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REVISTA REDAÇÃO PROFESSOR: Lucas Rocha DISCIPLINA: Redação DATA: 02/06/2013 ————————————————————————————————————————————— 1 19 Ambições espaciais e nucleares de Pequim balançam o jogo mundial (OLIVER ZAJEC) Os analistas de defesa norte-americanos se preocupam com os progressos da dissuasão nuclear chinesa e com os avanços na área espacial do país. Jogando com a dualidade dessas áreas conexas, a China melhorou a importância, o alcance e a eficácia de seu arsenal, correndo o risco de fragilizar os equilíbrios nucleares PEQUIM não tem nenhuma estátua do senador anticomunista norte-americano Joseph McCarthy. Uma relativa ingratidão, se pensarmos que ele é o pai natural do programa nuclear chinês. A história é, no mínimo, surpreendente. No imediato pós-guerra, um jovem engenheiro emigrado originário de Hangzhou, Qian Xuesen, trabalhava contratado pelo Pentágono no Jet Propulsion Laboratory de Pasadena. Suas intuições pioneiras na área espacial e balística deslumbraram a US Air Force. O Exército confiava tanto nele que o enviou à Alemanha para interrogar Werner von Braun, o cérebro do programa balístico alemão. O macarthismo fez essa brilhante trajetória se desviar: acusado de comunismo em 1950, condenado à prisão domiciliar, Qian foi brutalmente expulso para a China maoista em 1955. O secretário adjunto da Marinha, Daniel Kimball, bem que declarou que esse ―gênio‖ diplomado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) valia ―entre três e cinco divisões sozinho‖, e que ―preferiria vê-lo morto a exilado‖, 1 mas não adiantou nada. No auge da caça às bruxas, então desenfreada, os protestos não provocaram eco algum. O resto da história é bem lógico: recebido por Mao Tsé-tung, Qian se aliou ao regime e inventou, a partir do nada, o primeiro programa de mísseis balísticos chinês... Em 1966, dois anos depois da explosão atômica fundadora de 1964, o engenheiro prodígio supervisionou o primeiro lançamento de um míssil nuclear no Deserto de Xinjiang. Também se deve a ele o lançamento bem-sucedido, em 24 de abril de 1970, do primeiro satélite chinês, o Dong Fang Hong (DFH-1) – que difundiu ininterruptamente a canção patriótica O Oriente é vermelho durante os 26 dias em que orbitou. Aposentado em 1991, falecido em 2009, coberto de honras, Qian simboliza sozinho o profundo emaranhado, desde suas origens, dos programas nuclear e espacial da República Popular da China. Da primeira explosão nuclear de outubro de 1964 até o dia de glória de 14 de outubro de 2003, quando o tenente-coronel Yang Liwei, embarcando no ônibus espacial Shenzhou, fez que a China se tornasse a terceira nação da história a ser bem-sucedida num voo espacial habitado, Pequim multiplicou as passarelas entre essas duas áreas, deixando clara a promessa constante de uma otimização tecnológica, orçamentária e estratégica. Apesar da criação, nos anos 1990, da Agência Nacional de Administração Espacial (Anae) e do estabelecimento de projetos de comercialização de colocação em órbita de satélites, os militares do Exército Popular de Libertação (EPL) conservam mais do que nunca seu papel nos grandes eixos espaciais da nação. Esse efeito alavanca do triângulo nuclear-espacial-balístico não é uma especificidade chinesa; ele é bem conhecido, pelo menos pelos engenheiros especialistas, em particular nos Estados Unidos e na França. A China se distingue, no entanto, por ter colocado em primeiro plano muito cedo uma doutrina de ―não utilização em primeiro‖, duplicando a petição de princípio de garantia solene de que suas armas nunca seriam empregadas contra uma nação não nuclear. Ao mesmo tempo, na área espacial, ela se opôs rapidamente a qualquer militarização. A essa postura defensiva se acrescentam os poucos meios de sua defesa, assim como a modernidade por muito tempo duvidosa de seus vetores (bombardeiros mísseis e submarinos potencialmente portadores de ogivas nucleares). Essas duas características fizeram dela o membro mais

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REVISTA REDAÇÃO

PROFESSOR: Lucas Rocha

DISCIPLINA: Redação DATA: 02/06/2013

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Ambições espaciais e nucleares de Pequim balançam o jogo mundial

(OLIVER ZAJEC) Os analistas de defesa norte-americanos se preocupam com os progressos da dissuasão nuclear chinesa e com os avanços na área espacial do país. Jogando com a dualidade dessas áreas conexas, a China melhorou a importância, o alcance e a eficácia de seu arsenal, correndo o risco de fragilizar os equilíbrios nucleares

PEQUIM não tem nenhuma estátua do senador anticomunista norte-americano Joseph McCarthy. Uma relativa ingratidão, se pensarmos que ele é o pai natural do programa nuclear chinês. A história é, no mínimo, surpreendente. No imediato pós-guerra, um jovem engenheiro emigrado originário de Hangzhou, Qian Xuesen, trabalhava contratado pelo Pentágono no Jet Propulsion Laboratory de Pasadena. Suas intuições pioneiras na área espacial e balística deslumbraram a US Air Force. O Exército confiava tanto nele que o enviou à Alemanha para interrogar Werner von Braun, o cérebro do programa balístico alemão. O macarthismo fez essa brilhante trajetória se desviar: acusado de comunismo em 1950, condenado à prisão domiciliar, Qian foi brutalmente expulso para a China maoista em 1955. O secretário adjunto da Marinha, Daniel Kimball, bem que declarou que esse ―gênio‖ diplomado pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT) valia ―entre três e cinco divisões sozinho‖, e que ―preferiria vê-lo morto a exilado‖,1 mas não adiantou nada. No auge da caça às bruxas, então desenfreada, os protestos não provocaram eco algum. O resto da história é bem lógico: recebido por Mao Tsé-tung, Qian se aliou ao regime e inventou, a partir do nada, o primeiro programa de mísseis balísticos chinês...

Em 1966, dois anos depois da explosão atômica fundadora de 1964, o engenheiro prodígio supervisionou o primeiro lançamento de um míssil nuclear no Deserto de

Xinjiang. Também se deve a ele o lançamento bem-sucedido, em 24 de abril de 1970, do primeiro satélite chinês, o Dong Fang Hong (DFH-1) – que difundiu ininterruptamente a canção patriótica O Oriente é vermelho durante os 26 dias em que orbitou. Aposentado em 1991, falecido em 2009, coberto de honras, Qian simboliza sozinho o profundo emaranhado, desde suas origens, dos programas nuclear e espacial da República Popular da China. Da primeira explosão nuclear de outubro de 1964 até o dia de glória de 14 de outubro de 2003, quando o tenente-coronel Yang Liwei, embarcando no ônibus espacial Shenzhou, fez que a China se tornasse a terceira nação da história a ser bem-sucedida num voo espacial habitado, Pequim multiplicou as passarelas entre essas duas áreas, deixando clara a promessa constante de uma otimização tecnológica, orçamentária e estratégica. Apesar da criação, nos anos 1990, da Agência Nacional de Administração Espacial (Anae) e do estabelecimento de projetos de comercialização de colocação em órbita de satélites, os militares do Exército Popular de Libertação (EPL) conservam mais do que nunca seu papel nos grandes eixos espaciais da nação.

Esse efeito alavanca do triângulo nuclear-espacial-balístico não é uma especificidade chinesa; ele é bem conhecido, pelo menos pelos engenheiros especialistas, em particular nos Estados Unidos e na França. A China se distingue, no entanto, por ter colocado em primeiro plano muito cedo uma doutrina de ―não utilização em primeiro‖, duplicando a petição de princípio de garantia solene de que suas armas nunca seriam empregadas contra uma nação não nuclear. Ao mesmo tempo, na área espacial, ela se opôs rapidamente a qualquer militarização. A essa postura defensiva se acrescentam os poucos meios de sua defesa, assim como a modernidade por muito tempo duvidosa de seus vetores (bombardeiros mísseis e submarinos potencialmente portadores de ogivas nucleares). Essas duas características fizeram dela o membro mais

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discreto do clube internacional dos Estados que são ao mesmo tempo potências espaciais e detentores de armas nucleares: França, Estados Unidos, Reino Unido, Rússia e China, aos quais podemos hoje acrescentar a Índia.

Discreto? Pelo menos até agora: a vontade de Pequim de manter um perfil discreto ainda se mantém, agora que seu desenvolvimento econômico estimula seu crescimento como potência política e militar? Os parâmetros de sua equação nuclear, por muito tempo congelados, se encontram atualmente modificados. Os pioneiros, os norte-americanos, estão preocupados com isso.

―Nós realmente sabemos quantos mísseis os chineses possuem hoje?‖ Ao lançar essa pergunta, em 2011, o norte-americano Richard Fischer, sentinela vigilante e um pouco sino-obcecado do International Assessment and Strategy Center, sabia perfeitamente que ia acertar em cheio o Pentágono e o Congresso.2 Pois uma certa imprecisão geral rodeia a avaliação do arsenal da China, que é atualmente o único país do grupo dos P53 a não declarar o número de armas nucleares que possui. Para o Stockholm International Peace Research Institut (Sipri), o total chegava em 2009 a 186 ogivas nucleares operacionais implantadas. O International Panel on Fissile Material (IPFM)4 evoca por sua vez cerca de 240. Se compararmos essas estimativas aos milhares de unidades possuídas pela dupla Moscou-Washington, a inquietação norte-americana parece exagerada. Em maio de 2010, os Estados Unidos declararam oficialmente possuir 5 mil ogivas nucleares, sejam elas táticas, estratégicas ou não implantadas. Desse total, 1,7 mil estão implantadas e são operacionais em mísseis balísticos intercontinentais (ICBM, na sigla em inglês), em mísseis balísticos lançados de submarino (SLBM, na sigla em inglês) ou em bombardeiros estratégicos.5

E no entanto, em 2009, um relatório da universidade norte-americana de Georgetown de repente agitou o pequeno mundo dos especialistas no desenvolvimento nuclear chinês.6Durante três anos, sob a direção do professor Philip Karber, ex-funcionário do Pentágono, um grupo de estudantes compilou novos dados abertos, e sua conclusão deixou os especialistas estupefatos: a China possuiria na verdade... 3 mil ogivas nucleares! O estudo ―revelou‖ também a existência de uma rede de túneis de 5 mil quilômetros que serviria para o transporte e a estocagem das armas nucleares e das unidades especializadas. Misteriosa e secreta, a ―Grande Muralha subterrânea‖ estimulou a imaginação dos jornalistas e se tornou imediatamente o pingente nuclear simbólico do ―colar de pérolas‖ das bases navais colocadas em ação por Pequim nas águas asiáticas.7

Em reação, os partidários norte-americanos do desarmamento nuclear, como Hans Kristensen, da Federation of American Scientists, acusaram o Pentágono de haver teleguiado esse estudo por intermédio de Karber, o qual, assim como Fischer ou o colunista social William Gertz, figura na primeira fileira dos denunciantes compulsivos do ―perigo‖ chinês. Os militares desmentiram.8 O caso reverberou na cena política. No dia 14 de outubro de 2011, o representante republicano Michael Turner bradou diante do Congresso a existência desse labirinto subterrâneo ―desconhecido‖: ―Exatamente no momento em que fazíamos um esforço de transparência do ponto de vista nuclear, a China tornou seu próprio sistema ainda mais opaco‖, criticou. A imprensa europeia, ―descobrindo‖ o estudo de Georgetown, apresentou por sua vez essa ―rede alucinante de túneis‖ como uma surpresa.9 Os jornais indianos fizeram coro. No início de janeiro de 2013, pressionado por todos os lados, Barack Obama acabou por encomendar ao Pentágono¸ para o próximo dia 15 de agosto, um relatório sobre o assunto.

