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IGREJA LUTERANA Revista Semestral de Teologia

Revista Semestral de Teologia - Seminário Concórdia · 2018-07-11 · Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), ... relevância para o

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IGREJA LUTERANARevista Semestral de Teologia

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IGREJA LUTERANA

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DiretorLeonerio Faller

ProfessoresAcir Raymann, Anselmo Ernesto Graff, Clóvis Jair Prunzel, Leonerio Faller, Gerson Luis Linden, Paulo Moisés Nerbas, Paulo Proske Weirich, Paulo Wille Buss, Raul Blum, Vilson Scholz

Professores EméritosDonaldo SchülerLeopoldo HeimannNorberto Heine

SEMINÁRIO CONCÓRDIA

IGREJA LUTERANAISSN 0103-779XRevista semestral de Teologia publicada em junho e novembro pela Faculdade de Teologia do Seminário Concórdia, da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil.

Conselho EditorialGerson L. Linden (Editor), Acir Raymann e Lucas Albrecht

Assistência AdministrativaIvete Terezinha Schwantes e Saulo P. Bledoff

A Revista Igreja Luterana está indexada em Bibliografi a Bíblica Latino-Americana e Old Testament Abstracts.

Os originais dos artigos serão devolvidos quando acompanhados de envelope com endereço e selado.

Solicita-se permutaWe request exchangeWir erbitten Austausch

CORRESPONDÊNCIARevista Igreja LuteranaSeminário Concórdia

Caixa Postal 20293001-970 – São Leopoldo/RSTelefone: (0xx)51 3037 8000

e-mail: [email protected]

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SUMÁRIO

PALAVRA AO LEITOR

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ARTIGOS

“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA 7

Paul R. Raabe

OS 500 ANOS DO NOVUM INSTRUMENTUM DE ERASMO 24

Vilson Scholz

A NATUREZA PASSIVA DA IGREJA - UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE IGREJA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A VIDA DOS CRENTES 29

Timóteo Felipe Patrício

DO QUE A IGREJA LUTERANA JAMAIS PODERÁ ABRIR MÃO 52Jobst Schöne

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA CONFISSÃO DE AUGSBURGO 62Lucas André Albrecht

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS: PUBLICAÇÕES DE 1990 A 2014 81

RESENHAS

PLESS, John T. Martin Luther: Preacher of the Cross 83

Edenilson Gass

SCHEIBLE, Heinz. Melanchthon, uma biografi a 86

Horst Kuchenbecker

(Segue)

IGREJA LUTERANA

Volume 75 – Junho 2016 - Número 1

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VEITH, Gene Edward Jr. Espiritualidade da cruz: os caminhos

dos primeiros evangélicos 87

Timóteo Felipe Patrício

DEVOCIONAIS

SEM MIM VOCÊS NÃO PODEM FAZER NADA! 90Vilson Scholz

OS VERDADEIROS ADORADORES 93Leonerio Faller

ELE VIGIA! VOCÊS ESTAGIAM! 99Rony Marquardt

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PALAVRA AO LEITOR

No ano de 2016 a revista Igreja Luterana celebra 75 anos de existência. É uma data festiva, de gratidão a Deus e de reconhecimento a todos quan-tos têm participado deste empreendimento, sejam os escritores de artigos, sermões, auxílios homiléticos e resenhas, bem como os seus leitores. O desejo da equipe editorial é que esta revista continue a ser instrumento de crescimento na refl exão sobre a palavra eterna de Deus.

Neste número, Timóteo Patrício, pastor da Igreja Evangélica Luterana do Brasil em Duque de Caxias, RJ, compartilha sua pesquisa de conclusão do curso de Especialização em Teologia. Em um tempo de pragmatismo, em que também a igreja cristã é tentada a ver-se mais como uma empresa em busca de resultados do que como o corpo de Cristo, que deriva sua existência do evangelho, Timóteo desenvolve o tema da natureza passiva da igreja, receptora das dádivas do seu Senhor. Lucas Albrecht, capelão da Universidade Luterana do Brasil e por mais de dez anos produtor e apresentador do programa televisivo “Toque de Vida”, oferece elemen-tos da teologia confessional luterana e da arte de escrever e anunciar o sermão (a “Homilética”) como base para a veiculação da mensagem do evangelho por meio da televisão. Paul Raabe, professor de exegese do Antigo Testamento no Concordia Seminary, de St. Louis, escreve sobre um instigante tema na escatologia bíblica – como será a nova criação? A tradução foi feita pelo Dr. Acir Raymann, professor de Antigo Testamento no Seminário Concórdia e Ulbra. O bispo emérito da Igreja Luterana da Alemanha, Dr. Jobst Schöne, em artigo traduzido pelo Rev. Horst Kuchen-becker, pastor emérito da IELB, refl ete sobre elementos fundamentais na teologia luterana, características da confi ssão de fé da igreja luterana, que são dádiva de Deus e compromisso para cada geração desta igreja. Vilson Scholz, professor no Seminário Concórdia e na Universidade Luterana do Brasil e Consultor de Tradução da Sociedade Bíblica do Brasil, lembra uma data marcante um ano antes dos 500 anos da Reforma Luterana – os 500 anos da edição do Novum Instrumentum de Erasmo, obra esta de grande relevância para o estudo do Novo Testamento.

O leitor de Igreja Luterana teve ao longo de muitas edições os “Auxílios Homiléticos”, estudos sobre os textos bíblicos lidos nos cultos e que servem de apoio para o pregador na elaboração de sua mensagem. Nesta edição Igreja Luterana oferece aos leitores um “mapa” dos auxílios homiléticos publicados desde 1990.

As resenhas e sermões publicados nesta edição também oferecem, nos 75 anos de Igreja Luterana, a sugestão de leituras e a refl exão pela proclamação da palavra de Deus em mensagens proferidas no campus do Seminário Concórdia. Desejamos ao estimado leitor uma abençoada leitura.

Gerson L. LindenEditor

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ARTIGOS

“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

Paul R. Raabe1

Uma tira cômica de Calvin e Haroldo mostra Calvin levantando a mão na sala de aula e perguntando à professora: “Professora Hermengarda, tenho uma pergunta sobre essa lição de matemática”. A professora lhe dá a palavra: “Sim?”. Calvin, então, pergunta: “Supondo que, cedo ou tarde, nós simplesmente vamos morrer, qual é o sentido de aprendermos sobre números inteiros?” “Vamos para a página 88, crianças”, diz a professora Hermengarda. Frustrado, Calvin resmunga para si mesmo: “Ninguém gosta de nós, pessoas com a ‘visão do todo’”. Calvin tem razão. Precisamos ser pessoas com a “visão do todo”. Isto signifi ca ter apreço pela grandiosa narra-tiva bíblica que se move da criação à morte e ressurreição corporal de Jesus, daí à futura ressurreição do corpo e fi nal nova criação escatológica.

Minha fi lha me pergunta: “Papai, os animais vão estar no céu?”. Minha resposta imediata era dizer: “Talvez, mas cachorros não”. Entretanto, esta é uma pergunta frequente e uma boa pergunta. Leva à visão do todo. Como é a vida pós-ressurreição? Que tipo de futuro escatológico você apresenta ao seu povo? O que você ensina ao seu povo?

Aonde conduz toda essa metanarrativa? Será que cada um vai perder sua individualidade e ser absorvido numa envolvente unidade? Será que seremos reencarnados como reis ou sapos dependendo de quantas boas obras praticarmos? Será que esta terra será perene e fi cará melhor devido à moderna ciência e tecnologia? Será que o universo repetidamente entrará em colapso e expansão, colapso e expansão? Ou será que a terra será aniquilada e entraremos numa realidade ilocável, não espacial chamada céu? Em nosso futuro corpo ressuscitado andaremos e correremos com nossos pés? Haverá terra fi rma no futuro escatológico?

Nós, luteranos confessionais, aderimos ao lema ad fontes (às fontes). O que o Criador, por meio da sua palavra revelada, tem a dizer sobre o futuro escatológico? Despendamos um tempo para checar alguns textos em ambos os testamentos.

1 Tradução do artigo:“Daddy, Will Animals be in Heaven?” The Future of New Earth. Con-cordia Journal 40 (Spring 2014), p. 148-160. Dr. Paul Raabe é professor de Exegese do Antigo Testamento do Concordia Seminary, em St. Louis, EUA. Tradução feita pelo Dr. Acir Raymann. A publicação deste artigo é feita com autorização do autor e do editor da revista Concordia Journal.

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IGREJA LUTERANA

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DESTRUIÇÃO FUTURA DA CRIAÇÃO CORRUPTA

O que você ensina ao seu povo? Que tipo de futuro você apresenta ao seu povo? É um futuro que pelo seu próprio poder emerge do presente na-turalmente? Pelos avanços na tecnologia e ciência os seres humanos serão capazes de vencer a morte e a decadência? Podemos por nossos esforços estabelecer um ambiente perfeitamente ecológico, uma eco-utopia? Será que a terra continuará para sempre sob o controle humano?

2 PEDRO 3

O universo atual não permanecerá simplesmente como é como também não convergirá de maneira gradativa para a utopia. Ele será destruído. O texto clássico que enfatiza esta destruição vindoura está em 2 Pedro 3.1-13. Cito o comentário de Curtis Giese:

[...] para que vos recordeis das palavras que, anteriormente, foram ditas pelos santos profetas, bem como do mandamento do Senhor e Redentor, ensinado [anteriormente] pelos vossos apóstolos, tendo em conta, antes de tudo: que nos últimos dias escarnecedores virão com seus escárnios, andando segundo as próprias paixões e dizendo: “Onde está a promessa da sua vinda? Porque desde que nossos pais dormiram todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação.” Porque, delibera-damente, esquecem que, de longo tempo, houve céus bem como terra, a qual recebeu sua forma da água e através da água pela Palavra de Deus, pelas quais [água e Palavra] veio a perecer o mundo daquele tempo, afogado em água. Ora, os céus que agora existem e a terra, pela mesma Palavra, têm sido entesourados para fogo, estando reservados para o dia do juízo e destruição dos homens ímpios. Há, todavia, uma coisa, amados, que não deveis esquecer: que, para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos como um dia. Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento. Virá, entretanto, como ladrão o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão descobertas. Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade, esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão! Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça.2

2 GIESE, Curtis P. 2 Peter and Jude: Concordia Commentary. St. Louis: Concordia Publishing House, 2012, p. 161, 184.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

Pedro responde a escarnecedores que afi rmam que a criação sempre foi assim e assim continuará sendo. Giese comenta: “A sua visão do uni-verso é estática. Além do mais, levanta uma questão epistemológica. Os escarnecedores optam por confi ar em suas próprias percepções do que nas promessas de Deus e no testemunho da Escritura”.3 Contra os escar-necedores, Pedro enfatiza três coisas:

1) A criação não é autônoma. O Criador a trouxe à existência a partir do nada e lhe deu forma e contorno.

2) No passado a criação não permaneceu a mesma. Ao contrário, o Criador interveio. Não apenas a criou como também a destruiu. Tem havido uma sucessão de mundos. O mundo pré-diluviano foi destruído pelo Criador usando as águas do dilúvio: “veio a perecer (apollymi) o mundo daquele tempo, afogado em água”.

