem humana - elemento essencial à compreensão da própria existência do ser humano e do universo -, e bem assim sobre como o

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pensamento se articula com a linguagem (ou esta com aquele), e como a linguagem se estrutura e é apreendida pelos sujeitos falantes.

Além dessas preocupações de cunho filosófico, e levando-se em conta a multiplicidade de línguas existentes no mundo - e também a necessidade dos humanos se comunicarem para compartilhar conhecimentos e experiências -, torna-se fundamental buscar conhecer, de um ponto de vista prático: a) que mecanismos estão presentes no processo de compreensão natural da linguagem em geral; b) como o agente humano utiliza a linguagem no dia-a-dia, nas diversas situações; c) quais são os processos envolvidos que fazem com que as intenções interlocutórias sejam reconhecidas mesmo quando não se fala literalmente; d) como as diferentes habilidades lingüísticas podem ser transmitidas e adquiridas e, mais que tudo, aprimoradas.

Neste trabalho analisaremos a abordagem do discurso a partir das noções de "contexto", de "comunicação" e de "significado. Com a finalidade de entendermos o desenvolvimento da Teoria dos Atos de Fala, uma das tarefas que nos remeteremos neste trabalho é analisar os marcadores de força ilocucionária a partir das idéias de Searle, ou melhor, do desenvolvimento oferecido a elas por D. Vanderveken em consonância com os pressupostos teóricos descritos por A. Leclerc.

Os atos de fala

A noção central da Teoria dos Atos de Fala é a noção de ato ilocucionário, o qual é composto de vários atos de fala. Um ato ilocucionário é um valor semântico de um enunciado produzido num contexto de enunciação. O ato ilocucionário é a unidade básica de comunicação e compreensão nas línguas naturais. Ele é constituído normalmente de um ato de referência de um ato de predicação, de um ato proposicional que são atos subsidiários. Uma questão, uma afirmação, uma ordem, uma exclamação, etc., são atos ilocucionários. Quando um enunciado é proferido com a intenção de produzir um certo efeito no ouvinte, o resultado é o ato perlocucionário.

Na obra Quando dizer é fazer Austin situa a linguagem humana no seio do processo comunicativo, assim os proferimentos performativos definem uma dimensão essencialmente pública e dialógica da linguagem, pois servem para executar atos que se definem pela relação palavra/norma social e pela relação palavra/interação. Os proferimentos performativos servem para estabelecer uma forma de comunicação ou de interação entre locutor e interlocutor, por meio da invocação de uma norma ou convenção social, que transforme este proferimento em ação extralingüística dentro das instituições existentes. Os atos que executamos por meio de enunciados performativos executam ações convencionais, ou seja, são executados na medida em que cumprem normas intersubjetivamente estabelecidas. Eles são atos na medida em que cumprem estas normas, e não em virtude de intenções particulares do sujeito. Portanto, são as seguintes condições para realização de um ato performativo, tais como Austin apresenta em sua obra Quando dizer é fazer (1962)

Neste trabalho uma pergunta é central: será que são suficientes as noções austinianas de ato ilocucionário para dar conta da realização da ação em geral? Austin sugere que a captação, pela audiência (ouvinte), do ato lingüístico realizado pelo falante é uma condição necessária para que possamos dizer que o correspondente ato ilocucionário foi

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realizado. Certos tipos de atos ilocucionários incluem respostas convencionais da audiência. Eles parecem desvendar regras de comportamentos coordenados entre falantes e ouvintes. Mas até que ponto é possível estender o alcance dos atos ilocucionários dos proferimentos lingüísticos?

Falar uma língua é adotar uma forma de comportamento regida por regras. Para Searle falar é executar atos de acordo com certas regras. O enfoque é retirado da preocupação com a veracidade das asserções para a concepção de eficácia da palavra enquanto ato de fala. Para melhor discriminar esta modalidade de constituição do sentido dos enunciados faz-se necessário qualificar três tipos de atos distintos e contidos no uso das sentenças de acordo com Searle (1969):

1)Atos de enunciação: enunciar palavras (morfemas, frases.); 2)Atos proposicionais: referir e predicar; e, 3)Atos ilocucionários: entre outros, afirmar, perguntar, prometer, ordenar.

Esta tricotomia é derivada da classificação prévia proposta por Austin. Para a consumação de um ato ilocucionário é necessário executá-lo de acordo com regras. Neste sentido a estrutura semântica de uma língua pode ser vista como uma realização convencional de um conjunto de regras constitutivas subjacentes, e os atos de fala executados pela enunciação de expressões de acordo com esse conjunto de regras. As regras constitutivas de um ato de fala são distintas das regras normativas que governam formas de comportamento pré-existentes de acordo com Searle (1969/1981). Segundo Searle os atos ilocucionários elementares da forma F(P) são expressos nas línguas naturais pelos enunciados elementares da forma F(P), onde F é um maracador de força ilocucionária e P é uma oração. Para Vanderveken o marcador de uma força ilocucionária de um enunciado elementar se compõe de palavras e de outros traços sintáticos cuja significação determina que sua enunciação literal, num contexto possível de uso, tem uma ou, se ele é ambíguo, várias forças ilocucionárias possíveis.

O modo do verbo, a ordem das palavras, a entonação, e os sinais de pontuação são traços constitutivos dos marcadores de força ilocucionária, próprios aos enunciados como, por exemplo, “Zezinho irá retirar as folhas da calçada”, “Por favor, Zezinho, retire as folhas da calçada” e “Tomara que Zezinho retire as folhas da calçada”, pois o importante é observar que um enunciado elementar se compõe de palavras e de outros traços sintáticos desse enunciado cuja significação literal determina que seu proferimento literal, num contexto possível de uso, tem um ou, se ele é ambíguo, vários conteúdos proposicionais. O sujeito e o tempo verbal, por exemplo, são traços constitutivos das orações, próprios aos enunciados do tipo: “Será que Zezinho retirou as folhas da calçada?”, “Mag está retirando as folhas da calçada?” e “Julio retirará as folhas da calçada?”. Assim, dois enunciados elementares com o mesmo marcador de força ilocucionária como “Retire as folhas agora!” e “Me obedeça já!” exprimem nos mesmos contextos, atos com as mesmas forças ilocucionárias. Da mesma forma, dois enunciados elementares que expressão relação sinonímia exprimem, no mesmo contexto, atos de discurso que têm o mesmo conteúdo proposicional, vejamos: “Você retirará as folhas amanhã da calçada” e “Por favor, retire as folhas da calçada amanhã!”

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A determinação das forças ilocucionárias

Na abordagem de Vanderveken (1988) existem cinco, e apenas cinco forças ilocucionárias, no uso da linguagem74. Estas são as forças ilocucionárias mais simples possível. As cinco forças ilocucionárias primitivas das enunciações são:

1) A força ilocucionária assertiva: Esta força ilocucionária tem o objetivo assertivo, o modo de realização e a condição sobre o conteúdo proposicional neutros, a condição preparatória de que o locutor tem razões para acreditar na verdade do conteúdo proposicional, a condição de sinceridade de que o locutor acredita no contudo proposicional e o grau de força neutro. Esta força ilocucionária neutra, é nomeada, em português, pelo verbo performativo assertivo “afirmar”, e ela é realizada sintaticamente em enunciados do tipo declarativo. Os enunciados declarativos simples, cujo marcador de força ilocucionária é idêntico ao seu tipo sintático, servem para fazer asserções.Exemplo: Ele afirmou ter ganho um milhão de dólares na loteria.

2) A força ilocucionária compromissiva: A força ilocucionária compromissiva, tem o objetivo ilocucionário compromissivo, o modo de realização e o grau de força neutros, a condição de que o conteúdo proposicional representa uma ação futura do locutor, a ação, e a condição de sinceridade de que ele tem a intenção de fazê-la; esta força ilocucionária primitiva compromissiva, não é realizada sintaticamente, num modo verbal em Português, mas é nomeado pelo verbo performativo “comprometer-se”75.Exemplo: Prometo retirar as folhas da calçada.

1)A força ilocucionária diretiva: Esta força ilocucionária tem o objetivo ilocucionário diretivo, o modo de realização e o grau de força neutros, a condição de que o conteúdo proposicional representa uma ação futura do interlocutor, a condição preparatória de que o interlocutor pode fazê-la, e a condição de sinceridade de que o locutor deseja ou quer que o interlocutor a faça. Esta força ilocucionária primitiva diretiva, é realizada sintaticamente, em português, em enunciados do tipo imperativo. Todos os enunciados imperativos simples, servem para fazer uma tentativa, com um grau de força médio, de levar o interlocutor a fazer algo.Exemplo: Retire já as folhas da calçada.

4)A força ilocucionária declarativa: Esta força ilocucionária tem o objetivo ilocucionário 74 Vaderveken apresenta uma definição recursiva do conjunto de todas as forças ilocucionárias em seutexto “What is an ilocucionary force?” in M Dascal (ed.), Dialogue and Interdisciplinary Study,Amsterdam: Bejamimns, 1985 e uma definição no seu livro comum com J. R. Searle, Foundations ofIllocucionary Logic, para explicações mais precisas sobre as forças dos atos ilocucionários.75 De acordo com Vandervekem (1988) o fato de que os locutores podem, ás vezes, usar com sucesso enunciados, tais como, (1) “eu prometo que João retirará a neve da calçada”, não é compatível esta análise do objetivo ilocucionário compromissivo, segundo a qual, ele determina a condição de que o conteúdo proposicional representa uma ação futura do locutor. De fato quando a forma lógica do enunciado (1) é completamente analisada, devemos admitir que o locutor que utiliza (1) para fazer uma promessa, significa muito mais do que ele diz, o que ele promete neste caso é tentar influenciar João a fazer a ação em questão. Ver na obra Les Actes de Discours os verbos compromissivos.

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declarativo, o modo de realização e o grau de força neutros, a condição de que o conteúdo proposicional representa uma ação presente do locutor, a condição preparatória de que o locutor é capaz de fazer esta ação na sua enunciação76, e a condição de sinceridade de que o locutor acredita, deseja e quer fazer esta ação. Esta força ilocucionária de declaração é nomeada, em português, pelo verbo performativo “declarar”, e é realizada sintaticamente, nos marcadores complexos dos enunciados performativos.Exemplo: Eu o declaro Culpado! (Declaração realizada por um Juiz em corte)

5)A força ilocucionária expressiva: Esta força ilocucionária tem o objetivo ilocucionário expressivo, o modo de realização e o grau de força neutro, e a condição sobre o conteúdo proposicional, a condição preparatória e a de sinceridade neutras. Ela é realizada sintaticamente, em português, nos tipos de enunciados exclamativos. Não existem enunciados exclamativos que expressem somente a força ilocucionária primitiva expressiva, como também, não existem, verbos performativos simples, que nomeiam esta força77. O objetivo expressivo é o único objetivo ilocucionário dotado de condições de sinceridade variáveis, que fazem parte deste objetivo. Todas as forças ilocucionárias expressivas atuais, de enunciações, são necessariamente complexas, pois não podemos expressar um estado mental, sobre um estado de coisas, representados por uma proposição, sem relacionar esta proposição ao mundo, com o modo psicológico particular. Exemplo: Infelizmente neste sábado à noite está chovendo!

As cinco forças ilocucionárias: assertiva, compromissiva, diretiva, declarativa e expressiva, são as forças ilocucionárias mais simples, no uso da linguagem. Todas as outras forças são mais complexas; estas podem ser derivadas a partir destas cinco forças primitivas, por um número finito de operações que consistem em enriquecer os componentes dessas forças, ou em modificar seus graus de força. (VANDERVEKEN, 1988, 120).

Dado a natureza das forças ilocucionárias, existem seis tipos de operação sobre as forças ilocucionárias, na estrutura lógica da linguagem, segundo Vanderveken. Essas seis operações consistem em : restringir o modo de realização do objetivo ilocucionário, impondo um novo modo especial; em aumentar ou diminuir o grau de força das condições de sinceridade; em adicionar novas condições sobre o conteúdo proposicional, ou adicionar novas condições preparatórias ou de sinceridade. Por exemplo, a força ilocucionária de um pedido, é obtida a partir da força primitiva diretiva, pela imposição do modo especial de realização, que consiste em dar uma opção de recusa ao interlocutor, de outro modo a força ilocucionária de uma pergunta é obtida a partir da força de um pedido, adicionando-lhe a 76 As condições preparatórias das declarações são, a união das condições preparatórias das forças assertiva, compromissiva e diretiva.77 Todavia, nós podemos formar performativos que nomeiam forças ilocucionárias expressivas particulares, em Português combinando o verbo expressar com nomes de estados psicológicos. Assim, por exemplo, uma enunciação bem sucedida de sentenças, tais como, “Eu expresso minha gratidão pelo que você tem feito”, “eu expresso minha total aprovação pela sua conduta”, fazem com que a ação seja realizada. Podemos dizer que a força ilocucionária expressiva é como uma construção teórica; por exemplo, na enunciação de enunciados exclamativos, os locutores expressam sempre estados psicológicos especiais, cujo modo é determinado pela significação dos adjetivos que seguem o advérbio em seus prefixos exclamativos; ao dizer, “como é triste saber que ele morreu!”, um locutor expressa sua tristeza.

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condição sobre o conteúdo proposicional de que este represente um ato de discurso futuro, do interlocutor, ao locutor original. Uma pergunta é um pedido a uma resposta. A força ilocucionária de uma sugestão, é obtida a partir da força primitiva diretiva, pela diminuição de um dos graus de força. Uma sugestão é obtida a partir da força primitiva diretiva, pela diminuição de um dos graus de força. Uma sugestão é uma tentativa mais fraca de levar alguém a fazer alguma coisa. A força ilocucionária de uma recomendação, é obtida a partir da força diretiva de uma sugestão, adicionando a condição preparatória que a ação futura representa pelo conteúdo proposicional, é boa. Finalmente, a força ilocucionária de uma reclamação, é obtida a partir da força de asserção, adicionando-lhe a condição de sinceridade de que o locutor está descontente com o estado de coisa representado pelo conteúdo proposicional.

A adição de um componente à força ilocucionária, pode ser expressa, em português, pela combinação de uma palavra que expressa este componente, com o marcador para esta força ilocucionária. Alguns advérbios modificam o modo do indicativo do verbo, e servem para compor marcadores sintaticamente complexos, que exprimem a força ilocucionária obtida a partir da força de asserção, adicionando-lhe a condição que eles expressam. Por exemplo, um enunciado declarativo cujo verbo é modificado pelo advérbio “infelizmente”, serve para realizar um ato de discurso assertivo mais forte do que uma simples asserção. Um locutor que usa um enunciado do tipo “Infelizmente está nevando!”, não afirma simplesmente que está nevando, mas também, reclama ou lamenta isso, o locutor expressa seu descontentamento, face ao estado de coisas representado pelo uso do advérbio “infelizmente” .

3. Os Componentes das Forças Ilocucionárias

Segundo Vanderveken (1988) cada força ilocucionária é dividida em seis78

componentes, que servem para determinar as condições de sucesso e de satisfação de todos os atos de discurso com tal força. Os seis componentes de uma força ilocucionária são: um objetivo ilocucionário, um modo de realização desse objetivo ilocucionário, conteúdo proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade, e um grau de força. Como veremos existe uma relação lógica entre os seis tipos de componentes de uma força ilocucionária, as condições de sucesso e de satisfação dos atos de discurso elementares com esta força, e os objetivos lingüísticos que esta força ilocucionária serve para realizá-los. (VANDERVEKEN, 1988, 145).

Diferentes componentes de força ilocucionária determinam diferentes condições de

78 Na abordagem de Searle e Vanderveken (1985) em Foundations of Illocucionary Logic, cada força é dividida em sete componentes: O Objetivo Ilocucionário, o Grau de Potência de Objetivo Ilocucionário, o Modo de Realização, as condições sobre o Conteúdo Proposicional, as Condições Preparatórias, as Condições de Sinceridade, o Grau de Potência das Condições de Sinceridade. No entanto, em Les Actes de Discours, Vanderveken (1988) reduz em seis os componentes de força ilocucionária. Segundo ele, cada força ilocucionária consiste em um objetivo ilocucionário, um modo de realização deste objetivo, condições sobre o conteúdo proposicional, condições preparatórias, condições de sinceridade e um grau de potência. O componente das forças ilocucionárias o qual Vanderveken não faz menção é o Grau de Potência de Objetivo Ilocucionário: Um objetivo ilocucionário pode ser atingido com mais ou menos força. Por exemplo, ao fazer uma súplica, o locutor faz uma forte tentativa lingüística para induzir o interlocutor a fazer alguma coisa.Ver Ana Leda de Araújo (1997) Semântica e pragmática dos atos de fala.

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sucesso ou de satisfação, e, conseqüentemente, servem para diferentes objetivos lingüísticos. Assim, duas forças ilocucionárias com os mesmos componentes lingüísticos são idênticas pois todos os atos ilocucionários elementares com essas duas forças e o mesmo conteúdo proposicional têm as mesmas condições de sucesso e de satisfação.Antes de iniciarmos a análise de tais componentes é importante observar que, de um ponto de vista lógico, uma força ilocucionária é mais que uma simples justaposição ou seqüência desses seis componentes. De fato, componentes de um tipo podem determinar componentes de um outro tipo. Por exemplo, alguns objetivos ilocucionários determinam as condições sobre o conteúdo proposicional, as condições preparatórias e as condições de sinceridade. Não é possível para um locutor, realizar esses objetivos, num contexto de enunciação, sem realizá-los sob uma proposição que satisfaça estas condições sobre um conteúdo proposicional, nesse contexto, ou seja, sem pressupor as proposições que são determinadas pelas condições preparatórias e sem expressar os estados psicológicos que são determinados pelas condições de sinceridade.

O objetivo ilocucionário declarativo, por exemplo, determina a condição preparatória de que o locutor tem a autoridade ou o poder de realizar, através de sua enunciação, a ação representada pelo conteúdo proposicional. Todas as forças ilocucionárias com o objetivo declarativo têm este tipo de condição preparatória. Similarmente, certos modos de realização e condições de sinceridade determinam condições preparatórias, no sentido de que não é possível, para um locutor, realizar um objetivo ilocucionário com esses modos ou expressar essas condições de sinceridade sem, também pressupor essas condições preparatórias. Por exemplo, o modo de realização de um testemunho, (que é o de representar um estado de coisas com uma qualidade de um testemunho), determina a condição preparatória de que o locutor é uma testemunha do estado de coisas representado pelo conteúdo proposicional. Da mesma forma a condição de sinceridade de um lamento (que é a de que o locutor está descontente com a existência dos estado de coisas representado pelo conteúdo proposicional), determina a condição preparatória de que este estado existe. Assim, quando uma força ilocucionária tem um tipo de componente, ela tem, igualmente, todos os componentes que são determinados por este componente. Eis abaixo, a análise sistemática dos componentes de todas as forças ilocucionárias, seguindo Vanderveken (1988):

• O Objetivo Ilocucionário

Na realização de um ato de discurso elementar, o locutor sempre liga, de uma certa maneira, o conteúdo proposicional ao mundo da enunciação para determinar uma direção de ajuste entre a linguagem e o mundo. Se, por um lado, o locutor faz uma asserção ou testemunho, o objetivo dessa enunciação é representar como as coisas são, e o conteúdo proposicional dos atos de discurso é suposto para corresponder a um estado de coisas existente, em geral, independentemente no mundo. Tais enunciações, têm a mesma direção de ajuste das palavras às coisas (ou da linguagem ao mundo). Se, por outro lado, um locutor faz um pedido ou dá um conselho, o objetivo de sua enunciação não é dizer como as coisas são no mundo mas, antes, transformar o mundo através da ação futura do interlocutor, de tal modo, que ele se ajuste ao conteúdo proposicional. Tais enunciações, têm a direção de ajuste das coisas às palavras (ou do mundo a linguagem).

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Os objetivos ilocucionários de enunciações79, são:

O objetivo assertivo que consiste em representar um estado de coisas como atual;O objetivo compromissivo que consiste em comprometer o locutor a uma ação futura;O objetivo diretivo que consiste em fazer uma tentativa lingüística para levar o interlocutor a fazer uma ação futura;O objetivo declarativo que consiste em realizar uma ação tornando como atual um estado de coisas pela própria representação da realização desta ação;O objetivo expressivo que consiste em expressar os estados mentais do locutor sobre um estado de coisas.

De um ponto de vista lingüístico, esta classificação dos objetivos ilocucionários é empiricamente justificada, pois somente estes cinco objetivos ilocucionários são necessários para analisar os marcadores de força ilocucionária e os verbos performativos de qualquer língua natural. Além disso, também é possível justificar e argumentar filosoficamente que estes cinco objetivos ilocucionários exaurem as diferentes direções de ajuste80 possíveis entre a linguagem e o mundo. Existem quatro e somente quatro direções de ajuste das enunciações, e estas quatro direções de ajuste, correspondem, naturalmente, aos cinco objetivos ilocucionários, se consideramos também a idéia de responsabilidade pelo ajuste, como veremos a seguir. As quatro direções de ajuste são:

A) A direção de ajuste das palavras às coisas (ou da linguagem ao mundo): quando o ato ilocucionário é satisfeito, seu conteúdo proposicional corresponde a um estado de coisas existente no mundo (em geral) independentemente. Os atos de fala que têm o objetivo assertivo, tais como, as predicações, os testemunhos, as conjecturas, as asserções, e as objeções têm a direção de ajuste das palavras às coisas (ou da linguagem ao mundo). Seu objetivo é de representar como as coisas são no mundo.

B) A direção de ajuste das coisas as palavras (ou do mundo à linguagem) : quando o ato ilocucionário é satisfeito, o mundo é transformado para ajustar-se ao conteúdo proposicional. Os atos de discurso com objetivos ilocucionários compromissivos ou diretivos, tais como, as promessas, os votos, as recomendações, as súplicas e as ameaças, têm a direção de ajuste das coisas as palavras (ou do mundo à linguagem). Seu objetivo ilocucionário, é de fazer o mundo ser transformado pela ação futura do locutor, (no caso das forças compromissivas), ou do interlocutor, (no caso das forças diretivas), de maneira que, ele corresponda ao conteúdo proposicional da enunciação. Os locutores e interlocutores exercem papéis fundamentais, na realização dos atos de discurso, que são distintos naturalmente, na linguagem, como dois objetivos ilocucionários diferentes com a direção de ajuste das coisas às palavras: o objetivo compromissivo, que tem o locutor como 79 J. R. Searle foi quem primeiramente apresentou esta classificação dos objetivos ilocucionários: “A Taxonomy of Ilocucionary Acts” in K. Gunderson (ed.), Language, Mind and Knowledge. Minnesota Studies in the Philosophy of science, vol. VII, University of Minnesota Press, 1975.80 Este termo é utilizado por Austin em How to do things with words, Oxford UP, 1962/1986.

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base da direção de ajuste, e o objetivo diretivo que tem o interlocutor como base da direção de ajuste das coisas às palavras. No caso das enunciações compromissivas, a responsabilidade da realização, e do sucesso do ajustamento, é assinalada ao locutor; no caso das enunciações diretivas, é designada ao interlocutor.

C) A dupla direção de ajuste: quando o ato ilocucionário é satisfeito, o mundo é transformado pela ação presente do locutor para se ajustar ao conteúdo proposicional pelo fato de que o locutor representa o mundo como estando assim transformado. Os atos de discurso com o objetivo ilocucionário declarativo, tais como, os atos de demitir, de excomungar, de endossar, definir e capitular têm a dupla direção de ajuste. Seu objetivo ilocucinário é de fazer com que o mundo corresponda ao conteúdo proposicional em dizendo que o conteúdo proposicional corresponde ao mundo.

D) A direção de ajuste vazia: para alguns atos ilocucionários, não é uma questão de sucesso ou insucesso de ajuste; o locutor pressupõe, geralmente, que seu conteúdo proposicional é verdadeiro. Os atos de discurso com o objetivo expressivo, tais como, as desculpas, os agradecimentos, as felicitações, e as condolências têm a direção de ajuste vazia. Seu objetivo é simplesmente exprimir um estado mental do locutor a propósito do estado de coisas representado pelo conteúdo proposicional81. Não é de representar este estado de coisa como atual nem de tentar fazer com que um estado de coisa seja atual no mundo. Como o objetivo ilocucionário de um ato de discurso determina a direção, qual correspondência deve ser realizada, entre a linguagem e o mundo, para que este ato seja satisfeito, a realização do objetivo ilocucionário, sobre o conteúdo proposicional é essencial para o sucesso de toda a enunciação. (VANDERVEKEN, 1988, 92)

Assim, na realização de um ato ilocucionário da forma F(P), o locutor realiza sempre o objetivo da força F sobre o conteúdo proposicional P no contexto dessa enunciação. Por exemplo, ao afirmar que neva na França, um locutor representa como atual um estado de coisas particular. Similarmente, ao prometer ir a Paris, um locutor se compromete a realizar uma ação particular. Cada objetivo ilocucionário cumpre um objetivo lingüístico, que lhe é próprio, ao ligar as proposições ao mundo, por ocasião da realização dos atos de discurso. Vale observar que, diferentes objetivos ilocucionários têm diferentes condições de realização, no uso da linguagem. Assim, cada objetivo ilocucionário pode ser identificado formalmente com a função que determina suas condições de realização. Por exemplo, as perguntas, as ordens, as súplicas, os pedidos, os comandos, e os conselhos, são todos atos de discurso com o mesmo objetivo ilocucionário diretivo, porém diferentes forças ilocucionárias. As forças ilocucionárias específicas de tais atos ilocucionários diretivos diferem sob outros aspectos que são instâncias de outros componentes de força ilocucionária.

O Modo de Realização

Os objetivos ilocucionários, como a maioria de nossas ações, podem ser realizados 81 Ver o texto e Candida Jaci (2001) “Possible Directions of Fit between Mind, Language and the

Word” em Essays in Speech Acts Theory, Edited by Daniel Vanderveken and Susumu Kubo .

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de diversas maneiras e por diversos meios. O modo de realização é o meio pelo qual se dá a realização do objetivo. Por exemplo, para dar uma ordem a alguém, é necessário invocar, ao dar a ordem, uma posição de autoridade que não permita nenhuma opção de recusa ao interlocutor. Em suma, o modo de realização do objetivo ilocucionário pode ser entendido como os traços que distinguem, por exemplo, um pedido de uma ordem. Um modo de realização é, então, um modo especial de realização de um objetivo ilocucionário, quando ele propriamente, restringe as condições de realização deste objetivo. Os modos especiais de realização dos objetivos ilocucionários são nomeados em português por advérbios tais como “humildemente”, polidamente, e “certamente” que modificam o verbo performativo em enunciados performativos como “peço-lhe humildemente que retire as folhas da calçada!” “ou “ Eu te suplico para retirar as folhas da calçada”, assim por exemplo, o locutor no exemplo referido faz um pedido que assemelha-se a uma súplica, pois o ato de suplicar é um pedido feito humildemente de acordo com o modo de realização. Em português existem outras expressões mais complexas, que não utilizam explicitamente advérbios, mas nomeiam outros modos de realização, tais como: “Eu te peço, como amigo, e não como seu chefe, para retirar as folhas da calçada!”.

As condições sobre o Conteúdo Proposicional

Várias forças ilocucionárias impõem condições sobre os conteúdos proposicionais de atos de fala com estas forças. É o caso, por exemplo, do conteúdo proposicional de uma predição, o qual deve representar, com relação ao momento da enunciação, um futuro estado de coisas. Assim, o conteúdo proposicional de uma predição não deve representar, ao contrário de um conteúdo proposicional de um relato, um estado de coisas passado ou presente, no momento da enunciação; o conteúdo proposicional de uma promessa deve representar uma ação futura do locutor. Com efeito um locutor não pode fazer uma tentativa lingüística para conseguir que o interlocutor faça alguma coisa sem expressar a proposição que o interlocutor realizará uma ação futura com o objetivo ilocucionário de realização do mundo às palavras. Todavia, outras condições sobre o conteúdo proposicional das forças ilocucionárias são as condições especiais dessas forças. Por exemplo, as condições sobre o conteúdo proposicional de um relato, são especiais, pois, podemos representar, como atuais, estados de coisas futuros ou intemporais. Em português as condições sobre os conteúdos proposicionais, são expressas, por restrições sintáticas sob a forma gramatical das orações dos enunciados elementares. O tempo verbal do modo principal de um enunciado imperativo não pode representar um momento passado, com relação ao momento da enunciação. Um enunciado imperativo do tipo “Retire já as folhas da calçada de amanhã!”, é mal formado e lingüisticamente estranho.

As Condições Preparatórias.

O locutor pressupõe que certas condições preparatórias de uma força ilocucionária são efetuadas quando da realização de um ato de linguagem. Elas são as pressuposições do locutor. Por exemplo, um locutor, quando dá uma ordem a alguém, pressupõe que o interlocutor é capaz de lhe obedecer. Quando um locutor pretende realizar um ato ilocucionário ele pressupõe (ou toma por garantia) que certas proposições são verdadeiras

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no contexto de sua enunciação. As condições preparatórias de uma força ilocucionária servem para determinar um tipo de condição de sucesso especial relativa às pressuposições do locutor no contexto de uma enunciação. Por exemplo, um locutor que testemunha um processo pressupõe, por exemplo, que ele foi testemunha do estado de coisas representado pelo seu conteúdo proposicional. Da mesma forma, um locutor que repreende o interlocutor de ter feito qualquer coisa pressupõe que esta ação passada era má ou repreensível. Tais condições necessárias para a realização sem defeito de atos de discurso são chamadas de condições preparatórias, constituindo assim o quarto componente das forças ilocucionárias e serve para determinar um tipo de condição especial de sucesso relativa ás pressuposições do locutor no contexto de uma enunciação.

As Condições de Sinceridade.

No ato de uma enunciação, o locutor exprime um estado mental, relativamente ao conteúdo proposicional desta enunciação. Por exemplo, num agradecimento, o locutor exprime gratidão; numa asserção uma crença, etc. Tais estados mentais são atitudes proposicionais da forma M(P), onde M é um modo psicológico como, por exemplo, desejar, esperar ou arrepender-se, e P uma proposição. É claro que um locutor pode expressar um estado mental que ele não tem em si, e é por isso que os atos ilocucionários possuem condições de sinceridade. A realização de um ato ilocucionário é sincera, quando um locutor tem o estado mental que ele expressa, na realização deste ato, e ele é insincero, em caso contrário. As condições de sinceridade são os componentes intrínsecos das forças ilocucionárias. Assim, cada força ilocucionária F, tem um componente, chamado condição de sinceridade de F, que determina o modo psicológico do estado mental que o locutor deve ter em si, se ele está sinceramente realizando um ato de discurso, com esta força, num contexto possível de enunciação. É paradoxal tentar realizar um ato ilocucionário e negar, simultaneamente, uma das suas condições de sinceridade. Assim, por exemplo, não podemos dizer “está chovendo e eu não acredito nisso!”, ou “Por favor, seja gentil com Maria, e eu não quero que seja gentil com Maria!”. Tais enunciados são lingüisticamente estranhos e são analiticamente mal sucedidos, pois é contraditório expressar um ato mental e, ao mesmo tempo, negar que nós o possuímos.

O Grau de Potência

Na realização do ato ilocucionário, o locutor exprime um estado psicológico com mais ou com menos intensidade. Por exemplo, um testemunho aumenta o grau de força de uma asserção: o locutor que testemunha exprime uma crença mais forte. Similarmente o grau de força das condições de sinceridade de uma súplica, é maior do que o de um pedido. Os estados mentais que entram nas condições de sinceridade dos atos de discurso são expressos com diferentes graus de força, segundo a força ilocucionária da enunciação.

O grau de força é em geral expresso oralmente pela entonação da voz, em português, e em outras línguas naturais. Assim um aumento do grau de força da entonação da voz serve, geralmente, para aumentar o grau de força das condições de sinceridade. Advérbios como, “sinceramente”, e “francamente”, também servem para aumentar o grau de força das condições de sinceridade, em enunciados do tipo, “Francamente, o Brasil

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perdeu o jogo de ontem”, “Eu lhe aconselho, sinceramente, de fazê-lo”, e “Francamente, por favor, faça as pazes!”. Teoricamente não existe limite superior ao grau de força, com o qual os estados psicológicos, determinados por uma condição de sinceridade, podem ser expressos, num contexto possível de enunciação.

Algumas considerações finais

Quando a comunicação ocorre numa perspectiva dialógica podemos dizer que regras de realização dos atos ilocucionários foram cumpridas. As regras não são apenas convenções sintáticas e semânticas, mas gozam do caráter constitutivo dos sistemas convencionados em um dado meio e estipulam as condições de sucesso de um ato de fala. Os atos de fala pressupõem sempre uma instituição social, ou seja, uma maneira institucionalizada de proceder e o quadro da instituição social em que esse comportamento tem lugar.

Além do critério de regras e as dimensões e variações dos atos ilocucionários, existe a idéia de força ilocucionária como parte da significação, a fim de preencher as lacunas que possam existir no diálogo. Mas mesmo o modelo de uma força ilocucionária82 básica, constitutiva de qualquer emissão proposicional como representativo da estrutura dos atos de fala é incompleto. É necessária uma distinção entre as diferentes situações discursivas que dão uma especificidade a cada ato de fala. Conforme Searle, a “metáfora” de força é enganosa, pois sugere que forças ilocucionárias diferentes ocupam diferentes posições em um único contínuo de força.

Os atos de fala que Austin considerou como atos ilocucionários são os atos que se realizam simplesmente pela enunciação. Os atos ilocucionários elementares completos são formados por uma força ilocucionária F, que define o ato ilocucionário, e um conteúdo proposicional P. No entanto, alguns deles não são completos quando por exemplo, são da forma F(R), onde R é apenas uma referência como: “Viva a Pátria”; outros são da forma F(Ø), onde existe apenas a força: por exemplo, uma interjeição de espanto “Ui” não possui conteúdo proposicional. Dessa forma, os enunciados que são utilizados para realizar atos ilocucionários elementares são composto simultaneamente, por um indicador de força ilocucionária (assertivo, diretivo, força de promessa, etc.) e de uma cláusula expressando um conteúdo proposicional.

Vale observar que logo acima nos referimos a atos ilocucionários elementares, quanto aos atos ilocucionários complexos, os mais importantes são da forma: P → F(Q), chamados atos de falas condicionais, onde F(Q) se realiza somente se P for uma proposição verdadeira {F1 (P1) ۸ F(P2)} que são as conjunções de atos ilocucionários; ¬ F(P) , que são os atos de negação ilocucionária. A linguagem tem muitas funções e o ato ilocucionário significa a expressão de determinada função. É muito importante distinguir essas diversas funções, isto é, distinguir a força ilocucionária de nossos atos ilocucionários. O ato ilocucionário é aquele que se executa na medida em que se diz algo, isto é, na

82 É importante observar que a maioria dos atos de fala ilocucionários são da forma F(P), tendo uma força ilocucionária F, e um conteúdo proposicional P. Vejamos a demarcação entre força ilocucionária e conteúdo proposicional de acordo com os seguintes exemplos: o proferimento dos dois enunciados interrogativos: “Você é feliz?” e “Está nevando?” num mesmo contexto de enunciados possui a mesma força ilocucionária de perguntas, mas conteúdos proposicionais diferentes.

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medida em que se executa um ato locucionário. É importante estar atento para a seguinte definição: como o ato ilocucionário não é

em muitos casos explícito, sua força só pode ser explicitada por meio da consideração de todo o contexto. Até aqui é possível perceber que a comunicação lingüística impõe determinadas regras que garantem que as intenções dos falantes não se imponham sem razões, e que a ação mediada pela linguagem tem que ser entendida, no sentido dessas regras. Comunicativas são as ações nas quais as pessoas envolvidas se põem de acordo para coordenar seus planos de ação, o acordo alcançado em cada caso é medido pelo reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validez que os falantes erguem com seus atos de fala. O agir é motivado intencionalmente pelo outro para uma ação de adesão, e isso em virtude do efeito ilocucionário de comprometimento que a oferta de um ato de fala suscita. Que um falante possa motivar intencionalmente um ouvinte à aceitação de semelhante oferta [se explica] pelo modo como ele se posiciona, dos recursos lingüísticos que ele utiliza, da maneira como ele se expressa, ou como Searle prefere das forças ilocucionárias assumidas. O falante buscando um efeito de coordenação se esforçará, se necessário, para alcançar a pretensão erguida. Tão logo o ouvinte confie na garantia oferecida pelo falante, entram em vigor as obrigações relevantes para a seqüência da interação que estão contidas no significado do que foi dito. Graças às forças ilocucionárias e seus componentes à base de validez da comunicação voltada para o entendimento mútuo, um falante pode, por conseguinte, ao assumir a garantia de alcançar uma pretensão de validade aceitável, mover um ouvinte à aceitação de sua oferta de ato de fala e assim alcançar para o prosseguimento da interação um efeito de acoplagem a seu objetivo lingüístico.

Nesta análise acerca da Teoria dos Atos de Fala torna-se cabível observar que, entre todos os modos possíveis de realização de objetivos ilocucionários, todas as condições possíveis sobre o conteúdo proposicional, e todas as condições preparatórias, condições de sinceridade e graus de potência possível, somente uma reduzida parte desses componentes é lingüisticamente significante e necessária a análise das forças ilocucionárias, expressas ou nomeadas pelos marcadores de força ilocucionária, e pelos verbos performativos de qualquer língua natural. Vejamos algumas razões apontadas por Vanderveken (1988) para compreendermos que somente alguns componentes possíveis das forças ilocucionárias são atuais e relevantes:

•As forças ilocucionárias atuais são como espécies naturais de uso da linguagem humana. Elas servem aos objetivos lingüísticos que são importantes às sociedades humanas que falam uma língua determinada, em seus ambientes históricos e naturais;•Todos os modos especiais de realização de objetivos ilocucionários, todas as condições preparatórias e de sinceridade, das forças ilocucionárias atuais, de uma língua determinada, são lingüisticamente significantes para a comunidade dos locutores dessa língua, no momento do tempo considerado.•Nos nossos jogos de linguagem humanos, e de outras formas de vida, existem certos traços que são onipresentes e essenciais para o uso da linguagem; são entre outros: o tempo, o lugar, o locutor e o interlocutor de cada contexto de enunciação, as capacidades do locutor e do interlocutor e as relações de parentesco que podem existir entre eles, o

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status relativo do protagonista da enunciação, o que é contra ou a favor de seus interesses.•Alguns dos componentes são transcendentais e são realizados em todas as línguas. As condições preparatórias determinadas pelos cinco objetivos ilocucionários são universalmente válidos, lingüisticamente significativos em todas as línguas naturais, esses objetivos são usos básicos da linguagem.•Os valores éticos de uma comunidade lingüística podem determinar condições preparatórias especiais para o estado de coisas que o conteúdo proposicional representa, como por exemplo valores acerca do bom e do mau.•Muitos outros traços constitutivos do uso da linguagem são imanentes e não transcendentes. Eles são relativos ao estado particular do progresso ou ambiente histórico de uma sociedade humana particular, pois nem todas elas possuem as mesmas instituições históricas correspondentes.•Falar uma língua é interagir nas conversações e outras atividades relacionadas com outras formas de vida. Os locutores e interlocutores de uma língua, não se compreenderiam entre si, se não partilhassem as mesmas formas de vida e informações sobre o pano de fundo de suas enunciações83. •Muitos modos especiais de realização e conteúdos proposicionais ou condições preparatórias são enraizados nas atividades humanas e nas formas de vida historicamente determinadas nas sociedades modernas, como os traços culturais que pertencem a uma sociedade e são constitutivos e significativos para tal sociedade. •Algumas condições sobre o conteúdo proposicional e condições preparatórias, que eram lingüisticamente significativas para outras comunidades sociais, no passado, não são mais, hoje em dia, para sociedades atuais lingüisticamente significativas.•As atividades lingüísticas, e outras formas de vida social, evoluem com o tempo; podemos conceber sociedades lingüísticas de seres humanos para os quais, dados inteiramente diferentes no mundo, seriam lingüisticamente significativos. Ao considerar todos os modos de realização possíveis, todas as condições sobre o conteúdo proposicional, e todas as condições preparatórias e de sinceridade, assim como o grau de potência, é possível perceber, com clareza, que em cada língua humana particular, existe somente um número finito de componentes de base, especiais, atuais e necessários à análise de forças ilocucionárias expressas ou nomeadas pelos marcadores de força ilocucionáriua, ou pelos verbos performativos desta língua.

Os objetivos lingüísticos dos atos ilocucionários elementares nos contextos de uso das línguas naturais determinam suas condições de sucesso e de satisfação. Assim, dois atos de discurso elementares com o mesmo conteúdo proposicional que são realizados nas mesmas condições são idênticos e, tem a mesma função no uso da linguagem.

83 WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Petrópolis: Vozes, 1994

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GRAMATICALIZAÇÃO DO VERBO HABER NA LÍNGUA ESPANHOLA: UM ESTUDO DIACRÔNICO

Marcelo Ribeiro Martins – Université de Sherbrooke

Resumo

Este trabalho visa investigar o comportamento do verbo haber na língua espanhola nos períodos moderno e contemporâneo. Através de estudo comparativos buscou-se averiguar a freqüência do uso desse verbo e também a freqüência dele como item lexical e como item gramatical na língua espanhola. A fim de atextar os processos de gramaticalização desse verbo e lexicalização desse verbo em uma diacronia específica, coletou-se dados dos séculos XVIII e XX.

Resumen

Este trabajo busca investigar el comportmiento del verbo “haber” en la lengua española en los períodos modernos e contemponráneos. Por medio de estudios comparativos, buscó verificar la frecuencia del uso de tal verbo y aun la de él como ítem lexical e como ítem gramatical en el español. Con el objetico de averiguar los procesos de gramaticalizacion y de lexicalizacion de ese verbo en una diacronia específica, juntó dadis del siglos XVII y XX.

Palavras-chave: História da língua espanhola, Gramaticalização do verbo HABER, Variação do verbo haber.

1 - Introdução

Este trabalho visa investigar o comportamento do ver haber na língua espanhola no períodos moderno e contemporâneo. Através deste estudo buscará averiguar a freqüência do uso desse verbo e também a freqüência dele como item lexical e como item gramatical na língua espanhola. Isso por que este verbo pode ser encontrado sendo usado tanto com função lexical, como em (1), como com função gramatical como em (2) e em (3).

(1) En la ciudad hay muchos bancos.(2) Yo he visto a María ayer por la noche solamente.(3) Ha de ser buena la fiesta de cumpleaños de Julia.

Posteriormente, estes usos serão comparados, segundo as suas ocorrências nos dois períodos em estudo, para verificar se há indícios de gramaticalização.

Para isso se lançará mão dos pressupostos de Hopper e Trogott (1993) e Vitral (2001) e (2005a) sobre o que eles apresentam sobre o processo de gramaticalização e também sobre as diretrizes teóricas que buscam fundamentar o desenvolvimento de uma metodologia quantitativa para identificar processos de gramaticalização. E ainda usará as conclusões de Coelho (2006) sobre os o processo de gramaticalização dos verbos auxiliares

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do português para se basear no estudo do espanhol. Ainda será estudado o uso

2 – O processo de gramaticalização

O processo de gramaticalização tem sito objeto de estudos por Hopper e Traugott (1993) sendo que eles se baseiam nos estudos de Meillet (1958) e de Humboldt. Vitral (1996) também ao estudar sobre esse processo baseia-se na definição de Hopper e Traugott (1993) para descrever que a gramaticalização como uma mudança de um estado da língua no qual um termo da língua perde "significado", deixando de exercer função lexical para desempenhar uma função gramatical.

Cunha et al. (2003), tendo por base sua visão funcionalista, afirmam que a gramaticalização está relacionada a discursivização, fenômenos estes que estão relacionados ao um processo de regularização da língua. Nesse processo o fator que medidor da regularidade é o uso. Ou seja, quanto mais usado um item é, mais gramatical ele se torna. E quanto menos usado mais discursivo ele se torna.

De acordo com Vitral (1996 apud Hopper e Traugott 1993) a gramaticalização se dá em uma língua de maneira lenta. A mudança de um item lexical para item gramatical ocorre respeitando etapas que tendem a suceder-se de forma similar nas línguas. Sendo, aparentemente, consensual a estes estudiosos as seguintes etapas do processo (4):

(4) item com significado lexical > item gramatical > clítico > afixo

Pezatti (2005) afirma o seguinte, em concordância com o que pensam os autores apresentados anteriormente:

"... a definição de 'gramaticalização' implica a idéia de um processo pelo qual um item lexical, ou uma estrutura lexical, passa, em certos contextos, a exercer uma função gramatical ou um item gramatical passa a exercer uma função ainda mais gramatical." (Pezatti, 2005:196)

Segundo Coelho (2006) e Vitral (2005a), os verbos auxiliares do português podem ser considerados em um processo de gramaticalização, sendo o verbo haver do português, um desses verbos considerados auxiliares pela autora e correspondente ao verbo haber do espanhol. Para a autora, o processo de gramaticalização sofrido por este verbo além de respeitar o processo proposto anteriormente, também tende a segui estágios de mudança que corresponde ao esquema (5):

(5) Sintaxe > morfologia > morfofonêmica > estagio zero

Neste trabalho, pretende-se examinar, através da noção de gramaticalização, com qual função se leva em consideração o item como lexical ou gramatical, a freqüência do uso do verbo haber do espanhol é usado atualmente em contraste com o uso que ele tinha no período moderno, em especial no século XVIII.

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3 – Os corpora

Tendo em vista atender as diretrizes de escolhas do corpus apresentada por Vitral (2005a), que valoriza a maior variabilidade de ambientes semânticos, selecionou os textos listados abaixo. Os textos possuem as seguintes características: 1) Períodos diferentes: moderno (século XVIII) e contemporâneo (século XX e XXI). 2) Gêneros textuais diferentes sendo eles: Cartas, Leis e sonetos. Para cada período há um texto de cada gênero escolhido. 3) Tamanhos de textos com um número de palavras aproximados. O gênero sonetos foi agrupado um total de 30 sonetos, escolhidos aleatoriamente para cada período em estudo. Ou seja, 15 sonetos para cada período.

PERÍODO MODERNOTexto Descrição Datação Nº de palavras Abrev

.Sonetos de Don Eugenio Gerardo Lobo. CUETO (1952a)

Coleção de 15 sonetos.

Século XVIII 1.737 SM

Cuestiones de filosófica Moral de Don Alonso Tostado. CUETO, (1952b)

Capítulos I e II da 1ª parte do livro.

Entre 1770 e 1780 1.173 FM

Cartas de D. Fr. Benito Jerónico Feijoo y Montenegro, FILOSOFIA.ORG (2006).

Trecho da 1ª carta sobre o teatro crítico universal.

1742 1.350 CM

PERÍODO CONTEMPORÂNEOTexto Descrição Datação Nº de palavras Abrev

.Sonetos de poetas contemporaneos: Gabriela Mistral, Neruda, Hidalgo, entre outros.

Coleção de 15 sonetos.

Século XX e XXI 1.596 SC

Ley 28/2005 Ley del tabaco en España

Reflexião introdutoria da lei

12/2005 2.481 FC

Cartas a Guardans Luis Herrero. Liberdade digital (2006)

Garda de Luis Herrero a seu Tio

2005 1088 CC

Tabela 01 – Os corpora

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4 – Hipótese

Assumirá como hipótese principal o fato de o verbo haber ser um verbo amplamente usado no contexto comunicativo, tanto oral como escrito, da língua espanhola exercendo tanto função lexical como em (1) quanto função gramatical como em (2). isto é, essas duas formar coexistem no espanhol contemporâneo. Como hipótese específica adotará as etapas do processo de gramaticalização considerado consensual pelos estudiosos do tema, já mencionados, para atestar que este verbo está em processo de gramaticalização. Ou seja, o verbo haber do espanhol está deixando ser um item lexical e sendo maior usado como item gramatical.

5 – Análises dos dados

Análise dos dados se dará primeiramente levando a perda de valor semântico do verbo. No segundo momento se apresentará a porcentagem de ocorrência do verbo em cada uma das funções nas quais ele é encontrado nos dados.

5.1 – Do valor semântico das ocorrências

Buscou-se separar em cada texto as ocorrências do verbo haber como item lexical e como item gramatical. Para esse fim, teve por base a análise da carga semântica do verbo.

Quando o verbo haber é usado como um item lexical, ele tem somente valor semântico de "Existir" como nos exemplos dos dados a seguir:

(6) "Solo para mi amor no hay primavera..." (SM)(7) "...de las teológicas no ha alguna que tenga..." (FM)(8) "Si en un vaso, donde hay algo de aceite..." (CM)(9) "...sabrás que en nuestra alianza signo de astros había..." (SC)(10) "Asimismo, hay evidencias científicas de que el humo del tabaco..." (FC)(11) "... Una sociedad cae si no hay libertad..." (CC)

Como item gramatical, o verbo é auxiliar na formação dos tempos compostos ou de perífrase verbais como está ilustrado nos exemplos dos dados a seguir:

(12) "Gusté la infancia sin haber gozado..."(13) " Admiro que esta duda no haya ocurrido a alguno de los autores que he leído." (CM)

(14) "...y que hemos de soñar sobre la misma almohada." (SC)(15) "...Que las corte generales han aprobado..." (FC)(16) "...le he enviado a Ignasi..." (CC)

5.2 – Da porcentagem das ocorrências como item lexical e como item gramatical.