Um “segredo”... público

Contrastando com os arroubos extremos do debate político norte-americano e com a postura de ―maria vai com as outras‖ do jornalismo europeu, parece, no entanto, que a ―Grande Muralha subterrânea‖ não é um segredo para ninguém há muitos anos. No dia 11 de dezembro de 2009, um jornal de Hong Kong, Ta Kung Pao, já dava informações precisas sobre esse canteiro de obras gigantesco, que teria mobilizado durante dez anos dezenas de milhares de soldados chineses.

O grande público asiático ficou sabendo ali que a segunda divisão da artilharia do EPL, encarregada das forças nucleares estratégicas, tomou a decisão em 1995 de enterrar mais profundamente seus vetores balísticos nucleares, de maneira a torná-los menos vulneráveis no caso de um eventual ataque-surpresa de destruição. Uma rede de túneis modernizados correria agora sob as bases montanhosas da região de Hebei, no norte do país, a uma profundidade de diversas centenas de metros,10 em uma paisagem de cânions e falésias abruptas particularmente adaptada à instalação de um sistema geosseguro de contragolpe nuclear.

Notamos principalmente que, na origem, a ―revelação‖ proveio do próprio canal de televisão estatal chinês, CCTV, que, ao difundir um documentário em 24 de março de 2008, comentou sobriamente o estabelecimento desse programa de túneis. Levando em conta o estrito controle exercido pelo Estado sobre as mídias, esse anúncio, bem guardado pelas administrações militares indiana, norte-americana e europeias, corresponde a um sinal dos mais oficiais. Além disso, para o EPL, cavar túneis não é um fim em si, mas uma das modalidades de refúgio de seu ―revide‖.

Paralelamente, Pequim passou de grandes mísseis fixos movidos a propulsão líquida, vulneráveis a um primeiro ataque de neutralização, a mísseis a propulsão sólida, rapidamente deslocáveis em lançadores móveis, como o DF-31A, de 11 mil quilômetros de alcance. Móveis ou enterrados, os mísseis de solo continuam sendo o único componente da ―tríade nuclear‖ chinesa (mísseis de solo, bombardeiros aéreos e submarinos) realmente crível, pelo menos por enquanto.

A China sabe, no entanto, que não pode se contentar em proteger suas capacidades ―de revide‖ se quiser conservar um crédito nuclear militar que os norte-americanos respeitem, quer queiram, quer não. É preciso também combater de maneira proativa os progressos da defesa antimísseis norte-americana, que poderiam neutralizar suas capacidades teóricas

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de réplica. Para desapertar esse novo parafuso, o EPL visa há muito tempo um campo de batalha alternativo: o espaço extra-atmosférico.

Medo de uma ultrapassagem tecnológica

Mesmo fazendo esforço, não encontraríamos mais nenhum veterano dos Guardas Vermelhos para cantar com convicção ―Quanto mais o satélite sobe, mais a bandeira vermelha desce!‖, como no tempo da Revolução Cultural. Segundo o ex-chefe de Estado-Maior da Aeronáutica e atual vice-presidente da poderosa Comissão Militar Central, o general Xu Qiliang, ―os interesses nacionais chineses estão em expansão, e o país entrou na era espacial‖.11 Mesmo se opondo oficialmente à militarização do espaço, Pequim mostra um claro desejo de contestar a hegemonia norte-americana. Incluindo em caso de conflito, no qual, levando em conta a dependência com relação a tecnologias espaciais cada vez mais provada das armas modernas, impedir o adversário de ter acesso ao espaço constituirá uma questão prioritária.

Apostando no fato de que só entre iguais as negociações são possíveis, a China está convencida, assim como a Rússia, de que apenas progressos significativos e independentes lhe permitiriam frear as ambições de space superioritydo Pentágono. Eles poderiam forçar os Estados Unidos a assinar um compromisso de neutralização militar do espaço que preencheria as lacunas do Tratado sobre o Espaço Extra-Atmosférico de 1967. Em 2001, um relatório norte-americano publicado pela Space Comission (ou Comissão Rumsfeld) explorava inclusive numerosos defeitos desse tratado para concluir que nada proibia ―armazenar ou utilizar armas no espaço‖ nem ―empregar a força do espaço em direção à Terra‖ ou ―conduzir operações militares no e através do espaço‖.12

Afastados da Estação Espacial Internacional pela National Aeronautics and Space Administration (Nasa), os chineses estão construindo sua própria estação, que, batizada de Tiangong e aberta aos cientistas de todas as nações, será concluída em 2020. Eles desenvolvem um lançador de 130 toneladas e anunciaram uma missão para a Lua em 2025, ao mesmo tempo que sonham ultrapassar os norte-americanos ao enviar um foguete habitado para Marte depois de 2030. A segunda geração de sua rede de satélites Beidou-Compass (Bússula) contará em breve com 35 unidades, oferecendo os mesmos serviços de geolocalização que o GPS, incluindo em modo militar.

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Mas os efeitos colaterais dessa estratégia talvez tenham ultrapassado as intenções de seus promotores. Ao destruir um velho satélite de meteorologia FY-1C, em janeiro de 2007, com a ajuda de um interceptador SC-19, a fim de demonstrar sua capacidade de atacar no espaço, a China abriu uma brecha para críticas. Os Estados Unidos, apoiados por diversas nações, imediatamente fustigaram o comportamento como ―delinquência espacial‖, denunciando o perigo causado pelos escombros do tiro, assim como a contradição com sua postura político-espacial virtuosa. Em janeiro de 2011, na mais recente versão da Estratégia Nacional de Segurança Espacial, Washington previne: ―Os Estados Unidos conservam o direito e as capacidades de responder em legítima defesa [no espaço] se a dissuasão fracassar‖.13

No plano da teoria estratégica, o norte-americano Everett Dolman afirma que ―a guerra por vir com a China terá por objetivo a batalha pelo controle do espaço extra-atmosférico‖.14Em segundo plano, a questão nuclear: os satélites norte-americanos de alerta precoce, utilizados no âmbito da detecção de partidas de tiros balísticos, se tornaram agora um alvo eventual das capacidades chinesas. Sem esses satélites, no entanto, a organização das forças e do comando nuclear estratégico norte-americano se torna globalmente deficiente.

A essas angústias acrescenta-se, do lado norte-americano, o sentimento lancinante de uma ultrapassagem tecnológica por vir. Quem ainda lembra que os foguetes comunistas ―Longa Marcha‖ lançaram cerca de vinte satélites comerciais antes que Washington impusesse nos anos 1990 um embargo às vendas de componentes de satélite a Pequim? A Nasa deixava acontecer, olhando ainda para a China com desprezo. A roda atômica girou. Mesmo que a diferença de capacidades com os

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Estados Unidos continue gigantesca, uma recuperação exponencial foi iniciada. Enquanto o Livro Branco chinês sobre o espaço de 2011 menciona apenas cinco ―eixos principais‖, todos civis (desenvolvimento científico, pacífico, inovação, autonomia e abertura para o mercado internacional), é preciso constatar que no mesmo ano, de dezenove lançamentos chineses, dezoito foram voltados para a defesa.

Em 2012, cerca de trinta satélites de todos os tipos foram colocados em órbita, dos quais alguns miniaturizados: telecomunicações (Zhongxing 10), navegação, vigilância, reconhecimento, transmissão de dados (Tianlian 1). Um programa de satélites de alerta está sendo projetado, enquanto um novo centro de lançamento espacial aparece em Wenchang, na ilha de Hainan. Nesse meio-tempo, o programa lunar norte-americano Constellation foi anulado por Obama em fevereiro de 2010. Para Gregory Kulacki, da Union of Concerned Scientists, os norte-americanos deveriam abandonar ―a ideia ultrapassada [de que na área espacial] os chineses têm mais necessidade de nós do que nós deles‖.15Sentindo o dedo na ferida, um engenheiro norte-americano do MIT modelizou em 2008 as condições de uma guerra espacial entre os dois países... para concluir, tranquilo, que os chineses perderiam com certeza.16

Febril e atávica, a agitação de alguns jornalistas norte-americanos diante do possível aumento de poder de um ―competidor par‖ da classe mundial não deve dissimular que os progressos espaço-nucleares chineses levantam objetivamente um certo número de questões. Todos os observadores concordam com o fato de que a China é o único membro do P5 que ainda aumenta seu número de ogivas. Mas em que proporções exatamente? A batalha dos números é raivosa e, entre os especialistas, alguns apostam em um máximo de 1,8 mil ogivas nucleares operacionais. Como os próprios militantes do Arms Control reconhecem, o importante não é se perguntar se a China moderniza seu arsenal – e ela o faz –, mas não criar desinformação a respeito do ritmo dessa modernização.

A conclusão é que, tendo em vista as ambições nucleares chinesas, o equilíbrio estratégico no seio do P5 vai mudar. O Reino Unido agora afirma possuir menos de 150 ogivas operacionais.17 A França, que procedeu a uma diminuição de 50% de suas ogivas desde a Guerra Fria, dividiu por dois o orçamento consagrado à dissuasão nuclear em vinte anos e conserva cerca de cem ogivas operacionais.18 Em apenas dez anos, apoiando-se no que poderíamos chamar de ―simbiose espaço-nuclear‖, Pequim saltou a etapa da paridade tecnológica com duas potências nucleares europeias – o que poderia parecer seu objetivo a médio prazo – para se colocar de partida em uma postura de diálogo assimétrica com as capacidades norte-americanas.

Negociar um novo tratado

Ao final, repetindo a dialética perversa da Guerra Fria, não podemos afastar totalmente a possibilidade de que Washington e Pequim se encontrem presos em uma corrida parecida com a que levou a URSS e os Estados Unidos, no desprezo de qualquer racionalidade, a acumular ogivas em silos para manter ―o equilíbrio do terror‖. Nos anos 1960, Washington teria mantido até 31 mil ogivas operacionais...

Essa visão maximalista da dissuasão nuclear contrasta com o princípio francês de estrita suficiência (nuclearmente, ―só se morre uma vez‖), um dogma de ―irracionalidade racional‖ que acabamos por nos convencer de que a China tinha tomado como seu desde 1964. Ainda em 2009, o presidente Hu Jintao não declarou na Organização das Nações Unidas que a China ―reiterava solenemente seu firme comprometimento com uma estratégia nuclear defensiva‖?19

Obama anunciou em 12 de fevereiro de 2013 uma nova redução do arsenal nuclear norte-americano, que poderia passar de 1,7 mil ogivas operacionais para menos de mil até 2020. Mas esse conceito mínimo de seguro de vida estratégico vai se manter se os progressos chineses se afirmarem? Vamos ver aparecer novamente os desenvolvimentos alucinantes do estrategista Hermann Kahn, fundador em 1961 do Hudson Institute, que proclamava que a estocagem de ogivas não era tão estúpida, já que uma guerra nuclear podia ter um ―vencedor‖?20

As reações inquietas dos vizinhos da China pesarão também nesse jogo cruzado de percepções. Com um rápido alerta, os japoneses podem teoricamente transformar seu novo lançador espacial a propulsão sólida Epsilon, que deve efetuar seu primeiro voo neste ano, em míssil balístico de longo alcance. O Vietnã não esconde suas ambições espaciais. A Índia avança na área do antissatélite (a destruição de satélites).

