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IGREJA LUTERANA Revista Semestral de Teologia

Revista Semestral de Teologia · 2018-07-11 · Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. Conselho

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IGREJA LUTERANARevista Semestral de Teologia

IGREJA LUTERANA

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DiretorLeonerio Faller

ProfessoresAcir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Leonerio Faller, Gerson Luis Linden, Paulo Moisés Nerbas, Paulo Proske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz

Professores EméritosDonaldo SchülerLeopoldo HeimannNorberto Heine

SEMINÁRIO CONCÓRDIA

IGREJA LUTERANAISSN 0103-779XRevista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

Conselho EditorialGerson L. Linden (Editor) e Acir Raymann

Assistência AdministrativaIvete Terezinha Schwantes e Saulo P. Bledoff

A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografi a Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts.

Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope com endereço e selado.

Solicita-se permutaWe request exchangeWir erbitten Austausch

CORRESPONDÊNCIARevista Igreja LuteranaSeminário Concórdia

Caixa Postal 20293001-970 – São Leopoldo/RSTelefone: (0xx)51 3037 8000

e-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

IGREJA LUTERANA

Volume 74 – Novembro 2015 - Número 2

PALAVRA AO LEITOR

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ARTIGOS

APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A TEOLOGIA NICENA E A ASCENSÃO DA VENERAÇÃO A MARIA 7

Maximiliano Wolfgram da Silva

O BATISMO NO ESPÍRITO SANTO CONFORME O LIVRO DE ATOS 23

Alexandre Teixeira Vieira

A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ATRAVÉS DA VOCAÇÃO – UMA PERSPECTIVA LUTERANA 59

Clóvis Jair Prunzel

ELIAS, ELISEU E JESUS: UM EXERCÍCIO DE INTERNARRATIVIDADE 79

Vilson Scholz

RESENHAS

L. Sánchez. Teología de la sanctifi cación 83

Paulo Moisés Nerbas

M. Lutero. Introdução à preleção sobre Gênesis 85

Clóvis J. Prunzel

O. Guinness. Dining with the Devil 90

Raul Blum

A. J. Jacobs. Um ano bíblico 99

Vilson Scholz

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PALAVRA AO LEITOR

Esta edição da revista Igreja Luterana traz artigos com temas bastan-te distintos, mas que trazem em comum a oportunidade de você, leitor, aprofundar seu conhecimento em assuntos muito signifi cativos.

O pastor Maximiliano W. da Silva, doutorando em Teologia no Concordia Seminary, St. Louis, analisa a relação entre a teologia do Concílio de Niceia e a veneração a Maria na teologia católico-romana. Poderia a ênfase na teologia ontológica que afi rma e insiste na verdadeira divindade de Cristo ter aberto espaço para o culto aos santos e a Maria? É a questão que o pastor Silva trabalha com profundidade. Alexandre Vieira, concluindo seu doutorado em teologia bíblica também no Concordia Seminary em St. Louis, analisa detalhadamente textos-chave de Atos dos Apóstolos que têm tradicionalmente fundamentado o batismo no Espírito Santo. A partir deste estudo exegético, Vieira oferece uma interpretação consistente com a teologia do Novo Testamento a respeito do batismo como meio da graça dado por Deus para salvação e não como algo decorrente do esforço ou fi delidade humanos. Em sua aula magna do ano de 2015, a comunidade acadêmica do Seminário Concórdia teve a oportunidade de ouvir do prof. Dr. Clóvis J. Prunzel parte de sua pesquisa de doutoramento no Concor-dia Theological Seminary, em Fort Wayne. O prof. Prunzel refl ete sobre a importância e abrangência da teologia luterana sobre a vida cristã na perspectiva do conceito de vocação. Em um breve, mas instigante artigo sobre internarratividade, o prof. Dr. Vilson Scholz apresenta um conceito que oportuniza importantes refl exões na análise do texto bíblico. Como um estudo de caso, o prof. Scholz tece comentários a respeito da relação entre os ministérios de Elias e Eliseu e o ministério do Senhor Jesus.

Com as resenhas de livros, professores do Seminário incentivam o leitor a ampliar sua biblioteca e sugerem textos para um novo ano de leituras.

A você, estimado leitor, desejamos uma leitura que provoque boas refl exões para sua vida e serviço no reino de Cristo.

Gerson L. Linden

Editor

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ARTIGOS

APONTAMENTOS SOBRE A RELAÇÃO ENTRE A TEOLOGIA NICENA E A ASCENSÃO DA VENERAÇÃO A MARIA

Maximiliano Wolfgram da Silva1

INTRODUÇÃO2

Além de ser um dos fi lmes nacionais de maior sucesso no Brasil, O auto da compadecida é também uma expressão da religiosidade brasilei-ra. Baseado na peça homônima do saudoso Ariano Suassuna, o enredo do fi lme apresenta características marcadamente católicas, algo natural considerando-se o fato de que a tradição católica é extremamente in-fl uente na formação cultural do país. Como o próprio nome já indica, em seu enredo o fi lme traz um destaque especial para Maria, mãe de Jesus, e sua compaixão pelo pobre pecador. Nele, Maria é destacada como sen-do uma mãe compassiva, atenta e sensível às necessidades dos menos afortunados. No ápice do fi lme, quando as principais personagens, depois de mortas, estão diante de Jesus para o julgamento fi nal, Maria intercede junto a Cristo por aqueles que, tudo indica até aquele momento, seriam condenados ao inferno. Na tela, o fi lme expressa em imagens o famoso “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte”. Por outro lado, curiosamente, no fi lme Jesus é apresentado como uma fi gura austera e, de certa maneira, distante em sua realeza. Ele é um juiz3 que, do alto de seu trono, é conhecedor do sofrimento humano, mas não é facilmente tocado pelas lutas existenciais deste, a não ser que infl uenciado pela sua mãe.

1 Maximiliano W. da Silva é capelão-geral da Universidade Luterana do Brasil na unidade de Canoas/RS. Atualmente cursa o doutorado em Teologia no Concordia Seminary, em St. Louis, EUA.

2 Parte dos livros que compõem a bibliografia deste artigo foram consultados em suas edições eletrônicas (Kindle). Em virtude disto, as referências indicam posições/localizações ao invés de páginas. Citações de originais em inglês foram traduzidas pelo autor do artigo.

3 A cena retratada no filme faz lembrar, mesmo que de maneira não tão dramática, a ex-periência vivida por Lutero no cemitério de Wittemberg. “Em um relevo em pedra sobre a entrada do cemitério que circundava a igreja, Lutero viu, esculpido na mandorla (uma auréola em forma de amêndoa que, normalmente, circundava a imagem de Cristo), Cristo sentado sobre o arco-íris como o juiz do mundo, tão brabo que as veias em sua testa se destacavam, inchadas e ameaçadoras. Um lírio estava pendurado do lado direito de sua boca e uma espada emergia do lado esquerdo. Juntos eles simbolizavam que Cristo estava assentado como o juiz sobre os reinos terreno e espiritual. Em outras palavras, “nada es-capa ao seu julgamento”. De pé, diante de Cristo, uma pessoa encarava o Deus que julga” (Robert Kolb and Charles P. Arand. The Genius of Luther’s Theology. Grand Rapids: Baker Academic, 2008, location 310).

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Esta piedade mariana tão evidenciada no fi lme pode ser percebida em muitas outras manifestações populares. Isto porque, apesar de o Brasil ser um estado laico desde 1889, a religiosidade trazida pelos portugueses continua sendo um signifi cativo e infl uente aspecto da cultura do povo. Um enorme exemplo disso é o famoso Círio de Nazaré, uma celebração da padroeira do Brasil que acontece na bela cidade de Belém do Pará. Todo mês de outubro,4 a cidade recebe um dos maiores festivais religio-sos do mundo, o qual reúne mais de dois milhões de pessoas em uma disputada peregrinação. Celebrações semelhantes a esta acontecem por todo o Brasil, e apontam para o impressionante relacionamento íntimo que muitos brasileiros mantêm com a Virgem Maria. Com frequência, ela é carinhosamente chamada de “mãezinha”. Além disso, carrega em si o papel de intercessora miraculosa e compassiva, de alguém que conhece as necessidades humanas e, como se espera de uma mãe, está sempre disposta a amorosamente cuidar de seus fi lhos.5 Contudo, diferente do que muitos cristãos não católicos pensam, os devotos de Maria sabem que eles não precisam de uma intermediadora entre eles e Deus. Eles sabem que podem orar diretamente para Jesus/Deus, apresentando a ele todas as suas petições. No entanto, “que fi lho iria negar a súplica de sua própria mãe?”, respondeu um acadêmico quando perguntado a respeito do porquê de orar para Maria. Esta reação natural a uma questão bem objetiva confi rma a fé popular católica, a qual foi descrita de maneira magistral por João Grilo no fi lme O auto da compadecida quando a con-denação ao inferno parecia ser inevitável: “Eu vou pedir pra alguém que está mais perto de nós, por gente que é gente mesmo... maior do que qualquer santo”.

No livro O rosto materno de Deus, o controverso teólogo católico Leonardo Boff, guiado pelo seu idealismo libertário, escreve sobre a rele-vância religiosa do feminino. Refl etindo sobre o papel de Maria no plano de salvação de Deus e desenvolvendo sua refl exão com especial foco na maternidade de Maria, ele declara: “Maria, por sua vez, não gerou apenas Jesus. Gerou o Salvador do mundo; torna-se mãe daquele que vai ‘libertar o povo do pecado’ (Lc 1.31; Mt 1.21). Ela está vinculada à história que este seu fi lho fi zer pelos séculos em fora. Todos estão incluídos e são co-gerados no mesmo movimento de dizer fi at. Com razão a fé canta Maria como a mãe de todos os homens (que devem ser salvos). Ela é a mãe espiritual

4 A importância do papel mariano na cultura brasileira também é evidenciada pelo fato de que temos um feriado nacional dedicado àquela que é a Padroeira do Brasil.

5 Para exemplos de testemunhos pessoais de devotos de Maria: <<www.youtube.com/watch?v=64BTQYURrkE&list=PLHWztumfdSQe7_6MAMDX_ OHNgcN9lcFdW>>. Acessado em 29/01/2015.

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de todos os redimidos”.6 Boff vê Maria como sendo a revelação feminina de Deus, uma visão impregnada de sentimentos de origem, pertencimento e cuidado, os quais são intrínsecos à compreensão idealizada daquilo que a maternidade signifi ca. O que ele expressa de maneira poética é a imagem de Maria no catolicismo popular.

O fenômeno acima descrito não é uma exclusividade brasileira. Vene-ração especial à Maria é uma expressão comum de piedade na fé Romana e Ortodoxa. Histórias a respeito de aparições ou revelações especiais de Maria são contadas e celebradas em todo o mundo. O Papa Francisco é reconhecido como um grande incentivador da veneração à Maria. Além disso, para muitos estudiosos, Maria tornou-se um importante tópico no debate social, especialmente por causa da valorização da mulher que ela representa. Este papel especial que Maria tem na piedade católica é o resultado de uma longa história que concedeu à mãe de Jesus um status jamais alcançado por qualquer outra criatura de Deus (considerando-se a fé do Antigo e Novo Testamentos). Contudo, como isto aconteceu? Quais foram os processos na história da Igreja Cristã que contribuíram para a formação do signifi cativo status que Maria hoje ocupa na fé católica? Existe algum período na história eclesiástica que apresenta um signifi cativo cresci-mento da presença de Maria nos rituais litúrgicos, celebrações eclesiásticas e piedade popular? Houve algum evento que tenha infl uenciado ou alguma situação que tenha contribuído de maneira decisiva para a formação do cenário que nós temos hoje? Em seu provocativo livro God for us (Deus por nós), a teóloga católica Catherine Mowry LaCugna responde com um ressonante “sim!”,7 apontando para a controvérsia ariana e a consequente sistematização teológica alcançada em Niceia (e após Niceia) como sendo um evento histórico decisivo para o quadro que hoje contemplamos.

O grande desejo presente no pensamento teológico de LaCugna é o de tornar a doutrina da Santíssima Trindade efetivamente relevante para a vida da Igreja. Em seu livro, ela reexamina a história da doutrina da Trindade, afi rmando que a controvérsia ariana e a refl exão teológica que a seguiu contribuíram para uma mudança substancial no pensamento cristão, estabelecendo uma lacuna entre theologia e oikonomia, entre quem Deus é e a maneira como Deus se relaciona conosco em Cristo. Para ela, a necessidade nicena de enfatizar a consubstancialidade de Jesus com Deus Pai na luta contra a heresia ariana foi responsável por um afastamento da revelação de Deus em Cristo através do Espírito para uma distante discussão ontológica a respeito de quem Deus é. De acordo com ela, a batalha contra o arianismo ocorreu não apenas nas acaloradas

6 BOFF, Leonardo. O rosto materno de Deus. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 174.7 LACUGNA, Catherine Mowry. God for us. Harper: San Francisco, 1993, pp. 73, 127 e 210.

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discussões teológicas. A controvérsia teve um impacto imediato na piedade popular e na vida litúrgica da Igreja. No que se refere ao questionamento específi co deste artigo, ela afi rma que o papel mediador de Jesus entre a humanidade e Deus foi diminuído por causa da necessidade de afi rmar, sem qualquer sombra de dúvida, sua igualdade com Deus. Para LaCugna, este movimento deixou um espaço vazio no relacionamento das pessoas com Deus, espaço que foi gradualmente ocupado por Maria e pelos santos/mártires da Igreja. Quanto mais se enfatizava a divindade de Cristo, mais as pessoas sentiam que Jesus estava distante de suas lutas terrenas.

LaCugna não explica detalhadamente como a teologia nicena contribuiu para esta mudança na relação do povo com Cristo, mas ela fundamenta suas afi rmações na pesquisa do proeminente historiador Josef A. Jung-mann, para quem este artigo agora se volta.

1. A VISÃO DE JUNGMANN A RESPEITO DO PROCESSO DESENCA-DEADO POR NICEIA

Josef Andreas Jungmann (1889-1975) foi um proeminente historiador. Nascido na Áustria, trabalhou durante grande parte de sua vida como professor de Teologia Pastoral da Universidade de Innsbruck, onde ensi-nou catequese e liturgia. Sua pesquisa a respeito da liturgia da eucaristia contribuiu grandemente para o seu ingresso na comissão que renovou a liturgia eucarística católica no Concílio Vaticano II.

Quando o tema é a relação entre a controvérsia ariana e a veneração dos santos, a principal tese de Jungmann é que as disputas cristológicas do quarto século tiveram um impacto direto na piedade e na vida devocional da Igreja Cristã, decisivamente contribuindo para o crescimento da dulia dedicada aos santos e da híperdulia dedicada a Maria.

Apesar de em 325 o Concílio de Niceia ter condenado o ensino ariano, a disputa se estendeu por séculos (arianos dominaram na Espanha e no Norte da África até o séc. VI) e porque lidava com a essência de Cristo, reverberações na liturgia não podiam ser evitadas. Jungmann afi rma que práticas litúrgicas foram usadas pelos arianos para dar suporte ao seu posicionamento teológico, bem como foram alteradas pelos nicenos para evitar confusão doutrinária. Desta maneira, o princípio lex orandi lex cre-dendi não teria prevalecido durante a controvérsia ariana, o que demonstra que o mesmo é uma generalização que nem sempre funciona.

Breves considerações a respeito da veneração aos santos e à Maria

Para Jungmann, honrar a memória daqueles que dormiram em Cristo foi um movimento natural para os primeiros cristãos. Isto se torna ainda

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mais lógico quando são lembrados os heróis da fé. É justamente naquela honra prestada pelos cristãos primitivos que Jungmann encontra a semente para a atual veneração a santos e a Maria.

Em virtude da violenta perseguição que ocorreu durante os primeiros três séculos da Igreja Cristã, as vidas dos mártires foram automatica-mente percebidas como sendo testemunhos heroicos de fé, os quais se tornaram exemplos de fi delidade que fomentavam gratidão por aquelas vidas piedosas e davam encorajamento diante da perseguição ainda existente.8 No começo, referências às mortes dos mártires não se dife-renciavam em essência daquelas de qualquer outra pessoa já falecida. No entanto, com o passar do tempo, as celebrações anuais perderam o seu caráter de pesar e se tornaram celebrações de fé. O Bispo Policarpo, queimado vivo entre 155 e 156, é o caso mais antigo de que se tem conhecimento de uma comemoração de um mártir. Cirilo de Jerusalém (313-386), em suas Aulas catequéticas, menciona a prática de orar por aqueles que já haviam partido, portanto, algo já comum em seu tempo. Em Roma, celebrações festivas ligadas aos mártires já estavam fi rme-mente estabelecidas em meados do terceiro século. Com o Edito de Milão de 313, o fi m da perseguição e a vitória da Igreja, o caráter heroico dos mártires se tornou ainda mais proeminente. Os modestos monumentos que haviam sido erguidos sobre seus túmulos foram transformados em basílicas, e os rituais lá celebrados se tornaram mais e mais comuns.9 “Liturgicamente, honra era prestada aos mártires, cultos ocorriam sobre seus túmulos, missas eram celebradas em seus aniversários e os relatos de seus sofrimentos eram lidos. Além disso, eles também eram mencio-nados em dípticos”.10 Popularmente, a veneração era expressa através do desejo de ser sepultado próximo ao túmulo dos mártires, através da celebração do refrigerium11 e da veneração de relíquias. Toda a pieda-de relacionada aos mártires e aos santos testifi ca que celebrações em lembrança daqueles que foram importantes na história da fé cristã eram muito comuns. Se mártires e santos receberam este reconhecimento, não poderia ser diferente com a mãe de Jesus.

8 SCHULER, Rhoda. 2008. “On the veneration of saints and martyrs, ancient and modern.” Word & World 28, no. 4: 373-380. ATLA Religion Database with ATLASerials, EBSCO host (accessed January 12, 2014).

9 JUNGMANN, Josef A. The Early Liturgy. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1959, p. 177 ff.

10 JUNGMANN, Josef A. The Place of Christ in Liturgical Prayer. New York: Alba House, 1965, p. 264.

11 Um tipo de banquete celebrado em honra aos mortos. À mesa, um lugar vazio expressava a companhia e a comunhão com o morto. Abusos ligados a esta veneração começaram a ocorrer. Por vezes, as celebrações se transformavam em farras e ataques de bebedeira (Jungmann, 1959, p. 183).

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No Novo Testamento, referências a Maria estão normalmente conectadas à sua maternidade. Na literatura apócrifa, é possível encontrar narrativas nas quais Maria é descrita em termos miraculosos.12 Apesar de não se ter notícia de um extenso material dogmático a respeito de Maria durante os primeiros três séculos, naquele período ela já era objeto de refl exão cristã. Muitos escritores, com base no modelo paulino Cristo/Adão, postularam Maria como sendo a nova Eva. Justino Mártir (100-165) apontou para as diferenças entre Eva e Maria: “Eva, que era virgem e imaculada, concebendo a palavra que veio da serpente trouxe desobediência e morte, mas a Virgem Maria, tendo fé e alegria quando o anjo Gabriel disse a ela as boas-novas, respondeu ‘Que se cumpra em mim conforme a tua palavra.’”13 Neste texto, Maria é descrita de maneira signifi cativamente positiva, já afi rmando-se seu signifi cado papel no plano de Deus para salvar a humanidade.

No entanto, a mais antiga referência a Maria em uma liturgia está presente no registro da ordenação de um bispo, o qual data de 215. O candidato “agradeceu a Deus por meio de Cristo, a quem Deus enviou ao ventre da Virgem, dentro do corpo de quem Deus se tornou encarnado e apontado como sendo o Filho de Deus nascido do Espírito Santo e da Virgem Maria”. No ano 300, uma rica viúva chamada Ikelia construiu em Jerusalém uma igreja mariana, a qual é chamada de Igreja Kathisma (no passado, era chamada de “Kathisma Theotokos” – Kathisma: assento; Theotokos: “portadora de Deus”, ou “que dá à luz Deus”). Em 311, uma igreja em Alexandria foi dedicada à Mãe de Deus e por volta de 352 foi fundada em Roma a Basílica de Santa Maria Maggiore.14

As referências acima apontam para o fato de que a veneração aos santos e à Maria já se fazia presente na cristandade desde os primeiros séculos. Desde cedo eles já gozavam de um lugar especial na piedade popular, sendo honrados por aquilo que eles realizaram como servos de Cristo. Como os vivos e os mortos eram compreendidos como sendo membros da Santa Igreja, os cristãos que já dormiam eram vistos como ainda estando ligados à fé. Em seu artigo Lugar e veneração dos santos hoje, o Dr. Urbano Zilles, professor de teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, argumenta que o lugar dos santos na fé católica pode apenas ser compreendido (e aqui o mesmo raciocínio pode ser aplicado a Maria) através do entendimento de que Deus comunica

12 HUNTER, Jim Ernest. 1986. “Blessed art thou among women: Mary in the history of Chris-tian thought.” Review & Expositor 83, no. 1: 35-49 (p. 35). ATLA Religion Database with ATLASerials, EBSCO host (accessed January 13, 2014).

13 HUNTER, Jim Ernest. 1986. “Blessed art thou among women: Mary in the history of Christian thought.” Review & Expositor 83, no. 1: 35-49 (p. 36). ATLA Religion Database with ATLA Serials, EBSCO host (accessed January 13, 2014

14 MCNALLY, Terrence J. What every Catholic should know about Mary. Xlibris Corporation: Bloomington. 2009, p. 68 ff.

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a si mesmo ao mundo criado, de uma maneira que a intercomunhão é parte da experiência de ser uma criatura humana. De acordo com ele, as relações estabelecidas com os santos (e com Maria), através das quais um cristão cuida do outro em santa comunhão, são características de nossa humanidade.15 O que é diferente a respeito dos mártires/santos e de Maria é que eles já estão na glória, isto é, “mais perto” de Deus.

Um lugar vazio é gradualmente ocupado

Em seu livro Pastoral Liturgy (Liturgia Pastoral), Jungmann contrasta a igreja e o período inicial da cultura religiosa medieval. Lá, ele aponta para a controvérsia ariana e seus desenvolvimentos como tendo sido um evento seminal para as mudanças que a vida devocional cristã sofre a partir do quarto século. A evidência da infl uência da controvérsia sobre a liturgia mais frequentemente mencionada por Jungmann está relacionada à maneira como os textos devocionais se referiam a Jesus. Sua principal tese é que, por causa da doutrina da encarnação, Jesus ocupava uma po-sição de intermediador entre a humanidade e Deus. De alguma maneira, ele era visto como estando mais perto da realidade humana se compa-rado a textos da piedade pós-Niceia. Depois de Niceia e da construção do pensamento teológico que a seguiu, o qual enfatizava a divindade de Jesus, Jesus foi elevado e as pessoas começaram a sentir que ele estava localizado em uma distante realidade.

Jungmann argumenta que, naturalmente, os cristãos primitivos compreendiam que a adoração deveria ser dirigida a Deus e que eles poderiam se dirigir a ele em oração com toda a confi ança. Contudo, qual era a base para aquela confi ança? O Cristo que os conduzia a Deus. Textos bíblicos como Romanos 1.8; 16.27; 2 Coríntios 1.20; 1 Pedro 2.5, juntamente com toda a história da salvação, eram o fundamento de uma compreensão de que Cristo era o Mediador entre a humanidade e Deus. Esta mesma compreensão estava presente na antiga fórmula doxológica do quarto século: “Glória ao Pai por meio (dia,) do Filho no (evn) Espírito Santo.” Mesmo que a maioria dos teólogos trinitários dos dias de hoje não vejam nenhum problema teológico nesta afi rmação, o papel de mediador de Cristo presente na liturgia era usado como um argumento em defesa do pensamento ariano, os quais consideravam este texto doxológico como sendo uma evidência do estado de subordinação de Cristo diante de Deus, o Pai. Como glória é dada ao Pai por meio do Filho, Jesus está acima da Igreja mas abaixo de Deus, mediando a relação

15 ZILLES, Urbano. Lugar e veneração dos santos hoje. Eletronicamente disponível em <http://revistas eletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/teo/article/viewFile/2730/2079>. Acessado em 12/01/2014.

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entre os dois. Teólogos nicenos de maneira alguma poderiam concordar com isto, portanto, algumas mudanças litúrgicas acabaram acontecen-do. Com o objetivo de afi rmar a igualdade de Jesus com o Pai evitando confusão, em 375 Basílio publicou seu tratado De Spiritu Sancto, onde ele claramente distinguia o sentido católico da antiga fórmula, o qual havia sido mal direcionado pelos arianos: “Glória ao Pai com (meta,) o Filho e juntamente com (su,n) o Espírito Santo”16. De acordo com Jung-mann, não apenas a doxologia de Basílio, a qual mais tarde acabou se tornando uma oração, mas também a sua Mariologia eram “infl uenciadas por sua preocupação em aclamar a divindade do Redentor e instilar em seus ouvintes e leitores sentimentos de intensa reverência em relação a Cristo, quase de tremor e temor”.17

O zelo em enfatizar a divindade de Cristo também estava presente nas expressões que Crisóstomo utilizava para se referir à Eucaristia. Ele a chamava de “terrível sacrifício”; “temível mesa” e “a hora de terror”.18 Mesmo que estas expressões tivessem por objetivo afi rmar o temor de Deus diante da presença de Jesus, elas também contribuíram para ampliar a distância entre Jesus e o crente piedoso. É importante perceber que Jungmann afi rma que “não havia sugestão alguma de negar que Cristo tinha uma natureza humana e nem de excluir a consciência deste fato da vida devocional, mas em certos contextos isto não foi mais mantido em mente.”19

Jungmann argumenta que quando a principal preocupação do cristianis-mo era espalhar a luz ao mundo, enfatizava-se a boa notícia da salvação. Contudo, Niceia provocou uma mudança naquela ênfase. Como a correta compreensão da misteriosa inter-relação entre as pessoas da Santíssima Trindade estava ameaçada, a verdadeira afi rmação de fé era vista como sendo fi des Trinitatis.20 Desta maneira, o que chamava a atenção de Jung-mann não é que orações fossem feitas a Cristo, porque desde o início esta era uma prática comum e aceita. Também não chamava sua atenção o fato de que o mistério da Trindade era enfatizado, porque o Credo Apostólico já havia apontado para isto, assim como o fez Novaciano. O que chamava sua atenção é que se tornou mais e mais evidente o entendimento que identifi cava a substância da fé com a doutrina da Trindade.21 Em sua opi-nião, a atenção das pessoas foi deslocada da revelação de Deus em sua Palavra encarnada para uma conceptualização doutrinária.

16 JUNGMANN, Josef A. Pastoral Liturgy. New York: Herder and Herder, 1962, p. 12.17 Idem.18 JUNGMANN, Josef A. Pastoral Liturgy. New York: Herder and Herder, 1962, p. 13.19 Idem.20 Ibidem, p. 33.21 JUNGMANN, Josef A. Pastoral Liturgy. New York: Herder and Herder, 1962, p. 34.

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De acordo com Jungmann, “na liturgia romana pré-franca as três pessoas eram raramente mencionadas de maneira explícita, e a palavra Trinitas é mencionada apenas duas vezes. Contudo, no período carolíngio os modelos trinitários de pensamento começaram a se espalhar pela liturgia romana”.22 Uma consequência desta mudança é que a humanidade de Cris-to foi perdida de vista e o foco foi direcionado para a natureza divina que une Pai, Filho e Espírito Santo. Uma fi el confi ssão do ensinamento bíblico das duas naturezas de Cristo foi mantida, mas a Palavra que caminhou por este mundo tornou-se apenas uma epifania de Deus. Buscando dar suporte à sua hipótese, Jungmann menciona a poesia e a pregação germânica dos séculos X e XI, quando demonstrava-se prazer no uso das palavras “Deus” e “Criador” para Jesus. Ao referir-se a Jesus, poetas diziam “Deus comeu”, “Deus bebeu”, “o pé de Deus”, “a paixão de Deus”. Também vale a pena mencionar a mudança na arte cristã durante a Idade Média quando, ao invés de simbolicamente retratar a Deus como uma mãe erguida acima das nuvens, ele passou a ser retratado em forma humana.23

Mesmo que diferenças possam ser notadas quando se compara as igrejas Ocidental e Oriental, “existe uma série inteira de fenômenos que são os mesmos em ambas realidades: o papel de Cristo como mediador se torna menos importante, a Trindade mais importante, a veneração à Maria cresce, de maneira que somos compelidos a considerar a luta contra os arianos como sendo o principal fator deste processo de mudança”,24 argumenta Jungmann.