3) Os céus e terra que agora existem estão sendo “entesourados para fogo, estando reservados para o dia do juízo e destruição dos homens ímpios”. Pedro continua a expandir este terceiro pon-to. O dia do Senhor virá repentinamente e de forma inesperada como ladrão de noite. Então os céus “passarão” (parerchomai) e os elementos4 serão queimados e destruídos (lyo). Então a terra e as obras que nela existem “serão descobertas/encontradas” (heurisko). Há uma questão envolvendo a crítica de texto neste último verbo. Alguns manuscritos trazem “queimadas” (katakaio). Se lermos “serão descobertas/achadas” (heurisko), o que parece mais provável, a referência será à maneira que todas as obras serão expostas, avaliadas e julgadas por Deus no julgamento escatológico.5

Pedro continua, dizendo: “Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça”. Quer ele dizer que a presente criação será aniquilada na sua substância e subs-tituída por uma realidade fundamentalmente diferente sem terra fi rma e sem espaço? Não. A frase “nova terra” não é meramente simbólica. Assim como a criação pré-diluviana foi destruída, mas não aniquilada pelo dilúvio, assim também a presente criação será destruída por fogo

3 GIESE, 2 Peter and Jude, p. 173-174.4 O termo grego stoicheia, “elementos”, designa tanto os corpos celestes como sol, lua e

estrelas quanto os elementos básicos que constituem todo o universo. Cf. GIESE.2 Peter and Jude, p. 189-190.

5 Um bom paralelo encontra-se em 1 Coríntios 3.12-15.

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IGREJA LUTERANA

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mas não obliterada. O adjetivo “novo” (kainos) signifi ca “novo em qua-lidade”, não “novo” no sentido de novel ex nihilo.6

Qual é o problema com a presente criação? A presente criação não é caracterizada por justiça humana (2Pe 3.13). O ímpio mora aqui (2Pe 3.7), e todas as pessoas na terra são pecadoras e carecem de arrependimento (2Pe 3.9). Em 2 Pedro 1.4, Pedro fala da “corrupção das paixões que há no mundo”. Pedro admite a inextrincável conexão entre o pecado humano e a criação em si.7 Segundo Gênesis 3, o “solo” (’adamah) é amaldiçoado por causa do homem/Adão (’adam). Para que o Criador tenha uma criação onde habite a justiça humana, ele deve destruir a presente criação e fazer novos céus e nova terra.

Nestes novos céus e nova terra “habita justiça”. Com tal expressão Pedro refere-se à justiça ativa dos crentes, seu caráter e obras justas, seu “santo procedimento e piedade” (2Pe 3.11). Após a ressurreição do seu corpo, os cristãos estarão continuamente e de forma perfeita praticando justiça.8 O lugar onde tal acontece está na nova terra. O verbo “habitar” (katoikeo), quando usado em relação a pessoas, refere-se à habitação na terra. Pedro não estava pensando numa realidade completamente diferente sem terra fi rma ou espaço. Ele fala do que os cristãos farão na nova terra. Então, novamente a justiça humana estará “em casa”. Nas palavras de Martin Franzmann, a meta fi nal para a criação de Deus “à qual ele certa vez pronunciou Seu ‘muito bom’ (Gn 1.31; 1Tm 4.4), não é extinção mas restauração e transfi guração”.9 Ou, como afi rma Lenski, “Os céus e a terra serão revivifi cados, renovados, purifi cados e aperfeiçoados”.10 Atos 3.21 fala da futura, escatológica “restauração de todas as coisas” – restauração (apokatastesis), não aniquilação. Pedro concorda com Pedro.

OUTROS TEXTOS A RESPEITO DA FUTURA DESTRUIÇÃO

Pedro encoraja seus leitores a lembrar o que foi falado pelos profetas do Antigo Testamento e pelo próprio Jesus, o Senhor e Salvador. Os pro-fetas anunciaram o futuro dia de Yahweh quando a presente criação será

6 O adjetivo “novo” (kainos) não implica uma substância totalmente diferente, única. Por exemplo, conforme 2 Coríntios 5.17, um cristão é uma “nova criatura” (kainektisis) mas continua sendo o mesmo ser humano de antes.

7 Compare, por exemplo, Isaías 24.4-7. 8 Em 2 Pedro 1.1 o apóstolo se refere à justiça passiva da justificação, “aos que conosco

obtiveram fé igualmente preciosa na justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”. Con-fira R. C. H. Lenski, The interpretation of the epistles to St. Peter, St. John, and St. Jude. Columbus: Wartburg Press, 1945, p. 247-253.

9 ROEHRS, Walter R. e FRANZMANN, Martin H. Concordia Self-study commentary. St. Louis: Concordia Publishing House, 1979, s.v. Second Peter 3.

10 LENSKI, R. C. H. The interpretation of the epistles to St. Peter, St. John, and St. Jude. Columbus: Wartburg Press, 1945, p. 350.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

destruída (por exemplo: Is 34.4; 51.6; Jr 4.23-26; Jl 2.30-31; Sf 1.2-3; cf. Sl 102.25-27 = Hb 1.10-12). Alguns textos proféticos falam da criação sendo consumida por fogo (Is 30.30; 66.15-17; Sf 1.18; 3.8). O próprio Jesus falou da futura destruição do presente universo. No seu discurso escatológico, por exemplo, ele afi rma: “Passará (parerchomai) o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão” (Mt 24.35; Mc 13.31; Lc 21.33; cf. Mt 5.18). Assim também afi rma o apóstolo João. Conforme Apocalipse, na segunda vinda de Cristo a terra e os céus vão fugir (Ap 20.11; cf. 6.14); o primeiro céu e a primeira terra passaram (Ap 21.1). A descontinuidade é clara. A criação atual, corrompida pelo pecado, morte e decadência passará.

FUTURA NOVA CRIAÇÃO

O que você ensina ao seu povo? Aonde vai toda essa metanarrativa? Será que o Criador criou a terra para suas criaturas humanas viverem junto com os animais no aqui-e-agora, mas no eschaton futuro aniquilará a terra e dela removerá suas criaturas humanas que nEle creem para viver na sua presença para sempre – sem animais, sem árvores, sem espaço, senão apenas o Deus Triúno com as criaturas humanas e os anjos?11 É o futuro apenas céus, e terra não mais? Que tipo de futuro escatológico você deve apresentar ao seu povo? Quais, afi nal, são as promessas de Deus?

ROMANOS 8

Embora haja destruição para a presente criação, haverá também uma nova criação com signifi cativa continuidade entre ambas. A nova criação do futuro não será uma realidade inteiramente nova sem espaço ou terra. O texto clássico que enfatiza esta continuidade está em Romanos 8.17-23. Do comentário aos Romanos de Michael Middendorf:

e, [visto que somos] fi lhos, também [somos] herdeiros, her-deiros de Deus e coerdeiros de Cristo; se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorifi cados. Pois tenho para mim que as afl ições deste tempo presente não [são] de igual valor [comparadas] com a glória que em nós há de ser revelada. Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos fi lhos de Deus. Porquanto a criação fi cou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória

11 Pelo que entendo, esta parece ser a visão de Johann Gerhard, o clássico dogmático luterano do século 17. Confira seu Loci Theologici, sob de consummatione seculie de vita aeterna. Veja também Robert O. Neff Jr. The Preservation and Restoration of Creation with a Special Reference to Romans 8:18-23. ThD Dissertation, Concordia Seminary, St. Louis, 1980.

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IGREJA LUTERANA

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dos fi lhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjun-tamente, geme e está com dores de parto até agora. E não só ela [criação], mas até nós, que temos as primícias do Espírito, também gememos em nós mesmos, aguardando a nossa adoção, a saber, a redenção do nosso corpo.12

Aqui o apóstolo Paulo estabelece um contraste.13 Contrasta os sofri-mentos do tempo presente com a glória da era por vir. A própria criação tem “ardente expectativa”. O substantivo no versículo 19, apokaradokia sugere a imagem de uma pessoa esticando seu pescoço para frente para enxergar o que está por vir. Esta “criação aguarda com ardente expec-tativa” o futuro escatológico. Paulo usa o verbo apekdechomai para a ardente expectativa que integra a esperança cristã (Rm 8.19, 23, 25; 1Co 1.7; Gl 5.5; Fp 3.20). A criação compartilha a esperança cristã. O apóstolo enfatiza a intensidade destes anseios escatológicos. No versículo 22 sustenta que “toda a criação, conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora”.

Nos versículos 21-22 Paulo explica porque a criação está em ardente expectativa. Pois a criação fi cou sujeita por Deus à vaidade, não volunta-riamente (mataiotes). Ela não pode alcançar seu objetivo. No momento está sob o “cativeiro da corrupção”. Paulo está se referindo a Gênesis 3 onde o Criador colocou a criação sob maldição. Escreve Middendorf: “Por vezes a corrupção da criação é a causa do sofrimento humano; outras vezes a criação sofre devido à ação da humanidade caída”.14 Note-se que Paulo faz distinção entre a criação em si e a “vaidade” e o “cativeiro da corrupção” que ela agora vivencia. Traz à lembrança a distinção enfatizada pela Fórmula de Concórdia, artigo I, a distinção entre a natureza humana em si e o pecado original que a corrompe profundamente.15 A “vaidade” e “corrupção” vão desaparecer, mas não a criação como tal.

A criação foi submetida por Deus à vaidade “na esperança de que tam-bém a própria criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos fi lhos de Deus”. O futuro escatológico da criação em

12 MIDDENDORF, Michael. Romans 1-8. Concordia Commentary. St. Louis: Concordia Publish-ing House, 2013, p. 635, 656.

13 John Reumann argumenta que Romanos 8.19-22 é um fragmento apocalíptico de outra fonte. Segundo Reumann, embora Paulo empregue esse argumento para enfatizar a dimensão já-ainda não, o interesse de Paulo é supostamente com pessoas, não com criação. Contudo, Paulo explicitamente afirma o que os versículos 19-22 atestam ao dizer no versículo 23 “E não somente” a criação geme mas também nós. REUMANN, John. Creation and New Creation: The Past, Present, and Future of God´s Creative Activity. Minneapolis: Augsburg, 1973, p. 98-99.

14 MIDDENDORF, op. cit., p. 670.15 KOLB, Robert e WENGERT, Timothy J., ed. “The Formula of Concord I: Concerning Original

Sin”. In The Book of Concord. Minneapolis: Fortress, 2000, p. 487-491, 531-542.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

si é a liberdade que aguarda os fi lhos de Deus. Não é uma forma diferente de liberdade como a que resulta de aniquilação, como se Deus fosse livrar da sua miséria a criação que geme aniquilando-a. Não, a criação desfrutará a mesma liberdade que será vivenciada pelos fi lhos de Deus: liberdade da corrupção, liberdade da vaidade. A criação em si será glorifi cada com a mesma glória que os fi lhos de Deus irão experimentar.

Paulo sublinha que o destino futuro da criação está amarrado ao futuro destino dos fi lhos de Deus. A criação agora sofre dores de parto até que dê à luz a uma nova criação quando nossos corpos mortais forem ressus-citados dos mortos e glorifi cados. A criação em si tem um futuro glorioso de liberdade. Não apenas a criação como também nós mesmos na medida em que ardentemente aguardamos nosso futuro de adoção como fi lhos de Deus, a redenção do nosso corpo. Assim como o gemido da criação e o nosso gemido estão amarrados, assim também estão amarrados o futuro da criação e o nosso futuro.