A solução só pode ser política. Recolocar em vigor a barreira do Tratado sobre a Limitação dos Sistemas de Mísseis Antimísseis (Tratado ABM) de 1972, unilateralmente denunciado pela administração Bush em 2002? Essa escolha teria alguma razão de ser, incluindo desta vez a China nas discussões. Isso prometeria negociações difíceis; mas o poder chinês seria obrigado a examinar uma oferta desse tipo, se fizermos um julgamento a partir das declarações oficiais que ele multiplica sobre as condições sine quibus non de um desarmamento nuclear mundial.21 Enquanto isso, no papel, das montanhas Hebei até a cintura geoestacionária, uma certa lógica de modernização paralela dos arsenais nucleares e espaciais parece tender a balançar de forma durável os equilíbrios estratégicos na Ásia oriental.

1 Evan Osnos, “The two lives of Qian Xuesen” [As duas vidas de Qian Xuesen], The New Yorker, 3 nov. 2009. 2 “US worries over China‟s underground network” [Estados Unidos preocupados com a rede subterrânea da China], Agence France-Presse, Paris, 14 out. 2011. 3 Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, o Reino Unido, a China, a França, a Rússia e os Estados

Unidos, são os únicos Estados dotados de armas nucleares reconhecidos pelo Tratado sobre a Não Proliferação das Armas Nucleares.

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4 O IPFM foi fundado em 2006 por especialistas civis da não proliferação originários de dezessete países. Ele é presidido por Ramamurti Rajaraman, da Universidade de Nova Déli.

5 “Nuclear weapons: who has what at a glance [Armas nucleares: quem tem o que de relance], Arms Control Association, Washington, nov. 2012. 6 “China‟s underground Great Wall: challenge for nuclear arms control [Grande Muralha subterrânea da China: desafio para o controle de armas nucleares], Asia Arms Control Project, Universidade de Georgetown, 2009.

7 Ler “La Chine affirme ses ambitions navales” [A China afirma suas ambições navais], Le Monde Diplomatique, set. 2008. 8 Hans M. Kristensen, “Stratcom Commander rejects high estimates for Chinese nuclear arsenal” [Comando Stratcom rejeita altas estimativas do arsenal nuclear chinês], FAS Strategic Security Blog, Federation of American Scientists, 22 ago. 2012. Disponível

em: . 9 “Que cache la Chine dans sa „grande muraille souterraine‟?” [O que a China esconde em sua “Grande Muralha subterrânea”?], Le Nouvel Observateur, Paris, 7 dez. 2009. 10 Arnaud de La Grange, “Les missiles nucléaires chinois à l‟abri d‟un tunnel secret” [Mísseis nucleares chineses protegidos por

um túnel secreto], Le Figaro, Paris, 19 dez. 2009. 11 “China „to put weapons in space‟” [China “a ponto de pôr armas no espaço”], South China Morning Post, Hong Kong, 3 nov. 2009. 12 “Report of the Commission to Assess United States National Security Space Management and Organization” [Relatório da

Comissão para Avaliar a Organização e o Gerenciamento da Segurança Nacional dos Estados Unidos no Espaço], 11 jan. 2011. Essas conclusões foram julgadas muito agressivas por relatórios posteriores do Departamento de Defesa. 13 Estratégia Nacional de Segurança Espacial, jan. 2011.

14 Everett C. Dolman, “New frontiers, old realities” [Novas fronteiras, velhas realidades], Strategic Studies Quarterly, v.6, n.1, Washington, 2012. 15 Jeff Foust, “Space challenges for 2011” [Desafios do espaço para 2011], 3 jan. 2011. Disponível em: . 16 “How China loses the coming space war” [Como a China perde a guerra especial que virá], Wired, San Francisco, 1º out. 2008.

17 Relatório do National Audit Office, de 5 de novembro de 2008, consagrado ao futuro da dissuasão britânica. 18 “Désarmement, non-prolifération nucléaires et sécurité de la France” [Desarmamento, não proliferação nuclear e segurança da França], Relatório de Informação do Senado n.332, 24 fev. 2010. Contando os estoques de manutenção, a França possui cerca de

trezentas ogivas. 19 Hu Jintao, “Work together to build a safer world for all” [Trabalhar juntos para construir um mundo mais seguro para todos], declarações durante o Encontro do Conselho de Segurança das Nações Unidas sobre a Não Proliferação e o Desarmamento Nucleares, Nova York, 24 set. 2009.

20 Herman Kahn, On thermonuclear war [Sobre a guerra termonuclear], Princeton University Press, 1960. 21 “Statement by the Chinese delegation on nuclear disarmament at the thematic debate at the first committee of the 67th Session of UNGA” [Discurso da delegação chinesa sobre o desarmamento nuclear no debate temático do primeiro comitê da 67ª

Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas], 19 out. 2012

OLIVER ZAJEC é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris). Ilustração: Benett. Jornal LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL, Maio de 2013.

O terror da ambivalência (LUIZ FELIPE PONDÉ)

VOCÊ esconderia judeus em sua casa durante a França ocupada pelos nazistas? Não, não precisa responder em voz alta. Melhor assim, para não passarmos a vergonha de ouvirmos nossas mentiras quando na realidade a janta, o bom emprego e a normalidade do cotidiano sempre valeram mais do que qualquer vida humana. Passado o terror, todos viramos corajosos e éticos.

Anos atrás, enquanto eu esperava um trem na estação de Lille, na França, para voltar para Paris, onde morava na época -ainda bem que tinha minha família comigo porque Paris é uma cidade hostil-, li a resenha de um livro inesquecível na revista "Nouvel Observateur". Nunca li esse livro, nem lembro seu nome, mas a resenha era promissora. Entrevistas com filhos e filhas de pessoas que esconderam judeus em casa durante a Segunda Guerra davam depoimentos de como se sentiram quando crianças diante dos atos de coragem de seus pais e suas mães.

A verdade é que essas crianças detestavam o ato de bravura de seus pais. Sentiam (com razão?) que não eram amados pelos pais, que preferiam pôr em risco a vida deles a protegê-los, recusando-se a obedecer a ordem: quem salvar judeus morre com eles. Podemos "desculpar" as crianças dizendo que eram crianças. Nem tanto. Adolescentes também sentiam o mesmo abandono por parte dos pais corajosos. Cônjuges idem.

Está justificada a covardia em nome do amor familiar? Nem tanto, mas deve-se escolher um estranho em detrimento de um filho assustado? Tampouco dizer que os covardes também seriam vítimas vale, porque o que caracteriza a coragem é exatamente não se deixar fazer de vítima - coisa hoje na moda, isto é, se fazer de vítima. Não foi muito diferente aqui no Brasil durante a ditadura, guardando-se, claro, as diferenças de dimensão do massacre.

No entanto, não me interessa hoje essa questão da falsa ética quando o risco já passou - a moral de bravatas. Mas sim a ambivalência insuportável que uma situação como essa desvela, na sua forma mais aguda. Ou meu pai me ama ou ama o judeu escondido em minha casa, ou, ele me ama, mas não consegue dormir com a ideia de que não salvou alguém que considerava vítima de uma injustiça, e por isso me põe em risco. Eis a razão mais comum dada por esses pais, quando indagados, da razão de pôr em risco sua vida e família: "Não conseguia fazer diferente". Mas a ambivalência da vida não se resume a casos agudos como esses.

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Freud descreveu os sentimentos ambivalentes da criança para com o pai no complexo de Édipo: amo meu pai, mas quero também me livrar dele, e também sinto culpa por sentir vontade de me livrar dele. Independente de crer ou não em Freud plenamente (sou bastante freudiano no modo de ver o mundo, e Freud foi o primeiro objeto de estudo sistemático em minha vida), a ambivalência aí descrita serve como matriz para o resto da vida.

Os pais amam os filhos (nem sempre), mas ao mesmo tempo ter filhos limita a vida num tanto de coisas (e hoje em dia muita mulher deixa para ser mãe aos 40 por conta deste medo, o que é péssimo porque a mulher biologicamente deve ser mãe antes dos 35). Apesar dos gastos intermináveis, no horizonte jaz o possível abandono na velhice por parte destes mesmos filhos "tão" amados.

Mas, ao mesmo tempo, não ter filhos pode ser uma chance enorme para você envelhecer como um adulto infantil que tem toda sua vida ao redor de suas pequenas misérias narcísicas. Casamento é a melhor forma de deixar de querer transar com alguém devido ao esmagamento do desejo pela lista infinita de obrigações que assola homens e mulheres, dissolvendo a libido nos cálculos da previdência privada.

Mas, ao mesmo tempo, a liberdade deliciosa de transar com quem quiser (ficar solteiro), com o tempo, facilmente fará de você uma paquita velha ridícula sozinha que confunde pagar por sexo com um homem mais jovem com emancipação feminina. E, no caso do homem, o tiozão babão espreita a porta. E, também, terá razão quem disser que mesmo casando você poderá vir a ser uma paquita velha ou um tiozão babão. Quantas ambivalências espera você nessa semana?

LUIZ FELIPE PONDÉ, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Coisa de menino ou coisa de menina? (ROSELY SAYÃO)

ACOMPANHO com regularidade blogs escritos por mães a respeito da maternidade, do relacionamento com os filhos e das dificuldades que encontram na educação deles. Fico impressionada ao constatar como há gente que reflete, que pensa a educação, que aprende com os erros cometidos e está sempre disposta a compartilhar tudo com outras mães e outros pais. Além disso, é uma delícia ler textos bem escritos, bem-humorados e criativos.

Um dia desses, em um desses blogs que sigo, vi uma foto que quase não precisou de texto para expressar a opinião dessa mãe. Duas garotas, com menos de oito anos, riam para a câmera exibindo com alegria as fantasias que vestiam. De Batman e Robin. Uma única frase acompanhou a foto: "Para meninas com personalidade". Estava claro. Essa mãe questionava o que convencionamos separar como brinquedos e brincadeiras de meninos e de meninas. É sobre essa questão a nossa conversa.

Até a primeira metade do século 20, os estereótipos a respeito do que era adequado para meninas e para meninos era quase consenso social. Azul para meninos, rosa para meninas; carrinhos para meninos, bonecas para meninas; certas profissões para homens, outras para mulheres e assim por diante. A partir dos anos 1960 tudo passou a mudar. Desconstruímos os rígidos papéis de homem e mulher e passamos a reconstruir novos, processo esse que ainda está em curso. Foram as crianças que mais ganharam com isso.

O colorido das fantasias, inclusive de bailarina, dos adereços femininos, da maquiagem, das vestimentas e dos calçados de salto etc. passou também a habitar a vida dos meninos; carros, ferramentas, espadas, bolas etc. se transformaram também em coisas de menina. Não foi - e ainda não é - sem temor por parte dos adultos que isso aconteceu. Meninas jogando futebol? Meninos brincando de casinha? Um estranhamento tomou conta de muitos pais, que manifestam resistência a esse novo estilo de vida. Os motivos? O principal, além da quebra de uma tradição, diz respeito à sexualidade, é claro.

Professoras e coordenadoras de escolas de educação infantil ainda costumam ouvir reclamações de mães sobre brincadeiras na escola que os filhos relatam e que escapam aos estereótipos em vigor, um pouco mais fracos, mas que ainda valem para muita gente. A maioria das reclamações vem da parte de mães e pais de meninos. Não é interessante esse fato? Sabemos que preconceitos e estereótipos solidamente colocados na sociedade demoram a ser transformados e substituídos. É responsabilidade das organizações colaborar nesse processo.