Foi neste contexto, onde pregadores viam a si mesmos como guardiões da honra do Redentor, que a tendência de enfatizar a glória da Theotokos estava agindo. Depois da crescente ênfase do homoousios, a Igreja Cristã viveu a ênfase do Theotokos, a qual foi um movimento esperado. À medida que a natureza divina de Cristo era mais e mais enfatizada, muitos sentiram que seria natural venerar a bendita mulher que foi o instrumento e o vaso de sua encarnação. A decisão tomada no Concílio de Éfeso em 432 é vista por Jungmann como sendo uma reverberação da controvérsia iniciada em Niceia. Não demorou muito até que as pessoas vissem a necessidade de afi rmar a impecabilidade de Maria de maneira a proteger a impecabilidade de Jesus. Ambrósio (340-397) defendeu o estado imaculado de Maria e Agostinho (354-430) declarou: “No que diz respeito à Virgem, não tenho o desejo de levantar qualquer questiona-mento no tocante ao pecado, e isto em honra ao Senhor, pois sabemos que dele grandiosa abundância de graça para vencer o pecado em todos

22 Ibidem, p. 35.23 Ibidem, p. 47.24 JUNGMANN, Josef A. Pastoral Liturgy. New York: Herder and Herder, 1962, p. 16

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os sentidos foi conferida a ela a qual, sem dúvida, não tinha pecado”.25 À medida que crescia a atenção dos fi éis para os mistérios da encarna-ção e do nascimento virginal, igrejas começaram a ser dedicadas à mãe de Deus. A rápida propagação da celebração de Natal seguida por uma série de festas dedicadas a Maria e sua inserção no calendário também são compreendidas como sendo evidências do processo que elevou Maria ao papel de mediadora. Tudo isto leva Jungmann a afi rmar que “sobre uma fundação de puro calcedonismo, o qual acentuadamente separou as duas naturezas em Cristo e então simplesmente as colocou lado a lado, permaneceu sempre presente a tentação de colocar muita ênfase sobre a natureza divina de maneira que o signifi cado da natureza humana para a redenção, especialmente em sua consumação pascal, fosse facilmente perdido de vista. No entanto, foi esta a forma que a resistência ao aria-nismo acabou assumindo no Ocidente”.26

2. ESTARIA JUNGMANN CORRETO?

Em seu recente livro Praying and Believing in Early Christianity (Oração e Crença no Cristianismo Primitivo), Maxwell E. Johnson27 avalia o impacto da liturgia no desenvolvimento da doutrina cristã nos primeiros séculos, trabalhando na interação entre oração e crença, liturgia e fé. Neste livro, Johnson questiona a defi nição normativa cristã a respeito da oração que está conectada à pesquisa de Jungmann. Esta defi nição está baseada no ensino de Orígenes de Alexandria, o qual diz que orações deveriam ser dirigidas somente a Deus, seguindo-se o exemplo de Jesus, o qual não ensinou a orar para ele mesmo, mas somente ao Pai.28 De acordo com Johnson, Jungmann entendia que antes de Niceia os cristãos se dirigiam em oração somente a Deus, através de Cristo. Cristo era considerado o Sumo Sacerdote e Me-diador entre a humanidade e Deus no Espírito Santo. Johnson afi rma ainda que Jungmann não reconheceu a existência de inúmeras fontes nas quais a oração era feita diretamente a Jesus, considerando-as aberrações, simples devoção e piedade popular ou desvios da ortodoxia cristã. Foi com base nesta compreensão que Jungmann afi rmou que foi a controvérsia ariana e

25 HUNTER, Jim Ernest. “Blessed art thou among women: Mary in the history of Christian thought.” Review & Expositor 83, no. 1 (December 1, 1986): 35-49. ATLA Religion Database with ATLA Serials, EBSCOhost (accessed January 12, 2014).

26 JUNGMANN, Josef A. Pastoral Liturgy. New York: Herder and Herder, 1962, p. 57.27 Professor de liturgia na Universidade de Notre Dame e pastor da Evangelical Lutheran Church

in America (Igreja Evangélica Luterana na América). É um membro da North American Academy of Liturgy (Academia Norte Americana de Liturgia), da Societas Liturgica (Socie-dade Litúrgica) e da Society of Oriental Liturgy (Sociedade de Liturgia Oriental) e autor de inúmeros livros.

28 Maxwell E. Johnson. Praying and Believing in Early Christianity: The Interplay Between Christian Worship and Doctrine. Liturgical Press: Collegeville, 2013.

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A TEOLOGIA NICENA E A ASCENSÃO DA VENERAÇÃO A MARIA

sua consequente ênfase na divindade de Cristo que abriu o caminho para a veneração aos santos e à Maria, de maneira que eles tomaram para si o papel de mediador que, originalmente, pertencia a Jesus.

Contudo, o que os livros de Johnson demonstram é que a maneira de ler o material que Jungmann não valorizou, considerando-o como não relevante, mudou grandemente na última década. Ele menciona proeminentes pesquisadores como Larry W. Hurtado, que diretamente questiona as hipóteses de Jungmann e demonstra que a oração cristã dirigida diretamente a Cristo antes da controvérsia ariana era muito mais comum do que se acreditava anteriormente. Além disso, Johnson lembra a recente valorização que a religiosidade popular tem conquistado entre estudiosos. A pesquisa científi ca moderna “tem estado mais disposta a abraçar uma visão mais ampla do todo, incluindo as vidas e as práticas religiosas dos pobres, das mulheres e de outros como sendo recursos teológicos e litúrgicos”.29

Como uma evidência da adoração primitiva a Cristo, Johnson aponta para a Oração de Policarpo, o qual, vivendo no terceiro século, atribui a mesma glória divina para Cristo e para o Espírito Santo. Da mesma maneira, do terceiro século temos a largamente conhecida oração litúrgica provinda da tradição síria, a qual atribui a mesma glória às três pessoas da Santíssima Trindade: “Digno de glória de toda a boca e de ações de graça de toda a língua é o adorável e glorioso nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo... (nós) damos graças porque tu nos trouxeste grandiosa graça a qual não pode ser recompensada. Pois ofereceste a tua natureza humana para conceder-nos vida através da tua natureza divina... Tu, ó Senhor Deus, venceste nossos inimigos… Que todos os habitantes da terra conheçam a ti, que enviaste nosso Senhor Jesus Cristo teu amado Filho, e que conheçam a ele que é o nosso Deus e o nosso Salvador”.30

Ao lidar com as conexões entre o termo Theotokos e a teologia de Niceia, Johnson argumenta que a discussão em Éfeso era diferente da discussão em Niceia. O foco era a relação/unidade das duas naturezas de Cristo, e não sua divindade e homoousios com o Pai. Além disso, o termo já havia sido utilizado várias vezes antes do Concílio de Éfeso, e nenhuma posição cristológica ou doutrinária em particular esteve neces-sariamente ligada a este uso, sendo uma palavra comum para se referir à Virgem Maria.31

29 Maxwell E. Johnson. Praying and Believing in Early Christianity: The Interplay Between Christian Worship and Doctrine. Liturgical Press: Collegeville, 2013, p. 27.

30 Maxwell E. Johnson. Praying and Believing in Early Christianity: The Interplay Between Christian Worship and Doctrine. Liturgical Press: Collegeville, 2013, p. 31.

31 Ibidem, p. 71 ff.

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Johnson explica que o terceiro e o quarto séculos apresentaram uma crescente veneração de Maria, a qual, por vezes, era expressa em práticas excessivas. Suportam esta afi rmação: a oposição de Nestório a um tipo de misticismo mariano que estava crescendo em sua época; a referência de Proclo ao “festival da Virgem” e o apoio de Atanásio para que se man-tivesse a “memória” ou a “comemoração” de Maria. Sendo assim, pode-se argumentar que a opção pelo termo Theotokos não pode ser vista exclu-sivamente como uma consequência da discussão dogmática a respeito da divindade de Jesus (Niceia) ou da relação entre suas duas naturezas (Éfeso), mas também tem raízes na piedade popular.32 Aqui Johnson tem por objetivo demonstrar que o lex orandi lex credendi também estava ativo no processo, e que as raízes da crescente veneração de Maria tinham uma característica muito mais popular do que doutrinária.33

A pesquisa de Larry W. Hurtado34 a respeito da adoração a Cristo, a qual é detalhadamente apresentada em seu livro Lord Jesus Christ – Devotion to Jesus in Earliest Christianity (Senhor Jesus Cristo – A Devoção a Jesus no Cristianismo Primitivo), apoia grandemente a visão de Johnson. Isto porque ele demonstra que a piedade cristã que aponta para a igualdade de Jesus com Deus Pai na adoração é uma realidade que sempre acompanhou o Cristianismo. Inicialmente, Hurtado argumenta que a adoração a Cristo pode ser traçada de desde os tempos das cartas de Paulo.35 Ele defende a ideia de que quando se considera o monote-ísmo judaico não se pode ter em mente um modelo evolucionário para compreender-se as origens da adoração a Cristo, mas sim um modelo revolucionário.36 O que aconteceu no desenvolvimento da devoção a Cristo durante o Cristianismo primitivo foi “a reconfi guração da prática e do pensamento monoteístas judaicos para acomodar Jesus juntamente a Deus como legítimo recipiente de adoração”.37 Hurtado detalhadamente explica como este processo de acomodação ocorreu. Apesar de não ser o objetivo deste artigo trabalhar este tópico em específi co, é importante afi rmar que esta acomodação não fez com que o monoteísmo fosse dei-xado de lado pelo Cristianismo. A adoração a um único Deus continuou

32 MCDONNELL, Kilian. The Marian Liturgical Tradition. In: Between Memory and Hope, edited by Maxwell E. Johnson. Collegeville: Liturgical Press, 2000, p. 400.

33 Maxwell E. Johnson. Praying and Believing in Early Christianity: The Interplay Between Christian Worship and Doctrine. Liturgical Press: Collegeville, 2013, p. 83 ff.

34 Larry W. Hurtado (1943) é um estudioso do Novo Testamento, historiador com foco nos estudos da igreja primitiva e Professor Emérito de Novo Testamento da Universidade de Edinburgh. Ele também é autor de muitos livros.

35 Larry. W. Hurtado. Lord Jesus Christ – Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Michigan: Grand Rapids, 2003, p. 79ff.

36 Larry W. Hurtado. How on Earth did Jesus become a God. Michigan: Grand Rapids, 2005, p. 25.37 Larry. W. Hurtado. Lord Jesus Christ – Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Michigan:

Grand Rapids, 2003, p. 33.

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A TEOLOGIA NICENA E A ASCENSÃO DA VENERAÇÃO A MARIA

sendo um característico e poderoso fator na devoção religiosa da igreja primitiva.38

Tendo como base as afi rmações de Johnson e Hurtado, o argumento lex orandi lex credendi facilmente conquista seu espaço na discussão da relação entre a teologia nicena e a veneração de mártires, santos e Maria. Mesmo que Niceia tenha trazido uma maior ênfase nas discussões a res-peito da essência de Jesus e de sua relação com o Pai, a prática anterior a Niceia já havia estabelecido a compreensão de que Jesus não era apenas um meio ou uma fi gura intermediária na adoração a Deus, mas era ado-rado juntamente com Deus. Sendo assim, Johnson e Hurtado demonstram que a mudança do estrito monoteísmo judeu para a adoração trinitária cristã não aconteceu através de um processo evolucionário, como se Jesus tivesse sido primeiro considerado uma fi gura importante e, depois, passo a passo, viesse a se tornar Deus. O que realmente aconteceu foi uma compreensão revolucionária, a qual, estando fundada nas revelações do Antigo Testamento e nos ensinamentos dos apóstolos, reconheceu Jesus como sendo a Palavra encarnada de Deus, digno de louvor e adoração. Da mesma maneira, a veneração dedicada a Maria tem raízes que não estão conectadas a Niceia ou ao desenvolvimento teológico que seguiu o concílio, mas à piedade popular.

COMENTÁRIOS FINAIS

A afi rmação de Jungmann de que a ênfase de Niceia na divindade de Cristo teria contribuído fortemente para elevar o papel de Maria e dos santos não parece ser conclusiva. Variadas fontes demonstram que a adoração dirigida a Jesus (ou seja, o entendimento de que ele era Deus) era uma realidade estabelecida antes do concílio de Niceia. Um testemu-nho disso é o fato de que, mesmo que os arianos considerassem Jesus como sendo a primeira e mais importante criatura de Deus, a adoração a ele, de maneira alguma, representava um problema para aqueles que se opunham à teologia nicena. O confl ito não estava em adorar-se ou não a Jesus, mas na compreensão de sua relação essencial com o Pai. Além disso, as evidências têm demonstrado que a veneração ou reverência especial a Maria já eram praticadas antes da controvérsia ariana. Mesmo que doutrinas relacionadas a Maria tenham tido desenvolvimentos que muitos consideram altamente questionáveis, seu papel especial no plano salvífi co de Deus não pode ser negado. Portanto, reverência a ela parece ser um desenvolvimento natural dentro da piedade popular, apesar de a

38 Larry. W. Hurtado. Lord Jesus Christ – Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Michigan: Grand Rapids, 2003, p. 48, 53.

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mesma não estar livre de exageros.39 Contudo, parece não haver razões para que se descarte completamente as afi rmações de Jungmann.

Antes de justifi car-se uma abertura às conclusões de Jungmann, é preciso descartar-se por completo a ideia de que a adoração a Jesus foi evolucionária e, consequentemente, um desenvolvimento secundário na doutrina cristã. Não é difícil encontrar aqueles que pensam que a divindade de Jesus foi uma criação de Niceia. Teorias da conspiração como a de Dan Brown em seu sucesso internacional O Código Da Vinci arrebanharam mi-lhares de pessoas em todo o mundo, e ideias como a dele têm sua origem em teorias levianas e em estudos que desconsideram importante material da igreja primitiva. É fundamental que a Igreja Cristã afi rme sem sombra de dúvidas que a adoração dirigida diretamente a Cristo tem sido parte da piedade cristã desde os tempos bíblicos. Contudo, mesmo diante desta certeza não se vê razão alguma para descartar a possibilidade de que os desenvolvimentos teológicos pós Niceia realmente tenham contribuído para o fortalecimento de uma visão que colocou Jesus em um sublime, elevado, distante lugar, abrindo o caminho para a hiperdulia a Maria hoje presente em grande parte da manifestação cristã no mundo.

Ninguém, nem mesmo Jungmann, arguiria que Niceia deve ser vista como sendo a única razão para o crescimento da veneração dos santos e de Maria na piedade católica. Este crescimento pode ser analisado de diferentes perspectivas. Estudos sociológicos e antropológicos, por exem-plo, têm enriquecido nossa compreensão a respeito deste fenômeno ao ajudar-nos a entender as relações de poder, a dissolução de barreiras culturais tradicionais na igreja primitiva bem como a sofi sticada didática envolvida neste processo.40 Contudo, existem desenvolvimentos na his-tória da igreja cristã que dão suporte à visão de Jungmann. A maneira como o Novo Testamento retrata Jesus contrasta grandemente a fi gura de juiz severo tão presente na Idade Média (veja nota de rodapé número 3, acima). Mesmo que os concílios de Niceia e Éfeso não tenham lidado com o mesmo assunto controverso, as questões levantadas em Éfeso foram uma consequência natural das respostas dadas em Niceia. Como o que se vê após Éfeso é o desenvolvimento de um sistema específi co de liturgia mariana, uma conexão entre Niceia e a veneração a Maria, mesmo que indireta, pode ser defendida. Além disso, expressões de piedade popular relacionadas a Maria percebidas em países como o Brasil, tanto na arte

39 Críticas à piedade católica relacionada à Maria não são incomuns em meios protestantes e pentecostais. No mínimo curiosa, no entanto, é a manifestação de um dos mais famosos padres brasileiros, Marcelo de Melo, a respeito do tema. <<https://www.youtube.com/watch?v=tdt4fpA8cBw>> Acessado em 31/01/2015.

40 RABE, Susan A. 1991. “Veneration of the saints in western Christianity: an ecumenical issue in historical perspective.” Journal of Ecumenical Studies 28, no. 1: 39-62. ATLA Religion Database with ATLA Serials, EBSCOhost (accessed January 12, 2014).

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como em testemunhos pessoais, aponta para uma fé que não nega a glória de Jesus como verdadeiro Deus, mas que expressa a si mesma em um íntimo e fi lial relacionamento com Maria. Nestes casos, o papel inter-mediador de Jesus é normalmente relegado à sua obra vicária na cruz. No imaginário de muitos católicos, a imagem de Jesus como pantocrator é mais vívida do que o conceito do Bom Pastor, o qual era muito popular nos primeiros séculos da era cristã. Porque Jesus é visto estando sentado ao lado direito de Deus Pai, pessoas sentem que precisam de um media-dor que esteja mais perto deles, como afi rmou João Grilo em O auto da compadecida.

Ao escrever sobre a tradição litúrgica mariana, Kilian McDonnell41 afi r-ma: “Lex orandi lex credendi não pode signifi car que existe um tipo de transferência automática do culto para o credo, de maneira que aquilo que é orado imediatamente e sem nenhuma reserva é traduzido como uma obrigação em termos de fé. O princípio é mais amplo. O que a Igreja faz, especialmente durante a oração litúrgica, é um locus theologicus... A litur-gia, então, é operativa na maneira como a igreja forma a doutrina. Ela é um elemento no processo de discernimento teológico... Sua função normativa não se mantém por si mesma... ela pertence à história e é marcada pela sua passagem através de estilos teológicos e preferências devocionais de um determinado momento histórico. Se um período histórico é marcado por uma elaboração teológica grandemente elaborada, por uma superestrutura teológica que é muito pesada mesmo para fundamentos inquestionados, tudo isto irá refl etir nas liturgias que brotam daquele momento histórico”.42 Aqui, McDonnell não nega o lex orandi lex credendi, mas afi rma que há mais do que isto envolvido nos desenvolvimentos teológicos e litúrgicos da igreja. Há infl uência mútua entre a piedade e a elaboração teológica, e talvez este seja o caso da hiperdulia mariana.

Contudo, independentemente da aceitação ou não da afi rmação de que reverberações da ênfase nicena sobre a consubstancialidade de Jesus com o Pai contribuíram para o desenvolvimento distorcido da relação de Jesus com os cristãos, uma reavaliação comprometida da teologia de Niceia é capaz de reafi rmar o signifi cado bíblico de Emanuel. A teologia nicena apresenta uma postura de submissão à Escritura. Nesta postura,a leitura da Bíblia ocorre tendo como pressuposto uma visão de unidade escriturística que é a consequência de uma crença fundamental: a Bíblia é a Palavra de Deus. Esta Palavra gira ao redor de Cristo e daquilo que ele fez (faz e fará) em

41 Professor universitário com doutorado na Alemanha. Tendo servido em vários grupos católi-cos de alcance nacional e internacional, atualmente é o diretor do Instituto Collegeville de Pesquisa Ecumênica e Cultural.

42 MCDONNELL, Kilian. The Marian Liturgical Tradition. In: Between Memory and Hope, edited by Maxwell E. Johnson. Collegeville: Liturgical Press, 2000, p. 398/399.

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benefício de toda a criação de Deus. Portanto, nós precisamos ter sempre diante de nós a maneira que Deus escolheu para efetivar a sua salvação, e o Credo Niceno explica com clareza como ele o fez. Ele confessa que, por amor à humanidade e para salvá-la, Deus tornou-se um de nós em Cristo. Sua encarnação marca sua presença carnal na história humana. Ele se tor-nou como um de nós em todos os aspectos, com exceção do pecado. “Isto tudo ocorreu e foi escrito por causa de nós e por amor a nós, de maneira que o Senhor, tendo se tornado humano, concedesse imortalidade a nós que somos mortais e temporais, e nos guiasse para dentro do eterno reino dos céus”.43 Ele é nosso perfeito Mediador, tanto por ter em si a plenitude divina como por ser verdadeiramente humano. Seu conhecimento a respeito de quem nós somos e sua compaixão por cada um de nós excedem infi -nitamente o conhecimento e a compaixão de qualquer herói da fé. “Nesta pessoa em particular (Jesus Cristo), nesta vida em particular, nesta história em particular, divino e humano, a realidade de Deus e a nossa realidade são indissoluvelmente e ‘redentoramente’ uma”.44 A própria vida e história de Jesus Cristo e tudo que está conectado a ele precisa ser usado pela Igreja Cristã e por cristãos individualmente como uma ferramenta interpretativa na compreensão de suas próprias vidas e histórias à medida que buscam vivenciar um relacionamento íntimo com Cristo. Mesmo que a encarnação não torne Deus melhor ou modifi que sua essência divina em nenhum as-pecto, ela com certeza contém um aspecto confortador à medida que traz a nossa humanidade para um íntimo relacionamento com Deus. Com certeza faz diferença para a mente humana pensar num Deus que é Deus e que está perto de nós e pensar num Deus que é Deus e se tornou como um de nós. Portanto, revisitar o Credo Niceno e a sua teologia com discernimento bíblico e teológico signifi cará reconhecer que ele traz Deus para perto de todos nós. O “Deus de Deus, Luz de Luz” reafi rma a crença e a piedade cristã que apontavam para a divindade de Cristo, mas o “Por nós homens e pela nossa salvação... encarnou” aponta para o Deus que está conosco em nossa própria humanidade, estando mais perto de nós do que qualquer outro poderá jamais estar.

À medida que vêm à minha mente cenas do fi lme O auto da compade-cida, relembro o fato de que todos nós nos encontraremos diante do trono do julgamento divino (Romanos 14.10). A Bíblia nos ensina que o nosso Senhor Jesus Cristo será o nosso juiz (Atos 10.42), mas não devemos nunca nos esquecer de que ele também será o nosso advogado (1 João 2.1). Esta é uma verdade confortadora.

43 Athanasius, Orations against the Arians. In: Athanasius, by Khaled Anatolios. Routledge, 2005, position 2184.

44 YEAGO, David S. Crucified also for us under Pontius Pilate – Six Propositions on the Preach-ing of the Cross. In: Nicene Christianity – The Future for a New Ecumenism, by Christopher R. Seitz, p. 92.

O BATISMO NO ESPÍRITO SANTO CONFORME O LIVRO DE ATOS

Alexandre Teixeira Vieira1

INTRODUÇÃO

A atividade do Espírito Santo e a necessidade do batismo são afi rmadas por todos os cristãos. Entretanto, a compreensão que se tem com respeito ao Espírito e ao batismo é algo bem distinto de uma teologia para outra. Enquanto para uns o Espírito Santo está sempre ligado aos meios da gra-ça, para outros Ele age livremente, sem a necessidade de meios. Acerca do batismo alguns afi rmam que ele (o batismo) sempre é um meio pelo qual o dom do Espírito é concedido, outros dizem que é apenas um ato exterior, um rito de iniciação ou testemunho público de fé. Há também o chamado “Batismo no Espírito Santo” (BES), que para alguns signifi ca um empoderamento efetuado pelo Espírito em pessoas já convertidas a Jesus. Tais controvérsias são resultados de estudos das Escrituras que, a respeito da relação entre o Espírito e o batismo, apresentam textos que podem ser interpretados de diferentes maneiras, gerando compreensões distintas do assunto.

O presente trabalho tenciona expor a ação da Terceira Pessoa da Trin-dade quando conectada ao batismo, segundo o testemunho do livro de Atos. Visto que o Espírito e o batismo são fundamentais para o cristianismo, um estudo aprofundado da relação entre eles se faz necessário. E, para se fazer um estudo aprofundado, é indispensável estudar o livro de Atos, onde o Espírito se manifesta de forma ímpar na Escritura, e onde sua rela-ção com o batismo parece tão espontânea e pouco uniforme. Exatamente de textos de Atos é que a doutrina pentecostal do BES é extraída. Neste trabalho tentaremos apresentar uma análise desses textos, levando em conta a unidade da narrativa e o propósito do autor ao escrevê-la.

Para tanto, os resultados da pesquisa estão estruturados da seguinte forma: primeiramente, formando o primeiro capítulo, estão expostos alguns aspectos contidos no livro de Atos que são, pensamos, necessários para a correta compreensão do tema. Dentre esses aspectos estão o propósito de Lucas ao escrever seu livro, a pregação de Pedro no dia de Pentecostes, e uma breve explicação de “batismo cristão” no entendimento dos primeiros

1 Trabalho de conclusão de curso de bacharelado em Teologia na Universidade Luterana do Brasil. O trabalho foi apresentado no ano de 2007, orientado pelo prof. Gerson L. Linden. O autor atualmente reside em St. Louis, EUA, onde está realizando seu doutorado em Teologia Bíblica no Concordia Seminary.

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cristãos. Em segundo lugar, há a análise dos principais textos utilizados pelos pentecostais para fundamentar sua doutrina do BES, quais sejam: At 8.14-17, 10.44-48 e 19.1-7.

O primeiro texto trata do batismo dos samaritanos, o qual não foi ime-diatamente seguido da descida do Espírito, razão pela qual os pentecostais argumentam que o batismo com água não é sufi ciente para concedê-lo. O segundo texto demonstra a vinda do Espírito sobre os gentios antes de eles terem sido batizados, fato que alguns atribuem simplesmente à liberdade do Espírito em agir de forma imediata. O terceiro texto fala do batismo de alguns homens que Paulo encontrou em Éfeso, os quais receberam o Espírito imediatamente após o batismo cristão, o que não havia acontecido antes porque somente conheciam o batismo de João.

Cada um dos textos estudados compõe um capítulo. O trabalho com-pleto apresenta quatro capítulos.

1. ASPECTOS RELEVANTES DO LIVRO DE ATOS PARA A COMPRE-ENSÃO DO BATISMO NO ESPÍRITO

Apesar de não podermos defi nir a partir do Novo Testamento quem é o autor de Atos, já que ele não se identifi ca, neste estudo aceitaremos, com base em evidências internas e externas do livro, o médico Lucas como autor. A igreja tem aceitado esta hipótese como certa à base dos mais antigos e fi dedignos documentos e testemunhos patrísticos: Irineu e o Cânon Muratoriano.2 Além destes, Clemente de Alexandria, Orígenes e Tertuliano trazem o mesmo testemunho.3

A pergunta cabível neste momento é: o que Lucas pretendia ao redigir sua obra? Pode-se deduzir a resposta a esta pergunta no desenvolvimento da narrativa.

1.1 Propósito do autor

De acordo com Frederick F. Bruce, o propósito das duas obras de Lucas é fornecer informações autênticas sobre o início do cristianismo.4 De igual forma, Everett F. Harrison diz que

o objetivo principal é sem dúvida relatar a história do começo e progresso da Igreja primitiva – sua dramática origem em Jeru-

2 ROTTMANN, Johannes H. Atos dos Apóstolos no contexto do século XX. 2.ed. Porto Alegre: Concórdia, 1997. v.1. p.3.

3 BLAIKLOCK, E. M. The Acts of the Apostles – an historical commentary. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1959. p.13..

4 BRUCE, F. F. The Acts of the Apostles – the greek text with introduction and commentary. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1990. p. 22.

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salém, a cidade que rejeitou e crucifi cou Jesus de Nazaré; sua expansão gradual na Judeia, estimulada em parte pela persegui-ção; sua corajosa incursão com o Evangelho em Samaria; e sua constante expansão para o mundo gentílico, culminando com a chegada da mensagem em Roma, o coração do império.5

Relacionando o que foi mencionado acima com Atos 1.8, poderíamos dizer que, mais do que simplesmente um relato histórico, Lucas escreveu a fi m de apontar para o cumprimento das palavras de Jesus. De fato, Harrison nos lembra que

a Grande Comissão do Senhor ressurreto registrada em Atos 1.8 é uma chave para a estrutura da narrativa, a qual relata o progresso da evangelização na mesma ordem descrita na pas-sagem: Jerusalém, Judeia, Samaria, as partes mais distantes da terra.6

Sendo que o assunto do livro é a atividade da Igreja, Lucas não poderia deixar de falar do Senhor da Igreja. Atos dos Apóstolos, portanto, não se restringe aos feitos dos apóstolos. Antes, fala dos atos do Espírito Santo através dos primeiros cristãos, e como observa Bruce: “Não há nada em Atos que não esteja relacionado com o Espírito”.7 Devido a isto alguns autores modernos têm sugerido que um título mais adequado para o livro seria “Atos do Espírito Santo”.8

Já que Lucas tencionava legar a obra de Jesus através da Igreja, não podemos esperar que ele apresente uma teologia sistematicamente ela-borada do Espírito Santo ou do batismo. Exatamente por isso é de suma importância não nos esquecermos de suas pretensões na medida em que entrarmos na investigação textual, evitando o risco, e muitas vezes a ten-tação, de colocar na argumentação do escritor coisas que ele não disse.

5 HARRISON, Everett F. Acts: The Expanding Church. Chicago: Moody, 1978. p. 17. Texto original: “the primary objective is doubtless to relate the story of the rise and progress of the early Church – its dramatic origin in Jerusalem, the city which rejected and cruci-fied Jesus of Nazareth; its gradual spread into Judea, impelled in part by persecution; its bold invasion of Samaria with the Gospel; and its steady expansion into the Gentile world, climaxed by the bringing of the message to Rome, the heart of the empire.”

6 HARRISON, 1978. p. 11. Texto original: “The Great Commission of the risen Lord, as recorded in 1:8, is a key to the structure of the narrative, which reports the progress of the evangelization in the same order as in that passage: Jerusalem, Judea, Samaria, the remotest part of the earth.”