APOCALIPSE 2

Junto com a criação, aguardamos a nova criação. Conforme Pedro: “Nós, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2Pe 3.13).

Em Apocalipse, João usa linguagem similar.

E vi um grande trono branco e Aquele que estava assentado sobre ele, de cuja presença fugiram a terra e o céu; e não foi achado lugar para eles [...]. E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já se foram o primeiro céu e a primeira terra, e o mar já não existe. E vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu da parte de Deus, adereçada como uma noiva ataviada para o seu esposo. E ouvi uma grande voz, vinda do trono, que dizia: “Eis que o tabernáculo de Deus está com os homens, pois com eles habitará, e eles serão o seu povo, e Deus mesmo estará com eles [como seu Deus].16 Ele enxugará de seus olhos toda lágrima; e não haverá mais morte, nem haverá mais pranto, nem lamento, nem dor; porque as primeiras coisas passaram. E Aquele que estava assentado sobre o trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve; porque estas palavras são fi éis e verdadeiras.17

Na sua visão, João vê uma nova criação. Os atuais céus e terra fugi-ram, desapareceram e não foi achado lugar para eles (Ap 20.11). João

16 Sobre crítica de texto em relação às palavras autontheos (“seu Deus”), veja BRIGHTON, Louis A. Revelation. St. Louis: Concordia Publishing House, 1999, p. 589.

17 Ibid., p. 580, 588.

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IGREJA LUTERANA

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viu um novo céu e uma nova terra. Viu a Jerusalém celeste descendo para a nova terra (confi ra também Ap 5.12). Naquele dia por vir o céu estará na terra. Apenas Deus pode fazer com que tal aconteça. E o que João conclui a partir disso? Que Deus habitará com os homens, o Criador com suas criaturas humanas (anthropoi). O pressuposto por trás desta afi rmação é que os humanos são criaturas terrenas. Se for o caso de ha-ver comunhão entre Criador e humanos, humanos não ascendem, mas o Criador desce à terra.

Ecoando a afi rmação de Jesus, João diz: “as primeiras coisas passaram” (aperchomai). Então Aquele que estava sentado no trono disse: “Eis que faço novas todas as coisas”. Ambas as afi rmações estão juntas. A segunda afi rmação não diz que Deus faz tudo novas coisas como se criasse tudo ex nihilo, mas que Deus faz todas as coisas (panta) que agora existem novas (kaina). Esta segunda afi rmação nos ajuda a entender a primeira. Quando coisas velhas são tornadas em coisas novas, então as coisas velhas “pas-saram”. Não mais existem como coisas velhas (cf. 2Co 5.17). Brighton co-menta que “Deus não aniquilará a presente criação, jogada fora como lixo, mas antes, por recriação, transformará a velha em nova”.18 João continua, descrevendo a Jerusalém futura e o futuro jardim do Éden com a árvore da vida. Tudo é muito físico e material, um futuro céu na terra.

ISAÍAS 65

A linguagem de Pedro e João sobre “o novo céu e a nova terra” provém de Isaías 65.17-25, o grande vidente de antanho. A tradução é de Reed Lessing no seu comentário sobre Isaías 56-66.

Pois eis que eu crio novos céus e nova terra;

e não haverá lembrança das coisas passadas,

jamais haverá memória delas.

Mas vós folgareis e exultareis perpetuamente no que eu crio;

porque eis que crio para Jerusalém alegria

e para o seu povo, regozijo.

E exultarei por causa de Jerusalém

e me alegrarei no seu povo,

e nunca mais se ouvirá nela nem voz de choro nem de clamor.

Não haverá mais nela criança [de] poucos dias.

Nem velho que não cumpra os seus dias;

porque o jovem morrerá aos cem anos.

18 BRIGHTON, op. cit., p. 601. Brighton faz referência a G. B. Caird. The Revelation of St. John the Divine. New York: Harper and Row, 1966, p. 265.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

E quem errar o alvo dos cem anos será tido como

amaldiçoado.

Eles edifi carão casas e nelas habitarão;

plantarão vinhedos e comerão o seu fruto.

Não edifi carão para que outros habitem;

não plantarão para que outros comam;

porque a longevidade do meu povo será como a da árvore,

e os meus eleitos desfrutarão de todo as obras das suas

próprias mãos.

Não trabalharão em vão,

nem terão fi lhos para a calamidade,

porque[serão] posteridade, bendita do SENHOR,

e os seus descendentes com eles.

E será que, antes que clamem, eu responderei;

estando eles ainda falando, eu os ouvirei.

O lobo e o cordeiro pastarão juntos.

E o leão comerá palha como o boi;

Mas [para] a serpente pó será sua comida.

Eles não farão mal nem dano algum em todo o meu

santo monte, diz o SENHOR.

Isaías anuncia o dia escatológico do Senhor, quando o Senhor vai criar os novos céus e a nova terra. A nova criação excederá tanto a criação atual de maneira que nem mesmo nos lembraremos das coisas passadas. Junto com a nova criação estará uma nova Jerusalém que se alegra no Senhor e o Senhor nela se alegra. Como Isaías em outro lugar enfatiza, a glória do Senhor encherá a terra, e toda a terra conhecerá Yahweh.19

O versículo 20 dá um hipotético: se alguém fosse morrer, não morreria antes dos cem anos. Todos viverão por muito tempo. Antes, em Isaías 25, o profeta anuncia que a morte será engolida (v. 8). Conforme Isaías 65.21-23, o povo de Deus construirá casa, plantará vinhedos e se alegrará com o trabalho das suas mãos. “Não trabalharão em vão” (v.23). A futura nova criação será o reverso da maldição de Gênesis 3, uma nova terra onde o povo de Deus está ativo, realizando atividades construtivas.

Então Isaías repete a imagem dos animais que descrevera em Isaías 11. Quando a nova criação escatológica vier, então “o lobo e o cordeiro pastarão juntos, e o leão comerá palha como o boi” (Is 65.25). Então

19 Veja Isaías 6.3 e 11.9. Sobre 6.3, confira Andrew H. Bartelt.“The Centrality of Isaiah 6 (-8) Within Isaiah 2-12”. Concordia Journal 30 (October 2004), p. 316-335, especialmente 328.

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IGREJA LUTERANA

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predador e presa viverão juntos de forma pacífi ca e harmoniosa. Então os animais carnívoros se tornarão herbívoros. Então os animais predadores “não farão mal nem dano algum em todo o meu santo monte”, diz Yahweh. Na presença de Yahweh, humanos e animais viverão em harmonia. Ha-verá uma nova criação constituída pelo próprio Criador. Por meio do seu profeta, o próprio Criador prometeu nova criação com animais. Não temos base alguma para descartar esta promessa como meramente simbólica. O Criador vai recuperar sua bagunçada criação – os animais inclusive.

TEOLOGIA DA TERRA NO ANTIGO TESTAMENTO

A linguagem de Isaías deve ser entendida na perspectiva da rica teologia da terra no Antigo Testamento.20 Em Gênesis 12, Deus promete a Abrão: “a tua descendência darei esta terra” (v.7). De novo e de novo, Deus repetia esta promessa a Isaque, a Jacó e aos fi lhos de Jacó. Anos mais tarde quando os fi lhos de Jacó/Israel se achavam em escravidão no Egito, Deus desceu para os libertar e os conduzir à terra que lhes prometera dar. Contrário de um deserto, a terra prometida seria quase igual a um novo jardim do Éden:

Porque o SENHOR, teu Deus, te faz entrar numa boa terra, terra de ribeiros de águas, de fontes, de mananciais profundos, que saem dos vales e das montanhas; terra de trigo e cevada, de vides, fi gueiras e romeiras; terra de oliveiras, de azeite e mel; ter-ra em que comerás o pão sem escassez, e nada te faltará nela; terra cujas pedras são ferro e de cujos montes cavarás o cobre. Comerás, e te fartarás, e louvarás o SENHOR, teu Deus, pela boa terra que te deu. (Dt 8.7-10)

Então, por meio de Josué, Deus começa a cumprir a sua promessa. Israel não tomou a terra; Deus a deu a Israel como dádiva imerecida. Israel herdou a terra. Por meio daquela terra, Deus prometeu abençoar seu povo da aliança. A terra foi um presente e instrumento de bênção do Deus de Israel. Ao mesmo tempo, a vida de Israel naquela terra deveria ser distinta. Deus chamara seu povo da aliança para viver na terra andando nos caminhos de Deus, não no caminho das outras nações. Caso imitasse as outras nações, Deus o expulsaria da terra. É terra santa para um povo santo sob um Deus santo.

20 Uma boa introdução sobre a teologia da terra no Antigo Testamento se acha em Elmer A. Martens. God´s Design: a Focus on Old Testament Theology. Grand Rapids: Baker Book House, 1981; Christopher J. H. Wright. An Eye for an Eye: The Place of Old Testament Ethics Today. Downers Grove: InterVarsity Press, 1983.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

O resto da história você conhece. Israel repetidamente rebelou-se até que teve de enfrentar a justa ira de Deus. O norte foi levado a exílio em 732 a.C. e Samaria, sua capital, em 722 a.C. Judá foi exilada em 701 a.C., fi cando apenas Jerusalém. Então, um século mais tarde, em 587 a.C., Jerusalém foi exilada.

AMÓS 9

Mas este não foi o fi m da história. Por meio dos seus profetas, Deus prometera que traria seu povo exilado de volta à terra. Amós 9.11-15 é um bom exemplo. A tradução é de Reed Lessing no seu comentário sobre Amós.

Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi,

repararei as suas brechas;

levantarei as suas ruínas,

restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade;

para que possuam o restante de Edom,

a saber, todas as nações que são chamadas pelo meu nome,

diz o SENHOR, que faz estas coisas.

Eis que vêm dias,

diz o SENHOR,

em que o que lavra segue logo ao que ceifa,

e o que pisa as uvas, [segue logo] ao que lança a semente;

os montes destilarão vinho doce,

e todos os outeiros se derreterão [com grãos].

Restaurarei a restauração do meu povo de Israel;

reedifi carão as cidades assoladas e nelas habitarão,

plantarão vinhas e beberão o seu vinho,

farão pomares e lhes comerão o fruto.

Plantá-los-ei na sua terra,

e, dessa terra que lhes dei, já não serão arrancados,

diz o SENHOR, teu Deus.21

Ao tempo de Amós a casa de Davi era uma tapera pronta a cair. Deus iria derrubar a tapera de Davi e exilar seu povo. Deus prometera, entre-tanto, que iria reedifi car a casa de Davi, restaurar seu povo, incorporar gentios ao seu povo e frutifi car a terra.

21 LESSING, R. Reed. Amos. Concordia Commentary. St. Louis: Concordia Publishing House, 2006, p. 575.

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IGREJA LUTERANA

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Deus começa a cumprir sua promessa de restauração trazendo seu povo do exílio à terra onde construíram suas casas, plantaram seus vinhedos e ornaram seus jardins. Estava claro, porém, que a promessa ainda aguar-dava seu pleno cumprimento. As safras da terra não eram abundantes e o Messias da linhagem de Davi ainda não tinha vindo.