O calculo da porcentagem das ocorrências do verbo em relação ao texto, e a relação porcentual das ocorrências do verbo como item lexical e como item gramatical estão apresentados na tabela seguinte:

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% de Haber % item Lexical % item gramatical Período ModernoSM 0,515% 33,35% 66,65%FM 0,593% 100% 0%CM 0,684% 50% 50%Médias do Período Moderno0,443% 61,12% 38,88%Período Contemporâneo SC 0,563% 33,65% 66,65%FC 0,403% 10% 90%CC 1,195% 7,69% 92,30%Médias do Período Contemporâneo0,721% 17,11% 82,98%

Tabela 02 – Porcentagem de ocorrências do verbo haber por tipo de item e período.

Comentemos os resultados encontrados na tabela 01. Os valores encontrados corroboram com a hipótese de gramaticalização do verbo haber. A comparação das médias por período destaca que houve um aumento no uso desse verbo que passou de 0,433% no período moderno para 0,721% no período contemporâneo (ver gráfico 01).

Tendo como fundamento as afirmações de Cunha et al. (2003) o verbo haber do espanhola está passando por um processo discreto de gramaticalização devido aumento na freqüência de seu uso. As afirmações dessa autora respondem a questão deixada por Vitral (2005a) sobre a significância do crescimento da freqüência no uso do verbo em relação a sua gramaticalização.

Analisando as medias das ocorrências do verbo, segundo a função que exerce no texto, é notório que houve um crescimento do uso como item gramatical de 38,88% para 82,98%, e que houve uma queda também significativa do uso dele como item lexical de 61,12% para 17,11%. Para melhor visualizar, observe o gráfico 02. Sendo esses números relevantes para se afirmar que houve gramaticalização do verbo em estudo.

6 – Conclusões

A proposta inicial deste trabalho foi atestar se o verbo haber da língua espanhola estava passando por processo de gramaticalização. Como se viu, por meio da análise freqüência do uso do verbo, pode-se afirmar que o verbo está se gramaticalizando devido o aumento de sua freqüência nos dois períodos estudados. Outro ponto de apoio para a afirmação de gramaticalização desse verbo é o fato de ele, ao longo do período moderno e contemporâneo ter perdido carga semântica, fruto de uma queda significativa do seu uso como item lexical e o aumento, também significativo de seu uso como item gramatical.

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7 – Referências

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CRENÇAS DE UMA PROFESSORA DE INGLÊS-LE QUANTO À UTILIZAÇÃO DAS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM DENTRO DO

PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM

Marcia Regina Pawlas CarazzaiMestre em Letras-Inglês e Literaturas Correspondentes – UFSC

Professora do Departamento de Letras Universidade Estadual do Centro-Oeste – PR

Tânia Aparecida VazGraduada em Letras-Inglês – UNICENTRO

Universidade Estadual do Centro-Oeste – Guarapuava – PR

Resumo: Este artigo apresenta uma pesquisa qualitativa que investigou as crenças de uma professora de inglês–LE com relação às concepções de linguagem subjacentes a sua prática. Os dados foram coletados através de observações e gravações em áudio de dez aulas de Língua Inglesa IV e de um questionário aberto entregue à professora. Os resultados apontam que essa professora fez uso de três concepções de linguagem em suas aulas, considerando essas inseparáveis e pertinentes à obtenção de um resultado efetivo em sala de aula.

Palavras-chave: crenças; prática; concepções de língua e linguagem

Abstract: This paper presents a qualitative study which focused on an English as a foreign language teacher’s beliefs and behaviors related to the conceptions of language. Data were collected with observation and audio recording of ten English Language IV classes and an open questionnaire handed in to the teacher. The results show that the teacher used three conceptions of language in her classes, considering them inseparable and relevant to the purpose of having effective results in classroom.

Key words: beliefs, behaviors, conceptions of language

Introdução

Segundo teóricos como Almeida Filho (1993) e Barcelos (2000), dentre outros, as crenças desempenham um papel importante no ensino/aprendizagem. O número de dissertações e teses relacionadas a esse assunto tem crescido bastante (cf. Barcelos, 2004), o que mostra a importância e interesse por esse tema. Devido a essa relevância, neste estudo foi analisada a importante questão quanto à maneira como o professor concebe a linguagem e a língua, pois a partir destas crenças é que se estrutura o trabalho com a língua em termos de ensino.

Conforme Travaglia (1996) é possível a linguagem pode ser concebida de três formas: como expressão do pensamento, como comunicação e/ou como interação. Portanto, foi desenvolvida uma pesquisa qualitativa e de cunho etnográfico, em uma turma

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de graduandos em uma universidade estadual do Paraná, nas aulas de Língua Inglesa IV. Este trabalho teve por objetivo evidenciar como a professora em questão concebia

a língua e linguagem. Pretendeu-se verificar em que momentos, durante sua prática, esta professora achou conveniente utilizar-se de um tipo ou de outro de concepções de linguagem. Intencionou-se também evidenciar o modo como ela utilizou tais concepções no momento do processo ensino/aprendizagem. Finalmente, foi averiguado qual das concepções de linguagem foi mais utilizada por esta professora, nas aulas de Língua Inglesa.

O primeiro momento deste artigo consiste em fundamentações teóricas sobre crenças e concepções de linguagem. Posteriormente, o artigo fornece uma investigação das atitudes tomadas em sala de aula por esta professora, bem como as possíveis crenças que ela tem em relação a sua prática vinculada à utilização das concepções de linguagem durante o processo de ensino/aprendizagem. Em seguida, este artigo apresenta os resultados obtidos nesta pesquisa e as considerações finais.

Crenças

Para poder evidenciar em que perspectiva a professora em questão na pesquisa concebe língua e linguagem, faz-se necessário primeiramente conceituar o termo “crenças”, pois a maneira como o processo de aprendizagem de línguas ocorre é muitas vezes um reflexo das próprias crenças do professor (Cf. BARCELOS, 2006, RICHARDSON, 1996, dentre outros).

Atualmente a palavra crenças tem sido descrita como um conceito complexo e confuso (PAJARES, 1992), não existindo apenas uma definição para crenças, mas sim várias definições e conceitos. Com relação a definição do termo, Barcelos (2004) fez um levantamento das várias definições do termo crenças com base em estudos publicados em mais de uma década de pesquisa, e chegou à conclusão que as definições dadas mostram que em geral as “crenças se referem à natureza da linguagem e ao ensino/aprendizagem” (BARCELOS, 2004, p. 132).

Em um trabalho acerca de metodologia de pesquisa sobre crenças, Barcelos (2001) afirma ainda que as crenças podem ser estudadas seguindo três abordagens: a normativa, a metacognitiva, e a contextual. Conforme Barcelos, na abordagem normativa, as crenças são vistas como explicação para o comportamento, em uma relação causa-efeito, e são inferidas a partir de sentenças pré-estabelecida em questionários do tipo likert-scale. Na aborgdagem metacognitiva, as crenças aparecem como conhecimento metacognitivo e são verificadas por meio de entrevistas. Já na abordagem contextual, as crenças são vistas como parte do contexto e os estudos têm natureza etnográfica.

Sendo assim, neste trabalho optou-se por definir crenças dentro de uma abordagem contextual, que segundo Barcelos (2001) é aquela na qual as crenças podem ser investigadas através de observações de sala de aula, ou seja, dentro de um contexto específico onde a professora atua.

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Concepções de linguagem

De acordo com alguns teóricos da Lingüística Aplicada, Koch (2003) e Travaglia (1996), por exemplo, existem três possibilidades de conceber a linguagem, são elas: linguagem como expressão do pensamento, linguagem como comunicação e linguagem como interação.

Segundo Travaglia (1996), na linguagem como expressão do pensamento, a expressão se constrói no interior da mente, o ato de enunciar é individual e não é afetado pelo outro, nem pela situação social em que a enunciação acontece. A criação lingüística ocorre de acordo como o sujeito organiza suas idéias de forma lógica e como exterioriza esses pensamentos por meio de uma linguagem amparada em regras, conceituadas como normas gramaticais do falar e escrever ‘bem’.

Já na linguagem como comunicação, diz Travaglia (1996, p. 22), “o falante tem em sua mente uma mensagem a transmitir a um ouvinte, ou seja, informações que quer que cheguem ao outro”. Assim, existe uma codificação remetida a alguém que a recebe transformando-a em informações.

Finalmente, na linguagem como interação, o individuo não só traduz e exterioriza um pensamento, mas existe interação comunicativa pela produção de efeitos de sentido entre interlocutores.

Essas três concepções de língua e linguagem serão retomadas na análise dos dados, quando as crenças e práticas da professora pesquisada serão abordadas.

Pressupostos metodológicos

Esta pesquisa de cunho etnográfico foi realizada em uma universidade paranaense, nas aulas de Língua Inglesa IV, de um curso de Letras-Inglês e suas Literaturas. Mais especificamente, os dados foram coletados no período correspondente a maio e junho de 2007, através de observações e gravações em áudio de 10 aulas, em uma turma de 12 graduandos, mediante autorização da professora e dos alunos. Também foi solicitado a professora que respondesse um questionário, o qual foi entregue posteriormente às observações, em agosto de 2007, com o intuito de esclarecer possíveis dúvidas quanto às crenças desta professora, e também para que ela pudesse deixar suas considerações.

Análise dos dados

Neste trabalho buscou-se desvelar a temática abordada através do confronto de observações em uma sala de aula de Língua Inglesa, com gravações em áudio e um questionário concedido pela professora da turma sobre suas crenças quanto à utilização das concepções de linguagem dentro do processo de ensino/aprendizagem. Para uma amostragem da análise de dados fez-se recortes do questionário e das gravações.Com base nos dados, poderia ser dito que, para a professora84, a linguagem parecia 84 Para proteger a identidade dos participantes desta pesquisa, neste artigo foram utilizados números. Assim, “S2” indica “Student 2”, “SI” para “Student não identificado” e “T” refere-se à “Teacher”. Outras abreviações utilizadas neste artigo: “Q01” para “Questão 01 do questionário”, “A1” para “Aula 01”, e “E1” para “Episódio 01”.

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caracterizar-se por um instrumento que possibilita a comunicação, em todas as suas variações. A resposta dada pela professora direciona para uma crença de que a linguagem é a forma por meio da qual o indivíduo percebe o sentido das coisas, sendo a interação, que se dá de forma oral ou escrita, primordial para que haja comunicação entre os indivíduos. O excerto a seguir ilustra o significado de língua(gem) para a professora:

(...) Ainda a língua é uma expressão que possui significado a partir do momento em que é articulada, pois possui características gramaticais, sintáticas e estruturais que são específicas de cada país, ou, até mesmo, de cada região. (Q01)

(...) linguagem pode ser um discurso oral ou escrito, um sistema de palavras e seus significados que são usados em determinadas regiões ou grupos, um sistema de sinais articulados com gestos, a interação dos indivíduos entre si ou com animais, computadores e outras instrumentações técnicas. Todas essas faces da linguagem, no entanto, buscam um fator comum que é a possibilidade de comunicação do indivíduo com o meio em que vive. (Q02)

Outro ponto observado através do questionário, é que a professora parecia

entender que as três concepções de linguagem estão vinculadas, pois mencionou em uma de suas respostas que a linguagem deve estar ancorada a regras gramaticais para que haja uma comunicação positiva e interação entre os indivíduos. É de se observar, ademais que por meio desta questão pode-se supor porque a professora utilizou as três concepções de linguagem durante a sua prática em sala de aula, uma vez que houve coerência entre a resposta dada e as aulas observadas. Em suas aulas, bem como nas respostas ao questionário, a professora demonstrou que a linguagem como expressão do pensamento pode ser trabalhada com intuito de interação e comunicação, ou seja, ela parece acreditar na interdependência entre as três concepções de linguagem. Tal evidência pode ser acompanhada no excerto que se segue: A gramática, como eu a entendo, é uma construção social e cultural para a comunicação em grupos. Os seres humanos têm a linguagem do pensamento que é bem particular e que pode e deve, no momento da comunicação, ser orientada de acordo com certas normas para que haja entendimento entre as pessoas. Como exemplo, poderíamos dizer que se a frase gramatical não obedeceu a certas regras ela provavelmente não será comunicativamente efetiva. Todas as formas citadas na pergunta são inseparáveis. Não existe linguagem que não objetive a interação e à comunicação. (Q05)

Ao buscar a constatação dessa resposta anteriormente postulada na prática da professora em questão, verificou-se que a postura dessa professora em sala de aula sugeria a mesma crença. No decorrer das dez aulas, foi possível evidenciar a presença das três concepções de linguagem durante a prática pedagógica. Sendo assim, na seqüência serão expostos momentos em que essas práticas ocorreram.

Durante a observação da aula seis, a concepção de linguagem como expressão do pensamento foi aquela na qual o foco foi à gramática descontextualizada, em que os participantes se valeram apenas do pensamento lógico no momento da enunciação e que tal busca foi individual, ou seja, não necessitaram da participação do outro. Foi possível

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evidenciar essa concepção nos momentos da aula em que a professora distribuiu fotocópias com exercícios das modalidades de leitura e escrita, que foram lidos e posteriormente respondidos pelos alunos. É possível verificar no trecho abaixo, que os exercícios efetuados em sala de aula correspondem à descrição da concepção da linguagem enquanto expressão do pensamento, pois as resoluções de tais exercícios foram automatizadas e conduzidas pelo raciocínio lógico dos participantes:

62. T- What about the exercise here? Let’s correct? (xxxxx) more the (xxxxx) for the text for + vocabulary and things? Ok + this one + right + (xxxxx) the other exercise I not (xxxxx) + ah! THIS are very confusing (xxxxx) Ok (xxxxx) are you tricky + for this you be carefully about this + Ok? S6? 63. S6 – (xxxxx) 64. T- This first one (xxxxx) Who is the first one? (xxxxx)65. S5- She goes shopping every day + doesn’t she?66. SI- doesn’t she?67. T- She goes shopping every day + doesn’t she? + Ok + this is one? 68. S5- (xxxxx) 69. T- Two? 70. SI- He has been studying English a long time + hasn’t he? 71. T- Hum! Hum! + three 72. SI- He is a good student + isn’t he? +73. T- four 74. SI- She plays the piano well + doesn’t she?75. T- she played? 76. Ss- plays77. T- Ok78. SI- doesn’t she? 79. T- good + number five? S4 it’s happy for you? 80. S4- She can play the piano well + can’t she? 81. T- Can’t she? + good!

A concepção de linguagem como comunicação, foi facilmente identificada nas aulas pelo fato de que a professora iniciou uma atividade com a leitura de um texto proposto na unidade do livro utilizado. Além disso, na descrição da atividade é possível verificar a função desse texto como mensagem a ser transmitida pelo autor a um receptor, e a necessidade de extração de informações nele contidas para a resolução de exercícios posteriores. A utilização da linguagem como comunicação ocorreu normalmente quando a professora trabalhou com textos. Com isso, tornou-se possível verificar a existência do texto como um facilitador na identificação dessa concepção, pois foi através dele que esta concepção foi trabalhada em sala de aula. O uso da concepção anteriormente mencionada pode ser observado em um trecho da aula 9:

35. T- were you going to read the following questions and circle the letter of the best answer + the best + Ahm! the other alternative is maybe good but not the Best and you need decided which are the best one for it purpose Ok? it’s necessary refer back to the

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reading to support your answer + if you remember + Ok + and you are finish compare answer with your partner + Who is there? + S4 read for us please + 36. S4- Ram!ram! 37. T- [the first one + Ram! ram! Háháháháhá + Ok38. S4- É: Teacher this is?39. T- Hum! Hum! + Yes + number one40. S4- ((aluno fez a leitura do exercício 1 da pág. 120 do livro North Star))41. T- Do you remember + his the reaction? his reaction + do right the beginning of the + the text + and we saw that be and (xxxxx) bike

Outra concepção evidenciada nas aulas observadas foi a de linguagem como interação, por meio da qual os participantes revelaram o seu conhecimento de mundo, interagindo com o outro dentro de um determinado contexto. Convém salientar que os momentos em que a professora trabalhou essa concepção foram através da modalidade de fala, ou seja, os participantes expunham suas idéias na língua alvo, sendo a conversação uma das características dessa forma de linguagem. O intuito de interação foi observado pelo modo como a professora propôs o desenvolvimento da atividade, apresentando várias frases aos alunos, nas quais continham diversas situações relacionadas à ‘Charity’ (caridade). Os alunos, embasados nas frases recebidas, formularam, na língua alvo, sentenças pedindo ajuda e expondo ao colega o problema constante na sua frase, diante disso o colega, também na língua alvo, criou uma sentença manifestando sua intenção em ajudar ou não.

Durante a sétima aula, houve muitos momentos nos quais foram debatidos contextos reais, em que a maioria dos alunos utilizou a linguagem para colocar suas opiniões e idéias, com isso revelando uma aula interativa e reflexiva que pode ser enquadrada dentro da concepção interacionista da linguagem, como visto a seguir:

78. T- Ahm! give + to give ++ Ok + this is an allegory ok + feel grins + pro +progress + very + very famous allegory + very good ++ we have this three quotations here is about charity (xxxxx) + and What do you think + What do you think about it? + they are very difficult to discuss this + because they are a very personality and they are very philosophical + S4?79. S4- ai + ai + ai80. T- háhá! Ok don’t try to can fill + don’t try to (xxxxx) + because I can see you everywhere háháháhá! + Ok S4? + háháhá + Ok tell me + tell me about one quotation if you agree for example the bible + the first one + that one from the bible is very touching I would say + Do you agree understand?81. SI- (xxxxx)82. T- and Why? 83. S4- háháhá84. T- Why is better + is better to give than to receive? 85. S2- (xxxxx) 86. T- very good answer + Ok + but + do you think that it’s really better to give than to receive? + Do you think that is good fill in a better position in the body else ++ and why? + Why that good be in a better position?87. S4- (xxxxx)

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88. T- If you better because you are appear?89. S2- (xxxxx) for example somebody (xxxxx)90. T- Yes I understand but + I Just + I just (xxxxx) ok so that (xxxxx) + háháhá+ 91. S2- (xxxxx) material way (xxxxx)92. T- háháhá + Ok + Do you agree? Yes? Who doesn’t agree or agrees?93. SI- I + I think that difficult received (xxxxx) without (xxxxx)

Por meio das gravações foi possível constatar que a concepção de linguagem como expressão do pensamento, foi a mais recorrente. Embora seja importante mencionar que durante as observações das aulas práticas, houve muitos momentos em que a concepção de linguagem como interação foi utilizada, mas que talvez devido ao fato de serem as primeiras aulas observadas e por ser esta concepção de interação propícia a debates, os participantes estavam exaltados o que dificultou o entendimento das falas no momento da transcrição. Como se pode verificar na tabela abaixo, se ressalta a concepção de linguagem como expressão do pensamento, de acordo com as transcrições das aulas.

Considerações finais

Neste estudo de caráter etnográfico foram investigadas as crenças de uma professora de inglês - LE com relação à língua e a linguagem dentro do processo de ensino/aprendizagem. Os dados revelados no questionário e nas aulas observadas mostram algumas de suas crenças relacionadas à sua prática.

Pela análise parece que a professora tinha conhecimento sobre o que é linguagem e condizente a isso, na sua prática, utilizou técnicas que manifestavam a reflexão sobre as concepções de linguagem que subsidiam esses procedimentos.

Foi possível verificar de acordo com a análise do questionário e das aulas, que a professora parecia entender que a concepção de linguagem como expressão do pensamento, como comunicação e como interação são inseparáveis.

Ao confrontar os dizeres da professora com suas práticas pedagógicas, evidenciou-se o uso das três concepções de linguagem em momentos distintos. Portanto, poderia ser dito que a professora procurou adequar cada uma delas com momentos das aulas em que essas lhe pareceram oportunas, tendo assim trabalhado que lhe pareceu mais apropriado.

Foi constatado que a concepção de linguagem como expressão do pensamento sobressaiu-se dentre as outras. Com isso, supõe-se que a professora priorizava a gramática tradicional, relacionada à linguagem como expressão do pensamento. Entretanto, houve muitos momentos em que ela trabalhou a gramática de forma contextualizada, o que remete aos pressupostos teóricos de Larsen-Freeman (1994), a qual menciona em seu trabalho a existência de três dimensões da linguagem, podendo assim a gramática ser trabalhada não apenas na sua forma e estrutura, pois a ela são conferidas também função e significado.

Ao comparar os resultados, constatou-se uma diferença quanto à proporção existente entre os dois dados analisados referentes à utilização da concepção de linguagem como interação. Convém ponderar que a linguagem como interação era uma prática bastante utilizada pela professora, embora não tenha sido possível mensurar sua proporção relacionada às outras devido à dificuldade no entendimento das falas durante a transcrição.

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Portanto, os resultados da pesquisa apontam que a professora tinha consciência da importância dialógica da linguagem e de que a forma como ela a concebe repercute efeitos significativos ao trabalho realizado em sala de aula com a língua estrangeira. Estes resultados corroboram com uma prática consciente em que a professora objetivou uma comunicação eficiente, visando no estudo da gramática possibilidades para o desencadeamento da percepção quanto à função e ao sentido da linguagem, e propiciou espaços para a interação nas suas aulas, permitindo aos alunos atuar criticamente.

Finalmente, ressalta-se que, se for considerado que é de acordo com suas crenças que o professor refletirá quanto à sua postura durante a prática pedagógica, então, investigações relacionadas ao modo como o professor concebe a língua e a linguagem podem subsidiar positivamente o professor para que tenha maior embasamento no momento de definir sua escolha quanto ao modo como vai trabalhar a linguagem em sala de aula.

Referências bibliográficas

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O LUGAR DAS UNIDADES FRASEOLÓGICAS NOS MODELOS LINGÜÍSTICOS

Márcia Socorro Ferreira de AndradeMestre em Lingüística Aplicada à Língua Estrangeira

Docente da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

RESUMO: Neste trabalho, descrevemos como as unidades fraseológicas foram tratadas desde os clássicos, passando pelos estruturalistas e gerativistas até a lingüística cognitiva. Essas informações são importantes para introduzir o modelo conceitual de Lakoff e Johnson (1980) que, atualmente, tem se demonstrado uma importante opção para o estudo do léxico fraseológico. A metodologia adotada consiste de uma investigação bibliográfica de trabalhos nessa área, cujos resultados apontam a estreita relação entre o estudo das unidades fraseológicas e a teoria da metáfora conceitual.

Palavras-chave: unidades fraseológicas, modelos lingüísticos, metáfora conceitual.

RESUMEN: En este trabajo, describimos como las unidades fraseológicas han sido tratadas desde los clásicos, pasando por los estructuralistas y generativistas hasta la lingüística cognitiva. Esas informaciones son importantes para introducir el modelo conceptual de Lakoff y Johnson (1980) que, actualmente, se está demostrando una importante opción para el estudio del léxico fraseológico. La metodología adoptada ha sido una investigación bibliográfica de trabajos en esa área, cuyos resultados señalan la estrecha relación entre el estudio de las unidades fraseológicas y la teoría de la metáfora conceptual.

Palabras-clave: unidades fraseológicas, modelos lingüísticos, metáfora conceptual.

Introdução

Destinamos este artigo a um breve relato explicativo sobre a forma como as unidades fraseológicas são, historicamente, concebidas por diferentes concepções lingüísticas (clássica, estruturalista, gerativista e cognitivista). Deve-se mencionar que a forma de se definirem os fraseologismos e o lugar reservado para eles nos estudos lingüísticos são resultados das diferentes maneiras como se entende o significado. Num percurso cronológico que vai desde visões clássicas, alcançando a lingüística moderna, até o advento da lingüística cognitiva (finais dos anos 70 e começo dos 80), procuramos esboçar como essas estruturas são tratadas. Além disso, explicamos alguns conceitos básicos no paradigma cognitivista, como por exemplo, a teoria da metáfora conceitual, que está estreitamente relacionada ao tratamento fraseológico proposto no modelo da lingüística cognitiva (LAKOFF E JOHNSON, 1980; KÖVECSES, 1989).

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As unidades fraseológicas no modelo clássico

A concepção clássica, de origem platônica e aristotélica, entende que o signo é triádico, composto por um nome, uma idéia e uma coisa. Até o período renascentista, atribui-se aos signos uma relação de semelhança mais ou menos evidente com seu objeto de referência. Essa visão considera a língua uma lista de palavras correspondentes a igual número de coisas presentes no mundo real, e cujos significados são as coisas por elas nomeadas, os seus referentes. Dessa forma, o significado de uma palavra ou expressão pode ser explanado em termos de sua relação com o objeto ou objetos a que se refere.

Parece claro que o estudo das unidades fraseológicas dentro dessa visão notadamente baseada na referência fica bastante prejudicado. A perspectiva clássica não pode explicar, por exemplo, o significado de fraseologismos tais como ‘soltar faíscas’ ou ‘soltar fogo pelas ventas’, que, em português são usados para expressar emoções de raiva. É evidente que nesses casos o fogo não é real, não satisfaz a condição de verdade para que tal expressão corresponda à realidade. Dessa forma, a perspectiva aqui discutida não dá conta da figuratividade expressa pelo fraseologismo mencionado.

As unidades fraseológicas e o modelo estruturalista

O estruturalismo, principalmente, nas pessoas de Saussure e de Bally, acaba direcionando os estudos fraseológicos introdutórios na Europa. Ruiz Gurillo (1997, p.47) lembra-nos que Saussure realiza alguns comentários interessantes sobre as unidades fraseológicas, às quais refere através do termo locutions toutes faites ‘locuções feitas’, distinguindo-as das combinações livres de palavras; além de incluir as primeiras no sistema e as segundas na fala. Segundo Ruiz Gurillo (1997, p.20) a sua influência nessa área é tão grande que seu discípulo, Bally investiga os fraseologismos, a ponto de sua influência ser sentida em vários países, notadamente, na antiga União Soviética, onde seus trabalhos foram traduzidos por Vinogradov. Para Ruiz Gurillo (ibidem), Bally é o fundador dos estudos de fraseologia, além de criar o termo fraseologia, dá-lhe o valor com o qual se emprega habitualmente.

Apesar de realizados trabalhos de destaque em diversos países, os estudos estruturalistas soviéticos sobre fraseologia se destacam no panorama mundial (CORPAS PASTOR, 1996; RUIZ GURILLO, 1997). São rapidamente conhecidos no leste europeu, mantendo evidentes relações com trabalhos alemães. Também países como a antiga Checoslovaquia, a Hungria e a Romênia são sedes de encontros e congressos sobre o tema, além de desenvolverem trabalhos que resultam em publicações monográficas e teses de doutorado.

No oeste europeu, segundo explica Ruiz Gurillo (1997, p.25), muitos estudiosos desenvolvem trabalhos que até hoje exercem forte influência na fraseologia, como o do francês Coseriu85, que cria os termos “discurso repetido” e “discurso livre”, aos quais pertencem as unidades fraseológicas e as combinações livres da língua, respectivamente. Ruiz Gurillo (1997, p.20) informa ainda que, na Espanha, Julio Casares86 publica um 85 COSERIU, E. Introducción al estudio estructural del léxico: principios de semántica estructural. Madrid:

Gredos, 1964.86 CASARES, J. Introducción a la lexicofrafía moderna. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas,

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manual, no qual investiga a delimitação e classificação das unidades fraseológicas. Vale mencionar que todos esses estudos se desenvolvem quase que paralelamente e abarcam várias décadas, desde trabalhos iniciais no começo do século XX, até a efervescência de pesquisas nos anos 50, cujos reflexos são sentidos nas décadas de 70 e 80.

Os estudos de orientação estruturalista tratam os constituintes das unidades fraseológicas apenas no plano formal e denotativo, restringindo-se assim a explicar uma gama muito reduzida de questões semânticas em face da multiplicidade de aspectos do significado naturalmente intuídos pelos falantes e deixados sem explicação por modelos lingüísticos essencialmente formais. Um desses modelos de análise lingüística, bastante limitado para o estudo dos fraseologimos, é a análise componencial, que trata o significado nos termos da lógica.

No caso de estruturas mais complexas formadas por duas ou mais palavras, como por exemplo, o sintagma “sabão mal cheiroso” o significado deriva da compatibilidade semântica entre os semas dos itens lexicais que compõem o sintagma. Através desse tipo de análise, essa estrutura é interpretável, ou tem significado lógico, porque os componentes do item lexical nuclear “sabão” [objeto físico] e [substância] são compatíveis com o componente do modificador “mal cheiroso” [impressão olfativa]. Entretanto, um sintagma como “cócega mal cheirosa”, segundo a análise componencial, não tem significado, pois há incompatibilidade entre os semas do lexema “cócega” e do modificador “mal cheirosa”. Como resultado dessa análise componencial, os traços semânticos do sintagma “cócega mal cheirosa” determinam uma anomalia combinatória na estrutural global.

Sob essa perspectiva, os fraseologismos foram marginalizados, uma vez que, a maioria das unidades fraseológicas é marcada pela idiomaticidade. Uma unidade fraseológica como “perder a cabeça”, em termos lógicos, não seria interpretável, porque o nome “cabeça” não apresenta o componente [objeto físico] compatível com os componentes do verbo “perder”. A análise componencial além de ser uma das formas de estudo vocabular desenvolvidas pelo estruturalismo, também está presente no modelo gerativista.

As unidades fraseológicas e o modelo gerativista

Nos Estados Unidos, os estudos fraseológicos merecem algumas informações à parte. O desenvolvimento da gramática gerativa influencia bastante a direção dos estudos fraseológicos naquele país. Os esforços de boa parte dos autores norte-americanos interessados pelas unidades fraseológicas, dentre os quais Ruiz Gurillo (1997, p.27) destaca Chafe87, consiste em propor a superação do modelo gerativo, justificando que este era incapaz de explicar o fenômeno fraseológico. A publicação de alguns trabalhos nos Estados Unidos evidencia um distanciamento entre estudos fraseológicos americanos e europeus. Tais diferenças resultam, principalmente, do tipo de modelo (estruturalista, gerativista, cognitivista) que prevalece na concepção lingüística desses autores.

É comum que, a cada nova corrente lingüística, idéias anteriores sejam abandonadas por outras novas. Mas com relação ao gerativismo, são retomadas algumas idéias clássicas.

1950.87 CHAFE, W.L. Idiomaticity as an anomaly in the chomskyan paradigman. Foundation of Language, v.

4, p. 109-127. 1968.

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Por exemplo, Lyons (1981, p.172) considera que o gerativista “representa uma volta à antiga tradição da gramática universal tal como foi exemplificada de maneira notável pela gramática de Port-Royal de 1660 e por um grande número de trabalhos sobre a linguagem do século XVII”, que os estruturalistas repudiaram. Os gerativistas adotam um retorno à concepção cartesiana de separação entre corpo e mente e à busca pelos universais lingüísticos. Essas duas concepções filosóficas, de forte influência objetivista, são fundamentais para que se compreenda a forma como os fraseologismos são vistos dentro da perspectiva gerativista. As gramáticas gerativas estudam uma língua ideal, não real. Procuram fornecer mecanismos capazes de gerar apenas frases ditas gramaticais, acabando por excluir estruturas de uso real como as unidades fraseológicas, que possuem comportamento diferente. O gerativismo, então, segundo Weinreich (1969), não pode dar conta da fraseologia.

Uma das propostas gerativistas é retomar a idéia dos traços componenciais de significado. Entretanto, acaba-se priorizando o aspecto sintático, ao ponto de se levantarem, dentro do próprio gerativismo, alguns estudiosos, dentre os quais George Lakoff, que propõem reformular o modelo gerativista, a fim de dotar-lhe de uma base semântica. Esse movimento passou a ser chamado de Semântica Gerativa. Apesar de, no início, ter procurado seu lugar no gerativismo, a cisão com o grupo do gerativismo ortodoxo é inevitável. Assim, pois, surge a Lingüística Cognitiva que, segundo Cuenca e Hilferty (1999, p.21), define-se como “uma teoria alternativa ao gerativismo chomskyano e, sobretudo aos postulados da versão padrão, em grande parte, superados atualmente dentro do próprio gerativismo”88.

As unidades fraseológicas e o modelo da Lingüística Cognitiva

Em linhas gerais, a lingüística cognitiva adota um ponto de vista filosófico, que Lakoff e Johnson (1980) denominam experiencialismo, em oposição ao objetivismo adotado pelos modelos anteriores. Para os autores cognitivistas, essa visão é mais adequada para o estudo do fenômeno da compreensão da linguagem, pois a significação que um indivíduo atribui a uma determinado enunciado é dado em termos de uma estrutura conceitual, e tal estrutura fundamenta-se na experiência físico-cultural. O sentido, portanto, jamais é descorporificado ou objetivo e está sempre fundamentado na aquisição e utilização de um sistema conceitual.

Para dar uma idéia de como o fenômeno da linguagem está estreitamente relacionado com a nossa estrutura conceitual, Lakoff e Johnson (2002, p.46) usam o conceito DISCUSSÃO e explicam que falamos dele em termos de GUERRA:

Podemos realmente ganhar ou perder uma discussão. Vemos as pessoas com quem discutimos como um adversário. Atacamos suas posições e defendemos as nossas. Ganhamos e perdemos terreno. Planejamos e usamos estratégias. Se achamos uma posição indefensável, podemos abandoná-la e colocar-nos numa linha de ataque (LAKOFF E JOHNSON, 2002, p.46).

88 Traduação minha: “La lingüística cognitiva se define como una teoria alternativa al generativismo chomskyano y sobre todo a los postulados de la versión estándar, en gran parte superados en la actualidad dentro del propio genetaivismo” (CUENCA E HILFERTY 1999, p.21).

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Os autores seguem dizendo que “discussões e guerras são coisas completamente diferentes”, mas que “DISCUSSÃO é parcialmente estruturada, compreendida, realizada e tratada em termos de GUERRA”. Explicam ainda que essa nossa maneira ordinária e convencional de falar sobre discussão pressupõe uma metáfora conceitual da qual raramente temos consciência: DISCUSSÃO É GUERRA. Como se vê, o conceito metafórico em Lakoff e Johnson (ibidem) difere da idéia clássica de metáfora como recurso poético e ornamental, pois faz parte também da linguagem do dia-a-dia, confundida, tradicionalmente, com a linguagem literal.

Nesse sentido, a Lingüística Cognitiva, por meio da metáfora conceitual, constitui-se num modelo que tenta explicar o fenômeno fraseológico. Isso porque, ao invés de enfatizar a arbitrariedade fraseológica defendida em outros paradigmas (e.g. FRASE, 1970), o modelo conceitual cognitivista evidencia o caráter motivado dessas estruturas. Essa motivação é explicada em Gibbs (1990). Através de experimentos, esse autor tenta demonstrar que expressões diferentes do inglês, mas com sentidos similares, como spill the beans ‘espalhar os feijões’ e let the cat out of the bag ‘tirar o gato da bolsa’ - que, em português, traduz-se literalmente por ‘ser saco furado’- são coerentes com as metáforas conceituais A CABEÇA É UM RECIPIENTE e AS IDÉIAS SÃO ENTIDADES FÍSICAS. Em outras palavras, esses conceitos metafóricos licenciam o uso daquelas expressões.

Parafraseando Kövecses (2001), podemos afirmar que a teoria da metáfora conceitual tem grande utilidade didática para o ensino de unidades fraseológicas, pois, através da compreensão da metáfora conceitual, podemos entender o sentido geral que as unidades fraseológicas idiomáticas têm, realizando relações entre os domínios conceituais existentes. É devido a essas conexões produzidas em nosso sistema conceitual, que a metáfora permite-nos usar termos de um domínio (por exemplo, FOGO) para falar de outros (por exemplo, RAIVA). Há correspondências epistêmicas, de acordo com as quais conceitos no domínio RAIVA (e.g. expectativas frustradas, alterações emocionais, relações sociais etc.) correspondem sistematicamente a conceitos no domínio FOGO (calor, luz, chama, ardor, incêndio, dilatação, combustão, faíscas etc.). É o que acontece quando se diz “Ele saiu da reunião com o sangue quente”, “Ele está cuspindo fogo”, “Ele está soltando fogo pelo nariz”, etc., para fazer referência ao estado de raiva em que alguém se encontra.

Considerações Finais

Ao observarmos diversos estudos realizados sobre as vantagens em se expor o input lexical ordenado sob metáforas conceituais, encontramos fortes evidências de que também as unidades fraseológicas permitem ser ensinadas em agrupamentos metafóricos, isto é, unificando os fraseologismos licenciados por uma metáfora comum. A importância disso é que sendo apresentado aos conceitos metafóricos da língua estrangeira, o aluno passa a compreender não apenas o léxico que lhe é apresentado em sala de aula, mas torna-se capaz de entender novas formas de lexicalização da metáfora estudada.

Neste trabalho, mostramos as diversas visões lingüísticas e os diferentes modelos por elas adotados com respeito às unidades fraseológicas. Com o objetivo de justificar o aspecto didático da teoria lingüístico-cognitiva contemporânea, fornecemos uma cronologia dos estudos desde teorias clássicas, que remontam ao século IV a.C, passando pelas teorias modernas, inícios do século XX, até a teoria da metáfora conceitual, surgida em finais do

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século passado e em ativo desenvolvimento no século XXI. Essa cronologia é importante para introduzir a discussão sobre a teoria da metáfora (LAKOFF E JOHNSON, 1980) e a didática de fraseologismos em língua estrangeira. Esperamos haver contribuído para esclarecer questões sobre o tema e favorecer para a inserção de novos trabalhos nessa área ainda tão pouco explorada.

Referências Bibliográficas

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AS OFICINAS DE ARTES PLÁSTICAS DO MAMB

Mariane Nascimento*

Graduanda em História – Patrimônio culturaUCS – Universidade Católica de Salvador – BA

Resumo: Esse artigo surge como resultado de uma série de pesquisas realizadas no Museu de Arte Moderna da Bahia e de estudos realizados sobre a problemática do museu em relação a sua função educativa. Entendendo o importante papel que o MAB tem desempenhado através da realização de Oficinas de Artes para a comunidade, este trabalho tem também como objetivo divulgar essas atividades. Para que esse trabalho fosse realizado fez-se também necessário alguns estudos sobre a história do MAB, a arte contemporânea e as oficinas de artes como um Patrimônio Cultural do museu.Palavras-chaves: Arte Contemporânea, Museu de Arte Moderna da Bahia, Oficinas.

Resumen: Este artículo ha surgido como resultado de una serie de investigaciones realizadas en el Museo de Arte Moderno de Bahia, y de estudios realizados con respecto a su función educativa. Comprendiendo el importante papel que el MAB sigue desarrollando a través de la realización de Talleres de Artes para la comunidad, este estudio tiene como objetivo divulgar tales actividades. Para realizar esta investigación, ha sido necesario algunos estudios sobre el historia del MAB, el arte contemporáneo y las actividades artísticas que, como Patrimonio Cultural del museo. Palabras clave: Arte contemporâneo, Museo de Arte Moderno de Bahia, Talleres.

MAMB é o Museu de Arte Moderna da Bahia, local onde estão instaladas as Oficinas de Arte Plástica que foi objeto de estudo da pesquisa ora realizada. Sendo assim este artigo surge com intuito de revelar o importante papel que o MAMB tem desempenhado ao abrigar em suas instalações essas oficinas, deixando de funcionar apenas como um museu, mas também como um espaço onde as pessoas podem andar, passear, construir, tocar e conhecer a Arte Contemporânea do próprio museu.

A idéia para tal trabalho foi motivada pelo grande interesse na área das Artes e por observar que a maior parte da população de Salvador não tem conhecimento do trabalho que é desenvolvido pelo Museu, que apóia a iniciativa de difundir a Arte e que se destina a qualquer cidadão que pode ser beneficiado gratuitamente.

As Oficinas de Artes Plásticas do MAMB têm executado uma importante função de incentivador e divulgador para a expansão artística em Salvador, oferecendo aos estudantes, aposentados, artistas, jovens, adultos, idosos, enfim a todos, uma oportunidade de aperfeiçoar ou em muitos casos de desvendar suas habilidades artísticas.

O MAMB que hoje se encontra instalado no Solar do Unhão, na Avenida Contorno, s/nº, Solar do Unhão, CEP 40060-060, Salvador/Ba, funciona de terça a domingo – das 13:00 às 19:00h, com entrada franca. O Museu foi fundado em julho de 1959 e inicialmente localizava-se no foyer do Teatro Castro Alves, onde era bastante *Estudante do 6º semestre no curso de História com Habilitação em Patrimônio Cultural da Universidade Católica do Salvador.

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freqüentado não só por artistas que faziam suas exposições, mas também pela grande população de Salvador, isso porque o Museu estava em um local acessível e visível a todos. Com a fundação deste toda produção e difusão artística que era realizada até então passou a estar sob sua responsabilidade. Em 1963 sua sede passou a ser no Solar do Unhão, local este que é um verdadeiro patrimônio para a cidade de Salvador.89 Sendo construído inicialmente para abrigar um engenho, suas estruturas permaneceram ao longo dos anos, mantendo intacta a sua composição: casa-grande, capela e senzala. Antes de sediar o MAMB as instalações do Solar do Unhão recebeu utilidades diversificadas, tais como: depósito, fábrica e a última que foi a de quartel para fuzileiros navais que lutaram durante a Segunda Guerra Mundial.90

Essa mudança de localização do Museu de Arte Moderna acabou por debilitar a grande popularidade que o Museu tinha desde a sua fundação, isso aconteceu devido o difícil acesso que o público passou a ter para chegar até o Solar, e até mesmo para os artistas que também se desmotivaram pela complexidade para alcançar as novas instalações do Museu. Essa alteração transmite efeitos até a atualidade, conseqüentemente uma grande parte da população de Salvador não conhece o Museu e muitos desses nem sequer sabem de sua existência muito menos que este oferece Oficinas de Artes sem nenhum custo.

De acordo com o Manual de Orientação Museológica e Museográfica91 o espaço do museu pode ser utilizado não apenas para exposições de artes com também para realização de Ação Cultural, Oficina é uma das opções de ação educativa que pode ser desenvolvida, ela deve estar relacionada ao tema do museu, e desenvolver a capacidade criativa, além de oferecer leituras da história e dos objetos do museu, elas não podem causar cansaço ou aborrecimento pelo contrario deve favorecer a consolidação de conhecimentos teóricos das visitas. Outra ação que o museu pode estar realizando são as Exposições Didáticas que exigem na sua concepção e elaboração a participação de um pessoal qualificado em matéria educativa e técnicas de comunicação, deve reunir o estudo e a investigação dos objetos, observando sua função, seu significado dentro de um contexto, a seleção das obras e dos meios de informativos, tanto escritos como audiovisuais e gráficos direcionados ao objetivo didático e deve possui um conteúdo sumamente explicativo, enquanto ao outras necessitam ser interpretadas em um momento anterior ou posterior. Diante disso percebemos que o MAMB tem desempenhando muito bem seu setor de Ação Cultura.

De acordo com pesquisas realizadas nos jornais A TARDE e JORNAL DA BAHIA editados no período da fundação das oficinas, as Oficinas de Artes Plásticas, ou melhor, As Oficinas de Expressão Plástica, porque inicialmente elas receberam este nome, foram fundadas na década de 80, mas na verdade a idéia já estava sendo articulada desde 1978, pelo artista Edson Luz, artista plástico que esmerava estabelecer o que vai chamar posteriormente de oficinas de criatividade. De acordo com Luz essas oficinas deveriam ter como objetivo levar técnicas e experiências a outros artistas e também ao povo, revelar nos alunos seu potencial criativo, “enfatizando seu caráter coletivo e a participação de todos na elaboração das propostas visando uma melhor apresentação do saber artístico” 92; um outro

89 LABERATO, Francisco. Museu de Arte Moderna da Bahia.90 TEIXEIRA, Sid. Histórico do Solar do Unhão.91 Governo do Estado de São Paulo Secretária de Estado da Cultura. Manual de Orientação Museologica e Museografica. DEMA - Departamento de Museus e Arquivos.92 Jornal A TARDE, 17 de maio de 1980. Escrito por Albenísio Fonseca.

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objetivo das oficinas era construir monumentos para serem expostos pela cidade, isso sem falar em um projeto que utilizaria a comunidade local para executar um trabalho de reciclagem nos bairros e subúrbio para assim aproveitar o lixo e profissionalizar os indivíduos das camadas populares, ou seja, Luz assim como Oldenburg era “[...] a favor de uma arte que seja político-erótico-mística, que faça algo mais que sentar o rabo num museu. [...] uma arte que se confunda com a merda do cotidiano [...]”93, Luz queria ver a arte no dia a dia das pessoas, queria que os moradores ao andarem pelas ruas do bairro encontrassem obras de artes que fossem verdadeiros referenciais para eles mesmos.

Inicialmente o público alvo das oficinas eram estudantes da Escola de Belas Artes da UFBA, estudantes de Educação Artística da UCSal e artistas que buscavam aperfeiçoar sua arte inovando-a em algo mais moderno. As Oficinas começaram oferecendo apenas três cursos que foram os de serigrafia, de madeira e de metal. Elas eram organizadas por etapas onde a primeira era constituída do curso de xilogravura (técnica de fazer gravura em madeira) e gravura em metal, e a segunda etapa de serigrafia (impressão figuras e/ou palavras feita através de tela de seda) e litografia (produção de desenho em pedra plana para reprodução da mesma em papel).94

As Oficinas receberam o apoio da Coordenação dos Museus, da Fundação Cultural do Estado da Bahia e da Funarte.95 Esses convênios não foram obtidos tão facilmente, prova disto é que esse projeto levou mais de dois anos para se concretizar, afinal ele era, e continua a ser, sem fins lucrativos e iria exigir uma receita significativa para pagamento dos professores e investimentos em material didático que também era oferecido.

Foi possível detectar através de jornais que em 1983 surgem mais duas oficinas96, que são as de cerâmica e de escultura em madeira que vêm para acrescentar mais opções de arte ao público que só fazia crescer. Passado algum tempo as oficinas não estão mais restritas apenas a estudantes e artistas, o público que freqüenta o Museu e a população de uma maneira geral passa a ter conhecimento das oficinas e a se interessarem por elas, aumentando assim a demanda de inscrições que nesse período era trimestral. É interessante observar que, assim como hoje, não havia um público com características únicas, pessoas com idade diversificadas e com objetivos distintos freqüentavam as aulas e enfrentavam os desafios da mesma maneira.

Com o passar dos anos as oficinas foram evoluindo e outros cursos foram se agregando como opções a mais para escolha dos alunos. Entre as diversas leituras feitas em jornais da época, percebe-se que uma das maiores contribuições que levou ao surgimento de muitas outras oficinas foram os artistas, que desenvolviam algum tipo de técnica que até então não tinha entre os cursos oferecidos, que faziam exposições no MAMB e aproveitavam para ensinar suas técnicas aos alunos das oficinas. A exemplo disso tem o Sérvulo Esmeraldo, Artista Plástico Contemporâneo formado na Escola de Belas Artes UFBA, e a Iza Moniz, também Artista Plástica Contemporânea formada na Escola de Belas Artes UFBA com sua técnica de lápis e carvão. O mais novo curso que fora associado às oficinas foi o de História da Arte. Outra grande mudança foi o nome, que de Oficinas de Expressão Plástica passou a se chamar Oficinas de Artes Plásticas.93 Oldenburg. The street. In BERMAN, Marchall. Tudo que é sólido desmancha no ar. p. 360.94 Jornal da Bahia, 17 de maio de 1978.95 Jornal A TARDE, 25 de maio de 1980.96 Jornal A TARDE, 19 de dezembro de 1983.

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Atualmente o trabalho das oficinas tem se desenvolvido sob a coordenação de Florival Oliveira, Artista Plástico Contemporâneo, formado na Escola de Belas Artes da UFBA, anteriormente professor de Litogravura nas Oficinas de Artes Plásticas do MAMB e hoje Coordenador das mesmas, e dos instrutores que são todos artistas contemporâneos. As oficinas oferecem semestralmente 360 vagas, que são divididas para os 18 cursos (Desenho e Percepção Visual, Xilografia, Cerâmica, Criatividade em Artes Plásticas, Desenho de Observação, Escultura, Gravura em Metal, Pintura Contemporânea, Serigrafia, Litogravura, Expressão Tridimensional, Pintura, Processos Contemporâneos, entre outros), cada turma tem 20 alunos. Os cursos acontecem duas vezes por semana, cada dia com a duração de três horas. Caso o número de inscritos exceda a quantidade de vagas disponíveis os professores elaboram uma pequena avaliação para os mesmos, essa avaliação vai varia de acordo com o curso escolhido, aqueles 20 primeiros colocados podem efetivar suas matrículas, o aluno que tem o desejo de continuar no curso de um semestre para outro passa pelo mesmo processo dos outros iniciantes. Sendo que existem algumas oficinas que são direcionadas a pessoas que já dominam as técnicas de desenho ou técnicas tridimensionais, e a esses é obrigatório um teste de aptidão para detectar se o candidato já goza dessas noções essenciais.

Dentre tantos cursos oferecidos o mais recente e que com certeza tem recebido um destaque especial é a oficina de História da Arte, que tem como objetivo fazer o aluno identificar e reconhecer ao andar pelas ruas e museus, o período, as características, os artistas que realizaram e todo contexto em que estão inseridos as construções, pinturas, obras de artes e patrimônios em geral. O curso também tem sido utilizado como preparatório para a avaliação específica do vestibular da UFBA para o curso de Artes Plásticas que há mais ou menos quatro anos tem cobrado do candidato conhecimentos de História da Arte. Não adianta o aluno saber as características de um determinado estilo se ao se deparar com uma construção, por exemplo, ele não consegue associar os seus conhecimentos com o que está visualizando. História da Arte se constitui justamente da relação que existe entre o passado e o objeto em seu contexto atual.