7 BRUCE, 1990, p. 22. Texto original: “there is nothing in Acts which is unrelated to the Spirit”.

8 HARRISON, 1978, p. 11.

O BATISMO NO ESPÍRITO SANTO CONFORME O LIVRO DE ATOS

IGREJA LUTERANA

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1.2 A problemática do tema

Como já foi dito, Lucas não escreveu o seu livro com a intenção de nos fornecer uma teologia do Espírito Santo e do batismo. Mas observando as ocorrências descritas em Atos, perceberemos que ali o Espírito Santo se manifesta de forma ímpar nas Escrituras, também na Sua relação com o batismo. Essa relação batismo-Espírito tem pelo menos duas interpreta-ções diferentes.

Uma, adotada pelos cristãos pentecostais, diz respeito ao Batismo no Espírito Santo. Entenda-se aqui BES como sendo algo distinto do batismo da igreja primitiva que envolvia arrependimento, água e confi ssão de fé. Esses elementos, segundo eles – os pentecostais –, constituem um rito de iniciação que deve ser praticado pelo crente ao ser recebido na comunhão da igreja. O BES é diferente desse rito de iniciação.9 Ele “é visto como uma experiência profunda e com data defi nida na qual o Espírito Santo enche a vida do crente: o mais provável é que ocorra posteriormente ao batismo e conversão”.10 Segundo Don Basham,11

todos precisam ver que conversão e batismo no Espírito Santo não são somente experiências separadas – eles são dados para propósitos diferentes e distintos. Conversão é aquela experiência de Jesus Cristo pela qual o não-cristão se torna cristão, enquan-to o batismo no Espírito Santo é aquela experiência que faz do cristão um poderoso cristão.

A noção de que ser batizado no Espírito Santo é uma experiência distinta da conversão e do batismo com água é extraída basicamente de três passagens de Atos: 8.1-17, 10.34-46 e 19.1-18.12 A fi m de enten-dermos um pouco melhor cada uma delas, é necessário estudá-las em seu contexto.

Outra interpretação a respeito da relação batismo-Espírito é a que tentaremos expor ao longo deste trabalho, abordando os textos mencio-

9 DUNN, J. D. G. pneu/ma. In: BROWN, Colin, COENEN, Lothar. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. 2.ed. Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000. v.2. p. 713-40.

10 GREEN, Michael. Baptism: It’s Purpose, Practice & Power. Downers Grove: InterVarsity, 1987. p. 129. Texto original: “is seen as a profound and datable experience in which the Holy Spirit floods the life of the believer: it is likely to be subsequent to baptism and con-version.”

11 (apud GREEN, 1987, p. 129-130). Texto original: “Every one needs to see that conver-sion and baptism in the Holy Spirit are not only separate experiences – they are given for separate and distinct purposes. Conversion is that experience of Jesus Christ by which the non-Christian becomes a Christian, while the baptism in the Holy Spirit is that experience for the Christian to make him a powerful Christian.”

12 GREEN, 1987, p. 130.

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nados acima. Mas, antes, veremos o que o apóstolo Pedro fala da relação existente entre batismo e Espírito Santo, no início de Atos.

1.3 A pregação de Pedro no Pentecostes

Na pregação de Pedro no dia de Pentecostes, em Atos 2.38, o apóstolo revela qual o caminho para recebermos o Espírito Santo: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado no nome de Jesus Cristo para perdão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo”.13 Curiosamente neste versículo Pedro fala que os arrependidos e batizados receberão o dwrea.n (dooreán – dom; presente; algo que se recebe de graça) do Es-pírito Santo. Não devemos inferir das palavras de Pedro que ele se refere a algum dom que o Espírito Santo concede, como o dom de línguas ou o dom da profecia. O dwrea.n do Espírito Santo é o próprio Espírito, como podemos observar em outras passagens de Atos: 8.20, 10.45.14 Nesses dois versículos não resta dúvida de que a referência é o próprio Espírito Santo.

Pedro não diz que é necessário mais de um Batismo para o recebimen-to do Espírito, mas somente o batismo evpi. tw/| ovno,mati VIhsou/ Cristou (epí too onómati Iesoú Christoú – no nome de Jesus Cristo). Apesar de Pedro estar falando com muita clareza, Leenhardt15 consegue dividir sua declaração em dois assuntos:

A promessa deveria ser normalmente cumprida, e pode-se crer que ela será; todavia Pedro não parece pensar que necessaria-mente seguirá o batismo com água. Deus interferirá de acordo com a promessa, mas o rito batismal não O amarra, não O obriga a cumprir sua promessa hic et nunc.

Esse ponto de vista é muito bem contestado por Murray ao dizer:

Naturalmente, Deus não amarra a concessão do Espírito ao rito do batismo, [...] mas tal afi rmação negativa [de Leenhardt] não tem nada a ver com a declaração de Atos 2.38. Conforme S. I.

13 Todos os textos bíblicos utilizados no decorrer do trabalho são traduções do autor, com auxílio da obra: BÍBLIA. Grego/Português. Novo Testamento interlinear grego-português. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2004.

14 BRUCE, 1990, p. 130. 15 (apud MURRAY, G. R. Beasley. Baptism in the New Testament. Grand Rapids: William B.

Eerdmans, 1973. p. 107). Texto original: “The promise should be normally fulfilled, and one may legitimately believe that it will be; however Peter does not appear to think that it will necessarily follow immediately on the baptism of water. God will intervene according to the promise, but the baptismal rite does not bind Him, it does not constrain Him to fulfill His promise hic et nunc.”

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Buse indica, a forma da declaração nesta passagem, ‘Arrependei-vos e sede batizados... e recebereis o dom do Espírito Santo’, é semelhante àquela em Atos 16.31, ‘Crê no Senhor Jesus, e serás salvo’; o tipo de interpretação de Leenhardt e seus seguidores não tem espaço nesta última passagem. Qualquer que seja a relação entre batismo e o dom do Espírito em outro lugar de Atos, nesse ponto parece não haver dúvida sobre qual a intenção de Atos 2.38; o crente arrependido batizado no nome de Jesus Cristo pode esperar receber imediatamente o Espírito Santo [...].16

De fato, não encontramos apoio em Atos ou em qualquer outra parte do Novo Testamento que indique que o batismo no nome de Jesus Cristo não conceda o Espírito; o próprio Pedro ensina que este é o caminho para recebê-lO. Referente a isso, Frederick D. Bruner comenta:

Nosso texto nos ensina que, desde a ocorrência do Pentecostes, o batismo fi ca sendo a localidade do recebimento do Espírito em resposta à pressão do Espírito na pregação. Doravante, o batismo é o Pentecostes. Pedro não convida ninguém ao cenáculo. Não ensina a ninguém como falar em línguas. As formas externas do Pentecostes (o vento, o fogo, as visões, as línguas) partem; per-manece o conteúdo essencial. O conteúdo é o dom gratuito que Deus dá: o Espírito Santo. E depois do Pentecostes, este dom é oferecido, como aqui, com o perdão, no rito humilde do batismo. O batismo fi ca sendo o batismo no Espírito Santo. Pedro em Atos 2.38 não oferece nenhuma outra defi nição. Não faz um contraste entre o batismo e o dom do Espírito Santo, junta-os. [...] é um dos propósitos principais de Atos mostrar como o batismo e o dom do Espírito Santo pertencem indissoluvelmente juntos. [...] E este Es-pírito Santo, [...] é dado através dos ‘meios da graça’. Estes meios, estabelecidos como as primícias do Pentecostes, são a pregação cristã (2.5-37) e seu selo, o batismo cristão (2.38-41).17

1.4 O batismo cristão

Agora é oportuno falarmos acerca do batismo cristão. Pedro prega aos ouvintes: “Arrependei-vos,... e cada um de vós seja batizado... para

16 MURRAY, 1973, p. 107-108. Texto original: “Naturally, God does not bind the impartation of the Spirit to the rite of baptism, […] but such a negative observation has nothing to do with the declaration of Acts 2.38. As S. I. Buse has pointed out, the form of statement in this passage, ‘Repent and be baptized… and you will receive the gift of the Holy Spirit’, is similar to that in Acts 16.31, ‘Believe on the Lord Jesus, and you will be saved’; the kind of interpretation advocated by Leenhardt and his followers has no room in the latter pas-sage. Whatever the relationship between baptism and the gift of the Spirit elsewhere in Acts, there appears to be no doubt as to the intention of Acts 2.38; the penitent believer baptized in the name of Jesus Christ may expect to receive at once the Holy Spirit […].”

17 BRUNER, Frederik Dale. Teologia do Espírito Santo. Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 1989. p. 134.

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perdão dos vossos pecados...” Estas palavras de Pedro parecem ecoar a proclamação de João Batista aludida em Lucas 3.3: “batismo de arrepen-dimento para perdão de pecados”.18 Esse batismo de João, como todos sabem, era administrado com água. Isto é até um tanto óbvio ao obser-varmos o signifi cado da palavra bapti,zw (baptizoo – batizar): mergulhar ou molhar.19 Esse verbo é uma forma intensiva de ba,ptw (báptoo)20 que signifi ca tanto mergulhar21 quanto lavar,22 molhar23 e embeber (Lc 16.24; Jo 13.26).24 Parece óbvio, portanto, que Pedro, ao utilizar a mesma palavra usada para descrever o batismo de João com água, entende que o batismo cristão, aquele que confere o Espírito Santo, é feito da mesma forma. O que muda é que “o batismo de João era batismo de arrependimento, […] e batismo cristão é batismo de fé […]. A diferença não se encontra no batismo, mas na sua relação com Jesus Cristo”.25 A partir da descida do Espírito no Pentecostes, juntamente com o batismo com água passou-se a receber o batismo com o Espírito Santo. Daí vê-se o acréscimo na fórmula batismal de Pedro: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado ‘no nome de Jesus Cristo’ para perdão dos vossos pecados, ‘e recebereis o dom do Espírito Santo’”. Edmund Schlink26 comenta que os ouvintes de Pedro, assim como a igreja em geral do Novo Testamento, não faziam separação entre o batismo cristão com água e o batismo no Espírito Santo. Ele nos remete a algumas passagens de epístolas de Paulo: 1Co 6.11; 1Co 12.13a; Ef 1.12-13; aqui podemos acrescentar 4.5, 4.30; e fi nalmente Tt 3.5. Harrison também adota a interpretação de que desde o princípio da igreja cristã o batismo com água é o meio pelo qual se recebe o Espírito: “Atos 2.38 apresenta o modelo usual para se obter o Espírito”.27 Portanto,

18 MARSHALL, I. Howard. Atos dos Apóstolos: Introdução e Comentário. Traduzido por Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, Mundo Cristão, 1985. p. 80.

19 BAUER, Walter. A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature. Traduzido, adaptado e ampliado por William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich. London: The University of Chicago, 1979. p. 131.

20 MURRAY, G. R. Beasley-. ba,ptw. In: BROWN, 2000, p. 180-6.21 Idem, ibidem.22 OEPKE, Albrecht. ba,ptw. In: KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary of the New Testament

– abridged in one volume by Geoffrey W. Bromiley. Traduzido por Geoffrey W. Bromiley. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1985. p. 92.

23 BULLINGER, Ethelbert W. A critical lexicon and concordance to the English and Greek New Testament. Grand Rapids: Zondervan, 1982. p. 80.

24 GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo Testamento Grego/Português. São Paulo: Vida Nova, 1991. p. 41.

25 BULLINGER, 1982, p. 80. Texto original: “Baptism of John was the Baptism of repentance, […] and Christian Baptism is Baptism of Faith […]. The difference lies not in the Baptism, but in the relation thereof to Jesus Christ.”

26 SCHLINK, Edmund. The Doctrine of Baptism. Traduzido por Herbert J. A. Bouman. St. Louis: Concordia, 1972. p. 58-59.

27 HARRISON, 1978, p. 63. Texto original: “Acts 2.38 presents the normal pattern for obtain-ing the Spirit.”

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“as duas exigências, ‘Arrependei-vos, e sede batizados’, resultam nos dois grandes dons da nova era: ‘perdão’ e ‘o Espírito Santo’”.28

Os ouvintes de Pedro não esperavam receber mais do que um batismo, um para perdão dos pecados e outro com o Espírito Santo. Ao analisarmos a relação entre o batismo e o Espírito em outros textos dentro de Atos, não podemos perder de vista esse discurso de Pedro.

2. ATOS 8.14-17: OS SAMARITANOS

E ouvindo os apóstolos, em Jerusalém, que Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram a eles [os samaritanos] Pedro e João; os quais descendo para lá, oraram por eles para que re-cebessem o Espírito Santo; porque ainda não havia caído sobre nenhum deles, mas somente estavam batizados no nome do Senhor Jesus. Então, impunham as mãos sobre eles, e recebiam [o] Espírito Santo.

O capítulo 8 de Atos inicia tratando da perseguição que a Igreja sofreu. Nesta perseguição “todos, exceto os apóstolos, foram dispersos pelas regiões da Judeia e Samaria”. Entre estes que foram espalhados está um daqueles sete homens cheios do Espírito escolhidos no capítulo 6 para cuidarem da “distribuição diária”: Filipe.

Filipe foi para os lados de Samaria, onde passou a pregar a palavra de Deus. O texto diz que todos aceitavam a palavra que ele trazia e iam sendo batizados. Depois que a igreja de Jerusalém soube da aceitação dos samaritanos, enviou para lá Pedro e João. Neste ponto, 8.14-17, é onde encontramos a maior difi culdade.

2.1 O problema

Uma leitura rápida e desatenta deste texto pode, e certamente o fará, levar a conclusões precipitadas. Há, por exemplo, quem afi rme que no versículo 17 os samaritanos estavam recebendo um segundo batismo, o batismo no Espírito Santo; enquanto no versículo 16 se fala do primeiro, aquele relativo à conversão, feito em nome de Jesus Cristo. Este posiciona-mento é defendido por alguns, conforme já mencionamos anteriormente. Outra conclusão que pode ser resultado de uma leitura irrefl etida do texto é afi rmar que o Espírito Santo foi concedido através da imposição de mãos

28 SMITH, Robert H. Concordia Commentary: Acts. Saint Louis: Concordia, 1970, p. 65. Texto original: “The two demands, ‘Repent, and be baptized,’ result in the two great gifts of the new age: ‘forgiveness’ and ‘the Holy Spirit’.”

31

por parte dos apóstolos. Murray29 nos lembra que alguns autores, por considerarem a imposição de mãos parte integrante do batismo cristão em contraposição ao batismo de João na igreja primitiva, sugerem esta possibilidade, a qual ele refuta dizendo:

Se imposição de mãos por parte do administrador do batismo fosse considerada como parte integrante do rito introdutório na igreja primitiva, então Filipe, sem dúvida, teria imposto as mãos sobre os samaritanos quando os batizou, e eles teriam recebido o Espírito!30

Além disso,

as poucas passagens em Atos [nas quais o Espírito Santo está conectado à imposição de mãos] não permitem a conclusão de que nas primeiras igrejas o Espírito Santo era recebido não através do batismo mas pela imposição de mãos.31

Apesar de Lucas mencionar a imposição de mãos por apóstolos, em nenhum momento ela é ensinada em Atos, nas epístolas de Paulo, nos evangelhos ou em qualquer outra parte como uma necessidade para o recebimento do Espírito.32

Se o texto não fala de um segundo batismo, nem da imposição de mãos como meio para a concessão do Espírito, por que, então, os samaritanos não O receberam quando foram batizados?

É interessante notar alguns aspectos mencionados por Lucas sobre a reação dos samaritanos às palavras de Filipe: eles davam atenção (v.6), houve muita alegria (v.8), creram e iam sendo batizados (v.12) e o próprio Simão creu (v.13). Pela descrição que temos, os samaritanos já estavam convertidos a Jesus Cristo. Segundo Paulo, na carta aos Romanos, 8.9, o Espírito de Deus habita em todos os crentes, e se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse não é de Cristo. De acordo com estas palavras é difícil imaginar uma igreja que consiste de crentes batizados no nome do Senhor Jesus que ainda não tenham recebido o Espírito do Senhor.

29 MURRAY, 1973, p. 113.30 MURRAY, 1973, p. 113. Texto original: “If laying on of hands by the administrator of baptism

was regarded as part of the initiatory rite in the early church, then Philip would doubtless have laid hands on the Samaritans when he baptized them, and they would have received the Spirit!”

31 SCHLINK, 1972, p. 68. Texto original: “the few passages in Acts do not allow the conclusion that in the early churches the Holy Spirit was received not through Baptism but through the laying on of hands.”

32 BRUNER, 1989, p. 162.

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Murray33 analisa o caso dos samaritanos à luz das palavras de Paulo supracitadas e da descrição que Lucas fornece do eunuco no versículo 39. Naquele episódio, depois de ter sido batizado, o eunuco segue o seu caminho cheio de júbilo. O termo utilizado para descrever aquele recém convertido, que não precisou da imposição de mãos pelos apóstolos, é cai,rwn (cháiroon). Com a expressão pollh. cara. (pollée chará – gran-de júbilo) Lucas fala de um júbilo semelhante dos samaritanos na sua conversão. Após essas observações, Murray lança a pergunta: “Pode ser, por essa razão, que ele [Lucas] considerasse esses cristãos [de Samaria] como não sem o Espírito mas sem os dons espirituais que caracterizavam a vida comum das comunidades cristãs?”34 O próprio autor mencionado responde essa pergunta dizendo que

não há dúvida de que Lucas estava particularmente interessado no fenômeno carismático conectado com o dom do Espírito. [...] Lucas poderia estar descrevendo uma igreja em que o Espírito não era desconhecido, mas na qual os dons do Espírito ainda não haviam sido manifestos.35

O que apóia esta interpretação é o fato de no versículo 18 Simão poder ver a concessão do Espírito. Se o texto estivesse falando da conversão dos samaritanos simplesmente, Simão não poderia ter visto que o Espírito era concedido. Bruce,36 da mesma forma que Smith,37 admite que o recebi-mento do Espírito pelos samaritanos veio acompanhado de glossolalia ou outra manifestação desse tipo.

Não descartamos a possibilidade de que a vinda do Espírito Santo sobre os samaritanos fosse acompanhada por algum ca,risma (chárisma – dom espiritual). Mesmo assim, ainda que especulemos essa possibilidade não podemos encerrar o assunto. Lucas diz que o Espírito ainda não havia caído sobre nenhum deles, mas somente estavam batizados “no nome do Senhor Jesus”. Atos 8.16, em vista disso, parece ensinar que somente o batismo no nome do Senhor Jesus era incapaz de conceder o Espírito. Deste versículo pode-se facilmente deduzir que o recebimento do Espí-

33 MURRAY, 1973, p. 118-119.34 Idem, p. 119. Texto original: “Can it be, therefore, that he regarded these Christian as not

without the Spirit but without the spiritual gifts that characterized the common life of the Christian communities?”.

35 Idem, ibidem. Texto original: “There is no doubt that Luke was particularly interested in the charismatic phenomena connected with the gift of the Spirit. […] Luke may have been describing a church in which the Spirit was not unknown but in which the Spirit’s gifts were not yet manifest.”

36 BRUCE, 1990, p. 222.37 SMITH, 1970, p. 139.

33

rito Santo é uma experiência alheia e posterior ao batismo cristão nas águas. Mas não se pode olhar apenas para este versículo em detrimento do resto do livro.

Como vimos anteriormente, Pedro menciona a “fórmula” efi caz para o recebimento do Espírito: batismo no nome de Jesus Cristo. Bruner38 chama a atenção para dois aspectos que ajudam a desvendar o enigma dessa passagem. Para ele a palavra ouvde,pw (oudépoo – ainda não) e mo,non (mónon – somente) indicam a surpresa de Lucas com a situação. O normal seria que ao serem batizados todos recebessem o Espírito Santo, mas os samaritanos somente estavam batizados; o Espírito ainda não havia caído sobre nenhum deles. Diante desta notória admiração de Lucas com a estranheza dos fatos, Bruner conclui:

Com as palavras “ainda não” e “somente” de Atos 8.16 somos le-vados não somente para o coração do signifi cado desta passagem como também para o mundo interior da convicção do escritor e da igreja primitiva diante do batismo e do dom do Espírito.

As qualifi cações de Atos 8.16 que indicam a suspensão temporá-ria do normal – os “somente batizados” e o Espírito “ainda não” dado – são, conforme devemos notar, singulares no Livro de Atos e pressupõem a união entre o batismo e o Espírito. Em nenhum outro lugar do Novo Testamento o batismo cristão recebe as qualifi cações de Atos 8.16. E imediatamente em Atos 8.17 somos informados que aquela desconexão singular foi imediatamente transposta.39

Constatamos, destarte, que a suspensão do Espírito não ocorre devido à falta de um batismo no Espírito, já que os samaritanos já haviam sido batizados no nome de Jesus Cristo, e conforme Mateus 28.19, não há batismos distintos para cada pessoa da Trindade, batizar no nome divino é batizar no Espírito Santo.40 O acontecimento de Atos 8 é uma exceção, pois relata a única vez em que o Novo Testamento mostra o batismo cris-tão sem a descida do Espírito Santo.41 E, como foi observado até aqui, o Espírito Santo deve estar ligado ao batismo; quando isso não acontece, é porque há algo de anormal. E a anormalidade está bem expressa nas palavras ainda não de Lucas, as quais revelam que a vinda do Espírito completa o ato batismal.42 Diante disso, Bruner afi rma que Atos 8 não

38 BRUNER, 1989, p. 139.39 Idem, ibidem.40 Idem, p. 161.41 Idem, p. 140.42 Idem, p. 138-139.

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existe para ensinar a separação, mas para ensinar a união entre batismo e o dom do Espírito.43

Está claro que aquele acontecimento de Samaria fora uma exceção que foi imediatamente desfeita pelos apóstolos, no entanto ainda é preciso elucidar outros aspectos que nos ajudam a entender o porquê da demora do Espírito.

2.2 Testemunhas de Jesus Cristo

No início do livro de Atos, antes de ser elevado às alturas, Jesus se apresentou vivo aos apóstolos e lhes deu algumas instruções. Essas instruções são encontradas nos versículos 4 a 8 do capítulo 1 e dizem respeito ao cumprimento da promessa do Pai de enviar o Espírito Santo. No versículo 4, Jesus determina aos Seus discípulos a não se ausentarem de Jerusalém até o cumprimento da promessa do Pai, que em seguida é lembrada no versículo 5: [...] João, por um lado, batizou com água, vós, por outro, sereis batizados no Espírito Santo. Em Atos 1.8 Jesus explica a fi nalidade do recebimento do Espírito: mas recebereis poder vindo sobre vós o Espírito Santo, e sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até aos confi ns da terra.

Eles deveriam começar “em Jerusalém”, a capital dos judeus, e ir para os territórios vizinhos, chegando aos desterrados e rejeitados samaritanos, e a todo lugar “até os confi ns da terra”, como outro livro judeu designava Roma (Salmos de Salomão 8.16), a capital do mundo gentílico (Is 49.6).44

Nem todos concordam que Roma seria os confi ns da terra, pelo que atribuem aos confi ns da terra um sentido mais lato.45

Jesus diz que o Espírito Santo deveria conceder du,namij (dýnamis – po-der sobrenatural) aos apóstolos para que eles se tornassem testemunhas de Cristo em Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confi ns da terra.46 É importante notar que Jesus está falando isso somente para os apóstolos, estes é que estão no plano de Deus para testemunhar a Cristo nesse contexto.

43 Idem, p.141.44 SMITH, 1970, p. 42. Texto original: “They were to begin ‘in Jerusalem,’ the capital of Jewry,

and go to the surrounding territory, piercing to the half-caste and outcast Samaritans, and all the way ‘to the end of the earth,’ as another Jewish book designated Rome (Ps. Sol. 8.16), the capital of the Gentile world (Is. 49.6).”

45 MARSHALL, 1985. p. 61.46 BRUCE, 1990, p. 103.

35

Depois de dar as últimas instruções aos apóstolos, Jesus foi elevado às alturas. No dia de Pentecostes, a promessa de Deus cumpriu-se, con-forme relatado no segundo capítulo de Atos. O Espírito Santo concedeu aos apóstolos o poder de falar em outras línguas, para que eles pudessem testemunhar a Cristo, começando em Jerusalém. Isto está de acordo com as orientações ou profecia de Jesus em 1.8. Depois da descida do Espírito, a Igreja experimentou um crescimento constante, porém continuava em Je-rusalém. Parece que os apóstolos não atentaram para as palavras de Jesus Cristo: sereis minhas testemunhas em Jerusalém, Judeia e Samaria.

Então Deus providenciou um meio de levar o testemunho de Cristo às ou-tras regiões. “A primeira pregação para ‘toda Judeia e Samaria’ ocorre depois da morte de Estêvão, pelos cristãos dispersos por toda parte dos territórios da Judeia e Samaria’”.47 Deus arranjou uma maneira de levar a Igreja a ou-tros, todavia algo não saiu como esperado: daqueles que foram dispersos, os apóstolos estão explicitamente excluídos.48 O Senhor poderia muito bem continuar Seu propósito sem a utilização dos apóstolos, mas Ele não o fez. As palavras de Jesus em 1.8 ecoam ao longo da narrativa: sereis [os apóstolos] minhas testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e Samaria.

Como mencionamos anteriormente, Filipe, e não um dos doze, foi a Samaria testemunhar a respeito de Cristo. Naquela ocasião os samaritanos creram e foram batizados, mas Deus não lhes concedeu o Seu Espírito até a chegada dos apóstolos. É claro que a missão não dependia dos doze para ter efi cácia, mas, por um motivo ou outro, Deus estava disposto a prosseguir com Seu plano esboçado em 1.8. A efetivação dos samarita-nos como comunidade cristã de batizados e dotados do Espírito sucede à chegada dos apóstolos. E essa ida dos apóstolos a Samaria tem, como veremos, um signifi cado especial.

2.3 A relação entre judeus e samaritanos

A relação entre judeus e samaritanos está bem expressa em João 4.9. Eles não mantinham uma relação amigável. “Judeus e samaritanos eram inimigos implacáveis, e isso havia séculos”.49 A primeira causa da diver-gência entre os dois povos era a questão racial. Por volta de 722 a.C. a Samaria foi conquistada pela Assíria, e,

as populações deportadas da Babilônia, de Hamat e de outras partes foram restabelecidas na região [de Samaria]. Esses

47 MURRAY, 1973, p. 116. Texto original: “The first preaching to ‘all Judea and Samaria’ takes place after the death of Stephen, by Christian ‘scattered throughout the territories of Judea and Samaria’.”

48 Idem, Ibidem.49 GREEN, 1987, p. 131-132. Texto original: “Jews and Samaritans were bitter enemies, and

had been for centuries.”

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estrangeiros trouxeram consigo seus costumes nativos e religiões e, juntamente com outros, introduzidos mais tarde ainda, misturaram-se ao restante da população israelita so-brevivente.50

Além desses que eram estranhos ao povo judeu,

os assírios deportaram os israelitas mais propensos a se revol-tar – os líderes religiosos e políticos – ao mesmo tempo que ali assentaram cativos de outras nações. Da miscigenação desses cativos com israelitas nativos surgiu a população mista conhecida como samaritana.51

Mais tarde, em meados do século quarto a.C.,

as relações entre judeus e samaritanos continuava (sic) a piorar. É uma questão delicada quando se deu o rompimento fi nal de re-lações entre ambos. Provavelmente este rompimento foi se dando aos poucos, de modo que não se pode fi xar uma data precisa. Tal-vez seja correto considerar a fi xação das escrituras samaritanas (o Pentateuco) em sua escrita arcaizante, o que parece ter acontecido no fi m do século segundo a.C., como o fi m defi nitivo do processo, visto que foi então que os samaritanos surgiram como uma seita religiosa distinta, completamente alheia à dos judeus. Certamente, o cisma era irremediável àquela altura. Fora, porém, uma longa história de antagonismo mútuo e de constantes atritos desde os tempos de Zorobabel, séculos antes, que preparara o terreno para que o cisma se tornasse inevitável. Particularmente a separação política entre Judá e Samaria, sob o domínio de Neemias, seguida da obra de Esdras, marcou um passo para a separação religiosa irreversível. [...] Embora os samaritanos aceitassem o Pentateuco como a lei de Moisés, os judeus tradicionais do tipo de Neemias os consideravam como estrangeiros e inimigos (o que muito frequen-temente eles foram) e não os acolhiam na comunidade do templo. E, como orgulhosos israelitas do norte, os samaritanos difi cilmente concordariam com a idéia, classicamente expressa pelo Cronista, de que o verdadeiro Israel era o remanescente restaurado de Judá, nem podiam admitir que o único lugar em que seu Deus podia ser legitimamente adorado fi casse além das fronteiras da província, em Jerusalém. Tal separação devia inevitavelmente levar, mais cedo ou mais tarde, à separação religiosa. E assim aconteceu.52

50 BRIGHT, John. História de Israel. Traduzido por Euclides Carneiro da Silva. São Paulo: Paulinas, 1978. p. 369.

51 LASOR, William, HUBBARD, David A., BUSH, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. Traduzido por Lucy Yamakami. São Paulo: Vida Nova, 1999. p. 679.