Muitas escolas, principalmente de educação infantil, têm dado valiosa contribuição para que esses estereótipos e preconceitos de que falamos enfraqueçam. Mas elas podem melhorar. Aí, em pleno século 21, empresas oferecem produtos em embalagens diferentes para meninas e para meninos! Exemplo? Chocolate rosa para elas e azul para eles, com brindes considerados femininos e outros masculinos.

E ainda justificam que esse é um anseio do seu grupo consumidor. Ora, se o consumidor sempre tivesse razão, o mundo estaria muito mais atrasado. Talvez não tivéssemos carros e aviões, e sim carroças de boi sofisticadas. Muito se fala a respeito da responsabilidade social. Empresas exploram esse conceito principalmente para transformá-lo em marketing. A decisão de comercializar produtos dirigidos para meninas e para meninos é uma ação que expressa uma total irresponsabilidade social, não é verdade?

ROSELY SAYÃO, psicóloga e consultora em educação, fala sobre as principais dificuldades vividas pela família e pela escola no ato de educar e dialoga sobre o dia-a-dia dessa relação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

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Somos muitos ou somos poucos? (CONTARDO CALLIGARIS)

NA SEXTA passada, imobilizado na av. Nove de Julho enquanto se aproximava a hora da sessão de cinema para qual tinha adquirido meu ingresso, eu pensava que, decididamente, somos muitos. Em compensação, sozinho, à noite, numa fazenda na região do Urucuia, em Minas Gerais, ou numa ilha de Angra, já me aconteceu de pensar que somos muito poucos.

No fim de semana, li o novo livro de Dan Brown, "Inferno" (editora Arqueiro). O romance me divertiu menos do que "O Código Da Vinci" e "Anjos e Demônios" (ambos da editora Sextante); mesmo assim, terminei em dois dias. O tema da vez é o crescimento demográfico. O vilão da história acha que o mundo tem um único problema sério: a humanidade está crescendo de tal forma que, em breve, sua subsistência se tornará impossível. Todas as inquietações ecológicas (a perspectiva da falta de água potável ou de alimentos, o aquecimento global etc.) seriam, de fato, consequências do crescimento enlouquecido de nossa espécie - fadada a desaparecer por seu próprio sucesso.

Quantos humanos nasceram na Terra desde a aparição do homem? Há estimativas para todos os gostos. Segundo uma delas, mencionada no livro, foram 9 bilhões desde o começo, e 7 desses 9 estão vivos hoje. A boa notícia é que, se o Juízo Final fosse hoje e todos os mortos voltassem, haveria sem problema espaço para todos ficarmos sentados durante o julgamento divino. Mas o cálculo não deixa de ser inquietante.

Mesmo sem acreditar na estimativa que acabo de mencionar, é certo que o crescimento populacional se acelerou de uma maneira bizarra. Éramos 1 bilhão em 1804, levamos 150 anos para chegarmos a 3 bilhões (nos anos 60), e passamos dos 7 bilhões em 2011. Em 2050 poderíamos ser 10 bilhões. Obviamente, num primeiro momento, nem todos sofreriam de forma igual - afinal, desde que viajo em classe executiva, nunca encontrei um problema de "overbooking". Mas, no fim, será que vai caber todo mundo? Não seria honesto desejar grandes epidemias purificadoras?

Ora, enquanto Dan Brown me convencia de que somos muitos, a "Veja" de sábado passado publicou uma matéria de capa sobre as mulheres que decidem não ter filhos. O olho anunciava: "o número de famílias brasileiras sem filhos cresce três vezes mais do que o daquelas com crianças". Em geral, quanto mais um povo se desenvolve cultural e economicamente (ou seja, quanto mais um povo se parece com o Ocidente moderno e desenvolvido), tanto menor é o número médio de filhos por família. A explicação desse fenômeno (quase uma regra sem exceções) é que, na cultura ocidental moderna, os filhos são criados e amados na esperança de que realizem os sonhos frustrados dos pais.

E, se essa for nossa expectativa, melhor ter um ou, no máximo, dois filhos, para podermos concentrar nossos esforços na hora de fazê-los felizes. Isso sem contar o número (crescente em nossa cultura) de homens e mulheres que decidem não ter filhos e se concentrar em sua própria felicidade. Enfim, para que a espécie não encolha, é preciso que, em média, haja 2,1 filhos para cada dois adultos --ou seja, se todos casarem, nove em dez casais devem ter dois filhos e um deve ter três. Uma boa metade da população da Terra (incluindo o Brasil) não está fazendo o necessário para repor seus mortos.

Temporariamente, haverá (já está havendo) deslocamento de populações dos lugares menos modernizados e mais pobres (onde a população ainda cresce) para os lugares mais ricos, onde ela diminui. Mas, e depois disso, se todos se "modernizarem"? Em conclusão, quem tem razão, "Veja" ou Dan Brown? Vamos desaparecer porque estamos crescendo demais? Ou vamos desaparecer por extinção, como os pandas, que deixaram de se reproduzir como deveriam?

Não sei. Poderíamos sumir numa catástrofe ecológica antes de ter diminuído o suficiente para que a Terra nos aguente - ou antes de ter inventado uma nova maneira de viver, que a Terra aguente melhor. Ou, inversamente, poderíamos minguar até sumir.

De todo modo, a ideia do fim de nossa espécie é fascinante - um alívio, por tornar nossa morte individual menos relevante, e um horror radical, por nos condenar a morrer de novo e para sempre, no esquecimento. Para meditar sobre nosso sumiço futuro, confira o "O Mundo sem Ninguém", no History Channel (www.migre.me/eLEu2) ou o original "Life After People" (no YouTube), com seu aplicativo para celular.

CONTARDO CALLIGARIS, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley. Reflete sobre cultura, modernidade

e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Outros islãs (WILLIAM STODDART e MATEUS DE AZEVEDO)

A NATUREZA e os propósitos essenciais do islã, a mais recente (1.400 anos), difundida (1,5 bilhão de aderentes) e influente (50 países) das tradições espirituais da humanidade, continuam desconhecidos do público ocidental. Entre as causas dessa desinformação estão a mera carência de dados doutrinais e históricos, diferenças de perspectiva intelectual e moral entre ocidentais e muçulmanos, interesses velados e preconceitos.

O fato de o islã ser fonte cotidiana de notícias não muda substancialmente esse panorama, pois a maioria é negativa. Um dos fatores a explicar isso é a falta de esclarecimento acerca de diferenças entre as várias correntes que se confrontam no próprio mundo islâmico. É preciso transcender a dicotomia simplista e superficial entre "moderados" e "extremistas". Ela não é acurada e escamoteia diferenças cruciais. Mesmo a diferenciação entre sunismo e xiismo é exposta de maneira vaga.

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Outra fonte de desinformação deriva do fato de se chamarem os terroristas de "fundamentalistas". O termo em si significa alguém que se apega a princípios, ou "fundamentos". Mas os terroristas romperam com os pilares do islã ao visarem civis não combatentes e ao operarem com base em ódio religioso contra cristãos e judeus - "povos do Livro", segundo o Alcorão.

Quanto aos wahabitas, eles se caracterizam por literalismo e estreiteza. São eles os verdadeiros fundamentalistas, não os terroristas. Os wahabitas estão longe de representar de forma plena e integral o islã. Pelo contrário, são refratários à rica filosofia islâmica, bem como à sua mística. O fato de que aderentes de três das quatro principais correntes políticas, listadas abaixo, serem chamados todos de "fundamentalistas" causa obscurecimento de diferenças reais.

Outro ponto: alguns vão se surpreender ao dizermos que houve, no século 20, bons governantes e estadistas muçulmanos. Quem já ouviu falar do rei Idris, da Líbia, dos mais sábios líderes da época? Governante de 1951 a 69, ele liderou a resistência contra a ocupação italiana e foi deposto num golpe liderado pelo então coronel Gaddafi. E de Abu Bakr Tafawa, primeiro-ministro da Nigéria (1960-66), ou Tunku Abdul Rahman, premiê da Malásia (1957 e 70)? Foram ilustres e competentes, mas quem se lembra deles?

Ao considerar os muçulmanos de hoje, temos de distinguir os "tradicionais" (ou espirituais) dos "revolucionários", incluindo os terroristas entre estes. E, igualmente importante, distinguir os tradicionais dos fundamentalistas. Seriam, então, quatro categorias principais.

1. Líderes "tradicionais": os homens citados acima. 2. Wahabitas: os "fundamentalistas" estão longe de

representar a tradição islâmica em sua plenitude. 3. "Revolucionários islâmicos": seguidores de Khomeini no

Irã ou de Gaddafi na Líbia, todos demagogos e coletivistas. Os principais grupos terroristas estão nesta categoria. Eles reivindicam o nome "islã", mas são de fato letais para ele. Infelizmente, é gente desse tipo que o público ocidental vê como "muçulmano típico".

4. Secularistas: inclui figuras como Assad, da Síria, e o finado Saddam Hussein, do Iraque. São basicamente antirreligiosos, portanto o termo "fundamentalista", no sentido literal, é inapropriado.

Aqui, tratamos de categorias políticas e, portanto, não é o lugar de abordar o sufismo, a mística islâmica. Não obstante, em razão de sua importância, concluímos com uma palavra sobre ele. Seus chefes se engajam na ação política direta somente de forma secundária. Seu foco é a contemplação, não a ação, mas nem por isso deixam de ter uma influência positiva. Um exemplo foi o célebre emir Abdel Kader (1808-1883), que, mesmo místico, liderou a resistência contra o colonialismo francês.

WILLIAM STODDART, 87, é islamólogo britânico e MATEUS SOARES DE AZEVEDO, 53, é historiador de religiões e autor de "Homens de um Livro Só". Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Saber ou não saber? (CRISTIANE SEGATTO)

A utilidade dos testes genéticos e o câncer de mama que matou a tia de Angelina Jolie

SABER ou não saber, eis a questão. É preciso resolver esse dilema antes de fazer um teste genético para avaliar o risco de aparecimento de doenças. Uma resposta em menos de 140 caracteres: tudo depende da qualidade da informação e do que é possível fazer com ela.

Investigar mutações nos genes BRCA1 e BRCA2, como fez a atriz Angelina Jolie, é uma providência sensata quando outra mulher da família teve câncer de mama ou ovário em idade precoce. A mãe de Angelina morreu de câncer de ovário aos 56 anos depois de uma luta de quase uma década contra a doença. No domingo (27) a atriz perdeu a tia materna, Debbie Martin. O risco imposto por essas alterações genéticas é alto, o teste é confiável e há várias possibilidades de ação.

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Se a pessoa descobre que não herdou a mutação pode respirar aliviada – ainda que não esteja livre dos exames que toda mulher deve fazer a partir dos 40 anos. Afinal, somente 10% dos casos de câncer são hereditários.

Se ela herdou a mutação, tem a chance de reescrever a história gravada nos genes. Pode fazer exames de imagem a cada seis meses, flagrar e eliminar tumores milimétricos. Pode tomar bloquedores hormonais durante cinco anos, uma estratégia que reduz em 50% o risco de câncer de mama. Ou pode escolher a via radical: retirar as mamas e os ovários preventivamente. Se tiver o sonho de ser mãe e amamentar, pode construir uma família enquanto é jovem e, só depois, pensar em cirurgia.