Esta e outras promessas semelhantes tiveram seu pleno cumprimento com a primeira vinda de Jesus e sua igreja. Por dois mil anos temos tes-temunhado a vinda de gentios ao Messias de Israel e o nome de Yahweh a eles proclamado. Na verdade, nós cristãos gentios somos parte desse cumprimento de Amós 9.12 (cf. Atos 15.13-18). Contudo, há ainda um já-ainda não. A promessa aguarda ainda sua plena consumação quando a terra terá safras abundantes e os montes destilarão doce vinho.22

Que faz Jesus com esse tipo de promessa de terra? Ele a amplia. O Salmo 37 prometia que “os mansos herdarão a terra” (v.11); “aqueles a quem o SENHOR abençoa possuirão a terra” (v. 22); “os justos herdarão a terra e habitarão nela para sempre” (v. 29). Jesus expande a promessa ao dizer: “bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra” (Mt 5.5). Jesus promete a futura nova criação escatológica.23 A terra prometida do Antigo Testamento se torna a nova terra escatológica. Atente para Romanos 4.13: “A Abraão e sua descendência coube a promessa de ser herdeiro do mundo [...]”. O mundo se torna a terra de Canaã. À luz do cumprimento em Cristo, “a terra de Canaã original e a cidade de Jerusalém foram nada mais que cumprimento antecipado das promessas de Deus. Como tais, elas funcionam na Escritura como sinal da futura cidade universal na terra renovada, o lugar onde habita justiça”.24

OSÉIAS 2

E o que dizer dos animais? Isaías descreve animais vivendo em paz na futura nova criação. Oséias faz promessa similar em Oséias 2. Deus anunciara que puniria os israelitas idólatras devastando seus vinhedos e fi gueiras permitindo que animais do campo os devorassem (Os 2.12). O Criador pune pela reversão da criação. Mas logo Deus promete abençoar restaurando a criação. Mais adiante em Oséias 2, Deus promete fazer nova aliança, só que esta aliança será com animais e para o benefício de Israel.

22 Semelhantes promessas a respeito da terra enfatizam o mesmo tipo de fecundidade da terra por vir. Veja Horace D. Hummel. Ezekiel 21-48. Concordia Commentary. St. Louis: Concordia Publishing House, 2006, p. 1333-1337.

23 GIBBS, Jeffrey A. Matthew 1.1-11.1. Concordia Commentary. St. Louis, 2006, p. 112.24 HOLWERDA, David E. Jesus and Israel: One Covenant or Two? Grand Rapids: Eerdmans,

1995, p. 112.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

Naquele dia, farei a favor dela aliança com as bestas-feras do campo, e com as aves do céu, e com os répteis da terra; e tirarei desta o arco, e a espada, e a guerra e farei o meu povo repousar em segurança. (Os 2.18)

Esta aliança com os animais relembra ao leitor a aliança após o dilúvio. Deus prometera a Noé e seus fi lhos: “Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca; todos os animais da terra” (Gn 9.9,10). Deus cuida de toda a sua criação, não apenas a humana. Teve muito cuidado em salvar cada espécie de animal por ocasião do dilúvio. Deus inclui animais na sua aliança pós-diluviana. Então, através de Oséias promete uma nova aliança com os animais. Aqui a ênfase recai sobre o caráter benigno deles. Eles não mais irão ameaçar ou ferir o Israel restaurado de Deus.

ESCATOLOGIA PROLÉPTICA: JESUS COM OS ANIMAIS SELVAGENS

E eis que Jesus de Nazaré permaneceu quarenta dias e quarenta noites no deserto e “estava com as feras” (Mc 1.13). Feras (no grego theria) eram vistas tipicamente como perigosas ameaças aos humanos, animais tais como ursos, leopardos, lobos e serpentes venenosas. Na sua condição frágil, vulnerável, Jesus “estava com as feras”. Entretanto, as feras selva-gens do deserto não feriram Jesus. No evangelho de Marcos, a expressão “estar com alguém” indica companhia próxima e amistosa (Mc 3.14; 5.18; 14.67; cf. 4.36).25 Este é um exemplo que John Voelz chama de “escatologia proléptica”. Jesus inaugurou a futura nova criação escatológica à frente do tempo. Como diz Jim Voelz no seu comentário sobre Marcos: “seu estar com as feras selvagens (theria) encarna a nova relação entre os velhos elementos hostis da antiga criação e o povo de Deus”.26 É importante que vislumbremos as promessas do Antigo Testamento via Cristo e o Novo Testamento. À luz de Marcos 1.13 podemos concluir que a promessa do Antigo Testamento de animais pacífi cos não é mero simbolismo. Os dias em que Jesus, o Messias, o último Adão, estava com os animais selvagens forneceram visível promessa que na futura nova criação haverá perfeita harmonia entre as criaturas humanas de Deus e os animais.

25 Veja BAUCKHAM, Richard. “Jesus and Animals II: What did he Practice?”. In Animals on the Agenda: Questions about Animals for Theology and Ethics. Andrew Linzey e Dorothy Yamamoto, ed. Urbana, IL: University of Illinois Press, 1998, p. 47-60, especialmente 54-60.

26 VOELZ, James W. Mark 1-8. Concordia Commentary. St. Louis: Concordia Publishing House, 2013, p. 136-137.

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IGREJA LUTERANA

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EXORTAÇÕES

Os textos bíblicos claramente descrevem um futuro escatológico ca-racterizado tanto por descontinuidade quanto por continuidade. Os dois conjuntos de textos precisam ser enfatizados. A presente criação passará e o Criador criará uma nova criação. Destes textos gostaria de extrair algumas sugestões práticas para os pastores.

Percebo que de maneira frequente tanto na pregação como no ensino não se faz sufi ciente uso do tempo futuro. Uma importante via para se articular a lei é pregar as ameaças, e uma importante via para se articular o evangelho é pregar as promessas. Ameaças e promessas são, por defi nição, declarações do tempo futuro. Cuidado com a escatologia super-realizada. Há ainda um ainda-não. Há coisas na narrativa total de Deus que ainda não aconteceram. Faça uso frequente do tempo futuro.

Ao anunciar as ameaças de Deus, você está alertando os pecadores a retornar do pecado a Deus antes que seja tarde. Alertar é um importante ato discursivo. E ao proclamar as promessas de Deus você estará incul-cando esperança em seus ouvintes de forma que estarão aguardando em ardente expectativa a parusia, o dia da ressurreição, o dia da nova criação. Por meio da sua pregação de ameaças e promessas de Deus, o Espírito Santo cria e fortalece as expectativas escatológicas do povo.

As Escrituras não falam dos cristãos “subindo” por ocasião da ressur-reição do corpo. A ascensão de Cristo não é paradigma escatológico para nós. A descrição bíblica do último dia não é que nós ascendemos ao céu, mas que Cristo, em glória pública e visível, descerá até nós. Mesmo um texto como Filipenses 3.20, que fala da nossa cidadania nos céus, não afi rma que no fi m nós iremos aos céus, mas, sim, que Jesus Cristo virá novamente em glória para nos transformar.27 Assim como Deus desceu até nós e tornou-se carne, assim no último dia Deus em carne descerá até nós. Oremos com Isaías: “Oh! Se fendesses os céus e descesses!” (Is 64.1).

Fale sobre o futuro da maneira que a Escritura fala sobre o futuro. Em vez de usar apenas a palavra “céu” para designar o futuro, fale do futuro como “céus na terra” a la Apocalipse 21. Ou, então, simplesmente diga “a terra” como em “Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra” (Mt 5.5) ou que o povo de Deus “reinará sobre a terra” (Ap 5.10). Em vez de empregar o verbo “ir” dando a ideia de deixar a terra para trás, use expressões bíblicas tais como “herdar a terra”, “herdar o reino”, “entrar na vida eterna”.

27 Veja WRIGHT, N. T. Paul: In Fresh Perspective. Minneapolis: Fortress Press, 2005, p. 143.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

Siga as Escrituras ao descrever a vida na eternidade como ativa, dinâ-mica, envolvendo culto e trabalho e tudo na imediata presença do Deus Triúno. Muitas vezes descrevemos a futura vida eterna como uma chatice. Não é desta forma que a Escritura a descreve.28

ANIQUILAÇÃO OU TRANSFORMAÇÃO

Francis Pieper, na sua magistral dogmática, debate o futuro “fi m do mundo”.29 Ele observa que nossos teólogos luteranos de antanho discor-davam em como entender o “passar” do mundo. Será uma total aniqui-lação segundo a substância ou será uma transformação? Lutero, Brenz, Nicolai e outros ensinavam a transformação, enquanto Johann Gerhard, Quenstedt e Calov ensinavam a aniquilação segundo a substância. Pieper segue Gerhard, preferindo a ideia da aniquilação, mas deixa a questão em aberto.

Parte do meu propósito aqui é reabrir esse debate. Será o fi m da terra fi rma e do espaço? Será o futuro dos crentes no dia da ressurreição do corpo longe da terra nos céus, defi nido não como um lugar, mas “onde Deus se revela na sua glória desoculta, ‘face a face’?30 Tem a futura res-surreição do corpo para os cristãos como paradigma a ascensão de Cristo de sorte que nós também vamos ascender? Leva a ampla narrativa ao objetivo de que ascenderemos à imediata, visível presença de Deus onde não haverá árvores, nem animais, nem terra fi rma ou espaço? Ou é obje-tivo da narrativa uma nova criação, céus e terra onde a imediata, visível presença de Deus habitará no meio do seu povo? Haverá uma nova terra física, terra fi rma com árvores e animais? Terá o povo de Deus trabalho a fazer como mordomos dessa nova criação?

O QUE ESTÁ EM JOGO AQUI?

Há muita coisa em jogo na questão do futuro último da criação em si. Irá o Criador recuperar a sua criação, ou não? Se a terra física, a terra fi rma, for um dia aniquilada e formos viver para sempre com Deus numa realidade completamente alternativa sem espaço, então o Criador acabará descartando a sua criação. Hoekema assim se expressa:

Se Deus tivesse de aniquilar o presente cosmo, Satanás teria obtido uma grande vitória. Pois Satanás teria tido tanto sucesso

28 Para um debate provocativo e desafiador sobre como a Escritura descreve a futura nova criação, veja Randy Alcorn. Heaven. Carol Stream, IL: Tyndale, 2004.

29 PIEPER, Francis. Christian Dogmatics III. St. Louis: Concordia Publishing House, 1953; original: Christliche Dogmatik III publicada em 1920, p. 542-543.

30 PIEPER, op. cit., p. 553.

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IGREJA LUTERANA

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na devastadora corrupção do presente cosmo e da terra atual que Deus não poderia fazer outra coisa senão riscar totalmente a existência dela. Satanás, contudo, não obteve tal vitória. Pelo contrário, Satanás foi decisivamente vencido. Deus revelará as dimensões plenas dessa derrota quando renovar esta mesma terra na qual Satanás enganou a humanidade e fi nalmente banir dela todos os resquícios das maléfi cas maquinações de Satanás.31

No último dia o Criador irá recuperar sua criação corrompida assim como irá recuperar suas criaturas humanas pecadoras. Como enfatiza Romanos 8, o futuro da criação em si está amarrado ao futuro dos fi lhos de Deus.

Os textos bíblicos que vimos estão claramente do lado da nova criação. Isto é verdade especialmente se deixarmos que o Antigo Testamento tenha palavra nesse debate. As Escrituras do Antigo Testamento nos mantêm com os pés no chão.