52 BRIGHT, 1978, p. 557-558.

37

Vê-se que o clima entre judeus e samaritanos era hostil em matéria de política e religião. Em virtude de tais adversidades, os samaritanos chegaram a construir o seu próprio templo, em Gerizim, o qual foi des-truído por judeus em 128 a.C., tornando permanente a inimizade entre ambos.53

O historiador hebreu Flavio Josefo menciona em uma de suas obras a relação entre judeus e samaritanos à época do Império Assírio. Falando da deportação em massa de Samaria, ele diz:

Esses novos habitantes da Samaria, [...] eram de cinco nações diferentes, que tinham cada uma um deus particular e eles conti-nuaram a adorá-los, como faziam em seu país. [...] Esses povos, que os gregos chamam de samaritanos, continuam ainda hoje na mesma religião. Mas eles mudam com relação a nós, segundo a diversidade dos tempos, pois, quando a nossa situação é boa, eles protestam que nos consideram como irmãos, porque sendo uns e outros descendentes de José, nós temos nossa origem de um mesmo ramo. Quando a sorte nos é contrária, eles dizem que não nos conhecem e que não são obrigados a nos amar, pois tendo vindo de um país tão afastado para se estabelecer naquele em que habitam, nada têm de comum conosco.54

Essas palavras de Josefo descrevem a animosidade presente nas re-lações entre os dois povos. Na mesma obra, ao falar do retorno do povo de Deus do cativeiro babilônico, Josefo55 nos fala dos esforços que os samaritanos empenharam, juntamente com outros povos, na tentativa de impedir que os judeus reconstruíssem seu templo e a cidade de Jeru-salém, o que havia sido permitido mediante decreto de Ciro. Inicialmente os samaritanos não tiveram êxito, mas quando Cambises, fi lho de Ciro, subiu ao trono, foi convencido e interrompeu as obras dos judeus em Jerusalém. O trabalho fi cou parado por nove anos, até o segundo ano do reinado do Rei Dario.

Depois desses fatos, há o relato de contínuas guerras entre ju-deus e samaritanos, “porque nem uns nem outros queriam deixar seus costumes”.56

Os de Jerusalém sustentavam que somente o templo de Jerusalém era santo e que não se devia fazer sacrifícios em outros lugares.

53 MURRAY, 1973, p. 118.54 JOSEFO, Flavio. História dos Hebreus. Traduzido por Padre Vicente Pedroso. São Paulo:

Editora das Américas, [S.d.]. v.3. p. 219-220.55 Idem, p. 305-332.56 Idem, p. 386-387.

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Os samaritanos sustentavam, ao contrário, que era preciso ir oferecê-los no monte Garizim [ou Gerizim].57

O mesmo historiador escreve ainda sobre uma outra grande dissensão entre judeus e samaritanos. Essa história pode ser encontrada no volume 6 de História dos Hebreus.58

Esse passado de profundas divergências entre judeus e samaritanos não é algo tão fácil de ser desfeito. Pelos motivos citados acima, os sama-ritanos eram “pessoas que a maioria dos judeus consideravam (sic), na melhor das hipóteses, judeus renegados”.59 O preconceito e o sentimento de superioridade estavam impregnados nos judeus, principalmente os de Jerusalém, aquela cidade que sediou o primeiro grupo de cristãos.

2.4 A solução de Deus

A estagnação da Igreja no princípio certamente não se deve ao fato das difi culdades de transporte. Era cômodo viver a “nova” fé entre o velho povo. A concentração de cristãos em Jerusalém era grande e, ao que pa-rece, eles não pretendiam sair de lá. Jesus manifestara aos apóstolos que eles seriam testemunhas em toda a região da Judeia e Samaria, mas eles não saíram de Jerusalém nem mesmo com a perseguição sofrida. Mas Atos 8.14 diz que quando os apóstolos, que estavam em Jerusalém, ouviram que Samaria recebera a palavra de Deus, enviaram para lá Pedro e João a fi m de verifi carem o trabalho; e a primeira constatação que eles fi zeram é de que havia algo errado, estranho, incompleto. O Espírito Santo não descera sobre nenhum dos samaritanos mesmo após o batismo. Por isso os dois apóstolos oraram para que eles também recebessem o Espírito. Voltamos a falar do problema. Por que o Espírito não fora concedido por ou com o batismo? Por que os samaritanos tiveram que esperar?

De acordo com Marshall,60 há apenas dois tipos de explicação para a exceção ocorrida em Samaria. A primeira é que “Deus reteve o Espírito até a vinda de Pedro e João a fi m de que fosse visto que os samaritanos estavam plenamente incorporados na comunidade dos cristãos de Je-rusalém que receberam o Espírito no dia do Pentecostes”; e a segunda explicação possível é que “a resposta e a dedicação dos samaritanos eram defeituosas, conforme demonstra o fato de que ainda não haviam

57 Idem, p. 387.58 JOSEFO, Flavio. História dos Hebreus. Traduzido por Padre Vicente Pedroso. São Paulo:

Editora das Américas, [S.d.]. v.6. p. 51-59.59 CARSON, D. A., MOO, Douglas J., MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. Traduzido

por Márcio Loureiro Redondo. São Paulo: Vida Nova, 1997. p. 205.60 MARSHALL, 1985, p. 153.

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recebido o Espírito”. O próprio autor citado defende a primeira explica-ção, já que nada é dito a respeito de defeito ou falha alguma na fé dos samaritanos.

Ao contrário de Marshall, Donald Guthrie61 simpatiza com a idéia de que poderia haver algo errado com a crença e batismo dos samaritanos. Já que eles tinham alta consideração pela magia e eram supersticiosos, para realmente superarem tudo isto, precisavam de alguma demonstração extraordinária de poder espiritual. E esta demonstração ocorreu quando da descida do Espírito sobre eles, pois Simão fi cou impressionado e desejou também poder operar tal transformação em outros. Isto implica em que antes do versículo 17 os samaritanos ainda não eram cristãos, mas apenas tinham sido convencidos intelectualmente por Filipe e crido nos seus mila-gres, mas a mensagem do Cristo morto e ressuscitado jamais entrara em seus corações. Apesar da descrição que Lucas faz dos samaritanos, a qual foi exposta anteriormente neste trabalho, Guthrie62 admite a possibilidade de que eles não estivessem na fé verdadeira até a descida do Espírito, pois também é dito que Simão creu (v.13), contudo pelas suas atitudes Pedro se dirige a ele como a um descrente (v.23). Assim como Simão, os samaritanos poderiam estar fascinados com os sinais produzidos por Filipe, e nisto puseram sua fé.

Esta última tentativa de resposta tende a fugir do problema que o texto oferece: uma comunidade de cristãos batizados na qual não habita o Espírito Santo. Se os samaritanos não estavam convertidos, por que Pedro e João nem mesmo precisaram pregar a eles, mas somente oraram a Deus?63 Admitamos a existência do problema e procuremos a devida solução.

Anteriormente falamos das relações entre judeus e samaritanos, que não eram nada amistosas. Será que isso

não nos dá um vestígio do porquê Deus reteve o Espírito até a chegada de Pedro e João? [...] [isto aconteceu] para que todos pudessem ver que Deus recebeu no seu reino não somente judeus, mas os samaritanos odiados e desprezados também, e reconciliar esses irreconciliáveis em Cristo.64

61 GUTHRIE Donald. New Testament Theology. Downers Grove: InterVarsity, 1981. p. 542.62 Idem, ibidem.63 DUNN, J. D. G. pneu/ma. In: BROWN, 2000, p. 729.64 GREEN, 1987, p. 132. Texto original: “Does this not give us a clue as to why God withheld

the Spirit until Peter and John came? That all could see that God received into his kingdom not only Jews but the hated and despised Samaritans too, and to reconcile these irrecon-cilables in Christ.”

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De fato, séculos de aversão só podiam ser desfeitos pela ação de Deus.

Se o Espírito Santo tivesse sido concedido imediatamente por meio da profi ssão de fé e batismo aos samaritanos esse antigo cisma poderia ter continuado, e teria havido duas igrejas, sem comunhão uma com a outra. Atos 15 mostra como uma ruptura decisiva entre o cristianismo judeu e gentílico foi cuidadosamente evitada pelos primeiros cristãos. Atos 8 parece salientar que uma cisão semelhantemente desastrosa foi evitada em Samaria. Deus não concedeu seu Espírito Santo (ou, talvez, a manifestação sobrenatural do Espírito em línguas e profecia?) aos samarita-nos imediatamente: não até que representantes de Jerusalém desceram e expressaram sua unidade com os neófi tos através da oração por eles e impondo suas mãos sobre eles. Depois disso eles receberam o Espírito; [...] Isto não foi tanto uma autorização de Jerusalém ou uma extensão da igreja de Jerusalém, quanto um veto divino no cisma da igreja ainda não desenvolvida, um cisma que poderia ter passado quase despercebido na comunidade cristã, tendo os convertidos dos dois lados da ‘cortina samaritana’ encontrado Cristo sem encontrarem uns aos outros.65

“A maioria dos estudiosos do NT admite que o fenômeno em Sa-maria foi excepcional, incomum – uma exceção a (sic) regra – devido à separação racial-religiosa entre judeus e samaritanos”.66 E embora não possamos afi rmar com toda certeza quais os motivos de Deus para reter Seu Espírito, tais autores apontam para uma intervenção de Deus na história da Igreja para sanar uma ferida antiga. Murray, por exemplo, diz:

Os crentes samaritanos precisavam de uma revelação divina de que ao receberem a Cristo eles seriam integrados no povo mes-siânico, enraizados no antigo Israel e novamente criados através

65 GREEN, Michael. I believe in the Holy Spirit. Grand Rapids: William B. Eerdmans, 1975. p. 167-168. Texto original: “If the Holy Spirit had been given immediately upon profession of faith and baptism by the Samaritans this ancient schism might have continued, and there would have been two churches, out of fellowship with each other. Acts 15 shows how carefully a decisive split between Jewish and Gentile Christianity was avoided by the early Christians. Acts 8 seems to stress that a similarly disastrous split was avoided at Samaria. God did not give his Holy Spirit (or, perhaps, the supernatural manifestations of that Spirit in tongues and prophecy?) to the Samaritans at once: not until representatives from Jerusalem came down and expressed their solidarity with the converts by praying for them and laying their hands on them. Then they received the Holy Spirit; […] It was not so much an authorisation (sic) from Jerusalem or an extension of the Jerusalem church, as a divine veto on schism in the infant Church, a schism which could have slipped almost unnoticed into the Christian fellowship, as converts from the two sides of the ‘Samaritan curtain’ found Christ without finding each other.”

66 DUNN, J. D. G. pneu/ma. In: BROWN, 2000, p. 729.

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da ação redentora do Messias. [...] É compreensível, portanto, que no Corpo em que não há judeu nem grego, deveria ter sido demonstrado pelo próprio Espírito que este era especifi camente um Corpo no qual não há judeu nem samaritano. A integração apostólica dos samaritanos para dentro da Igreja do Messias signifi cou uma cura efetiva de uma divisão perene e isso foi si-nalizado pelo consentimento divino através da vinda do Espírito sobre o povo alienado, manifestando sua inclusão para dentro do Israel de Deus.67

Nesse sentido de incorporação dos samaritanos no Israel de Deus, após séculos de confl itos intermináveis, a imposição de mãos apostólicas tem seu lugar, não como meio para recebimento do Espírito, mas como

uma segurança expressiva aos samaritanos, transmitida não por um evangelista independente como Filipe, mas pelos líderes da igreja de Jerusalém, de que eles não eram mais considerados como estranhos mas como membros semelhantes da comuni-dade eleita.68

De um jeito ou de outro, o propósito de Jesus seria cumprido: sereis mi-nhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria. A perseguição espalhou os cristãos, exceto os apóstolos, que mais tarde foram impelidos a enviar Pedro e João até Samaria. Com a chegada dos dois apóstolos, o problema da suspensão temporária do dom do Espírito foi resolvido. O texto de Atos 8.14-17 não tem equivalente na Escritura, ao que Bruner comenta:

O Espírito está temporariamente suspenso do batismo aqui “somente” e precisamente para ensinar a igreja na sua juntura de haver mais preconceito, e no seu avanço missionário inicial estratégico além de Jerusalém, que a suspensão não pode ocorrer. Este é o único registro no Novo Testamento do batismo cristão sem o dom imediatamente presente do Espírito cristão

67 MURRAY, 1973, p. 117-118. Texto original: “the Samaritans believers needed a divine revelation that in the receiving the Christ they had become integrated into the messianic people, rooted in ancient Israel and newly created through the redemptive action of the Messiah. […] It is comprehensible therefore that, in the Body wherein there is neither Jew nor Greek, it specifically a Body wherein there is neither Jew nor Samaritan. The Apostolic integration of the Samaritans into the Church of the Messiah signified an ef-fective healing of an age-long division and it was signalized with divine approval by the Spirit coming upon the estranged people, manifesting their inclusion into the Israel of God.”

68 BRUCE, 1990, p. 221. Texto original: “an eloquent assurance to the Samaritans, conveyed by no freelance evangelist like Philip but by the leaders of the Jerusalem church, that they were no longer treated as outsiders but as fellow members of the elect community.”

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(sic?), e a resolução imediata desta enormidade, ensina de modo impressionante, embora não sem confusão, a doutrina neotes-tamentária normativa e importante no Novo Testamento do “um só batismo” da igreja.69

E conforme Smith:

O fato de Pedro e João, pilares da igreja de Jerusalém, concede-rem o Espírito aos samaritanos convertidos de Filipe signifi ca que eles aceitam esta expansão inédita e radical e nova defi nição do povo de Deus, e eles deixam claro que novos cristãos de qual-quer espécie e em qualquer lugar entram na unidade e comu-nhão com a igreja de Jerusalém e não constituem um segundo ou subordinado grupo. O que Lucas descreve é o “Pentecostes samaritano”, à semelhança do que aconteceu entre os apóstolos em Jerusalém (2.1-4) e ao “Pentecostes gentílico” na casa de Cornélio (10.45).70

3. ATOS 10.44-48: O PENTECOSTES DOS GENTIOS

Pedro ainda estava falando estas coisas quando caiu o Espírito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E foram surpreen-didos os fi éis da circuncisão, os quais vieram com Pedro, porque também sobre os gentios o dom do Espírito Santo foi derramado; pois os ouviam falando em línguas e engrandecendo a Deus. Então, disse Pedro: por acaso pode alguém recusar a água para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo? E ordenou que eles fossem batizados no nome de Jesus Cristo. [...]

À medida que Lucas avança em seu relato da expansão da Igreja, esta progride alcançando novos horizontes. O capítulo inteiro de Atos 10 nos mostra uma fase muito importante do desenvolvimento da ação do Espírito além de Jerusalém e Samaria. Depois da fantástica intervenção de Deus naquele cisma irremediável entre judeus e samaritanos, chegou a hora de fazer outro enxerto no povo de “Israel”. Os escolhidos da vez são os gentios da cidade de Cesareia.

69 BRUNER, 1989, p. 140.70 SMITH, 1970, p. 142. Texto original: “That Peter and John, pillars of the Jerusalem church,

bestow the Spirit on Philip’s Samaritans converts means that they approve of this radical and unprecedented extension and new definition of the people of God, and they make it clear that new Christians of any description and in any place enter into unity and fellow-ship with the church at Jerusalem and do not constitute a second or subsidiary grouping. What Luke has described is a ‘Samaritan Pentecost,’ paralleling what happened among the apostles in Jerusalem (2.1-4) and at the ‘Gentile Pentecost’ in Cornelius’ house (10.45).”

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O capítulo inicia falando de Cornélio, morador de Cesaréia, “centurião da coorte chamada Italiana”. Ele era temente a Deus e dava esmolas. Certo dia um anjo de Deus apareceu a ele e disse que Deus havia ouvido suas orações, e que ele deveria enviar mensageiros a Jope a fi m de cha-marem Simão Pedro, apóstolo. Lucas relata que enquanto esses mensa-geiros de Cornélio estão a caminho, Pedro, que está em Jope, tem uma visão na qual Deus lhe mostra que aquilo que Ele purifi cou não deve ser considerado impuro. Enquanto Pedro ponderava na visão que acabara de ter, os mensageiros do gentio Cornélio o chamaram, e o próprio Espírito avisou a Pedro da chegada deles. Pedro, então, conforme orientado pelo Espírito, parte no dia seguinte com os mensageiros rumo a Cesareia, à casa de Cornélio.

3.1 O problema

O que acontece na casa de Cornélio durante a visita de Pedro é o que queremos compreender. Enquanto Pedro ainda estava pregando a Cornélio e aos que estavam reunidos com ele, o Espírito Santo desceu antes do recebimento do batismo por parte dos gentios.

Nesta passagem ocorre exatamente o contrário do que acontecera aos samaritanos, e que comentamos no capítulo anterior. Mas isso não quer dizer que um relato contradiz o outro, ou que algum deles quer demonstrar que não há ligação entre o batismo com água e o dom do Espírito Santo. “Visto que Cornélio e os seus receberam o Espírito, eles tiveram que ser batizados. Visto que os cristãos em Samaria foram batizados, era impos-sível que eles permanecessem sem a recepção do Espírito”.71 E conforme Bruner, ao comentar o incidente acontecido em Cesareia: “Visto que foi evidentemente impossível para os apóstolos associar o dom do Espírito Santo com qualquer outra coisa senão o batismo, os novos convertidos foram imediatamente batizados”.72

As palavras citadas acima expressam bem o pensamento dos apóstolos, ou, até mesmo, de toda a igreja primitiva, a respeito da relação entre o batismo e o dom do Espírito. Esse pensamento é evidenciado pelo fato de Pedro, depois de verifi car o dom do Espírito nos gentios, perguntar: “por acaso pode alguém recusar a água para que não sejam batizados estes que, assim como nós, receberam o Espírito Santo?” Pergunta que foi imediatamente seguida pela ordem do apóstolo de que aqueles gentios fossem batizados no nome de Jesus Cristo.

71 SCHLINK, 1972, p. 64-65. Texto original: “Because Cornelius and his household received the Spirit, they were to be baptized. Because the Christians in Samaria were baptized, it was impossible that they would remain without the reception of the Spirit.”

72 BRUNER, 1989, p. 150.

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Assim como no batismo dos samaritanos, aqui parece que Deus tam-bém tem uma lição especial para os apóstolos, e para a Igreja como um todo. Antes de arriscarmos uma resposta simplória, portanto, estudemos com cuidado o que está por trás do fato em si.

3.2 A relação entre judeus e não-judeus

Não é preciso ir muito além de Atos 10 para descobrirmos um proble-ma latente entre os judeus e os gentios. No contexto imediato do texto em questão, vemos que ao entrar na casa de Cornélio, Pedro se depara com muitas pessoas reunidas – parentes e amigos íntimos de Cornélio – e diz, no v. 28: “Vós sabeis que é proibido a um homem judeu reunir-se ou mesmo associar-se a um não-judeu; mas Deus me mostrou que a nenhum homem considerasse comum ou imundo”. Estas são as primeiras palavras de Pedro, registradas por Lucas, àquelas pessoas reunidas. Ele não falou da igreja de Jerusalém tampouco da sua viagem de Jope até Cesareia, antes, falou da diferença racial entre eles. No v. 33 Cornélio diz a Pedro, com uma evidente ansiedade, que eles desejam “ouvir tudo que te [a Pedro] foi ordenado da parte do Senhor”. É interessante notar a maneira pela qual Pedro inicia sua pregação: “[...] Entendo, por verdade, que Deus não é alguém que mostra favoritismo [a uma raça]”. Evidentemente existe algo que deixa Pedro, no mínimo, desconfortável na casa de um gentio. Verdade seja dita, “Pedro só pregou a gentios, por causa de uma revelação especial, embora Jesus pessoalmente e reiteradas vezes tivesse comissionado os discípulos a irem pregar até aos confi ns da terra. Até então, eles não obedeceram essa ordem revolucionária de Jesus”.73 Isso acontece por causa do pensamento judeu da época. Os judeus tinham, de modo particular, uma forte tentação de classifi car as coisas entre sagradas e profanas.74 “A lei cerimonial de sua religião era uma linha divisória, de um lado tudo era puro e do outro lado tudo era impuro”.75 É importante mencionar que a lei mosaica não continha uma proibição direta e literal de que os judeus não deveriam se relacionar com pessoas de outras raças, mas o judaísmo rabínico certamente sustentava um princípio de separação levado ao extremo mediante um decreto que proibia tais associações.76

73 BRAVO, Zacharias. Mas recebereis o poder. São Paulo: Hinman & Overholt, 1958. p. 43.74 BUTTRICK, George Arthur (ed.). et al. The Interpreter’s Bible. New York: Abingdon, 1954.

v.9. p. 136.75 Idem, p. 137. Texto original: “The ceremonial law of their religion was a dividing line, on

the one side of which all things were clean and on the other side of which all things were unclean.”

76 LANGE, John Peter. Commentary on the Holy Scriptures – Acts. Traduzido por Philip Schaff. Grand Rapids: Zondervan, [S.d.]. p. 201.

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O pensamento de Pedro e dos que foram com ele certamente fora in-fl uenciado por esse judaísmo rabínico, o que fez com que fi cassem atônitos ao perceberem que Deus derramara Seu Espírito também sobre os gentios. “Foi um choque para eles conceber que Deus se interessou pelos gentios tanto quanto fi zera por eles”.77 Eles super-dignifi cavam a lei cerimonial, o que não os deixava compreender que ela “é totalmente secundária em relação ao que é maior e mais inclusivo e de maior importância”.78 Por esse ser o pensamento dos judeus, Pedro teve que se defender das acu-sações dos que eram da circuncisão, por ter entrado em casa de homens incircuncisos e ter comido com eles (11.1-18).

Os aspectos do pensamento judaico da época mencionados acima estão por trás das palavras de Pedro no início do seu discurso. E somente depois de iniciar mencionando essas diferenças raciais, as quais Deus não considera, o apóstolo passa a falar de Jesus Cristo, o Senhor de todos.

3.3 Testemunhas de Jesus Cristo

Enquanto discursa a respeito da obra daquele que é o Salvador tanto dos judeus quanto dos gentios, Pedro mostra que tem consciência do seu papel como testemunha de Jesus. No v. 39 ele diz: “e nós somos teste-munhas de tudo o que fez [Jesus] na terra dos judeus e [em] Jerusalém”. Quem são as testemunhas de tudo o que Jesus fez? O próprio apóstolo responde no v. 41: “[Deus concedeu que o Jesus ressuscitado fosse mani-festo] não a todo o povo, mas a testemunhas, aos previamente escolhidos por Deus, a nós [...].” Pedro deixa bem claro que as testemunhas escolhidas por Deus são eles, os apóstolos,79 aqueles que comeram e beberam com Cristo depois que Ele ressurgiu dentre os mortos. E a essas testemunhas, diz Pedro no v. 42, Jesus deu a ordem de pregar a todo o povo.

As palavras de Pedro nos remetem ao texto de Atos 1.8, que comen-tamos no capítulo anterior. Naquela ocasião, Jesus disse que os apósto-los seriam testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até o fi m do mundo. Em Jerusalém eles já haviam testemu-nhado, começando no Pentecostes, e continuaram a fazê-lo; Jerusalém fi cava na região da Judeia, que certamente foi alvo do testemunho dos apóstolos. Depois, como já vimos, o testemunho se estendeu à cidade de Samaria. O que falta é alcançar o fi m do mundo, ou, os confi ns da terra. Essa lacuna passa a ser preenchida na cidade de Cesareia, que

77 BUTTRICK, 1954, p.140. Texto original: “It was a shock to them to realize that God cared as much about the Gentiles as he did about them.”

78 Idem, p. 141. Texto original: “[the ceremonial law] is entirely secondary to something larger and more inclusive and of greater importance.”

79 LANGE, [S.d.], p. 203.

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“era o caminho natural entre gentios e judeus – uma porta que se abria para novas oportunidades de evangelismo, o caminho para Roma, e portanto, para o mundo”.80

Pedro, depois de ter testemunhado o que acontecera com Jesus Cris-to, depois de ter recebido a ordem do Jesus ressuscitado e o poder do Espírito para ser testemunha, depois de ter testemunhado o batismo no Espírito Santo dos samaritanos, e depois de ter recebido uma revelação de Deus acerca dos gentios, parece estar convicto de que Deus pretende usar Suas testemunhas na obra de expansão da Igreja. E podemos notar conforme Atos 1.22 que “testemunha” pode designar a tarefa especial de um apóstolo. O fi nal do Evangelho de Lucas também dá aos discípulos o título de testemunhas, as quais deveriam esperar em Jerusalém pelo poder que viria do alto, a fi m de pregarem tudo o que haviam testemunhado, começando por Jerusalém.81

De tudo o que foi dito acima, a exemplo do que comentamos de Atos 8, não resta dúvida: Deus estava disposto a utilizar aqueles que Ele mesmo escolhera como testemunhas da ressurreição de Jesus. Embora a grande maioria dos autores consultados atribua genericamente à igreja a tarefa de testemunhar, o livro de Atos tende a ser bem mais específi co. Jesus prometera o poder do Espírito com a fi nalidade de fazer testemunhas (1.8) não a todo o povo, “mas aos previamente escolhidos por Deus”, conforme Pedro. Dessas testemunhas deveria surgir a missão na Samaria e até aos confi ns da terra. E de um modo ou de outro, de acordo com o livro de Atos, nas etapas cruciais da expansão da Igreja, está presente um após-tolo – uma testemunha. É claro que Deus poderia fazer o trabalho sem utilizar Pedro, João ou Paulo, mas Ele preferiu seguir Seu plano. Mesmo quando houve relutância da parte das testemunhas em abrir a Igreja a outros povos, Ele providenciou uma maneira excepcional de mudar o curso da história.

3.4 A solução de Deus

Atos 10 nos coloca diante de um problema semelhante ao do capítulo 8. O Espírito Santo desce sem o recebimento do batismo. No capítulo anterior deste trabalho constatamos que o evento em Samaria fora excepcional. O normal seria que o Espírito Santo caísse no ato do batismo, e não somente com a chegada dos apóstolos. Naquele caso concluímos que Deus interviera de maneira especial na história da Sua igreja. Semelhantemente, deve haver um motivo particular para o evento em Cesareia.

80 BRAVO, 1958, p. 44.81 Idem, p. 140.

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Alguns tentam desvendar o enigma alegando que o que aconteceu é absolutamente normal, conquanto esteja claro que o apóstolo Pedro não considerava comum a separação entre batismo e o dom do Espírito. Marcus Barth,82 por exemplo, vê no texto em questão a prova de que Deus é livre em relação aos Seus dons. Deus pode muito bem alcançar qualquer pagão sem sacramento algum, até porque o batismo com água, na opinião de Marcus Barth, não é um substituto para o batismo com o Espírito, nem seu símbolo, nem seu veículo, nem mesmo um meio sacra-mental de transmiti-lo.

A opinião acima está correta quando diz que Deus é livre em relação aos Seus dons. De fato, é um grande perigo limitar a atividade do Espíri-to ao ato batismal. Fazer isso é ir contra o que o Novo Testamento diz.83 Temos que ter clareza de que os incidentes do livro de Atos como um todo excluem a má compreensão de que o Espírito é concedido somente através do batismo.84 Porém, veremos que o fato de Deus ter liberdade de agir conforme o Seu agrado não anula a realidade de haver motivos concretos para o acontecimento fortuito de Atos 10.

Em vista do que signifi cavam os gentios para os judeus, Murray85 destaca que para interpretarmos corretamente o derramamento do Es-pírito na casa de Cornélio é preciso prestarmos atenção no espanto dos cristãos da circuncisão quando o Espírito se manifesta naqueles gentios (10.45ss.). O autor comenta que o fato de Pedro ordenar o batismo dos gentios ao ver o derramamento do Espírito, demonstra que o próprio apóstolo “interpretou a ação divina como reveladora da aceitação, por parte de Deus, de Cornélio e sua companhia e o divino desejo de que eles fossem batizados e então passassem a integrar a Igreja do Messias”.86 Ou, conforme Marshall: “Se Deus já dera as boas-vindas aos gentios, só faltava a igreja fazer o mesmo”.87 Esta interpretação nos leva a crer que

naquele caso o dom do Espírito sem o batismo pode ser visto como excepcional, devido à intervenção divina em uma situação altamente signifi cante, ensinando que gentios podem ser rece-

82 (apud MURRAY, 1973, 108).83 SCHLINK, 1972, p. 71.84 Idem, p. 68.85 MURRAY, 1973, p. 108.86 Idem, ibidem. Texto original: “[Peter] interpreted the divine action as revealing God’s ac-

ceptance of Cornelius and his company and the divine pleasure that they be baptized and so enter the Church of the Messiah.”