Anualmente são realizadas Exposições Didáticas ou como alguns instrutores chamam Exposição Destaque. Nelas cada aluno, principalmente os mais empenhados, tem a oportunidade de expor em uma sala reservada do MAMB um ou dois dos seus trabalhos, ou seja, o resultado do que ele tem aprendido ao longo das aulas. Essa atividade é muito importante, porque serve como incentivo para os alunos, faz com que seu trabalho seja divulgado sem nenhum custo, e sem falar que pode lhes trazer um retorno financeiro, caso algum visitante da exposição queira adquirir a obra. Como prova da seriedade dessas exposições a coordenação das Oficinas produz catálogos belíssimos de cada amostra que é realizada.

Em entrevista, os artistas que ministram as aulas nas oficinas fizeram questão, e deixaram bem claro, de serem chamados unicamente de instrutores, para eles a arte não pode, não deve, não existe viabilidade de ser ensinada e como a palavra professor carrega essa função, eles dizem não serem professores e sim instrutores por que a arte é para ser desenvolvida individualmente sem restrições e sim com orientação, como o instrutor Paulo, Artista Plástico Contemporâneo formado na Escola de Belas Artes UFBA, leciona a oficina

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de Expressão Tridimensional, disse em entrevista “aqui nós ensinamos sem as regras”.97

Há aproximadamente 10 anos atrás surgiu a necessidade de se renovar a arte no Estado da Bahia, de fazer com que a arte fosso “experimentada como um meio no qual a totalidade das forças materiais e espirituais modernas podia se encontrar, chocar-se e se misturar para produzir seus novos destinos e significados [...]”98, e as oficinas vão justamente suprir essas necessidades através dos professores vindos de outros lugares ou que foram estudar fora, e da aproximação que eles iriam causar através de um novo contexto, com elementos inovadores e principalmente contemporâneos como a liberdade, a criatividade, a espontaneidade e o movimento sem qualquer restrições.

Muitos dos objetivos de Edson Luz ao idealizar as Oficinas não puderam ser concretizados, mas outros permaneceram um deles e talvez até seja o maior era o de profissionalizar artisticamente e em vários níveis seus alunos, desde os níveis iniciantes aos que já chegaram a um nível profissional. A maior preocupação do corpo docente das oficinas não é em ensinar técnicas e sim na formação e pensamento do artista para que ele tenha um direcionamento próprio e privado para desenvolver suas técnicas e até mesmo dá significado as suas produções, como explicaram os instrutores em uma de nossas conversas esse é um processo mais demorado, porém proporciona um trabalho com muito mais êxito e bastante prazeroso de realizar. Quando o aluno consegue desenvolver essas habilidades bem conseqüentemente se torna um artista que poderá não apenas está fazendo arte, mas constituindo um verdadeiro patrimônio.

A arte que é proposta pelas oficinas é uma Arte Contemporânea, aquela que esta em todo lugar, que não reconhece margens ou fronteiras, que não está limitada apenas à arquitetura, à pintura, a escultura e a gravura, que são tradicionais disciplinas de Arte, mas ela vai muito além, ela está também no cinema, na história no design, no artesanato, na reciclagem, e em tudo que tem o poder de expressão e a todos que tem a capacidade de percepção. A arte contemporânea é uma arte plural, inconstante, que está aquém do grande ou pequeno, do feio ou bonito. E é por trazer esse tipo de arte que as oficinas abrange um público tão diversificado.

É importante perceber as Oficinas da Arte Plásticas não apenas com um local onde se oferece cursos, mas também como um Patrimônio. De acordo com Carlos Lemos:

Patrimônio Cultural é a união do Patrimônio histórico e do patrimônio Artístico Nacional, e ele pode se dividir em três grandes categorias de elementos. A primeira delas é a que engloba elementos pertencentes à natureza, ao meio ambiente. A segunda refere-se ao conhecimento, às técnicas, ao saber e ao perceber o que faz. Enfim, a terceira delas e a mais importante de todas por reunir os chamados bens culturais que englobam toda sorte de coisas, objetos, artefatos e construções obtidas a partir do meio ambiente e do saber fazer99.

As oficinas se encontram muito bem no segundo elemento, porque nelas os alunos são levados a produzir, a criar, a inventar com autonomia, as técnicas tornam-se apenas

97 Entrevista realizada em 19 de outubro de 2006, no MAMB.98 BERMAN, Marchall. Tudo que é sólido desmancha no ar. p. 356.99 LEMOS, Carlos A.C. O que é patrimônio histórico, p. 08-10.

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algumas formas de orientação, e como os alunos estão em oficinas contemporâneas eles não se vêem coagidos a seguirem um padrão único e exato de técnicas. Porém podemos ir muito mais além quanto a participação desse alunado e a relação que ele mantém com seu local de aprendizagem, afirmando que até mesmo esse espaço onde são realizadas as aulas é um patrimônio, é um espaço de memória, onde mesmo em dias que não estão acontecendo às aulas, o local preenchido por trabalhos, dá impressão de estar cheio de alunos, ou seja, os alunos que passam por aquele local deixam de alguma forma suas pegadas e mesmo quando eles não estão pode-se ouvir seus ecos que soam como “curvas em cheios ou em vazios remetem somente, como palavras, à ausência daquilo que passou”.100

Podemos através das oficinas entrar em uma porta onde os alunos serão os sujeitos construtores da história daquele espaço. Cada espaço utilizado para aula nas oficinas está sendo um lugar histórico para quem o utilizou e todas as vezes em que um aluno voltar ou até mesmo entrar em contato com algo que faço-o associar aquele determinado espaço ele terá na sua memória tudo que viveu. Mas é claro que essa associação vai ocorrer de forma bastante particular, isso porque cada aluno pode obter uma visão singular de ver um mesmo local e mais ainda cada um pode muito bem construir uma história sobre o esse mesmo espaço.

O público das Oficinas de Arte continua a ser o mais variado possível, proporcionando dessa forma uma ampliação do significado dessas oficinas, porque deixa de existir essa visão unificada passa a ter um plural de definições, os alunos com seus objetivos distintos procura as oficinas do MAMB tanto para aprendizagem e/ou aperfeiçoamento de novas técnicas artísticas como também para terapia ou atividade prazerosa.

Observando os participantes das oficinas sob uma óptica social, percebe-se que em sua grande maioria pertencem as classes Média e Alta, este é um fato que chama atenção, pois sendo esta de caráter gratuito pressupõe-se que seu público deveria ser originário das classes menos favorecida. Acredita-se que este fenômeno ocorre devido a escassa divulgação que é realizada e também a má localização como já fora mencionado.

Ainda discorrendo acerca do alunado das oficinas algo que se destaca é o ecletismo da formação escolar destes. Ao logo das entrevistas101realizadas foi possível detectar o quão diversificado é esse público que agrega em suas dependências desde o leigo em artes até o especialista sem nenhuma distinção, acolhendo a todos com o único intuito de compartilhar o conhecimento artístico.

Essas dessemelhanças nos aprendizes giram em torno também da desigualdade de idade, pois encontramos pessoas em plena mocidade que estão em busca de novas conquistas, outros em idade adulta expandindo seu conhecimento e têm aqueles que já se aposentaram, mas que almejam continuar realizando suas conquistas. É o caso do admirável aluno o Senhor Juvenal que aos 67 anos, marítimo aposentado, faz oficina de Xilogravura, ele conta que depois que aprendeu bem a técnica já está até ganhando algum dinheiro com alguns quadros que vende isso sem falar que ele declarou que este ano estava se preparando para voltar a estudar, vai tentar entrar na Faculdade de Belas Artes UFBA.

100 CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano, p. 176.101 Entrevistas realizadas em 19 de outubro de 2006, no MAMB.

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Em todos os semestres são abertas as inscrições para as Oficinas de Arte e os Jornais A TARDE, CORREIO DA BAHIA e TRIBUNA DA BAHIA têm exercido o papel de divulgador anunciando em seus cadernos o período, os cursos oferecidos e a forma de realizar as inscrições, isso acontece desde a fundação das oficinas, porém nem todos ficam sabendo, isso porque a maior parte da população soteropolitana não tem acesso, ou em muitos casos, o hábito de ler jornal, então esses anúncios tornam-se pouco acessíveis, é preciso se estruturar uma forma de divulgação mais abrangente, e claro, eficiente.

Foi detectado ao longo das pesquisas, visitas, leituras e entrevistas realizadas para a elaboração deste trabalho que as oficinas exercem um papel muito importante para os alunos que delas participam, por ser uma oportunidade gratuita de aprender a produzir arte, para os instrutores, pois todos se mostram muito satisfeito por lecionar nas oficinas, e claro para o público em geral da cidade de Salvador que pode participar e/ou contemplar esse trabalho. Porém tudo isso poderia estar sendo melhor aproveitado por toda população de Salvador se houvesse uma divulgação mais eficaz.

A arte não pode ser vista como uma aventura destinada a pessoas especiais dotadas de uma inteligência ou sensibilidade superior. Ela é como um rio cujas águas correm e se renovam para todos, e qualquer indivíduo que tenha oportunidade tem sim a capacidade de desenvolver suas habilidades artísticas, afinal “[...] os homens constroem seus próprios mundos [...]”102, pois essa habilidade está no interior de cada ser, que pode e deve sim, ser compartilhada como um exercício de cidadania, e não ficar restrito a pequenos grupos privilegiados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mãe. A imagem no ensino da arte. São Paulo: Perspectiva, 2004.BERMAN, Marchall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. São Paulo: Companhia Das Letras,1986BRESCLANI, Maria Stella. Permanência e ruptura no estudo das cidades. In: FERNANDES, Ana (Org.). CIDADE E HISTÓRIA – Modernização das Cidades Brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador: UFBA, s/d.CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano. Petrópoles: Vozes,1994.Governo do Estado de São Paulo Secretária de Estado da Cultura. Manual de Orientação Museologica e Museografica. 2 ed. São Paulo: DEMA - Departamento de Museus e Arquivos, 1987.LEMOS, Carlos A.C. O que é patrimônio histórico. São Paulo: Brasiliense, 2006.PRADEL, Jean-Louis. A arte contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1999.TEIXEIRA, Cid. Histórico do Solar do Unhão. In: Informativo sobre o MAMB. Salvador: MAMB, [?].TEIXEIRA, Sid. Histórico do Solar do Unhão. In: Informativo sobre o MAMB. Salvador: MAMB, [?].

102 WILLIANS, Raymond. Cap. 15 Gente na Cidade, p. 224.

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IMIGRAÇÃO ITALIANA E AS ESCOLAS NO MUNICÍPIO DE COLOMBO NO PARANÁ (1882 – 1917)

Profª Drª Maria Cecília Marins de OliveiraPPGE, UFPR; NP, Uniandrade

Profª Ms. Elaine Cátia Falcade MaschioPPGE, UFPR

Profª Ms. Ana Maria Cordeiro Vogt PPGE, PUCP; NP, Uniandrade

RESUMOO estudo é referente à presença de imigrantes italianos no Município de Colombo, no Paraná, tendo como ponto central a implantação do sistema público e particular de ensino na região, no período de 1882, com a abertura da primeira escola pública pelos imigrantes, até 1917, com a criação da escola católica italiana, Colégio Santo Antonio. A pesquisa possibilitou conhecer a organização do ensino primário e a cultura escolar que se formou no interior das instituições.

Palavras-chaves: Imigração italiana, escola primária, escolas de imigrantes.

ITALIAN IMMIGRATION AND THE SCHOOLSIN TOWN OF COLOMBO IN PARANÁ (1882 – 1917)

ABSTRACTThe study regards the presence of Italian immigration in the town of Colombo, in Paraná, having as the mayor point the implantation of a public and particular system education in the region, in the period of 1882, with the opening of the first public school by immigrants to 1917, with the creation of an Italian catolic school, Santo Ântonio School. The research made possible to know the organization of the primary school by means of documents and bibliographical sources.

Key words: Italian immigration, primary school, immigration’s schools.s.

A expansão da escolarização, além do desenvolvimento econômico e social do país, foi sem dúvida uma das grandes contribuições, trazidas pela imigração estrangeira, no século XIX.

Conforme Souza (2000, p. 61), os estados brasileiros que adotaram a política de imigração sofreram um processo significativo de expansão da escolarização primária. As iniciativas empreendidas pelos imigrantes, em prol da escola, foram fundamentais para a expansão do ensino. Primeiro, porque ao chegarem nas colônias os imigrantes reivindicavam escolas públicas ou ainda viabilizaram escolas particulares étnicas. Segundo, porque essas iniciativas refletiram-se na população brasileira para que também

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providenciasse o ensino.Neste sentido, o presente estudo tem como ponto central o processo de

escolarização no Município de Colombo, Paraná, abordando a presença da imigração italiana na sua colonização, no final do século XIX, sendo ela fundamental para a implantação do sistema público e particular de ensino na região, além de contribuir para iniciativas de criação de escolas nacionais.

O estudo abrange o período de 1882, ano em que foi aberta a primeira escola pública pelos primeiros imigrantes italianos, até o ano de 1917, quando ocorreu a criação de uma escola confessional católica, o Colégio Santo Antonio. Ainda, procura trazer a trajetória e a organização do ensino primário, investigando alguns traços de culturas escolares no interior das instituições.

O conjunto de documentos pesquisados encontra-se, em sua maioria, no Arquivo Público do Paraná, sendo constituído de ofícios, requerimentos, relatórios e legislação de ensino. Embora sejam documentos oficiais, sua análise foi permeada pelo reconhecimento de que se constituem como documentos/monumentos, conforme infere Le Goff (1999, p.547).

O contato com as fontes norteou a construção da narrativa, em torno da investigação do tema e as leituras que compõem a historiografia proporcionaram o conhecimento da dinâmica da política imigratória e da educação entre imigrantes, em seus diferentes aspectos.

O estudo da escolarização do Município de Colombo foi permeado pelas reflexões dos trabalhos que versam sobre a educação e a cultura de imigrantes. Destacam-se os trabalhos de Vêchia (1998), que mapeia a educação dos imigrantes no Paraná, no período de 1853 a 1889; Kreutz (2000), Seyferth (1981), Correa (2000) e outros. Os estudos de Wachowicz (1984) e Oliveira (1986) possibilitaram conhecer a configuração da educação paranaense e entender a institucionalização do ensino no Paraná e sua relação com o ensino nas colônias de imigrantes.

A respeito do processo escolar, diz Kreutz (2000, p. 353), “[...] para entender a dinâmica do processo escolar entre os imigrantes no Brasil é preciso estar atento não só às diferenciações entre os grupos étnicos mas também à diferenciada dinâmica de sua inserção no Brasil”. Dessa maneira, levou-se em conta como se deu o processo de inserção da imigração italiana no Paraná e a política de formação de colônias para entender como o processo escolar foi dinamizado nesses ambientes, particularmente, o da Colônia Alfredo Chaves, no Município de Colombo.

A respeito da imigração italiana no Paraná e no Brasil, a partir de diferentes enfoques, tem-se, notadamente, os trabalhos de Balhana (1958, 1971, 1978) e Azzi (1987) que contribuiram para o entendimento da política imigratória no Paraná. De modo particular, estes estudos possibilitaram a compreensão do processo escolar, uma vez que, a escolarização permeia toda a relação política, econômica e social ao mesmo tempo em que, por essas dimensões, é permeada.

Embora a proximidade com o Estado de São Paulo e sua vinculação territorial até 1853, a política imigratória dinamizada no Paraná foi bem diferente à daquele Estado. A inserção de imigrantes no Paraná teve uma política semelhante a dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Os interesses dos governos dos estados do sul centraram-se, inicialmente, na ocupação de vazios demográficos, para objetivar, posteriormente, o

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fornecimento de mão-de-obra para o desenvolvimento da agricultura, sobretudo em São Paulo, onde o interesse voltava-se para direcionar essa mão de obra às fazendas de café (EL-KHATIB, 1969, p. 159).

A posse da terra sem dúvida foi o principal atrativo para a intensa imigração italiana para o sul do país. Conforme Rambo (2003, p. 63-92), ao contrário dos estados do centro e do norte do país, em São Paulo, por exemplo, a imigração serviria para incorporar os trabalhos nas fazendas de café, e, no sul, a imigração européia deveria seguir as bases de uma economia agrícola em pequenas propriedades, que estaria alicerçada na distribuição de pequenos lotes para o desenvolvimento da agricultura familiar. Essa política propiciou que a organização social das colônias apresentasse características próprias, ocorrendo o mesmo com o ensino.

A partir de 1875 o Paraná recebeu um número significativo de imigrantes de nacionalidade italiana. A introdução dos primeiros imigrantes deu-se através de um contrato firmado entre o Presidente da Província, Venâncio José Lisboa e o empresário Sabino Tripodi, no ano de 1871 (BALHANA, 1958, p. 28). Um número significativo de imigrantes foi instalado inicialmente na Colônia Alexandra, criada em 1875.

Embora esses imigrantes pensassem encontrar condições propícias em terras paranaenses, acabaram sofrendo as conseqüências da falta de interesse e irresponsabilidade que os agentes da imigração tiveram no ingresso e na sua instalação. Não demorou muito tempo para que as conseqüências do mau planejamento daquela política aparecessem. A situação da colônia Alexandra era lastimável, tornando impossível à sobrevivência daqueles imigrantes. Segundo Balhana (1858, p. 29), o objetivo daquele empresário era atrair um número maior de imigrantes, por não estar ele interessado nem com os colonos nem com a colonização da Província.. Inúmeras reclamações chegavam a Curitiba, da Colônia Alexandra. Muitos imigrantes desejavam até mesmo retornar à Itália, pois julgavam terem sido enganados pelas falsas promessas descritas nas propagandas distribuídas por Tripodi na Itália.

O Governo de Adolfo Lamenha Lins, em 1876, rescindiu o contrato com Tripodi e promoveu diretamente a imigração dos colonos. Em 1877, criou a Colônia Nova Itália, em Morretes, para remover aqueles imigrantes que não desejassem mais permanecer na Colônia Alexandra e, ainda, instalar outros novos imigrantes que continuavam a chegar. (BALHANA, 1958, p. 30) De acordo com Azzi (1987, p. 213), em 1877, desembarcaram no Porto de Paranaguá cerca de 2000 colonos vênetos estimulados por um sacerdote do Canal de Brenta. Igualmente à antiga colônia, a Colônia Nova Itália, que também se localizava no litoral, não prosperou. Os mesmos problemas afetaram aquela colônia levando ao fracasso. Aos poucos, aqueles colonos começaram a deixar a localidade em direção a Curitiba.

Praticamente todo o contingente de imigrantes italianos, estabelecidos no litoral, dirigiu-se a Curitiba. A acomodação deles no planalto curitibano deu-se de modo diversificado. Muitos imigrantes que deixaram o litoral por conta própria, acabaram se instalando em colônias já existentes. Todavia, a maior parte deles se fixou em novas colônias, formadas nos arredores de Curitiba, através da compra de terras por parte do Presidente da Província, Rodrigo Octávio de Oliveira Menezes, entre elas a Colônia Alfredo Chaves, que deu origem posteriormente ao Município de Colombo.

Dos autores que versaram sobre a formação da Colônia Alfredo Chaves, os trabalhos de Ferrarini (1976, 1979 e 1992), destacam-se pelo exaustivo e exclusivo estudo

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sobre a história do Município de Colombo, contemplando também aspectos da imigração italiana no Paraná. Segundo o autor, para a formação do Núcleo Alfredo Chaves, o Presidente Rodrigo Octavio de Oliveira Menezes, efetuou a compra de terras dos lugares, denominados Butiatumirim e parte da localidade de Veados. Parte dessa região já era habitada por famílias brasileiras e compreendia as terras da Sesmaria do Timbuy.103 Criado no ano de 1878, o núcleo recebeu o nome do Inspetor Geral de Terras e Colonização do Império, Alfredo Rodrigues Fernandes Chaves, sendo denominado Núcleo Colonial Alfredo Chaves. As terras que formavam o núcleo foram divididas em 80 lotes rurais e urbanos e recebeu 40 famílias de imigrantes que procediam das colônias do litoral. Cada família de imigrante receberia o lote do governo que deveria ser pago à medida que, com o rendimento do trabalho, as terras pudessem ser quitadas.

No dia 4 de janeiro de 1879, o núcleo foi emancipado passando a denominar-se Colônia Alfredo Chaves, data em que também foram entregues os títulos provisórios dos lotes aos colonos. A construção de uma igreja, cemitério e escola foram solicitados, oficialmente neste dia. No entanto, os próprios colonos viabilizaram tais benefícios, em virtude da demora do Governo em atendê-los. Primeiramente, a igreja e o cemitério foram construídos. Nota-se que em meio à organização social, a escola também teve lugar primordial, no entanto, paralelamente á igreja.

As iniciativas pela criação de escolas por esses imigrantes foram fundamentais para que o ensino fosse disseminado na região. A escola era uma dentre as instituições bastante valorizadas pelos imigrantes italianos. Entretanto, o que explica as iniciativas quanto ao processo escolar empreendido pelos imigrantes e à necessidade pela escola foi o papel que a ela eles atribuíram.

Embora houvesse diferenciações quanto ao nível de alfabetização entre os imigrantes, estes italianos eram os que provinham de regiões da Europa de forte tradição escolar e que apresentavam maior consciência sobre a importância do acesso à escola, empenhando-se pela sua criação. Vêchia (1998), Kreutz (2000) e Wachowicz (1984) também partem desse pressuposto, quando afirmam que para aqueles imigrantes que provinham de regiões altamente escolarizadas a preocupação pela escola fazia sentido e manifestava-se fortemente. Por isso, alguns grupos de imigrantes buscavam criar escolas particulares étnicas, em função da falta de escolas públicas, nas colônias. Outros grupos ainda pressionavam os governos para que fossem criadas escolas públicas nas colônias já no início da sua fundação, a fim de garantir aos seus filhos o acesso a ela no novo cenário de organização social.

A maior parte dos imigrantes que se estabeleceu no Brasil e, conseqüentemente, no Paraná, provinham do Norte da Itália, uma região eminentemente agrícola. Porém, de acordo com Luca (1909 apud HUTTER, 1972, p.149-150), com baixos índices de analfabetismo em relação às regiões da Itália meridional. Segundo o autor, enquanto os

103 As localidades de Butiatumirim e Veados eram consideradas quarteirões que constituíam o Município de Curitiba, no entanto, são escassas as informações sobre sua população. Segundo Vechia (1998, p.29), a população paranaense no século XIX era “predominantemente branca, descendentes de portugueses e espanhóis”. Essas localidades tratarem-se de região de sesmaria podendo-se acreditar que as famílias que ali habitavam eram descendentes e herdeiros de terras dos primeiros proprietários portugueses, os quais puderam ser verificados ao longo deste estudo pela predominância de sobrenomes dessa origem.

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italianos emigrados das províncias centrais e meridionais apresentavam índices de analfabetismo de 46,65%, os italianos emigrados das províncias setentrionais apresentavam porcentagem inferior a 11%.

Além de proceder de regiões de forte tradição escolar, o que caracterizava o interesse pela escola? Que papel ela desempenharia no grupo para explicar tais esforços pela sua viabilização? Um dos aspectos levantados sobre o interesse pela escola foi a preocupação com a manutenção da cultura. A escola para alguns grupos de imigrantes desempenharia a função de manutenção da cultura do grupo. Ela seria uma instituição, assim como a igreja, e outras associações, responsáveis pela transmissão de idioma, valores, costumes, crenças e preceitos às novas gerações, de modo que esse arsenal cultural fosse perpetuado no seio daquele determinado grupo.

Os grupos étnicos que atribuíram esse interesse pela escola foram os que apresentaram os maiores números de escolas particulares étnicas que eram mantidas pelos próprios imigrantes. De modo geral, eram eles que escolhiam entre os seus um professor, providenciavam o local, a mobília e os materiais escolares. Em alguns casos havia também a participação e a vinculação da igreja. Segundo Vêchia (1998) essa dinâmica de criação de escolas particulares étnicas foi fundamental para suprir a falta de escolas públicas nas colônias do Paraná. Essa afirmação é compartilhada por Seyferth (1981, p. 12) e Kreutz (2000, p. 348) quanto às colônias do sul.

Segundo Kreutz (2000, p. 360), entre as etnias que tinham uma significativa preocupação com a manutenção de sua cultura e apresentaram os maiores números de escolas étnicas, estavam em primeiro lugar os alemães, depois os italianos, os poloneses e os japoneses. No entanto, continua ainda o autor, que

[...] entre as quatro etnias de imigrantes [alemães, italianos, poloneses e japoneses] com maior número de escolas étnicas, os italianos foram os que menos vincularam a escola com suas respectivas organizações, comunitária e cultural, sendo que a igreja tinha peso maior. Isso teria ajudado a que reivindicassem mais cedo o acesso à escola pública [...],

como ocorreu no caso da Colônia Alfredo Chaves. Ao estudar o processo de constituição do ensino neste Município, foi possível observar que os primeiros imigrantes, desde a fundação da Colônia, inúmeras vezes solicitaram ao Governo a criação de uma escola pública.

A preocupação pela escola esteve presente desde os primeiros pedidos. Ainda que a grande maioria deles fossem lavradores e necessitassem de instrumentos agrícolas e benefícios financeiros para o trabalho nas terras, a escola, a igreja e o cemitério foram as primeiras solicitações dos italianos. De acordo com Ferrarini (1992, p. 466), na falta de escola pública, durante o período de instalação da Colônia Alfredo Chaves, os imigrantes italianos que ali aportaram providenciaram uma escola particular cujo professor foi designado por eles, embora sem registros sobre o seu funcionamento.

Se esses imigrantes não estavam preocupados com a manutenção cultural através da escola, porque atribuíam à igreja seu peso maior e qual a função que a escola desempenharia para ser solicitada? Ainda de acordo com o autor, para os imigrantes tornava-se difícil manter as escolas particulares por muito tempo, devido aos gastos que

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esses deveriam despender para a sua manutenção. Desse modo, os italianos exigiam do Governo a criação de escolas públicas.

Todavia, na análise do conjunto da documentação sobre a questão, a escola era visualizada como instrumento primordial para as primeiras aprendizagens (HÉBRARD, 1990, p.68-69). Aprender a ler, escrever e contar para aqueles imigrantes poderia significar a civilização do homem. A escola seria capaz de retirá-los da condição de bestias 104 e elevá-los para a condição de humanos. Por isso pode-se inferir que, naquele momento, não se preocupavam em fortalecer e manter a cultura instituída pelo grupo através da escola, mas manifestavam o desejo de através dela manter uma cultura letrada, entendendo a escola como um lugar específico que concorria para a humanização do homem e moralização dos costumes.

Considerando que parte desses imigrantes, emigrados para o Sul do país e, especificamente, para a Colônia Alfredo Chaves eram alfabetizados e provindos de uma cultura letrada, poder-se-ia afirmar que o interesse pela escola, manifestado por esse grupo, estava ligado à preocupação da manutenção dessa cultura letrada, uma vez que à igreja também foi atribuída uma primordial importância na manutenção dos valores e dos costumes.

O posicionamento dos imigrantes italianos da Colônia Alfredo Chaves foi, desde sua instalação, o de pressionar o Governo para a criação de uma escola pública e cobrar o bom funcionamento da escola.

No dia 11 de julho de 1882, os colonos enviaram ao Presidente da Província, Dr. Carlos Augusto de Carvalho, um abaixo-assinado contendo 67 assinaturas, entre elas os de alguns brasileiros. Reclamavam por meio do requerimento a falta de aulas públicas na Colônia, alegando que este benefício teria sido esquecido pelo Governo. Solicitavam a criação de uma escola pública promíscua, informando haver na Colônia um número elevado de crianças, cerca de 140 de ambos os sexos, menores de 14 anos de idade e, ainda, muitas, filhos de brasileiros que também necessitavam receber educação (PR. Requerimento, 1882, p.58-59).

Após tais esforços a primeira escola pública de primeiras letras foi criada legalmente. O Presidente da Província atendendo, finalmente, o pedido dos colonos criava uma escola promíscua, no dia 22 de julho de 1882, conforme consta no ofício, expedido pelo Diretor Geral da Instrução Pública, José Joaquim Franco Valle. Tomou posse nesta cadeira o professor Antonio José de Souza Guimarães, de nacionalidade brasileira, formado pela Escola Normal da Capital, cidade onde residia. Embora parte do território já fosse habitada por famílias brasileiras, nenhum registro foi localizado que atestasse a existência de uma escola pública ou particular anterior a esta data.

Nos documentos, depreende-se que esses imigrantes contribuíram também para que a população brasileira manifestasse interesse pela escola. Seguindo o exemplo dos

104 Essa foi uma expressão usada pelos colonos num documento em que reclamavam ao governo a falta de escolas públicas nas colônias. Neste os colonos falavam que ao não interessar-se em criar escolas públicas, o governo manifestava a intenção de que os filhos daqueles imigrantes fossem criados como ignorantes. Segue o fragmento. “... é igual a reclamação por parte dos immigrantes por não terem nos núcleos, onde se acham estabelecidos, uma cara escola para os filhos seus, digamos de passagem, são sempre em grande número. Reclamam amargamente do governo e em sua rude linguagem dizem que o Estado quer que elles criem os filhos como bestias...”. (OFÍCIO, 1890, p. 109-110)

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imigrantes após a criação daquela primeira escola pública, muitas escolas foram criadas pela população brasileira nos povoados dos arredores da colônia.No mesmo ano de 1882, uma escola particular foi aberta na localidade de Veados.105 É necessário ressaltar que mesmo sabendo que famílias brasileiras habitavam essas localidades, a criação de escolas por parte dessas famílias foi posterior à instalação dos imigrantes e à criação de escolas por parte dessa etnia. Neste sentido, ao analisar a abertura dessas escolas acredita-se que as iniciativas empreendidas pelas famílias brasileiras pela criação de escolas foram motivadas pela a instituição de escolas, na Colônia, por parte dos primeiros imigrantes.

De acordo com Wachowicz (1984, p. 67),

O governo apoiava as iniciativas particulares para a manutenção da instrução. Nos núcleos de imigrantes europeus, surgem escolas subvencionadas: são instituições particulares abertas por iniciativa da comunidade, geralmente em localidade onde não há escola pública [...]. Nas localidades, havia a idéia de que a população brasileira deveria imitar a população imigrante, que tomava as iniciativas para a institucionalização da instrução.

Considerando a afirmação da autora, a criação de escolas particulares por parte da população brasileira foi, portanto, uma atitude de imitar os imigrantes italianos que conseguiram do Governo a abertura da escola.

Os estudos da organização dessas instituições tornaram-se relevantes para se entender a contribuição da colonização italiana, pois proporcionou a verificação de que nessas escolas particulares houve especificidades, no que tange à sua organização, que as diferenciavam das escolas advindas de iniciativas dos imigrantes italianos. Muitas vezes, as escolas criadas pela população brasileira apresentavam um ensino deficitário, por diversos motivos. Por serem elas localizadas, nos arredores da sede do Município e ainda distantes do centro de Curitiba, problemas como a demora pelo envio de documentos, falta de materiais e mobília escolar e falta de casa escolar apropriada ocorriam juntamente com outras questões, como as relacionadas às constantes mudanças de professores, que pela distancia e má condição física da escola, não permaneciam nas regências por muito tempo, ocasionando a falta de aulas e a interrupção dos trabalhos por meses seguidos e, até mesmo, o fechamento das escolas.

Situações que comprometessem o funcionamento e a estabilidade do ensino nas escolas eram imediatamente reclamadas pelos pais italianos, por meio de ofícios com abaixo-assinado, encaminhados à Diretoria da Instrução Pública, para que fossem tomadas as devidas providências. Esta constante preocupação dos italianos sobre o funcionamento da escola não se verificava, na mesma proporção, entre os brasileiros, sendo poucos os pais que reclamavam a instabilidade das aulas. 105 Além do povoado do Butiatumirim que deu lugar a sede da Colônia Alfredo Chaves, existia nos seus arredores os povoados de Veados, Roça Grande, Ressaca, Capivari, Morro Grande, Ribeirão das Onças e outros. Os registros de compra de posses dessas terras, conforme FERRARINI (1979, p. 32-33) datam do ano de 1856. Essas localidades já pertenciam ao município de Curitiba e eram habitadas por famílias brasileiras. A partir de 1890, com a formação do município, os limites territoriais foram demarcados e esses povoados foram agregados passando a pertencer politicamente ao município.

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A partir do ano de 1890 a Colônia Alfredo Chaves passou a ser município, denominando-se Colombo. Com essa mudança no âmbito político, aquela primeira escola pública deixa de ser promíscua e passa a ser dividida em masculina e feminina. Nos povoados, outras escolas particulares foram sendo abertas pela população brasileira e, posteriormente, subvencionadas pelo Governo.

Ainda que os empenhos por abertura de escolas fossem profícuos, nos últimos anos do século XIX, essas escolas apresentavam aspectos que denotavam a precariedade do ensino. Verificou-se no conjunto de documentos muitas reclamações de falta de material, mobília escolar e de casas escolares. É interessante ressaltar que nos anos posteriores, início do século XX, a precariedade do ensino continuava, embora novos olhares e novos discursos nascentes no período republicano fossem intensificados em torno do ensino.

Mas, apesar da precariedade do ensino, em meio a uma maior atribuição de importância do Estado para com as escolas, outras novas iniciativas por parte dos imigrantes italianos e pela população brasileira voltaram a se concretizar no Município de Colombo.

Nos povoados, outras escolas foram abertas pela população brasileira e, ainda, criadas pelo Governo. Na sede do Município, em 1905, foi criada a Società Christoforo Colombo, uma associação italiana beneficente que, em anos posteriores, ofertou à comunidade uma escola só para meninos. Em 1910, um imigrante italiano criava uma escola particular italiana, só freqüentada por filhos de imigrantes. E, em 1917, ocorria a criação do Colégio Santo Antonio, uma escola confessional católica, dirigida por irmãs italianas. Esta escola católica foi identificada como a última iniciativa de criação de escola, por parte desses imigrantes, e caracterizou-se como consolidação das iniciativas empreendidas por esse grupo étnico.

No período, em que houve a constituição do processo escolar, no Município de Colombo, foi possível concluir que as iniciativas pela criação de escolas foram constantes, reiterando a hipótese de que os imigrantes italianos contribuíram para a consolidação desse processo, fosse viabilizando iniciativas próprias pelo ensino, fosse servindo como exemplo para a população brasileira imitá-la no interesse pela criação de escolas a serem solicitadas ao Governo a quem cabia a responsabilidade com o ensino.

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AS IMAGENS E AS PALAVRAS NA PERSUASÃO PUBLICITÁRIA: O EVANGELHO DA MERCADORIA

Milena Maria SartiDoutoranda em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras

de Ribeirão Preto - Universidade de São Paulo (FFCLRP/USP)

ResumoO presente artigo propõe-se discutir, sob o marco da implicação entre as noções de persuasão e verossimilhança, aspectos da complexa relação existente entre identidade e cultura. Para tal realizamos um diálogo entre os métodos e modelos de persuasão dos sermões de pregação religiosa do Brasil colonial e as técnicas persuasivas utilizadas nos anúncios publicitários no contexto atual. Concluiu-se que as quimeras publicitárias – elaboradas através de imagens e palavras – fomentam a crença fetichista da mercadoria, corroborando a adesão dos sujeitos a um imaginário sócio-cultural relacionado ideologicamente a processos de subjetivação tributários da formação de certa identidade. (CNPq)106.Palavras chave: persuasão; identidade e cultura; publicidade.

AbstractThis work is dedicated to a discussion of aspects of the complex relation existent between identity and culture, taking into account the implication of the notions of persuasion and verisimilitude. Accordingly, we perform a dialogue between methods and models of persuasion of evangelistic sermons in colonial Brazil and the persuasive techniques used in advertisement at the present context. It was concluded that the advertising chimeras – elaborated through images and words – stimulate the belief in the commodity fetishism, corroborating the adhesion of subjects to a socio-cultural imagery ideologically related to processes of subjectivization connected with the formation of a particular identity.Keywords: persuasion; identity and culture; advertisement.

“[...] há qualquer coisa de poesianessa relação memória-imagem”.

Mario Benedetti

Introdução

O contato teórico com a questão da pregação, mais especificamente, o uso da palavra e da imagem pelo orador nos sermões de pregação do Evangelho - realizados no contexto sócio-cultural do Brasil colonial, em um período que se estende do século XVI ao século XVIII - fomentaram a escrita deste artigo. Tais sermões visavam à persuasão e 106 O presente trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq – Brasil.

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adesão dos ouvintes (evangelização) através da mobilização do dinamismo psíquico destes. É precisamente nesse ponto que se encontra o norte da idéia que propomos: o uso das palavras e das imagens na publicidade visando à persuasão do ouvinte/espectador para que este, em função da crença fetichista da mercadoria que o autoriza, se identifique assumindo sua posição social de consumidor. A adesão a essa crença fundamenta o consumo e a cultura a ele atrelada relacionando-se à estabilidade da ordem política e social.

O diálogo que pretendemos realizar circunscreve-se na consideração de que ambos os discursos – de pregação religiosa e o publicitário - são elaborados em métodos persuasivos que se assemelham em diversos aspectos107. Essa relação, cuja possibilidade será discutida, permitiria a hipótese interpretativa que defendemos acerca de que, na atual cultura de consumo, a publicidade apresenta-se como o “evangelho da mercadoria”.

A pregação religiosa e a publicidade: um diálogo possível?

A pregação religiosa realizada no Brasil (século XVI ao século XVIII) pode ser avaliada dentro de uma relação dinâmica de intercâmbio entre os pregadores e os ouvintes. Segundo Massimi (2005, p. 14):

Os usos e as representações induzidos pela pregação nos ouvintes nunca podem ser reduzidos univocamente aos objetivos e motivações dos produtores do discurso ou aos conteúdos transmitidos: ocorre sempre um processo criativo cujos atores são os próprios ouvintes.

Os ouvintes da pregação não eram receptores passivos: a imaginação, que funciona em função da memória (organizada por imagens e palavras), implicava-se nessa prática, tendo em vista que conduzia ao entendimento criando a relação entre a cena evocada pelo pregador e a vida dos ouvintes. (MASSIMI, 2005). Tal fato demandava do pregador a criatividade de acomodar-se lingüisticamente ao público ouvinte, concorde à situação e ao conteúdo do discurso, na tentativa de assegurar a interpretação visada. Segundo Sercovich (1977, p. 63), um discurso (e sua interpretação) é convincente, na medida em que adquire efeito de verossimilhança, o que significa afirmar que se deve estabelecer “[...] un acuerdo entre un discurso y el conjunto de ideas que habitan a su destinatário.” Essa acomodação ou adequação significante, segundo Massimi (2005, p. 14), era empregada na construção dos sermões por meio da utilização criativa de “[...] métodos retóricos e conteúdos doutrinários [...]”, cuja finalidade principal era a de persuadir o público ouvinte. Como afirma a autora (op.cit., p. 15): “[...] a pregação pretende incorporar nos indivíduos atitudes, crenças e gestos considerados convenientes – objetivo realizado graças a apelos [...] emotivos e teatrais, mais do que pela convicção racional.”

A publicidade, por sua vez, é o discurso do objeto-mercadoria por excelência (BAUDRILLARD,1973), e tem como objetivo principal, segundo Ribeiro et. al. (1985), a persuasão do consumidor. Para tal, utiliza-se em seus anúncios da linguagem e de estímulos sensoriais que são preparados e adequados aos destinatários com muita criatividade para que, através da dimensão imaginária do discurso, excite a vontade, a imaginação e a

107 Esse artigo não pretende realizar um trabalho de comparação estrita entre os discursos religiosos e os publicitários julgando o mérito, o conteúdo ou as intenções destes, uma vez que tal discussão seria anacrônica e uma violência simbólica diante dos diferentes contextos e registros sócio-históricos e ideológicos em que cada uma dessas práticas se inscreve.

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memória dos sujeitos, conseguindo persuadi-los da idéia fantasiosa de que a mercadoria anunciada comporta os sentidos (a imagem) a ela atribuídos pela publicidade e, sobremaneira, que estes seriam parte da vida dos sujeitos-consumidores caso a adquirissem. Trataremos adiante desta importante relação fantasiosa entre o objeto e a imagem do objeto.

Interessante pontuarmos agora, em virtude do exposto, que a persuasão apresenta-se como a via comum que, ao possibilitar um espaço de diálogo entre as práticas de pregação religiosa e a publicidade, autoriza uma discussão acerca da relação entre identidade e cultura (enquanto universo simbólico de uma época), principalmente tendo em vista que a noção de persuasão intrinca-se à de verossimilhança.

O discurso que persuade, fazendo identidade com os destinatários, é o que mais se aproxima, remetendo diretamente à realidade destes (efeito de verossimilhança). Em outros termos, é o discurso que se ancora a uma determinada ordem política e social significante na qual os sujeitos inscrevem sua identidade e sua significação de realidade. Tal ancoragem corresponde a uma rede de significações e representações subjetivas particulares a uma dada relação ideológica (imaginário discursivo) estabelecida com os sujeitos que lhe são contemporâneos. Com efeito, a persuasão só pode ser discutida se considerado seu caráter tributário à constituição de subjetividade que, por sua vez, reconhece as determinações sócio-históricas e ideológicas específicas de uma época.

“Os fins justificam os meios”: sobre a persuasão nos sermões e na publicidade

Nos sermões os ouvintes eram mobilizados na totalidade do seu dinamismo psíquico108 para que fosse atingido o espírito e, assim, o sucesso persuasivo109. Para tal o sermão em sua função de persuadir, segundo Pimenta e Massimi (2007), era um discurso retoricamente construído (referente ao modelo da retórica clássica) tratando de estabelecer o consensus e suprimir a disputatio (SERCOVICH, 1977) e, dessa maneira, era destinado a uma conjuntura tempo-espaço-cultural específica considerando o contexto político e social. Aristóteles em sua obra Retórica (2007), considera a linguagem tanto como um veículo quanto como uma ferramenta para dar forma a argumentos persuasivos, postulando a importância da construção de argumentos verossímeis que teorizassem sobre o que é adequado em cada caso para convencer. Para tal, o filósofo grego salienta a importância da mobilização das paixões que devem ser tocadas e incitadas pelo orador para persuadir. A persuasão se caracterizava pelo uso da retórica para chegar a uma identidade, “[...] o ideal

108 Os sermões, em sua função persuasiva, têm como norte teórico fundador, ao lado da Ars Rhetorica, a “psicologia filosófica aristotélico-tomista” que entende o homem como totalidade. (MASSIMI, 1999 apud. PIMENTA e MASSIMI, 2007, p. 138).109Salienta-se aqui uma obviedade que precisa ser marcada a priori denotando uma diferença fundamental entre “os dois tipos” de pregação propostos aqui. Os sermões eram orais (não existia TV, outdoor, bunners, revistas ou internet na época...) o que implica dizer que o uso da retórica e seus métodos (metáfora, evidências, alegorias, etc.) eram estratégias para que o pregador criasse imagens que proporcionassem uma melhor e mais rápida persuasão dos ouvintes para a adesão à doutrina pregada. Já a prática da publicidade dispõe dos elementos visuais e auditivos e, sobretudo, toda a tecnologia a estes associada para a criação e superexposição de imagens, músicas, sons, cores, etc. na estimulação dos ouvintes/espectadores para a adesão ao consumo.

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político de toda relação com outrem.” (ARISTÓTELES, 2003, p. XLI) A imaginação tem função importante na retórica clássica, na medida em que esta

capacidade é responsável por presentificar no espírito as sensações suscitadas por imagens, que, por sua vez ao provocarem mudanças espirituias (adesão/identificação) observar-se-iam notáveis diferenças nos julgamentos proferidos. (ARISTÓTELES, 2003). A retórica para a persuasão tem como fim o julgamento, a formação espiritual e de identidade, caminhando, através da linguagem (enquanto código de relações humanas) e pela via das paixões o percurso: vontade-imaginação/memória-entendimento-razão. Tal uso da retórica fomenta a adesão e identificação dos destinatários aos preceitos propostos no discurso evidenciando o fator estratégico dos métodos persuasivos que modelavam os sermões.

Como destacam Pimenta e Massimi (2007), o elemento visual tem valor persuasivo intrínseco, e um caráter pedagógico é atribuído a esse recurso na prática da pregação110. Para a adesão à doutrina religiosa parte-se da estimulação das paixões (excitação da vontade), principalmente da imaginação intrincada com a memória, para que se atinja o intelecto ou razão que, por sua vez, criará argumentos de identificação e entendimento dos conteúdos associados à imagem produzindo, enfim, a ação.

Tal constatação nos estimulou a associar que a utilização do recurso retórico de imagens na pregação religiosa proporciona uma relação verossímil do discurso (e suas representações) com a realidade remetendo, assim, à dimensão imaginária que existe em todo discurso. Nas diferentes materialidades (imagens e palavras, por exemplo) é característica desta dimensão a capacidade de remitir os significantes à realidade de modo direto, convincente e até natural aos sujeitos, i.é., com efeito de verossimilhança. Tal efeito, segundo Sercovich (1977), oculta as condições de produção desse discurso, as determinações sócio-ideológicas que o fundamenta e a ação ideológica deste que, tem a ver com o domínio do inconsciente, ou seja, com o domínio da constituição da subjetividade111. Para o autor (op. cit., p. 71):

[...] es necesario distinguir inicialmente entre la acción de comprender algo y el hecho de adherir a lo que se comprende. [...] entre lo dominio de la reflexión o la racionalización, cuyo protagonista es el ‘yo’, y el de los fantasmas y el deseo constitutivos de lo imaginario inconsciente.

Em virtude disso, inferimos que o recurso retórico das imagens (aliado às palavras)

trabalha e estimula a identificação dos destinatários ao discurso - idéias, conceitos e propriedades apresentados nesse outro discursivo que, por assimilação, são constitutivos da identidade dos destinatários - pela via do imaginário inconsciente (registro da identidade), visando a adesão à doutrina religiosa (no caso dos pregadores jesuíticos) e a adesão à cultura de consumo (no caso da “pregação” publicitária). Como afirma Sercovich (1977, p. 77): “[...] los procesos de identificación se encontrarían en la base de la adhesión del sujeto a los variados discursos que de esta forma lo capturan o, en otros términos, lo ‘persuaden’.” 110 Esse aspecto não é diferente na publicidade, embora a imagem não se apresente como fruto da pura imaginação do ouvinte, mas sim dos olhos do espectador, que não permanece passivo diante das imagens, realizando uma interpretação que reporta e mobiliza a sua imaginação e memória. 111 Falamos aqui de um lugar teórico que reconhece a subjetividade em sua natureza psicanalítica, o que abarca, em termos lacanianos, conceitos inerentes ao inconsciente como imaginário, identificação, desejo e fantasia.

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E ainda, segundo o autor argentino (op. cit., p. 32/33): “[...] la imagen, en este sentido, reconoce condiciones de producción específicas [...] en una formación social determinada.”, na qual inscreve-se a identidade dos sujeitos. Encontramos indícios históricos do poder persuasivo alcançado pelas imagens no seu uso retórico pelos pregadores em um certo contexto espaço-tempo-cultural. Essa prática tinha em vista a adesão dos ouvintes à doutrina religiosa que, por sua vez é correlata da formação de certa identidade que reconhecia condições específicas no registro da formação social em que se inscrevia.

A teia de significações à qual os sujeitos se filiam em cada conjuntura sócio-histórica funciona como a matriz dos sentidos que sustentam sua verdade, sua identidade. As identidades se movimentam no movimento da história das formações sociais, ou seja, no movimento dos sentidos sócio-historicamente determinados. Posto isso, a publicidade joga com a verdade dos sujeitos, com a identificação que, atualizada no registro contemporâneo, reconhece a hegemonia das leis do mercado: uma repressão contínua e eficaz dos desejos é realizada (BAUDRILLARD, 2000) na exposição e fornecimento incessante de objetos de consumo que satisfazem de modo fantasmático o imaginário inconsciente dos sujeitos.

Por conseguinte, pontuamos que a interpretação (produção de sentidos) das palavras e das imagens dos sermões e da publicidade, relaciona-se de maneira direta com processos de subjetivação tributários da formação de identidade. Tal busca da identificação é característica da publicidade, e da mídia em geral, como pontua Ferreira (2005, p. 147):

“[...] a produção de sentidos está vinculada, sobremaneira, aos processos de identificação instaurados na/pela via da interpretação [...]”, o que traz a proa uma reflexão acerca das práticas midiáticas, “[...] na constituição de processos de subjetivação que, de modo geral, propõe uma identidade aos sujeitos e, visam a gerenciar [...] sua singularidade.”

Segundo Massimi (2005), a adesão à doutrina religiosa era trabalhada nos sermões a partir da recriação de cenários imaginários (dos acontecimentos da história sagrada) que mobilizavam o dinamismo da memória fazendo com que os ouvintes participassem da cena criada (efeito de nexo com a vida cotidiana de todos os ouvintes) o que, por sua vez proporcionava o conhecimento pela visão. Afinal, ver é crer. Como pontua Yates (1966 apud. MASSIMI, op. cit., p. 113): “Desse modo visando alimentar a fé no meio popular, a presença da imagem visível inutilizava a demonstração intelectual da verdade e buscava que os conceitos teológicos se fixassem na mente através da visão”.