A decisão é difícil e muito particular. Todas as alternativas envolvem prós e contras, mas a avaliação desses dois genes é um exemplo de bom uso da tecnologia médica. Nem sempre é assim. A ilusão de controle sobre o futuro fez surgir um mercado fértil para testes genéticos que produzem mais confusão que clareza e mais ansiedade que saúde. Foi o que senti ao entrar na estranha era da genômica pessoal, tema de uma reportagem de ÉPOCA em 2009. Esfreguei uma espátula no interior da boca para coletar algumas poucas células, mandei a amostra para a empresa com sede na Islândia e paguei US$ 985 com cartão de crédito. Dois meses depois meu futuro estava na tela do computador.

Com uma senha pessoal, comecei a navegar por dezenas de doenças. Respirei fundo antes de clicar na palavra câncer de mama. A cada cem mulheres descendentes de europeus, 12 têm a doença em algum momento da vida. Descobri que a cada cem mulheres com as minhas variantes genéticas, 13 desenvolvem tumores. Não fiquei feliz, mas a consciência do risco ligeiramente mais elevado não mudou minha estratégia de prevenção. Vou continuar fazendo mamografia e outros exames do mesmo modo que faria caso não tivesse dado uma espiadela no meu DNA. Como a maioria das análises disponíveis no mercado, o teste que eu fiz revela apenas ligeiras variações em pequenas porções do genoma. Essas variações sugerem maior ou menor suscetibilidade a doenças, mas não justificam medidas drásticas. Funcionam como um recado do tipo: ―Trate de se alimentar direito, não engordar, não fumar e fazer mamografia. Se fizer tudo errado, seus genes podem dar uma ajudazinha para o câncer se instalar‖.

É uma mensagem bem menos eloquente que a descoberta de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2. Em vez de suscetibilidade, elas indicam predisposição ao câncer - uma alta probabilidade de ocorrência da doença. A diferença é a intensidade da mensagem. Suscetibilidade é um lembrete. Predisposição é um alarme. A maioria dos geneticistas recomenda que pessoas saudáveis não façam testes preditivos de males devastadores e sem cura. A exceção são as doenças monogênicas, nas quais uma alteração num único gene indica certeza de aparecimento da doença. De posse da informação, a pessoa pode evitar ter filhos e passar o sofrimento adiante.

Um exemplo é a doença de Huntington, uma disfunção cerebral hereditária que provoca degeneração mental e corporal. Existem cerca de 6 mil doenças hereditárias monogênicas. Nessas situações, os testes genéticos fazem todo o sentido. Não é o caso, por exemplo, do Alzheimer. De que me adianta saber hoje que talvez eu possa deixar de ser eu mesma daqui a 30 anos? Saber para quê? Para achar que qualquer lapso de memória é o primeiro sinal do fim?

Como meu projeto de vida é passar a velhice entre livros, escolhi não ver o resultado que os islandeses enviaram. Uma senha de onze dígitos me separa daquele que pode ser meu destino. O resultado do teste está intacto, como sempre esteve, desde 2009. Em alguns casos, a ignorância pode ser libertadora. Prefiro o diagnóstico do jagunço Riobaldo, de Grande sertão: veredas: ―Viver é um descuido prosseguido‖.

CRISTIANE SEGATTO é Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve

sobre medicina há 17 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Revista ÉPOCA, Maio de 2013.

Sonhos ajudam a resolver problemas e até a ver o futuro, diz neurobiólogo

(IARA BIDERMAN)

A CIVILIZAÇÃO atual não sabe mais sonhar, lamenta um dos maiores especialistas brasileiros no assunto, o neurobiólogo Sidarta Ribeiro, 42. Segundo ele, os sonhos são ensaios que auxiliam a pessoa a enfrentar desafios, assim como eram uma garantia de sobrevivência para nossos ancestrais.

No Instituto do Cérebro da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), dirigido por Ribeiro, essas hipóteses são testadas com equipamentos, à luz das novas descobertas da biologia, da física e da neurofisiologia. Toda essa ciência dura não o impede de usar áreas mais elásticas do conhecimento. Ele incorpora aos seus estudos conceitos vindos da psicanálise, de relatos de povos primitivos e de pesquisas sobre efeitos da ayahuasca (chá do Daime) e da maconha.

No momento, o pesquisador experimenta uma nova tecnologia para modificar neurônios em cérebros de ratos com o objetivo de induzir ao sono e à concentração da memória. Ele acaba de finalizar um estudo comprovando a precisão de diagnósticos de esquizofrenia e bipolaridade feitos a partir de relatos de sonhos de pacientes. A reportagem da Folha conversou com Ribeiro no Rio, durante um seminário sobre sono. Leia trechos.

Folha - Qual é, no fim, a função do sonho?

Sidarta Ribeiro - Hoje em dia, nenhuma, porque a gente não dá importância para o sonho. Em culturas tradicionais, era central. O público universitário não acredita em sonhos, mas, se a pessoa se dispuser a fazer um "sonhário" [diário de

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sonhos], vai perceber que eles têm função. O sonho joga estímulos elétricos em suas memórias e você fica explorando todas as possibilidades, o que pode ou não acontecer. É mesmo uma capacidade de ver o futuro.

O que mais o sonho faz?

O sonho é, sobretudo, a articulação de memórias regida pelo circuito de recompensa do cérebro. Não é reverberar qualquer memória, mas sim aquelas que têm a ver com procurar o que nos dá prazer e evitar o que é desagradável. Sonhar serve como um ensaio, uma simulação de expectativas de recompensas e punições que prepara a pessoa para enfrentar a vida. Um estudo sobre sonhos de mulheres que se separaram dos maridos mostrou um padrão entre eles. Primeiro, elas sonham que está tudo bem no casamento; depois, há uma fase em que sonham que o marido morreu e, por último, acontece a simulação: nos sonhos, elas ou os maridos estão se relacionando com outras pessoas.

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A psicanálise ajuda a recuperar essas funções dos sonhos?

Acho a psicanálise muito útil, mas não dá para fazer análise com uma pessoa que não tem introspecção. Que "não sonha". A nossa civilização esqueceu como se sonha. As pessoas precisam reaprender a sonhar.

Como é esse aprendizado?

É dar ao sonho um lugar de importância. Se a pessoa vai para a cama e adormece vendo TV, não está se preparando para a experiência importante, transcendental mesmo, que é sonhar. E, se ela se levanta da cama pulando e vai fazer outra coisa, não tem como se lembrar do que sonhou. A pessoa tem que treinar essa lembrança. É preciso também perceber como o cinema e a TV tomaram o lugar de nossos sonhos. As pessoas sonham acordadas sonhos que são feitos por outras pessoas, com conteúdos prontos.

Mas esses conteúdos também têm a sua função...

Nada contra, adoro filmes, seriados... O problema é que a gente vive em um mundo de excesso. Os estímulos hoje são muito mais complexos. Aí seu sonho é cheio de filigranas, como uma cama com dossel: não tem utilidade tão real, não vai salvar a sua vida. Só em situações de estresse eles se tornam mais práticos.

O que é um sonho prático?

É quando ataca um problema concreto. Um estudo que fizemos no Instituto do Cérebro mostrou que candidatos que sonham com o vestibular têm notas 30% mais altas do que os outros. Mais interessante: os que simplesmente sonharam terem passado na prova não foram os melhores, e sim os que tinham sonhos com as matérias estudadas. Sonho tem que ter utilidade, como tinha para os homens das cavernas: se ele sonhava com um tigre no lugar onde costumava beber água, ficava ligado. Mesmo se só criasse temores subliminares, o sonho aumentava as chances de sobrevivência.

Animais também sonham?

Todos os mamíferos e alguns pássaros têm sono REM, que é a fase em que se sonha de forma vívida. Só que os pássaros têm centenas dessas fases. Devem ser sonhozinhos que duram segundos. Os nossos duram 40 minutos.

E são só quatro por noite?

Eu tenho uma teoria que, apesar de termos quatro episódios de sono REM, temos milhares de sonhos, mas testemunhamos só um por vez. Quando sonhamos, todas as criaturas da mente estão acordadas. É um zoológico: abre a porta e sai tudinho. O nosso "self" [consciência de si] é só um dos bichos, para onde ele for será o sonho que estaremos vendo. E são camadas e camadas interpenetráveis de coisas rolando. Por isso é tão comum você sonhar que entra em um lugar e, de repente, está em outro.

Como o sr. define consciente e inconsciente?

Inconsciente é a soma de todas as memórias que a gente tem e todas as combinações possíveis. Por isso é tão grande. Consciente é a mínima fração disso que está ativa no momento.

E o que é a consciência?

Ninguém sabe. Não há nem mesmo um acordo sobre o que a palavra quer dizer. A consciência tem a ver com informações que se espalham no cérebro todo.

Então não dá para definir o lugar da consciência no cérebro?

Eu odeio isso, dizer que cada área faz uma coisa: "Meu hipocampo navegou, meu hipotálamo sentiu". Não temos controle. Isso só serve para livro de autoajuda e para vender remédio. Mas as pessoas adoram, parece que você explicou tudo ao mostrar áreas cerebrais coloridas.

IARA BIDERMAN é Jornalista e escreve para esta publicação. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Quem soube sabe? (ANDRÉ MANTOVANI)

O MOMENTO é de transformação na indústria da comunicação. Surgem novas mídias, novos formatos e vetores. O "modus operandi" do mercado se altera, veículos tradicionais perdem lugar para a novidade, tradições arrefecem. Ameaças e oportunidades se misturam. O aumento da penetração da TV paga faz a quantidade de canais se expandir de forma acelerada. Emissoras de TV aberta perdem espaço para canais segmentados. Tendência que só se intensificará.

Inserida nesse ambiente está a TV Cultura, que, a partir do próximo mês, contará com novo presidente-executivo. Sua marca é lembrada com carinho e possui atributos valiosos. Mas sua programação é morna e pouco relevante. A palavra aqui é vitalidade. Não há. Ao passar pelo canal, percebemos que tecnicamente tudo é bom e correto, os apresentadores, os

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cenários, as chamadas, a organização da grade. Mas falta vida, falta atrair, é burocrática. A TV Cultura envelheceu mal. Precisa atualizar-se.

O ponto de partida seria o próprio nome: TV Cultura. Num significado menor, cultura confunde-se com erudição, distante da maioria. Num significado mais amplo, cultura é o ambiente ao redor e a maneira pela qual aprendemos a percebê-lo. No último, cultura e comunicação se entrelaçam --é por intermédio da cultura que ocorre a comunicação. Entendida assim, a palavra cultura nos indica que a TV Cultura poderia propiciar novos olhares. Cabe sugerir que o caminho seria abordar temas atuais e relevantes de um ponto de vista inusitado e não convencional, de forma a abrir novas perspectivas para a sua audiência, fugindo do lugar-comum e da análise superficial, sem cair no erudito inaccessível ou folclórico desinteressante. Um desafio.

Sem cair na armadilha da quantidade versus qualidade, pois boa programação atrai bons números de audiência. Há que se propor movimentos mais contundentes na programação. Alguns passos já foram dados. A aproximação com a produção independente, o lançamento de formatos e o uso da segunda tela são boas iniciativas, mas é pouco. Por que não pensar na BBC? Uma TV pública que é exemplo para o mundo, experimenta e inova com excelentes resultados. Atualiza-se com velocidade, pois preocupa-se com sua audiência, em ser relevante e em comunicar o que acredita interessar ao seu público entendido de forma ampla. Mais do que uma TV, a BBC é uma marca forte com atuação multiplataforma.