87 MARSHALL, 1985, p. 186.

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bidos na Igreja pelo batismo mesmo que não tenham removido suas impurezas através da circuncisão e sacrifício.88

É signifi cativo também o fato de que para dar as boas-vindas aos excluídos Deus se utilizou de um apóstolo, exatamente como no caso dos samaritanos. Com isso o Senhor estava cumprindo Seu propósito de levar a palavra até os confi ns da terra através das testemunhas, aquelas escolhidas previamente por Ele. E essa testemunha que estava em Cesa-reia certamente não teria tido a grande ideia de batizar os gentios sem que tivesse certeza de que esta era a vontade de Deus. Por isso foi muito importante ela, ou seja, Pedro, estar presente quando os

gentios convertidos foram tratados exatamente como os apóstolos haviam sido no Pentecostes – o Espírito desceu, e eles falaram em línguas e exaltaram a Deus. A outorga desse dom do Espírito aos gentios incircuncisos que ainda não haviam sido batizados foi uma demonstração poderosa à igreja da aceitabilidade dos gentios à base da fé somente [...]. Esse fato signifi cou uma declaração de igualdade de judeu e gentio no corpo de Cristo, a Igreja.89

Está claro que Pedro entendeu o recado divino, pois no seu relatório à igreja de Jerusalém, registrado no capítulo 11, ele menciona aos cristãos judeus que ele não poderia ir contra Deus, já que Ele derramara o Espírito Santo sobre os gentios como sobre eles – cristãos judeus – no princípio. As palavras no princípio implicam que aquele derramamento do Espírito com glossolalia que ocorreu aos gentios era algo extraordinário, não era comum acontecer sempre que alguém recebia o Espírito Santo. Visto que tal experiência era incomum, Pedro relembra nada mais nada menos do que o Pentecostes.90 E foi por lembrar do Pentecostes, de como o Espírito se manifestara aos apóstolos no princípio, que Pedro batizou o gentio Cornélio e os seus.91

88 MURRAY, 1973, p. 108. Texto original: “In that case the gift of the Spirit without baptism must be viewed as exceptional, due to a divine intervention in a highly significant situation, teaching that Gentiles may be received into the Church by baptism even when they have not removed their uncleanness through circumcision and sacrifice.”

89 HARRISON, 1978, p. 175-176. Texto original: “[…] Gentile converts were treated just as the apostles had been treated at Pentecost – the Spirit descended, and they spoke with tongues and magnified God. The granting of this gift of the Spirit to uncircumcised Gentiles who had not yet even been baptized was a powerful demonstration to the church of the acceptability of Gentiles on the basis of faith alone […]. It amounted to a declaration of the equality of Jew and Gentile in the body of Christ, the Church.”

90 BRUNER, 1989, p. 150.91 BRAVO, 1958, p. 43.

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Deus conhece o Seu povo e sabe como agir para cumprir Seu propó-sito. Ele sabia que

era necessária uma grande prova, que convencesse a Igreja nas-cente, a aceitar os estrangeiros – gentios – à comunidade cristã. Pois a idéia exclusivista, já arraigada no espírito judeu o inibia de compreender a possibilidade de gentios virem a fazer parte com ele numa mesma comunidade. Isto era impossível para eles.92

Ao observarmos todos os aspectos que estão em torno de Atos 10 e da relação entre judeus e não-judeus, podemos notar que

essa descida sobrenatural sobre os gentios possibilitou a sua união com a Igreja, pois as manifestações sensíveis e idênticas, comprovaram sobejamente aos judeus cristãos, que os gentios também passariam a pertencer, quando cressem, ao corpo de Cristo.93

O episódio em Cesareia, conhecido como o “pentecostes gentílico”, deve ser encarado como uma exceção à regra também pelo fato de ser “a única ocasião na qual o derramamento do Espírito precedeu o batismo”.94 E isto aconteceu, como vimos, para que fosse removido todo preconceito e exclusivismo de dentro do povo de Deus, a fi m de que pela aceitação dos gentios a Igreja se tornasse verdadeiramente universal.

Atos 10, além de outras coisas, nos ensina a belíssima verdade de que a incorporação dos gentios à Igreja sem submetê-los à lei não foi uma iniciativa de Paulo, nem de Pedro, mas do próprio Deus.95

4. ATOS 19.1-6: OS DISCÍPULOS EFÉSIOS

[...] Paulo [...] chegou a Éfeso e encontrou alguns discípulos, aos quais perguntou: “Recebestes o Espírito Santo quando crestes?” Eles responderam: Mas nem ouvimos que existe o Espírito Santo.” Então Paulo disse: “Em que, pois, fostes batizados?” Eles disse-ram: “No batismo de João”. E disse Paulo: “João batizou batismo de arrependimento, dizendo ao povo que cressem naquele que

92 Idem, ibidem.93 Idem, Ibidem.94 LANGE, [S.d.], p. 203. Texto original: “[This is] the only instance in which the outpouring

of the Spirit preceded Baptism.”95 DIBELIUS, Martim. Studies in the Acts of the Apostles. Traduzido por Mary Ling. Londres:

SCM, 1956. p. 122.

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vinha depois dele, isto é, em Jesus”. E tendo ouvindo isto, foram batizados no nome do Senhor Jesus, e impondo-lhes Paulo as mãos, veio o Espírito Santo sobre eles, e falavam em línguas e profetizavam.

O texto de Atos 19.1-6 também é usado pelos pentecostais como argumento para o Batismo no Espírito Santo na qualidade de algo alheio e distinto à conversão.96 Por essa razão, dedicaremos uma parte deste trabalho ao estudo desse texto.

4.1 Discípulos de quem?

No primeiro versículo de Atos 19 está escrito que Paulo, ao chegar em Éfeso, achou tinaj maqhta.j (tinas matheetás – alguns discípulos); Lucas não fornece maiores detalhes acerca deles. Por isso mesmo, à primeira vista, a pergunta “discípulos de quem?” parece não fazer muito sentido quando observamos o uso da palavra maqhth.j (matheetées – discípulo) por Lucas no livro de Atos. Posto que este vocábulo seja empregado tanto para designar os “discípulos de João” (Lc 5.33), como os “discípulos de Moisés” (Jo 9.28) e os “discípulos dos fariseus” (Mt 22.15-16) em outros momentos no Novo Testamento,97 em Atos, quando fala em “discípulos” sem especifi cação alguma, Lucas se refere a cristãos. Bruner, de acordo com isso, diz que “aqui [em At 19.1], pois, temos crentes que não re-ceberam o Espírito Santo”.98 Este seria o mesmo caso dos samaritanos; cristãos que por um motivo ou outro não eram dotados do Espírito. Esta tese é sustentada também por outros autores.99

A respeito do ponto de vista de Bruner, mencionado acima, é importante ressaltar que para ele a palavra “discípulos” (no sentido de cristãos) aqui expressa o pensamento de Lucas, já que Paulo teve dúvidas quanto ao disci-pulado cristão daqueles homens.100 Essa afi rmação vai de encontro à opinião de muitos autores, tal como Smith, o qual diz que Paulo, em princípio, pensou que eles eram cristãos, mas depois percebeu que havia se enganado.101

96 WEGNER, Uwe. Batismo no Espírito Santo (BES): avaliação de sua compreensão dentro do pentecostalismo. In: WACHHOLZ, Wilhelm [coord.]. Batismo: teologia e prática. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia, 2006. p. 9-10.

97 BAUER, 1979, p. 485.98 BRUNER, 1989, p. 159.99 EARLE, Ralph. Word Meanings in the New Testament – one-volume edition. Kansas: Beacon

Hill, 1988. p. 116100 BRUNER, 1989, p. 160.101 SMITH, 1970, p. 283.

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Marshall afi rma com mais convicção:

Estes homens difi cilmente seriam cristãos porque não haviam recebido o dom do Espírito; pode-se dizer com segurança que o Novo Testamento não reconhece a possibilidade de alguém ser cristão sem possuir o Espírito.102

Cremos que a afi rmação de Marshall é verdadeira, porém é preciso lembrar que no caso dos samaritanos ele admite a existência de cristãos que “ainda não” tinham o Espírito.103 A respeito dos discípulos achados em Éfeso, ele conclui:

A explicação correta da passagem é que Lucas contou a história do ponto de vista do participante principal: Paulo se encontrou com uns homens que lhe pareciam ser discípulos, mas, por ter dúvidas acerca da posição deles como cristãos, passou a examinar com mais cuidado as suas alegações. Lucas não está dizendo que estes homens eram discípulos, mas, sim, que assim pareciam para Paulo.104

A explicação oferecida por Marshall faz muito sentido. Lucas pode muito bem ter empregado o termo para descrever aqueles homens à ótica de Paulo. Paulo, apesar de ter dúvidas, trata os discípulos como crentes (v. 2): Recebestes o Espírito Santo ‘quando crestes’? É certo também que o apóstolo não está convicto da fé que eles apresentam, por isso ele indaga. Paulo buscou a prova real, a presença do Espírito como selo dos crentes, até considerá-los como “não-discípulos”.

Uwe Wegner propõe a seguinte explicação para esta passagem:

[...] ao contrário dos vários empregos de mathetaí em Atos – a referência aos discípulos em 19.1 é absolutamente inédita neste livro, pois que não vem precedida por artigo defi nido. Quando em Atos há referência a cristãos, Lucas usa mathetaí sempre precedido de artigo, ou seja, oi mathetaí! E quanto à expressão “quando crestes” na pergunta do v. 2, ela é perfeitamente normal para o caso de Paulo ter suposto – mesmo que equivocadamente – os “discípulos” como cristãos.105

102 MARSHALL, 1985, p. 287.103 Idem, p. 152-153.104 Idem, p. 288.105 WEGNER. In: WACHHOLZ, 2006, p. 23.

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Murray106 vai um pouco além da explicação acima e diz que tanto para Paulo quanto para Lucas aqueles “discípulos” não eram cristãos. Para ele, o motivo para Lucas fazer uso do termo maqhta.j (matheetás – discípulos) é que eles estavam no meio do caminho para se tornarem verdadeiramente discípulos cristãos.

Das explanações apresentadas, parece que a mais correta é a de Marshall, que diz que Lucas estava descrevendo o pensamento de Paulo, o qual somente depois veio a descobrir que eles não eram cristãos.

No versículo 3 nós temos o primeiro indício da “escola” daqueles “discípulos”. Eles foram batizados no “batismo de João”. Isto implica que eles conheciam o ensino de João. E se conheciam o ensino de João, conheciam também a Cristo e ao Espírito Santo. Mas, como vimos, algo naquele pequeno grupo despertou a curiosidade de Paulo.107 O que o levou a perguntar-lhes a respeito do Espírito Santo. E

as respostas fornecidas pelos efésios nos vv. 2 e 3 estão a suge-rir que estas pessoas não eram cristãs, mas discípulas de João Batista. Pois poderiam cristãos dizer ‘nem mesmo ouvimos que existe Espírito Santo’? E se eram cristãos, por que teriam sido batizados no batismo de João?108

É muito difícil conceber que aqueles homens batizados no batismo de João não tivessem ouvido falar do Espírito Santo, pois o próprio João falara do Espírito (Lc 3.16). Por isso alguns autores dizem que eles (os discípulos) conheciam a promessa do Espírito, mas não sabiam que Ele já estava presente (Jo 7.39).109 Em outras palavras, “eles não duvidavam da existência da Terceira Pessoa da Trindade, mas não sabiam se o prometido batismo [no Espírito Santo] já havia se realizado”.110 Isto quer dizer que eles não se opunham a Jesus e ao Espírito, mas apenas que

não eram crentes como nós. Eram crentes do velho e não do novo pacto. Estavam classifi cados entre os conversos de João, que não receberam e nem podiam receber o dom do Espírito [...]. Longe de serem crentes como nós [...], estes homens, como fi -cou estabelecido com toda a clareza, não tinham crido em Jesus [ressurreto e vitorioso] até essa data.111

106 MURRAY, 1973, p. 111-112.107 BLAIKLOCK, 1959, p. 155-156.108 WEGNER. In: WACHHOLZ, 2006, p. 23.109 BRUCE, 1990, p. 406.110 BLAIKLOCK, 1959, p. 156. Texto original: “They did not doubt the existence of the Third Person

of the Trinity, but were without knowledge whether the promised baptism had taken place.”111 BRAVO, 1958, p. 48.

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Esse episódio nos mostra que “mesmo inconscientemente iam se for-mando duas igrejas: duas correntes de ideias, que deviam ser uma só. Os discípulos de João e os discípulos de Jesus”.112

4.2 A união do batismo com o Espírito Santo

Os discípulos efésios não tinham recebido um batismo além do de João. É interessante observar que esse também era o caso de Apolo (18.25). A diferença é que Apolo, embora conhecesse apenas o batismo de João, era instruído no caminho do Senhor e falava e ensinava com precisão a respeito de Jesus. Em Atos, um ensino “com precisão” a respeito de Jesus é aquele que apresenta o Jesus vitorioso sobre a morte. Apolo conhecia a boa-nova da ressurreição de Jesus. Aqueles doze discípulos do capítulo 19 nem sabiam que o prometido Espírito já estava presente.

Apolo, portanto, parece ser um caso à parte. Isso se torna evidente pelo fato de Paulo considerar o batismo de João como a raiz da falta do Espírito nos discípulos de Éfeso.113 De fato, o “batismo joanino sem o Es-pírito é incompleto e tem que ser seguido pelo batismo que O [(Espírito)] concede”.114 Por isso, quando informado de que aqueles efésios não tinham recebido o Espírito Santo, Paulo simplesmente pergunta (v. 3): “Em que, pois, fostes batizados?” Paulo pensou que se eles não tinham o Espírito Santo, a causa provável era um batismo diferente daquele “em nome de Jesus”. E ele estava certo. Diagnosticado o erro, o apóstolo Paulo imedia-tamente lhes falou a respeito da fé em Jesus. Depois disso o texto diz que eles foram batizados e, na sequência, receberam o Espírito Santo.

Falando sobre esse episódio, Bruner comenta:

Desde a vinda de Jesus, o caso de cristãos crerem no Messias e, porém, serem batizados no “batismo de João” é, naturalmente, uma anomalia. E este é o problema por detrás desta passagem. Somente quando a fé no Senhor Jesus Cristo é ligada com o batismo nEle é que o cristão, é lógico, recebeu a iniciação cristã autêntica. O elo que faltava na formação espiritual dos efésios, portanto, não era o ensino sobre como ser batizado no Espírito Santo, era a fé e o batismo em Jesus. E quando foram dados esta fé e este batismo, assim também, gratuitamente, o Espírito também foi dado.115

112 Idem, p. 47.113 BRUNER, 1989, p. 161.114 MURRAY, 1973, p. 112. Texto original: “Johannine baptism without the Spirit is defective

and must be followed by the baptism that bestows it.”115 BRUNER, 1989, p. 161.

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Esta passagem é uma das poucas que ensinam com tanta clareza a ne-cessidade do batismo no nome de Jesus para o recebimento do Espírito.116 E mais uma vez fi ca claro que desde a igreja primitiva, desde os próprios apóstolos, o recebimento do Espírito está ligado ao batismo.

Aqueles que usam este texto para falar de uma vinda do Espírito Santo subsequente à conversão, não podem se basear na fé dos “discí-pulos” efésios antes do seu batismo no nome de Jesus. Tudo indica que eles não eram genuinamente cristãos e que só foram verdadeiramente convertidos depois que receberam o batismo cristão juntamente com o dom do Espírito.

CONCLUSÃO

Depois de termos estudado os textos que servem de base para a causa pentecostal do Batismo no Espírito Santo como uma experiência subse-quente à conversão com a fi nalidade de capacitar os crentes através de dons, percebemos que o livro de Atos não oferece respaldo a uma vinda do Espírito desconectada ao batismo com água e à conversão. Como foi demonstrado, os próprios apóstolos consideravam o recebimento do Espírito e o batismo como “duas faces de uma mesma moeda”. Nos dois textos evocados (exclui-se At 19.1-6 por razões já explicadas) para en-sinar a desvinculação do batismo do dom do Espírito, sua relação está implícita. Em ambos, o evento é um só, apesar de não estarem unidos cronologicamente. No caso de Atos 8, o Espírito deve vir para completar o ato do batismo; em Atos 10 o batismo deve ser administrado para colocar em ordem algo que estava estranho. Não há dúvida de que os dois textos constituem exceções à regra. Já que há uma regra, que é encontrada em 2.38, os casos em que fogem a ela não devem ser interpretados de modo a contradizê-la. Esse parece ser o erro do ensino pentecostal.

Os intervalos entre o batismo e o Espírito em Atos estão relatados em momentos históricos defi nidos, e são etapas cruciais na expansão da Igreja conforme as palavras de Jesus em 1.8. O testemunho apostólico em Jerusalém iniciou com uma manifestação do Espírito fora do comum no dia de Pentecostes; a pregação em Samaria somente aconteceu por causa da ação incomum do Espírito, que não desceu até a chegada das testemunhas; e o testemunho aos confi ns da terra – prefi gurado na inclusão dos gentios – foi marcado pela estranha descida do Espírito sobre pessoas as quais nem mesmo as testemunhas esperavam que O recebessem. Tal conjunto de fatores nos revela a maneira utilizada por Deus para fazer Sua Igreja chegar até nós.

116 Idem, p. 163.

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Esse último ponto é o mais confortador. Além de uma pesquisa aca-dêmica que visa ao aprendizado de uma doutrina, este trabalho serviu para mostrar-nos que a intenção de Deus com todos os acontecimentos narrados em Atos 8 e 10 pode ser resumida da seguinte maneira: levar a Sua Igreja a todas as pessoas. E uma das formas pelas quais Ele o faz está bem expressa nas palavras de Pedro no Pentecostes, a regra que continua valendo para todos os tempos: Arrependei-vos, e ‘cada um de vós seja batizado no nome de Jesus Cristo’ para perdão dos vossos pecados, ‘e recebereis o dom do Espírito Santo’.

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A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ATRAVÉS DA VOCAÇÃO – UMA PERSPECTIVA LUTERANA

Clóvis Jair Prunzel1

INTRODUÇÃO

A teologia luterana da vocação é um oásis no meio do deserto pós-moderno. A diversidade de possibilidades proposta pelo pensamento pós-moderno abre caminhos para discutirmos a vocação em termos de espiritualidade. Espiritualidade não baseada no interior do ser humano nem naquilo que se faz, mas baseada no Espírito do vivo Deus. É nesse sentido que o termo espiritualidade será usado neste artigo. Não é produzida pelo ser humano, mas é obra do Deus Triúno. Essa é a única forma que Lutero utiliza e que nos autoriza a tratar o tópico “vocação” adjetivando-o como espiritualidade cristã. Precisamos estar atentos de que o mundo proposto pelo caos do pós-modernismo é fruto de um pensamento progressista mo-derno que já havia abandonado qualquer possibilidade de uma discussão de uma intervenção divina em meio à sua criação.

A proposta deste artigo é resgatar alguns elementos da teologia da providência divina proposta por Lutero como refl exo de sua leitura bíblica. O artigo surge como uma refl exão que brotou na apresentação da aula magna do Seminário Concórdia no ano de 2015. O artigo também refl ete alguns elementos que surgiram na conclusão do programa de doutorado em Teologia Confessional no Concordia Theological Seminary de Fort Wayne, IN, EUA.

OS DESAFIOS PARA O TEMA

Há alguns elementos que nos desafi am a pesquisar e a refl etir sobre o assunto. Como cristãos individuais e como igrejas, sempre de novo perguntamos por prioridades e por estratégias de trabalho. Os desafi os continuam a cada geração por buscar respostas à interação com a reali-dade que nos cerca.

Nem sempre lembramos que a graça universal de Deus vem ao en-contro do ser humano somente pela fé e muitas vezes articulamos o pela fé sem perceber que ele é universal.

1 Prof. Dr. Clóvis J. Prunzel é professor no Seminário Concórdia e na Universidade Luterana do Brasil.

IGREJA LUTERANA

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A secularização pode ter relativizado a revelação exclusiva da parte de Deus que produz uma crítica à teologia cristã e a forma como ela articula a Palavra de Deus em meio a seu contexto.

A missão de Deus, a cada geração, desafi a a igreja a trazer para o seu contexto próprio o eterno evangelho bíblico, visto que Deus não gera netos, mas sempre fi lhos.

Pergunta-se se há um novo cativeiro babilônico presente na igreja quando esta se secularizou e será que ela entende que a cada geração não irá mudar a cultura que a cerca para trazer a salvação em Cristo Jesus que converte o pecador do seu pecado?

VOCAÇÃO: UMA PROPOSTA DE DEFINIÇÃO

Uma defi nição de vocação faz-se necessária no início da argumenta-ção deste artigo. Geralmente conectada ao trabalho dentro da igreja, a vocação não é a consolidação do poder por parte dos assim chamados “leigos” como também não é um sinônimo de ocupação.

Facilmente percebemos que no contexto latino-americano que a voca-ção carrega um sentido conectado à vida dentro da igreja e neste contexto a atuação ministerial é o ápice da vocação. No contexto norte-americano, a vocação é muitas vezes vista como o oposto ao ministério. A vocação é dos “leigos”, isto é, daqueles que não ocupam a função ministerial, o que gera desculpas para o pouco interesse nas questões teológicas e que leva ministros a não terem uma atuação teológica fora do contexto da sua atuação ministerial.

Ambas as defi nições, uma mais católica romana e a outra mais pro-testante, tendem a separar o sagrado do secular. Conceitos fi losófi cos próximos dos pensamentos platônicos e aristotélicos têm defi nido teo-logicamente a interpretação do termo vocação. Por isso, o termo é mal interpretado, o que nos leva a um resgate teológico do mesmo.

O resgatar do termo é antes de tudo recolocar a teologia no centro da defi nição que nos leva a descrever a vocação como a presença de Deus mediada não por tarefas nem pela condição interior do ser humano. A presença de Deus nos ajuda a não domesticar Deus de tal forma que esta presença defi ne a fé e a vida cristã, dimensiona o que é ser humano, quais são as áreas de atuação do cristão numa dimensão social. Nesta perspectiva, com um pé no céu e outro na terra, a fé e a vida diária, é através da vocação que a ética e a missão serão direcionadas, pois potencialmente a vocação será a “bala de prata” da ética e ao mesmo tempo será a espera por um “novo mundo”, uma “nova criação” em termos escatológicos.

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UMA PROPOSTA LUTERANA

Logo após o período da história do Novo Testamento, a Igreja se deparou, à luz do contexto, com o desafi o de explicar o que signifi ca ser cristão.

Desde o seu início, a igreja cristã lutou para não caracterizar a vida cristã de forma dualística, na qual uma área teria supremacia sobre a ou-tra. Quando o platonismo infl uenciou profundamente a fé cristã, foi muito fácil defender uma espiritualidade estratifi cada e essa forma de colocar o ser humano mais próximo ou distante de Deus teve seu auge quando na teologia se começou a afi rmar que Deus está dentro do ser humano. A repulsa a esse pensamento se deu quando a Igreja Cristã defendeu a espiritualidade cristã através da doutrina do Credo. Ao defi nir as três pessoas da Trindade [Teologia] e como elas interagem entre si com um só objetivo [Economia], a Igreja Cristã irá defi nir a espiritualidade não no ser humano, mas fora, no Deus Triúno.

Quando Lutero surge no cenário da história há quase 500 anos, a he-rança medieval que ele recebe é caracterizada por um certo ritualismo e por um sistema hierárquico, consequência forte de uma herança não mais teológica, mas muita mais antropológica e sociológica, frutos do pensamen-to fi losófi co. Uma perspectiva não cristã e nem bíblica centrada na ideia da teoria e prática, na descrição da realidade em termos dualísticos e que através do ex opere operato a graça de Deus é concedida pelo mérito da obra realizada. A história das irmãs Maria e Marta se tornou um arquétipo de vocação. A primeira representava uma vida contemplativa; a segunda, uma vida ativa. Outra imagem que se tem é retirada da visão de Ezequiel 14.14: Noé, Daniel e Jó. Os líderes eclesiásticos, os contemplativos e os que cuidavam dos afazeres do mundo. Também poderiam ser os pasto-res, os castos e os casados. Esta estratifi cação social colocou o clero no ponto mais alto da pirâmide social, porque são aqueles que oram e que de certa forma representam Deus na terra. A nobreza, um estágio abaixo, representa o controle de Deus no mundo porque são eles que guerreiam. Na base da pirâmide social estão os camponeses, servos, aqueles que trabalham. Esta estratifi cação social é mais aristotélica que foi defendida principalmente pela teologia occamista, que tinha a formulação própria para justifi car o estruturalismo defendido pela igreja católica romana do fi nal da Idade Média.

Outra herança que Lutero recebe é o pensamento de Agostinho a partir de uma descrição mais platônica da vida cristã. Para Agostinho, Deus administra as coisas a partir de duas cidades: uma terrena e ou-tra celestial. Na terrena, Deus precisa controlar o pecado fruto do amor próprio e, para isso, Ele utiliza a espada. A cidade celestial, visualmente identifi cada por um barco, a igreja, leva os crentes para a eternidade.

A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ATRAVÉS DA VOCAÇÃO - UMA PERSPECTIVA LUTERANA

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Esta dicotomia também se perceberá em Lutero, mas a articulação que Lutero irá fazer é muito mais em termos teológicos, excluindo da vocação a herança medieval da fi losofi a.

O impacto da teologia luterana para o desempenho da espiritualidade através da vocação infl uenciou o mundo em diversos setores. Contrário a esse ritmo pagão e anticristão para a vida proposto pela teologia me-dieval, Lutero recoloca o Deus Triúno e a Escritura Sagrada no centro. Em tese, saem de cena Platão e Aristóteles e entra a Escritura Sagrada e o Credo Cristão.

O que Lutero e seus colegas irão fazer é colocar a graça de Deus e suas promessas no centro da espiritualidade. Com a Palavra de Deus assumindo publicamente o seu poder através das formas oral, escrita e sacramental, Lutero irá redefi nir o que signifi ca ser cristão a partir da criação e recriação. Lutero irá recolocar no seu devido lugar como Deus vê o ser humano, o que isto signifi ca, as esferas ou dimensões onde o ser humano interage e como esta interação coopera na obra própria de Deus.

TEOLOGIA – COMO DEUS DÁ CONTORNOS À ESPIRITUALIDADE ATRAVÉS DA VOCAÇÃO

Só o cristão entende sua vocação a partir de Lei e Evangelho! Sim, Deus coloca nas mãos de cada cristão a “fórmula” que Lutero utiliza para descrever como Deus nos vê.

O Deus que se revela na sua Palavra é o Deus Triúno. O Deus da Lei e do Evangelho. O Deus que se encontra conosco na Criação. É o Deus da Lei. Mas também é mesmo Deus que se encontra conosco na sua obra própria: na Pessoa e Obra de Jesus Cristo e na ação do Espírito Santo.

A Lei de Deus nos revela que “devemos temer, amar e confi ar em Deus acima de todas as coisas”. Ela nos revela quem nós somos, quem éramos no Jardim do Éden e o que iremos ser novamente. Em primeira perspectiva, ela nos diz que “devemos amar de todo nosso coração”. Era essa a nossa condição quando estávamos no jardim do Éden porque havíamos sido criados na perfeição de Deus. Mas a perdemos e um dia retornaremos a ela. É dessa forma que iremos fazer parte novamente do Reino Eterno de Deus.

É a lei que nos mostra que não temos opção. Nada pode nos distrair. Nenhum outro senhor, somente Deus.

Para Lutero, é fundamental descrever a vocação com base na doutrina da Trindade. Sob a lei, Deus nos vê na existência de sua própria criação. Nessa criação, a lei de Deus se revela providencial porque a bondade da criação e da providência precisam ser reconhecidas. Isso irá soar nega-

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tivamente e positivamente àquele que está sob a ameaça e acusação da lei. Dessa forma Deus vê em nós só pecado e nos conduz à solução.

A resposta a essa exigência é uma confi ança perfeita em Deus. Essa confi ança só é possível fora de nós e em nosso favor. Ela se dá na pessoa e obra de Jesus Cristo, o Evangelho. Na pessoa de Jesus Cristo porque ele não tem substituto. O Espírito Santo, então, nos confere esse dom da salvação.

O Evangelho é a história de Deus que, através de seu Filho, se tornou homem igual a nós, morreu e ressuscitou. Mas também é promessa, na qual Deus se entrega, oferece e confere todos os benefícios por nós.

Esta é a vocação de Jesus: ele se dá em nosso favor ao se encarnar como homem. Como Deus, Cristo se torna homem, não usando de suas prerrogativas divinas para exercer sua vocação. É através de Cristo que o ser humano tem sua imagem original restaurada. Para ver a perfeição exigida pela lei, Deus olha para Cristo, a verdadeira e perfeita imagem. Assim temos a promessa de salvação e também temos Cristo como exem-plo para nossa vocação.