Ocorria, a partir desse método, uma espécie de “disciplinarização” da imaginação para utilizá-la a favor da evangelização. O recurso retórico às imagens nos sermões, segundo Massimi (2005, p. 114), não era auxiliar do anúncio e representava o meio mais sublime de conhecimento. Podemos notar que nos anúncios publicitários atuais as imagens reinam (ao lado de slogans e jingles), evocando o espectador através da visão e estimulando, sobremaneira, o encaixe dessas imagens e sentidos condensados na mercadoria, na sua própria vida cotidiana e emocional. Como comenta Rocha (1995, p. 148), as imagens

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publicitárias trabalham através de técnicas de identificação e condensação e, assim,

[...] trazem, em torno do produto, muito mais que o produto. O produto é muito menor do que sua publicidade. Apenas por meio da condensação ele pode carregar as significações do anúncio. [...] A ilusão de condensação é fazer com que estas imagens pertençam ao produto como uma parte sua que seria também do consumidor, na medida em que possuidor do produto.

A publicidade parece organizar-se em torno do que Sartre (2008) chamou de “metafísica ingênua da imagem”, tendo em vista que o anúncio procura estimular a relação fantasiosa ou fantasmática, a (con)fusão entre a existência como coisa e a existência como imagem. Essa relação fantasiosa não é criada pela publicidade, mas se caracteriza como a própria condição de existência desta: o acontecimento discursivo das imagens, dos slogans e dos jingles publicitários que se repetem freneticamente corrobora a verdade fetichista (correlata da identidade do sujeito) de que ao mundo fantástico das quimeras publicitárias estão anexados os produtos, cuja compra e consumo proporcionaria ao indivíduo (exterior a este reino) a participação ilusória neste. O sujeito-consumidor passa a consumir a imagem do produto (objeto do desejo) através do consumo do produto (real), tornando-se, nos termos de Debord (1997), um “consumidor de ilusões”.

Esse processo é realizável porque os anúncios utilizam-se de elementos do mundo e do cotidiano (necessidades, sentimentos, situações, cultura, política, etc.), ou seja, do imaginário atual criando imagens que ao estimularem a imaginação e a memória dos ouvintes/espectadores proporcionam a identificação pelo encaixe da cena anunciada na própria vida destes, o que, por sua vez, possibilitaria uma reordenação positiva da realidade dos sujeitos e a, conseqüente, adesão ao imaginário discursivo proposto. É nesse sentido que pensamos ser a publicidade atualmente o “evangelho da mercadoria”. O anúncio, nesses termos, se caracteriza, ao mesmo tempo, como um convite e uma prova material da própria crença que lhe dá sustentação. Conforme afirma Rocha (1995, p. 139):

Mergulhar na fantasia do ter com a certeza de jamais ter a mágica fantasia da publicidade. O anúncio, como moldura de acontecimentos mágicos, faz do produto um objeto que convive e intervém no universo humano. O anúncio projeta um estilo de ser, uma realidade, uma imagem das necessidades humanas que encaixa o produto na vida cotidiana. A verdadeira magia da publicidade é incluir o produto nas relações sociais [...] Ao consumidor resta acreditar nessa magia, e o produto passa a entrar na sua própria vida. [...] O anuncio é o convite a esta crença.

E ainda segundo o autor (op. cit., p. 140) os anúncios publicitários são o espaço onde tudo se resolve, com a efetivação plena do desejo: “Como no sonho, no mito, no conto de fadas, a lógica é a do desejo, o princípio do prazer, o registro o do imaginário”.

O poder da imagem de presentificar sem contestação resulta de ela não ter negatividade, como coloca Wolff (2005), a imagem “é”, comove e convence sempre no presente. Massimi (2005, p. 109) em complemento, afirma ser a imaginação o órgão capaz de realizar o deslocamento do espaço dos lugares onde as coisas aconteceram, “[...] para o

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interior”, em uma “[...] dimensão temporal que é sempre o presente: como se estivessem acontecendo agora.” No caso dos sermões, também se fazia uso de diversos elementos do imaginário ou da realidade dos sujeitos. As relações analógicas e os efeitos de sentido incitados pelo pregador para mobilizar o imaginário dos ouvintes eram frutos da utilização criativa dos elementos e imagens conhecidos destes112, o que fazia do discurso doutrinário um discurso verossímil e convincente incitando e facilitando a identificação113.

Já na publicidade, é preciso que as relações significantes por ela propostas (materializadas em imagens e palavras) já façam sentido, para que ela mesma faça sentido enquanto discurso que procura introduzir a mercadoria no universo íntimo, no mundo vivido dos sujeitos. Não se pode imaginar tudo ou qualquer coisa, há um arcabouço ideológico discursivamente organizado em imagens e palavras na memória (inconscientemente) dos ouvintes/espectadores que dá ancoragem e verossimilhança aos sentidos produzidos pela imaginação e interpretação dos discursos anunciados. A atribuição desta capacidade fantástica à mercadoria na publicidade, só é verossímil e possível por sustentar-se na crença fetichista desta, (inter)discurso do qual deriva esse efeito de sentido tributário da formação de uma certa identidade: a de consumidor. Conforme Sercovich (1977, p.34/35):

Si definimos como verosímil al discurso que contiene significaciones adecuadas a ciertos marcos representacionales preexistentes [...] la significación imaginaria será la relación entre la expresión y el contenido de una imagen y, por último, la relación entre un discurso (de efeito) transparente y un sujeto (a ele identificado). (Grifos em comentários nossos).

O efeito de evidência que naturaliza a con(fusão) entre a coisa sensível e a coisa imaginada é a fantasia que impera na atual cultura de consumo. Por mais que Marx pontuasse que a mercadoria pudesse ser consumida por razões estomacais ou fantasiosas (MARX, ([1867] 1980 apud. BUCCI, 2005), nunca imaginaria que o consumo seria espetacularizado a ponto de fetichizar a mercadoria de tal modo, transformando-a em um significante que materializa, pela via da fantasia e do desejo, imagens que constituem seu valor de troca. Conforme Bucci (2005, p. 224): “[...] a mercadoria só existe se existir como signo.” Ela passa adquirir valor de troca por sua imagem: razão de ser da publicidade.

Considerações finais

Salvaguardo as evidentes diferenças, constatamos que os discursos religiosos e publicitários assemelham-se em muitos aspectos quanto ao trabalho de persuasão,

112 Como a natureza e seus fenômenos que eram elementos muito importantes do mundo e da vida do Brasil da época em questão: a natureza era utilizada nos sermões de evangelização como um símbolo vivente de realidades morais e espirituais demonstrando aos destinatários, por meio de representações (imagens de algo conhecido), a presença do divino (sobrenatural) no mundo real (natural). (MASSIMI, 2007). 113 Nos sermões de Padre Antonio Vieira encontramos tal recurso utilizado com brilhantismo. Exemplificamos com o seu Sermão do Espírito Santo ([1657] 1957), no qual realiza-se a metáfora do jardineiro, da moita e do mármore remontando às atividades da Companhia de Jesus no Brasil para a conversão dos índios.

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principalmente no que concerne à produção de verossimilhanças. Os sermões têm um objetivo evangelizador enquanto pregação da doutrina cristã (visando mudança de atitude para as virtudes pautadas segundo o Evangelho); a publicidade, pautada em um novo tipo de consumo, objetiva evangelizar com a pregação da crença fetichista da mercadoria.

Nunca se consumiu tanto quanto hoje e a crescente impera nessa prática que, segundo o que propomos, funda uma cultura, uma vez que a venda de objetos simbólicos pela publicidade (mercadorias enquanto signos, objetos de desejo) adquire valor social e passa a servir de referência para práticas coletivas (LACAN, 1953). Sob este marco concluímos que uma das causas da fundação de uma cultura de consumo reside no fato de o homem estar menos em busca de objetos e mais em busca de fantasias que satisfaçam o desejo, pois vemos que não há saciedade. Com efeito, a publicidade adquire sua eficácia persuasiva, precisamente, por trabalhar no âmago dessas fantasias, caracterizando-se como o “evangelho da mercadoria” para uma sociedade cujos sujeitos encontram sua identidade e coesão ideológica na crença fetichista desta. Se a cultura gera identidade, afirmamos que a atual cultura de consumo fomenta a adesão de fiéis consumidores por diversos meios, dentre os quais destacamos a publicidade que, trabalhando diversos métodos de identificação, faz valer o poder persuasivo das imagens e das palavras em seus anúncios.

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LETRAMENTO: UM ESTUDO DO LIVRO DIDÁTICO DE MAGDA SOARES, PORTUGUÊS: UMA PROPOSTA PARA O LETRAMENTO

Nilma Maria Nogueira Pós-graduanda – Educação e Diversidade – UEMS – MS

Professora do Ensino Fundamental

ResumoEste trabalho consiste em compreender o conceito de letramento na sociedade contemporânea que está centrada cada vez mais na escrita, não bastando mais ser apenas alfabetizado. Na expectativa de compreender como Magda Soares concretiza o letramento que propõe na teoria para ser aplicado na prática em seu livro didático, Português: uma proposta para o letramento (2002). O trabalho tem como intuito aprofundar o conhecimento sobre letramento para subsidiar os professores da rede pública, que têm pouco conhecimento sobre o termo letramento. Palavras-chave: Letramento; livro didático; Magda Soares.

AbstractThis work consists of understanding the literacy concept, in the society contemporary who is centered each time more in the writing is not enough more alfabetizado being only. In the expectation to understand as Magda Soares it materialize the literacy that considers in the theory to be applied in the practical one in its didactic book, Portuguese: a proposal for the letramento (2002). The work has as intention to deepen the knowledge on literacy to subsidize the teachers of the public net, who have little knowledge on the term literacy. Key words: Literacy; didactic book; Magda Soares.

1. Introdução

O termo letramento chegou ao meu conhecimento no ano de 2005, durante a participação em um mini-curso, no II Simpósio Científico-Cultural (SCIENCULT), realizado pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul – UEMS, Unidade de Ensino de Paranaíba.

Na qualidade de pesquisadora iniciante, percebi a necessidade de distinguir alfabetização de letramento, uma vez que, nos dias de hoje não basta ser apenas alfabetizado. Por isso considerei necessário saber por que e para que surgiu o letramento? Letramento e alfabetização, onde está a diferença? O letramento é praticado? Só o uso do livro didático é capaz de letrar? Que papel o educador deve exercer no letramento, como professor “letrado”? Deve-se alfabetizar letrando?

Todos esses questionamentos levaram-me a querer aprofundar meus estudos sobre alfabetização e letramento, optando por analisar um livro didático de Língua Portuguesa que propõe em seu título o letramento, para verificar se concretiza esse conceito. Refiro-me ao livro Português: uma proposta para o letramento, de Magda Soares (2002), da editora Moderna. Escolhi este livro didático pelo fato de a autora se destacar como uma das principais pesquisadoras e defensoras do letramento, pois ela acredita que o aluno deve ser

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alfabetizado, onde a leitura e a escrita tenham sentido.

2. O surgimento do letramento

Segundo Soares (2003), a palavra letramento surgiu na Língua Portuguesa em 1986, por meio de Mary Kato em seu livro No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística e, em 1988, por Leda Verdiani Tfouni, em Adultos não alfabetizados: avesso do avesso, o qual dedicou várias páginas definindo e diferenciando letramento de alfabetização.

Em 1995, houve um grande avanço do termo, pois apareceu como título de livros: Os significados do letramento, uma coletânea de textos organizados por Ângela Kleiman (1995), e Letramento e Alfabetização de Leda Verdiani Tfouni (1997).

Soares (2003), por sua vez, publicou o livro: Letramento: um tema em três gêneros. Neste livro, reúnem-se três textos diferentes produzidos nos anos de 1990, com finalidades distintas. O primeiro é um verbete publicado em 1996, em seção específica de periódico brasileiro; o segundo, um texto didático divulgado entre professores de Belo Horizonte - MG e o terceiro, uma tradução do ensaio publicado em inglês, em 1992, por solicitação da Seção de Estatística da Unesco, em Paris.

Como se pode perceber, o termo letramento é recente na Língua Portuguesa. No dicionário Aurélio, encontramos apenas letrado e iletrado. O primeiro diz respeito a quem tem conhecimento literário e de línguas. O segundo se refere aos indivíduos que não têm informação literária, pessoa analfabeta ou quase analfabeta.

Mortatti (2004) ressalta o dicionário de Análise do Discurso, de Patrick Charaudeau e Dominique Mainguenau, publicado na França em 2002, em que a tradução brasileira feita, por um grupo de lingüistas, foi publicado também em 2004, a tradução da palavra “littératie” para a língua brasileira saiu como letramento.

Com o surgimento da palavra letramento, não se abandonou a palavra alfabetização “[...] e nem se criou ‘consenso’ sobre o uso de ‘letramento’. A relação entre ambos, portanto, não está ainda suficientemente esclarecida e vem gerando, ora usos inadequados” (MORTATTI, 2004, p. 80). Mas afinal, para que surgiu o letramento?

A palavra letramento surgiu com o objetivo de nomear a busca por se registrar o uso e as funções da escrita em processos sociais de comunicação. As diferentes comunidades podem ter distintas práticas de letramento.

Vivemos em uma sociedade grafocêntrica2, sempre tivemos problemas com a leitura e escrita, isso foi gerando uma enorme preocupação para solucionar e controlar essa questão, por meio de estudos e pesquisas com objetivo de minimizar o problema do analfabetismo.

De acordo com Soares (2003), o termo letramento é a tradução para o português do inglês “literacy”, e que caracteriza o estado ou condição de quem é literante, ou seja, aquele “[...] que não só sabe ler e escrever, mas faz uso competente e freqüente da leitura e da escrita” (SOARES, 2003, p.36).

A autora mencionada acima, relata que aparecem palavras novas na Língua Portuguesa somente quando surgem novas idéias, isto é, um novo fenômeno. Nesse caso “[...] é necessário ter um nome para aquilo, porque o ser humano não sabe viver sem

2 Grafocêntrica: modo de escrever as palavras de uma determinada língua.

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nomear coisas: enquanto nós não as nomeamos parecem não existir ”. (SOARES, 2003, p. 34).

Portanto, a palavra letramento surgiu por ter aparecido um fato novo, isto é, um novo fenômeno que deixou claro que não bastava apenas saber ler e escrever e sim envolver-se com as práticas sociais de leitura e escrita. Esse fenômeno então precisava receber um nome para ser divulgado no vocábulo da Língua Portuguesa, para que todos conhecessem a sua finalidade na área de educação e a sociedade contemporânea necessita de indivíduos letrados.

2.2. A importância do letramento na sociedade contemporânea

Soares (2003) define letramento como ação de ensinar e aprender as práticas sociais de leitura e escrita, pois nos dias de hoje não basta simplesmente saber ler e escrever é necessário ter domínio sobre as práticas sociais para atender as demandas da sociedade contemporânea:

[...] dos indivíduos já se requer não apenas que dominem a tecnologia do ler e do escrever, mas também que saibam fazer uso dela, incorporando-a a seu viver, transformando-se assim seu “estado” ou “condição”, como conseqüência do domínio dessa tecnologia. (SOARES, 2005, p. 29).

Podemos dizer que na sociedade contemporânea, letrar é mais que alfabetizar, é ensinar a ler e escrever dentro de um contexto em que a escrita e a leitura tenham sentido para o aluno. Muitas vezes as pessoas aprendem a ler e escrever, mas não praticam a leitura e a escrita. Nesse caso, não adquirem competência para envolver-se nessas práticas sociais de escrita:

Não lêem livros, jornais, revista, não sabem redigir um ofício, um requerimento, uma declaração, não sabem preencher um formulário, sentem dificuldade para escrever um simples telegrama, uma carta, não conseguem encontrar informações num catálogo telefônico, num contrato de trabalho, numa conta de luz, numa bula de remédio [...] (SOARES, 2003, p. 46).

Os professores devem oferecer leitura de documentos diversos, como, carta comercial, formulários, cheques e também panfletos, outdoors, poemas etc., por ser de ampla circulação na sociedade. Estes gêneros textuais, respondem às necessidades cotidianas do aluno na sociedade contemporânea, para letrá-lo.

Segundo Soares (2003), existem diferentes tipos e níveis de letramento, pois dependem das necessidades, das demandas do indivíduo e de seu meio e também do contexto social e cultural. Até 1940, o censo definia as pessoas como analfabeta ou alfabetizada questionando-as se sabiam ler e escrever. Por outro lado, o censo de 1950 passou a considerar alfabetizado o indivíduo que fosse capaz de ler e escrever um bilhete simples, na língua materna, isto é, no idioma que conhecesse. Quem soubesse apenas assinar o nome era considerado analfabeto. A alfabetização passou então a ser vista como: “[...] meio e instrumento de aquisição individual de cultura e envolvendo ensino e

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aprendizagem escolares simultâneas da leitura e da escrita [...]” (MORTATTI, 2004, p. 67). Uma pessoa pode ser alfabetizada, mas não ser letrada, não basta o indivíduo saber

ler e escrever e não praticar a escrita e a leitura. É importante envolver-se com a leitura de livros, jornais, revistas e outros tipos de textos que circulam socialmente para adquirir conhecimento.

Soares (2003, p. 74-75) nos fala que para ocorrer o letramento, é necessário que as escolas ofereçam material de leitura, pois:

[...] o letramento não pode ser considerado um “instrumento” neutro a ser usado nas práticas sociais quando exigido, mas é essencialmente um conjunto de práticas socialmente construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou questionar valores, tradicionais e formas de distribuição de poder presentes nos contextos sociais.

O letramento, nesse caso, depende de como a leitura e a escrita são vistas e praticadas em determinado contexto-social. Podemos dizer então que o letramento é um conjunto de práticas sociais. Os indivíduos devem se envolver de diferentes formas, isto é, de acordo com as demandas sociais, com as habilidades e o conhecimento de que dispõem. Mortatti (2004) considera o letramento um processo contínuo, que deve ser permanente, pois o produto final não pode ser exato e muito menos pré-fixado. Desse modo, podemos diferenciar letramento escolar de letramento não-escolar, o letramento escolar é aquele que acontece no interior da escola e não pode ser considerado sinônimo de alfabetização.

Mortatti (2004) ressalta ainda que as práticas de letramento a serem ensinadas, são aquelas que ocorrem fora da sala de aula, ou seja, nos eventos sociais de letramento. A escola deve selecionar os materiais que circulam no meio social para tornarem-se objetos de ensino dentro da sala de aula, ou seja, incorporar esses materiais ao currículo e aos projetos pedagógicos da escola.

Não podemos entender letramento como sinônimo de alfabetização. Mas então, onde está a diferença?

Podemos dizer, então, que o termo letramento difere-se de alfabetização, pelo fato de a alfabetização referir-se ao processo de ensino e aprendizagem do código escrito. Os usos feitos da leitura e da escrita são socialmente determinados e, portanto, têm valor e significado específicos para cada comunidade.

Há uma grande diferença entre alfabetização e letramento. Pois uma pessoa somente alfabetizada sabe apenas ler e escrever o código restrito. Já uma pessoa letrada, além de ler e escrever sabe fazer o uso social da leitura e da escrita na sociedade contemporânea.

Atualmente, vivemos em um mundo que exige, da sociedade, leitura, escrita e compreensão do que se lê, para atender às exigências sociais, trata-se, portanto, de indivíduos letrados. Uma pessoa apenas alfabetizada não tem condições de atender às demandas do meio em que vive.

Existem casos especiais de pessoas analfabetas com certo nível de letramento, conforme menciona Soares (2003), que são aquelas que ditam cartas ou textos para um terceiro escrever. Nesse caso, ela não tem o domínio da escrita, mas sabe raciocinar e

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elaborar as suas idéias. Ainda quanto às diferenças entre letramento e alfabetização é necessário dizer que

estes dois processos estão diretamente ligados. Devemos separá-los de acordo com o objetivo que cada um oferece; a alfabetização, sem dúvida, reflete diretamente no processo de letramento. Por outro lado, o que se observa é que, com freqüência, estes dois termos têm sido confundidos como um só processo. Eles devem caminhar juntos para que um complemente o outro.

2.4 Que papel o educador deve exercer no letramento, como professor letrado?

O papel do educador é transmitir o saber. No caso do letramento, ele terá que adquirir conhecimento para estar praticando-o em sala de aula. Assim enriquecerá tanto o seu conhecimento quanto o do educando. Um fato importante que o professor letrado deve saber é diferenciar alfabetização de letramento. Segundo Soares (2003) o professor letrado terá que saber utilizar a prática e também o método para alfabetizar e letrar ao mesmo tempo.

O letramento é um fenômeno social, que deve ser aplicado na sala de aula nos dias de hoje. Soares (2003) afirma que atualmente não basta o indivíduo saber apenas ler e escrever vários textos diversificados, o educador tem que ensinar o aluno a usá-lo para estar letrando-o.

O professor letrado deve pedir aos alunos para lerem vários tipos de textos e solicitar interpretação e produção de texto para desenvolver o raciocínio dos alunos. É importante também o educador encorajar os seus alunos, isto é, elevar a auto-estima durante a aprendizagem para inserir o letramento.

Cabe aqui um questionamento, um educador deve alfabetizar letrando?É importante dizer que existem diferentes tipos e níveis de letramento, eles estão

ligados às necessidades e exigências da sociedade em que vive cada cidadão. Segundo Mortatti (2004), na sociedade em que vivemos atualmente é necessário

saber ler e escrever nas diferentes situações que se encontram no dia-a-dia, assim o aluno desenvolverá a cidadania tanto em nível social, quanto cultural e político.

Como estamos vivendo em pleno século XXI, não basta apenas alfabetizar o nosso aluno, é necessário alfabetizar e letrá-lo ao mesmo tempo, para que ele possa aprender a escrever, a ler e a interpretar os diferentes tipos de textos em várias circunstâncias. Assim o professor estará praticando o letramento.

2.5 O letramento é praticado? Só o uso do livro didático é capaz de letrar?

Durante a realização dos estágios na Educação Infantil, no Jardim III de uma escola pública, foi possível observar que as crianças não tinham nenhum contato com livros, e muito menos com leitura oral. Isso significa que elas estão sendo apenas alfabetizadas e não letradas. O letramento não está sendo praticado nas escolas públicas.

No estágio do Ensino Fundamental, os alunos do quarto ano, de uma escola pública apresentaram dificuldade de interpretação e produção de textos, não sabiam escrever um pequeno texto. Durante as aulas de reforço, trabalhamos com textos diversificados: fábulas, revistas, jornais, histórias em quadrinho, letra de música e parlendas.

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Na qualidade de educadoras, estávamos ensinando-os a utilizarem esses textos, aliás, utilizamos um texto de história em quadrinho do livro didático Português: uma proposta para o letramento da editora Moderna, de Magda Soares (2002). Foi algo gratificante para eles, pois eles começaram a ser introduzidos no mundo da leitura, da escrita e do letramento que ainda não tinha chegado até eles.

De acordo com Soares (2003) todo indivíduo tem certo nível de letramento, nem que seja mínimo, mas então os educadores devem aproveitar o que o aluno tem do mundo que o cerca para desenvolver o letramento. O livro didático usado sozinho, em sala de aula, não é capaz de letrar um indivíduo, precisa ser complementado, interagindo com os textos que circulam socialmente, assim o professor estará aproximando o aluno da prática social real da leitura e da escrita. O educador não deve ficar preso só no livro didático, deve usá-lo como suporte.Além do livro didático, a escola deve oferecer textos escritos diversificados que circulam socialmente, ou seja, material de leitura para que o aluno possa ler, interpretar e transcrever no papel o que entendeu.

Enfim, não basta apenas o uso do livro didático para que o aluno conheça o mundo que o cerca, é necessário o uso de outras leituras que circulam na sociedade para que o aluno adquira esse conhecimento. Não podemos esquecer que os livros didáticos das outras disciplinas também são de leitura, não é só o de Língua Portuguesa. Os professores das diferentes disciplinas precisam preocupar-se em desenvolver as habilidades de leitura e da escrita.

3. Um olhar sobre o livro Português: uma proposta para o letramento

O livro didático analisado de Magda Soares, Português: uma proposta para o letramento de Magda Soares (2002), difere dos demais livros didático de Língua Portuguesa por apresentar textos literários em seu suporte original, além disso, a autora se preocupa em dar referência sobre o autor do texto para desenvolver o conceito de autoria. Diversifica os autores para ampliar o conhecimento do aluno.

De acordo com a teoria de Soares (2003, 2005) e sua proposta no livro didático (2002), um texto só tem sentido para o aluno, quando é trabalhado de acordo com seus interesses, o seu cotidiano e o mundo atual. Portanto, Soares utiliza textos que dizem respeito aos pré-adolescentes. O texto, ao ser trabalhado de acordo com os interesses do educando e de sua realidade, desperta o interesse do aluno, torna-se prazeroso e divertido.

A maioria dos textos oferecidos por Soares (2002) são curtos e de excelente qualidade. A vantagem de trabalhar com textos curtos, é que não cansa o aluno durante a leitura, o professor pode explorar melhor as atividades propostas sobre eles, oferece mais atividades. Por outro lado Soares (2002) sugere alguns textos longos para que o aluno também interaja com esse tipo de texto, nesse caso, a leitura é feita por etapa, ou seja, possui mais de um título, é o caso de matéria de jornal.

Um momento marcante e importante para o aluno no livro que foi analisado é a preparação para a leitura, que é um pré-aquecimento e que Soares (2002) propõe com finalidade de despertar os conhecimentos prévios do aluno por meio de leitura verbal e visual. Esse tipo de leitura leva o educando a conhecer o gênero do texto e o título, gera também discussões a respeito do tema e motiva o educando para a leitura silenciosa.

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Sendo assim, no momento da leitura silenciosa, o aluno já tem noção sobre o assunto que vai ser tratado no texto. A leitura silenciosa é de grande valia para o educando compreender o que está lendo.

Além disso, Soares (2002) reconhece que um texto não caracteriza um gênero apenas por seu conteúdo, mas também por outros aspectos textuais, extratextuais e intertextuais que o legitimam, por isso orienta a busca de dados sobre o autor do texto, sobre aspectos gráficos dos livros que comportam esses textos, dos outros textos que dialogam diretamente com o texto, mesmo que em suportes diferentes.

Enfim, a autora teve a preocupação de propor em seu livro didático, os diferentes gêneros textuais para serem trabalhados com finalidade de inserir o aluno no mundo do letramento, portanto, procura manter a originalidade de cada texto oferecido, reduzindo as cópias, para o aluno ver as autenticidades dos textos que circulam socialmente nas práticas de leitura.

4. Considerações finais

Nesta pesquisa realizei um estudo bibliográfico sobre o termo letramento e a importância de inseri-lo na sociedade contemporânea, e realizei breve análise do livro didático Português: uma proposta para o letramento de Magda Soares (2002), com finalidade de compreender a proposta que a autora ofereceu sobre o letramento, na prática.

O aluno deve saber fazer uso da leitura e da escrita para atender às demandas sociais, mas para isso o aluno precisa estar em contato com os diversos textos que circulam no mundo em que vive. Só assim poderá fazer uso adequadamente da leitura para suprir as suas necessidades.

O letramento envolve as práticas sociais de leitura e escrita. Soares (2002), preocupou-se em escrever um livro didático com estas práticas como proposta de letramento. O livro didático é criticado, mas é um instrumento que o governo oferece gratuitamente para ser trabalhado na sala de aula. Como a escola não disponibiliza de material que circula socialmente, no caso, os gêneros textuais, acredito que Soares (2002) quis unir o útil ao agradável, escrevendo um livro didático que oferece tais gêneros.

Enfim, podemos dizer que Soares (2002, 2003, 2005) é uma grande defensora do letramento, a proposta que ela oferece em seu livro didático é uma opção para o letramento, cabe à escola adotar o livro e aos professores fazerem um estudo sobre letramento para concretizar tal proposta oferecida pela autora.

Referências bibliográficas

MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Educação e letramento. São Paulo: UNESP, 2004. (Coleção Paradidático; Série Educação).SOARES, Magda Becker. Alfabetização e letramento. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005.______. Letramento: Um tema em três gêneros. 2. ed., 6 reimpr. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. ______. Português: uma proposta para o letramento. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2002 (vol.5).

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A CONTRIBUIÇÃO DOS TROPEIROS PARA A FORMAÇÃO DO LÉXICO NA REGIÃO SUL DO BRASIL

Patrícia Graciela da Rocha Doutoranda em Lingüística – UFSC

Professora Substituta - UFSC

RESUMO: Este trabalho é parte de um estudo realizado com base em dados e mapas lingüísticos do ALERS sobre variantes lexicais de origem castelhana incorporadas ao português falado no Sul do Brasil. O objetivo aqui é discutir apenas um dos fatores histórico-culturais que contribuíram sobremaneira para a formação do léxico característico dos três estados sulinos – o Tropeirismo.PALAVRAS-CHAVE: Tropeirismo; Empréstimos Lexicais; Região Sul.

ABSTRACT: This work is a ALERS and linguistic map data-based study of the lexical variants from Castelian incorporated in the spoken Portuguese language in the southern Brazil. It aims at discussing only one of the historical-cultural factors that have contributed considerably to the formation of the lexicon characteristic of the three southern states – the ‘Tropeirismo’.KEY WORDS: ‘Tropeirismo’; Lexical Loan, Southern Region.

Introdução

A Região Sul do Brasil tem uma pluralidade social, cultural e geofísica rara, que lhe confere um status particular no estudo do português brasileiro. Koch (2000, p. 59) destaca quatro fatores que seriam os principais determinantes externos das variantes do português falado na Região Sul: 1) a presença de açorianos no leste de Santa Catarina; 2) a existência de fronteiras políticas com países de fala hispânica no extremo sul e o contato português-espanhol derivado dessa situação; 3) o contato entre paulistas e gaúchos em dois fluxos migratórios opostos e o papel das rotas dos tropeiros paulistas no comércio do gado; e 4) a existência de áreas bilíngües expressivas, originadas da instalação, nas (antigas) zonas de floresta, de imigrantes europeus não lusos a partir do século XX.

Além disso, podemos acrescentar a ocupação da área norte do Paraná por paulistas e a relevância das migrações internas no processo recente de ocupação da região.

Altenhofen (2002, p. 133) levanta algumas hipóteses evidenciadas pelas fotografias geolingüísticas do ALERS e delimita oito áreas lingüísticas principais na configuração diatópica do português falado na Região Sul do Brasil. Nessa delimitação, o autor distingue, além de áreas bilíngües e de transição, três “corredores de projeção de traços” e três “zonas laterais”: 1) área de transição (Leque Catarinense, postulado por KOCH, 2000); 2) corredor central de projeção paranaense; 3) corredor oeste de projeção riograndense; 4) corredor leste de projeção riograndense (feixe riograndense, na interpretação de KOCH, 2000); 5) zona lateral açoriano-catarinense; 6) zona lateral do Paraná do norte (feixe paranaense, na interpretação de KOCH, 2000); 7) zona lateral da fronteira sul-rio-grandense; e 8) áreas bilíngües de português de contato.

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O caminho dos tropeiros

Neste trabalho, especificamente, nos dedicaremos apenas ao item (3), mencionado por Koch (2000) e por Altenhofen (2002), ou seja, o contato entre paulistas e gaúchos em dois fluxos migratórios opostos e o papel das rotas dos tropeiros paulistas no comércio do gado.

É de suma importância trata desse fator que contribuiu substancialmente para a pluralidade cultural e lingüística no Sul do Brasil e nos seus países vizinhos – os tropeiros – pois, tanto os cavalos quanto o gado vacum transformaram completamente a vida dos índios pampeanos, no que se refere aos hábitos alimentares, à arte da guerra e ao uso do couro, não só para a construção de toldos, mas também para seus utensílios como moeda de troca. Logo depois da descoberta da montanha de Potosi (a montanha de “prata” nos Andes), portugueses e espanhóis começaram suas explorações. Escravos índios eram utilizados nas minas. O grande problema era como e por onde transportar a prata para fazê-la chegar à Espanha. O caminho do rio era muito dificultoso, além de ser um lugar visado pelos piratas e corsários de todas as bandeiras. Fez-se, então, opção pelo transporte por meio de mulas capazes de suportar e transportar grande peso na passagem dos Andes.

Assim, começam as fileiras de mulas pelos caminos del inca, saindo de Santa Fé (Argentina) até Potosi (Bolívia) e, de lá, carregadas de prata, até Porto Bello, próximo de istmo do Panamá, ou seja, atravessavam todo o continente sul-americano pelos difíceis caminhos da cordilheira, o que aconteceu até o esgotamento das minas. No entanto, segundo Brum (1999, p. 43-44), o vaivém dos tropeiros criou um corredor cultural ligando a América do Sul com a América Central, explicando a presença na língua espanhola falada no sul de inúmeros vocábulos de origem asteca, araucana e, em maior número, quíchua. Mais tarde, os tropeiros de Santa Fé iriam transmitir esses vocábulos para a língua portuguesa falada no Sul do Brasil114.

Ao longo desse caminho foram surgindo cidades em torno dos fogões dos tropeiros e, de acordo com Brum (1999, p. 44), a mais importante delas era Córdoba que é comparada a Sorocaba em São Paulo (veremos o porquê mais adiante). Muita gente fez fortuna com o comércio de mulas que durou enquanto durou a prata. Quando esse metal acabou, outro negócio se instaurou e se disseminou nessa região: foi o começo do comércio de gado115.

O gado missioneiro se multiplicou expandindo-se por todo o território que viria a ser o Rio Grande do Sul, dando lugar às Vacarias da Campanha. Mais tarde, quando os bandeirantes desistiram de atacá-los, os missioneiros abriram, a machado, o caminho do mato e levaram tropas para a região dos campos da serra, surgindo assim as Vacarias dos Pinhais.

A partir de então, conforme Brum (op. cit.), começam as rotas das tropas, de Santa

114 Ver: Ruta de las Mulas no site <www.cuyo.com/aconcagua/randis/normal.htm>, que mostra um trecho que foi transformado em rota turística, passando por La Plaza de Mulas, la Plaza Canadá, El Nido de Condores e El Cumbre.

115 Sabe-se que as primeiras vacas e touros que entraram no Rio Grande do Sul foram trazidos de Corrientes, em 1634, pelo padre Jesuíta Cristóvão de Mendoza y Orellana. Esse gado (900 reses) foi comprado de Manuel Cabral Alpoin, cuja mulher era descendente de Hernandarias, considerado o fundador da pecuária dos pampas, pois foi o introdutor do gado no Prata.

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Fé a Sorocaba, que tinham como caminho inicial Colônia do Sacramento, Montevidéu e Laguna (conhecido como o caminho do inferno). Essa foi a primeira rota de tropas de gado a pé que Cristóvão e seus tropeiros conduziam para Laguna. Depois da expulsão dos jesuítas, os caminhos das tropas foram se deslocando para o Oeste do Rio Grande do Sul, favorecendo a ocupação definitiva das Missões, através das sesmarias concedidas a tropeiros paulistas e dos povoamentos que surgiam em torno dos pousos das tropas. Desde então, abandonou-se o traçado que cortava Rio Grande transversalmente (Uruguaiana, Alegrete, Santa Maria, Rio Pardo, Viamão, Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula, Bom Jesus e Vacaria) e adota-se o traçado São Borja, Santo Ângelo, Cruz Alta, Carazinho, Passo Fundo, Lagoa Vermelha, Vacaria. Ainda de acordo com o mesmo autor, com exceção das duas primeiras cidades, que já existiam como povoações missioneiras, as demais citadas surgiram como conseqüência do novo traçado que ficou conhecido como caminho das missões. Esse caminho viria a ser modificado pelo tropeiro paranaense Francisco da Rocha Loures, avançando mais na direção do Oeste. De Passo Fundo, toma-se o rumo de Erechim, vadeando-se o rio Uruguai no Goio-Em e depois de atravessar o Oeste catarinense, passa-se por Palmas e Guarapuava, no Paraná, tomando-se o rumo de Castro, onde se retoma o traçado antigo. Este foi o último caminho.

Esses caminhos foram responsáveis pela fundação de grande número de povoados e cidades, dentre elas, não podemos deixar de mencionar a formação e a importância da cidade de Lages (SC), pois esta, ficava a meio caminho entre o ponto de partida e Sorocaba, ou seja, Lages era ponto de parada para descansar a tropa, domar mulas e reforçar o sortimento. De acordo com Brum (1999), em 1766, quando o povoado foi fundado pelo tropeiro Antonio Correia Pinto, já havia alguns moradores esparsos na região e, inclusive, salteadores que já tinham matado alguns tropeiros. No entanto, a vila não foi brotando espontaneamente como as outras povoações que surgiram em torno dos pousos de tropeiros, pelo contrário,

Lages foi planejada e construída com um claro objetivo: o de colocar em posição estratégica um núcleo de população que, além de marcar a ocupação portuguesa, constituísse, quando necessário, um ponto de dissuasão ou de resistência à expansão castelhana [...], por essa época, a região das Vacarias dos Pinhais e, por extensão, os campos de Lages, era o flanco mais exposto a uma possível invasão castelhana. Assim, autorizado pelo Morgado de Matheus, Correa Pinto marchava com sua estranha caravana à procura de um local apropriado para fundar a vila. Era uma cidade em marcha que nascera antes de ter sua sede. Pela sua localização, a povoa de Lages estava destinada a tornar-se um importante centro comercial. O próprio fundador tomou a iniciativa de instalar a primeira casa de comércio e as primeiras indústrias da vila: uma ferraria que produzia pás, enxadas, machados, facões e foices; um monjolo que produzia farinha de trigo e de milho e uma olaria onde se fabricavam tijolos e telhas. (BRUM, 1999, p. 132-133).

A cidade foi crescendo enquanto as tropas de mulas xucras faziam ali sua parada mais longa para descanso e reabastecimento e até hoje Lages é conhecida como a mais gaúcha cidade fora do território do Rio Grande devido aos seus usos e costumes. Ali se

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desenvolveu uma forte pecuária e foi além de um centro do tropeirismo das tropas xucras e das tropas arreadas, que desciam para o litoral com os produtos lageanos e subiam com as mercadorias de além-mar, em especial o sal. Também desciam e subiam tropas arreadas para o Rio de Janeiro e Porto Alegre.

Lages cultua até hoje as tradições tropeiras com diversas festas anuais, das quais se destacam a festa do Pinhão e a Sapecada da Canção Nativa. Além disso, a passagem das tropas de mulas deixou suas marcas na cozinha e na língua. Na cozinha com o feijão tropeiro, a quirera de milho com costela de porco defumada e a paçoca de pinhão com charque e na língua por ter um sotaque misturado de gaúcho e paulista que até hoje carece de estudos mais aprofundados.

No entanto, o leitor pode se perguntar quem eram os homens que transitavam nessas tropas? De acordo com Brum (1999), a primeira tropa, comandada por Cristóvão Pereira de Abreu, era composta por cento e trinta homens, entre eles estavam lagunenses, paulistas e castelhanos. De acordo com o autor, os paulistas deveriam ser mamelucos que já acompanhavam Cristóvão há algum tempo, já os castelhanos são uma incógnita, pois na época portugueses e espanhóis eram inimigos, então, como poderiam andar juntos? Brum (1999, p. 125) resolve o impasse afirmando que por castelhano identificava-se, naqueles tempos, “todo o indivíduo que viesse das bandas do Prata e falasse meio enrolado”.

Entretanto, nem todos os portugueses e castelhanos estavam brigando por fronteiras, pois e luta da época era entre as coroas e Buenos Aires que representava a Coroa Espanhola e que sempre obtinha ajuda dos padres missionários e seus índios. Já os habitantes da região de Entre Rios não se envolviam muito nesses litígios porque eram criadores, comerciantes e tropeiros que estavam mais interessados em vender e tanger mulas. Sendo assim, de acordo com Brum (op. cit.), esses castelhanos contratados por Cristóvão deveriam ser tropeiros santafesinos, porém, com o passar do tempo e multiplicação das tropas, predominariam os paulistas, mas sempre haveria entre eles santafesinos, correntinos e até paraguaios.

A questão referente à língua falada entre esses tropeiros também traz algumas dificuldades para a descrição histórica. De acordo com Brum (op. cit.), está claro que os portugueses e espanhóis falavam suas línguas maternas e também é certo que nas reduções jesuíticas de ambos os lados os padres vinham ensinando as respectivas línguas ibéricas, mas, para o autor, a grande maioria de mestiços (mamelucos e crioulos) vivia na estrada e não tinha acesso a essas fontes, já os europeus eram poucos e viviam nas povoações do litoral. Porém, a Argentina, o Uruguai, o Brasil e o Paraguai foram conquistados e povoados pelos mamelucos das quatro nações. Para o autor, os povos do Brasil falavam tupi, enquanto os povos das nações do Prata falavam guarani, idiomas pouco diferenciados, chegando a ser tratados como um só, o tupi-guarani. Portanto, para esse autor, é bem provável que os primeiros tropeiros se comunicassem perfeitamente em guarani, independentemente de sua origem e, no Rio Grande do Sul, com a chegada dos açorianos, o idioma português ganharia terreno assim como aconteceria em Minas Gerais com a grande imigração de portugueses que foram atrás do ouro.

Ao mesmo tempo, na região do Prata, o idioma espanhol também começa a generalizar-se, com a exceção do Paraguai que manteve a língua materna ao lado do espanhol. De acordo com o antropólogo uruguaio Renzo Pi Hugarte, o idioma guarani perdurou nos países do Prata até fins do século XIX, e o autor afirma que

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Una serie de hechos lleva a pensar que, hasta bastante avazado el siglo XIX, el idioma predominante en la campaña de nuestro pais y en las zonas linderas fue el guaraní, y que su sustituición por el español y el portugués fue el resultado del proceso de expansión de la cultura de los centros urbanos y del aumento de la emigración ibérica. (PI HUGARTE apud BRUM, 1999, p. 126).

Brum (1999) menciona ainda que, no intercâmbio cultural dos tropeiros, ocorreu uma coisa interessante: os tropeiros argentinos começaram a construir seu idioma espanhol sobre uma base tupi, incorporando diversos termos espanhóis, quíchuas e astecas, em razão do novo corredor cultural que se formou entre Santa Fé e Sorocaba. Para o autor, como não podia deixar de ser, alguns termos portugueses passam também para o idioma do Prata. Apenas para ilustrar, o autor faz referência a alguns termos que os tropeiros santafesinos passaram para o idioma português falado no Sul do Brasil: charque, aspa, mate, guaica, chiripá, chácara, guacho, tambo, pampa (de origem quíchua), galpão, tomate, abacate, cacau (de origem asteca), pilcha, tabaco e poncho (asteca de origem araucana).

No entanto, não cabe aqui discutir se todas essas palavras foram introduzidas no português pelo contato com o espanhol, mesmo porque, nosso banco de dados – o ALERS – nos permite tratar, dessa lista, somente das palavras aspa e galpão, embora não seja o objetivo desse trabalho.

Porém, como já foi mencionado anteriormente pelas palavras de Altenhofen (2002) e Koch (2000), podemos afirmar que o contato entre paulistas e gaúchos em dois fluxos migratórios opostos e o papel das rotas dos tropeiros paulistas, no comércio do gado, é um dos principais determinantes das variantes do português falado na região.

Considerações finais

Como se sabe, o português falado no Sul do Brasil e, mais especificamente nas regiões de fronteira, onde o contato com o espanhol é mais intenso, e no corredor central – antigo caminho dos tropeiros – apresenta centenas de palavras atribuídas a esse contato. Isso é facilmente comprovado na interação lingüística com habitantes desses lugares e na literatura – chamada de tradicionalista – tanto em textos em prosa, quanto em poemas e letras de música gauchesca. Todavia, sem o método geolingüístico de investigação, pouco se pode dizer sobre a distribuição diatópica e sobre os grupos sociais responsáveis pela difusão. Há ainda que ressaltar que, as conseqüências lingüísticas atribuídas ao contato português-espanhol e ao Caminho dos Tropeiros, no Sul do Brasil não se restringem aos empréstimos lexicais. Muitos outros aspectos, tanto gramaticais quanto pragmáticos-discursivos, caracterizam a variedade de português existente nessa região. Nesse sentido, nosso estudo é uma pequena e inicial contribuição na descrição desse português.

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Referências bibliográficas

ATLAS LINGUÍSTICO-ETNOGRÁFICO DA REGIÃO SUL DO BRASIL (ALERS). Volume 1: Introdução; Volume 2: Cartas Fonéticas e Cartas Morfossintáticas. ALTENHOFEN, Cléo V.; KLASSMANN, Mário Silfredo; KOCH, Walter (orgs.) et al. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; Florianópolis: Ed da UFSC; Curitiba: Ed. da UFPR, 2002.ALTENHOFEN, Cléo Vilson. Áreas lingüísticas do português falado no sul do Brasil: um balanço das fotografias geolingüísticas do Alers. In: VANDRESEN, Paulino (org). Variação e mudança no português da Região Sul. Pelotas: EDUCAT, 2002. p. 115-145.BRUM, Nilo Bairros de. Caminhos do Sul. Porto Alegre: Metrópole, 1999.KOCH, Walter. O povoamento do território e a formação de áreas lingüísticas. Contribuição do Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul ao estudo da fronteira lingüística entre o Brasil e o Uruguai. In: Práticas de integração nas fronteiras: temas para o Mercosul. Porto Alegre: Ed. da UFRGS; Inst. Goethe/ICBA, 1995. p.192-206.______. In: GÄRTNER, Eberhard; HUNDT, Christine; SCHÖNBERGER, Axel (eds). Estudos de geolinguística do português americano. Frankfurt am Main: TFM, 2000 (Biblioteca luso-brasileira; vol.18).ROCHA, Patrícia Graciela da. O português de contato com o espanhol no sul do Brasil: empréstimos lexicais. 2008. 144f. Dissertação (mestrado em Lingüística) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.

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O QUE É SER ADULTO HOJE?

Pedro Braga Filósofo e Professor

Especialista em Bioética e BiotecnologiaMestrando em Educação

Resumo:Este artigo consiste numa reflexão acerca do significado do adulto hoje, a partir da leitura de Carl Gustav Jung e James Hillman.Palavras Chaves: Adulto, Aprendizagem, Ética, formação.

Abstract: This article consists of reflection concerning the today adult, from The reading of Carl Gustav Jung and James Hillman.Key-words: Adult; Learning; Ethics; Training.

“Somos responsáveis pelo mundo porque ajudo a fazê-lo. Em ultima análise, o essencial é a vida do indivíduo. É só isso que faz historia, só aí é que as grandes transformações acontecem, e todo o futuro, toda a história do mundo brotam fundamentalmente como gigantescas somatórias dessas fontes escondidas nos indivíduos. Em nossas vidas mais privadas e subjetivas somos não só testemunhas passivas da nossa era, e suas vitimas, mas também artífices. Nós fazemos nossa própria época”.(Jung - 1950)

Na segunda metade do século XX, vimos como nunca um tempo de grandes e magníficas transformações, acima da média de qualquer período anterior a nossa. Diante disso se espera que continue por muitos e muitos anos. Como por exemplo, do telegrafo ao fax, do fax ao telefone celular, da mensagem escrita ao correio eletrônico, da sala de aula tradicional ao sistema de videoconferência, da carruagem e do Trem ao Vôo de um avião que percorre distâncias enormes em menor espaço de tempo possível e de Bauru à Estação Espacial ISS, levando a bordo oito (08) experimentos brasileiros para a execução ambiental da microgravidade e muito recente a chegada do homem a marte em busca da água. Os humanos aguardam sempre por novas descobertas, substancias para debelar

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definitivamente a dor, sistemas para acabar com o lixo radiativo, transformando-os em matérias inócuas, novas fontes de energia, novas técnicas adequadas para eliminação do barulho e a fome e reabsorver a poluição. Tudo está praticamente sob o paradigma da conquista. Conquistar o segredo da vida e manipular genes. Conquistar mercados e altas taxas de crescimento. Conquistar clientes e mais clientes e consumidores. Conquistar anjos e demônios que nos habitam nesta terra. Conquistar o poder de Estado e de outros poderes como o religioso, o profético e o político. Tudo isso e muito mais está no paradigma da conquista. O que mais nos falta conquistar? O homem moderno não aceita o limite e nem o não e o silêncio como resposta. E conjuntamente nunca tivemos tantas ferramentas para a eliminação das quatro escravidões, a saber: da escassez, da tradição, do autoritarismo e do cansaço físico. O pensador grego Aristóteles, o precursor da cultura ocidental, sonhava dizendo se cada ferramenta pudesse, a partir de uma ordem dada, trabalhar por conta própria, se os teares tecessem sozinhos, se o arco tocasse sozinho nas cordas das cítaras, então os empreendedores poderiam eliminar os operários e os proprietários os seus escravos. Nunca, como na contemporaneidade, estivemos tão perto da realização dessa utopia; fábricas inteiramente automatizadas, já estão em operação em quase todos os continentes. Portanto o Mito do Sísifo poderá novamente ser reescrito. Pela história, ficamos sabendo que o herói Grego foi punido pelos Deuses pelo simples fato de ter se excedido no processo da tecnologia, saindo dos padrões permitidos para a sua época. Pela história ficamos sabendo que ele cometeu um grave pecado intelectual. A punição que deram a ele foi uma punição material, a saber: transportar por toda a eternidade uma rocha até o topo de uma montanha. Quando a rocha se precipitava novamente até a base da montanha, tornava-a pegá-la e reconduzi-la novamente até ao topo da montanha. Em plena era industrial o Pensador Afro-Francês Alberto Camus fez uma releitura desse mito, que na sua profunda interpretação diz assim: sendo Sísifo um intelectual, o seu verdadeiro sofrimento não se construía na subida, mas quando a sua mente estava toda ela ocupada pelo esforço sobre-humano de transportar a rocha até o alto da montanha. Mas o seu verdadeiro sofrimento estava quando com a rocha mais uma vez no topo da montanha, Sísifo tinha que descer a escapada e, sem nenhum esforço, tinha toda trágica consciência de ter sido condenado pela crueldade dos deuses a um trabalho inútil e sem esperança. Entretanto para nós homens e mulheres do século XXI, existe uma terceira via? Sísifo vai construir um mecanismo eletrônico ao qual delegará a canseira do transporte inútil e banal e se sentará no alto da montanha para contemplar o seu robô em funcionamento, saboreando a felicidade do ócio prazeroso. Comparativamente, estamos vivendo num tempo de aparências. Aparência estas da à versão, é mais importante do que o fato e das relações humanas. A sociedade de hoje é uma sociedade do espetáculo, que precisa ser ativada pela faceta dos eventos e do glamour. Os dias e as noites são produzidos por acontecimentos permeados por um pooll da inflação da informação. Sendo humanamente impossível arquivar na mente humana um número elevadíssimo de informações a todo instante.