Em toda parte, elas pressupõem e afi rmam a bondade da cria-ção de Deus. Os antigos israelitas eram um povo pé-no-chão, em grande parte agricultores e donos de ovelhas e cabritos. Alegravam-se com a sua vida física concreta. Sua esperança não era tornar-se deifi cados ou divinizados, mas viver em comunhão com YHWH de maneira humana plena, do jeito que o Criador os fez e pretendia que fossem. Viver debaixo do teu próprio vinhedo e fi gueira, apreciar os frutos dos teus próprios campos, degustar o vinho da tua própria videira – esta é a vida boa. “Se fi car me-lhor, estraga”. Ninguém chanfrado nas telúricas Escrituras a.C. seria tentado ao Gnosticismo, Dualismo platônico, Docetismo, asceticismo ou espiritualismo, alternativas prevalentes hoje como jamais foram.32

CONCLUSÃO

Vocês cristãos têm um futuro brilhante a sua frente. O Senhor Jesus voltará visivelmente em glória e transformará o seu corpo humilde para ser igual ao seu corpo glorioso. Então ele dirá a vocês, suas ovelhas: “Vinde, benditos de meu Pai! Herdai o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo”. E você entrará na nova e magnífi ca terra prome-tida, a nova criação, onde a colheita será abundante, os rios destilarão com vinho novo e o lobo repousará com o cordeiro. Então você verá o seu

31 HOEKEMA, Anthony A. The Bible and the Future. Grand Rapids: Eerdmans, 1979, p. 281.32 RAABE, Paul R. “Why the BC Scriptures Are Necessary for the AD Church”. Lutheran Forum

(Summer 1998), p. 11-12.

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“PAPAI, OS ANIMAIS VÃO ESTAR NO CÉU?” A FUTURA NOVA TERRA

Criador e Salvador como ele é, face a face. Então o nome de Deus será santifi cado de maneira perfeita, seu reino virá em toda a sua plenitude e sua vontade será realizada de forma perfeita na terra. Que futuro de eterna alegria e felicidade! Vem, Senhor Jesus, vem depressa!

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OS 500 ANOS DO NOVUM INSTRUMENTUM DE ERASMO

Vilson Scholz1

Com os olhos voltados para 2017, ano do quinto centenário das 95 teses de Lutero, facilmente se pode esquecer, ainda em 2016, outra data comemorativa importante, a saber, os 500 anos do Novo Testamento editado por Erasmo de Roterdã (1467/9 - 1536). Mas a data não pas-sou totalmente despercebida. A revista The Bible Translator, publicada pelas Sociedades Bíblicas Unidas, preparou um número especial, o de abril de 2016, dedicado ao Novo Testamento que foi editado por Erasmo e publicado em 1516. Nesse número aparece, entre outros, um artigo do renomado crítico textual John Keith Elliott e também de Henk Jan de Jonge, um especialista em Erasmo. Como a maioria dos nossos leitores difi cilmente terá acesso a esse número da revista The Bible Translator, julgamos interessante compartilhar e comentar alguns dados colhidos da leitura desses artigos.

MAIS QUE EDIÇÃO GREGA, UMA TRADUÇÃO LATINA

O primeiro dado interessante é que essa edição do Novo Testamento foi intitulada Novum Instrumentum (Novo Instrumento), e não Novo Tes-tamento (em latim ou grego). Na verdade, só passou a se chamar Novum Testamentum a partir da segunda edição, que é de 1519. O fato de o título estar em latim já deveria levar o leitor a perguntar se aquela era de fato uma edição do Novo Testamento Grego. Na intenção de Erasmo, não foi. Ele queria mesmo apresentar uma nova tradução latina do Novo Testamento. A Vulgata havia reinado sozinha durante mais de mil anos. Erasmo preparou uma tradução concorrente à Vulgata, adotando um latim mais renascentista. Queria não tanto desbancar a Vulgata, o que teria sido muita pretensão, mas corrigir essa tradução que, na opinião dele, havia sido alterada com o passar do tempo. Neste sentido, Erasmo se via como um novo Jerônimo, inclusive pela autorização e recomendação papal que obteve para essa edição. Para justifi car suas decisões tradutórias, espe-cialmente as divergências em relação à Vulgata, Erasmo publicou também o texto grego. Para fi ns de registro, é preciso acrescentar que a primeira publicação de um Novo Testamento Grego apenas com o texto grego foi

1 Dr. Vilson Scholz é professor do Seminário Concórdia e ULBRA e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil

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feita por Nicholas Gerbel, em 1521. Fosse hoje, seria considerada uma edição pirata, pois Gerbel simplesmente imprimiu o texto grego editado por Erasmo, sem dar crédito a ele.

O LIVRO COMO TAL

O Novum Instrumentum é um livro de 1027 páginas. A impressão foi feita em Basileia, Suíça, na tipografi a de Johannes Froben, que levou quatro meses e meio para concluir a tarefa (de meados de outubro de 1515 até o início de março de 1516). O livro contém uma nova tradução latina de todo o Novo Testamento, uma edição do texto grego e um longo comentário de Erasmo. Nesse comentário, que ocupa metade das páginas, Erasmo explica e justifi ca a sua tradução latina. À luz disto, pode-se dizer que o Novum Instrumentum é uma Bíblia de estudo destinada a um público erudito. A tradução de Erasmo e o texto grego aparecem em colunas paralelas, o grego na coluna da esquerda e o latim na coluna da direita.

A primeira edição desse Novo Testamento vendeu mil e duzentos exemplares, algo espantoso para aquela época. Erasmo preparou mais quatro edições (1519, 1522, 1527, 1535). A segunda edição, de 1519, que vendeu mais de dois mil exemplares, é importante por ter sido usada por Lutero para a sua tradução do Novo Testamento ao alemão (o assim chamado Septembertestament), em 1522.

A TRADUÇÃO LATINA DE ERASMO

A tradução de Erasmo foi a primeira tradução latina do Novo Testamento em mais de mil anos. Com essa tradução, Erasmo ajudou a mostrar que a Bíblia que se usava na época, vista como irretocável, era na verdade uma tradução. Tudo indica que Erasmo não tinha uma tradução latina pronta, concluída, na forma de um documento independente, quando chegou a Basileia em 1515. O que ele tinha em mãos era um exemplar da Vulgata com anotações manuscritas, que ele entregou a Froben, para a publicação.

Erasmo via o texto grego como a norma para a interpretação e tradução correta do Novo Testamento. Nisto ele tinha razão. O problema foi que os manuscritos gregos disponíveis não eram os melhores e mais antigos manuscritos. No entanto, fi el a esse princípio de seguir os manuscritos gregos, Erasmo acabou incluindo em sua tradução a doxologia do Pai-Nosso (Mt 6.13), mesmo estando convencido de que se tratava de uma interpolação e que o texto original era a leitura mais breve que aparecia na Vulgata. Cabe acrescentar que, neste ponto, Lutero seguiu Erasmo, ao incluir a doxologia na tradução, deixando-a, porém, sem explicação nos Catecismos.

OS 500 ANOS DO NOVUM INSTRUMENTUM DE ERASMO

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IGREJA LUTERANA

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Um dado a ressaltar é que, em sua tradução, Erasmo eliminou a mul-tiplicação de sinônimos que se verifi ca na Vulgata, produzindo o que se chama de “tradução concordante”. Em João 1.7-8, por exemplo, o termo grego para “luz” foi traduzido, na Vulgata, inicialmente por lumen (v.7) e depois por lux (v. 8). Erasmo eliminou essa discordância. Além disso, tomou decisões ousadas, como trocar sacramentum (sacramento) por mysterium (mistério), em Efésios 5.32, algo que foi visto como um ataque à visão sacramental do matrimônio.

A EDIÇÃO DO TEXTO GREGO

Quanto ao texto grego dessa edição, pode-se dizer que foi o primeiro Novo Testamento Grego publicado, no sentido de distribuído ao público. Porque o primeiro Novo Testamento Grego impresso foi o da Poliglota Complutense, que estava pronto em 1514, mas só seria lançado ou en-tregue ao público em 1522, como o quinto volume dessa Bíblia poliglota. O que contribuiu para retardar o lançamento do Novo Testamento Grego da Poliglota Complutense foi o fato de que Froben conseguiu um embargo imperial, concedido pelo Imperador Maximiliano I, que impedia a importa-ção de qualquer outra edição do Novo Testamento grego durante quatro anos (isto é, até 1520).

Embora seja bem provável que Erasmo tenha consultado manuscritos gregos durante a sua permanência na Inglaterra no começo do século XVI (lecionou em Cambridge e Leicester), ele não levou consigo nenhum manuscrito grego quando se dirigiu a Basileia, em 1515. Felizmente ele foi à cidade certa, pois havia manuscritos gregos em Basileia. Vários ma-nuscritos gregos do Novo Testamento haviam sido doados ao mosteiro dominicano em 1443. Mas não havia nenhum manuscrito que contivesse todo o Novo Testamento. Isso teria sido muito difícil de acontecer, na medida em que dos mais de 5000 manuscritos gregos do Novo Testa-mento disponíveis hoje apenas uns 60 contêm todos os 27 livros do Novo Testamento. Simplesmente não era comum, nem prático, copiar todos os livros do Novo Testamento num volume só. Geralmente havia quatro volumes: Evangelhos, Apóstolos (isto é, Atos e Epístolas Católicas), Pau-linas, e Apocalipse.

Erasmo fez a edição a partir de basicamente sete manuscritos: um manuscrito do século XII que continha Evangelhos, Apóstolos e Paulinas; dois manuscritos dos Evangelhos, um do século XII e outro do século XV; dois manuscritos que continham Apóstolos e Paulinas, um do século XII e outro do século XV; e um manuscrito contendo apenas as Paulinas, datado do século XI. Por fi m, para o Apocalipse, Erasmo dispunha de um manuscrito do século XII, que lhe havia sido emprestado por Reuchlin.

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No caso do Apocalipse, e apenas aqui, Erasmo havia pedido a um auxiliar que fi zesse uma transcrição do texto grego, para ajudar o tipógrafo em seu trabalho. Quanto aos demais livros, Erasmo fez algumas observações nos próprios manuscritos que entregou ao impressor.

A IMPORTÂNCIA DESSA PUBLICAÇÃO DE ERASMO

O Novum Instrumentum de Erasmo causou um impacto duradouro sobre o estudo do Novo Testamento. Entre outras coisas, alterou a coloca-ção do livro de Atos dos Apóstolos dentro do cânone. Até então, este livro encabeçava a seção dos Apóstolos (Tiago, Pedro, João e Judas). Erasmo, querendo aproximá-lo ao máximo de Lucas, sem fazer dele um intruso entre os Evangelhos, acabou colocando-o entre João e Romanos.

Mas este é apenas um detalhe. A infl uência maior acabaria sendo na área do texto grego do Novo Testamento. Embora não fosse sua intenção primária publicar um Novo Testamento Grego, Erasmo acabou criando aquele que viria a se tornar o textus receptus do Novo Testamento. Esse texto foi usado por Lutero (1522), pelos tradutores da King James Version (1611), por João Ferreira Annes de Almeida (1681) e por todos os demais tradutores do Novo Testamento até meados do século XIX. Convém lembrar, no entanto, que a designação textus receptus não re-monta a Erasmo; ela surgiu a partir de uma publicação do mesmo texto de Erasmo, feita pelos irmãos Elzevir, em 1633, e que, no Prefácio, traz a seguinte frase latina (em meio a um texto mais longo): textum ergo habes, nunc ab omnibus receptum (portanto, tens em mãos o texto que agora é aceito por todos). Mesmo sem querer, Erasmo criou o textus receptus e acabou difundindo um texto grego de qualidade inferior, sem que se possa culpá-lo por isso, visto que, na época, só teve acesso a manuscritos do tipo bizantino.