A autodoação de Jesus é base para a vocação do cristão. Em Cristo, os cristãos têm novamente a libertação sobre a lei e a restauração do domínio sobre a criação dados em Gênesis [ver Efésios 2.6 com paralelos em Gê-nesis 1.28b) e também a promessa da vida eterna através da ressurreição (Romanos 6.5 com paralelos em Gênesis 1.28a). Assim como Eva é feita a partir de Adão, da mesma forma somos reconciliados com Deus pela autodoação do seu próprio Filho. Esta é a metáfora da igreja como noiva de Cristo. A igreja possui a autodoação do Filho de Deus, Jesus Cristo.

É através de lei e evangelho que podemos defi nir vocação em termos espirituais: “Creio que o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, ilumi-nou com os seus dons, santifi cou e conservou na verdadeira fé”.

É no evangelho dado a nós na Palavra e Sacramentos que a igreja recebe sua vocação porque a igreja possui a restauração da imagem ori-ginal no Filho de Deus. Pelo fato de ter recebido do próprio Filho de Deus o que Deus exige de nós, agora a igreja irá se engajar no mundo como um ato quenótico, quando ela mesma compartilha aquilo que receberá na morte, ressurreição e glorifi cação do Filho. Diferente de uma perspectiva fi losófi ca, a vocação centrada na Teologia nos ajuda a entender como Deus se dá por nós. Quando discutem a doutrina da Santa Ceia, os lute-ranos rejeitaram o princípio fi losófi co do fi nitum non capax infi nitum (o fi nito não é capaz de conter o infi nito) e defenderam o princípio teológico que argumenta que a presença de Cristo no pão e no vinho confere toda a majestade de Deus em Cristo à natureza humana de Jesus (o genus majestaticum). Teologicamente, a vocação cristã parte da posição de

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que o infi nito é capaz do fi nito (infi nitum capax fi nitum). Só dessa forma podemos entender o que signifi ca ser cristão vocacionado porque nossa espiritualidade não é centrada em uma visão metafísica da realidade, mas de uma perspectiva quenótica da obra de Jesus. Só dessa forma o infi nito é capaz de ser fi nito.

A cristologia é fundamental para compreendermos o aspecto teológico da vocação. O ponto fundamental da cristologia luterana é a ênfase na unidade das pessoas de Cristo em favor do ser humano. O gênero idiomá-tico destaca que a Palavra é o único ato de Jesus Cristo através das duas naturezas, divina e humana. O gênero majestático faz a conexão entre a natureza divina e humana de Jesus, sendo que a natureza humana de Jesus recebe os atributos da natureza divina. O gênero apotelesmático ensina que ambas as naturezas agem ao mesmo tempo quando Cristo entra em ação através de sua obra. A cristologia é fundamental para com-preendermos o aspecto teológico da vocação. O ponto fundamental da cristologia luterana é a ênfase na unidade da pessoa de Cristo em favor do ser humano. O gênero idiomático destaca que a Palavra é o único ato de Jesus Cristo através das duas naturezas, divina e humana. O gênero majestático faz a conexão entre a natureza divina e humana de Jesus, sendo que a natureza humana de Jesus recebe os atributos da natureza divina. O gênero apotelesmático ensina que ambas as naturezas agem ao mesmo tempo quando Cristo entra em ação através de sua obra.

Lutero acrescenta que Cristo se torna um exemplo: “Cristo como dádiva alimenta a tua fé e faz de ti um cristão. Cristo como exemplo exercita as tuas obras, porém elas não te tornam um cristão, mas partem de ti, que já foste cristão anteriormente”. A Palavra de Deus dá forma à vocação. Ela precisa ser interpretada com base nas promessas de Deus em lei e evangelho.

Fundamentalmente, sob a perspectiva cristológica, o pecador não tem outra escolha, mas deparar-se com a criação e o Criador como lei no sentido “teológico”, isto é, como mecanismos da ira e do julgamento de Deus, e isso se deve à rebeldia da vontade humana. Uma vez que a criatura humana se torna um pecador, e assim um inimigo do Criador, o universo, que está permeado pelos dons de Deus e sinais de sua bondade, torna-se um lugar em que o homem pode ver sua inimizade com o divino atrás de cada arbusto. Seres humanos se tornam alienados, não apenas do próprio Deus, mas também de todo universo em que eles se encon-tram, o qual espelha Deus em cada parte. Assim, as primeiras pessoas, depois que desobedeceram a Deus, podiam apenas ouvir o som do Criador caminhando no jardim como uma ameaça (Gênesis 3.8). Deus continua todo-poderoso, impossível de ser domesticado!

Quando o pecador se depara com a criação não como um dom, mas como um espelho da ira de Deus, então a lei está inevitavelmente operan-

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do na vida humana aqui no mundo, “através das coisas que foram feitas” (Romanos 1.20). Isso signifi ca que os dois diferentes sentidos da “lei” estão mais intimamente relacionados do que geralmente se reconhece. “A lei natural”, no sentido do design ordenado do universo, assim tam-bém funciona como lei no sentido teológico de acusação e condenação. A vontade graciosa e generosa de Deus como Criador não para de agir, mesmo através das atividades dos pecadores, cooperem eles ou não. Já a lei de Deus mata o pecador, seja agindo através da criação ou quando o pecador é alvo da lei revelada de Deus.

Aos pecadores mortos por sua lei, Deus fala o evangelho. As pessoas são colocadas sob a palavra de Deus de perdão. A existência do ser huma-no coram Deo deve ser decidida pela promessa de Deus em Cristo, caso contrário é esmagada no choque com a lei. Seja qual for o caso, é Cristo, “a Palavra que decide sobre a existência do ser humano como humano”. É muito importante para a antropologia que a palavra do evangelho não seja trocada por nenhuma outra base de convicção ou certeza; nenhuma outra base é capaz de tornar o ser uma possibilidade.

Palavra que habita o crente é que irá dar forma à vocação. Esse ha-bitar precisa ser entendido em termos de benefícios e não em termos de capacidades! Esse habitar de Deus é uma nova realidade que resulta da fé, e a “justiça eterna e essencial” de Deus torna-se presente no crente como um poder “que os impele a que ajam retamente”. Os luteranos pós Lutero também fazem duas distinções cruciais sobre esse habitar de Deus no crente e sua relação com a justifi cação. Primeiro, essa nova realidade resulta da justifi cação, e por isso não pode simplesmente ser identifi cada com ela. A verdadeira justiça da fé não é uma questão defi nida pela onto-logia do crente, nem mesmo pela ontologia daquele em quem Deus habita, mas “outra coisa não é senão o perdão dos pecados e a graciosa adoção dos pobres pecadores somente por causa da obediência e do mérito de Cristo”. Segundo, esse habitar também ocorre na presença real de Cristo na Santa Ceia. A verdadeira presença de Cristo como Verdadeiro Deus e Homem defi ne os benefícios da Ceia para dar forma ao Sacerdote. É nos benefícios da obra de Cristo recebidos na Santa Ceia que o aspecto sacerdotal é forjado, elemento fundamental para a concepção teológica da vocação na teologia luterana.

Por isso, para Lutero, o enfoque radical do Catecismo Menor sobre as palavras no sacramento, e especialmente sobre as palavras como promessa, não como simples informação, leva-nos ao fundamento da an-tropologia das Confi ssões Luteranas. As palavras da promessa do perdão dos pecados não apenas defi nem, mas também criam a nova realidade das criaturas humanas, resgatadas de sua alienação de seu Criador e da consequente corrupção e corrosão de suas vidas. A promessa do perdão

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de pecado é, assim, o coração do entendimento luterano daquilo que signifi ca ser humano; nenhuma outra defi nição da “realidade” deve ser procurada do que essa palavra direcionada pelo Criador às suas criatu-ras caídas. A realidade da promessa supera todas as outras evidências e cada uma das outras tentativas pelas quais os seres humanos procuram entender a si próprios.

Em perspectiva confessional, os luteranos não oferecem uma defi nição precisa da natureza humana, nem especifi cam algum tipo de mudança nessa natureza em cristãos depois da conversão. Eles não respondem todas as questões científi cas e fi losófi cas que surgem sobre a existên-cia humana. Mas os luteranos a partir de Lutero providenciam sentido teológico para que possamos nos conhecer, o qual gira em torno dessas duas afi rmações paradoxais que estão relacionadas: que somos criaturas e também pecadores, e somos pecadores e justifi cados, tudo ao mesmo tempo como argumenta William Schumacher.

ANTROPOLOGIA – O QUE SIGNIFICA SER SER HUMANO A PARTIR DA JUSTIÇA DE DEUS

No esquema aristotélico, não havia espaço para Deus. Para Aristóteles, o ser humano encontra sua identidade através do pensar e agir. A partir da teoria e prática. A herança que Lutero terá é uma ênfase no ser humano que faz algo com base na Lei de Deus. Os Mandamentos e o Sermão do Monte são paradigmas para distintos grupos religiosos.

Mas, com Lei e Evangelho, Lutero compreendeu que Deus exige do homem, mas ao mesmo tempo se dá em favor do ser humano. Dessa forma, Deus tem o controle de toda a situação. Em termos vocacionais, o cristão pode celebrar a vida através da vida normal. Contrário a uma ideia de uma explicação metafísica aos desafi os do ser humano, Lutero viu Deus, em Cristo, descendo do céu e ao se encarnar em Cristo tornando-se um igual a nós. Essa é a exigência da Lei, que substituiu o ser humano com seu pecado de origem. Este pecado é evidenciado quando Lutero explica no Primeiro Mandamento que “devemos temer e amar a Deus e confi ar nele acima de todas as coisas”.

Portanto, é crucial entender a antropologia em termos de simultanea-mente ser criatura e pecador sob o Primeiro e o Segundo Artigos e também o simultaneamente ser pecador e justo no Segundo e Terceiro Artigos do Credo Cristão como explicados por Lutero no seu Catecismo.

Contra o pensamento aristotélico de que o ser humano é potência motora com capacidades e virtudes morais, Lutero apresenta uma antro-pologia teológica do êxodo e da terra prometida, sendo ela receptiva da parte do homem tanto na mão direita de Deus, o céu, como através da

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mão esquerda de Deus, na terra. Só Deus pode nos tirar da escravidão do Egito, conduzindo-nos pelo caminho do deserto e nos proporcionando uma terra que mana leite e mel.

Aqui afl ora um elemento fundamental na antropologia de Lutero: o ensino sobre as duas justiças. A justiça passiva é a obra de Deus em Cristo Jesus. A justiça ativa é vocação. É sacrifi cial. Nossa justiça é viver passivamente sob a teologia da cruz (dádiva) e ativa em sacrifício em relação ao objeto certo: o próximo (doar-se).

À luz dessa perspectiva, os testes vocacionais podem beirar a idolatria e ao narcisismo e o que podemos dizer da lista de dons que frequentemente utilizamos para descobrir nosso espaço funcional?

A antropologia luterana se coloca a serviço da fé e, portanto, ela pro-cura entender a existência humana como um assunto da palavra de Deus; pois apenas essa palavra divina é o objeto da fé. Como Gerhard Ebeling expõe, com relação ao entendimento de Lutero sobre a fé, “a palavra decide sobre a existência do ser humano como humano”. O mesmo é verdadeiro sobre a antropologia luterana dos catecismos e das Confi ssões Luteranas. Ser, e ser humano, é ser alcançado pela palavra de Deus. Pois a Palavra não apenas comunica a informação divinamente correta, mas na verdade torna real o que ela diz. Essa completa confi ança que deixa a palavra de Deus “decidir” sobre a existência humana é simplesmente outra forma de expressar o compromisso luterano com o sola fi de, pois o objeto da fé é a efetiva promessa do Deus Criador e Redentor.

Dessa forma, a humanidade requer um engajamento apropriado e valorizado. Portanto, não há um setor próprio para o desempenho da fé. O que preocupou Lutero na identifi cação da antropologia foi novamente abandonar a ideia da teoria e prática que ao longo da teologia medieval classifi cou a vida em substratos sociais.

No estudo da antropologia – o que signifi ca ser ser humano – a dis-tinção entre lei e evangelho toma forma concreta na compreensão da justiça em duas perspectivas. A justiça ativa e a justiça passiva, a justiça própria e a justiça alheia.

No seu comentário a Gálatas, Lutero nos ajuda a entender o que somos perante Deus e perante o mundo. Ele escreve: “Esta é a nossa teologia pela qual ensinamos que se devem distinguir, cuidadosamente, estas duas justiças, a ativa e a passiva, a fi m de que não sejam confundidas conduta e fé, obras e graça, política e religião. Ambas as justiças são necessárias, mas cada uma deve conter-se dentro de seus limites. A justiça cristã pertence ao novo homem, mas a justiça da lei, ao velho, que nasceu de carne e sangue. Sobre o velho homem deve-se colocar um fardo que o oprima. Ele não deve fruir da liberdade do espírito ou da graça, a não

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ser que se revista do novo homem mediante a fé em Cristo (o que não acontece plenamente nesta vida)”.

Toda a antropologia é fruto da doutrina da justifi cação incondicional dada por Deus através do seu dom e da nova vida proporcionada em Cristo, recriando assim a nova condição do pecador diante de Deus e diante do próximo.

Lutero nos ajuda a identifi car quem somos e qual é a nossa respon-sabilidade. Ele também nos ajuda no direcionamento na melhor forma de respondermos e nos comprometermos teologicamente. Dessa forma, a humanidade requer um engajamento apropriado e valorizado.

SOCIOLOGIA LUTERANA: O REINO DE DEUS, OS DOIS REGIMENTOS E OS TRÊS ESTAMENTOS

Importante na compreensão da vocação é o aspecto sociológico do pensamento luterano. Aqui Lutero utiliza uma linguagem que herdara de Agostinho e também redescoberta na exegese bíblica, especialmente no livro de Gênesis. Em Lutero temos a linguagem do reino de Deus, dos dois regimentos ou formas de Deus cuidar do céu e da terra e dos três estamentos ou ordens da criação no reino terreno.

À luz do que já estabelecemos, uma nota importante é observar que Lutero usa a expressão “reino” de forma bem variada e precisamos estar atentos a essas formas. O primeiro uso que se percebe é a distinção entre o reino da igreja versus o reino do mundo. Esse conceito aparece bem na questão de lei e evangelho. Infelizmente, muitos estudiosos leram essa distinção como uma completa distinção entre a igreja e a política, especialmente. Lutero também faz uso da expressão “reino” para desig-nar o reino de Deus versus o reino de Satanás. Nessa distinção, Lutero está consciente de que Satanás irá interferir diretamente contra Deus em termos últimos e contra os cristãos em termos penúltimos. Uma terceira distinção que aparece, e a que nos interessa nesse trabalho, é a distinção dos regimentos e sua implicação na vida ativa do cristão; e essa se dá entre regimento celestial e o regimento terreno, o qual Lutero identifi ca com os três estamentos. As duas primeiras ênfases têm mais uma pers-pectiva escatológica, uma realidade que o cristão ainda não vê, enquanto que a terceira é mais próxima de nós agora, pois as ordens, Lutero as vê na criação e permeiam toda a vida do cristão já agora, como argumenta Oswald Bayer.

Quando analisamos a vocação sob a luta entre Deus e Satanás, ela se desenha à luz da escatologia. Tudo o que fi zermos hoje não é fi nal (é penúltimo), mas nos leva a ver a vida à luz da eternidade. Diz Lutero: “A vida cotidiana é vista à luz do juízo fi nal: o chamado da morte vem a todos

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nós, e ninguém pode morrer por outra pessoa. Cada um de nós precisa travar sua própria batalha com a morte por sua própria conta, sozinho. Podemos gritar uns nos ouvidos dos outros, mas cada um de nós precisa estar preparado por sua própria conta para o momento da morte, pois naquele momento eu não estarei convosco, nem vós comigo. Portanto, cada um de nós precisa, por sua própria conta, conhecer e armar-se com as coisas essenciais de interesse cristão”.

Mas se continuarmos a refl exão a partir da ênfase da teologia, de lei e evangelho, e da antropologia, a ênfase nas duas justiças, o pensamento de Lutero que melhor se enquadra aqui é o da dimensão vertical e horizontal. Na dimensão vertical, o evangelho cria e estabelece a relação com Deus. A justiça passiva é a base para esta dimensão. A partir dessa passividade e do evangelho, estabelece-se a dimensão horizontal, onde o cristão irá se relacionar com o próximo.

Para Lutero, natureza humana, no sentido de estrutura da existência humana criada, vai além do simples indivíduo. O Criador media nossa própria existência através de outros, sustenta e provê para nós através de outros, e assim faz o mesmo para outros seres humanos através de nós. Qualquer compreensão adequada da natureza humana deve levar em consideração não apenas o indivíduo humano isolado, mas também incluir esse aspecto de interdependência ligado ao que signifi ca ser humano, como afi rma William Schumacher. Portanto, ser uma criatura é ser colocado em relacionamentos diretos e indiretos com nosso Criador, e isso implica que as criaturas humanas não são, em nenhum sentido, autossufi cientes. Antes, a verdadeira existência e identidade das criaturas humanas não residem em si mesmas, mas propriamente fora delas, em Deus (como o autor e fonte de seu ser) e no próximo, através dos quais o Criador os serve e encontra, e a cujo bem eles são direcionados em suas vocações.

Importante observar que nos aspectos sociológicos não se sustenta a concepção de duas criações: “nós” e os “outros”. O cristão em termos criacionais não leva vantagem alguma sobre o não cristão. Somente a presença do Espírito Santo mediado pela Palavra (Cristo) é que irá dife-renciar o cristão do não cristão (observar a antropologia como base para a sociologia).

A dimensão horizontal, Lutero a vê nas ordens da criação. No âmbito doméstico [que Lutero divide entre família e atividades econômicas de subsistência), nas estruturas sociais e governamentais e na igreja. Uma nota importante aqui é perceber que a defi nição da igreja é estrutural a partir das marcas visíveis do evangelho. Aqui ela é um grupo social reunido e que aparece diante do mundo por causa da presença de Deus nos corações. “As sagradas ordens e verdadeiras fundações instituídas por Deus são estas três: o ministério sacerdotal, o estado matrimonial e

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a autoridade secular. Todos quantos se encontram no ministério pastoral ou a serviço da Palavra encontram-se numa ordem e num estado santo, correto, bom e agradável a Deus, tais como os que pregam, administram os sacramentos, administram a tesouraria comunitária, e também seus auxiliares, os sacristãos, mensageiros ou empregados, etc. Todas essas são atividades manifestamente santas para Deus. Da mesma forma, quem é pai ou mãe, que administra bem sua casa e gera fi lhos para servirem a Deus, também isso se constitui em santuário e em obra e ordem san-ta. Igualmente onde fi lhos e empregados forem obedientes aos pais e senhores existe santidade e quem nisso for encontrado é um santo vivo na terra. O mesmo vale para o príncipe ou governante, juiz, delegados, secretários de estado, escrivães, empregados e empregadas e os que servem aos primeiros, e ainda todos que obedecem submissamente. Tudo isso é santidade e vida santifi cada diante de Deus, posto que essas três instituições ou ordens estão baseadas na palavra de Deus. O que estiver fundamentado na palavra de Deus é necessariamente coisa santa, pois a palavra de Deus é santa e santifi ca a tudo quanto a ela estiver ligado ou nela contido”, resume Lutero.

Com as três ordens da criação, Lutero retoma o texto bíblico e criti-ca a vocação na teologia medieval que estava limitada aos sacerdotes, freiras e monges. Quando ele mesmo mudou sua própria vida ao ler com profundidade o texto de 1 Coríntios 7, ele se casou e descobriu que Deus encontra o ser humano lá onde ele está. É Deus que vem ao encontro do homem na criação.

É doutrina da justifi cação pela graça que liberta o ser humano no céu dando sentido à vida na terra. Karl Marx criticou Lutero quando afi rmou que ele retirou o monge do mosteiro e o colocou na vida diária. Mas Lu-tero fez muito mais do que isso. Viu nas ordens da criação a própria obra de Deus e, contrário a qualquer autoglorifi cação, enfatizou a vocação no servir em meio a essas ordens. Não há nada do que precisamos que Deus já não nos tenha dado, conclui Lutero.

Como são ordens da criação, Lutero não as isolou, como é comum pela má compreensão dos regimentos. Cada ordem tem seu papel. A ordem familiar e a economia são responsáveis pela preservação da vida. Nelas que se tem o papel do empregador e do empregado, por exemplo, onde a relação se dá num servir de mão dupla. O estado precisa não apenas regular a relação civil, mas também dar condições para que o bem co-mum seja mantido. A igreja, para Lutero, tem seu papel fundamental ao anunciar a ressurreição dos mortos.

Lutero é tão ousado quando descreve a vocação do pregador que ele estimula, à luz da vida eterna, a pregação contra a maldade do mundo no púlpito. Pregar contra altos juros não é problema porque a ganância

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é contrária à fé ativa em amor. “Segundo a compreensão de Lutero, o ofício da pregação era responsável tanto pela libertação das consciências quanto pela proposição e discussão de questões concernentes ao governo temporal, tais como a assistência aos pobres. O pregador deve ‘desmas-carar a injustiça oculta, salvando com isso as almas de cristãos simpló-rios e abrindo os olhos das autoridades seculares para o seu mandato de estabelecer justiça civil. Além disso, não se tratava de que somente o pregador estivesse comprometido com a instrução e ação ético-social; também a comunidade cristã devia assumir esse compromisso, sendo que sua atividade de culto era fonte e recurso para o serviço ao próximo”, sugere Lindberg.

A teologia luterana é “engajada socialmente”. A teologia, o culto, a ética e a missão se encontram na vocação. Voltando à ênfase no sacramento, segundo Lutero, o uso correto do sacramento edifi ca a comunidade. Diz Lutero: “Assim como tu recebes amor e assistência, deves, por tua vez, demonstrar amor e assistência a Cristo na pessoa de seus necessitados. Com efeito, o cristão, com base no sacramento, precisa opor resistência, agir, interceder pelos necessitados”.

Há uma rede de solidariedade e toda ela funciona para proporcionar a fé ativa em amor. A fé ativa em amor irá buscar o bem do próximo e o bem comum. “Lutero jamais defendeu a ideia de que os cristãos deveriam se retirar do mundo. O signifi cado de sua compreensão de evangelho era justamente que, por ser a salvação o fundamento e não o objetivo da vida, o cristão está livre para redirecionar ao serviço do próximo o tempo e a energia antes gastos com a busca da salvação. Exprimindo a ideia de ma-neira audaciosa, Lutero estava a defender um “cristianismo sem religião”. Lutero esperava libertar os cristãos para o serviço em um mundo que está sempre encoberto por ambiguidades políticas e éticas ao distinguir entre a justiça das leis humanas e civis, que exigem realizações, e a justiça diante de Deus, que é um dom livre” completa Lindberg.

A vocação nessas três ordens é mascarada, indireta. Deus continua falando, mas utiliza meios indiretos para comunicar sua vontade. São os súditos que confi rmam a vocação do príncipe, são os fi lhos que vocacionam os pais, os alunos ao professor, os membros da igreja o pastor. Essa é, na perspectiva de Lutero, a forma de Deus continuar sua atuação em meio à sua criação. Lutero não quer organizar uma estrutura eclesiástica para restringir a ação cristã. Pelo contrário, como as ordens têm procedência divina, são elas que são santas e não as instituições humanas. Lutero não estabelece duas igrejas, uma visível e outra invisível, como o faz Melan-chthon. As marcas da igreja são a base para se falar da igreja tanto como instituição como uma realidade escatológica.

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ÉTICA E MISSÃO – COOPERADORES DE DEUS NO CULTO E NA CONFISSÃO DE FÉ

“Acima dessas três instituições ou ordens está somente a instituição universal do amor cristão, na qual não se serve apenas àquelas três ordens, mas, também, de uma forma geral, a qualquer necessitado com todo tipo de benefícios, tais como: alimentar famintos, dar de beber aos sedentos, perdoar aos inimigos, rogar por todos os homens na terra, suportar todo tipo de mal na terra, etc. Vê, todas essas são obras santas e boas. Mesmo assim, nenhuma dessas instituições se constitui em caminho de salvação; acima de todas elas permanece o caminho único, ou seja, a fé em Jesus Cristo. Pois há uma grande diferença entre ser santo e ser salvo. Salvos seremos apenas por Cristo. Santos nos tornamos pelas duas coisas, pela fé e por essas instituições e ordens divinas. Até os ateus podem ter muita coisa de santo, mas nem por isso são salvos. Pois Deus quer essas obras de nós para seu louvor e para sua honra; e todos aqueles que estão salvos na fé em Cristo praticam tais obras e respeitam essas ordens. O que, porém, foi dito a respeito do estado matrimonial também vale para as viúvas e as virgens, pois elas fazem parte da casa e da vida familiar, etc. Se no entanto, essas ordens e instituições divinas não salvam, que é que poderiam realizar os mosteiros e conventos do diabo, que surgiram à margem da palavra de Deus e ainda contendem e esbravejam contra o caminho único da fé?” escreveu Lutero em 1528.

A interação com as ordens da criação não acontece às escuras. Con-trário ao pensamento fi losófi co da causa e efeito, para Lutero, a fé é ativa em amor em duas dimensões: a ética e a missionária. Lutero não utiliza com tanta ênfase a expressão “sacerdócio universal dos crentes”. Ele fala mais em “livres para servir”, que melhor caracteriza a sua antropologia. O ser humano todo está envolvido na ética e na missão.

A “feliz troca”, que ocorre quando Cristo toma o nosso lugar ao assumir o nosso pecado, acontece na vocação quando assumimos as necessidades do próximo. O “homem interior” é o homem da fé e ele se manifesta no “homem exterior” nas situações mais “mundanas” possíveis. Dessa forma, a liberdade na fé cria situações bem concretas. Lutero utiliza de forma dinâmica a “feliz troca”. Uma “feliz troca” interessante é “uma festa de casamento feliz” lembrando o que fi lho mais velho percebeu depois da volta do fi lho mais novo em Lucas 15.23-24. É muito provável que Lutero tenha em mente o comer suntuoso do novilho cevado e a bebida, a música, o contato e a dança presentes na festa oferecida pelo Pai que recebe seu fi lho perdido de volta ao lar.

É a liberdade das garras do pecado e de qualquer tentativa de se bus-car a própria justiça. É a liberdade que cria em nós a prontidão e a total capacidade de “esvaziar-nos” em relação ao próximo. Assim como Cristo

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sofreu por mim sem precisar, pois agora “eu lhe pertenço e vivo submisso a ele, em eterna justiça, inocência e bem-aventurança”. Isso tudo sem dignidade ou mérito algum de nossa parte. A ética entra na descrição da cooperação como o “dar-lhe graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe” no Primeiro Artigo.

Mas a vocação cristã não é apenas um ensino sobre ética no reino da mão esquerda de Deus. A vocação é muito mais do que justiça humana; ela também é uma expressão da justiça de Cristo. Tem lei e evangelho, tem a justiça ativa e a passiva. No âmbito sociológico, confessamos a nossa fé. É na vocação que nossa fé é testemunhada e a santidade de Cristo é vivida. Eis o sacrifício na vocação, quando amamos o “inimigo”.

Na dimensão ética e missionária, a cruz e a ressurreição de Cristo se encontram. Terra e céus se fazem presentes na vida do cristão. A criatura encontra seu Criador. Amor e fé interagem. O ouvido e o olho estão na mesma direção.

A teologia luterana destaca que o testemunho cristão não pode de-pender só do trabalho de missão organizada e fi nanciada pela igreja. O testemunho pessoal de cada cristão é um “chamado” para essa mesma missão recebida no batismo ou, como sugere Lutero, a “ordenação” como sacerdote para servir a Deus e ao próximo.

A ética cristã é a mão esquerda de Deus em ação através da capacidade racional do ser humano e nesta perspectiva ela coopera com a obra de Deus. Aqui há uma perspectiva missionária em sentido amplo quando a fé (crer na Palavra) é testemunhada de modo espontâneo, não organizado, motivado pela convicção. É um evangelismo “silencioso” onde testemu-nhamos que cremos na Palavra. É passivo, sofremos a ação da Palavra de Deus. “Guardamos” a Palavra de Deus como Maria o fez!

Lutero nos ajuda a defi nir a missão em perspectiva teológica. “Pagão” é aquele que vive sem a Palavra. Signifi ca que a missão de Deus precisa ocorrer em todo o lugar onde a Palavra de Deus não está atuando. O “pa-gão” (gentio e publicano) vive teologicamente fora da Cristandade mesmo que ele viva no meio dela (em termos sociológicos).

A vocação assume um tom “sacerdotal” para os batizados. É um teste-munho ativo, verbal, apontamos para a Palavra. Levamos até a presença do Senhor! Por isso, podemos concluir com Lutero que a missão acontece quando... pregamos a Cristo e este crucifi cado!

CONCLUSÃO: POR QUE ESTUDAR A ESPIRITUALIDADE DA VOCAÇÃO?

A espiritualidade na vocação é a vida cristã antes da ressurreição! Ela já é uma “invasão” da nova vida que teremos eternamente com Deus!