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Muitos humanos estão mergulhados no robotismo do consumismo. Ficando cada vez mais tangida pela aceleração volúpia dos fatos. Ficando na sua maioria na impotência de frear o rítimo insano e se deixando levar mesmo sem a devida consciência do resultado. A recrudescente turbulência dificulta ainda mais os diagnósticos em decorrência de uma ideologia com o grau de inserção no autonomismo da sociedade e com uma intensidade dos vínculos aos valores predominantes. Mas algumas atitudes são possíveis de serem observados a saber:

1)Um dos fenômenos típicos do tempo presente é uma priorização do supérfluo. Nunca se deu tanta ênfase como nos dias de hoje, o enfatizar da individualidade. Cada qual, na sua particularidade, procura ostentar o mais elevado grau de sofisticação. Entre os mais abastados não há limites e fronteiras para uma consumação de luxo;2)Uma segunda manifestação, um fator puramente da observação é o culto ao corpo. Padrão colocado pelos condutores do bom gosto que procura de maneira astuta alongar a juventude da figura humana. Com certo apego ao andrógino e uma fobia à obesidade. Há certo excesso permanente pelo rejuvenescimento através das cirurgias plásticas, nas lipoaspirações, nas dietas, nos regimes e na medicina alternativa; Todo tipo de esforço é muito valioso para alongar a faixa etária. Nunca nos tempos modernos se comercializou tantos cremes para rugas, manchas, marcas e demais intempéries que o tempo vai deixando no ente humano. As estrias constituem um grande estudo e um objeto de uma enorme matéria nas revistas de moda e na imprensa;3)Uma terceira manifestação da minha observação se evidencia na busca pela intensificação da ginástica com exercícios físicos planejados ou na maioria deles sem planejamento ou a consulta do profissional. As matrículas nas academias, as caminhadas, as maratonas, os filmes, os kits de rejuvenescimento, todos querem ter mais do que um corpo saudável, mas sarado;4)Uma quarta manifestação da minha observação é que a sociedade contemporânea está muito vigilante. Atenta ao dólar que oscila, o risco Brasil, à variação da poupança, desaceleração do mercado americano. Andando nas ruas dos grandes centros urbanos ficamos preocupados com assaltos, violência no trânsito, seqüestros;5)Uma quinta manifestação da cultura muito latente posta para toda a comunidade de seres humanos é das sensações e satisfações imediatas na qual vivemos mergulhados roubando inclusive nosso tempo, e o que é mais grave nossa capacidade de repousar, descansar e relaxar; ao stress do tempo de trabalho e estudo, agregou-se o stress das férias, e do descanso prolongado onde é absolutamente imprescindível fazer programas incessantes, viajar cansativamente para lugares longínquos. Atrás, arrastadas e impacientes, crianças entediadas, assediando sem parar os pais a fim de comprar, consumir, gastar o dinheiro que podem e não podem, adquirindo objetos, souvenires e brindes para os quais provavelmente nunca mais vão olhar;6)Nos supermercados especulamos por preços mais baratos e produtos mais convenientes. Tais preocupações são importantes, que não significa ficarmos acordados de braços cruzados; ela é bem ativa e consiste na nossa atuação de também sermos vigilantes na modificação dos modelos apresentados do não ideológico.

Cultura esta, que está crescendo e invadindo os rincões da existência humana, para

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além das linhas divisórias geográficas, raciais e de gênero. O poder aquisitivo é sacrificado ao extremo, para que seja salva as aparências. Corpos lindíssimos, porém de estômagos vazios.

A partir de então o que dizer do humano? O que dizer do adulto hoje? O que significa ser adulto hoje?

Há excessos de cuidado com o corpo, mas não se constata a mesma velocidade do cuidado entre as relações humanas de um atendimento satisfatório na saúde, na educação para a vida e de uma perspectiva para o futuro. Há um abandono de uma comunidade desprovida de quase tudo, da mesma forma que se sentiram os jovens franceses tão recentemente. A razão está adormecida em estado letárgico e incapaz de se indignar com a miséria, exclusão e injustiça. O humano perdeu a razão e em se perdendo a razão se perde o seu chão. Como proporcionar eficazmente à alma humana um trato com o ideal do corpo Sarado? A ginástica da alma se chama Ética, ciência esta do comportamento moral do humano na sociedade. É uma ferramenta importantíssima nas sensibilizações das consciências humanas. Não podemos chamar de progresso humano, onde não se prática o progresso da epifania Ética. O ajuntamento de bens não significa ajuntamento aos atributos humanos que continuam intangíveis para a formação do ente humano, a saber: hombridade, honestidade, generosidade, solidariedade, prudência, fraternidade e a compaixão.

Não há nenhum erro na busca pelo conforto, o bem estar físico e a boa aparência. Mas o “Ser” (M. Heidegger) é algo complexo, integrado de corpo e alma. O que resolve ter um corpo sarado e um humano estropiado e capenga? O déficit que a cada dia está crescendo na sociedade contemporânea é o da Ética, Ética da solidariedade, uma Ética da solidariedade planetária, uma Ética da sensibilização e da partilha. Uma Ética que busca a baliza na Constituição do Brasil de 1988 e nos PCNS escolares da edificação: humana, fraterna e solidária. Esta é a missão de que se deve edificar e dedicar a todos nós do presente como formadores de humanos. Não podemos mais ficar aguardando por movimentos de Ética na política, na vida pública, empresarial e nas universidades. A Ética é a matéria prima a priori, é condição sine quae nom, com a qual todo ser humano precisa trabalhar. Ela não é somente privilégio do poder público e nem de agrupamentos particulares. Cada um aqui dos leitores neste momento pode de maneira particular, colaborar com o seu exercício da Ética. Tornar- se um Cidadão - Ético é estar bem atento com as expectativas do mundo moderno que clama por mais e melhores condições de oportunidades que seja favorável para um futuro e que não se encontre mais uma sociedade elitizada, míope e surda, que até então está preocupada com interesses pessoais. Assim como é muito gratificante se ter um corpo sarado, será mais gratificante ainda se ter um humano Saradão. Que urge em criar oportunidades de sobrevivência para uma juventude provida de talentos e de uma potencialidade até o presente distante pela nossa realidade ignorada.

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Neste momento me trás à lembrança a do psicanalista da Basiléia Jung, que disse na década de 50 do século passado no seu magnífico tratado O Homem e seus Símbolos:

“a diferença básica, entre a ética da responsabilidade e as demais posturas é que ela não se orienta somente por princípios, mas principalmente pelo contexto e pelos efeitos que podem causar as nossas ações”.

A partir dos anos 80 do século passado com a chegada ao poder da dama de ferro inglesa e a do ator de Hollywood a Casa Branca respectivamente, se instalou no mundo o fundamentalismo de mercado, mercado que determina tudo e dentro de uma lógica determinada dá-se a solução para os problemas sociais. Quanto mais a competição, quanto mais individualismo se prolífera e sobrepõe aos valores sociais e comunitários. E uma reação mínima desta comunidade humana vivente contra essa realidade é a da “com-paixão”, na feliz expressão de Leonardo Boff. Implica a inserção do indivíduo na família, na comunidade, na nação, e acima de tudo na humanidade. A Ética e o “Cuidado” (M. Heidegger) são vertentes eficientes para uma academia em busca de uma sadia modelagem. Assim como é muito gratificante se ter uma boa imagem física, é ainda melhor nos empenharmos em termos um melhor desempenho entre as relações humanas. Para ser autor de uma transformação é preciso tomar á serio a tarefa da “destruição” (M. Heidegger). Destruição aqui significa decifração do essencial, destruição cheia de amor pelo outro e pela verdade, destruição violenta, mas uma violência cheia de ternura simplicidade e de amor. O mundo assim por nós contemplado se tornará então, surpreendentemente diáfano e transparente da presença divina, desdobrando seus mistérios e encantos diante de nosso humano olhar purificado de toda voracidade instrumentalizadora e tornado capaz de adoração. Nele, criaturas humanas que somos, nos sentiremos chamados a descobrir nosso lugar, que é de aliança e comunhão com a totalidade do cosmos. Para os autores de Puer Aeternus e da A Imaturidade da Vida Adulta, respectivamente, vivemos um momento transcultural, ou mesmo com uma vertente politeísta, com deuses concorrentes, marcados por horizontes, de violência, de fundamentalismo ou até mesmo a da infantilização. Mundo este, onde o problema não é o ateísmo, mas a idolatria do mercado. Cada rede industrial, de supermercados e bancos se orgulha e muito com suas “mensagens” de “qualidade total”, solidariedade universal, a saber: “dedicação total a você” – (Casas Bahia) ou a disposição permanente, como uma espécie de vigília pascal – (“The Citi never sleeps” – Citibank). Com isso me da muita clareza no mundo pós-moderno, sobretudo na juventude, onde se tem indícios de que já passamos da globalização para um mundo sem a casa comum, a “res-publica” e o “bem comum” na feliz expressão do pensador ateniense Sócrates, que nem sempre tinha resposta para tudo, mas jamais se rendia aos poderosos. O que é ser adulto hoje?

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Referências bibliográficas:

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EDUCAÇÃO E ARTE X BARBARIDADES

Rejane de Souza Ferreira*

Mestranda em Letras e Lingüística – UFGDocente – UEG

Professora da Rede Municipal de Goiânia - GO

Resumo: O presente ensaio tem o objetivo de provocar reflexões sobre o papel da educação e da arte diante de calamidades como as provocadas por guerras. Seriam ambas capazes de evitar genocídios ou seriam elas pretextos para novas barbaridades? Essa discussão baseia-se em filmes, livros e revista produzidos por cineastas, historiadores, críticos literários e outros que se interessaram ou mesmo viveram a situação da Segunda Guerra ou pós Segunda Guerra Mundial. Palavras-chave: educação, arte e guerra.

Abstract: This text aims to provoke reflections about the education and the art roles in the face of calamities such as the ones caused for wars. Would be they able to avoid genocides or would be them pretext for new merciless? This discussion is based on movies, books and magazines produced for film makers, historians, literary critics and others who is interested or even lived the Second War situation or after Second War situation.Key words: education, art and war.

Mais de meio século após o término da Segunda Guerra, ainda é recorrente a temática da mesma. Fundações pela paz; fundações tendo como base os sobreviventes do holocausto, como a Survivors of the Shoa116; produções cinematográficas, como A Lista de Schindler, A vida é bela, O pianista, dentre outros; além dos meios de divulgações impressos, como livros, jornais e revistas, e exibições de imagens, como as das bombas em Hiroshima e Nagasaki, atuam como arquivos e materiais educacionais na esperança de se evitar tão grandiosos massacres e destruições futuros. Por enquanto tem dado certo, mas não se pode prever até quando esse tipo de trabalho será capaz de sensibilizar as pessoas. A insatisfação popular com a Primeira Guerra não pôde evitar a Segunda.

De acordo com o crítico literário George Steiner (1988, p.26), “[o] tempo, tanto historicamente como na escala da vida pessoal, altera a visão que temos de uma obra ou um conjunto de obras de arte”. Podemos estender isso da obra de arte para a realidade e, assim, perguntar como conservar o mesmo ponto de vista negativo em relação à guerra depois de um longo período, se cada vez mais estudiosos sobre o imaginário da memória concordam que o tempo atua na confusão da memória com a imaginação? Como separar as lembranças do imaginário dos sobreviventes do pós-guerra? Como os jovens dos séculos futuros acreditarão na crueldade dessa guerra, quando tais sobreviventes não mais existirem, se muitos dos que a viveram não a percebiam tão sanguinária assim? A própria

* Mestranda em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás. [email protected] Trata-se de uma fundação de história visual que arquiva depoimentos de judeus sobreviventes da Segunda

Guerra para fins educativos e didáticos. Foi criada pelo cineasta Steven Spieblberg em 1994, quando se iniciou a coleta de dados.

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secretária pessoal do Hitler, Traudl Junge, só foi ter noção da monstruosidade de seu führer117 no decorrer do processo de Nuremberg:

Claro que as coisas horríveis que ouvi sobre Nuremberg, sobre os 6 milhões de judeus e as pessoas de outras raças que tinham sido mortas me chocaram profundamente. Mas eu não conseguia enxergar uma conexão com o meu passado. Eu estava satisfeita por não ser culpada pessoalmente por isso e por não ter tido conhecimento dessas coisas. [...] Mesmo assim, é muito difícil me perdoar por ter feito aquilo [aceitar trabalhar para o Hitler] (A queda! As últimas horas de Hitler, 2004 – grifo nosso).

Não se pode desconsiderar que o anti-semitismo ainda existe e que a guerra pode trazer junto aos prejuízos grandes manifestações artísticas e econômicas, ainda que para uma pequena minoria. A violência como um todo causa horrores e aversões à mesma em muitos homens, mas também causa em outros tantos incentivos de brutalidade e superioridade. Após a ocupação russa da Alemanha, as pessoas não ficaram salvas nem totalmente libertas como se parece, ou pelo menos como muitos pensam. Jaques Robichon (200?, p. 45), por exemplo, fala dos atos de horror praticado pelos russos contra as mulheres alemãs tão logo se deu a ocupação:

Maio de 1945: na mira das armas dos soldados soviéticos, os alemães saem dos escombros, e os russos ficam sozinhos com as mulheres. A soldadesca se reveza para abusar delas, de mães e filhas, de meninas mal chegadas à puberdade e também das idosas e das doentes.

Depois que o tempo passa muita coisa importante perde o significado, e outras versões de um mesmo fato vão surgindo, principalmente quando a ambição é a motivação mais forte daquilo que se faz. Prova disso é que Hitler, grande admirador de Napoleão, comete o mesmo erro do imperador francês: invade a Rússia em pleno inverno sem antes preparar sua tropa para a diferença climática. De acordo com o documentário intitulado Arquitetura da destruição (1992), produzido por Peter Cohen, o ditador nazista, influenciado pela literatura de Karl May118, não achava necessário conhecer o local de combate para se vencer uma guerra. Por isso, Hitler desconsiderou dados históricos importantes como a derrota de Napoleão na Rússia, devido ao frio, e a insurreição de Canudos, no Brasil, que sobreviveu aos três primeiros ataques militares, justamente por dominar a região do ponto de vista geográfico.

Durante a guerra ele [Hitler] citaria Karl May como prova de que não era preciso conhecer o deserto para comandar tropas na África. Hitler sabia da falta de experiência de May [...] Ele via em Karl May uma espécie de teórico visionário com a clarividência de realidades distantes. [...mas sustentava] que a imaginação gera a base do conhecimento (Arquitetura da destruição, 1992).

117 Significa em alemão o “condutor”, “guia” ou “líder”. O título foi adotado por Hitler para designar o chefe máximo do Reich e do partido nazista.

118 Best-seller alemão de literatura infanto-juvenil do final do século XIX. Escrevia histórias de aventuras e viagens que lidavam com desertos árabes ou índios americanos no Velho Oeste sem ao menos ter conhecido esses lugares. A verossimilhança de suas histórias se dava pela narrativa em primeira pessoa.

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Nesse contexto, Steiner (1988, p.23) questiona a capacidade da literatura aguçar o espírito humano, tal como Matthew Arnold afirmava e indaga o que o dr. Leavis considerou como “a humanidade essencial”. No filme de Peter Cohen nos é revelado que a maioria dos alemães queriam ser artistas antes da Segunda Guerra e que o III Reich estava repleto de artistas fracassados, dentre eles, Hitler, o führer, e Rosenberg, o ideologista do partido nazista. Diante disso, podemos estender mais uma vez o pensamento do crítico literário e questionarmos se a arte e a educação seriam capazes de evitar guerras, quando muitas vezes essas são provocadas pelos próprios artistas e usadas para o mesmo fim. Peter Cohen mostra Hitler justificando o nazismo através do músico Richard Wagner: “Só entende o nazismo quem entende Wagner”.

A lista de Schindler, produção cinematográfica de Steven Spilberg (1993), leva-nos a perguntar de que valeram as formações educacionais e culturais dos judeus, bem como todo o dinheiro que eles acumularam durante a vida diante da escravidão a que os mesmos foram submetidos. É marcante para os literatos e historiadores a cena de um professor na fila de trabalho para operários essenciais:

Não sou essencial? Acho que não entendeu bem o significado da palavra.Não tem Blauschein119, senhor, fique ali. De pressa, o próximo!Não essencial, como? Ensino História e Literatura. Desde quando não é essencial?

Outra cena do mesmo filme que também se adequa a esse contexto é a da engenheira, que além de fazer seu trabalho gratuitamente é morta simplesmente por dar satisfação deste a Goeth, comandante do gueto de Cracóvia:

Judia: - Herr Kommandant, a fundação toda tem de ser demolida e refeita. Senão, haverá no mínimo um rebaixamento ao sul do barracão. Rebaixamento, depois desabamento.Goeth: - É engenheira?Judia: - Sim. Sou Diana Reiter. Estudei na Universidade de Milão.Goeth: - Uma judia educada como Karl Marx. Mate-a!

Steiner (1988, p.23), oportunamente chama-nos a atenção para o fato de que

[a] barbárie predominou no próprio berço do humanismo cristão, da cultura renascentista e do racionalismo clássico. Sabemos que alguns dos homens que conceberam e administraram Auschwitz foram educados lendo Shakespeare ou Goethe, e continuavam a lê-los.

O contínuo contato dos nazistas com a arte não os tornaram mais sensíveis nem humanos. A produção de Spilberg (1993) exibe soldados alemães no momento do massacre do gueto de Cracóvia se perguntando se a música tocada naquele momento era Bach ou Mozart. Peter Cohen, por sua vez, mostra como Hitler manipulava as exposições de artes plásticas de sua época, bem como ordenava ao seu exército a leitura dos livros de Karl May sobre como lutar com os índios. Steiner (1988, p.23) percebe a relação da literatura com a realidade desse contexto como119 Certificado de trabalho que prova seu portador ser um operário essencial.

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...evidência de que uma disciplinada e persistente dedicação à vida da palavra impressa, uma capacidade de identificação profunda e crítica com personagens ou sentimentos imaginários, diminui a proximidade, as ásperas arestas das circunstâncias objetivas. Acabamos reagindo com mais intensidade à tristeza literária do que à miséria perto de nós.

No mais, se a arte e a educação já não mais davam conta de edificar os nazistas quem mais elas edificariam, se os antinazistas estavam ocupados com sua possível sobrevivência no dia seguinte, se a fome e as condições de vida afligia a população cada vez mais? Sem falar que as artes geralmente não favorecem as massas. Os acadêmicos de Frankfurt, inclusive, não aceitam como arte o que é acessível a todos. Hobsbawm (2005, p.181) ao apresentar as artes no período da “Guerra dos 31 anos”120 faz a seguinte observação:

E, no entanto, jamais devemos esquecer que, durante todo esse período, [a vanguarda, manifestação artística da época] continuou isolada dos gostos e preocupações das massas do próprio público ocidental, embora agora o invadisse mais do que esse público em geral admitia. A não ser por uma minoria um tanto maior que antes de 1914, não era do que a maioria das pessoas real e conscientemente gostavam.

Se a arte não era acessível às massas, se os diplomas universitários não eram capazes de livrar os judeus do holocausto e se o Hitler “filtrava” toda manifestação artística, quem mais poderia estar interessado em arte e em educação senão os próprios artistas e intelectuais, que em sua grande maioria escaparam da morte porque conseguiram se exilar fora da guerra? É um pouco complicado generalizar dessa forma, mas nessas circunstâncias é impossível, não rever a função e a utilidade da arte e da educação quando a maioria das coisas do mundo, inclusive as pessoas se tornaram descartáveis. Na Alemanha e nos demais territórios ocupados por Hitler, deficientes físicos e mentais, soldados mutilados na guerra, homossexuais, ciganos e judeus eram exterminados, simplesmente por não se enquadrarem no padrão de uma raça, no caso a ariana (raça “pura”). É como se todas as pessoas gordas, flácidas e aleijadas tivessem que morrer por se distinguirem das top models. É uma situação tão absurda, que muitos ainda duvidam que realmente existiu.

Durante a guerra o que importa é “vencer ou vencer”, não existem preocupações humanitárias, existe apenas o “eu” e o inimigo que deve ser eliminado. Só que no caso particular da Alemanha, durante a Segunda Grande Guerra, os inimigos não eram apenas os combatentes de guerras, eram também todos “os inferiores à raça ariana” e os “traidores” do partido nazista. De forma que se a Alemanha tivesse investido mais na guerra e poupado, pelo menos os judeus, provavelmente ela teria saído vencedora desse combate. Não que Hitler não quisesse investir na guerra, mas porque ele confiava demais no seu exército e tinha a vitória como certa. Ele acreditava que derrotaria a Rússia em no máximo quatro meses.

120 Termo utilizado por Eric Hobsbawm para referir-se a Primeira e a Segunda Guerra Mundiais (1914-1945).

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As duas guerras mundiais tiveram o caráter do “tudo ou nada”. Na realidade a Segunda só existiu porque a Primeira não ficou bem resolvida, daí porque alguns historiadores as consideram uma única guerra. A intenção das potências rivais combatentes era dominar o mundo sozinhas e não mais dividir mercados entre si. É por isso que a Alemanha, ao desocupar a França, destruiu tudo quanto pôde em sua retirada e da mesma forma, em sua rendição, destruiu cidades alemãs para não deixar sob domínio russo o que os alemães construíram:

Na retirada, as tropas do Reich explodiram as últimas pontes; os portos foram dinamitados; as redes de comunicação rodoviária e ferroviária, esmagadas pelos bombardeios; os estoques de víveres, saqueados ou incendiados. Menos de um quarto dos 180 mil imóveis de Frankfurt continuava de pé; em Nuremberg, menos de 10%; em Berlim e em Hamburgo, mais da metade das habitações tinham sido destruídas. Em Dresden, não restara uma só casa intacta (ROBICHON, 2005 p.42 e 44).

O terror e a morte estavam espalhados por toda a Europa, o futuro era incerto para a grande maioria. Pessoas matavam e morriam sem motivo aparente. Nos campos de concentração muitos dos judeus que sobreviviam às condições subumanas terminavam morrendo aleatoriamente na mira dos oficiais. De acordo com Hobsbawm (2005 p. 57), outro fator que tornou as guerras do século XX tão brutais foi à tecnologia, pois

...tornava o matar e estropiar uma conseqüência remota de apertar um botão ou virar uma alavanca. A tecnologia tornava suas vítimas invisíveis, como não podiam fazer as pessoas evisceradas por baionetas ou vistas pelas miras de armas de fogo. [...] Lá embaixo dos bombardeios aéreos estavam não as pessoas que iam ser queimadas e evisceradas, mas somente alvos (grifo nosso).

Se, naquele momento, matar havia se tornado uma mera questão de “atingir alvos”, ou mesmo de cumprir ordens, há de se pensar que não se tratava, assim, de uma tarefa tão cruel e difícil, afinal, nem se sabia o que é que se estava acertando, nem era preciso mirar... Muitos alemães em outras circunstâncias, em outro contexto, talvez fossem até piedosos. Schindler comenta com Itzhak Stern que Goeth não era um sujeito mau, que não matava por prazer, que se não fosse pela guerra ele seria um bom “salafrário”:

Goeth está sob uma pressão terrível. Ponha-se no lugar dele. Ele tem que dirigir o campo! É responsável por tudo que ocorre aqui. É muita preocupação. É a guerra que traz à tona o pior das pessoas. Nunca o bom, sempre o ruim. [...] Em circunstâncias normais, não seria assim. Seria agradável. Só veríamos seu lado bom. É um salafrário maravilhoso (A lista de Schindler, 1993).

Julgar os alemães pelas atrocidades cometidas durante a guerra é algo muito delicado, senão impossível. Não dá para generalizar todos os alemães, nem todos os judeus ou russos e assim por diante. Cada pessoa representa um caso particular dentro dessa

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história. Há de se compreender que o povo alemão vivia sob o regime ditatorial de Hitler que fazia uso das artes e da propaganda para deformar a opinião das pessoas. Há de se lembrar que os civis eram educados desde crianças para se alistarem e os médicos para criarem laboratórios assassinos. Há de se considerar a luta pela sobrevivência não só de judeus, mas também de poloneses, franceses derrotados e até mesmo de alemães revoltosos com o nazi-fascismo ou mesmo ignorantes das atrocidades e mentiras que se faziam com e se diziam a respeito dos judeus. Não se pode ignorar quem fez o quê com quem, quando, onde e por quê.

O pianista, recriação fílmica de Roman Polanski, mostra o capitão alemão Wilm Hosenfeld ajudando o judeu refugiado Wladyslaw Szpilman. No momento em que esses dois homens se encontram a situação do judeu é tão degradante que este chega parecer um bicho. Contudo, mesmo que a situação de Szpilman fosse ainda mais deplorável, certamente o capitão não teria poupado sua vida se estivesse na presença de mais um alemão. Na hora desse encontro, as tropas alemãs já tinham recebido ordens de destruir tudo para a chegada dos russos que já estavam quase adentrando Varsóvia e há muito Hitler já tinha deixado claro que não queria nenhum judeu sobrevivente. Logo, o capitão não poderia poupar a vida do pianista sem ser denunciado e morto por descumprir uma ordem do führer. Matar nesse caso era uma questão de auto-sobrevivência. Não se poderia entender, assim, a atitude do capitão Hosenfeld para com Szpilman, neste caso, mais uma ação de piedade e caridade que de educação e arte? Afinal, ele não foi só educado, mas foi treinado para fuzilar judeus, não para salvá-los.

Nas circunstâncias da Alemanha durante a “Guerra dos 31 anos” não se era possível ter muito controle das próprias idéias e atitudes. Thomas Mann, célebre escritor alemão, a princípio era republicano, partidário ao governo alemão – inclusive entrou em atrito com seu irmão, Heinrich Mann, por isso - e só depois, com o assassinato do ministro dos negócios estrangeiros, o judeu Walter Rathenau (1922), que Mann tornou-se democrata a ponto de ser expatriado e naturalizado americano durante o regime nazista121. O crítico literário austríaco-brasileiro Otto Maria Carpeaux também não entendeu o escritor alemão em primeira instância e só depois veio reparar seu ponto de vista.

As divergências entre ideologias e intelectuais, bem como entre matadores e vítimas não justificam em nada as atrocidades acontecidas, mas permitem a explicação delas ainda que isso seja impossível de aceitar, ou como disse Hobsbawm (2005, p.15), “[c]ompreender a era nazista na história alemã e enquadrá-la em seu contexto histórico não é perdoar o genocídio. De toda forma, não é provável que uma pessoa que tenha vivido este século extraordinário se abstenha de julgar. O difícil é compreender”. “As maiores crueldades de nosso século foram as crueldades impessoais decididas a distância, de sistema e rotina, sobretudo quando podiam ser justificadas como lamentáveis necessidades operacionais” (HOBSBAWM, 2005 p.57). Quem sabe se não é por isso mesmo que em determinadas situações da realidade nos sensibilizamos menos com o real do que com o artístico? Quem sabe se não é por isso também que a educação e a arte não podem evitar determinados acontecimentos políticos e históricos ainda que eles sejam meros caprichos de guerra?

121 Ver: http://pt.wikipedia.org/wiki/Thomas_Mann

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Por outro lado, o que mais poderia ter acontecido e poderá acontecer se essas duas instituições desistirem de sensibilizar e humanizar as pessoas? A história mostra que a Europa e o Japão se reconstruíram e que a Alemanha foi reunificada após a queda do muro de Berlim, em 1989. Todavia, o orgulho ferido dos derrotados ainda não se extinguiu, prova disso foi a queda das torres gêmeas em Nova York e os atuais conflitos em conseqüência disso. Guerras sempre existiram, ainda existe e provavelmente sempre terá enquanto o homem não aprender a respeitar seu semelhante. O que mudam são apenas as armas de combate e não as lutas em si e sabemos que hoje existem armas bem mais poderosas que os cogumelos que atingiram o Japão.

REFERÊNCIAS:

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A (NÃO) INCORPORAÇÃO SEMÂNTICA NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Ronald Taveira da Cruz Doutor em Lingüística

Professor da Universidade Federal do Piauí

Resumo: este artigo discute o singular 'nu' (nome sem determinantes realizados fonologicamente) na posição pós-verbal de sentenças episódicas no Português do Brasil (PB), para analisar se ele é passível ou não de Incorporação Semântica (IS). IS é um processo cujo nome se incorpora ao verbo para juntos fornecerem a informação semântica, porém sua ocorrência no PB não é consensual: autores afirmam que ela acontece (Saraiva 1997; Doron 2003; Müller 2004); outros afirmam que não (Carlson 2006; Schmitt e Munn 1999, 2000, 2002; Lopes 2008). Este artigo conclui que há IS no PB somente em alguns casos (Taveira da Cruz 2008). Palavras-chave: incorporação semântica, sintaxe, nome 'nu' singular

Abstract: this article concerns post-verbal bare singular nominals (i.e., nominals without phonologically realized determiners) in Brazilian Portuguese (BP) in episodic sentences to explore whether it can be treated as a case of Semantic Incorporation (SI). Generally, SI is a process that a nominal is incorporated to a verb, and yields together (a single) semantic interpretation. The existence of SI in BP is a matter of debate: on the one hand, scholars affirm it (Saraiva 1997; Doron 2003; Müller 2004); on the other hand, scholars affirm that SI does not occur in BP (Carlson 2006; Schmitt e Munn 1999, 2000, 2002; Lopes 2008). Our conclusion is that only a few cases are of SI in BP (Taveira da Cruz 2008).Key-words: semantic incorporation, syntax, bare singular nominals

Introdução

O objetivo deste artigo é estudar se é possível entendermos a presença de singular nu na posição pós-verbal em sentenças existenciais como um fenômeno de incorporação semântica no português do Brasil (doravante, PB). A incorporação semântica (doravante, IS) (Baker 1988; Farkas e Swart 2003; Dayal 1999 e 2003; Johns 2005; Barrie 2006, Mithun 1984, Van Geenhoven 1998, Chung and Ladusaw 2003) é um fenômeno cujo argumento nominal em algum sentido torna-se parte do verbo, se funde ao verbo para juntos atribuírem a informação semântica. Observe algumas estruturas ditas incorporadas e suas respectivas línguas:

(1) Angunguaq eqalut-tur-p-u-q West Greenlandic -Inuit A-ABS salmão-comer-IND-[-tr]-3S Van Geenhoven (1998) “Angunguaq comeu salmão” (2) Ne inu kofe kono a Mele Niuean Pass bebeu café amargo Abs Mele Massam (2001) “Mele bebeu café amargo”(3) A-urupá-pirár Tupinambá

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EU-arco-abri Mithun (1984) “Eu abri meu arco”(4) Marie verset olvasatt Húngaro Anu livro[sg] leu-passado Farkas e de Swart (2003) “Anu leu livro”

Como mostram as sentenças (1) e (3), a IS pode ocorrer no nível morfossintático, mas não no PB. O PB também não se comporta como em (4) que apresenta diferença visível de Caso: objetos incorporados em húngaro têm Caso Dativo. Saraiva (1996 e 1997)122 estudando o PB dentro de uma perspectiva de Princípios e Parâmetros, em uma abordagem representacional, afirma que a IS é um fenômeno produtivo no PB, independente da classe verbal ou da característica do nome. Doron (2003) também afirma que a IS acontece no PB. Porém, não é claro que há efetivamente IS do nome nu na posição pós-verbal, já que autores como Carlson (2006)123, Schmitt e Munn (1999, 2000, 2002); Munn e Schmitt (2001, 2005); Kester & Schmitt (2005), Lopes (2006, 2008) e Dobrovie-Sorin e Pires de Oliveira (2007) defendem que não há IS no PB. Este artigo parte de uma hipótese inicial: no PB, o NNN na posição pós-verbal, somente em alguns casos, pode se incorporar ao verbo (Taveira da Cruz 2008). Na verdade, este artigo entende a incorporação no PB como uma opção (by Stvan 2008), não como algo produtivo (quase obrigatório), assim como Saraiva (1997) e Doron (2003), nem algo totalmente impossível como parece ser o caso para Carlson (2006), entre outros.

Nome nu singular e a incorporação semântica

Nas línguas que permitem IS, ela ocorre com nomes nus, singulares ou plurais (na posição pós-verbal). E é esse o motivo que une os estudos sobre os nomes nus (singulares e plurais) com os de IS: este artigo estuda o nome nu singular na posição pós-verbal e sua possível incorporação ao verbo. Apesar de estudos já mostrarem que os nomes nus plurais também são alvos de incorporação semântica em outras línguas, nos concentramos somente no nome nu singular.

Porém, esse nome nu singular no PB não é singular propriamente dito, no sentido que é especificado para o número singular: autores têm mostrado que ele é não-marcado para número (Müller 2002; Schmitt e Munn (1999, 2000, 2002); Munn e Schmitt (2001, 2005); Kester & Schmitt (2005). Este artigo assume esses autores e, para evitarmos confusão terminológica, vamos denominá-lo de Nome Nu Neutro (doravante, NNN). O NNN é um nome sem determinante, operador ou numeral fonologicamente visível. Ele pode aparecer na posição pré-verbal, pós-verbal, em PP124 e pós-cópula (ou posição predicativa), como nos exemplos abaixo, respectivamente (o que estamos denominado de NNN estão destacados em itálico):

122 Há alguns trabalhos sobre a incorporação semântica no PB: Saraiva (1996 e 1997), Gonçalves (1999) e Doron (2003). Há o projeto de pesquisa de Dobrovie-Sorin e Pires de Oliveira (2007). Müller (2004) ainda de forma cautelosa também discorre sobre a possibilidade da incorporação semântica no PB.

123 É bom deixar claro que Carlson (2006) não afirma que no PB não acontece a incorporação semântica, ele apenas menciona essa possibilidade.

124 Do inglês, Prepositional Phrase.

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(6) a. Carro custa caro no Brasil. b. O Brasileiro compra carro. c. Eu trabalho em casa. d. Pedro é criança.

Há propriedades associadas à incorporação do nome ao verbo, entre elas a falta de definitude, a falta de escopo amplo, a falta de especificidade, a falta de número (só nome neutro para número incorpora):(7) Pedro comprou pneu.(8) Pedro contratou secretária.(9) Pedro não comprou pneu.(10) Pedro não contratou secretária.

Na sentença (7), observamos tanto a falta de definitude, quanto a de especificidade e número: não está claro qual pneu, o tipo nem a quantidade, um, dois ou mais. O mesmo é verdadeiro para secretária em (8): não está definida, especificada e não sabemos qual a quantidade que ele quer contratar. Quanto à questão de escopo, em (9) e (10), o operador de negação tem escopo sobre o nome ‘pneu’ e ‘secretária’ respectivamente: seja qual for o pneu ou a secretária, ele não quer comprá-lo ou contratá-la respectivamente.

Para Carlson (2006), o fenômeno da incorporação parece não acontecer no PB, em virtude dos nominais nus não apresentarem o que ele denomina de “restritividade”. Como as características apresentadas acima podem acontecer também em estruturas que não são de incorporação, Carlson (2006) afirma que além delas, há mais uma, que verdadeiramente distingue nomes incorporados daqueles nomes que não são: o efeito da restritividade. Apesar de Carlson (2006) não definir precisamente o que vem a ser esse efeito, ele nos mostra indícios, a partir de algumas citações, como as seguintes, ficando a cargo do leitor concluir o que significa exatamente essa restritividade:

“O domínio semântico do nome incorporado é usualmente restrito. Por exemplo, em Pawnee, nomes que se referem a partes do corpo, fenômenos naturais, comidas e produtos culturais são regularmente incorporados” (Bybee 1985, apud Carlson 2006: 43-4)“Incorporação é uma expressão lexicalizada de uma atividade típica” (Axelrod 1990, apud Carlson 2006: 44)“Alguma atividade ou qualidade é reconhecida suficientemente para ser considerada nameworthy” (Mithun 1984, apud Carlson 2006: 44)“Embora os verbos de posse em chamorro são apenas dois que servem para incorporação, a construção é completamente produtiva tão logo o objeto incorporado é concebido” (Chung e Ladusaw 2004: 89-90, apud Carlson 2006: 46)

Nessas citações, podemos inferir o que Carlson (2006) está chamando de restritividade (restrictedness). Essa restrição pode ser um enriquecimento semântico, com alguma significância cultural, remetendo a alguma atividade culturalmente estabelecida. Ela pode ser também uma restrição sintática, por exemplo, em algumas línguas, somente objetos diretos sem marcação de caso incorporam ou ainda apenas alguns verbos combinados com alguns nomes permitem a incorporação. Carlson (2006: 46) conclui que “o caso do plural nu no inglês (e bastante possivelmente o singular nu no português do

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Brasil) é então excluído porque não há restrições sobre seu aparecimento e combinação” 125.

A presença da incorporação semântica no PB

Saraiva (1997: 14) afirma que no PB há incorporação do objeto NNN ao verbo de forma produtiva, regular e sistemática: “após uma ampla investigação empírica, vê-se confirmada a hipótese de que o fenômeno em tela (incorporação do objeto nu) é um processo sistemático em português”. Ela nos oferece vários exemplos de construções incorporadas126:(11) a. Eu só comprei carro este ano porque você insistiu. b. João alugou apartamento durante vinte anos. c. Papai sempre lia jornal depois do almoço. d. Eu vou passar roupa à tarde. e. Zeca colocou adubo nas minhas plantas. f. Pedrinho pôs etiqueta em todos os seus cadernos.

Nesses exemplos, o objeto nu incorpora-se ao verbo e, dessa forma, contribui para a informação semântica como uma unidade V-N:

“Nestes casos (como nos exemplos acima), o nome parece está qualificando o verbo, atribuindo ao seu sentido o conjunto das propriedades que definem a própria classe. Em outras palavras: V + N designam uma subclasse da ação expressa pelo verbo... As expressões buscar menino, catar papel, tocar flauta, beber cerveja, etc. são interpretadas como diferentes tipos de ação. Focalizam-se os eventos e não as entidades envolvidas” (Saraiva 1997: 110)

O ponto chave no texto da Saraiva é mostrar que há incorporação, independente do tipo de verbo e do tipo do nome (concreto, abstrato, coletivo, espécie, massa...), circunstância sintática ou semântica, pragmática, do tempo verbal (presente ou não-presente), do contexto, se genérico ou episódico... A autora afirma que o objeto incorporado é um fenômeno extensivo no PB, defendendo a seguinte hipótese:Hipótese: “A emergência da interpretação incorporada do SN nu objeto é um fenômeno sistemático em português, ou seja, é independente de condicionamentos léxicos, quer da parte do verbo, quer da parte do nome” (1997: 68).

A ausência da incorporação semântica no PB

Se o NNN é um DP, ele não pode se incorporar ao verbo, porque somente N0 e NP podem participar de estruturas incorporadas. Schmitt e Munn (1999, 2000, 2002), Munn e Schmitt (2001, 2005), Kester & Schmitt (2005) compartilham a visão de que o nome nu singular no PB é um DP, com determinante nulo e sem projeção de NumP: esses autores se baseiam em Longobardi (1994, 2002). Longobardi (1994) afirma que um nome pode se

125 Como se percebe, Carlson (2006) apenas abre a possibilidade de não ocorrer a incorporação no PB.126 Todos os exemplos dessa seção são da própria autora, Saraiva (1997). Os destaques em itálico são meus,

para mostrar o que a autora considera como V+N incorporados.

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movimentar de N (núcleo nominal) a D (núcleo do determiante), na sintaxe ou em forma lógica127. O DP é uma projeção funcional responsável pela interpretação semântica em LF e, portanto, deve ser projetada. Neste sentido, todos os argumentos têm que ser introduzidos por D: nas palavras de Longobardi (1994: 620): “uma expressão nominal é um argumento somente se ele é introduzido por uma categoria D”.

Assim, sendo o NNN no PB um DP, ele não pode se incorporar ao verbo: é de conhecimento geral, que somente N0 ou NP podem se incorporar ao verbo. Neste sentido, da corrente que descreve o NNN no PB como sendo um DP (Schmitt e Munn 1999, 2000, 2001; Munn e Schmitt 2001, 2005; Kester e Schmitt 2005; Lopes 2008), infere-se que no PB não há o fenômeno da incorporação, portanto, próximo de Carlson (2006): como vimos, para esse autor, por não compartilhar o efeito de restritividade, o PB pode não apresentar a incorporação semântica128.

Conclusão: a incorporação semântica no PB como uma opção

Esta seção se concentra na sentença-chave abaixo, como representação de um exemplo típico de estruturas de incorporação no PB, porque denota uma atividade institucionalizada, reconhecida pelos falantes do PB: (16) Pedro jogou bola.

A bola é um objeto usado em vários esportes, mas nessa sentença o único esporte possível é o futebol: essa é uma das principais características das estruturas incorporadas, o fato do falante a reconhecer como significando uma atividade institucionalizada (Mithun 1984 e 1986): é o que acontece em (16). Há também outras restrições, porque o NNN não pode ser topicalizado, nem ser retomado anaforicamente nessa construção acima e ainda manter a interpretação incorporada:(17) a. #Bola, Pedro jogou. b. Pedro jogou bola. #Ela estava murcha.

Ao deslocar o objeto para a periferia esquerda da sentença, o sentido depreendido em (16) não se mantém: as sentenças em (17) deixam de significar que o falante está se referindo a atividade institucionalizada de jogar futebol, perdendo a interpretação incorporada. Passam a ter apenas leitura composicional: há uma bola que o Pedro jogou. O mesmo é verdadeiro para o exemplo em (b): ao ser retomado pelo pronome, ela deixa de representar a leitura incorporada e recebe uma interpretação composicional. Um exemplo-chave mais claro é:(18) a. O João tomou café hoje às sete horas da manhã. b. Café, o João tomou. (não chá) c. O João tomou café. #Ele estava muito quente.127 Tipos de movimentos presentes no programa minimalista de Chomsky 1995: movimento aberto e

movimento encoberto, respectivamente.128 Lopes (2008, no prelo) procura mostrar que o NNN no PB não pode possuir apenas uma estrutura sintática, diferenciando-o de sentenças episódicas e genéricas. Ela vai contra, portanto, uma análise unificada para o PB do NNN (contra Schmitt e Munn 1999, 2000, 2002; Munn e Schmitt 2001, 2005; Kester & Schmitt 2005). Seja em sentenças genéricas ou em sentenças episódicas, a projeção máxima do nome nu singular no PB é ainda o DP ou D/NumP, respectivamente. Se for assim, ele não pode se incorporar semanticamente ao verbo. Se seguirmos Lopes (2008), então, também não há incorporação semântica no PB.

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A sentença em (a) é ambígua: (i) temos uma versão incorporada, porque tomar-café remete a uma atividade reconhecida pelos falantes do PB: não está em causa o café em si, mas o evento de tomar-café (da manhã), tanto que para (a) ser verdadeira, na leitura incorporada, não é preciso haver café. Suponha um caso que João tenha tomado suco com bolachas no evento de tomar-café, então, nesse contexto, a sentença em (a) é ainda verdadeira, porque o que é relevante é o evento de tomar-café, e não o café propriamente; (ii) há ainda a versão não-incorporada, porque o que está em foco é próprio café, dessa forma, ela não remete ao evento de tomar-café, mas simplesmente ao evento de tomar, que é saturado pelo NNN café. As sentenças (b) e (c) somente aceitam essa segunda leitura.

As sentenças (16) e (18a) acima, na verdade, são ambíguas: de um lado, elas podem representar uma versão incorporada, que remete a uma atividade institucionalizada, não podendo o NNN ser focalizado/topicalizado ou retomado anaforicamente; do outro lado, elas possuem a versão não-incorporada, cujo NNN apenas satura o verbo.

Portanto, não são todos os casos que o NNN pode se incorporar, porque nem todos os casos remetem a uma atividade culturalmente estabelecida (Mithun 1984, 1986), logo, contra Saraiva (1997), Doron (2003) e Müller (2004); também, nem todos os NNNs podem ser DPs, conseqüentemente, não podendo ser incorporados, porque há os casos de jogar-bola e tomar-café, que são casos de incorporação semântica (Taveira da Cruz 2008). Então, da mesma forma que o singular nu no inglês (Stvan 2008), o NNN no PB apresenta a incorporação semântica apenas como uma opção.

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RESSIGNIFICAÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE: UMA RUPTURARESSIGNIFICAÇÃO DA INTERDISCIPLINARIDADE: UMA RUPTURA EPISTEMOLÓGICA COM A TERRITORIALIDADE DO SABEREPISTEMOLÓGICA COM A TERRITORIALIDADE DO SABER

DISCIPLINARDISCIPLINAR129129

Roselene de Souza Portela130

Assistente SocialUniversidade Federal do Pará - UFPA

Resumo: Este artigo aborda a interdisciplinaridade de forma histórica e crítica. O desejo de questionar as perspectivas convencionais de pesquisa e o crescimento do conhecimento levou a interdisciplinaridade para o centro das discussões. Nesse sentido, pretende-se tecer algumas reflexões acerca da mesma e do conhecimento científico, com base nas idéias e análises de autores debatidos em sala de aula, pois se entende que a interdisciplinaridade promove um maior cruzamento entre as disciplinas, fazendo com que este potencial seja priorizado na formulação do problema de um projeto de pesquisa.Palavras-chave: interdisciplinaridade, conhecimento científico.

Abstract: This article approaches the interdisciplinarity in a historical and critical way. The desire to question the conventional perspectives of research and the growth of the knowledge took the interdisciplinarity for the center of the discussions. In that sense, intends to weave some reflections concerning the same and of the scientific knowledge, with base in the ideas and authors' analyses discussed at classroom, because understands each other that the interdisciplinarity promotes a larger crossing among the disciplines, doing with that this potential is prioritized in the formulation of the problem of a research project.Keywords: interdisciplinarity, scientific knowledge

Introdução

Desde o século XIX, as disciplinas são parte do padrão educacional, porém com o crescimento do conhecimento, a partir do século XX, viu-se que esta perspectiva disciplinar desestimulava as investigações e explicações que atravessam os limites do sistema.

A supremacia do mundo disciplinar provocou um estabelecimento de formas de trabalho e um controle das formas e objetos de estudo, através das relações formatadas entre os membros da comunidade cientifica. Contudo, com a diversificação das disciplinas e o aumento de conexões distantes e mais complexas essa comunidade foi afetada, aumentando o intercâmbio de disciplinas e cooperação de diferentes especialistas.

Percebeu-se que o modo de educar e pesquisar utilizando apenas os métodos disciplinares e referentes teóricos leva o problema para enfoques cada vez mais complexos. Esse fenômeno variou de intensidade entre os diversos campos, restando ainda barreiras em diversas áreas disciplinares.

129 Este artigo foi escrito como trabalho final da disciplina Metodologia Interdisciplinar, do curso de Doutorado do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos – NAEA/UFPA.130 Assistente Social, Mestre em Planejamento do Desenvolvimento (PLADES/NAEA/UFPA) e discente do Curso de Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (PDTU/NAEA/UFPA).

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Sendo assim, a interdisciplinaridade manifesta-se por um esforço de correlacionar as disciplinas, uma vez que todas elas são interrelacionadas e que algumas por sua própria natureza pedem a interdisciplinaridade. Nesse sentido, é preciso construir uma cultura acadêmica, onde necessariamente requer um caminho pela interdisciplinaridade.

Assim, o presente trabalho almejou fazer uma análise da afirmação: a interdisciplinaridade pressupõe, antes de tudo, uma ruptura epistemológica com a territorialidade do saber. Para tanto, pretendeu-se tecer algumas reflexões acerca da interdisciplinaridade e do conhecimento científico, com base nas idéias e análises de autores debatidos em sala de aula, onde, primeiramente, buscou-se fazer uma contextualização do tema, em um segundo momento, fez-se uma discussão sobre a formulação do problema de uma tese interdisciplinar e, por fim, algumas considerações sobre a temática foram apresentadas.

Interdisciplinaridade: contextualização

O termo interdisciplinaridade não possui ainda um sentido único e estável. Trata-se de um neologismo cuja significação nem sempre é a mesma e cujo papel nem sempre é compreendido da mesma forma. Embora as distinções terminológicas sejam inúmeras, o principio delas é sempre o mesmo: a interdisciplinaridade caracteriza-se pela intensidade das trocas entre os especialistas e pelo grau de integração real das disciplinas no interior de um mesmo projeto de pesquisa.

Nesse sentido, exige-se que as disciplinas, em seu processo constante e desejável de interpenetração, fecundem-se cada vez mais reciprocamente. Para tanto, é imprescindível a complementaridade dos métodos, dos conceitos, das estruturas e dos axiomas sobre os quais se fundam as diversas práticas das disciplinas científicas.

Segundo Gadotti (s/d), a interdisciplinaridade, como questão gnosiológica, surgiu no final do século passado, pela necessidade de dar uma resposta à fragmentação causada por uma epistemologia de cunho positivista. As ciências haviam-se dividido em muitos ramos e a interdisciplinaridade restabelecia, pelo menos, um diálogo entre elas, embora não resgatasse ainda a unidade e a totalidade. A fragmentação representava uma questão essencial para o próprio progresso científico. Tratava-se de entender melhor a relação entre "o todo e as partes".