Um detalhe sempre de novo lembrado é que, para os últimos seis versículos do Apocalipse (Ap 22.16-21), Erasmo não dispunha de texto grego. O único manuscrito grego de que dispunha, conhecido hoje como manuscrito 2814, e que lhe havia sido emprestado pelo famoso hebraísta Johannes Reuchlin, não trazia esse texto. (A última página de um livro sempre é a mais vulnerável e, no caso daquele manuscrito, acabou se perdendo.) Sem alternativa, Erasmo fez a tradução do latim ao grego. Nesse processo, acabou criando leituras que não têm nenhuma repre-sentação em qualquer manuscrito grego. É o caso de “livro da vida” em lugar de “árvore da vida”, em Ap 22.19, um erro que Lutero incorporou em sua tradução (posteriormente corrigido), mas que sobrevive na King James Version e em edições como Almeida Corrigida Fiel (porque as edi-ções antigas de Almeida, que seguem o textus receptus, trazem “livro da

OS 500 ANOS DO NOVUM INSTRUMENTUM DE ERASMO

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vida”). Essa confusão foi criada no latim, pois existe grande semelhança entre ligno (árvore) e libro (livro).

Além disso, também em Atos 9.5-6, Erasmo criou um texto grego mais longo a partir do texto latino (“ele te dirá o que deves fazer”). Este texto mais longo foi incorporado na King James Version e aparece também na Almeida Corrigida Fiel, que, neste caso, de fi el não tem absolutamente nada.

Um caso que mereceria um estudo à parte, como de fato ocorre no nú-mero da revista The Bible Translator mencionado no início, é o tratamento dado do texto de 1João 5.7-8, ou seja, a não inclusão da referência às três testemunhas no céu: o Pai, a Palavra e o Espírito Santo. Ainda hoje essa omissão é vista como suposta tentativa de negar a Trindade, o que é totalmente infundado. Na época de Erasmo foi vista como promoção do ponto de vista ariano (isto é, como negação da divindade de Cristo). Erasmo não incluiu essa frase nas duas primeiras edições do Novo Tes-tamento por não tê-la encontrado em nenhum manuscrito grego. Aqui é preciso destacar que Lutero, que se valeu da segunda edição de Erasmo, questionou a canonicidade desse texto. Além de razões teológicas, Lutero tinha a seu favor o “Nestle-Aland 28” de seu tempo, ou seja, a mais re-cente edição do texto grego. Erasmo não havia feito nenhuma promessa de incluir essa frase em sua edição. No entanto, como, para a terceira edição, chegou às suas mãos um manuscrito contendo esse texto mais longo, Erasmo, para silenciar os seus críticos, acabou fazendo a inclusão desse texto que muitos conhecem por Comma Iohanneum. E o resultado disso é sentido até os dias de hoje, embora seja a questão crítico-textual mais fácil de resolver: nenhuma chance de ser original, pois só aparece em manuscritos bem recentes, nos quais foi incluído por infl uência do texto latino.

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A NATUREZA PASSIVA DA IGREJA – UMA ANÁLISE DO CONCEITO DE IGREJA E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A VIDA DOS CRENTES1

Timóteo Felipe Patrício2

RESUMO

O objetivo do presente artigo é propor a passividade como caracterís-tica essencial da igreja. Por meio da análise de referenciais sistemáticos e bíblicos são apontados aspectos básicos do conceito de igreja para demonstrar sua passividade. A igreja existe a partir da ação de Deus, em Cristo, pelo seu Espírito, por meio da Palavra. O crente é puramente passivo da ação de Deus para pertencer a ela. Tal noção é signifi cativa diante da tendência – suscitada pelo pecado – de considerar a igreja como oriunda de iniciativa humana.

Palavras-chave: Igreja; passividade; evangelho; sacramentos.

ABSTRACT

The purpose of this article is to propose the passivity as an essential characteristic of the church. Through the systematic and biblical analysis of references are pointed out basic aspects of the church concept to demons-trate their passivity. The church exists from the action of God in Christ, by his Spirit, through the Word. The believer is purely passive of God’s action for belonging to it. Such a notion is signifi cant facing the trend – raised by sin – of considering the Church as originated from human initiative.

Keywords: Church; passivity; gospel; sacraments.

1 Artigo apresentado à Universidade Luterana do Brasil como requisito para conclusão de Pós-Graduação Lato Sensu, especialização em Ministério Pastoral.

2 Timóteo Felipe Patrício possui graduação de Bacharel em Teologia pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA (2013) e Especialista em Teologia e Ministério Pastoral, também pela Ulbra (2015). E-mail: [email protected]. Orientação por Paulo Wille Buss, o qual possui graduação em teologia pelo Seminário Concórdia (1977), estudos em Ciências Sociais pela UFRGS (1975-1979), estudos em História pela Faculdade Porto-Alegrense (1977-1979), mestrado e doutorado em História da Igreja pelo Concordia Seminary de Saint Louis, EUA. Atualmente é professor titular da Universidade Luterana do Brasil e do Seminário Concórdia. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em História da Igreja.

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INTRODUÇÃO

Conceitos facilmente podem ser deturpados. É assim com o conceito de igreja. A situação que levou à reforma luterana envolvia uma distor-ção do conceito bíblico de igreja que afastava as pessoas de Cristo – o fundamento de sua fé. Os cristãos eram escravizados por uma estrutura eclesiástica, cuja cabeça era o papa, que constituía uma barreira para o conforto procedente do evangelho. A fé simples não tinha espaço diante de uma série de exigências que eram necessárias para que os crentes fossem considerados membros da igreja. De acordo com o que se pro-punha, estar em dívida para com essas exigências signifi cava não ter comunhão com Deus.

Uma situação tal como aquela pode ser repetida, uma vez que a natu-reza corrompida dos seres humanos que a condicionaram é a mesma até o fi m dos tempos. Se não nos mesmos termos, é possível que, de alguma forma, Cristo volte a fi car em segundo plano e o ser humano assuma o lugar principal no estabelecimento da comunhão com Deus. Talvez seja até conveniente dizer que isso acontece constantemente, sendo preciso que haja arrependimento e fé, de modo que o crente desista de sua justiça própria e se apegue novamente a Cristo.

Para o conceito de igreja, esta deturpação da verdade consiste em considerá-la como organização que parte da iniciativa humana. Nestes termos, o ser humano é ativo no estabelecimento, no crescimento e na manutenção da igreja. O que defi ne e determina quem pertence a ela é formado a partir da vontade e da razão humanas.

O que se tem a partir da Palavra de Deus, no entanto, é diferente. A igreja é de Deus e, portanto, é Ele quem determina o que ela é. Deus é o único ativo na criação e manutenção da igreja. Esta atividade ele efetua através de sua Palavra, que também é oferecida e concedida nos sacra-mentos – Batismo e Santa Ceia. O crente é puramente passivo em todo o processo. Sua certeza do favor de Deus procede unicamente do que Cristo fez e faz por ele e lhe é conferida pela obra do Espírito Santo.

Através da pesquisa em referenciais sistemáticos e bíblicos, algu-mas características básicas da igreja serão apontadas, para demonstrar em pormenores como esta passividade se estabelece. De acordo com isso, num primeiro momento, unidade, catolicidade, visibilidade, ocul-tamento, santidade e pecaminosidade serão tomados como aspectos essenciais da igreja. Na segunda parte do artigo, estes aspectos serão considerados na apresentação do modo de existência da igreja, a partir da Palavra de Deus. Esta verdade será proposta contra o pano de fundo da tendência existente de considerar a igreja como fruto da ação e da vontade humanas.

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ECLESIOLOGIA BÁSICA

Unidade e Catolicidade

A unidade e a catolicidade são dois aspectos relevantes nas formu-lações sobre a igreja ao longo da História. A consciência dos cristãos a respeito de si mesmos parece ter considerado que são aspectos essenciais que precisam ser mantidos lado a lado. Dada esta importância, é preciso abordá-los nas considerações pretendidas pelo presente artigo.

O uso da palavra “igreja” (ekklesia), no Novo Testamento, mostra que o termo pode ter diferentes signifi cados.3 Basicamente chamam a atenção duas ideias que estão envolvidas. A Igreja de um local é identifi cada como sendo a igreja. A igreja se manifesta em congregações locais. Há, assim, a menção à igreja de determinado local como, por exemplo, quando se fala da “igreja de Antioquia” (Rm 16.1); da “igreja de Cencreia” (At 20.28); da “igreja que está em Corinto” (1 Co 1.2); da “igreja dos tessalonicenses” (1 Ts 1.1). É interessante que até mesmo uma comunidade que se reúne em uma casa pode ser chamada de Igreja (Cl 4.15, Fm 2). No entanto, todos os crentes de todos os lugares são a igreja (Ef 1.22).4 De acordo com isso, é preciso notar que a amplitude da realidade da igreja para além de uma comunidade local não signifi ca que ela resulta da adição de comunidades particulares. Cada comunidade representa toda a igreja.5 É assim que Paulo identifi ca a igreja como sendo “de Deus” (At 20.28) e pode falar de Cristo como sendo “o cabeça da igreja” (Ef 5.23).

L. Coenen, a partir do livro de Atos, diz que a igreja “é uma só, em todo o mundo, e, ao mesmo tempo, é plenamente presente em todas as assembleias individuais [...]. Lucas, portanto, pode falar no singular igualmente da igreja em geral (At 8.3) e da ekklesia ‘por toda a Judeia, Galileia e Samaria’ (9.31)”.6 A partir do que Paulo manifesta em suas cartas, Guthrie afi rma: “o padrão paulino para a igreja parece ser que cada grupo local era uma igreja de Deus, mas nenhum deles podia fi car isolado dos demais”.7 As pessoas que passam a pertencer à ekklesia não perdem sua cidadania terrena, continuando a ser identifi cadas pela posição ou ordem

3 SCHOLZ, V. Reflexões introdutórias sobre o conceito de igreja no Novo Testamento. In: O povo de Deus: estudos teológicos em homenagem ao Dr. Acir Raymann pelos 40 anos de Seminário Concórdia. Porto Alegre: Concórdia, 2014, p.307.

4 Ibid., p.308.5 SCHMIDT, K. L. Igreja. In: A Igreja no Novo Testamento. Trad: Helmuth Alfredo Simon.

São Paulo: ASTE, 1965, p.21. 6 COENEN, L. Igreja. In: Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento (DITNT).

Organizado por Colin Brown e Lothar Coenen. Tradução de Gordon Chown. São Paulo: Vida Nova, 2000, p.996.

7 GUTHRIE, D. Teologia do Novo Testamento. Trad: Vagner Barbosa. São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p.748.

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social a que pertencem. Elas continuam a ser de determinado local, mas entram em um novo relacionamento que as interliga a “concidadãos” de todas as regiões do mundo.8

É preciso, pois, analisar o que constitui essa unidade da igreja que se expande por diversas localidades e se manifesta em comunidades locais. Há algo que une os grupos de cristãos que se reúnem em diversos lugares. Esse elo é o fundamento da vida cristã: Cristo. A igreja “é uma só igreja, porque o Senhor da igreja é um só”.9 Trata-se de algo óbvio, mas que por isso não deixa de ser essencial. Todas as formulações a respeito de igreja jamais podem deixar isso de lado.