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Não é teoria nem prática. É ser! Muitas vezes sob a lei e muitas vezes sob o evangelho! Ela não cria um ideal; ela vive a realidade da esperança de dias melhores. Ela vê a cruz e ao mesmo tempo espera pela nova criação. O deserto e o Novo Céu e a Nova Terra se fazem presentes (êxodo e a terra que mana leite e mel).

É perceber nosso espaço nessa relação de ser benefi ciado e benefi cen-te. É resgatar a agenda do Senhor! É distinguir que nossa fé é ativa em amor e não apenas no servir e nem é formada pela nossa ação. Como bom leitor da Bíblia, Lutero viu que a fé ativa em amor é a melhor expressão para a vocação. Lutero não utiliza o termo sacerdócio dos crentes como uma estrutura diferente dentro da igreja, como acontece no Pietismo, mas Lutero vê a expressão dos cristãos em meio à diáspora da fé como o apóstolo Pedro descreve em sua primeira Carta.

Para Lutero, a fé ativa no amor não é um progresso do vício para a virtude! A fé ativa no amor é baseada na promessa de Deus. A vocação não busca o resultado, mas é ativa no amor! Testemunho! Amar ao próximo não é a autorrealização e a busca por sucesso! Mas é viver na certeza da promessa de salvação.

Boas obras são o culto de Deus através de nossas ações em amor e são elas que testemunham do Último Dia. Através da vocação cristã, o mundo estará cheio do culto quando o próximo é servido, quando o homem do campo cuidar de suas tarefas diárias, quando o aluno estiver em sala de aula, quando os empregados realizarem o seu trabalho.

A justiça ativa nos coloca em todas as esferas da vida humana de tal forma que: 1) possamos ser críticos em relação ao passado muitas vezes frustrado, nos ajuda a reavaliarmos o status quo do presente e nos leva a ser sensíveis às necessidades futuras; 2) além de críticos, podemos cooperar de tal forma a atuar de forma mais equilibrada com todos os recursos que Deus nos deu para que possamos ajudar o próximo de uma forma mais justa, efi ciente e razoável; 3) como a justiça ativa é realista, ela irá perceber facilmente que não se busca uma utopia. Os mártires são exemplos dessa visão escatológica da vocação.

A espiritualidade luterana é fundamentada no evangelho. Na fonte ba-tismal, diariamente morremos e ressuscitamos em Cristo para uma nova vida. Essa vida é vivida entre a criação e uma nova criação. Emerge um momento dramático na vida do cristão quando sua identidade é testada. Em meio aos ataques da tentação, a oração e a meditação na Palavra nos levam para um envolvimento vocacional com a vida que Deus nos deu na criação. Através do encorajamento de encontramos o próximo, irmão ou inimigo, servindo-o ou “esvaziando-se” por ele nas questões mais ordinárias da vida.

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ELIAS, ELISEU E JESUS: UM EXERCÍCIO DE INTERNARRATIVIDADE

Vilson Scholz1

A Série Trienal de leituras bíblicas, ao escolher o texto de Jeremias 11.18-20 para fazer parceria com Marcos 9.30-37, que é o Evangelho do Décimo Sétimo Domingo após Pentecostes no ano B, estabelece um para-lelo entre os dois textos. Em parte isto se deve ao fato de muitos verem em Jeremias uma espécie de tipo ou protótipo do Servo sofredor em Isaías 53. O profeta chorão seria o “modelo” do Servo sofredor. A partir daí, se amplia o paralelo, traçando uma linha que leva de Jeremias a Jesus. Em termos puramente exegéticos, este paralelo existe mais na cabeça dos exegetas do que propriamente nos textos do Novo Testamento. Ele até que funciona bem em termos homiléticos, permitindo estabelecer um contraste entre Jeremias e Jesus, contraste este que tem tudo para ser produtivo em termos de criatividade. Se não, vejamos. Jeremias invoca o El-Neqamot (o Deus das vinganças - Sl 94.1) – nunca lembrado pelos que fazem uma coleção desses títulos divinos em hebraico! –, esperando vingança, leia-se, reparação ou restabelecimento do equilíbrio. “Vingan-ça”, em linguagem bíblica, é uma punição à altura da ofensa, solicitada junto a Deus, visto não se ter outro a quem se possa recorrer ou por ser tão falha ou pouco presente a justiça humana. Jeremias pede retribuição. Jesus, por sua vez, sabe que é como um cordeiro manso que é levado ao matadouro, mas implicitamente aceita esta missão: o Filho do Homem será entregue e ponto fi nal.

Mas, como foi dito, os evangelistas não traçam este paralelo entre Jesus e Jeremias. Nem mesmo Lucas, que é quem mais acentua o minis-tério profético de Jesus. Lucas nunca menciona Jeremias; ele só aparece no Evangelho de Mateus, citado em fórmulas de cumprimento (Mt 2.17 e 27.9) ou mencionado em meio a outros nomes (Mt 16.14).

Tudo isto que falei até agora se assemelha àquela indicação de cami-nho em termos de “lá adiante vai aparecer uma fi gueira; não é ali que é a entrada”. Não é sobre isto que quero falar, embora tenha falado só disto até agora. Meu assunto é outro, ou seja, meus profetas são outros.

Tudo aconteceu quando eu revisava os livros dos Reis, para a terceira edição da Almeida Revista e Atualizada. De repente me dei conta, como

1 Dr. Vilson Scholz é professor do Seminário Concórdia de São Leopoldo e ULBRA.

IGREJA LUTERANA

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nunca antes – embora a Série Trienal já nos deixe avisados –, que existe um paralelo muito maior entre Elias e Eliseu, profetas de comportamento estranho, e o ministério de Jesus. E, garimpando aqui e ali (e quem dera que se tivesse tempo de garimpar muito mais e de processar tudo aquilo que se encontra – e como tem material escrito sobre a Bíblia!), encontrei um ensaio numa revista teológica tratando de uma temática que era nova para mim. Trata-se do conceito de internarratividade e o ensaio leva por título: “What would Elijah and Elisha Do? Internarrativity in Luke’s Story of Jesus”, Journal of Theological Interpretation, 2011. O autor é Jonathan Huddleston.

Internarratividade tem algo a ver com o conceito de intertextuali-dade, esse fenômeno descrito em estudos literários, em que num texto escrito hoje aparecem ecos (ou fragmentos) de textos que foram escritos no passado. Os textos de James Joyce estariam repletos disso. Donaldo Schüler que o diga! Tem muito disso na Bíblia também. Internarratividade é uma ampliação deste conceito, em termos de ecos ou releituras de narrativas anteriores em narrativas posteriores. Infelizmente me faltava este conceito quando pesquisei minha dissertação de doutorado sobre 2Coríntios 3, embora tivesse descrito o fenômeno. Em 2Coríntios 3, os exegetas tendem a fazer uma busca por intertextualidade (como Paulo faz a exegese de Êxodo 34), quando o conceito de internarratividade é muito mais produtivo: Paulo tem em mente a narrativa, a história, e não os detalhes do texto. Ele está lendo o que tem em sua mente, e não um rolo à sua frente, aberto em Êxodo 34. A teoria hermenêutica poderia vir em nosso socorro, na medida em que nos ensina que as tipologias (e a leitura que os escritores do NT fazem do AT é essencialmente tipológi-ca!) tratam de acontecimentos, pessoas e instituições. Nada de textos, portanto. E, segundo o autor do artigo que li (e ao qual me refi ro), essas conexões internarrativas tendem a aparecer em maior escala no contexto de culturas marcadas pela oralidade (em que não se lê textos, mas se contam histórias, de memória). O que faz sentido.

Passo a alguns detalhes sobre a conexão internarrativa entre Elias e Eliseu e o Messias Jesus. Em primeiro lugar, os dados: Elias aparece citado pelo nome 29 vezes no Novo Testamento, a grande maioria nos Evangelhos (únicas exceções: Rm 11.2 e Tg 5.17). Eliseu aparece uma única vez no Novo Testamento: em Lucas 4.27.

Elias aparece mais, todos sabemos disto. Está claro que, no tempo de Jesus, havia toda uma expectativa em torno da vinda de Elias (como precursor do Messias) e que muitos pensavam que Jesus era Elias. Não há nada parecido com Eliseu, porque este morreu e foi sepultado. (E porque não existe um texto como Ml 4.5 para Eliseu.) Jesus deixou claro que Elias

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já tinha vindo e que fi zeram com ele o que quiseram (Mt 17.12). Falava de João Batista. Jesus logo emenda o anúncio de que o mesmo aconteceria com o Filho do Homem (Mt 17.12). Não vejo nisto uma tipologia (Elias – Jesus), mas uma continuação da história dos profetas. Aquilo que fi zeram com o novo Elias farão com o Filho do Homem.

A leitura tipológica – em que se vê Elias e Eliseu como tipos ou protó-tipos de Jesus (sempre menores do que o antítipo) – aparece claramente em Lucas 4.25-27, onde o próprio Jesus responde à rejeição em sua pró-pria terra, apontando para o ministério de Elias e Eliseu a pessoas que não eram do povo de Israel. Portanto, há uma conexão internarrativa de caráter tipológico.

Mas o biblista que escreveu o artigo ao qual me refi ro argumenta que essa interpretação internarrativa não ocorre apenas no sentido “NT ao AT” (como normalmente acontece, levando-nos a perguntar como Lu-cas encontra prefi gurações no AT), mas também em sentido inverso, ou seja, no sentido “AT ao NT”. Foi o que me aconteceu, enquanto lia com vagar as histórias de Elias e Eliseu. Eu me perguntava: Como pode que os evangelistas não apontaram para isto, lá nos seus textos? Eles não o fi zeram (embora num caso os copistas tenham se encarregado disto). Mas acho que é legítimo fazer esse tipo de ponte. E os exegetas veem esses paralelos o tempo todo. (Como no caso do paralelo entre Jesus e Jeremias, na Série Trienal.)

Não sei se farei menção de todos os paralelos, mas também não im-porta. De início dá para dizer que Elias/Eliseu e Jesus atuam mais na parte norte do território de Israel, são itinerantes, ou seja, não têm paradeiro fi xo, e são operadores de milagres. Elias e Eliseu são um tanto exóticos ou excêntricos. Não se encaixam em outros moldes (como o constante cha-mado de volta aos termos da aliança que se vê, por exemplo, em Amós). Além disso, em Elias e Eliseu temos o único caso, no Antigo Testamento, de uma “sucessão profética”. E tem ainda o paralelo da “transmissão do Espírito” no contexto de uma assunção, com semelhanças e signifi cativas diferenças. Eliseu pede uma porção dobrada do espírito de Elias, ou seja, a parte que caberia ao primogênito (2Rs 2.9). Jesus, sem que ninguém peça nada, anuncia “a promessa de meu Pai” (Lc 24.49), o Espírito Santo (At 1.4-9).

Depois, indo pela sequência canônica de Lucas, pode-se apontar para estes “paralelos”:

A cura de leprosos (2Rs 5: Naamã; Lc 5.12-16 e Lc 17.11-19)

Orar no alto do monte antes de escolher discípulo(s) (1Rs 19: Elias no Horebe; Lc 6.12-13)

Ajuda a um militar estrangeiro (2Rs 5: Naamã; Lc 7.1-10)

ELIAS, ELISEU E JESUS: UM EXERCÍCIO DE INTERNARRATIVIDADE

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A ressurreição do fi lho de uma viúva (1Rs 17.17-24: Elias e a viúva de Sarepta; 2Rs 4.8-27: Eliseu e a sunamita; Lc 7.11-17).

Multiplicação sobrenatural de comida (2Rs 4.42-44: Eliseu e os vinte pães para cem homens; Lc 9.12-17).

No meio de tantas semelhanças, existem também diferenças? Existem. Aos discípulos que sugerem chuva de fogo sobre os samaritanos (“como Elias fez”, diz uma variante textual – Lc 9.54), Jesus responde com re-preensão. Ele não faz milagre para punir.

E tem outra diferença signifi cativa, vital, em meio a uma semelhança. Trata-se do que acontece no túmulo de Eliseu e de Jesus. Nos dois casos, o túmulo não é o último capítulo da história. No caso de Eliseu, há como que poder nos seus ossos (2Rs 13.20-21). No caso de Jesus, há poder no fato de que os ossos (o corpo) não estão no túmulo (Lc 24.1-3; At 2.29-33). E esta é a diferença entre o profeta e o Filho de Deus.

RESENHA

SÁNCHEZ, Leopoldo. Teología de la sanctifi cación – la espiritualidad del cristiano. Saint Louis, Missouri: Editorial Concordia, 2013.

Não há necessidade de nomear pessoas como autoras de frases como “a Igreja Luterana ensina muito sobre justifi cação e pouco sobre santifi ca-ção”, pois o que importa aqui não é apontar o dedo para quem se expressa dessa maneira, porém destacar aquilo que pode ser o sentimento de alguns com respeito à relação entre justifi cação e santifi cação dentro do que é ensinado e pregado na Igreja Luterana. Por isso, uma obra como esta de Leopoldo Sánchez, professor do Concordia Seminary em Saint Louis, vem em boa hora para nos ajudar a reconhecer que há o que fazer para, se for necessário, ensinar mais sobre santifi cação, porém de uma forma sustentável tanto bíblica quanto confessionalmente falando.

Afi rma Sanchéz, na p. 13:

Como o leitor verá, a presente obra se inspira, em todo o seu conjunto, no pensamento de Martinho Lutero, o qual se apóia signifi cativa, contudo não exclusivamente no ensino paulino sobre a vida cristã. Geralmente se afi rma que a ênfase dada historicamente à doutrina da justifi cação pela fé no ensino das igrejas luteranas tem como consequência inesperada e infeliz uma doutrina da santifi cação débil e acompanhada de uma exortação à santidade muito pobre. Nossas refl exões neste livro pretendem vencer essa crítica popular ou formal, mostrando não apenas a importância, mas também a vitalidade da doutrina da santifi cação no pensamento evangélico luterano

A leitura desta obra permite-nos ver que e como a doutrina da santifi -cação é central para a vida cristã e, de forma alguma, é irrelevante. Caso tenha sido vista como tal por alguns ao se referirem sobre a presença dela no ensino e prática dos luteranos, isso se deve, provavelmente, à falta de conhecimento adequado da matéria da parte de quem ensina e pregue. Aliás, isso também pode ser a origem de exageros injustifi cáveis no que se expõe sobre santifi cação, os quais tomam forma no corpo do legalismo. A mesma falta de correto conhecimento também poderá fazer com que o pêndulo se desloque para o outro extremo, ou seja, o antinomismo.

O livro divide-se em três partes. A primeira examina a doutrina da santifi cação à luz de nossa vocação cristã e vida de oração. A segunda oferece três modelos concretos de vida santifi cada. O primeiro inspira-se na teologia batismal de Lutero baseada em Rm 6, segundo a qual a vida cristã é um constante morrer e ressuscitar com Cristo. O segundo modelo vê a santifi cação como um drama que o cristão vive, pois está em constante luta com Satanás e o mal. No terceiro modelo encontramos o destaque

IGREJA LUTERANA

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que Sánchez dá à importância da santa ceia para uma vida de serviço ao próximo e para a evangelização. Na terceira parte, o autor trata de temas atuais referentes à santifi cação, temas por vezes pouco explorados, como, por exemplo, teodiceias, redução da esperança cristã apenas ao plano horizontal, teísmo clássico e teísmo aberto e também a necessidade de reconhecer a vida no Espírito como testemunho de serviço num mundo egoísta, o qual acaba tomando o tempo que deveria se destinar à oração e descanso na palavra de Deus. Como resgatar a importância desse tempo também é tratado por Sánchez, o que vem a ser palavra sábia em meio à correria em busca dos benefícios próprios que às vezes buscamos por intermédio da dedicação quase que exclusiva ao trabalho.

Enfi m, a leitura desta obra facilmente nos leva a concluir que nos faltava algo assim com tal profundidade e clareza naquilo que vemos surgindo na sequência de suas 253 páginas.

Paulo Moisés Nerbas

São Leopoldo/RS

[email protected]

RESENHA

LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas. Vol.12. Interpretação do Antigo Testamento. Textos selecionados da preleção sobre Gênesis. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia; Canoas: Ulbra, 2014.1

A leitura em Gênesis é uma janela aberta para a teologia de Lutero produzida na última década de sua vida. A sociedade da época requeria pastores versados em uma teologia evangélica. Lutero faz uso da cátedra universitária para desenvolver essa teologia em meio aos ambientes que assumiam a teologia luterana como base. Além de ser ativo no âmbito político e eclesiástico, Lutero assume seu papel formador de professor universitário ao longo desta prelação de Gênesis. Portanto, ao lermos o presente comentário, vamos observar um Lutero engajando seus alunos por meio de um processo teológico e intelectual à teologia evangélica através de sua carreira como professor universitário.

O comentário foi publicado em 1544 e abarca três volumes na edição crítica de Weimar, volumes 42 até 44. O primeiro volume das leituras em Gênesis foi publicado em 1544 com o título In primum librum Mose enar-rationes e contém um prefácio e pós-escrito do próprio Lutero.2

Nessas enarrationes, o aspecto oral é altamente preservado na edição do texto. Lutero interage com o texto bíblico com clara intenção de formar a espiritualidade de seus alunos à medida que os ensina a perceber e a ouvir a Bíblia como Palavra de Deus. Depois, conecta esta Palavra à ênfase evangélica da santidade e da vida cristã, defi nida através da ação de Deus em justifi car pecadores e torná-los santos, como se percebe na atuação de Deus em meio aos patriarcas e na interpretação de Igreja que Lutero retira da história de Adão, Abraão, Isaque e Jacó. Por fi m, prepara seus alunos a enfrentar um futuro no qual os ataques de Satanás ao evangelho serão constantes, visto que o evangelho está novamente tomando forma e se espalhando.

A teologia evangélica destacada por Lutero infl uenciou de forma rápi-da e intensa a sociedade da época. A emergente identidade confessional requer de Lutero um esforço extraordinário para estabelecer e manter a identidade evangélica. E isso ele faz através das preleções a Gênesis. A década de 1530 iniciou com a apresentação da teologia praticada em Wittenberg diante do Império e da Igreja em Augsburgo. A Confi ssão e sua Apologia, documentos públicos e ofi ciais para a teologia de Lutero e de seus colegas, apresentaram a teologia evangélica e esta precisava ser solidifi cada. Diferente das teologias católico-romana e da teologia entu-

1 Esta Introdução está publicada no volume 12 de Obras Selecionadas publicada pela Comis-são Interluterana de Literatura – CIL, em 2014. O autor participa da Comissão Editorial Obras de Lutero – CEOL. O presente texto foi autorizado pela CIL para esta publicação.

2 WA 42,14-22 e WA 42,428.

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siasta, a teologia praticada em Wittenberg e arredores está centrada no Evangelho, entendido na sua revelação na Palavra e nos Sacramentos.

A teologia luterana cada vez mais estava se afastando da teologia e tradição católico-romanas. Esta experiência novamente aparece neste comentário. A narrativa de Gênesis estabelece para Lutero um entendi-mento do evangelho contrário, especialmente, ao magistério estruturado na autoridade papal. A forma de fazê-lo transparece ao longo da preleção quando Lutero explora e ensina aos seus estudantes a perceber o que o texto bíblico está descrevendo, de como este texto envolve a natureza da fé e vida cristã no mundo. Assim, Lutero conecta a atuação de Deus em meio ao mundo, tanto no passado como no presente e no futuro de sua igreja. Outro questionamento da teologia evangélico-luterana transparece na crítica ao antinomismo, defendido por colegas de Lutero como João Agrícola.

A linguagem do texto é a janela para entender teologia. Por isso, o texto de Gênesis, através de suas repetições e excursões, é um exercício luterano na palavra de Deus, transformando-se num comentário organi-zado e preparado para publicação.

O método estenográfi co de então não se propunha a uma transcrição literal do discurso oral, mas privilegiava a elaboração de uma redação detalhada em correspondência com o sentido das ideias e conceitos ex-postos pelo orador. As abreviações de palavras, em geral, eram usadas para discursos em Latim. Preleções e prédicas em Alemão, em geral, eram de imediato traduzidas mentalmente pelo estenógrafo para o Latim e anotadas nesse mesmo idioma.

Para muitos estudiosos de Lutero, esta obra tem um valor secundário visto ser fruto de anotações de seus alunos. Muitos sugerem ler esta obra com outros textos luteranos ao lado, servindo de introdução ao pensamento de Lutero. Outros já consideram o texto como uma fonte indispensável para o nosso conhecimento da teologia de Lutero.

As difi culdades aparecem na transcrição feita pelo estenografi sta de Lutero, Veit Dietrich, e que é usada na edição do comentário.

O questionamento se dá pelo fato de muitos alunos de Wittenberg, durante as décadas de 1530 e 1540, sofrerem infl uências das ideias de Melanchthon. A disputa contra os antinomistas colocou no centro do de-bate Melanchthon e João Agrícola. Lutero e Melanchthon eram contrários à proposta antinomista de Agrícola. Para eles, a lei precisa ser aplicada tanto a cristãos como a não-cristãos. A difi culdade no comentário a Gênesis aparece quando os estudiosos comparam as posições neste comentário com outros escritos de Lutero da época, que são as teses da Disputa Antinomista e do comentário a Gálatas. As ideias sobre o impacto da lei transparecem um colorido mais próximo das ideias de Melanchthon do que das ideias de Lutero. A posição de Melanchthon, a qual Lutero rejeitou segundo os

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escritores da Fórmula de Concórdia, é que a lei assume um caráter subs-tancialmente ontológico, levando o ser humano a uma perspectiva social e moral produtiva. Lutero, com seu entendimento da natureza da lei, do arbítrio escravo da vontade do homem, das naturezas de Cristo presen-tes no Sacramento, do arrependimento e da fé, chegou a um resultado escatológico do impacto da lei sobre o ser humano diferente do proposto por Melanchthon. Aí entendemos por que alguns críticos sugerem ler o presente comentário tendo em mãos o escrito De Servo Arbítrio de Lutero, o comentário a Gálatas de 1535 e as teses antinomistas.

Ao examinarmos o conteúdo de Gênesis, percebemos um Lutero engajado. Toda a produção da década, paralela ao comentário, nos leva a concluir que as leituras em Gênesis revelam um Lutero cada vez mais centrado nas Escrituras em busca de respostas e de como a Palavra de Deus responde às questões e crises de Lutero em seu universo das dé-cadas de 1530 e 1540.

Lutero, em sua época, foi o que melhor aproveitou a imprensa no sentido de produzir obras para serem publicadas. Mas a década de 1530 exige de Lutero algo novo: uma produção consciente para deixar seu le-gado à posterioridade. Editores queriam preparar uma edição dos escritos latinos e germânicos de Lutero. Sermões, obras escritas com propósitos defi nidos, obras de edifi cação espiritual, escritos polêmicos deveriam ser preservados para a posteridade.

Lutero está reticente em relação à sua produção. O que ele quer é que se beba da fonte original, da própria Escritura. Em 1539, em seu Prefácio à edição de Wittenberg dos escritos Germânicos, Lutero escreve que “nem Concílios, nem Pais, muito menos nós seremos tão grandiosos e obteremos sucesso assim como as Escrituras o tem, isto é, como Deus mesmo o faz [nós, com certeza, também precisamos ter o Espírito Santo, fé, bom discurso e obras, se queremos ser salvos]. Por isso, ouvimos o que os profetas e apóstolos têm a nos ensinar com suas leituras professorais [?], enquanto que nós, sentados a seus pés, só podemos ouvir o que eles têm a nos dizer. Não são eles que têm que ouvir o que nós temos para dizer”3.

Se colocarmos o texto de Lutero ao lado de obras exegéticas de nos-sos dias, o trabalho dele pode parecer simplista. Mas se compararmos com as exegeses feitas no fi nal da Idade Média, toda a obra exegética de Lutero é gigante porque ele consegue traduzir o cerne das Escrituras em seus comentários bíblicos. E este comentário a Gênesis não foge à regra especialmente pelo exercício hermenêutico e exegético proposto pela leitura luterana.

A oportunidade que Lutero tem em investir 10 anos na leitura dos 50 capítulos de Gênesis leva-o a revisar a sua tradução do livro publicada na

3 WA 50,657,25-30.

OBRAS SELECIONADAS - INTERPRETAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO

IGREJA LUTERANA

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Bíblia em 1534. Em 1545 ele irá publicar a sua segunda edição completa da Bíblia com suas anotações e observação colhidas ao longo da exposição e leitura do texto.

Contrário à proposta medieval, seguida especialmente por exegetas bohemios, que analisavam o texto bíblico de forma cronológica e com base em temas escolhidos, Lutero interpreta o texto de forma literal, discutindo versículo por versículo. Para Lutero, “nosso estudo, se queremos manter a realidade das Escrituras, precisamos fazê-lo de forma simples, de modo germânico, e preservando o sentido literal”.4 Das quatro formas medievais de estudo do texto bíblico, o histórico, o tropológico, o anagógico e o alegório, Lutero destaca a forma histórica. Desde sua primeira leitura nos Salmos em 1513, Lutero assume uma exegese histórica do texto bíblico de Gênesis conectando a história de Abrãao, Isaque e Jacó com a história de Jesus.

Um exemplo clássico dessa exegese é o assim chamado protoevangelho presente no comentário de Lutero a Gênesis 3.15. Para ele, a promessa do evangelho, de Cristo, é dada a Adão e Eva, confortando-os em meio ao seu pecado. Por isso, lemos no comentário de Lutero que mortos espi-ritualmente, na promessa do protoevangelho, ganharam vida novamente. Também a Trindade de Deus está presente porque a Segunda Pessoa da Trindade é manifestada ao mundo na obra da criação. Mesmo que o so-frimento, morte e ressurreição de Cristo não estejam narrados na história de Gênesis, a sua Pessoa está presente, marca da Trindade de Deus.

Assumindo essa hermenêutica, Lutero não tem medo de fazer um pa-ralelo entre a igreja do Antigo e do Novo Testamento. Segundo ele, ambas aguardam Cristo. A igreja do Antigo Testamento aguardava o Messias que veio em Jesus Cristo, enquanto que a Igreja do Novo Testamento aguarda a volta do Messias. Essas narrativas precisam ser analisadas sob a pers-pectiva do pecado e da promessa, da lei e do evangelho. Enquanto que na lei Deus faz a igreja aguardar ardentemente a promessa, no evangelho a igreja é confortada por Deus devido às exigências da lei, tornando a pessoa livre para viver esta vida e aguardar a promessa da vida que virá.

Essas conclusões exegéticas por parte de Lutero só são possíveis graças à sua abordagem histórica do texto bíblico. Não apenas a narrativa do passado é histórica, mas a presença de Deus na história da humanidade é determinante para Lutero. Desta forma, Lutero não apenas está por trás do texto, mas está diante do texto. O próprio Lutero é, assim, transformado, porque no texto Deus Espírito Santo está agindo.5

Resumidamente, Lutero aplica no comentário seus princípios herme-nêuticos fundamentais para interpretar o texto bíblico: primeiro, a Palavra

4 WA 42,567-568 (39-42).5 WA 42,600,26-27.

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de Deus é manifestada na Segunda Pessoa da Trindade, Jesus Cristo; segundo, Jesus Cristo é o centro e o conteúdo principal das Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento; terceiro, a própria Escritura é sua própria intérprete, visto que quem lê a narrativa de Gênesis percebeu seu conteúdo revelado também no Novo Testamento; quarto, a revelação precisa ser vista historicamente, contrariando assim a possibilidade ale-górica de interpretar o texto; e, quinto, a função querigmática do texto, visto que Deus se pronuncia e revela em Jesus Cristo, isto é, vivo e ativo no mundo, o evangelho é para ser proclamado.

Mesmo defendendo uma análise histórica do texto bíblico, Lutero não deixa de alegorizar em alguns momentos. As histórias de Ismael e Isaque e Esaú e Jacó ganham um tom alegórico no comentário de Lutero. Ele vê duas linhas paralelas na histórica – entre crentes e descrentes – e comen-ta afi rmando que os dois grupos criam uma linhagem de um nascimento apenas de sangue, no caso de Ismael e Esaú, e um nascimento espiritual, na situação de Isaque e Jacó. O primeiro grupo possui apenas uma bên-ção material e limitada; o segundo possui uma bênção teológica e eterna baseada na promessa da regeneração e restauração em Jesus Cristo.6

Não há dúvida de que estamos diante de um extraordinário comentário bíblico que será útil para pregadores e pastores demonstrarem, a partir da narrativa bíblica e do comentário de Lutero, no púlpito e ao longo da vida da comunidade, a presença de Deus que se revela assim como se manifestou no passado, conforme o registro de Gênesis.

OBRAS CONSULTADAS

ASENDORF, U. Lectura in Biblia: Luthers Genesisvorlesung (1535-1545), in: Forschungen zur Systematischen und Ökumenischen Theology 87, Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1998.