Observa-se que na história de interdisciplinaridade há diferentes opiniões sobre sua origem. Platão, Aristóteles, Rabelais, Kant, Hegel e outras figuras históricas são conhecidas como os pensadores da interdisciplinaridade. Na era moderna, a idéia de uma ciência unificada, um conhecimento geral, síntese e conhecimento integrado já eram discutidos. Nesse sentido, Platão foi o primeiro a defender a filosofia como uma ciência unificada capaz de sintetizar o conhecimento. Para ele, a matemática e dialética eram discutidos como uma idéia geral de conceito eterno e imutável, porque independentemente elas existiam. Aristóteles direcionou essa visão para um campo mais específico, delimitando pesquisas nas áreas da política, poesia e metafísica. Ele desenhou também a filosofia como a habilidade de coletar todas as formas de conhecimento, para organizá-los e adquirir o conhecimento geral das coisas, dentro do senso de enciclopédia (KLEIN, 1990).

Historicamente, as instituições acadêmicas caminharam para uma fragmentação do conhecimento, por meio das especializações, departamentalizações, em decorrência da

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atuação profissional que exige uma formação acadêmica em “áreas definidas”, formação que por sua vez impõe grades curriculares.

Lattuca (2001) afirma que em todo sistema escolar, da universidade aos níveis elementares, foi difundido o modelo cartesiano que se baseia no uso da habilidade analítica para dividir o mundo em unidades cada vez menores, cujo objetivo está em promover a compreensão do todo a partir da compreensão de suas partes, regulando esse todo através de uma visão disciplinar. Nesse sentido, ao longo dos anos, as ciências ocidentais procuraram estudar a realidade “não-disciplinar” por meio de abordagens orientadas por disciplinas131.

Dentro desse contexto, a interdisciplinaridade era apontada pela falta de rigor metodológico e de organização do pensamento. Na medida em que esta se tornou prevalente em áreas de estudo de etnia, gênero e cultura, foi acusada de superficialidade, de incerteza nos efeitos e premissas de suas idéias, e os profissionais “interdisciplinares” costumavam ser marginalizados tanto na academia quanto fora dela.

Com o passar do tempo, de acordo com Lattuca (2001), os EUA sofreram pressões para incluir no currículo educacional temas das ciências exatas, humanas e naturais. Um movimento com avanço lento, mas que promoveu mudanças nas estruturas dos cursos, levando a criação de programas paralelos aos tradicionais, com demandas específicas – treinamento profissional.

Esse fato fez com que surgissem as primeiras preocupações nos educadores sobre a estrutura disciplinar no ensino superior, pois essa estrutura, de certa forma, restringia os caminhos do conhecimento: "As conceptual frames, they delimit the range of research questions that asked, the kinds of methods that are used to investigate phenomena, and the tipes of answers that are considered legitimate" (LATTUCA, 2001, p. 02).

Em contraponto a esse movimento, a educação disciplinar no nível superior, teve um momento de crescente organização e especialização. Nas universidades modernas, a disciplinaridade era reforçada de duas maneiras: demandas industriais e especialistas, sendo que os estudantes eram que recrutavam as disciplinas para essa linha. A tendência sobre especialização expandia os campos individuais (KLEIN, 1990).

Segundo a visão de Klein (1990), o início do período moderno é marcado por três importantes pontos: estabelecimento da disciplina como um sistema de crença de conhecimento; diferenciação dos estudantes e das instituições científicas para motivar o progresso em disciplinas individuais; e cooperação entre disciplinas individuais, especialmente entre as quais se pretende resolver o problema de ciência aplicada e tecnologia, resolvendo deste modo, a menor parcela unitária do conhecimento.

A autora afirma que as teorias sintéticas como o marxismo, estruturalismo e operação teórica de sistemas gerais, eram usadas para promover a metodologia integrativa ou teórica para um conjunto de disciplinas, e para funcionar como uma ciência unificada, integrando todas as disciplinas em torno de um paradigma transcendente.

A Teoria de Sistemas Gerais, que surgiu na metade do século, se preocupa com a parte inter-relacionada com o todo. Bertalanffy (1977) criticou a visão de que o mundo era dividido em diferentes áreas, como física, química, biologia, psicologia, etc. Seus estudos 131 Desde o século XIX, as disciplinas são parte do padrão educacional, porém com o crescimento do conhecimento, a partir do século XX. Viu-se que esta perspectiva disciplinar desestimulava as investigações e explicações que atravessam os limites do sistema.

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apresentaram uma visão contrária, ou seja, sugeria que se estudassem os sistemas globalmente, de forma a envolver todas as suas interdependências, pois cada um dos elementos, ao serem reunidos para constituir uma unidade funcional maior, desenvolvem qualidades que não se encontram em seus componentes isolados.

Destarte, a interdisciplinaridade visou garantir a construção de um conhecimento globalizante, rompendo com as fronteiras das disciplinas, ou seja, com a territorialidade do saber disciplinar. Para isso, integrar conteúdos não seria suficiente. Seria preciso uma mudança de atitude. Uma atitude de busca, envolvimento, compromisso, reciprocidade diante do conhecimento.

Klein (1996) argumenta que, a partir dos anos 1960, várias mudanças ocorreram nos limites à abordagem do conhecimento, pois com o surgimento de novos problemas sociais, surgidos num mundo sob pressões complexas, exigiram também novos conhecimentos e novas demandas nos currículos. Assim, o conhecimento em si passou a ser encarado como um assunto interdisciplinar, que não pode mais ser contido dentro de fronteiras disciplinares. O próprio cruzar de limites instaura-se como a definir características da modernidade132.

Nos anos 1970, a temática nos projetos interdisciplinar era a segurança, o meio ambiente, tecnologia e informação. Nos anos 1980, os centros de tecnologia se juntaram às ciências interdisciplinares. Um movimento que vinculava estas aos problemas tecnológicos e sócio-ambientais.

Klein (1996) discorre sobre o relacionamento entre disciplinaridade e interdisciplinaridade, muitas vezes, representado em termos de oposição, de paradoxo ou de dicotomia. Disciplinaridade e interdisciplinaridade são tensões produtivas numa dinâmica suplementar, complementar, porém crítica. Modelos padrões de disciplinaridade têm a tendência de promover modelos de interdisciplinaridade tendo em vista apenas a integração de teorias existentes em torno da colaboração, de um assunto comum.

Para a autora, a redefinição disciplinar está ligada à complexidade do mundo moderno – intelectual, social, tecnológica, econômica e ambiental. Tal ordem de problemas requer que sejam integrados e resolvidos de forma colaborativa, a partir da influência de conceitos e técnicas criados interdisciplinarmente. Nesse sentido, conseqüentemente, a redefinição disciplinar deve-se à presença de novas categorias culturais estudadas e também às estruturas que emergem como respostas às críticas as atrasadas estruturas acadêmicas departamentais.

Sendo assim, a história da interdisciplinaridade se confunde com a dinâmica viva do conhecimento. O mesmo não pode ser dito da história das disciplinas, as quais congelam de forma paradigmática o conhecimento alcançado em determinado momento histórico. Nesse sentido, a interdisciplinaridade é sempre uma reação alternativa à abordagem disciplinar normalizada dos diversos objetos de estudo. Existem sempre, portanto, várias reações interdisciplinares possíveis para um mesmo desafio do conhecimento.

Leff (2004) argumenta que a interdisciplinaridade teórica é entendida não como a confluência de diversas disciplinas no tratamento de uma problemática comum, mas como uma revolução no objeto de conhecimento ou uma mudança de escala da compreensão do 132 O termo “fronteira” aparece como palavra chave em qualquer discussão sobre conhecimento, levando a autora a uma exposição de diversos aspectos acerca de seu significado, a forma como são construídas, as alegações a favor da interdisciplinaridade, etc.

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mesmo, como resultado da cooperação de diferentes ciências e disciplinas científicas. Ele propõe a convergência de saberes e não uma simples articulação das ciências constituídas através da interdisciplinaridade.

Já Lattuca (2001) faz uma comparação entre projetos concebidos sob os princípios da inter e da multidisciplinaridade. Ela argumenta que esta última somente encadeia as disciplinas e seus componentes e que, por conta da baixa cooperação entre os participantes, não ocorrem mudanças ou enriquecimento disciplinar. Por outro lado, a interdisciplinaridade promove um maior cruzamento das comunicações e da coordenação entre as disciplinas, fazendo com que este potencial deva ser priorizado na elaboração de projetos, que apresentam mecanismos de integração e fortalecimento da intercomunicação e da coordenação partilhada desde a sua concepção.

Sendo assim, entende-se a interdisciplinaridade como um trabalho conjunto de várias disciplinas em direção do mesmo objeto de pesquisa, com o propósito de aproximá-lo, cada vez mais, da realidade objetiva, à medida que constrói sua perspectiva dialética.

Projeto de pesquisa interdisciplinar: a formulação de um problema

Para a formulação de um problema de projeto de pesquisa interdisciplinar, primeiramente, buscar-se-á fazer uma discussão acerca da construção do saber científico, considerando o conhecimento como um processo dinâmico e necessário para o desvendamento do real, em que o sujeito irá se relacionar epistemologicamente com um determinado objeto de pesquisa, e nesse processo, sujeito e objeto se encontrarão e o real será compreendido, retratado e criticado.

Zayas (1994) enfatiza que no processo de construção do conhecimento científico é necessário levar em consideração algumas características essenciais, que são: a objetividade; a sistematicidade; a metodicidade; a verificabilidade; e a comunicabilidade.

O conhecimento científico é aquele que está proporcionalmente direcionado à forma de pensamento e de estratégia de conhecimento que o homem realiza frente aos fenômenos. Este tipo de conhecimento dar-se-á a medida que se investiga o que fazer sobre a formulação de problemas. Neste caso, utiliza-se do conhecimento científico para se conseguir, através da pesquisa, constatar as variáveis como presença e/ou ausência de um determinado fenômeno inserido em uma dada realidade.

No conhecimento científico há a exigência da definição dos problemas que se tem em mente e solucioná-los, pois neste procedimento está sempre presente a intencionalidade, mediante a qual são definidas certas formas e processos de ação, ficando claro que há sempre pretensão de se atingir o melhor índice de validade e de fidelidade do conhecimento de um fenômeno. Nesse sentido, o conhecimento científico, exige a utilização de métodos, processos e técnicas especiais para análise, compreensão e intervenção na realidade.

De acordo com Zayas (1994), o modelo científico é um recurso para pensar, e seu caráter experimental permite avançar de modo consistente e racional na explicação da realidade. Possui uma função heurística porque sugere novas hipóteses, problemas e experimentos que orientam novas investigações, permitindo, assim, a expressão de um complexo hipotético conectado à fundamentação teórica.

Bourdie et alli (1999) argumenta que uma pesquisa científica deve necessariamente

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apresentar-se de acordo com um procedimento epistemológico e ressalta que a epistemologia distingue-se de uma metodologia abstrata por se esforçar em apreender a lógica do erro para construir a lógica da descoberta da verdade, como polêmica contra o erro e como esforço para submeter as verdades próximas da ciência e os métodos que ela utiliza a uma retificação metódica e permanente. Portanto, a tarefa epistemológica é separar o verdadeiro do falso, no próprio decorrer da atividade científica, passando a um conhecimento cada vez mais verdadeiro.

Deste modo, o fato científico deve ser conquistado, construído e constatado, estando a construção subordinada a uma ruptura do saber imediato, pois, muitas vezes, o objeto observado não é pertinente, nem significante, o que é pertinente e significante é, quase sempre, difícil de ser observado.

Santos (1989) aponta a existência dessa oposição entre a ciência e o senso comum, partindo do princípio de que a construção do conhecimento científico se dá através de três atos epistemológicos fundamentais: a ruptura, a construção e a constatação.

A ruptura epistemológica bachelardiana, segundo o autor, é compreensível somente em um paradigma que rejeita as orientações para a vida prática decorrentes do senso comum; um paradigma que cuja forma de conhecimento se baseia em uma relação de estranhamento e de distanciamento entre o sujeito e o objeto; um paradigma que considera o conhecimento científico a única forma válida de conhecimento, com essa validade se estabelecendo pela sua objetividade, decorrente da separação entre teoria e prática e entre ciência e ética e que reduz o rigor o conhecimento ao rigor matemático do conhecimento.

Kuhn (1982) afirma que a ruptura de um paradigma se dá quando novos conhecimentos científicos atuam “bombardeando” o paradigma vigente, até produzir uma revolução cientifica, que se estabiliza quando alcança um status de êxito frente a seus competidores. Não consiste, porém, apenas numa reconstrução de dados e generalizações, vai mais além, na medida em que, no processo de elaboração dinâmica de uma teoria científica, o próprio caráter da interação (ou confronto) provoca ao final indubitáveis mudanças qualitativas.

Indo além das proposições de Kuhn, Lakatos (1999) defende que as revoluções científicas irão ocorrer através dos programas de pesquisa. Estes se caracterizam como uma poderosa ferramenta de resolução de problemas, que, com o auxílio de sofisticadas técnicas, assimila as anomalias, processa e as transforma em evidências positivas.

Bunge (2002) apresenta um modelo de construção da metodologia de observação a partir da definição de fato e suas implicações para a construção do objeto de pesquisa. Fato é entendido como algo que seja reconhecidamente ou supostamente pertencente à realidade. É o aspecto ou a fração da realidade que se deve observar a fim de elaborar dados para desenvolver o problema, elaborar hipóteses e testá-las. O fato é apresentado como o elo de ligação entre a abstração do pensamento e a realidade. O autor também faz uma definição de fenômeno, que é a forma com que o evento133 ou o processo134 apresenta-se para um sujeito que procura observá-lo de um determinado ponto de vista.

Para o autor, a observação é uma percepção dotada de propósito e explicação. Dessa forma, o procedimento empírico básico está envolvido tanto nas “medições” quanto 133 Diz respeito à mudança ocorrida no dito estado do fato observado em um dado intervalo de tempo.134 É a seqüência de eventos ao longo de um dado tempo, sendo que cada um implica na determinação do evento posterior.

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nas “experimentações”. Os objetos da observação são os fatos e o resultado é um dado. Assim, a seqüência natural é: fato, observação e dado. A ciência está especialmente interessada em fatos “não-ordinários”, que estão além do alcance dos leigos e exigem ferramentas especiais.

De acordo com Maturana (2000), a observação é feita através de um mecanismo que provoca o fenômeno que se quer explicar, pois, primeiro, observa-se o fenômeno que quer explicar (e que é a razão da pergunta); segundo, tem-se que apresentar o mecanismo. Mas, é igualmente necessário para tornar científica a explicação que o mecanismo proposto origine não somente o fenômeno que se quer esclarecer, mas também outros fenômenos que se venha a observar.

Á guisa de conclusão

A formulação do problema de um projeto de pesquisa interdisciplinar requer uma ruptura epistemológica com a territorialidade do saber disciplinar, pois é necessário que o estudo proposto não encontre resposta completa em uma única área de conhecimento, o que exige uma abordagem interdisciplinar, promovendo, assim, uma significativa reflexão de como o conhecimento e a informação orientam as disciplinas. Nesse sentido, a transferência de informação entre as disciplinas é comparada por “túneis interconectados”, com uma difusão horizontal entre pilares verticais do conhecimento.

O reconhecimento dessa teia de relações, muitas vezes contraditórias e ambíguas, significa, então, um avanço na compreensão dessa realidade complexa. Assim, a transcendência dos limites disciplinares do conhecimento é condição fundamental ao olhar abrangente da interdisciplinaridade.

Sendo assim, a interdisciplinaridade não significa a integração de conteúdos, mas a inter-relação entre as disciplinas, em se considerando seus objetivos e metodologias próprias. Interrelacionar não é integrar, globalizar, perdendo-se de vista a especificidade de cada objeto de conhecimento. Uma ação pedagógica interdisciplinar requer, antes de tudo, uma atitude interdisciplinar.

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A EDUCAÇÃO INFANTIL INDÍGENA APINAYÉ: A ALFABETIZAÇÃO BILINGÜE EM PERSPECTIVA

Severina Alves de Almeida 135

Eliana Henriques Moreira136 Josete Marinho de Lucena137

RESUMOEste artigo é parte integrante de um estudo exploratório nas aldeias indígenas Apinayé São José e Bonito localizadas na região do Bico do Papagaio138. Vinculado ao Projeto de Pesquisa “Educação, Cultura e Formação na Sociedade Apinayé” que está em andamento139, faz um recorte acerca da educação ofertada às crianças em sua primeira infância, haja vista os desafios de uma alfabetização bilíngüe - apinayé e português, sendo esta uma língua estrangeira - considerando um material didático feito em português para a escolarização de crianças não-indígenas, além dos impactos das políticas neoliberais globalizadas, evidenciados na unificação dos currículos dessa modalidade de ensino.

Palavras Chave: Educação; Alfabetização Bilíngüe; Apinayé – Português.

RESUMEN Este artículo es parte de un estudio exploratorio de los pueblos indígenas APINAYE São José y Bonito y situado en lo Bico de Papagaio. Relacionado con el proyecto de investigación "Educación, Cultura y Educación en la Sociedad APINAYE" que se encuentra en andamento, hacer un corte en la educación que se ofrece a los niños en su primera infancia, debido a los desafíos de una alfabetización bilingüe - APINAYE y portugués, siendo este un lengua extranjera - que hecho en mimeógrafo un portugués a la educación de los niños no indígenas, además de los efectos de la mundialización de las políticas neoliberales, puso de relieve en la unificación de los planes de estudio de este tipo de educación. Palabras clave: educación, alfabetización bilingüe; APINAYE - portugués.

135 Acadêmica do 6º. Período do curso de pedagogia UFT – Universidade Federal do Tocantins Campus de Tocantinópolis.136 Professora Assistente da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Tocantinópolis137 Professora Assistente da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Tocantinópolis138 Região norte do Estado do Tocantins, com um total de 25 municípios, incluindo Tocantinópolis, com uma população de 150 mil habitantes, entre estes os Apinayé – grupo indígena integrante dos Timbira do Norte.139 Projeto de pesquisa de iniciação científica PIVIC- UFT “Educação, Cultura e Formação na Sociedade Apinayé” 2008-2009.

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INTRODUÇÃO

A Educação Infantil no Brasil é um direito contemplado na Constituição Federal de 1988, na LDB – Lei de Diretrizes e Bases 9394/96 e atualmente encontra-se no contexto de uma mudança estrutural, desde que o Ensino Fundamental passou de oito para nove anos de duração, estipulando em seis anos a idade mínima para o ingresso das crianças no primeiro ano desse nível de ensino. Nessa perspectiva, as escolas indígenas também precisam se enquadrar nessa nova fase, o que se apresenta como um desafio a mais a ser enfrentado pelo corpo educativo das escolas das aldeias.

Como bem sabemos, a escolarização das crianças em sua primeira infância, assim como as demais modalidades educacionais no Brasil, encontra-se sob o controle de organismos internacionais, como é o caso do Banco Mundial que, por financiar a educação nos países capitalistas em desenvolvimento impõe exigências na formulação das políticas públicas voltadas para a educação, com reflexos importantes na aprendizagem das crianças, uma vez que seus ditames são totalmente descontextualizados da realidade de nossas escolas, evidenciando os impactos da globalização140 e do neoliberalismo na educação escolar desses países.

Nesse cenário encontram-se as escolas das aldeias indígenas Apinayé São José e Bonito localizadas na região do Bico do Papagaio, objeto de um projeto de pesquisa de iniciação científica que está em andamento, o qual sustenta este trabalho, num recorte sobre a alfabetização das crianças do primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental das escolas das supracitadas aldeias, tendo em vista os desafios de se alfabetizar, simultaneamente, nas línguas apinayé e portuguesa, sendo esta uma língua estrangeira, enfrentando as dificuldades de pôr em prática um material didático alheio às suas peculiaridades, além dos impactos da globalização promovidos pela unificação dos currículos dessa modalidade de ensino.

Nesse sentido o trabalho se apresenta, por meio de uma revisão bibliográfica, o que se entende por língua materna e educação na língua materna; por educação indígena e educação infantil indígena, considerando o processo de alfabetização bilíngüe e os desafios enfrentados por educadores(as), numa prática pedagógica que oscila entre a oralidade e a escrita, com um material didático que não contempla as especificidades da cultura indígena, o que compromete o diálogo necessário para que uma efetiva aprendizagem aconteça. Por se tratar de um trabalho que está em andamento ainda não é possível trazer uma sustentação da parte empírica uma vez que estamos em plena construção das hipóteses em visitas semanais às aldeias e suas escolas.

Nesse sentido o trabalho é sustentado por uma revisão bibliográfica contemplando desde os documentos oficiais – Constituição Federal de 1988, LDB – Lei de Diretrizes e Bases 9394/96, Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil e para as Escolas Indígenas, até as publicações etnográficas de ontem e de hoje acerca dos Apinayé, da sua cultura e da educação ofertada a esse povo. Estudos sistemáticos acerca da temática cultura e cultura indígena brasileira, com apoio de autores como Cascudo (2002), Bhabha (2003), Bosi (1994), Ortiz (2001, 2000). Visando à efetivação das propostas: pesquisa participante, ação e etnográfica, são utilizados os estudos de Roberto Da Matta (1975), Curt 140 Conforme pesquisa PIBIC realizada de 07/2006 a 08/2007: Os Impactos da Globalização e Seus Efeitos na Educação” - UFT - Anais do III Congresso Científico (ALMEIDA & NEIVA, 2007).

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Nimuendaju (1983) e Aracy Lopes da Silva (2002), entre outros. É fato que educação brasileira e a Educação Infantil em particular, não tem

contemplado sua função essencial que é ensinar a ler e escrever às crianças no tempo ideal, isso nas cidades onde o sistema de ensino é muito mais organizado e o contexto favorece a demanda por uma escolarização mais eficaz, então, o que dizer das crianças nas aldeias indígenas, em regiões esquecidas pelo poder público, que enfrentam toda forma de exclusão e descaso? E como acontece essa alfabetização bilíngüe quando o português é, para elas, uma língua estrangeira? E, considerando que as etnias indígenas falam diferentes línguas, qual delas deve ser eleita língua materna? E os monitores bilíngües, qual sua formação e como eles exercem essa dupla tarefa?Fizemos as perguntas e, em diálogo com o corpo teórico em que nos apoiamos e os dados coletados até aqui, buscaremos juntos algumas respostas.

OS APINAYÉ E A EDUCAÇÃO ESCOLAR

Apinayé é uma área indígena delimitada por decreto em 1985 com extensão de 141.904 ha., situa-se no Estado de Tocantins, nos municípios de Tocantinópolis e Itaguatins e abriga os povos da etnia Apinayé, do tronco lingüístico Jê. Os Apinayé são um dos grupos da grande nação Timbira que ocupava, no século passado, os cerrados do norte de Goiás, sul do Maranhão e do Piauí, expulsos progressivamente pelas frentes de penetração agropastoris. Os territórios atualmente ocupados pela nação timbira são descontínuos, formados de pequenas ilhas de kraó, krikati, kanela e apinayé distribuídos por 22 aldeias e totalizando 2.500 índios, vinculados administrativamente às regionais da Funai de Imperatriz (Maranhão), Araguaína (Tocantins) e Marabá (Pará). Estão cercadas ou parcialmente invadidas por fazendas de gado. A maioria dos Timbira está na área de influência das ferrovias Norte-Sul e de Carajás.141

Quanto à educação das crianças indígenas, durante séculos esteve sob a orientação dos mais velhos, sustentada pela oralidade, característica dos grupos sociais ágrafos como é o caso dos Apinayé. Contudo, foi com as missões religiosas visando à catequese e a conseqüente conversão dos nativos para o cristianismo que se estabeleceram as primeiras unidades de ensino nas aldeias, pois segundo Márcio Ferreira da Silva e Marta Maria Azevedo (2000 p.149), até o fim do período colonial a educação dos povos nativos permaneceu a cargo dos missionários católicos de diversas ordens. Com o advento da república, o quadro permaneceu inalterado e o panorama da educação escolar indígena era marcado pelas palavras de ordem “catequizar”, “civilizar” e “integrar” ou, em alguma cápsula, pela negação da diferença (idem, p. 150), e não se pense que este paradigma é coisa do passado. Para os autores:

Grande parte das escolas indígenas hoje em nosso país tem como tarefa principal a transformação do “outro” em algo assim como “similar”, que, por definição, é algo sempre inferior ao “original” Não é por outra

141"Enciclopédia® Microsoft® Encarta. © 1993-1999 Microsoft Corporation. Todos os direitos reservados.

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razão, diga-se de passagem, que os currículos empregados nas escolas indígenas oficialmente reconhecidas sejam tão radicalmente idênticos aos das escolas dos não-índios. (Da Silva & Azevedo, 2000 p. 151).

Os autores corroboram as nossas hipóteses acerca da educação ofertada nas escolas das aldeias São José e Bonito quando se constata que a didática está a serviço de um currículo feito para as escolas urbanas, desconsiderando a cultura local, e mais: “Fundamentalmente egocêntricos, estes projetos tradicionais de educação escolar indígena têm encarado as culturas dos povos nativos como um signo inequívoco do “atraso” a ser combatido pela piedosa atividade civilizatória” (ibidem).

Com efeito, as preocupações com a educação escolar indígena ganharam vultos mais consistentes a partir da década de 1970, resultado da organização dos movimentos sociais da sociedade abrangente quando se inicia um processo de assessoria a algumas comunidades indígenas, em busca de um modelo de escola que respeite a diversidade e os direitos coletivos assegurados mais tarde na Constituição Brasileira. Ademais a Constituição Federal reconhece aos índios o direito à diferença, delegando ao Estado a proteção às manifestações das culturas indígenas e assegura o uso de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem (CONSTITUIÇÃO FEDERAL, 1988).

A década de 1990 veio consolidar os dispositivos da Constituição quando foi promulgado o decreto de lei que delegou ao Ministério da Educação a coordenação de políticas públicas voltadas para a educação escolar indígena em substituição à FUNAI, órgão responsável pelo setor até então no Brasil, estendendo-se sua organização aos Estados e Municípios e a educação escolar indígena passa a figurar nos documentos educacionais posteriores: Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional (LDBEN), em 1996; Plano Nacional de Educação, em 1998 e no Referencial Nacional para as Escolas Indígenas (RCNEI), em 1998.

Nesta perspectiva, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei 9394/96 nas suas Disposições Gerais dedica dois artigos à educação escolar indígena e em seu artigo 78 sustenta que o Sistema de Ensino da União desenvolva ações integradas de ensino e pesquisa para a oferta de educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, promovendo a criação de um subsistema de ensino voltado exclusivamente para a educação indígena, delegando uma possível autonomia para que se edifiquem escolas nas aldeias desvinculadas dos modelos tradicionais que prevalecem nas cidades.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394/96 traz também um desdobramento importante no que concerne à elaboração do Plano Nacional de Educação – conforme proposta do executivo ao Congresso Nacional (MEC/INEP, 1998), e um capítulo dedicado exclusivamente à Educação Indígena, estabelecendo metas a longo prazo, estipulando em dez anos o período necessário para que se efetivem tais ações.

ALFABETIZAÇÃO BILÍNGÜE (APINAYÉ E PORTUGUÊS): QUAL LÍNGUA É MATERNA?

Ao contrário do que reza o senso comum, o Brasil é um país poliglota. O português é apenas a língua oficial. Além desta, temos as línguas faladas pelos imigrantes que aqui chegaram para trabalhar na lavoura e também as línguas nativas dos povos que já habitavam

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essas terras antes da chegada dos europeus142. Segundo Raquel F. A. Teixeira (2000, p. 291), “há pelo menos 200 outras línguas que são faladas regularmente pelas famílias brasileiras, de forma regular, como uma segunda língua que se fala em casa, ou às vezes, até como primeira língua”, por exemplo, japonês, alemão, italiano, romeno, sírio, krahó, waiâpi, kaingng, tikuna, makuxi, apianyé, etc. As cinco primeiras são línguas trazidas para o Brasil depois de sua descoberta, e as outras seis já eram faladas no Brasil antes da chegada dos europeus. Elas eram mais ou menos 1300, hoje são 180 e apesar do violento processo de destruição a que foram submetidos, ainda hoje há grupos sociais que só falam sua língua materna, indígena. Há outros que já perderam sua língua e só falam o português.No Brasil, as línguas nativas dividem-se em três troncos já identificados pelos lingüistas e dois troncos que permanecem sem identificação. Os troncos principais são:Tupi, com as famílias tupi-guarani, mundurucu, juruna, ariqueme, tupari, ramarama e mondé. Estas famílias geraram dezenas de línguas, entre elas tupi, guarani, aveti, cinta-larga, apiacá dos tapajós e puruborá. Exemplos de dialetos destas famílias são o tupari, mequém, urucu, aruá e asurini.

Macro-jê, com as famílias jê, camacã, maxacali, coroado, cariri e bororo. Entre as línguas encontramos timbira, caiapó, pataxó, botocudo e puri. A língua Apinayé faz parte da família Jê.

Aruaque, com as famílias aruác e aravá que falam, entre elas, as línguas paresi, aruã, maniteri e manauá. Entre as dezenas de dialetos estão o terêna, guaná, apurinã, vainumá, tatu e tapuia.

Nos dois troncos ainda não identificados encontram-se as famílias: caribe, tucano, nhambiquara, pano e mura e as línguas ianomâmi, sanumá, pimenteira, paravá, oti e tucumá. Entre os dialetos estão o pariri, apiacá, vaimiri, txuna, macu, mura, torá, maxubi e canoê.

Segundo Teixeira (2000 p. 300) o tronco tupi é o maior e mais conhecido das línguas indígenas brasileiras, mas há outro tronco bastante importante também que é o Macro-Jê que é constituído por aproximadamente quarenta línguas agrupadas em mais ou menos 12 famílias. A Autora sustenta que os constituintes do Tronco Macro-Jê situam-se principalmente em regiões de campos cerrados que vão desde o sul do Maranhão e Pará em direção ao sul do país passando por Tocantins (Apinayé) Goiás e Mato Grosso até os campos meridionais dos Estados de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

Qual é a língua materna? – Data do ano de 1956 quando se instalou no Brasil o S. L. I. – Summer Institute Of Linguistics143 - que tinha como propósito a conversão dos gentios ao cristianismo e à domesticação das diferenças. Para Teixeira (2000) não se tratava mais de negar às populações indígenas o direito de se expressarem em suas línguas, mas de “impor-lhes o dever de adotar normas e sistemas ortográficos geados in vitro que, de resto, 142 O Brasil tem hoje uma população de 270.000 índios remanescentes de uma população que pode ter sido de 6 a 10 milhões!. Este contingente está distribuído entre mais ou menos 200 povos que falam cerca de 180 línguas. Há mais povos do que línguas porque alguns desses povos perderam completamente suas línguas. Outros as mantêm integralmente de forma a atender a todas as suas necessidades. Na verdade, eles só passam a precisar do português no momento em que o contato com o branco se torna obrigatório e sistemático (Teixeira, 2000 p. 296). 143 O S.L.I é um organismo ligado a uma fundação norte-americana cujo objetivo principal é a tradução da Bíblia em diferentes línguas. No Brasil, desde 1991, se intitula Sociedade Internacional de Lingüística. (Teixeira, 2000, p. 151).

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nunca funcionam bem” (p. 151) (grifo da autora). Nesse quadro as línguas indígenas passaram a representar meio de educação desses povos a partir de valores e conceitos “civilizados”. Segundo Teixeira,

Ao invés de abolir as línguas e as culturas indígenas, a nova ordem passou a ser a documentação desses fenômenos em caráter de urgência sob a alegação dos famigerados “riscos iminentes de desaparecimento”. E a diferença deixou de representar um obstáculo para se tornar um instrumento do próprio método civilizatório (ibidem).

É inegável a conotação política desse tipo de ação quando se percebe intenções implícitas de alienação. Nesse sentido Teixeira (2000, p. 151-152) diz categoricamente que não se deve esquecer que não por acaso a “escola bilíngüe do S.L.I” é responsável pelo surgimento de um personagem essencialmente problemático e ambíguo, o “monitor-bilingue”, que não é outra coisa senão um professor indígena domesticado e subalterno e é, portanto, muito menos alguém que monitora do que alguém que é monitorado por um outro assim como os “capitães de areia”144 (p. 152).

Com efeito, a defesa desse modelo de escola bilíngüe que utiliza as línguas indígenas como meio de alfabetizar ganharam projeção ainda na década de 1970, porém, conforme Teixeira (ibidem), a defesa pura e simples do bilingüismo feita de maneira acrítica, acarreta problemas para os próprios professores e comunidades indígenas. Segundo a autora, alguns professores têm manifestado preocupação com o sentido do termo “bilíngüe” uma vez que este tornou-se freqüente em diversos documentos sobre educação escolar indígena, produzidos por entidades indigenistas e mesmo em projetos de leis, muitos deles elaborados com a acessória de especialistas em línguas indígenas.

Essa autora coloca ainda que por razões inerentes á própria estrutura social de cada grupo indígena em particular, por exemplo os que habitam o Alto do Rio Negro onde “praticamente toda a população fala mais de uma língua indígena” (p. 153), qual delas deve ser eleita a língua materna e qual delas deve ser esquecida já que bilíngüe, no contexto da discussão sobre educação escolar, sempre quer dizer uma língua indígena e o português?Outros têm preocupação oposta, isto é, “se as escolas indígenas devem ser bilíngües, o que fazer com as escolas indígenas dos povos que, por razões históricas, falam exclusivamente o português145”? (ibidem). Ademais, casos como estes não são excepcionais, adverte Teixeira que pergunta: Onde está o problema? E também responde:

Precisamente no sentido que o adjetivo “indígena” adquiriu nesse debate. Sabemos que a definição da categoria “índio”, com base em critérios culturais, é bastante problemática. Mas é precisamente uma definição desse tipo que está subjacente à noção de língua indígena, acriticamente

144 “Capitães de Areia” foi uma figura criada na época do Serviço de Proteção aos Índios, para servir de interlocutor entre a comunidade e o SPI e, posteriormente, a FUNAI. Hoje em dia, em várias regiões do Brasil, as lideranças indígenas se auto-intitulam capitães e, não mais, pelo nome na língua nativa do grupo. (Teixeira, 2000 p. 152),145 (...) são muito numerosos os povos que, por força da violência exercida no passado pelas agências da sociedade brasileira, não tiveram outra alternativa senão o abandono de suas línguas tradicionais (este é o caso de muitos dos povos indígenas do nordeste) (Teixeira, 2000 p. 153).

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empregada por muitos até hoje. Afinal, língua indígena é a língua falada por um povo indígena e não vice-versa. E, portanto, o português pode ser uma língua indígena, como é, por exemplo, o caso de alguns povos do Médio Solimões (Teixeira, 2000 p. 153).

Nessa perspectiva percebe-se que esse modelo de escola indígena bilíngüe não é novo. Entretanto, é preciso ter clareza para que se determinem mecanismos que favoreçam uma prática pedagógica que contemple os interesses das comunidades em que estas escolas estão inseridas, e que esta alfabetização bilíngüe contemple os anseios de aluno e professores/as nas aldeias, de forma que se trabalhe tendo em vista a dicotomia existente quando se busca um ensino simultâneo na língua nativa – materna – e em português – estrangeira.

Considerando que a criança apinayé chega à escola falando exclusivamente a língua de seu povo e que o sistema de ensino disponibiliza um material didático na língua portuguesa, como se dá a alfabetização nesse contexto? Segundo a professora Ana Maria Apinayé, professora do primeiro ano do Ensino Fundamental da Escola Mantuk da Aldeia São José, é feito um treinamento nos meses de janeiro e julho, promovido pela SEDUC – Secretaria da Educação do Estado do Tocantins- quando se faz um planejamento com as aulas do semestre e ela que fala as duas línguas, elabora um plano de aula em Apinayé e vai intercalando palavras em português, não esquecendo que as crianças nessa idade – seis anos – não falam nada de português.

No caso da escola Bonito a professora Alessandra Pires - que não é índia – e trabalha com crianças do quarto ano do Ensino Fundamental, diz que a alfabetização das crianças do primeiro ao terceiro ano se dá com professores índios e a alfabetização bilíngüe se dá com aula uma vez por semana com um professor não índio. A partir do quarto ano as aulas são ministradas por professores índios nas duas línguas. Nessa escola os professores utilizam cartilhas confeccionadas por eles mesmos. Segundo a professora Alessandra, as brincadeiras, músicas e jogos socializantes são os que mais interesse despertam nas crianças, atestando o caráter pedagógico inerente a esse tipo de atividade. Nesse sentido, percebe-se que as crianças apinayé são diferentes das crianças de outras sociedades em suas práticas culturais, mas são iguais em suas expectativas em torna da aprendizagem; são diferentes em seus modos de ser e de viver, ou seja, elas são diferentes, não desiguais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A questão da escolarização das crianças indígenas e seus métodos de alfabetização são, conforme evidenciou este ensaio, de caráter bilíngüe e se apresentam dicotomizadas, o que se constitui um desafio sério a ser enfrentado pelos professores e professoras nas aldeias, como é o caso das escolas Mantuk da aldeia São José e Bonito, da aldeia do mesmo nome, que oferecem o Ensino Fundamental e Médio respectivamente.

Nos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental professores e professoras se revezam entre classes com crianças que não falam praticamente nada de português, sendo que as crianças de seis anos, que estão no primeiro ano só falam o apinayé e a prática pedagógica dos professores e das professoras se sustenta num material didático na língua portuguesa, ficando a carga do/a professor/a a incumbência de planejar uma aula na língua

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materna. No caso dos números de um a dez, por exemplo, na língua nativa só existe até o número três o que se torna um problema a mais.

Como se sabe a carência que existe no sistema de ensino dos brancos, quando a alfabetização na maioria dos casos não se efetiva nos anos apropriados, nas escolas das aldeias torna-se ainda mais acentuada. Se aprender a ler e escrever, para nós brancos que convivemos com nossa língua materna também de forma sistematizada tem suas dificuldades, imagine-se as crianças indígenas que conhecem somente a oralidade de suas línguas e não mantém nenhum contato com o sistema da escrita. Sem contar com a precária formação dos professores, notadamente aqueles que ensinam na língua materna da aldeia, que na maioria das vezes nem o ensino médio têm.

Nessa perspectiva acreditamos que torna-se necessário e urgente repensar as formas de organização do currículo das escolas indígenas, mais precisamente dos conteúdos que processam a alfabetização das crianças em sua dupla tarefa de aprender a ler e escrever na língua materna de seu povo e na língua estrangeira dos outros brasileiros. Pelo menos é essa uma das nossas propostas ao executarmos o projeto de pesquisa que originou este trabalho, e que esperamos poder concretizar.

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APRENDENDO INGLÊS NA INTERNET: UM PROJETO CONSTRUÍDO COLABORATIVAMENTE ENTRE PARTICIPANTES DE UMA

COMUNIDADE VIRTUAL146

Susana Cristina dos Reis (PPGL/UFSM)147

Tânia Maria Moreira (EE Maria Rocha)148

Débora Lisiane Carneiro Tura (PPG/UNIFRA)149

ResumoO artigo relata uma experiência desencadeada entre professoras integrantes da Comunidade Virtual Transdisciplinar na elaboração e no desenvolvimento de um projeto experimental e de pesquisa na área de “Computer Assisted Language Learning”. Essa experiência foi orientada por pressupostos teóricos socioculturais (VYGOSTKY, 1998), pelo ensino de linguagem com base em gêneros (BAZERMAN, 2005) e por considerações sobre interações e aprendizagem em ambientes virtuais (VETROMILLE-CASTRO, 2007; POLÔNIA, 2005; REIS, 2004).Metodologicamente, encontros virtuais foram previstos entre as participantes para discutir questões teóricas e práticas sobre o uso do gênero blog nas aulas de Inglês como língua estrangeira. Os resultados iniciais apontam que interações mútuas podem contribuir na (re) construção de representações de ensino e de aprendizagem em contexto virtual.Palavras-chave: inglês – blogs – comunidade virtual

Abstract:This article describes an experience of developing and advising an experimental research project in the field of Computer Assisted Language Learning in a Transdiciplinar Online Community.This experience has been supported by theoretical sociocultural principles(VYGOSTKY,1998), the process of teaching language in a based-genre view and it is also based on some previous studies about interaction and learning in a virtual environment(VETROMILLE-CASTRO,2007; POLÔNIA, 2005; REIS, 2004).Methodologically, online meetings were scheduled among the participants in order to discuss theory and pratical activities about the use of blogs in the foreign language classroom. The results suggest that mutual interactions can contribue to the (re) construction of learning and teaching representations in the virtual context.Key-Words: english – blogs – virtual community

146 Trabalho apresentado no VIII Seminário Internacional em Letras - Linguagem, Sujeito e Representação, na UNIFRA, Santa Maria – RS.147 Doutoranda em Estudos Lingüísticos/UFSM, Mestre em Lingüística Aplicada (UNICAMP) e integrante da CVT.148 Mestre em Letras (UFSM), Especialista em Informática Educativa (UFRGS), Professora da E.E. Mª Rocha e integrante da CVT.149 Aluna do curso de pós-graduação em Letras (UNIFRA), Professora da E. E. D. Pedro I e integrante da CVT..

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1.Introdução

A aprendizagem de línguas estrangeiras mediadas por tecnologias tem sido tema de investigação tanto no contexto acadêmico quanto no contexto escolar (POLÔNIA, 2005; REIS, 2004; GUTIERREZ, 2004). No entanto, poucas ainda são as iniciativas que colocam em prática os projetos de ensino e de aprendizagem que inserem tecnologias na sala de aula com vistas a melhorar o desempenho lingüístico de seus alunos.

Na tentativa de colocar em prática projetos de ensino de línguas mediados por tecnologias e, de aproximar mais a universidade e as escolas da rede pública, iniciamos o desenvolvimento de um projeto de construção e de manutenção de uma Comunidade Virtual Transdisciplinar (CVT) em que alunas do Curso de pós-graduação em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria e, professores, pertencentes à 8ª Coordenadoria Regional de Educação, começaram a estabelecer contato para o desenvolvimento de projetos de ensino da linguagem mediado por tecnologias digitais.

Esse contato possibilitou o surgimento da Comunidade Virtual Transdisciplinar de ensino-aprendizagem de leitura e escrita (http://cvtvirtual.bravehost.com) e se tornou o ponto de encontro para que as três professoras e autoras deste artigo desenvolvessem o projeto “Apreendendo inglês na Internet” que está em discussão neste artigo. Para melhor entendermos esse encadeamento, na seqüência, relatamos o surgimento da CVT e do projeto de inglês que faz uso de blogs em sala de aula, orientado pelas responsáveis dessa comunidade. Para finalizar, discutimos os papéis assumidos pelos participantes do projeto e suas representações nos processos de ensino e de aprendizagem.

2.O que é a CVT?

A CVT trata-se de uma comunidade formada por professores da rede pública, alunos de graduação, alunos de pós-graduação que têm como objetivo geral proporcionar aos participantes discussões teóricas e práticas de linguagem como prática social, visando estabelecer maior interação entre pesquisadores, professores e alunos em formação. Na formação desta comunidade contamos com recursos humanos, lógicos e tecnológicos. Os recursos humanos dessa comunidade são formados exclusivamente por professores da rede estadual da abrangência da 8ª CRE e por duas alunas do curso do Pós-graduação em Letras, da Universidade Federal de Santa Maria, interessadas em discutir os tópicos propostos. Além disso, contamos com os recursos lógicos e tecnológicos oferecidos pelo LabLer/UFSM150 - onde foram realizados os encontros presenciais com os professores participantes dos cursos propostos -, além disso, a comunidade conta com a disponibilidade dos laboratórios de informática das escolas públicas e os espaços virtuais que oferecem ferramentas de interação gratuitas que podem ser encontradas na Web (REIS 150 O Laboratório de Pesquisa e Ensino de Leitura e Redação (LABLER), criado em 1998, na Universidade Federal de Santa Maria, como opção de formação complementar por acreditar que os alunos de Letras precisam vivenciar a indissociabilidade entre pesquisa, ensino e extensão. Esse espaço, disponibilizado a todos os licenciandos do curso de Letras, possibilita a conscientização acerca do processo de ensino/aprendizagem de línguas por meio da reflexão teórica e da prática pedagógica, da elaboração de material didático, da avaliação de todo o processo e da intervenção nesse processo. O LabLeR foi aprovado pela FAPERGS via edital 96/12, de dezembro de 1996, processo 97/01585. (Informações obtidas em http://www.ufsm.br/labler)

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e MOREIRA, 2007, p.4-5). Para ter acesso à comunidade, os participantes interessados solicitaram inscrições via e-mail e, uma vez inscritos, eles puderam interagir, colaborar e cooperar em contextos de ensino/aprendizagem presenciais, semi-presenciais e a distância. Na CVT, a adesão dos participantes ocorreu por meio de e-mail, após enviarmos uma comunicação escrita e oficio às escolas públicas da abrangência da 8ª Coordenadoria Regional de Educação. Ainda, em abril do corrente ano, houve a divulgação do site da comunidade e inscrição dos participantes para dois cursos: um de leitura e escrita para professores de todas as áreas e outro para professores de LI. No total, cento e quarenta e oito (148) professores se inscreveram e demonstraram interesse em realizar os cursos oferecidos pela nossa comunidade. (REIS e MOREIRA, 2007, p.5-6).

A adesão desses professores demonstrou que há profissionais preocupados com sua formação e querendo realizar cursos de aperfeiçoamento para orientar e atualizar suas práticas pedagógicas em sala de aula. O expressivo número de professores que aderiu a idéia de formar uma comunidade virtual também contribui para que lutássemos contra algumas armadilhas que emergiram para desestruturar a comunidade no início da formação. Para não desistirmos dos nossos ideais decidimos ofertar à comunidade apenas o curso para professores de Língua Inglesa (REIS e MOREIRA, 2007, p.6).

3.Adesão de professores de língua inglesa à CVT

O contato com professores da rede pública possibilitou que o primeiro curso de formação continuada a distância fosse ministrado por meio da CVT. O curso PROED 151– Letramento digital visava ao desenvolvimento dos professores envolvidos no projeto com vistas a promover o uso de ferramentas digitais em sala de aula de línguas estrangeira. A oferta gratuita de cursos pela CVT fez com que alguns professores aderissem ao projeto e desejassem continuar estabelecendo parcerias com as pesquisadoras da CVT.

Apesar das dificuldades em manter um grupo ativo no desenvolvimento de atividades a distância, o segundo módulo de curso, oferecido pela CVT, tinha por objetivo principal a orientação de projetos que incluíssem tecnologias nas escolas. No entanto, esses projetos deveriam ser executados pelos professores participantes da CVT, mas sob a orientação das responsáveis pela comunidade.

Nesse percurso de trocas virtuais, encontramos a terceira autora deste artigo, a qual será identificada como a professora D e que passou fazer parte da comunidade virtual. A professora D, ao procurar uma das responsáveis pela comunidade, foi convidada a participar da CVT para que pudéssemos estabelecer parceria com outras professoras participantes da CVT, a fim de dar início ao projeto “blogs na sala de aula de línguas estrangeiras”.

Os problemas técnicos e, inclusive os problemas pessoais que alguns participantes do curso PROED enfrentaram, influenciaram diretamente no desenvolvimento e andamento das ações previstas no segundo módulo oferecido pela CVT. No entanto, o interesse e a motivação da professora D contribuíram para que o projeto “Blog na escola” 151 O curso PROED – Produção Oral e Escrita a distância – Letramento digital – é um curso a distância oferecido a professores da rede pública pela professora pesquisadora Susana Reis que está sob sua responsabilidade de autoria e execução do projeto.

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desencantasse e possibilitou o encontro de alunos de escolas estaduais e de outros países. Na seqüência deste artigo, será relatado o processo de orientação e de execução do projeto.

4. O projeto “Aprendendo inglês na Internet”

O projeto “Aprendendo inglês na Internet”152 começou a surgir a partir do contato estabelecido entre a professora D e as responsáveis pela CVT. O processo de orientação para execução do projeto realizamos de modo semi-presencial, envolvendo encontros presenciais e a distância, durante 7 meses. Os encontros presenciais ocorreram no início, no meio e no final do projeto. Nesses encontros, procuramos estabelecer um esboço do projeto de trabalho ou discutir alguns aspectos que se fizeram necessários no decorrer do trabalho. Já, os encontros virtuais foram realizados uma vez por semana, via MSN153 e visavam discutir questões teóricas e práticas relacionadas com problemas que surgiam no decorrer do desenvolvimento do projeto.

O primeiro passo dado, com vistas ao desenvolvimento do projeto, consistiu em discutir algumas concepções, a metodologia de trabalho e os recursos a serem utilizados na elaboração de propostas de atividades de linguagem e na orientação do trabalho como um todo. Com relação às concepções, as professoras-orientadoras, além de adotarem como referência os pressupostos teóricos socioculturais (VYGOTSKY, 1998), a perspectiva de ensino de linguagem com base em gêneros (BAZERMAN, 2005) e as considerações sobre interações e aprendizagem em ambientes virtuais (VETROMILLE-CASTRO, 2007; POLONIA, 2005; REIS, 2004) difundidas na Lingüística Aplicada, contaram com experiências pedagógicas relacionadas com o uso de blogs em sala de aula.