Contentar-se com números de audiência que surgem depois da vírgula é pouco. Os recursos do Estado estão alocados e serão gastos. A TV Cultura não pode ser um desperdício, e o momento não é para timidez. O audiovisual é setor estratégico e em forte transformação. Cabe à Fundação Padre Anchieta participar de forma ativa desse desenvolvimento. O audiovisual ajuda na construção das identidades. É importante que o Estado contribua para uma construção rica. Assim, colaborará na criação de cidadãos mais autônomos e conscientes.

A TV Cultura deve voltar a ser polo vanguardista na produção midiática, o canal em que surgem novos e importantes formatos de comunicação. Não há tempo a perder.

ANDRÉ MANTOVANI, 49, é consultor e mestre em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi presidente da MTV Brasil e vice-presidente de gestão da Fundação Padre Anchieta

Endurecer a lei resolve o problema das drogas? Sim

Premissas erradas (OSMAR TERRA)

O ARGUMENTO central de quem defende a liberação das drogas parte de premissas erradas. Dizem que travar uma guerra contra as drogas nada resolve. Falam que, desde que foi promulgada a lei nº 11.343, de 2006, a pena mínima para traficantes aumentou de três para cinco anos, o número desses criminosos presos triplicou, mas o tráfico não diminuiu.

Seria, portanto, um mal menor liberar. Esvaziaria as prisões, acabaria com o tráfico, geraria mais impostos. Mas como explicar que um aumento de 60% no tempo de pena tenha gerado crescimento de 300% no número de traficantes presos? Na verdade, a causa maior, não admitida nos discursos liberacionistas, é a explosão da epidemia do crack. De 2006 para cá, aumentou muitas vezes a oferta da droga, o número de dependentes químicos e, por consequência, de traficantes. No Rio Grande do Sul, em 1998, comemorávamos não haver qualquer registro de uso do crack. Em 2008, estimávamos que mais de 1% dos gaúchos (ao redor de 110 mil) virou refém dessa droga. De lá para cá, o número só aumentou.

Em todo o Brasil, a maior causa de pedidos de auxílio-doença do INSS sempre foi o alcoolismo. Até 2006. Em 2012, o crack e a cocaína já eram responsáveis por 2,5 vezes mais auxílios-doença que o álcool. Pesquisas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) apontam que, em 2011, já tínhamos 2,8 milhões de usuários de crack e cocaína. E entre os 3,8 milhões de usuários de maconha, 2 milhões também usavam crack simultaneamente. Com base nos números do Ministério da Saúde, pode-se deduzir que o crack é a maior causa, direta ou indireta, de mortes de jovens de 15 a 25 anos no país. A droga também é a maior causa, direta ou indireta, de homicídios. No mundo, o Brasil já é o maior consumidor de crack (segundo a Unifesp) e o recordista de homicídios (segundo a ONU).

Comprovando a gravidade dessa epidemia, constatamos que, apesar do extraordinário aumento de consumo e da apreensão de drogas, de 2006 para cá, o preço da pedra de crack não aumentou. Isso significa que a oferta, que gera a epidemia, é colossal. Isso se deve em grande parte às extensas fronteiras que temos com todos os produtores de coca do mundo.vLiberar drogas nessas circunstâncias seria trágico. Hoje, os dependentes de drogas legais, como álcool e tabaco, chegam perto de 50 milhões. Estima-se serem 6 milhões os dependentes das drogas ilícitas. E o número só é menor por serem criminalizadas. Se liberadas, rapidamente seus dependentes chegariam, em número, aos patamares das drogas lícitas. Uma tragédia humana inimaginável.

A lógica da epidemia viral vale para todas as drogas. Quanto mais vírus circulando, mais doentes. Quanto maior a oferta de drogas, mais dependentes químicos, que se tornarão doentes crônicos.vDiante de tão grave problema, necessitamos de ações à altura. Quando a epidemia do crack chegou a níveis avassaladores nos EUA, durante a década de 80, o governo aumentou o rigor das penas e a oferta de tratamento. Hoje, existem menos dependentes do crack lá do que no Brasil, e o número de homicídios caiu à menos da metade. Situação semelhante ocorreu na Suécia, na década de 60,

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quando todas as drogas eram liberadas. Aumentando o rigor das punições, passou a ser o país da Europa com menor número de dependentes necessitando tratamento e com as menores taxas de acidentes de trânsito e de homicídios.

A epidemia das drogas é problema complexo que não se resolve num passe de mágica. Precisamos de medidas firmes e abrangentes, mantidas por longo tempo, para contê-lo. Daí uma lei que aumente o rigor como a proposta do projeto de lei nº 7.663/10, e não uma que libere. Que o governo dê a prioridade que o assunto exige.

OSMAR TERRA, 63, médico, é deputado federal pelo PMDB do Rio Grande do Sul. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Endurecer a lei resolve o problema das drogas? Não

Drogas e pobreza (RAFEL CUSTÓDIO e RAFAEL DIAS)

A CÂMARA dos Deputados aprovou nesta semana o texto base do projeto de lei nº 7.663/10, do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Representa um dos maiores retrocessos legislativos dos últimos tempos quanto ao impacto da lei de drogas no sistema prisional e na Justiça criminal.

Como se não fosse evidente o fracasso da atual política de encarceramento em massa, em muito resultante da atual legislação antidrogas, as propostas em questão reforçam e aprofundam a ótica punitiva e seletiva do Estado sobre o tema. A população carcerária brasileira já é a quarta maior do mundo (550 mil). Temos também a terceira maior taxa de encarceramento. Desde 2005, um ano antes da promulgação da atual Lei de Drogas, a população prisional por tráfico saltou de 33 mil (11% do total) para 138 mil (25% do total).

Pesquisas recentes demonstram que a maior parte das pessoas presas por crimes relacionados a drogas são homens, jovens entre 18 e 29 anos, negros e pardos, com escolaridade até o primeiro grau completo e sem antecedentes criminais. O que se vê é que o suposto combate às drogas é na verdade um instrumento eficaz de criminalização da pobreza e da juventude negra. Além disso, esse jovem é em geral preso sozinho, sem arma, com pouca quantidade de droga e sem que tenha havido qualquer atividade de inteligência policial para a sua prisão (são presos, via de regra, nas "rondas" das Polícias Militares). Não há, portanto, verdadeira articulação estratégica no combate ao tráfico e suas redes, mas tão somente a prisão de usuários como traficantes ou de pequenos traficantes, facilmente substituídos na estrutura do crime quando presos. Diante desse quadro, soam irreais as propostas em questão que estabelecem novos aumentos de pena e um suposto critério de distinção entre usuário e traficante, absolutamente subjetivo, e que, portanto, perpetua a lógica seletiva da Justiça criminal. A previsão de penas proporcionais ao "grau de dependência" do entorpecente, além de tecnicamente discutível, acaba punindo ainda mais os já marginalizados usuários de crack.

O texto insiste na fracassada concepção de internações como política prioritária para lidar com usuários ou dependentes químicos. Vai em desacordo com a Lei da Reforma Psiquiátrica, que prevê internações somente quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes. Da ONU ao Ministério da Saúde, da Organização Mundial da Saúde ao Conselho Federal de Psicologia, todos recomendam exatamente o oposto. A cereja do bolo é a previsão de ampliação maciça do atendimento aos usuários/dependentes pela rede privada onde não houver equipamentos públicos adequados - lucro fácil no Brasil - e comunidades terapêuticas religiosas. Previsão de difícil digestão para os que prezam por um Estado laico e garantidor das liberdades individuais. Como se vê, não é à toa que o projeto de lei e seu substitutivo têm gerado um caminhão de críticas em diversos setores da sociedade, aparentemente ignoradas pelos nossos representantes.

De qualquer modo, ainda dá tempo para que o debate seja ampliado, também sob a ótica daqueles que vêm sendo historicamente o alvo preferencial da política nacional antidrogas: os jovens, negros e pobres. Se o direito penal é o direito dos pobres, porque sobre eles, exclusivamente, recai sua força (Heleno Fragoso), vê-se que os nossos deputados almejam prestar relevantes serviços ao fortalecimento desse "privilégio". Com a palavra, o Senado Federal.

RAFAEL CUSTÓDIO, 31, advogado, é coordenador do Programa de Justiça da ONG Conectas Direitos Humanos e RAFAEL DIAS,

31, é doutorando em psicologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da ONG Justiça Global. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Fazer exercício antes de dormir ajuda ou atrapalha o sono? (JAIR STANGLER)

ESTUDOS recentes indicam que, ao contrário do que se imaginava, praticar atividades físicas leves ou moderadas entre 40 e 50 minutos antes de dormir não atrapalha o sono. Até ajuda a relaxar depois de um dia estressante de trabalho. É o que sugere uma pesquisa da Fundação Nacional do Sono, maior instituição americana dedicada a investigações nessa área. Mas isso vale apenas para pessoas saudáveis. Segundo Marco Túlio de Mello, diretor do Centro de Estudos em Psicobiologia e Exercícios da Universidade Federal de São Paulo, o intervalo entre a malhação e os lençóis para quem já tem insônia ou outro distúrbio deve ser de, no mínimo, 3 a 4 horas. O mesmo serve para os sedentários que decidem se aventurar na vida ativa. Nesses casos, é possível que o estado de agitação provocado pelo exercício dificulte o embalo no sono. Com substâncias como a adrenalina fazendo a festa na circulação, o indivíduo custa a pregar os olhos. Uma solução para baixar a pilha é tomar um banho quente, que desacelera os batimentos cardíacos, dilata os vasos sanguíneos e reduz a

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pressão arterial. Não custa lembrar que a prática regular de esportes, independentemente do horário, aumenta a qualidade do sono. ―O exercício é muito importante no sentido de diminuir a ansiedade, melhorar e regularizar o sono‖, conclui Marco Túlio.

JAIR STANGLER é Jornalista e escreve para esta publicação. Revista GALILEU, Maio de 2013.

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Esteticamente correto (MÁRCIA TIBURI)

Sobre a função das Correções no mundo das aparências

A POBREZA da experiência cultural contemporânea agrega dois grupos pseudopolíticos: os ―politicamente corretos‖, que Nietzsche, no século 19, chamaria de ―sacerdotes da moral‖, e seus críticos, sempre autoelogiados como ―politicamente incorretos‖, que seriam hoje ―sacerdotes do imoral‖, servos daquela moral, só que sob o disfarce da inversão. O ―sadismozinho‖ diário dos antipolíticos politicamente incorretos esconde o desejo de uma crueldade socialmente inviável. A maldadezinha do cotidiano faz mal às suas vítimas, mas é autorizada ao agente, desde que ele saiba manter as aparências de que tem toda a razão e não é tão mau assim.

A manutenção das aparências como verdadeira força que mantém as condições da dominação é o que chamaremos pela expressão ―esteticamente correto‖. Enceguecidos pela cultura do espetáculo, não vemos justamente o ―evidente‖. O velho parecendo novo, o mau parecendo bom, o sujo parecendo limpo, o feio parecendo belo. A correção estética é a expressão da racionalidade técnica da dominação. Exemplos abundam, dos modos de vestir às academias de ginástica.