BAYER, O. A Teologia de Martim Lutero. São Leopoldo: Sinodal, 2007.

BORNKAMM, H. Luther and the Old Testament. Philadelphia: Fortress Press, 1969.

MAXFIELD, J.A. Luther’s Lectures on Genesis and the Formation of Evangelical Identity. Kirksville: Truman State University Press, 2008.

MEINHOLD, P. Die Genesisvorlesung Luthers und ihre Herausgeber. Stuttgart: W. Kohlhammer, 1936.

Clóvis J. PrunzelSão Leopoldo/RS

[email protected]

6 WA 43,388 (34-35) e 409 (8-9).

OBRAS SELECIONADAS - INTERPRETAÇÃO DO ANTIGO TESTAMENTO

RESENHA

GUINNESS, Os. Dining with the Devil: the megachurch movement fl irts with modernity. Michigan: Baker Book House, 1993.

Os Guinnes diz sobre o propósito de seu livro: “Este livro é uma crítica construtiva do movimento church-growth e das novas megaigre-jas, focando especialmente no uso deste “novo terreno” das técnicas e conhecimentos modernos”. Sem insultos e acusações, o autor quer analisar estes movimentos de olhos abertos e fazer alertas. “Meu propó-sito não é destituir este movimento vital, nem mesmo avaliá-lo de uma perspectiva teológica, mas criticar os perigos e armadilhas que vêm do ‘novo terreno’”. O autor quer alertar que o que importa mesmo é aquilo que Deus pensa. No Dia do Julgamento, haverá apenas dois destinos: ou estaremos entre aqueles cujas obras provam que foram “ouro e prata”, ou estaremos entre aqueles cujas obras provam que foram “madeira, feno e restolho” (p. 14-15).

Uma questão importante para o church-growth: a infl uência da moder-nidade (p. 15). Por isso Os Guinnes adverte: “Comparado com o passado, a fé hoje infl uencia muito pouco a cultura. Comparado com o passado, a cultura hoje infl uencia mais a fé” (p. 16). A modernidade hoje está em todo mundo e se tornou uma cultura poderosa. Por conseguinte, o movi-mento church-growth e as megaigrejas têm olhado a modernidade como a grande alternativa ao reino de Deus (p.17).

A origem do church-growth está no trabalho missionário de Donald MacGavrans na Índia nos anos 1930. Mas o movimento agora moveu-se para além de sua fase missionária original e mesmo de sua fase americana antiga. O movimento church-growth chegou à sua própria terceira fase, através de sua forma popularizada de megaigrejas, que têm tudo a ver com modernidade (p. 20-21).

Esta fase atual do church-growth está muito ligada à modernidade e é o que o movimento chama de “novo solo”. Por isso o livro Dining with the devil tem o propósito de alertar que o chruch-growth e a megaigreja estão fl ertando perigosamente com a modernidade e estes se mantêm acríticos aos perigos da modernidade à palavra de Deus.

O autor reconhece os pontos positivos do church-growth e da megai-greja: “É importante dizer que o movimento megaigreja e church-growth como um todo tem imenso signifi cado espiritual, cultural e histórico positivo para a igreja de Cristo” (p.21-22). O church-growth preocupa-se com a prioridade na missão, com a centralidade da igreja, com o crescimento da igreja, com a necessidade de falar aos de fora e com o reconhecimento de culturas diferentes. Também a preocupação de usar técnicas novas pode ser válida.

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Primeiro, espiritualmente, o movimento church-growth representa uma preocupação para muitos dos componentes da missão, renascimento e reforma cristã. Isto pode ser visto salientando as ênfases mais óbvias do movimento – a centralidade da igreja, a prioridade na missão, a possibili-dade de crescimento, a necessidade de falar aos de fora, o reconhecimento da cultura e de culturas, a insistência em resultados reais e a visão em usar as melhores percepções e tecnologias proferidas pelas disciplinas-chave das ciências humanas (p. 22). Além disso, o movimento church-growth representa o movimento mais infl uente nas igrejas americanas nos anos 1990 e uma expressão signifi cativa pela procura da autoridade da fé que a igreja perdeu.

Certamente inovação é uma questão em aberto dentro da igreja. Mas é necessário lembrar que a igreja precisa estar alerta em comprometer-se com o espírito de sua era. Por isso, Os Guinnes atesta: “Em suma, inova-ção não é um problema. Se os cristãos forem usar os melhores frutos da revolução administrativa construtivamente e criticamente, acompanhado de uma reforma paralela de verdade e teologia, o potencial do evangelho seria incalculável” (p. 24).

Não há problemas em ter uma igreja grande, mas é necessário pensar no que sugere o termo church-growth. É preciso notar que ambas as pa-lavras podem ter duplo sentido. Church refere-se à igreja local ou a todo o povo de Deus de uma localidade? Growth signifi ca apenas crescimento numérico ou inclui também o crescimento qualitativo em profundidade na Palavra? (p. 26).

Segundo Os Guinnes, “o movimento church-growth tem duas defi ciên-cias. Por um lado, seu entendimento teológico é muitas vezes superfi cial, com quase nenhum elemento de criticismo bíblico. Como um muito co-nhecido proponente afi rma: ‘Eu não lido com teologia. Sou simplesmente um metodologista’ – como se sua teologia estivesse por isso garantida em permanecer crítica e sua metodologia neutra” (p. 26). Adverte o autor para o desafi o de idolatrar coisas boas e úteis. Ídolos não são apenas os deuses pagãos adorados pelos outros. Quando adoramos algo criado por Deus, e isto é colocado acima de Deus, estamos sendo idólatras. “No caso do movi-mento church-growth, esta idolatria pode se desenvolver de duas maneiras: ou as percepções e ferramentas da modernidade são invocadas de maneira idólatra, ou as próprias igrejas se tornaram idólatras porque seu verdadeiro sucesso como instituição as faz um fi m em si mesmas” (p. 32).

Os Guinnes critica o movimento chruch-growth e sua utilização pelas megaigrejas abordando sete lembretes que servem de advertência. Ve-jamos quais são:

Inicia com “Uma questão principal”, a saber: “É a igreja de Cristo uma realidade social moldada por uma causa teológica, a saber, a Palavra e

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Espírito de Deus? Em suma, – o que, na prática – é a autoridade decisiva da igreja?” (p. 35). O autor justifi ca sua questão da seguinte maneira: “Atrás desta questão repousa o fato de que a igreja de Deus ‘deixa Deus ser Deus’ e é a igreja somente quando ela vive e prospera fi nalmente pelas verdades de Deus e os recursos de Deus. Se a igreja faz qualquer outra coisa além do princípio decisivo de sua existência, os cristãos vivem vidas de fé desautorizadas, exercem ministérios desautorizados e proclamam um evangelho desautorizado” (p. 35).

Adverte Os Guinnes para o fato de que a modernidade nos proporciona a tentação de que suas ferramentas e percepções nos fazem crer que a au-toridade de Deus não é mais decisiva. Assim que, quando Jesus nos adverte a não vivermos somente de pão, mas de toda a palavra que vem de sua boca, isto pode ser entendido que Jesus não estava pensando no século XX. A questão não é optar entre Deus ou a modernidade como se um excluísse o outro. O fato é “quem é a decisiva autoridade na prática” (p. 36).

A tecnologia atual nos faz pensar que podemos tudo, sem Deus. Os ídolos são simplesmente as técnicas defi nitivas da causação e controle – sem Deus. A liberdade soberana de Deus encontrou sua correspondência em nós. Nós inventamos a tecnologia para colocar em retenção a Palavra de Deus (p. 37-38).

Alguns exemplos que o autor cita. Um pastor de uma megaigreja da Flórida disse:“Eu tenho que fazer as coisas certas ou as coisas não irão tão bem”. Um agente da Coca-Cola e também de propaganda cristã afi rmou: “De volta a Jerusalém onde a igreja iniciou, Deus operou um milagre lá no Dia de Pentecostes. Eles não tinham os benefícios de botões e mídia, portanto Deus tinha que fazer um trabalho sobrenatural lá. Mas hoje, com nossa tecnologia, temos à disposição a oportunidade de criar o mesmo tipo de interesse numa sociedade secular”. Outro consultor do church-growth afi rma que poderia conquistar de cinco a dez milhões de baby boomers de volta à igreja com três mudanças simples nas igrejas: 1. “Propaganda”; 2. Deixem as pessoas conhecerem sobre “benefícios dos produtos”; 3. Seja “agradável ao novo povo” (p. 38).

Por isso, adverte o autor: “Se Jesus Cristo é a cabeça da igreja e consequentemente a fonte e objetivo de toda a vida da igreja, verdadei-ro crescimento só é possível em obediência a ele. Reciprocamente, se a igreja se tornar desligada de Jesus Cristo e sua palavra, ela não pode crescer verdadeiramente, embora pareça estar ativa e bem-sucedida... A igreja de Cristo é mais do que espiritual e teológica, mas nunca menos. Somente quando as primeiras coisas são realmente primeiras, acima mesmo do melhor e mais atrativo das coisas secundárias, a igreja será livre de ídolos, livre para deixar Deus ser Deus, livre de si mesma e livre para experimentar o crescimento que importa” (p. 39).

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O segundo lembrete do autor é Dois fundamentos principais do desa-fi o. Adverte Os Guinnes que se trata de um problema adicional colocado para o church-growth que, por causa da natureza de suas duas raízes, a modernidade e o chamado “novo solo”, são mais profundos e dúbios do que os líderes do movimento percebem.

Há cristãos que acham que a modernidade vai proporcionar um “marxismo do homem rico” onde haverá prosperidade, progresso e re-voluções democráticas. Mas é preciso ver que a modernidade inverteu o viver “de cima para baixo”, para“de baixo para cima”, centrado no viver humano. Isto representa uma revolução na história e na experi-ência humanas.

A substituição da modernidade do viver “de cima para baixo”, cen-trado em Deus, com o “de baixo para cima”, centrado no viver humano, representa uma revolução titânica na história e na experiência humana. Temos que cuidar que esta inversão não afete a religião. Por isso, quando o movimento da megaigreja se agarra em percepções e ferramentas da modernidade para utilizá-las no seu “novo solo”, é preciso ver que eles não estão diante de algo neutro ou benevolente. Há um paradoxo entre a modernidade e a fé cristã (p. 42).

Três perigos maiores da modernidade é o terceiro lembrete que Os Guinnes faz. São eles: secularismo, privatização e pluralização. A maioria dos cristãos ainda não se defrontou com o dano direto à fé que a moder-nidade produz. Um fator por que não enfrentamos a modernidade é que ela é muito positiva na nossa vida. Quem gostaria de voltar anos atrás na saúde, na comunicação, nas viagens ou na facilitação dos serviços domésticos?

No entanto, na questão do secularismo é necessário refl etir que “mais e mais o que antes era deixado para Deus a iniciativa humana ou o processo da natureza é agora classifi cado, calculado e controlado pela aplicação sistemática da razão e da técnica. O que conta no mundo racionalizado é a efi ciência, previsibilidade, quantidade, produtividade, a substituição da tecnologia para o ser humano, e – do início ao fi m – o controle sobre a incerteza” (p. 48). Por isso, a advertência para a megaigreja: “Os dois marcos de secularização mais facilmente reconhecíveis na América são a exaltação de números e da tecnologia. Ambos são proeminentes no movi-mento megaigreja num nível popular. Em sua fascinação com estatísticas e informações às expensas da verdade, este movimento é caracteristica-mente moderno” (p. 49).

“Pela privatização, a modernidade produz uma cisão entre setores privados e públicos – o setor privado sendo comumente o único lugar onde a religião está livre para fl orescer. Pela pluralização, a modernidade

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multiplica o número de opções que as pessoas têm na esfera privada em todos os níveis – incluindo as de fé, cosmovisões e ideologias. O resultado desta pluralização é um senso maior de relativismo, subjetivismo, incer-teza e ansiedade rodeando a religião no mundo moderno” (p. 48).

O quarto lembrete de Os Guinnes é Quatro passos principais no compromisso. Este lembrete trata das dinâmicas do compromisso com o mundo. Durante dois milênios, a igreja e o mundo travaram uma his-tória de conversação. Os cristãos são chamados para estarem no mundo sem serem dele. Diz o autor: “Através dos séculos os cristãos viveram esta tensão de diversas maneiras. Alguns, num extremo, não estiveram no mundo e nem foram dele, e, por isso, se isolaram. Outros, no outro extremo, estiveram no mundo e foram dele, e, por isso, estiveram com-prometidos” (p. 55).

Os Guinnes menciona quatro passos no compromisso dos cristãos com a modernidade: 1º. Suposição – algum aspecto da vida ou pen-samento moderno é acolhido como superior ao que os cristãos agora sabem. 2º. Abandono – algo novo é assumido como sendo verdade e apropriado, por isso o antigo é abandonado. 3º. Adaptação – algo novo é adotado, o velho é abandonado e tudo é adaptado; as crenças e prá-ticas tradicionais são alteradas para se encaixarem na nova suposição. 4º. Assimilação – “Esta é a culminação lógica para os três primeiros. Algo novo é assumido (passo um). Como consequência, algo tradicional é abandonado (passo dois) e tudo o mais é adaptado (passo três). No fi m da linha as suposições dos cristãos são absorvidas pelas modernas. O evangelho tem sido assimilado como forma de cultura, muitas vezes sem um remanescente” (p. 57).

Um exemplo fl agrante desta tendência com respeito ao compromisso está na resolução do Conselho Mundial da Igrejas em 1966: “O mundo tem que estabelecer a agenda para a Igreja”.

O quinto lembrete de Os Guinness trata das Cinco ironias principais. O quinto lembrete trata das consequências involuntárias dos cristãos engajados acriticamente com a modernidade.O autor explica as cinco ironias assim: “Primeiro, os protestantes hoje em dia precisam de maior protesto e reforma. Segundo, evangélicos e fundamentalistas tornaram-se a maior tradição mundial na igreja. Terceiro, conservadores estão se tornando os mais progressistas. Quarto, os cristãos em muitos casos são os agentes primordiais de sua própria secularização. Quinto, através de seu engajamento acrítico com a modernidade, a igreja está se tornando seu próprio maior coveiro” (p. 61-62).

O sexto lembrete, conforme o autor, trata das pessoas que são suscetí-veis de se tornarem a fonte do problema da igreja, devido ao engajamento

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acrítico do church-growth com a modernidade. Existem seis portadores principais da modernidade. Os Guinnes os apresenta:

O primeiro é o pândita (sábio, erudito, mestre),1 aquele para quem “tudo pode ser conhecido, tudo pode ser pronunciado em”, centrado profi ssionalmente sobre a importância da informação (p. 69).

O segundo é o engenheiro, aquele para quem “tudo pode ser projetado, tudo pode ser produzido”, centrado profi ssionalmente na produção. (Você quer para o mercado um perfume, pousar um homem na lua, plantar uma igreja? O engenheiro vai descobrir isto) (p. 69).

O terceiro é o comerciante, aquele para quem “tudo pode ser posicionado, pode ser vendido”, centrado profi ssionalmente no consumidor satisfeito (p. 69-70).

O quarto é o consultor, aquele para quem “tudo pode ser or-ganizado melhor, tudo pode ser entregue melhor”, centralizado profi ssionalmente na gestão (p. 70).

O quinto é o terapeuta, aquele para quem “tudo pode ser en-trado em contato, tudo pode ser ajustado ou curado”, centrado profi ssionalmente na cura (p. 70).

O sexto é o empresário, aquele para quem “tudo pode ser transmi-tido com vantagem através da apresentação de imagens indepen-dentemente de qualquer realidade”, centrado profi ssionalmente em relações públicas e “gerenciamento de impressão” (p. 70).

Finalmente, o sétimo lembrete trata dos Sete principais tipos de discernimento. Justifi ca Os Guinness: “O sétimo lembrete é um che-cklist de considerações para ajudar a aguçar o discernimento quando usar percepções e ferramentas modernas... o propósito é assegurar que nós ainda estamos jantando com colheres compridas o sufi ciente, que nossos martelos para fazer soar nossos ídolos estão em bom acabamento e que nossos ouvidos estão ainda afi nados para o som do vazio” (p. 74).

Primeiro: pergunte o que o imperador está vestindo hoje. Com esta afi rmação Os Guinness alerta que movimentos em expansão, como o church-growth, precisam ser checados naquilo que excedem à realida-de. Como um menino que está impressionado com as últimas roupas de marca, os movimentos em ascensão precisam ser checados com três perguntas simples: O que está sendo dito? É verdade? O que deveria ser feito? (p. 74).

1 s.m. Título honorífico dado na Índia aos brâmanes possuidores de conhecimentos linguís-ticos, religiosos e filosóficos. P. ext. Sábio, mestre, letrado.

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Segundo: note de quem é o ponto de partida. Que ideias servem aos interesses do church-growth? Qual é o ponto de partida? Quem é o ponto de partida? Note-se, por exemplo, a arquitetura das megaigrejas. Deixaram de ser semelhantes à tradicional e passaram a assemelhar-se aos shoppings. Os Guinness adverte: Como resultado, quando os pastores de uma megaigreja procuram moldar a mensagem ao seu “mercado” de necessidades constituintes, a pregação deles omite componentes chaves. Já se foram os ditos severos de Jesus. Já se foi o ensino sobre o pecado, abnegação, sacrifício, sofrimento, julgamento, inferno. Com toda sua ênfase em encontros de necessidades, há pouco no movimento church-growth para se contrapor ao mundo” (p 78).

Terceiro: siga a bola quicando. O autor justifi ca: “Uma das razões por que muitas pessoas são hoje acríticas é que elas veem as tendências como simples, justas e pequenas... Mas, de fato, as tendências são mais pare-cidas com os padrões de salto de uma bola numa máquina de fl iperama. Donde ela vem, para onde ela está saltando e no que ela está batendo no caminho são coisas mais importantes para interpretar uma tendência do que precisamente onde ela esteja num momento particular” (p. 78)... O que dizer da igreja quando Newsweek pode divulgar que “as igrejas menos exigentes estão agora em maior procura”? Ou quando uma igreja pode propagar: “Ao invés de me adaptar a uma religião, eu encontrei uma religião que se adaptou a mim”? (p. 79-80).

Quarto: verifi que se há conceito contemporâneo. Nada é mais carac-teristicamente moderno do que um repúdio ao passado.

Quinto: olhe para os negligenciados. Explica Os Guinnes: “Cada uma das justifi cativas do movimento church-growth carrega este perigo por contraste. Se algo novo é enfatizado, algo velho é negligenciado. Agora na longa corrida, as coisas negligenciadas podem ser mais importantes à igreja do que as enfatizadas. Assim, poucos vão discordar que o ensino do church-growth represente uma mudança de dimensão vertical para o horizontal, do teológico para o prático, do profético para o buscar amigos, do eterno para o relevante e contemporâneo, da prioridade do discipulado cristão por toda a vida para a prioridade ministração espiritual dentro da igreja” (p. 83-94).

Sexto: enfrente as tensões com coragem. Os Guinnes lembra: “O prin-cípio de viver com tensão sempre foi importante, mas ele é ampliado sob as condições da modernidade. Se a modernidade representa a mudança massiva do acento do espiritual para o secular, precisamos com consciência tornar-nos mais profundos e mais espirituais assim como a modernidade nos torna mais cientes e hábeis no nível secular” (p. 86).

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Sétimo: lembre as primeiras coisas e o primeiro amor. Escreve Os Guinness: “A última dica é uma lembrança de duas verdades elemen-tares – o bom é muitas vezes o inimigo do melhor, e a estrada certa para a descrença não é rebelião, mas esquecimento. Portanto, quando nossas habilidades e experiências na igreja crescem ao seu nível mais alto, a primeira coisa a dizer sobre o crescimento da igreja é que o cres-cimento da igreja não é a primeira coisa” (p. 86)... “Quando tudo está dito e feito, o que importa não é que vejamos a queda de Satanás e o aumento da membresia da igreja, mas que nossos nomes estão inscritos no céu. Nada mais comovente poderia ser dito desta geração do que nosso plantio de igreja foi ilustre, mas que perdemos o primeiro amor. Há somente uma questão real, escreve Henri Nouwen: “A questão não é: Quantas pessoas o tomam seriamente? Quanto mais você está por realizar? Você pode mostrar alguns resultados? Mas: Você está apaixo-nado por Jesus?” (p. 87).

Na conclusão, Os Guinnes destaca: “O desafi o no coração do movi-mento chruch-growth é o problema do discipulado moderno amplamente citado – como engajar-se no mundo da modernidade livremente, mas com fi delidade. Claramente, uma mistura difícil de atributos é requerida: integridade e efi cácia, empreendimento com humildade, devoção espiri-tual junto com senso comum”... Para todos os que estão comprometidos com o church-growth e ávidos por usarem o melhor da modernidade, é decepcionante perceber a extensão da iconoclastia. Como mostram as Escrituras, Deus não está somente contra a idolatria de deuses estranhos, mas ele está contra seus próprios dons quando são idolatrados. O destino do tabernáculo e do templo são ambos uma advertência às megaigrejas construídas não sobre a rocha, mas sobre a areia (p. 90).

Nossa atitude diante da modernidade: “Deveríamos, portanto, pres-tar atenção ao antigo princípio de Orígines: Os cristãos estão livres para saquear os egípcios, mas proibidos de fazer um bezerro de ouro. De todo jeito, saqueie livremente os tesouros da modernidade, mas em nome de Deus esteja certo do que o que vem para fora do fogo, que vai testar nossos empreendimentos de vida, estar o ouro apto para o Templo de Deus e não um fi nal de século vinte ser uma imagem de um bezerro de ouro” (p. 90).

A admoestação fi nal: “Deveríamos, por isso, guardar na mente a admoestação moderna de Peter Berger de que aqueles que jantam com o diabo da modernidade é melhor que tenham longas colheres. De todo jeito, jante livremente na mesa da modernidade, mas em nome de Deus mantenha longas suas colheres” (p. 90).

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Apesar de Os Guinnes tratar de uma realidade americana, o movimen-to church-growth e as megaigrejas que vieram ao Brasil têm muito em comum conosco. O livro retrata a realidade de pastores, líderes e igrejas em geral que põem mais ênfase em métodos e marketing do que no poder em si da palavra de Deus.

Raul Blum

São Leopoldo/RS

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JACOBS, A. J. Um ano bíblico: a curiosa e bem-humorada experi-ência de um jornalista americano que viveu um ano como a Bíblia manda. Tradução de Pedro J. M. Bianco. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. 400 p.

A. J. Jacobs é um jovem jornalista nova-iorquino. Já escreveu vários livros, alguns dos quais como resultado de uma experiência feita em “laboratório”, na qual ele mesmo foi a cobaia. Um deles, intitulado “The Know-It-All” (O Sabichão), é um relato das descobertas feitas na leitura de toda a Enciclopédia Britânica, de A a Z.

Descendente de judeus, mas declaradamente agnóstico, Jacobs estava preocupado com o fato de viver sem religião, vendo, ao mesmo tempo, o crescimento do fundamentalismo religioso. Assim, decidiu viver durante um ano como a Bíblia manda. O relato desta experiência, na forma de um diário, está em “Um ano bíblico”, livro publicado em 2007 e traduzido ao português em 2011.

O título do livro é um tanto enganoso, pois, especialmente para te-ólogos, soa como se fosse algo relacionado com o ano litúrgico. No en-tanto, o título original é claro e poderia também ser traduzido por “Um ano de vida segundo a Bíblia”. O subtítulo da tradução brasileira descreve essa experiência como curiosa e bem-humorada. No entanto, em vários momentos o leitor tem a impressão de que se trata mesmo de uma ex-periência patética. Por isso, talvez teria sido melhor fazer uma tradução mais literal do subtítulo original: a humilde tentativa de seguir a Bíblia da forma mais literal possível.

Jacobs foi impulsionado por uma pesquisa de 2005, que mostrava que mais ou menos a metade dos norte-americanos afi rmava que seguia a Bíblia literalmente. Jacobs decidiu fazer o mesmo, só que de forma consistente. Queria levar o legalismo às últimas consequências. Queria verifi car o que é atemporal e o que, segundo ele, está ultrapassado na Bíblia.

O autor reuniu uma pilha de edições da Bíblia e se pôs a ler toda ela, em busca dos mandamentos que contém. Lendo cinco horas por dia, con-cluiu a leitura em um mês. Jacobs confessa que não esperava encontrar tanta coisa estranha na Bíblia. Catalogou mais de 700 leis. Dessas, 613 já haviam sido compiladas ou separadas durante a Idade Média, por ninguém menos do que o famoso rabino Maimônides. O número de Jacobs é maior, porque ele decidiu incluir o Novo Testamento.

Por meio desta obra, o leitor fi ca sabendo ou recebe confi rmação de uma série de dados interessantes, com destaque para os seguintes: os judeus ortodoxos de Nova Iorque ainda fazem um sacrifício anual (no caso, de uma galinha), na véspera do Yom Kippur; segundo os rabinos,

RESENHA

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não existe mandamento mais ou menos importante; todos os utensílios a serem usados num pretendido terceiro templo em Jerusalém já estão prontos; por incrível que pareça, existe um projeto de criação de uma novilha vermelha, no qual estão envolvidos tanto religiosos judeus quanto cristãos ultrafundamentalistas dos Estados Unidos, como uma espécie de pré-requisito necessário para os tempos do fi m (no caso dos judeus, para conseguir a pureza requerida para a construção do terceiro templo, que é pré-requisito para a vinda do messias; no caso dos ultrafundamentalistas cristãos, como pré-requisito para o milênio).

Entre os dados curiosos e as afi rmações marcantes, destacam-se os seguintes: Jacobs declara que talvez tenha sido a única pessoa que con-seguiu levar uma testemunha de Jeová a querer livrar-se dele, depois de mais de três horas de conversa, quando normalmente ocorre o contrário (as pessoas querendo se livrar das testemunhas de Jeová); ao dar o dí-zimo, Jacobs se deu conta, corretamente a meu ver, de que, a princípio, é mais fácil dar o dízimo quando se tem dez milhões de dólares do que quando se ganha um salário normal (mostrando que, sob esta perspecti-va, o dízimo é tão “injusto” quanto o ICMS é injusto em comparação com o Imposto de Renda, na medida em que “dói” mais no bolso de quem ganha menos); como escritor, vivendo numa época em que imperam as imagens, simpatizou com o mandamento que proíbe a feitura de imagens (por alguns considerado o segundo mandamento); mesmo sabendo que era mentiroso, o autor confessa que não imaginava que mentia tanto assim; ao tratar da cobiça, deu-se conta de que é praticamente impossível viver em Nova Iorque sem cobiçar, por mais que um rabino tenha explicado a ele que cobiçar um carro de luxo não é errado, a menos que se trate do carro de luxo que já pertence a alguém; ao visitar Jerusalém, A. J. Jacobs concluiu que essa cidade é como “as ilhas Galápagos da religião: sempre que você abre os olhos enxerga uma criatura exótica”; ao falar sobre as mensagens encenadas dos profetas do Antigo Testamento, Jacobs atribui aos profetas a criação do teatro de rua; falando sobre os ateus, afi rma que tendem a ser individualistas, por ser difícil conseguir fazer com que outros se apaixonem por uma atitude de falta de fé; ao falar sobre traduções bíblicas, o autor transcreve algo que lhe havia sido contado, a saber, que ler a Bíblia em tradução é o mesmo que ver TV em preto e branco.

Qual o resultado da experiência de Jacobs? Ele não aceitou o evangelho, embora tenha entrado em contato com ele. Ficou sabendo que, em Cristo, estamos livres das leis cerimoniais. Ele, porém, decidiu seguir fi rme em sua experiência. Tornou-se, como ele mesmo afi rmou em outro momento, um agnóstico reverente ou respeitoso. Descobriu que, embora se pense que o que ocorre é apenas o contrário, uma mudança de comportamento pode resultar numa mudança de pensamento. (Um exemplo disso seria

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UM ANO BÍBLICO: A CURIOSA E BEM-HUMORADA EXPERIÊNCIA...

este: quem visita doentes no hospital acaba tendo uma mentalidade mais compassiva.) Mas, acima de tudo, pela via da prática, Jacobs chegou à importante conclusão teológica de que é impossível cumprir toda a lei ao mesmo tempo. O plano original dele era dar a mesma atenção a todos os mandamentos todos os dias. No entanto, deu-se conta de que isto é impossível. É tão impossível quanto, num exercício de malabarismo, querer manter 700 bolas no ar ao mesmo tempo. Portanto, a conclusão simples é que todos os que dizem seguir a Bíblia ao pé da letra acabam sendo seletivos. Segundo ele, não é possível pôr tudo no prato ao mesmo tempo. Outra conclusão é de que, em se tratando da Bíblia, sempre há alguma interpretação envolvida, mesmo quando se tratam das leis apa-rentemente mais básicas. Portanto, a conclusão de Jacobs é esta: você não deve levar a Bíblia ao pé da letra. Não é novidade, mas, vindo de onde vem, sempre é bem-vindo.

Vilson Scholz

São Leopoldo/RS

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