Nesse sentido, acreditando que a aprendizagem de línguas pode ser alcançada por meio do desenvolvimento de projetos que possibilitam a interação entre pares e o contato com a língua-alvo em situações reais de comunicação mediadas por tecnologias de informação e comunicação, orientamos o desenvolvimento de um trabalho envolvendo blogs e o uso de funções da linguagem em língua inglesa. Buscamos, por meio do projeto, encontrar parceiros que quisessem estabelecer trocas interativas e que pudessem revelar quem eram os participantes do projeto, o que eles faziam, onde eles viviam, com quem interagiam, quais eram as atividades que se engajavam e gostavam de realizar em diversos momentos de suas vidas, como eram capazes de representar a si mesmo por meio de seus blogs e nas interações com outros aprendizes. Em resumo, o objetivo do trabalho não se restringia apenas à aprendizagem dos alunos no que diz respeito à língua-alvo ou sobre a língua. Pretendia-se, por meio da língua inglesa e de blogs, que os alunos conseguissem estabelecer alguns contatos com outros aprendizes e professores de diferentes lugares do mundo.

O segundo passo dado iniciou no período de março a julho de 2008, quando se começou desenvolver o projeto pedagógico na escola. A experiência contou com uma turma de treze alunos da 5ª série do Ensino Fundamental (EF) de uma escola pública de Quevedos, no RS, envolveu também a participação colaborativa de professores de Língua Inglesa e alunos de duas escolas públicas, uma turma de 3ª série do Ensino Médio154, três 152 Disponível em http://aprendendoenglishnainternetprojeto.blogspot.com.153 Programa de conversação online disponível gratuitamente pela Internet 154 Ver endereço http://3301em-08.blogspot.com.

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turmas de 7ª série do Ensino Fundamental155 e uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA)156 do mesmo estado. Com as turmas de 7ª série do EF e a turma de 3ª série do EM foi possível estabelecer interações entre alunos e professores. Contudo, com a turma de EJA, o contato virtual ocorreu apenas com a professora.

Para desenvolver o projeto, adotamos a abordagem metodológica “blogquest”. Neste sentido, criamos um conjunto de blogs na internet, com o objetivo de orientar os aprendizes quanto ao uso de blogs, e, conseqüentemente, de proporcionar a aprendizagem da língua inglesa. Assim, propusemos ao grupo de alunos da 5ª série a seguinte tarefa: encontrar amigos virtuais para tentar se comunicar e aprender inglês via blog. Para concretizar a tarefa proposta, foram realizados vários processos em três fases: 1ª) aprender inglês e interagir mediante o uso de um blog coletivo, 2ª) criar e publicar “posts” em um blog individual e 3ª) criar e publicar “posts” em um blog colaborativo.

Em todas as fases do desenvolvimento do projeto, foram realizadas atividades no laboratório de informática (quatro aulas semanais no turno da manhã) e na sala de aula convencional (duas aulas semanais no turno da tarde). As atividades, os conteúdos e tópicos básicos de LI foram organizados de modo a trabalhar com as funções da linguagem mais recorrentes em qualquer contato social, tais como: informações pessoais, preferências e interesses, informações sobre a família e amigos, bem como informações sobre o que fazem na escola e no tempo livre, informações sobre “rotina”, viagem, férias e informações sobre a cultura do local em que vivem.

Também, em cada uma das fases vivenciadas, avaliamos o processo de aprendizagem dos alunos, em relação aos conhecimentos de linguagem e ao uso de blogs, mediante a produção de auto-avaliações, a observação das postagens e dos comentários nos blogs, a elaboração de questionamentos, orais e escritos, realizados nas aulas de leitura e a revisão dos textos produzidos pelos colegas.

O terceiro passo dado envolveu a análise, discussão, sistematização e divulgação de textos sobre os estudos e a experiência pedagógica realizada157.

5. Considerações finais

As atividades descritas anteriormente reforçam a importância de um trabalho colaborativo entre pares que são provenientes tanto do contexto acadêmico quanto do contexto escolar, especialmente no desenvolvimento de projetos em que se investiga a linguagem como uma prática social associada ao uso de tecnologias que podem trazer benefícios à aprendizagem de línguas estrangeiras.

A avaliação dessa primeira experiência de projeto é muito benéfica em todos os sentidos. Além da experiência de engajamento dos participantes, um projeto em parceria pode se tornar muito rico em função das contribuições negociadas entre os participantes de um projeto, tal como o que foi relatado. Isso fica evidente quando se avalia os papéis

155 Ver endereços http://group71.blogspot.com, http://group72.blogspot.com, http://aprendendoenglishnainternet61.blogspot.com.156 Ver endereço http://ejaturmat6.blogspot.com.157 Maiores informações sobre esse trabalho podem ser encontradas na monografia apresentada no curso de pós-graduação em Letras da UNIFRA e na revista Nova Escola, no mês de outubro, quando os trabalhos selecionados no concurso “Educador Nota 10” começam a ser divulgados.

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assumidos pelos participantes desse processo e podem-se perceber mudanças.Ao analisarem-se como os participantes são representados nesse processo,

compreendem-se os diferentes papéis assumidos. O papel desenvolvido pelas orientadoras do projeto, não como orientadoras de um processo de intervenção, mas como colaboradoras na discussão de aspectos teóricos e metodológicos, na interação com os alunos e na elaboração de tarefas que possibilitem estabelecer uma melhor relação entre a teoria e a prática pedagógica.

O papel vivenciado pela professora, alterando-se de uma posição de transmissora de conteúdos para o papel de pesquisadora, colaboradora, facilitadora e co-aprendiz dos processos de ensino e de aprendizagem dentro dessa nova modalidade de ensino, especialmente no que diz respeito em pensar atividades que tornem a aprendizagem do aluno mais significativa e relevante para a vida social dos seus alunos.

Além disso, temos também o papel assumido pelos alunos, não mais uma postura passiva de aprendizagem. Agora, vistos como atores sociais ativos e visíveis na sociedade. Alunos que são desafiados a pensar, a expressar suas opiniões, a agir e interagir com outros por meio da linguagem, a realizar atividades que sejam mais significativas com as práticas sociais que se engajam no dia-a-dia.

Enfim, essa experiência aponta que interações mútuas podem contribuir na (re) construção de representações de ensino e de aprendizagem em contexto virtual. Essas interações modificam o que se concebe por ensino e por aprendizagem, pois ao mesmo tempo em que se pode ensinar se aprende, e ao mesmo tempo em que se aprende, pode-se interagir, compartilhar idéias e construir colaborativamente o saber fazer e o “aprender a apreender”.

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6. Referências bibliográficas

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LEMBRAI-VOS DE OSVALDO CRUZ: UM ARTIGO HISTÓRICO-SOCIAL SOBRE AS TENTATIVAS DE LINCHAMENTO COLETIVO CONTRA A

COLÔNIA JAPONESA EM 1946.

Thiago Abreu de FigueiredoChefe do Departamento Escolar da Escola de

Aprendizes-Marinheiros do Ceará (EAMCE)Pesquisador-colaborador do Núcleo de Pesquisas em

Ciências Humanas (NUPECH) da Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

ResumoComemorou-se em junho de 2008, no Brasil, o centenário da imigração japonesa. Mas o processo de assimilação e acomodação dessa comunidade não foi tão tranqüilo quanto pode, à primeira vista, parecer. Esse estudo de caso discute as tentativas de linchamento de japoneses pela mãos de brasileiros. Essa ocorrência deu-se na cidade de Osvaldo Cruz, no interior do Estado de São Paulo, em 1946. O artigo narra uma sucessão de eventos que poderiam lançar luzes sobre os revezes do processo de assimilação da colônia nipo-brasileira à sociedade nacional. As fontes da pesquisa são documentos e relatos publicados pela “literatura cinzenta”. Para tanto, utilizar-se-á como fio condutor da análise e fonte teórica, as obras do sociólogo Émile Durkheim, no que dizem respeito à esfera de atuação da consciência coletiva sobre a ação e os sentimentos do indivíduo, além de outros autores estudiosos do fenômeno da violência coletiva. No relato, tenta-se recuperar o sentido de uma manifestação, a priori, imprevista e injustificável, ocorrida naquela cidade.Palavras-chave: consciência coletiva; Durkheim; centenário da imigração japonesa no Brasil.

AbstratctThe centenary of Japanese migration was celebrated on June, 2008. But the process of compreheension and adjustment of this community wasn´t so peaceful as it could be. This case study discusses the attempt of lynching against Japanese people by Brazilians. That took place in Osvaldo Cruz city,countryside of São Paulo in 1946.The article describes the succesion of events that could brigthen the process of assimilation of the nipo-brazilian by the nacional society. The sources of the research are documents and reports published by the “gray literature”. For such analysis, it´s used as guidelines the theoretical sources of the work of the French sociologist Èmile Durkheim in the case of the performance of the collective conscious area about the individual’s actions and feelings, besides other authors who study the phenomenon of the collective violence. This research inteds to recall the meanig of the happening, mainly, unpredictable and unjustified the occured in that city.Keywords: collective consciousness; Durkheim; centenary of japanese immigration in Brazil.

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1 – Introdução

Em 27 de abril de 1908, partiu de Kobe o Kasato Maru, o primeiro navio de migrantes japoneses com destino ao Brasil. Em 18 de junho do mesmo ano, 165 famílias japonesas desembarcaram no Porto de Santos, após 52 dias de viagem. Eram 781 migrantes que teriam vindo trabalhar nas lavouras de café. Em 2008, celebra-se o centenário do início de uma migração que mudou a história social, artística, econômica, gastronômica e esportiva do Brasil.

Segundo o Jornal O Globo, "Todos se surpreenderam com a limpeza da sala. Não havia uma única bituca de cigarro, nenhuma cuspidela — um contraste completo com outros imigrantes". Foi isso que o inspetor de migrantes de São Paulo, Amandio Sobral, anotou em seus relatos em 1908, descrevendo um alojamento em que os imigrantes japoneses se hospedaram (O Globo, 19 junho 2008).

Cem anos se passaram e pesquisas recentes indicam que a assimilação e acomodação da colônia japonesa à sociedade brasileira são, praticamente, integrais no território nacional, principalmente, se observados os descendentes das quarta e quinta gerações de nipo-brasileiros[1], denominados, respectivamente, de yonseis e gosseis. Os bisnetos e trinetos dos imigrantes, que chegaram ao País no início do século, convivem harmoniosamente com os demais brasileiros, segundo Sakurai (2007, p.258), “[...] participando de atividades em todos os setores da vida nacional, até no futebol”.

Porém, não foi sempre assim. Os primeiros imigrantes sofreram “[...] um calvário de provações” até o reconhecimento e a aceitação pelos brasileiros (MORAIS, 2000, p.25). Um dos episódios mais dramáticos dessa imigração japonesa é a sucessão de eventos que desencadearam uma tentativa de linchamento coletivo praticada pelos habitantes de Osvaldo Cruz contra os imigrantes japoneses, em 1946, cujo saldo registrou quase cinco dezenas de vítimas.

Mas o que poderia ter ocorrido em Osvaldo Cruz? O que teria despertado aquilo que Morais descreve em Corações Sujos como “um surto coletivo de violência [que] contaminou todos os brasileiros” (2000, p.240)? Para responder àquela questão, recorreu-se, principalmente, a Durkheim (1999; 2000; 2002) para relacionar a ação da consciência coletiva sobre os sentimentos dos indivíduos habitantes daquela cidade paulista.

2 – Metodologia

Este artigo baseou-se numa pesquisa de história social. As fontes são documentais e estão relacionadas nas referências. Investigam-se os primeiros anos da imigração japonesa no Brasil, principalmente os episódios de 31 de julho de 1946, em Osvaldo Cruz. O marco teórico da análise é “Da divisão do trabalho social” de Durkheim, porque se presume que a sociedade osvaldo-cruzense era, nesse período, arcaica, segmentária e homogênea, características que a tornariam, portanto, suscetível à atuação desta consciência coletiva. Tal sociedade proporcionaria um dos acontecimentos mais violentos dos 100 anos da imigração japonesa no Brasil e exporia de maneira dramática a dicotomia existente entre a parcela brasileira e a japonesa da comunidade local.

A posteriori, realizou-se uma pesquisa historiográfica sobre a cidade de Osvaldo Cruz, tendo como fonte as informações constantes do sítio da Prefeitura de Osvaldo Cruz

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na internet, as quais foram fornecidas pelo historiador José Alvarenga, testemunha ocular dos eventos em questão. O linchamento foi discutido a partir de Rafael Torres de Cerqueira e Ceci Vilar Noronha (2004) que estudam o fenômeno em questão.

2.1 A cidade de Osvaldo Cruz

Fundada em 1941 e elevada à categoria de município três anos após, Osvaldo Cruz era, naquele tempo, uma pequena comunidade de cerca de 12 mil habitantes, com vocação rural, vivendo especialmente das lavouras de café. Grande parte de sua população, principalmente, os colonos japoneses, vivia no campo. Não existem dados fidedignos sobre número desses colonos, mas, segundo a avaliação de Morais (2000), a taxa percentual de nipônicos que compunha a sociedade local era menor que em outras cidades do interior, também ligadas à produção cafeeira, nas quais a população oriental chegava até a superar em número a de brasileiros.

Pois bem, em meio a um ambiente um tanto quanto bucólico, aconteceram, no período compreendido entre a alvorada e as últimas horas de 31 de julho de 1946, diversas tentativas de linchamento de membros da colônia japonesa na cidade.

3 – Resultados e discussão

3.1 Os episódios de linchamento

É difícil afirmar como os episódios começaram, pois a historiografia da cidade, praticamente, apagou dos registros o dia 31 de julho daquele ano. Para Morais (2000), a confusão teve início com o espancamento de um japonês chamado Takeiko Massuda, o qual se envolvera numa discussão com clientes brasileiros, que tomavam café da manhã em seu bar, durante o alvorecer do fatídico dia. Faixa preta de judô, Massuda lutou contra diversos populares até ser contido e amarrado. Relatos estimam em até cinqüenta o número de adversários que o japonês enfrentou até ser derrotado.

O sucesso contra um formidável oponente deu ânimo aos vitoriosos para iniciarem um desfile pelas ruas da cidade, com o judoca destroçado de pancadas e atado por pés e mãos. O cortejo transformou-se em uma violenta turba que agredia, indistintamente, a todos os imigrantes nipônicos com os quais se deparava. Nas palavras de Morais (2000, p.240), “[...] um homem ia à frente do grupo, gritando feito um louco: Lincha! Lincha! Chegou o dia da forra! Hoje não fica um japonês em pé na cidade!”.

Dali em diante, o que se viu foi um surto de brutalidade que contagiou os habitantes de Osvaldo Cruz. Não foram só os pobre da cidade que espancaram os japoneses. Também cidadãos das classes média e proeminentes moradores do local aderiram à barbárie. Parecia que todos tinham alguma pendência para acertar com alguém da colônia nipônica na cidade e que todo o japonês se constituía num inimigo declarado dos brasileiros.

As tentativas de linchamento que se seguiram não pouparam sequer mulheres, crianças ou idosos, e continham, em diversas situações, requintes de crueldade, como o atear fogo a uma pensão na qual estavam refugiados quinze meninos japoneses. A

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desordem, somente, foi contida, por volta das 23 horas, com a chegada de tropas do Exército Brasileiro, oriundas de Tupã, cidade próxima a Osvaldo Cruz.

O balanço do dia de fúria revelou o expressivo número de quarenta e nove internações graves nos hospitais locais, milhões de cruzeiros em prejuízo material, além de uma ressaca moral que, até hoje, melindra os sentimentos dos moradores daquela cidade do oeste paulista.

O motivo da discussão entre o grupo de brasileiros e Takeiko Massuda seria o assassinato de um caminhoneiro brasileiro, conhecido como Nego, por um imigrante nipônico na noite de 30 de julho.

Segundo relatos descritos em Morais (2000, p.239), os brasileiros revoltados com a morte do compatriota pelas mãos de um membro da colônia japonesa teriam ameaçado Massuda que, em desafio, haveria dito: “[...] ‘Vingar o Nego por quê? Além de brasileiro, ele era preto. Por mim podia matar mais uns dez vagabundos desses que dava na mesma’ [...]”. A frase teria desencadeado a pancadaria e as tentativas de linchamento posteriores.

No processo de estudo do caso acima narrado, faz-se necessário discorrer sobre como se fundamenta, na ótica durkheimiana, a teoria sobre a ação da consciência coletiva oriunda da divisão do trabalho social e das suas solidariedades mecânica e orgânica, bem como a forma de aplicação da punição comandada por esta consciência, determinando, por fim, os “fatores de agravamento” (Durkheim, 2000) cuja atuação teria robustecido e encorajado as tentativas de linchamento que vitimaram os japoneses. A análise do caso seguirá por estes vieses.

3.2 Divisão do trabalho social, solidariedade e consciência

A sociedade, sob a ótica durkheimiana, exerce uma atração com variada intensidade sobre os sentimentos e as atividades dos indivíduos. Além disso, atua como um poder que os regula por meio de uma coerção exterior. Existe uma correlação entre o modo como se exerce essa ação reguladora e os comportamentos coletivos e individuais. Porém, esta correlação não é similar para todo agrupamento social, nem a influência que a sociedade exerce se expressa de maneira equânime sobre todo o ser humano.

As diferenças dependem do grau de divisão do trabalho social em determinada sociedade, o qual gera laços básicos que unem os indivíduos entre si e ao grupo. Tais ligações denominam-se solidariedade social. Durkheim (1999) dividiu-a em duas tipificações: “solidarité mécanique” e “solidarité organique”.

Para o sociólogo, a solidariedade é dita mecânica quando o indivíduo liga-se a sociedade por um conjunto de semelhanças com os demais afiliados ao grupo. É o tipo preponderante em agrupamentos sociais arcaicos e homogêneos, nos quais a divisão do trabalho social é, praticamente, inexistente. Durkheim (1999, p.106) escreve que a própria noção de indivíduo, em tais sociedades, é muito rudimentar e que existe, nestas coligações, “[...] um conjunto mais ou menos organizado de crenças e de sentimentos comuns a todos os membros”. Não se encontram nestes agrupamentos peculiaridades que distingam seus pares entre si e ocorre o predomínio dos anseios coletivos sobre os individuais.

Já a solidariedade chamada orgânica é caracterizada pela presença de um indivíduo que se integra ao grupo graças a sua especificidade. É o tipo presente, principalmente, em sociedades modernas e heterogêneas, cuja divisão do trabalho social adquire relevância.

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Para Durkheim o indivíduo “ [...] depende da sociedade, porque depende das partes que a compõe” (1999, p.106) e afirmam-se, nesses ajuntamentos, as preponderâncias da individualidade e da personalidade sobre os desejos coletivos.

De forma análoga, o sociólogo diferencia o tipo de consciência que permeia as ações do indivíduo e de todo o grupo. Porém, inicialmente, postula que existiria, no ser humano, uma única consciência. Esta consciência será chamada de total para se evitar confundi-la com suas sub-partes. Durkheim (1999, p.106) avalia esta consciência total como divisível e composta de “[...] duas consciências: uma comum a nós e ao nosso grupo inteiro e que [...] não é nós mesmos, mas a sociedade que vive e age em nós; [e] a outra que, ao contrário, só nos representa no que temos de pessoal e distinto, no que faz de nós um indivíduo”. As consciências denominam-se, respectivamente, “coletiva” ou “comum” e “individual”

A parcela de atuação destas sub-partes nas “maneiras de ser” ou “maneiras de agir” (Durkheim, 2002) está relacionada à divisão do trabalho social e à solidariedade reinante. Assim sendo, nas sociedades em que prevalece a solidariedade mecânica sobressai a consciência coletiva em detrimento da individual. Neste caso, a consciência total é, praticamente, composta apenas por sua parcela coletiva, que possui, inclusive, uma significativa correspondência com a consciência individual e se manifesta através de uma ação do indivíduo orientada pelo grupo, um controle social mais efetivo e maior rigor do castigo para aqueles que transgridem as normas.

O panorama se inverte nas sociedades com predominância da solidariedade do tipo orgânica. A consciência individual se sobressai em relação à comum o que leva o indivíduo a agir segundo suas preferências e em detrimento das opções do todo social. Ocorrem, nestes agrupamentos, uma interpretação difusa dos imperativos sociais e o enfraquecimento das reações às violações dos preceitos instituídos.Não obstante, faz sentido entender que Durkheim não impôs divisa nítida entre as consciências coletiva e individual quanto à sua esfera da ação, nem negou a possibilidade de que mesmo em sociedades nas quais predomine uma das solidariedades se encontre manifestação dominada pela consciência associada ao tipo oposto.

3.3 A punição pela coletividade

Durkheim (1999, p.51) define “[...] um ato é criminoso quando ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva”. O crime fere sentimentos presentes nas consciências de um mesmo tipo social. Caso isto não se configure, não estamos diante de um crime, mesmo que tenham sido infringidos regulamentos instituídos pela sociedade. Com a convicção de que um crime foi cometido — mesmo que o convencimento não tem origem numa apuração criteriosa — surge, compulsoriamente, a necessidade social de vingança. A “vingança [que] nada mais é [...] do que o instinto de conservação” do próprio grupo comandado pela atuação da consciência coletiva (DURKHEIM, 1999, p.58). O desagravo dar-se-á através da aplicação de uma determinada pena.

A pena “[...] consiste, pois, essencialmente, numa reação passional, de intensidade graduada, que a sociedade exerce por intermédio de um corpo constituído contra aqueles de seus membros que violaram certas regras de conduta” (DURKHEIM, 1999, p.68). Mas nem sempre, na história da humanidade, houve delegação total de competência ao corpo

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constituído como Poder Judiciário para imposição de penas. Nas sociedades primitivas esta atribuição pertencia, comumente, ao povo. Durkheim (1999) cita como exemplos, o Império Romano e a cidade-estado de Atenas, como sociedades nas quais o Direito repressivo emanava diretamente da vontade popular.

Da mesma forma, a graduação da intensidade da pena nem sempre foi de intensidade proporcional ao crime cometido. Sobre tal afirmação escreve Durkheim (1999, p.57), que “[...] os povos primitivos punem por punir, fazem o culpado sofrer unicamente para fazê-lo sofrer e sem esperar, para si, nenhuma vantagem do sofrimento que lhe impõem. Prova-o o fato de não procurarem punir de maneira justa ou útil, mas apenas punir”.

É de se esperar, portanto, que ocorram situações, mesmo em sociedades modernas, nas quais o povo assuma para si a aplicação das penas contra crimes que afrontem, fragorosamente, a consciência coletiva, e que a resposta a estes crimes seja brutal. Daí a presença dos casos de linchamento mesmo em pleno século XXI.

Para Cerqueira e Noronha (2004), os linchamentos são crimes cometidos por cidadãos em estado de multidão, contra uma pessoa ou grupos menores que romperam uma norma social pré-estabelecida. São ações que visam restabelecer a ordem perdida. O castigo se inicia com intuito de restaurar a ordem, mas uma vez deflagrada a punição, por meio do linchamento, por exemplo, nem sempre é possível restringi-la a um único condenado.

Para Durkheim (1999, p.57), ainda “[...] que a pena seja aplicada apenas a pessoas, muitas vezes ela vai bem além do culpado e atinge inocentes, sua mulher, seus filhos, seus vizinhos, etc. Porque a paixão, que é a alma da pena, só se detém uma vez esgotada”. As tentativas de linchamento coletivo em Osvaldo Cruz enquadrar-se-iam nesta afirmação durkheimiana de uma demanda de violência punitiva gerada por um crime que ofendeu frontalmente a consciência coletiva dos membros da sociedade osvaldo-cruzense.

Mas será que a selvageria ocorrida poderia ter sido originada apenas pelo homicídio de um caminhoneiro pelas mãos de um imigrante na noite de 30 de julho? Ou ainda, pela resposta desafiadora de um japonês a um grupo de brasileiros? O que poderia dar sentido a um amanhecer no qual, segundo Morais (2000, p.241), “[...] pacatos pais de família pareciam ter despertado com o diabo no corpo [...]”.

Acredito que as possíveis respostas poderão ser inferidas pelo exame de antecedentes históricos, aparentemente, alheios ao episódio, os quais poderiam ter atuado como fatores de agravamento para o acirramento de ânimos entre brasileiros e imigrantes japoneses. O somatório destes fatores teria criado o ambiente propício a penalização coletiva, ora descrita.

3.4 Fatores de agravamento: antecedentes

A predisposição contra a imigração japonesa no Brasil parece ter sido um fenômeno presente, mesmo antes da atracação do Kasato Maru no Porto de Santos. Nucci registra que “[...] discussões parlamentares, os pareceres de diplomatas e da imprensa indicavam já no final do século XIX, uma série de preconceitos contra asiáticos e seu futuro no país” (2000, p.37).

Com o passar dos anos, firmou-se no imaginário nacional a tese do perigo

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amarelo[2] advogada por diversos políticos e intelectuais, a exemplo do senador Miguel Couto Filho (1900-1969) e do sociólogo Francisco José Oliveira Vianna (1883-1951). A adesão do governo imperial japonês ao eixo militar nazi-fascista, na II Guerra Mundial, dará formas a uma campanha racista e antinipônica no país e robustecerá a idéia do povo japonês como uma ameaça em potencial.

Tem-se notícia de que existia entre 1930 e 1940, no meio científico e acadêmico, a sensação de o japonês não seria facilmente assimilado à cultura brasileira. Oliveira Vianna chega a publicar um livro chamado Raça e Assimilação (1932). Tal corrente, segundo Nucci (2000, p.40), “[...] estava preocupada em desqualificar a mestiçagem com aqueles considerados muitos diferentes, e preocupada com a entrada de contingentes não-eugênicos e inassimiláveis, como os japoneses”.

Esta percepção foi aguçada com o surgimento, em 1946-47, da seita fundamentalista nipônica denominada Shindo Renmei, a qual pregava o Yamatodamashii, uma doutrina própria ao espírito nipônico. A crença é composta de uma série de conceitos inspirados na tradição milenar japonesa. Curiosamente, pregava a lealdade cega ao Imperador japonês Hiroíto e que se manifestava, por exemplo, na adoção pela colônia no Brasil, unicamente, do idioma natal. A doutrina atribuía como falsas as notícias sobre a derrota do Japão na guerra e incentivava os membros da colônia nipo-brasileira a eliminar os demais imigrantes japoneses que aceitavam como real a rendição japonesa aos países aliados e o término do conflito mundial.

A Shindo cometeu diversos atentados nos estado de São Paulo e Paraná, tendo assassinado 23 pessoas e ferido outras 147. A cidade de Osvaldo Cruz esteve no mapa das ações protagonizadas pela seita, em julho de 1946, apenas cerca de uma semana antes do episódio do linchamento.

Seriam esses os fatores de agravamento elencados, os quais poderiam ter agido nos sentido de fortalecer a esfera de atuação da consciência coletiva sobre os membros da sociedade osvaldo-cruzense e propiciar as condições ideais para mobilizá-la contra a colônia japonesa.

Os antecedentes como a ação da Shindo, a doutrina do perigo amarelo ou o crime cometido em 30 de julho teriam fornecido as condições para o início da deflagração do linchamento da colônia japonesa na cidade. Porém, nada disso justificaria tanta brutalidade como as do dia 31 de julho. Então, qual o sentido dessa violência? A tentativa de entendê-la não consola, mas se poderia dizer, amparado por Durkheim, que foi uma punição passional e desproporcional deflagrada pela consciência coletiva arcaica dos osvaldo-cruzenses.

4 – Conclusão

Em 1946, a cidade de Osvaldo Cruz e a sociedade por ela abarcada possuíam diversas características de um conjunto social na qual prevaleceria a solidariedade mecânica. Comunidade pequena, com poucos habitantes, sendo a maioria ligada às atividades rurais, o que não proporcionaria uma significativa divisão do trabalho social.

Neste cenário, os indivíduos se assemelhariam uns aos outros, e não haveria diferenças claras entre eles. A única distinção patente diria respeito às duas comunidades étnicas locais: a brasileira e a japonesa.

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Esta diferença, nutrida por uma série de antecedentes históricos como: a predisposição contra a imigração japonesa no Brasil; a campanha racista e antinipônica baseada na tese do perigo amarelo; a entrada do Japão na II Guerra Mundial; e as ações dolosas da Shindo Renmei, por todo o Estado de São Paulo, inclusive em Osvaldo Cruz, acabariam por tornar dicotômicas as relações entre ambas comunidades, e abririam espaço para a fixação na consciência coletiva dos brasileiros que a parcela japonesa seria potencialmente ameaçadora. Já estariam prontas, portanto, as bases para uma reação violenta dos brasileiros da cidade. A morte criminosa do caminhoneiro, em 30 de julho, e a malfada resposta de Takeiko Massuda ao grupo de osvaldo-cruzenses que tomava o desjejum em seu bar, no dia seguinte, apenas teriam atuado como deflagradores de um processo maturado nas consciências dos membros nacionais da sociedade local.

Todos os fatos posteriores, aí inclusas as tentativas de linchamento, seriam revides autodefensivos de uma consciência coletiva que se sentia ameaçada pelo crime que a afrontara de maneira vigorosa.

O assassínio de um brasileiro por um oriental teria suscitado a aplicação de uma pena, que além de ser motivada pela vingança, seria injusta e desproporcional, visto que se estendera a toda comunidade japonesa de Osvaldo Cruz. A pena somente teria findado quando cessada o entusiasmo que a conduziu. No caso da cidade do interior paulista, após cerca de 17 horas consecutivas de ferocidade e baderna. Por outro lado, o rescaldo dos eventos daquele 31 de julho parece ter alcançado uma dimensão maior, pois é sentido até hoje na comunidade osvaldo-cruzense.

Neste ano, em que se comemora o centenário da imigração japonesa no Brasil e celebra-se a união entre dois povos tão distintos, faz-se mister rememorar episódios como os de Osvaldo Cruz que, apesar de trazerem desagradáveis lembranças, podem atuar em desfavor de possíveis manifestações de intolerância racial em território brasileiro. Talvez a lição que se retire do fatídico dia e também de todo o processo de assimilação da colônia japonesa no país, seja, que a maior fortuna do Brasil estaria associada a sua diversidade étnica e cultural. Esta riqueza necessitaria ser, permanentemente, cultuada e preservada.

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[1] Para aprofundamento ver: Os yonseis. Na geração dos bisnetos dos imigrantes, os olhos são cada vez mais redondos: 61% têm pelo menos um ascendente não-japonês.[2] A expressão “perigo amarelo”, em japonês kôkaron, teria sido cunhada, segundo Dezem (2008), pelo Kaiser Guilherme II, da Alemanha, ao advertir os russos sobre a expansão japonesa na Ásia.

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A REDEMOCRATIZAÇÃO NO BRASIL À LUZ DO PENSAMENTO DE CAIO PRADO JR.: REFORMA AGRÁRIA E CIDADANIA

COMO EIXOS DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Vitor Leal SantanaGraduando em Ciência Política

Instituto de Ciência Política – Universidade de Brasília (UnB)Bolsista de Iniciação Científica – CNPq (PIC-UnB)

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o processo de redemocratização no país à luz do pensamento de Caio Prado Jr. Tal transição foi observada a partir de dois aspectos tidos como fundamentais na obra desse autor e considerados os principais pontos de seu programa político: a questão agrária e a cidadania. A solução dessas questões é considerada a base para qualquer transformação profunda na estrutura social e econômica brasileira, e tiveram na Constituinte em 1987 condições objetivas para consolidação. A cidadania universal foi garantida formalmente, mas a reforma agrária foi ignorada, sendo discutida apenas residualmente.Palavras-chave: Caio Prado Jr; cidadania; Reforma Agrária.

Abstract: The purpose of this article is analyzing our process of democratization based on Caio Prado Jr’s thinking. This transition was observed by two aspects considered the core of his work and the main points of his political program: the agrarian question and the citizenship. The solution of both questions is considered the base for any deep transformation in the social and economic structure, and had sufficient conditions for consolidation in 1987. The universal citizenship was formally guaranteed, but the agrarian reform was ignored, being discussed only residually.Keywords: Caio Prado Jr; citizenship; Agrarian Reform.

Introdução

Entender o Brasil, e as peculiaridades inerentes à sua organização social, se tornou o principal objetivo de intelectuais entre fins do século XIX e meados do século XX. Preocupados em oferecer uma interpretação original sobre desenvolvimento histórico do país, Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior, cada um a seu modo e movidos por distintas perspectivas teóricas e ideológicas, elaboraram importantes trabalhos sobre nossa evolução econômica e política. Suas idéias representam ainda hoje o cerne do pensamento social, o aparato conceitual de nossa identidade nacional.Caio Prado Jr. nos oferece uma visão singular desse desenvolvimento, superando adaptações desconexas até então prevalecentes nos estudos sobre a história econômica do país. A análise desse autor, baseada no materialismo dialético, entende a evolução do país não como determinada e acabada, mas fazendo parte de um processo histórico contínuo e dinâmico, que culminaria, mais cedo ou mais tarde em uma mudança estrutural profunda. É uma clássica investigação marxista.

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A tentativa de compreender o Brasil, propondo ao mesmo tempo um projeto de nação, se mostrou uma empreitada grandiosa a partir do momento em que Caio Prado Jr percebeu a dimensão do processo. Como entender a lógica de nossa evolução histórica sem atentar para uma organização social que teria advindo de Portugal ou sem avaliar o “sentido” da nossa colonização? Nesse sentido, Caio Prado Jr analisa a transição política do país em meados do século XIX, apresentando aspectos sociais que teriam sido fundamentais para a organização posterior do Estado brasileiro.

A respeito de a independência política ter se tornado ponto nevrálgico do processo de nossa formação política e também de nossa identificação como nação, Caio Prado Jr destaca a necessidade de colocar em evidência os fatores e processos que viabilizaram continuidades. Assim, pensar o momento político da transição democrática recente à luz dos eixos caiopradianos é fundamentalmente pensar o país sob uma base infra-estrutural que se reproduz, e que, justamente devido à sua inconsistência e incoerência, necessita de transformações substanciais.

Definitivamente, a transição para a redemocratização no final da década de 1980 não se caracterizou por profundas transformações sociais e não se constituiu totalmente, citando Prado Jr a “expressão da conjuntura econômica, social e política [daquele] momento, em que [foram reveladas] as questões pendentes e as soluções possíveis para as quais essas questões apontavam” (1999, p.21). A conservação do status quo do sistema prevaleceu sobre mudanças mais radicais na estrutura social, mudanças essas que foram apenas marginais. As instituições políticas foram democratizadas, mas a má distribuição de renda e de terras continua refletindo elevados níveis de pobreza. A “modernização” política do Brasil ainda se processa em meio a elementos que se conservam inertes na ordem social e econômica.

O objetivo deste trabalho é justamente analisar o processo de redemocratização no país à luz do pensamento de Caio Prado Jr. Tal transição será observada a partir da conformação de dois aspectos fundamentais na obra desse autor, tidos como interdependentes no alcance e nos resultados e considerados por Bernardo Ricupero (2000) os principais pontos de seu programa político: a questão agrária e a cidadania dos trabalhadores livres.

Na primeira parte, é esboçado o processo histórico de organização social do país, aspecto fundamental para entendimento da lógica do desenvolvimento nacional. Em seguida será debatida a consolidação dos valores da cidadania na Constituinte de 1987, a partir das condições socioeconômicas atuais da população. A terceira parte discute a importância da reforma agrária a partir das idéias de Caio Prado Jr, tendo como base seu conceito de “revolução”. Por fim, será analisado de que forma essas questões poderiam se tornar eixos de transformação social, tal como proposto por Caio Prado Jr.A organização social e política em perspectiva histórica.

Ao longo dos séculos, desde a colonização, o país tem se organizado de forma a garantir a manutenção de instituições conservadoras, que possibilitam a continuidade de um processo de desenvolvimento peculiar. A estrutura social do país ainda se assenta nas bases materiais constituintes das relações de poder na sociedade brasileira. O sentido de nossa condição atual, conforme nos coloca Caio Prado Jr., advém principalmente de um

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“... passado que parece longínquo, mas que ainda nos cerca de todos os lados” (1976, p.13). Elisa Reis (1982), baseada em estudo de Barrington Moore sobre o papel das elites agrárias na constituição de um padrão de modernização nacional, buscou analisar as estruturas de poder que conformaram nosso processo de desenvolvimento. De acordo com essa autora, para entender as transformações políticas e econômicas aqui ocorridas, seria importante compreender a lógica do “mudar conservando as estruturas sociais básicas” (REIS, p.340).

A interação dinâmica entre os interesses sociais concretos e o processo de state-building seria a chave para se compreender de que forma os setores agrários e industriais dominantes conseguiram impor seus interesses específicos como interesses da nação como um todo ao longo do processo histórico de desenvolvimento da nação.A formação do capitalismo no Brasil não teria realizado uma ruptura radical com a ordem anterior, triunfando uma forma de capitalismo que não era o liberal, e que mantinha a estrutura de poder intacta. Segundo Reis, “apesar das grandes transformações sociais, o lugar das elites agrárias, [e depois as industriais], na coalizão de poder foi sempre preservado” (1982, p.344). A explicação de Elisa Reis permite entender boa parte do momento político e da organização econômica descritos por Caio Prado Jr.

A base para o estudo do pensamento caiopradiano se funda na noção da lógica da continuidade histórica, que tem possibilitado a manutenção de estruturas seculares de dominação. De acordo com Ricupero, Caio Prado Jr mostra “... o que é comum a toda nossa formação econômico-social, [que seria] o convívio entre situações características de tempos históricos, e o que é específico à nossa formação econômico-social, o caráter particularmente contrastante que assume esse convívio no Brasil” (2000, p.173).

A emancipação política do país em 1822 teria sido resultado de seu desenvolvimento econômico, incompatível com o regime de colônia que o subordinava e que, por conseguinte, sob sua pressão, tinha que ceder. De acordo com Caio Prado Jr, “Foi a superestrutura política do Brasil-Colônia que, já não correspondendo ao estado das forças produtivas e à infra-estrutura econômica do país, se rompe para dar lugar a outras formas mais adequadas, às novas condições econômicas e capazes de conter a revolução” (1999: p.51-52). A transição em 1822 teria se dado de forma a preservar uma configuração de poder que estava ameaçada pela organização econômica e que se encontrava em reestruturação após o fim do tráfico de escravos.

Por outro lado, a transição política recente e a constituição de um regime liberal e democrático se tornaram possíveis devido ao enfraquecimento do regime autoritário, resultado, dentre outros fatores, do surgimento de novas demanda sociais e políticas, que possibilitaram a comunhão de interesses das forças populares e das classes dominantes.

Caio Prado Jr pensou o Brasil a partir de uma estrutura populacional predominantemente rural, com uma forte economia agrária e com a industrialização ainda em gestação. Apesar disso, acredito não ser um anacronismo analisar nossa condição atual sob a perspectiva histórica do desenvolvimento nacional, desenvolvimento esse que foi estruturado sob uma lógica particular de dominação. Como nos coloca José Carlos Reis, “Ir ao passado é obter informações indispensáveis para a interpretação e compreensão do que se vive hoje” (1999, p.14)

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Assim, entender o processo de “ruptura” com a ordem anterior e a consolidação democrática sob novos eixos demandaria entender a condição social e econômica dos trabalhadores – principalmente rurais, as desigualdades sociais e, de modo fundamental, a questão da distribuição de terras no Brasil. Tais elementos, segundo Caio Prado Jr (1999), estariam profundamente arraigados na forma de distribuição do poder, distribuição essa que foi constituída historicamente sem que nenhuma ruptura mais profunda tenha sido realizada.

O problema político de questões tais como a cidadania e a reforma agrária dizem respeito à própria organização das relações de poder no país. Tal como o poder das câmaras municipais do início da colonização era o poder dos grandes proprietários rurais, da elite agrária do início de nossa história política (BICALHO, 1998), na Constituinte de 1987 atuava um Parlamento dominado não mais pelas elites agrárias exclusivamente, mas por elites econômicas que representavam e ainda representam a diversidade de interesses das classes dominantes na sociedade brasileira.

Naquele momento, a base social do poder político, apesar de dotada de diversos canais de representatividade, não permitiu que mudanças mais radicais na ordem social e econômica fossem realizadas. As regras do jogo impediram que manifestações mais radicais tivessem sido convertidas em políticas viáveis. Ainda hoje, a permanência de grupos específicos detentores do poder econômico mantém uma coalizão de poder que perpetua formas de dependência e de subdesenvolvimento peculiares. Como nos mostra a tabela 1, a Constituinte de 1987 tinha um terço de empresários entre seus membros, número suficiente para barrar ou alterar significativamente qualquer reforma estrutural mais profunda.[1] Essa configuração de poder revela uma condição limitada para que, no curto prazo, “revoluções” sociais, no sentido caiopradiano, sejam efetivadas na sociedade brasileira.

Tabela 1: Profissões/Ocupações no Total da Constituinte (1987)*Profissões/Ocupações % (Deputados Federais)

Profissões liberais e intelectuais** 40%

Empresários (todos os tipos) 32%

Administração pública 12%

Professores 6 %

"Comunicadores" 4%

Trabalhadores industriais e lavradores 3%

Outras situações 3%

Total 100%* Informações obtidas de RODRIGUES (1987).** Advogados, médicos, engenheiros ou comerciantes.

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Segundo Caio Prado Jr., “Uma constituição é sempre a tradução do equilíbrio político de uma sociedade em normas jurídicas fundamentais. Ela reflete as condições políticas reinantes, isto é, os interesses da classe que domina e a forma pela qual exerce o seu domínio.” (1999, p.53). Dessa forma, o predomínio das forças conservadoras na Assembléia Constituinte e a continuidade dessa configuração contribuíram para a manutenção das condições de desigualdade social e econômica. Para as forças populares radicais faltavam, no processo de redemocratização, condições políticas objetivas para a realização de uma mudança estrutural mais profunda.

Em toda sua obra, Caio Prado Jr tentou mostrar que a esquerda radical, com a qual não se identificava, falhava ao assumir um caráter político vago e abstrato, que muitas vezes colocava em cheque a credibilidade de seu programa político. A “revolução” na estrutura social brasileira, segundo ele, só seria possível a partir da análise de fatos e condições concretas, inerentes ao processo de desenvolvimento histórico do país. A garantia da cidadania aos trabalhadores seria a primeira dessas condições, e será analisada principalmente a partir de dados socioeconômicos que permitem avaliar sua conformação na sociedade como um todo.A questão da cidadania

De acordo com Caio Prado Jr, a independência teria sido feita praticamente à revelia do povo, o que teria significado seu afastamento por completo da participação na nova ordem política. A transição política em 1822 teria sido fruto muito mais de uma classe do que da nação tomada em conjunto (PRADO JR, 1999, p.52-53). As forças populares em 1988, assim como em 1822, enxergavam na Constituição que lhes era oferecida perspectivas de libertação econômica e social. Analisando o contexto da independência, em 1822, Caio Prado Júnior coloca que com relação à população livre das camadas médias e inferiores, “... não atuavam sobre ela fatores capazes de lhe dar coesão social e possibilidades de uma eficiente atuação política. Havia nela a maior disparidade de interesses, e mais do que classes nitidamente constituídas, formavam antes simples aglomerados de indivíduos” (1999, p.67).

Em 1988, a participação da sociedade civil (e não o povo) na arena legislativa (e mesmo antes, com as Diretas Já) foi importante, pressionando para que alguns direitos e garantias fundamentais fossem incluídos na agenda de votação da Constituinte. Embora os interesses corporativistas tenham prevalecido, nota-se que a Carta Política de 1988 foi a mais abrangente em termos de garantias sociais, colocando sob bases legais a igualdade de direitos exigida ao longo de toda história brasileira. Mas, para que essa cidadania se traduza em valor prático ainda é preciso garantir o acesso de grande parte da população aos direitos sociais formalmente constituídos.

Caio Prado Jr. atenta frequentemente para a necessidade de uma democratização cada vez maior e mais abrangente. A democracia é vista por ele como “... o conjunto de práticas através das quais se torna possível ao povo em geral adquirir consciência de seus problemas e necessidades, formar opinião, resolver e finalmente fazer com que essa opinião seja levada em conta na administração pública do país” (RICUPERO, 2000, p.219). Nesse sentido, talvez tenhamos ainda um longo caminho a percorrer. O povo em geral adquiriu as condições básicas para a participação política, seja elegendo seus representantes, seja atuando ativamente por meio de plebiscito ou referendo popular. Mas, ainda assim apresenta uma estrutura social extremamente desigual, que é reflexo das condições

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precárias de serviços públicos fundamentais.Hoje a legislação busca a igualdade em termos dos direitos formais, mas a

informalidade das desigualdades socioeconômicas ainda permite que aproximadamente 33% da população sobrevivam na pobreza e que 8% estejam na indigência. Em 1988, quando se discutia as bases legais da constituição da nação brasileira, aproximadamente 44% da população estavam em condição de pobreza e mais de 17% eram indigentes.

A melhoria das condições dos trabalhadores livres afirmada por Caio Prado Jr. deveria vir principalmente no sentido de oferecer maior possibilidade de desenvolvimento social para os pequenos agricultores e camponeses.

Tabela 2: Pobreza e indigência no Brasil Brasil e Estratos Pobres Indigentes

Ano 1992 2004 1992 2004

Urbano 40,2 29,5 13,9 6,6

Rural 52,7 35,4 30,5 13,3

Brasil 44,0 33,2 16,6 8,0Fonte: Informações obtidas de ROCHA (2006), a partir dos dados do IBGE, microdados do PNAD de 2004.

O projeto de Caio Prado Jr se baseava em uma proposta de extensão da cidadania que garantisse um acesso igual aos bens e serviços oferecidos pelo poder público. Assim, o que defende é “... a melhoria das condições de vida do trabalhador [abrindo] um caminho para a superação definitiva da situação colonial e transformação do Brasil em Nação integrada” (RICUPERO, 2000, p.222). Nesse cenário, as forças de esquerda teriam o importante papel de orientar as massas populares na transformação do país, dotando o conjunto da população do acesso a valores e práticas democráticas fundamentais.

O desenvolvimento econômico do país passaria necessariamente pela melhoria de condições da economia interna, que deveria se integrar em um todo menos desigual e mais sustentável. Nesse ponto, entramos na questão da distribuição de terra no país, o aspecto mais profundo do legado deixado pela colonização.

A questão agrária e as condições políticas para reformas estruturais

A questão agrária é, sem dúvida, o principal ponto da discussão do autor. Para que seja possível uma “revolução” social no país, seria necessária uma distribuição de terras que permitisse a consolidação de uma economia basicamente nacional, livre das amarras do capital estrangeiro. Nesse sentido, a reforma agrária seria a principal reforma estrutural a ser realizada, uma vez que trata de um problema cujas origens residem no caráter da colonização aqui realizada, sustentada por uma economia agrária e fortemente vinculada à posse fundiária (PRADO JR, 1999, p.14).

A reforma agrária, segundo Caio Prado Jr, deveria “... fazer com que a utilização de terra no Brasil se [realizasse] em benefício principalmente daqueles que nela trabalham”

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(1981, p.81). Somente com tal reforma seria possível mudar o sentido dado à nossa economia pela colonização. Economia meramente exportadora de matérias primas e cujas decisões estão centralizadas nas mãos dos grandes proprietários. Como nos coloca Ricupero, “ao longo [de] quatro séculos de nossa história, não se rompeu definitivamente com o sentido dado... [pela colonização], fazendo com que o país continue a estar voltado para a produção de gêneros de grande procura no mercado internacional” (2000, p.175).

Dada essa condição, é importante que se tenha em mente o conceito de “revolução” apresentado na obra A Revolução Brasileira, publicada logo após o golpe militar de 1964. Para Caio Prado Jr.:

“Revolução em seu sentido real e profundo, significa o processo histórico assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas, que, concentradas em um período histórico relativamente curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade, e em especial das relações econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes e categorias sociais” (1999, p.11).

Na segunda metade do século XX, de acordo com Caio Prado Jr, o Brasil se encontrava no limiar de tais transformações, dada à desconexão entre a situação social e econômica e suas instituições básicas. Mas, o que se verifica daí em diante é a manutenção de práticas e instituições seculares que ainda sustentariam uma estrutura social bastante desigual.

Luiz Werneck Vianna (1996), retomando um debate colocado por Caio Prado, mas sem citá-lo, afirma que no Brasil nunca houve de fato uma revolução. A lógica do mudar conservando caracterizaria o país como o lugar por excelência de “revoluções passivas”. Vianna, após analisar toda a transformação histórica do Estado brasileiro, afirma que:

“A transição política do autoritarismo à democracia reabre, em condições novas, a agenda da revolução passiva: em primeiro lugar, porque as elites políticas do territorialismo foram afastadas do controle do Estado, tendo sido sucedidas por uma coalizão de forças cada vez mais orientada por valores de mercado e pelo projeto de ‘normalização’ da ordem burguesa no país...; em segundo, porque o seu ‘fermento’ não está mais no liberalismo, nem na questão social, como no momento da incorporação dos trabalhadores ao mundo dos direitos sociais sob a ação tuteladora e organizadora do Estado. O fermento é a democracia, tal como se manifesta no processo de massificação da cidadania, ora em curso, cuja expressão paradigmática se indica no movimento dos trabalhadores sem-terra, em razão da singularidade de suas demandas sociais: porque o seu objeto é a terra – um bem de natureza política –, cada avanço seu na agenda da democratização social tem incidido positivamente no avanço da democracia política, inclusive porque leva ao isolamento os setores mais retrógrados das elites, cuja sustentação política tradicionalmente derivou do exclusivo agrário” (1996, p.8).