O esteticamente correto foi bem apresentado, por exemplo, em um filme chamado O homem ao lado(Gastón Duprat e Mariano Cohn, 2009). Tal como na vida, o personagem principal do filme é um respeitado designer internacional que mora na única casa desenhada por Le Corbusier em todas as Américas. A casa é impecável e dentro dela se desenvolve uma vida moralmente bem comportada, o que se vê no modo como ele e a esposa tratam a faxineira com respeito atencioso. Dos móveis aos objetos domésticos, da roupa que vestem à música que ouvem, tudo está esteticamente correto. O designer tem uma vida tão correta que chega a ser professor universitário, o que vem coroar o personagem com a aura do intelectual que é também, digamos, ―epistemologicamente correto‖.

Tudo se passa na mais simples normalidade, até que um vizinho bronco resolve abrir um buraco em uma parede contígua à casa para servir de janela. O caráter ilegal de seu ato se relaciona intimamente ao caráter ―esteticamente incorreto‖ da ação. E dele mesmo. Este antagonista tem um ―estilo‖ visual fora do padrão culto expresso também em seu senso de humor, em seu jeito de ser e falar. Os regimes de comportamento ético e estético de cada personagem expressam-se em tensão. O desenvolvimento da trama nos legará um desfecho estarrecedor, pois que esperamos de quem tem estilo que tenha uma prática que combine com ele. O filme mostra que julgamos pelas aparências e quase sempre nos enganamos redondamente, não porque as aparências enganem, mas porque não olhamos com cuidado.

Escravidão voluntária estética

Dizer que toda ética tem sua estética pode ser traduzido por ―toda moral tem o seu gosto‖. O velho padrão do gosto sobrevive hoje, por exemplo, na ditadura do fashion, em que ―fazer tipo‖ é a lei.

A beleza e o bom gosto definem o padrão do ―esteticamente correto‖ enquanto medida a partir da qual tudo é relativo no mundo da aparência. E como a esfera da aparência é decisiva em uma sociedade espetacular, aquela em que as relações são mediadas por imagens, o poder se exerce ali silenciosamente definindo quem é bonito e quem não é. A ditadura da beleza se impõe em nosso mundo sobre quem é constantemente reduzido a seu corpo, é o caso de mulheres de todas as idades. Por isso, o homem branco e rico, pode ser barrigudo, careca e velho (para brincar com um estereótipo).

Ninguém ousa taxá-lo de feio, pois sua feiura não está em jogo: ele está na origem da lei que rege o gosto como padrão onde encaixar os outros. A preferência por inserir-se no gosto em vez de questioná-lo explica a voluntária escravidão estética desses tempos. Política de verdade não é realmente algo que esteja em questão.

MÁRCIA TIBURI é Filósofa e colunista nesta publicação. Revista CULT, Junho de 2013.

Resistência múltipla (DRAUZIO VARELLA)

VEM DE longe nossa mania de atribuir ao doente a culpa pela doença contraída. A literatura ocidental é pródiga em casos de tuberculose entre virgens desiludidas e rapazes devassos. A julgar por esses relatos, no século 19, além da epidemia de paixões angelicais não correspondidas, a devassidão devia andar por toda parte, já que a doença dizimava um quarto da população europeia.

Em março de 1882, o bacteriologista alemão Robert Koch descreveu o BK, o bacilo que levaria seu nome. No manuscrito, que lhe deu o Nobel de 1905, ele dizia: "No futuro, a luta contra essa praga terrível não vai lidar com algo indeterminado, mas com um parasita tangível". A era do tratamento, entretanto, seria inaugurada apenas em 1943, com a descoberta da estreptomicina, nos Estados Unidos. Nos anos seguintes, foram descritos vários casos de cura, mas numa porcentagem significante deles havia recaídas, causadas por bacilos resistentes ao antibiótico.

Em 1951, foi sintetizada a isoniazida. Na década que se seguiu, surgiram a pirazinamida, a rifampicina e o etambutol, drogas que melhoraram a eficácia do tratamento, sobretudo quando empregadas em combinações, para contornar o inconveniente da resistência. Mais tarde, o mesmo conceito seria aplicado ao câncer, à Aids e a outras enfermidades infecciosas. Diversos estudos acabaram por estabelecer o consenso de que a tuberculose deve ser tratada com a associação de isoniazida, rifampicina e mais uma ou duas drogas, administradas por no mínimo seis meses.

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Apesar desses avanços, ainda é a doença infecciosa mais letal. No mundo, ocorrem anualmente 9 milhões de casos novos e 2 milhões de mortes. A resistência ao tratamento nunca deixou de ocorrer. A estimativa da Organização Mundial da Saúde é de que a cada ano surjam 500 mil novas infecções por bacilos resistentes à isoniazida e à rifampicina, que constituem o núcleo central das associações. Menos de 1% desse contingente recebe a medicação adequada.

Causada por germes sensíveis ou resistentes, a tuberculose continuou a ser vista como um dos males ligados à pobreza, desnutrição e moradias insalubres, atributos que desinteressaram os governos dos países mais ricos e a indústria farmacêutica a investir na pesquisa de novos medicamentos e vacinas preventivas.

No início dos anos 1990, o aparecimento de tuberculose multirresistente com índices altos de letalidade, nos Estados Unidos, mudou o panorama. Nesses casos, o tratamento convencional baseado em esquemas contendo isoniazida e rifampicina, durante seis meses, é ineficaz. Despertadas para a nova realidade, as autoridades sanitárias americanas consideraram que a simples pesquisa de BK no escarro, método tradicional de diagnóstico, devia ser considerada insuficiente para instituir o tratamento ideal. Seria necessário também semear o bacilo em caldo de cultura para analisar seus níveis de resistência, selecionar as drogas mais eficazes e prolongar a duração do tratamento.

Agora, vejam a complexidade do desafio. São 9 milhões de novos doentes por ano, a maioria dos quais em países com sistemas de saúde precários, em que a simples realização da pesquisa de BK (que consiste em corar o escarro e examiná-lo em microscópio comum) nem sempre está disponível. Como instituir a obrigatoriedade das culturas e testes de sensibilidade que exigem recursos financeiros, tecnologia e pessoal especializado?

Uma das principais causas do aparecimento de resistência é falta de aderência ao tratamento. Não é fácil convencer alguém a tomar remédio todos os dias durante meses, tarefa especialmente ingrata depois que os sintomas foram embora. Muito mais problemática é a aderência nos casos com resistência, nos quais a terapêutica deve ser mantida por um a dois anos, ou por tempo mais prolongado.

Embora os medicamentos empregados nos esquemas de rotina sejam baratos, os custos daqueles receitados para os bacilos multirresistentes são altos. Como países pobres arcarão com despesas tão altas sem auxílio internacional? Como impedir que bacilos multirresistentes se espalhem pelo mundo? A conclusão é triste: a previsão de erradicar a tuberculose nas primeiras décadas do século 21 não passou de um sonho.

DRAUZIO VARELLA é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação Carandiru" (Companhia das Letras). Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

No limite (FERREIRA GULLAR)

O QUE, afinal, está acontecendo? Em três meses, milhares de motocicletas são roubadas em São Paulo, centenas de residências e transeuntes são assaltados, trabalhadores, mulheres e pais de família são assassinados com uma frequência assustadora. Viver em São Paulo tornou-se risco de morte, é isso? Quer dizer, então, que a cidade está em guerra?

Pior: a cidade está ocupada por bandidos armados que surgem a qualquer momento e em qualquer ponto dela, empunhando fuzis, armas automáticas, decididos a tirar a vida de qualquer um. Pelo modo como agem, parecem particularmente empenhados em matar, como se isso lhes desse especial satisfação. Matam mesmo quando o assaltado não oferece resistência. Matam para matar, por nada, para nada. Mas por que razão agem assim? Uma hipótese é a de que estejam drogados, por ser difícil admitir que sejam todos homicidas natos.

Sou da teoria de que o cara nasce poeta e nasce homicida. Digo isso porque sei de gente que em hipótese alguma admitiria tirar a vida de alguém, enquanto outros, a primeira coisa em que pensam, se alguém os ofende, é acabar com ele. Felizmente, raras pessoas são assim. Daí levantarmos a hipótese de que, se tantos assaltantes matam gratuitamente, é por estarem fora de si, drogados. Aliás, a droga é um dos motivos que levam aos roubos e assaltos. Com frequência, a polícia, quando prende assaltantes, encontra drogas com eles. Isso explica parte do terror que assusta a cidade, mas não explica tudo.

Não explica, por exemplo, ações criminosas levadas a cabo por verdadeiras equipes de bandidos, munidos de armas pesadas, sofisticadas, obedecendo a um plano minuciosamente traçado. Quando a polícia chega à sede da quadrilha, depara-se com vasta quantidade de armas, munições e até planos de ação cuidadosamente elaborados. Esses dados parecem indicar que, fora os bandidos comuns e os drogados, há organizações criminosas, diferentes das antigas quadrilhas do passado: estas de agora se valem de novos recursos teóricos e tecnológicos, que fazem delas organizações eficazes.

Além dos novos meios de comunicação e um conhecimento detalhado do aparelho repressivo, de que dispõem, parece-me haver, em algumas delas, pelo menos, a ação organizada e planejada, apoiada em uma infraestrutura capaz de acumular o produto roubado para vendê-lo, mais tarde, dentro de um esquema que inclui o comércio legal. Do contrário, como se explica a descoberta frequente de galpões e armazéns cheios de mercadorias roubadas, numa quantidade que tornaria inviável comercializá-las, a não ser com apoio num sistema legal de comércio?

Ou seja, nestes casos, legalidade e ilegalidade se confundem, ou melhor, o comércio legal se alia ao crime e lucra com isso. Trata-se, portanto, de um tipo de criminalidade bem mais ameaçadora, porque capaz de minar a estrutura social e corromper setores inclusive responsáveis pelo combate ao crime, incluindo aí os aparelhos policial e judicial.

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Estas são algumas considerações e especulações de alguém que não é especialista no assunto, mas que foi levado a refletir sobre o problema. Não tenho dúvida de que as autoridades responsáveis pelo combate à criminalidade, em São Paulo e no país, estão igualmente preocupadas e buscando solução para tão grave problema.

Mas isso não basta para tranquilizar as pessoas. Ouvi, outro dia, na televisão, um cidadão afirmar que nem ele nem qualquer membro de sua família sai mais à noite, seja para ir ao cinema seja para jantar num restaurante. Significa que os cidadãos são agora reféns dos bandidos? Isso se torna tanto mais assustador quando se sabe que o Brasil mesmo, como país, é um dos mais violentos do mundo. Li que se mata mais gente aqui do que na guerra civil da Síria. É hora, portanto, de o governo, em suas diferentes instâncias, buscar com seriedade a solução desse problema.

Não por acaso, faz poucos dias, o governador de São Paulo admitiu quanto é grave a situação, tanto que anunciou um programa de combate à criminalidade, prevendo bônus aos policiais que mais se empenharem no combate ao crime, além da ampliação do efetivo policial. Tais medidas não solucionarão o problema, mas, pelo menos, implicam o reconhecimento de quão grave ele é.

FERREIRA GULLAR é cronista, crítico de arte e poeta. Escreve aos domingos na versão impressa de "Ilustrada". Jornal FOLHA

DE SÃO PAULO, Maio de 2013.