A igreja se constitui de uma unidade, existente em torno de um só cabeça que é Cristo Jesus. Como bem defi niu Inácio de Antioquia, “onde está Jesus Cristo, aí está a Igreja católica”.10 As palavras de Paulo em sua primeira carta aos coríntios deixam bem claro que a vontade de homens não pode estabelecer fundamento para a comunhão dos cristãos. Ele foi o responsável por levar o Evangelho até os coríntios. Diante da informação de que havia contendas entre os cristãos daquele lugar, ele aponta para o conteúdo de sua pregação. Então trata de deixar claro que não anunciou alguma mensagem constituída de sabedoria humana, mas a Jesus Cristo crucifi cado (1 Co 2.2). Nenhum outro fundamento poderia ser lançado (1 Co 3.11). Esta verdade constituía a base para que a igreja estivesse em Corinto, em comunhão “com todos os que em todo lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (1 Co 1.2).

A realidade acerca de Cristo está inseparavelmente ligada à realidade da igreja. A consciência da existência da igreja surgiu na comunidade cristã primitiva enraizada no fato de que alguns dos discípulos se tornaram tes-temunhas dos aparecimentos de Jesus após a ressurreição.11 A partir da obra completa de Cristo, o tempo da salvação é inaugurado e a igreja surge como comunidade que se alimenta dos benefícios desta obra de Cristo. A doutrina a respeito da igreja formulada por Paulo inclui a igreja no mistério de Cristo. Nas fórmulas empregadas por Paulo sobre o assunto, “Cristologia é Eclesiologia, e vice-versa”.12 Um dos textos que melhor evidencia a íntima relação entre Cristo e sua igreja é o do relato da conversão de Saulo em Atos. Saulo perseguia a igreja, e no caminho para Damasco, ele se encon-tra com Cristo, que lhe diz: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (At 9.5).

8 COENEN, L. Op. Cit. p.992. 9 Ibid., p.994. 10 INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Esmirnenses. In: GOMES, Cirilo Folch. Antologia dos

santos padres. 2.ed. São Paulo: Paulinas, 1980, p.43.11 COENEN, L.Op. Cit. p.991. 12 SCHMIDT, K. L. Op. Cit. p.26.

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Esta identifi cação de Cristo com sua igreja é posteriormente refl etida nas formulações de Paulo sobre o tema, quando defi ne a igreja como um corpo que tem Cristo como cabeça (1 Co 12; Ef 5).

As deduções a partir da linguagem a respeito da igreja no Novo Testa-mento dão base para a afi rmação de dois aspectos, confessados ao longo da história. O Credo Niceno confessa a “una, santa, católica, apostólica”. Os termos desta fórmula em destaque aqui apontam para a complexidade do termo ekklesia. A igreja é uma só, mas é manifesta em diversas comu-nidades locais. Certamente, aquilo que propõem os confessores luteranos expressa bem esta realidade. Diz a Apologia da Confi ssão de Augsburgo, Artigos VII e VIII, parágrafo 10:

E diz (o credo) “igreja católica”, a fi m de não entendermos que a igreja é governo externo de certas nações, mas, antes, homens dispersos pelo orbe inteiro, e que estão acordes quanto ao evange-lho, e têm o mesmo Cristo, o mesmo Espírito Santo e os mesmos Sacramentos, quer tenham as mesmas tradições humanas, quer tenham tradições humanas dessemelhantes.13

Portanto a igreja é católica no sentido de estar disposta pelo mundo inteiro. A Igreja é formada por todos os santos, de todos os lugares e de todos os tempos. Esta defi nição é necessária a partir da conceituação a respeito do que funda e mantém a igreja, a saber, a Palavra de Deus. Dessa forma, a defi nição de igreja parte do alto, e não de baixo. Isso não signifi ca a submissão a uma ordem eclesiástica que defi ne o que cada cristão deve fazer para estar na igreja e, portanto, ser membro do corpo de Cristo. A maneira como Paulo propõe a fi gura do corpo não permite entender o mesmo como sendo mera sociedade de homens. “Partindo de pressupostos sociológicos não é possível compreender o que signifi ca e quer signifi car a ‘assembleia de Deus em Cristo’”.14 A igreja vem do alto na medida em que é criada e mantida unicamente pelo próprio Deus, de acordo com os meios pelos quais Ele trata com o ser humano.15 A igreja é “a mãe que gera e carrega a cada cristão através da Palavra de Deus, que ele revela e prega”.16

Aqui é plenamente visível a natureza passiva da igreja. Não há como formular princípios humanos que estabeleçam o que signifi ca fazer parte da igreja. Isso é o que acontece em associações humanas. Filiar-se a

13 Apologia, VII, 10. 14 SCHMIDT, K. L. Op. Cit. p.29. 15 ELERT, W.Op. Cit., p.285. 16 CM, Credo, 42.

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determinado grupo social implica assumir a responsabilidade por determi-nados princípios que demarcam os limites de ação para a continuidade de pertença ao mesmo. Quando a igreja entende-se como um clube religioso, formado pela adesão voluntária de indivíduos, ela se afasta de seu sentido bíblico. A igreja de Deus é uma igreja criada por Ele, por meio de Cristo. Para pertencer à igreja é preciso ter fé no Filho de Deus. Esta fé não é criada ativamente pelos membros do corpo de Cristo, mas operada pelo Espírito Santo, pelos meios da graça. Afi nal, não é possível tornar-se membro do corpo de Cristo, mas apenas ser tornado membro do mesmo.

A Palavra de Deus vem em primeiro lugar, pois ela é o princípio pelo qual Deus cria e mantém a sua igreja. Esta palavra contém como verdade central a obra de Cristo por toda a humanidade. O elemento central para a unidade da igreja é o próprio Cristo. Desse modo, “para a verdadeira unidade da igreja cristã é sufi ciente que o evangelho seja pregado unani-memente de acordo com a reta compreensão dele e os sacramentos sejam administrados em conformidade com a palavra de Deus”.17 De acordo com isso, a catolicidade da igreja existe porque Cristo envia seus discípulos para todas as nações, a fi m de que todos saibam que estão reconciliados com Deus.18 Da mesma forma, é possível falar que a catolicidade da igreja se fundamenta na catolicidade de seu Senhor, “[...] que está presente e ativo onde quer que o Evangelho é pregado segundo a sua comissão e onde os sacramentos são administrados”.19

“A igreja é uma unidade interna que engloba todos os crentes”.20 O princípio da catolicidade parece difi cultar o conceito de unidade. “Uni-dade e catolicidade estão, de fato, sempre em contraste quando vistos da perspectiva da história da Igreja”.21 Mas esta unidade não deve ser procurada em aspectos humanos e externos. Unidade e catolicidade man-tidas lado a lado delimitam um conteúdo de fé. “A única, santa, católica e apostólica Igreja está para ser crida e é confessada na mesma fé que confessa o Deus Triúno”.22 Diz Lutero, no Catecismo Maior: “Creio que existe na terra um santo grupinho e uma congregação compostos apenas de santos, sob uma só cabeça, Cristo[...]”.23 Desse modo, o que une a

17 CA, VII, 2.18 SCHLINK, E. Theology of the Lutheran Confessions. Philadelphia: Muhlenberg, 1961,

p.208.19 Idem: “who is present and active wherever the Gospel is preached according to his com-

mission and the sacraments are administered”.20 ELERT, W. Op. Cit. p.277: “The church is an inner unity that encompasses all believers”.21 SCHLINK, E. Op. Cit. p.205: “unity and catholicity are indeed always in contrast when

viewed from the standpoint of church history”. 22 SCHLINK, E. Op. Cit. p.205: “The one, holy, catholic and apostolic church is to be believed

and is confessed in the same faith which confesses the triune God”. 23 LUTERO, CM, II, 51.

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igreja são Palavra e Sacramentos, que são os meios pelos quais Cristo se dá aos seus. A unidade é criada e mantida pelo Espírito Santo, por meio da Palavra de Deus.24 A unidade verdadeira é uma unidade espiri-tual, baseada na justiça de Cristo da qual a fé se apropria.25 Assim, “a unidade e a catolicidade da igreja são idênticos na unidade do Filho de Deus para quem todos os homens estão sujeitos, e com isso também a unidade do Espírito Santo que cria toda fé em Jesus Cristo e sem a qual não há santo na terra”.26

Sempre houve a percepção de que a igreja, embora composta de diversas comunidades, esteve unida, pois não é possível haver várias igrejas, mas somente uma, que confessa a fé em Cristo. No entanto há necessidade de perceber o que defi ne a unidade e a catolicidade. Esta unidade, estabelecida entre comunidades de todo mundo, existe não de acordo com uma organização eclesiástica, mas unicamente pela ação do Espírito Santo.27 Pois é verdade que “há somente um corpo e um Espírito, como também fomos chamados numa só esperança da nossa vocação; há um só Senhor, uma só fé, um só batismo” (Ef 4.4-5). Diz Lutero, no Catecismo Maior, parte II: “Pelo Espírito a ela (comunhão dos santos) fui levado e incorporado através do ato de haver ouvido e, ainda, ouvir a palavra de Deus, que é o princípio para nela se entrar”.28 A Confi ssão de Augsburgo, tal como organizada, deixa claro como esta unidade é constituída. Os artigos VII e VIII, que tratam da igreja, são posteriores aos artigos do pecado original (Art. II) e da justifi cação pela fé (Art. IV). A igreja, pois, é a comunidade de todos aqueles que foram redimidos de

24 Ibid., 52. 25 Apologia, VII, 31. 26 SCHLINK, E. Op. Cit. p.208: “The unity and catholicity of the church are identical in the

unity of the Son of God to whom all men are subject, and therewith also the unity of the Holy Spirit who creates every faith in Jesus Christ and without whom there is no saint on earth.”

27 Unidade e catolicidade entendidas desta forma contrariam o conceito católico romano a respeito. Isto porque a catolicidade não depende da submissão à hierarquia eclesiástica que tem o bispo de Roma como o vigário de Cristo na terra. Desde então, não há porque considerar os ritos e costumes estabelecidos pelos concílios. É certo que Lutero não queria fundar uma nova igreja, antes reformar a existente, por entender que Deus age através de sua Palavra apesar da corrupção daqueles que a administram. No entanto, a atitude do catolicismo frente à reforma iniciada por Lutero tem consequências determinantes na conceituação a respeito da unidade da igreja. Não há como estar em consenso com aqueles que admitem e ensinam doutrina falsa. A Fórmula de Concórdia assim tem como objetivo encontrar consenso na doutrina e administração dos sacramentos. É esta a intenção do Livro de Concórdia, formulado para que se pudesse perseverar e permanecer na verdade divina revelada nas Sagradas Escrituras e expostas nos documentos confessionais. A declaração central para o espírito das confissões e que é determinante para o conceito de igreja se encontra na Confissão de Augsburgo, no artigo VIII: “... para a unidade da igreja, basta que haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos”.

28 CM, II, 52.

A NATUREZA PASSIVA DA IGREJA ...

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sua condição de pecadores perdidos e condenados, pela obra de Cristo, conferida a todos aqueles nos quais o Espírito Santo operou a fé.