A reestruturação da vida econômica e social no Brasil deveria vir por meio da elaboração de novas formas em que se assentassem definitivamente as instituições

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democráticas e republicanas. Caio Prado Jr, possuía como objetivo a construção de um socialismo pautado por uma revolução nacional e democrática. Essa transformação deveria vir com uma reforma gradual do capitalismo existente no país sob moldes democráticos. Na Constituinte, entretanto, não havia condições políticas concretas que tornasse possível a realização de reformas estruturais tal como proposto por Caio Prado Jr. A pobreza, a desigualdade social e a distribuição de terras, ainda continuam como problemas marginais na agenda política do país.

As forças de esquerda, que segundo Caio Prado Jr deveriam guiar o país para um modelo de desenvolvimento econômico nacional e autônomo, se encontravam (e se encontram) desgastadas e com pouca capacidade de articulação e de representação política. No Congresso Nacional, predominava uma composição social tradicionalmente conservadora e cujas categorias não tinham motivação para a realização de mudanças profundas na ordem social.

A esquerda radical, apesar de ser amplamente favorável à proposta de reforma agrária mais radical, não possuía força política para levar adiante suas propostas. O cenário político não possibilitava a rejeição completa das contradições presentes na conjuntura econômica brasileira. Como coloca Maria D´Alva Kinzo: “... dado o contexto social e político no qual se processou a reconstitucionalização do país, o novo estava fadado a conviver com o velho” (2001, p.8).

Tabela 3: Posição sobre a reforma agrária por ideologia partidária.Posição sobre a reforma agrária

Centro-direita Centro Centro-

esquerdaEsquerda radical

Total

Contrários 3 (13) 12 (8) 1 (1) 0 (0) 16 (4)

Reforma apenas em terras improdutivas 18 (78) 128 (85) 124 (58) 1 (5) 271 (66)

A favor de uma reforma radical 2 (9) 11 (7) 88 (41) 21 (95) 122 (30)

Total 23 (6) 151 (37) 214 (52) 22 (5) 410 (100)Fonte: Dados retirados de RODRIGUES (1987). Obs.: Porcentagem com relação ao grupo está entre parênteses.

Os problemas estruturais ainda estão mal resolvidos. A questão agrária permaneceu e tem permanecido quase intocada. Complementando com as palavras de Kinzo, “Como de resto tem ocorrido em outros momentos de nossa história, a redemocratização que se iniciou com a restauração do governo civil não foi produto de uma ruptura com a antiga ordem” (2001, p.8). Permanecem latentes na história social e política do Brasil as estruturas de poder que mantém um retrato inaceitável de desigualdade socioeconômica.

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Considerações finais

Os nexos com o passado colonial ainda podem ser percebidos em diversos aspectos contemporâneos de nossa sociedade. A cidadania incompleta e a manutenção de uma estrutura agrária que mina o desenvolvimento da economia interna constituem ainda problemas de difícil resolução. Nossa experiência particularmente complexa impõe condições específicas para a realização de mudanças substanciais. Segundo Caio Prado Jr, “A teoria da revolução brasileira, para ser algo efetivamente prático na condução dos fatos, [deveria ser] simplesmente – mas não simplisticamente – a interpretação da conjuntura presente e do processo histórico de que resulta” (1999, p.19).

As soluções deveriam ser baseadas no próprio contexto dos problemas e na dinâmica do processo em que essa problemática se propõe. E que tipo de revolução deveria ser efetuada? Segundo Caio Prado Jr, “A qualificação a ser dada a uma revolução somente é possível depois de determinados os fatos que a constituem, isto é, depois de fixadas as reformas e transformações cabíveis e que se verificarão no curso da mesma revolução” (1999, p.15). Desenvolvimento, modernização e progresso, conjugados com emancipação e autonomia nacional, seriam partes da utopia presente no pensamento caiopradiano, e que não encontram precedentes na historiografia brasileira.

O processo de desenvolvimento do país é uma totalidade histórica que não experimentou rupturas. Dessa forma, a revolução a ser realizada só seria possível após a análise e interpretação de toda conjuntura real e concreta, procurando nela sua dinâmica própria e que revelará tanto as contradições presentes, como igualmente as soluções que nela se encontram imanentes e que não precisariam ser trazidas de fora do processo histórico. É preciso, como coloca diversas vezes o autor, olhar o passado, reinterpretando-o para assim reconstruir o futuro.

Os valores da cidadania foram universalizados. Mesmo que não tenham sido distribuídos a todas as categorias sociais, eles estão formalmente presentes na Constituição. A reforma agrária, porém, ainda exige uma maior ação política para que possa efetivar mudanças mais profundas na estrutura econômica do país.

Condições objetivas para a “revolução” foram dadas por Caio Prado Jr ainda na década de 1960, mas os caminhos para sua realização ainda estão distantes de nossa realidade. De acordo com Bernardo Ricupero, Caio Prado Jr “[...] mostra que uma das principais contradições brasileiras, senão a maior, é a existente entre a organização jurídico-política e a estrutura econômico-social do país” (1999, p.165). Em 1988, assim como em 1822, foi garantida a manutenção de instituições liberais, conjugando-as com as instituições políticas democráticas, sem, entretanto, garantir um modelo de desenvolvimento econômico capaz de proporcionar uma redução significativa dos níveis de pobreza e desigualdade social.

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Bibliografia

BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Municipais no Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História, vol.18, n.36, 1998.KINZO, Maria D´Alva. A Democratização Brasileira: um balanço do processo político desde a transição. São Paulo em Perspectiva, vol.15, n.4, 2001.PRADO JR., Caio. A Revolução Brasileira, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1999._________. Evolução política do Brasil, São Paulo: Ed. Brasiliense, 1999._________. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1976._________. A Questão Agrária no Brasil. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1981.REIS, Elisa. Elites agrárias, ‘state-building’ e autoritarismo. Dados – Revista de Ciências Sociais, n.3, 1982.REIS, José Carlos. Anos 1960: Caio Prado Jr. e "A Revolução brasileira". Revista Brasileira de História, vol.19, n.37. São Paulo, 1999. RICUPERO, Bernardo. Caio Prado Jr. e a Nacionalização do Marxismo no Brasil. São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP; FAPESP; Editora 34, 2000.ROCHA, Sonia (2006). Pobreza e indigência no Brasil – algumas evidências empíricas com base na PNAD 2004. Nova Economia, Belo Horizonte, vol.16, n.2, 2006.RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é Quem na Constituinte: uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: OESP-Maltese, 1987.VIANNA, Luiz Werneck. Caminhos e Descaminhos da Revolução Passiva à Brasileira. Dados – Revista de Ciências Sociais, vol.39, n.3, 1996.

1] As emendas constitucionais, por exemplo, para serem aprovadas, exigem um quórum de três quintos dos parlamentares favoráveis ao projeto.

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ENSINO, DISCURSO E SEUS EFEITOS: REPERCUSSÕES INCONSCIENTES

Waldivia Maria de Jesus

Doutoranda em Letras – PUC – SP

RESUMO: Este artigo propõe refletir acerca do processo de ensino/aprendizagem, com foco no poder simbólico que envolve o discurso do educador, e a importância desse discurso para estabelecer laços de confiança entre educador e educando. Neste contexto, reflete-se sobre a qualidade da formação desses laços e seus reflexos no processo de ensino/aprendizagem. Para elucidar fatos acerca dessas questões, analisa-se o caso de um garoto, 9 anos de idade, 3º ano do Ciclo I, considerando suas vicissitudes e impasses. Esses estudos são conduzidos sob a ótica da Psicanálise. Freud (1900), Kupffer (1995), Lajonquière (2002) e Levin (1997).Palavras-chave: Ensino, discurso, aprendizagem

ABSTRACT: This article proposes reflect on the process of teaching / learning, with a focus on the symbolic power that surrounding the educator’s speech and the importance of this speech to establish bonds of trust between student and educator. In this context, it’s reflects on the quality of training of those ties and their effect on the process of teaching / learning. To elucidate facts about such issues, analyzes the case of a boy, 9 years old, 3rd year of the cycle I, considering its moments and deadlocks. These studies are conducted from the view of Psychoanalysis. Freud (1900), Kupfer (1995), Lajonquère (2002) and Levin (1997). Key words: education, speech, learning

Introdução

O interesse pelo tema decorre de nossa formação e atuação como professores de língua materna, que vivenciam problemas de aprendizagem em sala de aula; e buscam suporte teórico em outras áreas de conhecimento como a Psicanálise e a Psicopedagogia, com o intuito de compreender o sujeito, suas vicissitudes e impasses. Com isso, temos o intuito de incorporar esses conhecimentos às práticas pedagógicas, como um instrumento a mais, para orientar os educandos com maior discernimento e segurança.

As reflexões acerca do processo de ensino/aprendizagem centram-se no poder simbólico que envolve o discurso do educador, observando sua importância para estabelecer laços de confiança entre educador e educando. Neste contexto, Considera-se o fato de que a qualidade da formação desses laços pode influir tanto o processo quanto os resultados do ensino/aprendizagem; uma vez que quando esses laços são rompidos o educando tende a questionar o poder que ele investira no educador, contribuindo, assim, para o esvaziamento simbólico de sua figura e de seu discurso. O esvaziamento simbólico da figura do sujeito do suposto saber (o educador) tem repercussões no inconsciente da criança, uma vez que seu discurso deixa de fazer sentido para ela e, não fazendo sentido, não contribui para que aprendizagem se realize. Essa

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situação não é irreversível, mas é difícil contorná-la dada à impossibilidade de termos a dimensão do inconsciente, ou o controle sobre ele.

Mas, embora não tenhamos controle sobre o inconsciente, é possível levantar hipóteses acerca das causas que contribuem para os bloqueios emocionais da criança e, a partir das hipóteses, buscar caminhos para reorientar a criança e o processo de aprendizagem. Nesse sentido, pode-se supor que a criança saiba, inconscientemente, que aquela figura a qual ela investira de poder duvida de seu potencial de aprender. Pode-se supor, também, que a criança tenha alguns conhecimentos, mas não demonstra para alguém em quem ela deixara de confiar.

Nesse processo, deve-se considerar, também, as causas relativas aos fatores externos que influenciam o processo de esvaziamento simbólico tanto da figura quanto do discurso do educador, influindo, da mesma maneira, o processo de ensino/aprendizagem; pois, o fato de o educador ser um sujeito de vicissitudes não está isento da afetação de outros discursos que podem lhe causar um certo mal-estar e inibir seu desejo de agir, no sentido de transformar a realidade.

Em se tratando da sociedade brasileira, os discursos veiculados na mídia, em geral, contribuem para esse esvaziamento simbólico, uma vez que desvaloriza o saber e o sujeito do suposto saber (o educador), que tende a sentir-se preso na “rede” discursiva que esvazia simbolicamente sua figura e seu fazer. Nessas circunstâncias, o educador teria difficuldade de escapar dessa “rede” e criar uma nova realidade que lhe permitisse manifestar seu saber-ser e seu saber-fazer, de forma valorativa. E, assim, ele tende a incorporar esses discursos e manifestá-los na postura, na ação e no discurso, passando para os educandos a imagem de uma figura impotente diante do desafio de tansformar essa realidade.

Psicanálise: um intrumento a mais para a educação

Essas questões tão complexas e abstratas precisam do suporte da Psicanálise para compreendê-las com maior profundidade. Nesse aspecto, essa ciência do inconsciente pode constituir um instrumento a mais, para decifrar alguns enigmas que estão circunscritos nos discursos que operacionalizam a educação. Nos dias atuais, essa ciência tem desempenhado um papel fundamental não só nos limites das tarefas terapêuticas, como também em outras áreas como a educação.

Kupfer (1995) reitera o exposto ao constatar que intelectuais de diversas áreas dentre eles, alguns educadores, recorreram aos seminários e aos cursos de divulgação da Psicanálise, consumiram livros, ouviram programas de rádio e de televisão, com o intuito de buscarem um instrumento a mais que pudesse subsidiar seu trabalho.

Embora haja o reconhecimento das contribuições da Psicanálise à Educação, é importante ressaltar que ela não resolve todos os problemas que envolve o sujeito de vicissitudes. Nesse sentido, Lajonquière (1992) reconhece que nem a psicanálise nem a psicologia pode dizer o que fazer para resolver os impasses dos sujeitos, porém, a psicanálise pode dizer o que não se deve fazer para criar impasses psíquicos. Desse modo, o que será feito dependerá do que as pessoas queiram e saibam fazer. Isso posto, supomos que o desejo que move o educador para o campo educativo possa influenciar suas ações, contribuindo tanto para o sucesso quanto para o fracasso do ensino/aprendizagem.

Lajonquère (1999) reconhece, ainda, que a psicanálise pode redimensionar o olhar

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sobre a infância, contribuindo para estimular a reflexão sobre as ações que conduzem o processo de ensino/aprendizagem. Concordamos com o autor, por entendermos que o educador que tenha conhecimento dessa ciência do inconsciente possa melhorar a qualidade de seu fazer pedagógico, cuidando para que as crianças se desenvolvam sem que sofram traumas psíquicos. Pois, se considerarmos o fato de que é o mundo adulto que dá sustentação ao mundo infantil, devemos considerar, da mesma maneira que o mundo adulto, quando equilibrado, pode garantir o equlíbrio do mundo infantil.

Assim sendo, não criar impasses psiquícos significa que o sujeito do suposto poder (o educador) não tome a criança como objeto de gozo, assujeitando-o às excessivas restrições; uma vez que o excesso de normas tende a podar a criatividade do infante. Nesse sentido, Kupfer (1995) reitera que a história mostra que a tentação de abusar do poder é muito grande. Na relação educador/educando, abusar do poder equivaleria a usá-lo para subjulgar o educando quanto a sua capacidade de aprender, assim como impor-lhe seus próprios valores e desejos.

O adulto seria tentado a abusar do poder por acretidar que a criança está privada da palavra, isto não significa que ela não fale, mas como sua palavra não tem valor de ato, é como se ela não tivesse voz. Sendo assim, a criança está sob as ordens do adulto (o educador) que, ao ocupar essa posição de poder, deveria assumir o compromisso de usar sua autoridade para garantir um ensino/aprendizagem sem traumas psíquicos. Isto significa que ele suponha que a criança seja capaz de aprender, respeite suas etapas de estruturação e seus limites, visto que a criança tenderá a ser o que os Outros (pais, educadores) idealizarem. Com base nesse quadro teórico, analisaremos o caso que segue.

Vicissitudes e impasses: análise de caso

Duda1, 9 anos de idade, aluno do 3º ano do Ciclo I, foi encaminhado a nossa equipe de atendimento psicopedagógico portando uma ficha que descrevia seus problemas de aprendizagem: dificuldade de ler e escrever as palavras mais simples como: bola, mesa, campo, pipa etc. Com o intuito de observarmos o nível de desenvolvimento em que o garoto se encontrava, colocamos uma caixa cheia de material pedagógico fechada no meio da sala, e dissemos a ele que podia usar todos os materiais nela contidos. Ele mostrou-se decidido, aproximou-se da caixa, abriu-a, pegou uma massa de modelar, observou-a e deixou de lado. Pegou uma embalagem contendo um quebra-cabeça, abriu-a, observou atentamente as peças, tentou montá-lo, mas não conseguiu. Devolveu-o à caixa e pegou uma embalagem contendo um livro de figuras próprias para pintar. Retirou o livro da embalagem, observou atentamente as figuras e pegou uma embalagem contendo canetinhas coloridas, observou a diversidade de cores e começou pintar as figuras couidadosamente, procurando combinar as cores, privilegiando a cor vermelha. Nessa atividade, Duda mostrou-se organizado e inteligente; e mostrou também ter boa coordenação motora e capacidade para harmonizar as cores. __________________1Duda é nome fictício

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Conforme esse relato de atividades, Duda demonstrara ter os pré-requisitos necessários para a aprendizagem: organização das idéias e das ações, lógica de pensamento, boa coordenação motora, capacidade para harmonizar as cores e explorar o ambiente. No entanto isto significa que ele dera, apenas, os primeiros passos, posto que os resultados positivos podem surgir em longo prazo, considerando-se o fato de que Duda precisa, ainda, formar laços de afetividade e confiança com os Outros que começaram a fazer parte de sua história. E o que fazer para conquistar sua confiança? Talvez fosse viável encontrarmos meios de conhecer algo sobre sua vida sem, no entanto, deixá-lo em situação desconfortável.

O fato é que sua situação precisa ser transformada: o garoto precisa ser dito de um outro lugar, por Outros que reconheçam seu potencial para aprender. Isto significa reinscrevê-lo no campo da linguagem como alguém que tenha capacidade. Pois, enquanto ele for dito, apenas da escola e do lar, por pessoas “poderosas” como a mãe e a professora, como sendo uma criança incapaz para desenvolver tarefas relacionadas com a leitura e a escrita, ele poderá permanecer nessa condição por tempo indeterminado. Para construir laços de afetividade e de confiança com Duda é preciso encontrar meios de entrar no seu campo de significação e compartilhar, com ele, os símbolos que fazem parte de seu mundo. A renovação do material da caixa poderia trazer algumas contribuições nesse sentido, pois assim aumentariam as chances de ele vir a encontrar algo que tocasse seu desejo, em meio desse material, e despertasse sua curiosidade para a descoberta do encanto e da magia que envolvem as palavras. Por isso, a caixa estava sempre retornando à cena contendo novos materiais, dentre os quais, muitos livros de contos infantis, os quais líamos para ele, que os ouvia atentamente e aceitava o desafio de contá-los oralmente sem, no entanto, demonstrar predisposição para a leitura. E, assim, os dias foram se passando.

As atividades continuaram de forma alternada, inclusive, a atividade com a caixa. Na passagem do terceiro, para o quarto mês, a caixa retornou á cena contendo um quadro, no qual havia a figura de homem sentado à beira de um lago pescando e, ao lado da figura, havia um bilhete escrito com letras garrafais. No bilhete continha uma mensagem de um pai a um suposto filho, dizendo que estava com saudades dele, e gostaria que ele (o filho) estivesse ali, à beira daquele lago. Ao mexer na caixa, Duda pegou o quadro e não o soltou mais, deixando todos os outros materiais de lado.

Ficamos observando-o sem, no entanto, incomodá-lo para que ele pudesse explorar o quadro da forma que quisesse. Minutos depois, fomos em sua direção e, como se ignorássemos o suposto fato de ele não saber ler, elogiamos o quadro e seu bom gosto pela arte, e o sugerimos que lesse a mensagem nele contida. Nesse momento, Duda estava tão deslumbrado diante do quadro que se esquecera do fato de que não sabia ler e, para nossa surpresa, lera a mensagem com fluência, superando as expectativas.

Assim sendo, o que poderíamos concluir sobre esse caso? Duda teria aprendido a ler durante esse tempo em que estivera conosco? Ou ele já sabia ler, mas não queria ou podia demonstrar seu saber? Supomos que, o fato de o garoto ser reconhecido e dito como sendo alguém incapaz de ler e escrever pelas pessoas em quem ele tanto confiava (mãe e professora), ele passara a manifestar a incapacidade idealizada por elas. E, no momento em que passa a ser reconhecido e dito como sujeito capaz, começa a manifestar sua capacidade, passando a ler os referidos contos infantis e a escrever pequenas histórias

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com base nas leituras. Sobre o exposto, chamamos atenção para a necessidade de se fazer distinção entre

um problema de aprendizagem grave como dislexia, lesão cerebral, de outros relacionados com bloqueios emocionais transitórios, conforme o caso em análise. Nesse caso, esses bloqueios poderiam estar relacionados com o desejo de o garoto ter o pai consigo e não o tê-lo, posto que sua mãe havia se separado dele, conforme ela própria nos informou. Poderiam, também, estar relacionados com a fantasia dos Outros (mãe/professora), que pensavam saber tudo sobre o garoto, quando na realidade não sabiam o mínimo: a necessidade de conduzi-lo a um lugar de reconhecimento como sujeito capaz de aprender.

Isso posto, supõe-se que os sintomas de Duda tenham sido fabricados no nível da linguagem; tanto pela a mãe quanto pela a professora, visto que o garoto era dito por elas como alguém que não sabia ler nem escrever e, assim, ambas contribuíram para a inibição do desejo que o anima a aprender. Essa inibição fora superada a partir do momento em que o garoto fora dito de um outro lugar, por Outras que o conduziu ao lugar do sujeito capaz de desenvolver atividades relacionadas com a leitura e a escrita.

Duda guardara esse segredo por longo tempo, ou seja, o fato de que sabia ler e escrever, posto que para revelá-lo ele precisaria encontrar alguém com quem pudesse compartilhar suas angústias e suas emoções. Nesse sentido, Levin (1997) completa que o pequeno garatujador necessita que o Outro lhe confirme que, na garatuja criada por ele, há efetivamente um “gato” ou uma “casa”; um “papai” ou uma “mamãe” ou qualquer outro significante que nomeie esse traço. Isto significa que a criança para se reconhecer como capaz de produzir algo, é preciso primeiro ser reconhecido pelo Outro. Com base no exposto, poderíamos concluir que a educação seria impossível de se realizar?

Pedagogia e Psicanálise: (im) possibilidade da educação

Apenas a pedagogia não daria conta do sujeito de vicissitudes, posto que sua finalidade não é interpretar o educando para identificar seus possíveis sintomas, mas pode oferecer-lhe a possibilidade de ele canalizar sua energia (libido) para outras atividades como espotes, pesquisas e outras. Kupfer (1995) reconhece que o educador com o apoio da pedagogia e da pasicanálise deveria promover a sublimação, mas a sublimação não se promove por ser inconsciente, ele deveria, então, reconciliar-se com a criança que há dentro dele, mas é uma pena que ele já tenha se esquecido de como era mesmo essa criança! Considerando-se essas questões, a Educação seria irrealizável?

A Educação seria impossível não no sentido de ser irrealizável, uma vez que ela se realiza em parte, não podendo realizar-se integralmente pelo fato de a educação ter como base o discurso, que está na realidade do inconsciente. E, estando na realidade do inconsciente, impossibiliataria ao educador e ao educando terem o controle sobre o discurso e o conteúdo que ele veicula. Isto significa dizer que o educador jamais terá controle sobre a palavra e sobre o efeito que ela produz no educando.

Freud (1900) reitera o exposto ao postular que o inconsciente é a verdadeira relidade psíquica; em sua natureza mais íntima, por isso ele é tão desconhecido para as pessoas e para a realidade do mundo externo, uma vez que é apresentado de forma bastante incompleta tanto pelos dados da consciência quanto pelo dados do mundo externo, que é representado pelas comunicações dos órgãos sensoriais.

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No entanto, Kupfer (1995) acena para a possibilidade de que a educação possa se realizar, em alguns casos específicos. Como, por exemplo, quando o educador é acolhido pela transferência, pois, nesse caso, ele deixa de ser exterior ao inconsciente do educando, que passa a atribuir ao educador um sentido conferido pelo desejo e, assim, sua figura passa a fazer parte do cenário seu inconsciente. Nessa circunstância, a fala do educador deixa de ser inteiramente objetiva, passando a ser escutada por meio dessa posição especial que ocupa no inconsciente do educando.

Talvez seja nesse sentido que Freud se refere à Educação como sendo uma profissão impossível, dada à possibilidade mínima de o educador vir a tocar o educando, com o seu discurso, no nível do inconsciente, por ser um campo desconhecido de ambos. Nesse sentido, Kupffer (1995) reconhece que o educador inspirado por idéias psicanalíticas aprende organizar seu saber, mas não tem controle sobre os efeitos que ele produz sobre os educandos, posto que as “ditas” avaliações podem até dar conta da noção daquilo que o educando assimilou naquele dado instante, mas não leva o educador a conhecer as muitas repercussões inconscientes de sua presença e de seus ensinamentos na vida dos educandos.

Fracasso escolar: sintoma na educação ou da educação?

Na atualidade, parece haver um mal-estar social que reflete nas instituições escola e família, manifestando-se como sintoma conhecido como apatia com relação ao ensino/aprendizagem, que contagia pais, educadores e educandos. Nesse emaranhado de emoções meio confusas parece que a saída mais viável seria encaminhar as crianças ditas “problemáticas” para outros especialistas, para que eles resolvam seus impasses psíquico-emocionais e, dessa forma, tranqülizem pais e educadores.

Essa atitude, à primeira vista, parece ser a mais acertada, mas por trás dessa questão há outros fatores sobre os quais é preciso refletir, posto que o atendimento especializado pode servir tanto para a superação quanto para o reforço e manutenção das dificuldades de aprendizagem. Isso pode acontecer porque, ao passar por um especialista, os “problemas” de aprendizagem do educando tornam-se atestados e legitimados, em laudos, por uma autoridade no assunto. E, dependendo do modo como esses laudos forem interpretados pelos agentes implicados no processo de ensino/aprendizagem, esses podem servir tanto para liberbertar quanto para aprisionar o saber do educando.

Os laudos podem servir para libertar o saber quando sua finalidade for a de redirecionar as ações pedagógicas, no sentido de atender as necessidades de aprendizagem do educando; e podem contribuir para aprisionar o saber quando sua finalidade for, apenas, tranquilizar os agentes implicados no processo de ensino/aprendizagem, no sentido de isentá-los da responsabilidade com o educando.

Essas questões precisam ser consideradas, posto que a criança depende muito do que os Outros (pais/educadores) dizem dela e, dependendo do que eles dizem, uma criança que apresente apenas um problema de omissão de letras ou sílabas, poderá manifestar a inibição da capacidade de leitura e escrita, caso esses Outros continuem reconhecendo-a como sendo uma criança incompetente para lidar com as palavras.

Os dados revelaram que o encontro de crianças com adultos é quase sempre marcado por “vicissitudes e impasses”, mas não deveria ser assim, posto que a constituição psíquica infantil é responsabilidade dos adultos. Assim sendo, os adultos (pais, educadores)

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deveriam encontrar meios de sustentar seu poder com autoridade e sem autoritarismo e, assim, estabelecerem parâmetros norteadores da educação das crianças, de maneira satisfatória para ambas as partes, assegurarando a saúde psíquica das crianças e sua própria tranqülidade. Supõe-se, dessa maneira que, como o adulto tem participação ativa na constituição psíquica das crianças, ele também é responsável por criar muitos dos sintomas infantis.

Em resumo, concluímos essa explanação com um convite à reflexão sobre o caso analisado neste trabalho, que mostrou a necessidade de se fazer distinção entre um impasse psíquico passageiro, relacionado com bloqueios emocionais, e outros problemas de difícil reversão. O garoto Duda, por exemplo, não apresentava problemas de aprendizagem, conforme atestavam sua professora e sua mãe. Nesse caso, o bloqueio emocional que inibiu seu desejo de aprender, é que fora transformado em um problema de maior dimensão em função do reforço dado ao mesmo.

Considerações finais

Na trajetória desse trabalho, refletimos acerca dos impasses e vicissitudes do sujeito, tomando-o como um ser passível de sofrer bloquios emocionais em alguma fase de sua estruturação, podendo resultar em obstáculos que dificultam a aprendizagem. Dessa forma, para garantir uma estruturação psíquica sem impasses, seria necessário que os adultos implicados na educação das crianças respeitassem seu estagio de desenvolvimento e seu ritmo de aprendizagem, colocando-as no lugur do sujeito capaz de aprender. Considerando-se o fato de que o sucesso ou o fracasso da criança resulta de uma demanda de reconhecimento dos Outros (pais e educadores), e esse reconhecimento decorre do respeito à natureza e à individualidade de cada criança.

Concluímos, assim, que a Psicanálise, embora não dê conta do sujeito de vicissitudes, ela pode contribuir com a educação na medida em que orienta o olhar sobre a infância, e sobre a qualidade dos laços estabelecidos entre adultos e crianças, ou educador e educando, uma vez que o insucesso do estabelecimento desses laços resulta em muitos dos sintomas que denunciam o fracasso da criança, na aprendizagem. Assim sendo, a Psicanálise pode contribuir com a educação, não no sentido de dizer o que deve ser feito, mas sobre o que “não deve ser feito na educação das crianças.”

Referências Bibliográficas

FREUD, S. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro: RJ: Imago, 1900.KUPFFER, M. C. Freud E A Educação - O Mestre do Impossível. São Paulo: Scipione, 1995.LAJONQUÈRE, L. De Piaget A Freud. Petrópolis: Vozes, 1992._______________. Infância e Ilusão(Psico) Pedagógica. Petrópolis: Vozes, 1999.LEVIN, E. A Infância em Cena - Constituição do Sujeito e Desenvolvimento Psicomotor. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.

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HALL, Stuart. Identidades Culturais na Pós-modernidade. Tradução: SILVA, Tomaz Tadeu; LOURO, Guacira Lopes. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

Por: Jacqueline Ramos158

Buscando esclarecer melhor os questionamentos sobre o sujeito do século XXI e os conflitos de identidade existentes no mundo moderno, Stuart Hall apresenta seu livro intitulado Identidades Culturais na Pós-modernidade, sendo este dividido em seis capítulos que se destinam a explorar algumas das questões sobre a identidade cultural no mundo contemporâneo e avaliar se existe uma crise de identidade, bem como avaliar em que ela consiste e em que direção está indo. O livro parte da afirmação de que “as identidades modernas estão sendo “descentradas”, isto é, deslocadas ou fragmentadas” (p.8), e tem como propósito explorar esta afirmação vendo o que implica dizê-la, qualificando-a e discutindo suas prováveis conseqüências.

No primeiro capítulo, talvez o mais importante deles, Hall define o termo “crise de identidade” e trabalha o impacto do fenômeno de descentramento apoiado em três concepções de identidade do sujeito por ele apresentadas, sendo essas baseadas na teoria social, que discute a relação entre velhas e novas identidades, de forma que as últimas surgem para desestabilizar o Homem moderno, gerando dessa forma o que ele chama de “crise de identidade”.

Desse modo, Hall trata das mudanças no conceito de identidade e sujeito, decorrentes de um possível deslocamento ou descentração do sujeito devido à perda de um sentido de si, tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmo, o que pode acarretar na crise de identidade.

Além dessas mudanças, Hall leva o leitor a pensar a respeito do conceito de identidade nacional, um dos mais importantes do livro por tratar das questões que fazem com que o sujeito se sinta pertencente à própria cultura, posto que a nação seja tida como um sistema de representação cultural e a identidade, por sua vez, seja moldada pela cultura e constituída através dos cinco elementos citados pelo autor no segundo capítulo: narrativa da nação; ênfase na tradição, origens, continuidade, intemporalidade; invenção da tradição; mito fundacional; idéia de um povo puro, original.

Porém, não estando esses elementos presos a um todo imutável e delimitado, as identidades e, conseqüentemente, as estruturas sociais sofrem mudanças evolucionárias, sendo constantemente deslocadas por forças externas, às quais recebem o nome de globalização, que será trabalhada por Hall no quarto capítulo do livro.

“Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma com que o sujeito é interpelado ou representado, a identificação torna-se politizada, constituindo uma mudança da política de identidade para a política de diferença” (p.22).

Baseado nessa política de identificação, Hall cita um caso ocorrido no governo dos Estados Unidos, durante o julgamento de Bush em 1991, quando as várias identidades presentes interferiram na escolha da população no sentido de apoiar ou não a decisão do juiz, tendo sido escolhido um juiz negro, porém de visões políticas conservadoras e com um agravante de uma acusação de assédio sexual, causando muita polêmica no julgamento.

158 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Alagoas.

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Isso porque os brancos poderiam não apoiar o juiz por ele ser negro, porém poderiam o fazer por ele ser conservador, já os negros o apoiariam por ele ser negro, porém poderiam não apoiá-lo por ele ser conservador. Em suma, o que se observa é o jogo das identidades, o que poderíamos chamar de política da diferença.

Assim, o processo da vida moderna está centrado no coletivo, sendo as sociedades do mundo contemporâneo caracterizadas pela diferença, principalmente cultural, dando-se certa ênfase ao conceito de tradução, que consiste em tentar fazer com que a cultura se inove dentro da tradição.

No segundo capítulo, Hall preocupa-se em traçar os estágios através dos quais uma versão particular do sujeito humano emergiu pela primeira vez na idade moderna, como adquiriu uma definição mais sociológica ou interativa, centrando-se em concepções mutantes desse sujeito a fim de conceituar o sujeito pós-moderno de forma mais sociológica ou interativa, levando em conta as noções de individualidade do sujeito contemporâneo.

Assim, propõe três concepções de sujeito: sujeito cartesiano (Descartes); sujeito interacional (Marx) e sujeito racional (Freud, Lacan, Foucault, movimento feminista, etc). O sujeito racional apóia-se em aspectos de arquétipos sociais universais, ou seja, o lado social.

Hall observa que a identidade é algo formado através de processos inconscientes, e que o sujeito não nasce com ela, mas a forma ao longo do tempo. Por esta razão, em vez de falar em identidade como um processo acabado, deveríamos falar em identificação, e sempre tratá-la como um processo em andamento. Tal observação explica a sugestão de mudança de foco da política de identidade para a política de identificação.

O terceiro e o quarto capítulo estão intimamente relacionados, pois é quase impossível separar a cultura nacional do poder da cultura do mundo globalizado. Quanto mais expostas às influências externas, mais difícil é a tarefa de conservar as identidades culturais intactas e livres da influência inevitável do mundo global, que produz cada vez mais, simultaneamente, novas identificações globais e novas identificações locais:

Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem “flutuar livremente”. Somos confrontados por uma gama de diferentes identidades, dentre as quais parece possível fazer uma escolha (Hall, 1997, p. 80).

Assim, Hall reafirma a importância da identidade nacional para que o sujeito se

sinta pertencente à comunidade em que nasceu, e como essas mudanças, frutos do processo de globalização, têm afetado e fragmentado a identidade do sujeito no mundo pós-moderno.

Neste processo, destacam-se cinco elementos necessários para a construção de um senso comum sobre a identidade da nação: narrativa da nação; ênfase na tradição, origens, continuidade, intemporalidade; invenção da tradição; mito fundacional; idéia de um povo puro, original. Esses elementos constroem o sujeito, tornando os significados culturais parte dele, e através da nação, que é um sistema de representação cultural, o sujeito constrói

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sua identidade nacional a partir da interação entre o eu e a sociedade, gerando uma comunidade imaginária que faz com que ele se sinta pertencente à própria cultura.

Seguindo nessa linha, Hall expõe no quinto capítulo as preocupações com a homogeneização cultural, considerando as identidades locais e globais e afirmando ser a globalização não algo capaz de destruir as identidades nacionais, mas um meio de produzir, simultaneamente, novas identificações globais e novas identificações locais.

Apesar de a cultura abranger vários níveis da sociedade, “a proliferação das escolhas de identidade é mais ampla no centro do sistema global que nas periferias” (p.85). Assim, a periferia não se sente tão globalizada, pois, a inclusão social se dar mais efetivamente nos centros, mas ela também sofre o efeito pluralizador da globalização, embora em um ritmo mais lento e desigual.

O sexto capítulo ocupa-se basicamente desse processo híbrido, de misturas e transformações que as sociedades vêm sofrendo ao longo do processo global, sendo estruturalmente pautado pela repercussão do polêmico livro de Salman Rushdie, intitulado Versos Satânicos, que provocou inquietações ao mergulhar na cultura islâmica.

Caminhando para a conclusão, segundo Hall, ao passo que as identidades culturais não são fixas e estão em constante transição, as pessoas que mantêm vínculos culturais com uma ou mais culturas, além daquela em que nasceram, precisam manter também seus costumes e tradições negociando seus valores com as novas culturas em que foram inseridas sem necessariamente pertencer a elas. Portanto, carregam os traços culturais e as tradições, mas não os unifica à cultura em que se inseriram, sendo, assim, obrigadas a traduzir suas tradições e a negociar entre elas.

Hall, assim, conclui seu livro mostrando que o hibridismo cultural pode representar uma tradução da tradição. Apesar de algumas pessoas defenderem que este hibridismo possa ser um elemento perigoso devido ao seu relativismo e sua “dupla consciência” (grifo do autor), outras defendem que ele pode ser uma poderosa fonte criadora de novas formas de cultura, mais apropriadas ao mundo do século XXI.

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SOULÉ-SUSBIELLES, Nicole. Improving students’ competence in foreign-language reading. ELT Journal. v. 41/3. july 1987. p. 198-203

Patrícia Araújo Vieira Universidade Estadual do Ceará

Nicole Soulé-Susbielles é facilitadora do programa de treinamento de professores da Universidade de Paris VIII. Ela faz pesquisas sobre a interação entre alunos de uma classe de língua estrangeira: What language and what strategies are used by both teacher and learners?

O referido artigo apresenta uma abordagem analítica de leitura em língua estrangeira (LE), e descreve brevemente sobre os principais componentes que são identificados no processo de leitura. Argumenta-se a favor da autoconsciência leitora dos estudantes para o aperfeiçoamento da própria competência leitora.

Este trabalho se baseia em três acepções: 1. A leitura em LE não difere em natureza da L1;2. A concepção de leitura está mal concedida tanto pelos alunos como pelos

professores;3. Se os estudantes tivessem uma real consciência de quais operações mentais eles

deveriam ativar durante a leitura, a consciência leitora poderia ser grandemente ajudada ou acelerada.

A autora sugere que antes de os alunos embarcarem na leitura de um longo texto, os professores de LE deveriam, juntamente com eles, identificar os componentes de leitura, planejar pequenos exercícios de problemas-soluções, e sistematizar, enquanto eles lêem, a leitura dos estudantes em níveis de atividades.

O artigo procura explicar cada um desses níveis e apresenta atividades que podem ser trabalhadas na sala de aula com o objetivo de despertar nos aprendizes de LE a autoconsciência leitora.

Segundo o quadro estabelecido pela autora, o primeiro componente do nível 1 é a área de noção. Para Nicole, nós construímos a concepção de um texto através das áreas de noção que são ativadas pelas palavras-chaves e reajustadas por meio da introdução de novas palavras. Em relação ao segundo componente, antecipação e revisão, o texto afirma que quando estamos lendo, naturalmente criamos expectativas do que virá depois, e produzimos hipóteses que serão confirmadas ou reajustadas com a autorização do autor.

No terceiro componente, texto: coerência e coesão, a autora explica que se uma palavra está ausente em um texto, o significado é recuperado e inferido graças ao próprio contexto. Ela exemplifica essa concepção por meio de atividades de integração de pequenas sentenças em textos curtos, num nível mais fácil; ou de muitas sentenças em textos longos, num nível mais complexo. Tal atividade gera discussões a nível lingüístico.

De acordo com Nicole, quando nós lemos uma sentença, nós nos atentamos geralmente às palavras de informatividade forte e eliminamos as de informatividade fraca (por exemplo, em uma sentença com artigo, substantivo, adjetivo, verbo e objeto; nós naturalmente eliminamos o artigo e o adjetivo por apresentarem informações adicionais e não centrais). Assim, de acordo com o componente informativo, nós não deveríamos fazer

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uma leitura linear, que seria uma péssima leitura; mas deveríamos fazer uma leitura informativa, atentando-nos para as informações importantes nas sentenças.

A autora acredita que todos esses componentes deveriam ser claramente explicados para os alunos, procurando fazê-los refletir sobre todas as estratégias no processo de aprendizagem de uma língua. Tal consciência pode ser ativada por meio de exercícios que procuram desenvolver três estágios: identificação do problema, descrição do problema e solução do problema.

A autora trabalha com questionários que devem ser abordados tanto antes da leitura como também durante a leitura, com o intuito de levar os alunos a refletirem sobre seus objetivos antes de ler um texto, e as concepções que eles têm sobre o que é leitura e quando entendemos um texto.

A autora, neste artigo, procurou descrever alguns mecanismos básicos no processo de leitura, por meio de exercícios curtos, significativos e fáceis de aplicar. Procurou, também, argumentar em favor da consciência das técnicas de leitura, questionando se essa mútua ignorância por parte dos professores e dos alunos pode apontar para as falhas na aprendizagem de uma língua estrangeira.

O objetivo do artigo é conscientizar professores e estudantes de que quando se tem uma consciência real das estratégias de leitura e de todo o processo que a envolve, a leitura em LE deixa de ser uma leitura palavra por palavra, para visualizar todos os elementos lingüísticos e extralingüísticos que envolvem o texto.

Embora o foco desse artigo seja os professores de língua estrangeira, a meu ver, ele também deveria ser lido e analisado pelos professores de língua materna, pois, de acordo com a autora, as estratégias de leitura em LE e L1 são por natureza semelhantes. A autora desse artigo apresentou de forma clara e objetiva a importância de os professores treinarem seus alunos a uma leitura consciente. E essa autoconsciência pode ajudá-los no desenvolvimento da competência leitora tanto em textos em língua materna como em língua estrangeira.

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Ciências Humanas e Ciências Sociais – Ano 04 Nº 07 – 2008ISSN 1809-3264

LESSARD, Claude; TARDIF, Maurice. O Trabalho Docente: elementos para uma teoria da docência como profissão de interações humanas. Tradução de João Batista Kreuch. 3.ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2007. 317 páginas

Paulo Roberto Boa Sorte SilvaMestrando em Educação – UFS – Universidade Federal de Sergipe

Professor substituto de Letras da UFSProfessor da Faculdade José Augusto Vieira (FJAV)

Claude Lessard é canadense e professor titular da Universidade de Montreal, sociólogo reconhecido nas questões de profissionalização da área educacional participou de vários projetos de cooperação internacional na África, em Magreb, na França e na Suíça.

Maurice Tardif também é canadense e desenvolve pesquisas sobre evolução e a situação do professor docente e a formação dos professores e os conhecimentos de base da docência. Leciona as disciplinas História do Pensamento Pedagógico e Fundamentos da Educação na Universidade Laval em Quebec e na Universidade de Montreal.

O livro, que estuda a profissão docente como um trabalho, foi recentemente traduzido para o português e lançado no Brasil pela editora Vozes, trazendo para a educação brasileira uma relevante contribuição nas discussões acerca da profissão do professor. A maneira como os autores a estudam é bastante inovadora, pois situam essa profissão na organização socioeconômica do trabalho em virtude do status crescente que os ofícios e as profissões humanas interativas vêm adquirindo, além de discutir os modelos de trabalho docente impostos pela organização industrial.

Para essa abordagem, analisa-se o processo de escolarização por meio da observação do trabalho dos professores interagindo com os alunos e os demais atores envolvidos no processo educativo, como administradores, diretores de escolas, funcionários, orientadores pedagógicos, professores de educação especial, técnicos e universitários em formação para o magistério. 150 entrevistas foram feitas com esses atores para fundamentar a análise.

A obra está dividida em sete capítulos. No primeiro, “O trabalho docente hoje: elementos para um quadro de análise”, há informações para compreender como as pessoas que, segundo os autores, são seres naturais, mas em parte socializados pela família, podem se tornar tanto pessoas educadas, trabalhadores capacitados, cidadãos esclarecidos, quanto pessoas excluídas, marginais ou assistidas sociais. Observa-se a organização do trabalho escolar diretamente ligada à organização industrial e do Estado, ou seja, as formas de gerir e executar o trabalho nas organizações econômicas estão presentes nas escolas e no ensino. Na página 24, os autores explicitam como se dá esse processo:

Ela [a escola] trata uma grande massa de indivíduos de acordo com padrões uniformes por um longo período de tempo, para reproduzir resultados semelhantes [...] Dentro da escola, o trabalho escolar – ou seja, o conjunto de tarefas cumpridas pelos agentes escolares, inclusive os alunos – é, ele próprio, padronizado, dividido, planificado e controlado.

O capítulo 2, “a escola como organização do trabalho docente”, caracteriza amplamente o trabalho do professor, descrevendo como ele é estruturado e como essa organização orienta não só o

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trabalho docente, como também a relação de professores entre si e com os seus alunos. O enfoque, nesse capítulo é mesmo na escola sob o ponto de vista de sua organização de trabalho e de seu impacto sobre a docência.

O terceiro capítulo, intitulado “Da classe ao sistema escolar”, segue analisando a organização do trabalho escolar, com foco para o crescimento da burocratização, para o aumento do número de pessoas que ocupam funções dentro da escola e a criação de novas especialidades dentro dos sistemas de ensino. Para os autores, os professores ocupam um espaço inferior na hierarquia organizacional. Na página 82, eles explicam mais detalhadamente como se dá esse processo:

Os professores se aproximam mais de um grupo de operários ou de técnicos do que de uma verdadeira profissão: como os operários ou os técnicos, eles trabalham na linha de fogo da produção e são eles que garantem o essencial das tarefas cotidianas mais importantes da organização: mas, como os operários e os técnicos, os professores participam pouco da gestão e do controle da organização na qual trabalham.

O capítulo 4 analisa “a carga do trabalho dos professores”, discutindo quais são as condições desse trabalho, a questão do tempo, das dificuldades e das mais diversas cargas de trabalho da profissão, além das tensões que ela gera nos professores.

O quinto capítulo, “os trabalhos e os dias”, fala da ritualização do trabalho escolar, abordando a típica jornada do professor que começa pelo contato com os colegas na sala dos professores e passa pelas horas de atividades com os alunos, recreação, reuniões, correções de atividades, jornadas pedagógicas e a preparação de aulas que se dão em casa, ou seja, atividades que o professor faz para identificar a realidade do seu trabalho, nos seus modos de organização próprios, seus conteúdos e suas condições.

Os dois últimos capítulos; “os fins do trabalho docente” e “os fundamentos interativos da docência” tratam de questões relacionadas aos resultados ou produtos da ação docente, apresentando o modo como as interações humanas que constituem o trabalho docente marcam profundamente todos os outros componentes do processo de trabalho. Trata ainda das interações dos professores com seu objeto de trabalho (os alunos) e as tecnologias.

Percebemos como objetivo fundamental da obra de Tardif e Lessard a busca pela compreensão do trabalho do professor. Essa forma diferente de enxergar a profissão docente traz-nos esclarecimentos acerca não só da organização formal desse trabalho, como também das práticas cotidianas que ajudam a explicar e dar forma a uma profissão tão antiga, mas que é reflexo da organização das mais diversas sociedades. É interessante perceber como um livro escrito no Canadá e por canadenses, validado com dados de um país culturalmente e economicamente diferente do Brasil, pode trazer elementos tão característicos e comuns aos docentes do nosso país. Outro ponto importante é que esse livro lança um novo e fértil campo de estudo nas Ciências da Educação. Ao longo dessa obra, encontramos informações que levam a vários questionamentos ainda não respondidos e que valem a pena ser investigados nos nossos cursos de graduação e pós-graduação.

Esta obra é enfaticamente recomendada, pois oferece aos professores, graduandos, pós-graduandos e estudiosos do trabalho docente nas áreas de Educação, Ciências Sociais, Humanas e cursos de formação de professores um material valioso para a compreensão dessa profissão.

Um olhar sobre a materialidade dos gêneros

Susana dos Santos Nogueira159

O texto “Gêneros do discurso e Gêneros textuais: Questões teóricas e aplicadas”, foi escrito pela professora doutora Roxane Rojo160 e apresentado sob forma de artigo no livro: “Gêneros: teorias, métodos, debates”, publicado pela Parábola Editorial em São Paulo no ano de 2005.

Neste artigo, a professora Roxane discute questões teóricas e aplicadas relacionadas aos gêneros do discurso e aos gêneros textuais, bem como as possíveis contribuições da Lingüística Aplicada para o ensino-aprendizagem de língua materna; apresenta ainda uma análise conversacional de uma conversa em família, especificando-a como um gênero do discurso da esfera cotidiana familiar. Ela enfatiza que o estudo dos gêneros abrolhou recentemente no campo da lingüística aplicada, fazendo-se inconteste, uma vez que, segundo os PCNs, são eles os norteadores para a realização do trabalho com as práticas de análise lingüística (que abarcam as práticas de leitura e produção textual).

São apresentadas neste texto as noções bakthiniana de gênero do discurso e as considerações de Bronckart, Adam e Marcuschi para gênero de texto. Bakthin vê a linguagem como um fenômeno sócio- histórico- ideológico e afirma que o enunciado constitui uma unidade da comunicação verbal. Já Marcuschi acredita ser o texto uma entidade concreta realizada materialmente através de um gênero textual, ou seja, uma grande oportunidade de se lidar com a língua em seus diversos usos no dia a dia. Essas idéias estabelecem uma dialogia com a teoria discursiva de Bakhtin, uma vez que, segundo ele, os enunciados estão em permanente diálogo e são sempre uma resposta a outros tantos, que se manifestam na relação do eu com o outro.

Para Rojo a escolha entre estas teorias se dará de acordo com a ideologia do pesquisador e a abordagem teórica sobre a qual desejará debruçar-se. Aos olhos da professora Roxane o processo de interação com textos em contexto de ensino deve caminhar em direção a um enfoque bakhtiniano, pois ela considera necessária a exploração de características das situações de enunciação, afim de que se possa alcançar “A visão de leitor/produtor de textos presente nos PCNs (...) a de um usuário eficaz e competente da linguagem escrita, imerso em práticas sociais e em atividades de linguagem letradas, que, em diferentes situações comunicativas, utiliza-se dos gêneros do discurso para construir ou reconstruir os sentidos de textos que lê ou produz.” (Rojo, 2005, p.184)

Os gêneros são um meio eficiente de conduzir os alunos para uma ampla percepção da variedade de textos e discursos que permeiam a interação com a escola e com o meio social. Nesse sentido estudar, entender e compreender a materialização dos gêneros se torna imprescindível, e o texto da professora Roxane contribui muito para isso, pois que, conduz o leitor a reflexões em torno das teorias aqui mencionadas, bem como sua aplicabilidade em sala de aula.

159 Graduanda do curso de Letras Habilitação Português da Universidade Federal de Goiás, Campus Jataí.160 Atualmente, é professora do Departamento de Lingüística Aplicada da Universidade Estadual de

Campinas e pesquisadora 1C do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.Revista Querubim – revista eletrônica de trabalhos científicos nas áreas de Letras,

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