Foucault e o neoliberalismo (LUIZ GONZAGA BELLUZO)

O filósofo francês, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não era economista. Talvez por isso entendeu com maior profundidade o neoliberalismo

O mundo se abriu para o novo milênio dominado por certezas que hoje se desmancham sob a ação demolidora da crise financeira. A ideologia neoliberal, quase sem resistências, tentou demonstrar que, com a queda do Muro de Berlim, o espaço político e econômico tornou-se mais homogêneo, menos conflitivo, com a concordância a respeito das tendências da economia e das sociedades. Não há mais razão, diziam, para se colocar em discussão questões anacrônicas, como a reprodução das desigualdades ou as tendências dos mercados a sair dos trilhos, frequentemente destrambelhados pelos excessos nascidos de suas engrenagens.

Após a crise, os porta-vozes desse quase consenso, economistas e que tais, recolheram-se ao silêncio. Passado o vendaval que ajudaram a semear, já agarrados aos salva-vidas lançados pela famigerada intervenção dos governos, entregaram-se a tortuosas e acrobáticas manobras para justificar suas convicções.

Michel Foucault, um dos pensadores mais fecundos do século XX, não é economista. Talvez por isso tenha compreendido com maior abrangência e profundidade o significado do neoliberalismo. Contrariamente ao que imaginam detratores e adeptos, diz ele, o neoliberalismo é uma ―prática de governo‖ na sociedade contemporânea. O credo neoliberal não pretende suprimir a ação do Estado, mas, sim, ―introduzir a regulação do mercado como princípio regulador da sociedade‖.

Foucault dá importância secundária à hipótese mais óbvia sobre a arte neoliberal de governar, a que afirma a imposição do predomínio das formas mercantis sobre o conjunto das relações sociais. Para o filósofo, ―a sociedade regulada com base no mercado em que pensam os neoliberais é uma sociedade em que o princípio regulador não é tanto a troca de mercadorias quanto os mecanismos da concorrência... Trata-se de fazer do mercado, da concorrência, e, por consequência, da empresa, o que poderímos chamar de ‗poder enformador da sociedade‘‖.

As transformações ocorridas nas últimas décadas deram origem a fenômenos correlacionados que não se coadunam com os princípios do liberalismo clássico e sua imaginária concorrência perfeita protagonizada por um enxame de pequenas empresas sem poder de mercado.

A nova concorrência louvada pelos neoliberais admite a ―centralização‖ da propriedade e o controle dos blocos de capital. O processo se deu pela escalada dos negócios de fusões e aquisições, alentada pela forte capitalização das bolsas de valores nos anos 80, 90 e 2000, a despeito de episódios de ―ajustamento de preços‖. A ―terceirização‖ das funções não essenciais à operação do core business aprofundou a divisão social do trabalho e propiciou a especialização e os ganhos de eficiência microeconômica, além de avanços na produtividade social do trabalho.

A grande empresa que se lança às incertezas da concorrência global necessita cada vez mais do apoio de condições institucionais e legais – sobretudo na derrogação das regras de proteção aos trabalhadores – que a habilitem à disputa com os rivais em seu próprio mercado e em outras regiões.

Elas dependem do apoio e da influência política de seus Estados Nacionais para penetrar em terceiros mercados (acordos de garantia de investimentos, patentes etc.), não podem prescindir do financiamento público para exportar nos setores mais dinâmicos, não devem ser oneradas com encargos tributários excessivos e correm o risco de serem deslocadas pela concorrência sem o benefício dos sistemas nacionais de educação e de ciência e tecnologia.

Tanto a ―nova ordem mundial‖ como a sua crise foram construídas e deflagradas no jogo estratégico disputado entre as empresas globais e seus respectivos Estados. Esse fenômeno político-econômico envolveu os protagonistas relevantes da cena global: os Estados Unidos, apoiados em sua liderança financeira e monetária, e a China, ancorada em sua crescente superioridade manufatureira.

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A superação da crise atual não depende apenas da ação competente dos Tesouros Nacionais e dos Bancos Centrais, mas supõe um delicado rearranjo das relações políticas e concorrenciais que sustentaram o modelo sino-americano. Parece que não é fácil.

LUIZ GONZAGA BELLUZO é economista e colunista desta publicação. Revista CARTA CAPITAL, Junho de 2013.

Médicos já identificam até AVC pela internet (ADRIANA FERRAZ)

Equipe do Hospital Albert Einstein atende paciente internada no M‟Boi Mirim, a 17,5 km de distância

Tendência mundial, telemedicina encurta distância entre hospitais e otimiza recursos

Quarta-feira, 12h19. Mulher de 48 anos dá entrada na emergência do Hospital Municipal do M‘Boi Mirim, zona sul da capital. Os sintomas apontam para um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Após ser submetida a exames e procedimentos de urgência, a paciente recebe uma segunda avaliação. A consulta é online. A 17,5 km de distância, o neurologista Agnaldo da Costa confirma o diagnóstico e orienta o tratamento. Tendência mundial para acelerar o atendimento e otimizar recursos, a telemedicina já é realidade em São Paulo.

A conferência, presenciada pelo Estado na semana passada, ocorreu em uma sala de plantão do Albert Einstein, no Morumbi, também zona sul. O hospital

mantém convênio com o Ministério da Saúde para dar suporte a outros de menor complexidade. Além da unidade do M‘Boi Mirim, participam do programa centros de Manaus, João Pessoa e Brasília de Minas (MG). Outros oito candidatos serão avaliados.

A comunicação é simples e não exige tecnologia sofisticada. Para que duas equipes médicas entrem em contato, bastam dois computadores equipados com câmeras de alta resolução, microfone e softwares específicos, além de acesso à internet sem fio. Pelo canal, médicos emergencistas e especialistas discutem procedimentos, avaliam exames, indicam medicação, cirurgias e até fecham diagnóstico de morte encefálica.

―Pela câmera, nosso colega de São Paulo pode ver o paciente e conversar com ele. Pode ainda acompanhar uma ronda médica pela UTI, já que o sistema funciona em um carrinho portátil. Para quem está distante, como nós, essa é uma chance de integração‖, diz Alexandre Bichara da Cunha, diretor do Hospital Doutor Platão Araújo, na periferia de Manaus.

Com investimento de R$ 14 milhões, o programa funciona 24 horas, sete dias por semana. No plantão do Einstein, 280 casos foram atendidos nos últimos 12 meses. O balanço mostra que a opinião de um neurologista é a que registra maior demanda. O déficit explica a procura - segundo censo médico, há apenas 3,2 mil neurologistas no Brasil e a grande maioria está concentrada no Sudeste.

―O programa tenta igualar um pouco esse desequilíbrio. A telemedicina é uma ferramenta possível hoje e deve ser considerada. Ela encurta distâncias, otimizando tempo, economizando recursos e aumentando a chance de salvação‖, diz Milton Steinman, responsável pela Telemedicina no Albert Einstein.

Para Agnaldo da Costa, trata-se de uma troca de experiências que só pode ser favorável. ―No cenário da emergência, a abordagem inicial faz toda a diferença. E não importa a distância. Quem eu atendo pela câmera é meu paciente.‖

Tablet. A tecnologia que permite consultas a distância já proporciona a realização de exames e até avaliações clínicas corriqueiras, como a ausculta cardíaca. Por meio de um software específico, as batidas do coração podem ser ―compartilhadas‖ pela rede. E tudo pode ser visualizado diretamente do tablet ou smartphone com Wi-Fi.

Fundadora e presidente da Hospitalar - principal feira do setor -, Waleska Santos afirma que o mercado cresce vertiginosamente. ―A telemedicina, que hoje é usada também para ajudar na confecção de laudos de exames, ainda será a

principal arma para aprimorar e humanizar o homecare e reduzir as idas ao hospital.‖

ADRIANA FERRAZ é Jornalista e escreve para esta publicação. Jornal O ESTADO DE SÃO PAULO, Junho de 2013.

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O Brasil não tem o direito de errar (OTÁVIO MARQUES DE AZEVEDO)

SOMOS o sétimo maior PIB do mundo. É preciso ser mal-intencionado para não reconhecer os avanços dos últimos 20 anos. O país se transformou numa economia musculosa, estável e com inegáveis conquistas no campo social. Ao retirar 40 milhões de pessoas da miséria, viramos o sétimo maior mercado consumidor do mundo e caminhamos para ser um grande país de classe média.

O rumo está certo, mas problemas persistem. A qualidade da nossa infraestrutura está em 107º lugar no ranking elaborado pelo Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) com 144 países. Quando se isola a infraestrutura de transporte, caímos para a 134º posição. O levantamento ("The Global Competitiveness Report 2012-2013") é um guia completo para transformarmos o Brasil num país melhor para nossos filhos e netos. Tome-se o caso das nossas ferrovias: centésima colocação no ranking do WEF.

Enquanto os Estados Unidos transportam por ferrovia 43% da carga nacional, o Brasil opera na casa dos 26%, com um detalhe: dois terços do volume são de minério de ferro. Para o resto da economia, os trilhos representam apenas 10% do movimento. E nossas rodovias, 123º lugar na classificação do WEF? Segundo pesquisa da Confederação Nacional do Transporte, o estado de conservação da maior parte da malha rodoviária nacional produz um aumento médio de 28% do custo operacional dos caminhões, alta de até 5% no consumo de combustível e queda da velocidade operacional.

Nosso transporte aéreo está na 134ª colocação, abaixo da Nigéria. E nossos portos, em 135º lugar. Aliando-se à iniciativa privada e a investidores estrangeiros, o governo brasileiro adotou o caminho acertado da concessão de serviços públicos como forma de enfrentar os gargalos. As oportunidades abertas pelo governo animam a Andrade Gutierrez -que, ao longo de seus 65 anos de existência, jamais teve uma garantia executada por descumprimento de prazo, qualidade dos trabalhos realizados ou de qualquer outra natureza.

Todas as empresas brasileiras de primeira linha passaram a se dedicar às concessões como um projeto que atende ao cidadão e ainda reforça a boa imagem internacional do Brasil. Quando observam que governo e empresários trabalham em parceria, investidores estrangeiros se sentem atraídos a aplicar aqui. O sucesso das concessões, contudo, depende de pontos essenciais. Os marcos legais precisam se adequar à realidade, o objeto das concessões precisa ser claro e os contratos, transparentes. A lei nº 8.666, que rege as licitações, não pode servir a propósitos tão distintos quanto a compra de lápis e papel e a concessão da administração de um aeroporto a uma empresa.

É preciso aliar a linhas de financiamento adequadas e estruturas de "project finance" a oferta de seguros garantia para as empresas, bem como a elaboração prévia dos projetos executivos. O mercado de capitais deve ser estimulado a participar como agente financeiro dinâmico que traz aos investidores uma nova perspectiva. Outro ponto importante: sem uma taxa de retorno justa, os interessados não aparecerão. Concessões públicas são operações que contemplam três décadas de responsabilidades. Temos, adicionalmente, o desafio de abrir o Brasil às concessões, fechando espaço aos aventureiros. Critérios rigorosos para a escolha dos vencedores afastam os riscos de inadimplência e até a devolução da concessão, como ocorreu recentemente nos setores de rodovias, energia, óleo e gás, além de outros.

O governo mostra, de forma eloquente e concreta, ter clara compreensão desse quadro. Precisamos, no entanto, que o Congresso Nacional também se engaje na reformulação do aparato regulatório e jurídico. Renovar a sucateada infraestrutura nacional é um trabalho de construção coletivo. O Brasil não tem o direito de errar.

OTÁVIO MARQUES DE AZEVEDO, 62, engenheiro, é presidente do Grupo Andrade Gutierrez. Jornal FOLHA DE SÃO PAULO, Maio de 2013.