A confi ssão da unidade e da catolicidade da igreja evoca a distinção entre aspectos visíveis e invisíveis da mesma. Afi nal, o que constitui a membresia do corpo de Cristo é a fé nele, que é a cabeça. Esta fé, porém, não é uma realidade visível. Assim não é possível saber se todos aqueles que dizem pertencer à assembleia reunida – e que se reúne – em torno de Cristo, de fato, pertencem à igreja. É preciso, pois, desenvolver com pormenores estes aspectos.

Visibilidade e Ocultamento

A igreja é a comunhão dos santos. Todos aqueles que creem em Cristo constituem a igreja. Desta forma a igreja não pode ser vista. Os santos não podem ser reconhecidos por olhos humanos. Apenas Deus perscruta os corações e sabe quem é verdadeiramente santo.29 Ao mesmo tempo, a igreja pode ser vista e percebida por meio de sinais ou marcas que in-dicam a sua existência. Onde Palavra e Sacramentos são administrados corretamente, ali está a igreja.30

O desenvolvimento destes aspectos da igreja tem gerado compreen-sões distintas. A Igreja Romana arroga para si o título de Católica porque entende a catolicidade sociologicamente. Ser da igreja católica signifi ca fazer parte da organização visível chefi ada pelo papa. Esta é considerada o corpo místico de Cristo.31 A teologia calvinista propõe uma distinção entre uma “igreja invisível” e uma “igreja visível”, colocando-as lado a lado sem, no entanto, estabelecer uma devida integração ou ligação entre elas.32

A teologia luterana, no entanto, entende a igreja “encarnacionalmente”. A eclesiologia luterana distingue a igreja invisível e a igreja visível sem separá-las. A igreja é entendida como comunhão interior da fé e como comunhão externa nos meios da graça.33

A igreja, pois, é sociedade espiritual e oculta a olhos humanos. Quando interrogado pelos fariseus sobre quando o reino de Deus apareceria, Jesus responde: “Não vem o reino de Deus com visível aparência” (Lc 17.20). Somente Deus sabe quem é parte da verdadeira igreja, pois somente ele sonda os corações (2 Tm 2.19). No entanto, a igreja também tem um aspecto visível. A visibilidade da igreja está nos sinais que denotam a

29 ELERT, W. Op. Cit., p.258.30 CA, VII, 1. 31 MARQUART, K. E. The church and her fellowship, ministry, and governance. Fort Wayne:

The International Foundation for Lutheran Confessional Research, 1995, p.10.32 Idem. 33 Ibid., p.11.

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ação de Deus entre os crentes. Onde há Palavra pregada e Sacramentos administrados, ali está a igreja.34

Diz o teólogo Jonathan Teigen: “a invisibilidade da igreja não con-siste nisso que ela não está no mundo, mas sim que ela não faz parte do mundo, e, portanto, não pode ser julgado de acordo com os critérios que o mundo emprega”.35 A igreja se manifesta em lugares específi cos, com formas determinadas, por meio de pessoas concretas. No entanto, nada disso constitui a igreja por si. Somente existe igreja por causa de Cristo e Cristo está na Palavra.36 Não há como defi nir e delimitar a igreja verdadeira com base em critérios humanos. A igreja de Deus é criada por meio do Evangelho e também por meio dele é mantida. Nestes termos, é apropriado o que estabelece a Confi ssão de Augsburgo sobre o conceito de igreja.

Estabelecer uma defi nição humana do que é igreja sempre se dá a partir da observância externa de certas formas cultuais e ritos. Porém “[...] a igreja é povo espiritual, isto é, distinto da gentilidade não por cerimônias civis, senão que é o verdadeiro povo de Deus, renascido do Espírito Santo”.37

É preciso apontar para o fato de que o tema da igreja está ligado ao tema do reino. Embora não seja possível estabelecer uma abordagem am-pla sobre isso dentro dos limites do presente artigo, é possível mencionar alguns aspectos importantes para o que se objetiva com estas linhas. O reino de Deus é o conteúdo da pregação dos discípulos. Este reino signi-fi ca o reinado de Deus no mundo por meio de Cristo.38 Ele concretiza a presença do reino para dentro do mundo. Assim a igreja surge a partir do

34 Esta definição se dá conforme a Apologia da Confissão de Augsburgo. Cf. Apologia, VII e VIII, 5. No entanto, há ainda outros sinais que podem servir para a percepção da igreja: 1) a verdadeira pregação do evangelho, 2) a correta administração do Batismo, 3) o cor-reto uso do Sacramento do Altar, 4) o correto uso das Chaves 5) o legítimo chamado de ministros para ensinar e administrar os sacramentos, 6) oração, salmodia e instrução feitas publicamente, 7) cruzes e tribulações de fora e de dentro (Cf. LUTERO, Dos Concílios e da igreja. In: Obras Selecionadas vol. 3. 2 ed. Trad: Ilson Kayser. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA, 2007, p.404-432.) Embora Lutero relacione um maior número de notas, não há conflito entre esta sua formulação e a Apologia. As quatro notas adicionais de Lutero indicam que a igreja está presente, mas nem sempre elas são existentes. É preciso, pois, dizer que “Lutero está obviamente falando tanto das notas aci-dentais como das essenciais” (PREUS, R. A Base para a Concórdia. Trad.: Paulo W. Buss. In: Ensaios Teológicos, n.1. São Leopoldo: Departamento de Comunicação da IELB, 1978, p.9.)

35 TEIGEN, B. W. The Church in the New Testament. In: CTQ, n.4. Fort Wayne: Concordia Theological Seminary, 1978, p.384: “The invisiblity of the church does not consist in this that it is not in the world, but rather that it is not part of the world, and hence it cannot be judged according to the criteria which the world employs”.

36 Idem.37 Apologia, VII,14. 38 GUTHRIE, D. Op. Cit. p.706.

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reino. A pregação do reino abrange todo o mundo (Mt 13.47), constituído de bons e maus.39 Esta abrangência implica um processo de seleção, por ocasião da segunda vinda de Cristo, para a continuidade do reino de Deus nos novos céus e nova terra.

Talvez uma distinção mais apropriada dos aspectos revelado e oculto da igreja seja a distinção entre igreja propriamente dita e igreja em sentido lato. A igreja propriamente dita é a una sancta, constituída apenas dos realmente santos que creem em Cristo. A igreja em sentido lato é a igreja tal como se manifesta empiricamente.40 A igreja permanece até o último dia com maus e hipócritas ligados à sua sociedade externa, onde Palavra e Sacramentos são administrados. “A igreja, no sentido lato, inclui os bons e os maus e que os maus fazem parte da igreja apenas nominalmente e não de fato, enquanto que os bons fazem parte da igreja tanto de fato como também de nome”.41

A igreja jamais pode ser devidamente conhecida por olhos humanos. É possível ir somente até onde Deus se revela em sua Palavra. Em acordo com isso, parece pertinente o comentário de Lutero a respeito do modo como Paulo se refere aos Gálatas em sua epístola. Quando Paulo chama os da Galácia de “igrejas da Galácia”, ele está empregando uma sinédo-que, cujo uso é comum na Escritura.42 Ele usa o nome que pertence a uma parte dos seus destinatários para se referir a todos. Assim o após-tolo também se dirige aos coríntios, embora muitos deles houvessem se desviado da Palavra.43 Assim, mesmo que a igreja esteja em meio a uma geração corrupta, repleta de “lobos” e “salteadores”, ela ainda é a igreja.44 Isso permite que Lutero considere a Igreja Romana como sendo igreja, apesar de seus falsos ensinos. Tal fato se dá porque lá estão presentes a Palavra e os Sacramentos.45

Se alguém quer saber quem é Deus e onde Ele está, aponta-se os meios da graça. Desde então, este recebe em fé, pelo poder de Deus, o que o próprio Deus dá a conhecer a respeito de si mesmo. A igreja também é questão de fé. É produto da ação de Deus, tanto em sua criação como em sua sustentabilidade. Logo, somente é possível receber pela fé o que Deus diz ao homem a respeito da igreja.

39 Ibid., p.707.40 PREUS, R. Op. Cit. p.8.41 Apologia, VII, 10.42 LUTERO, M. Comentário à Epístola aos Gálatas. In: Obras Selecionadas, vol. 10. Trad: Paulo

F. Flor. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal; Canoas: Ulbra, 2008, p.46.43 Idem.44 Idem.45 Idem.

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É claramente perceptível a passividade como aspecto essencial da igreja. Ela é criada pela Palavra e por ela é mantida. Os membros da igre-ja não podem estabelecer regras, princípios, conceitos que os permitam certifi car-se de que pertencem à igreja. Somente precisam atender ao chamado de Deus efetuado nos meios da graça. Precisam ser reunidos em torno dos mesmos para serem alimentados com a verdade que é a fonte da vida eterna e o caminho para ela (Jo 14.6). E nem isso podem fazer por si mesmos. Para tanto, são passivos da ação do Espírito Santo, que os conduz a toda verdade (Jo 16.13).

A distinção entre aspectos visíveis e ocultos da igreja está ligada à dupla realidade existente a partir da obra de Cristo no mundo. O mundo no qual a igreja vive é o reino do diabo, em que predomina o pecado. Cristo insere, dentro desta realidade, uma nova realidade, a saber, o res-tabelecimento do Éden. No entanto, a realidade do pecado permanece. A igreja, como resultado da ação de Cristo, é estabelecida em confl ito com o mundo, assim permanecendo até a segunda vinda dele, quando será liberta do pecado.

Santidade e Pecaminosidade

A santidade faz parte da identidade da igreja. A santidade cristã existe “quando o Espírito Santo concede às pessoas a fé em Cristo, santifi cando-as por meio disso (At 15.9)”.46 É assim que Paulo, ao escrever suas cartas a algumas igrejas, refere-se aos crentes daquele local como santos (Ef 1.1; Fp 1.1; Cl 1.1). Evidentemente esta santidade é a que procede da ação de Deus em Cristo, como diz Paulo aos cristãos de Corinto: “aos santifi cados em Cristo Jesus, chamados para ser santos” (1 Co 1.2) e diz também na carta aos Romanos: “a todos os amados de Deus, que estais em Roma, chamados para serdes santos” (Rm 1.7). A igreja como cor-po de Cristo é santa, porque ele “a si mesmo se entregou por ela, para que a santifi casse, tendo-a purifi cado por meio da lavagem de água pela palavra, para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, [...] santa e sem defeito” (Ef 5.25-27). No entanto, a igreja não está livre da realidade do pecado. Como já dito anteriormente, na era presente, há e sempre haverá maus e hipócritas na sociedade externa da igreja. Além disso, os crentes verdadeiros não são apenas santos, mas também pecadores (Rm 7.18-20). Esta é a realidade da igreja: ela “é santa, mas, ao mesmo tempo, também é pecadora”.47

46 LUTERO, M. Dos concílios e da igreja. In: Obras Selecionadas vol. 3. 2 ed. Trad: Ilson Kayser. Porto Alegre: Concórdia; São Leopoldo: Sinodal; Canoas: ULBRA, 2007, p.406.

47 LUTERO, M. Op. Cit. 2008, p.121.

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Sendo somente Deus quem conhece os corações e quem pode identifi -car os crentes, não é possível identifi cá-los na era presente. “Somente são santos aqueles que são santos de acordo com o veredito de Deus”.48 Estes pertencem à una sancta. No entanto, a partir da visibilidade da igreja, é possível chamar de santos todos aqueles que são batizados, mesmo que haja o risco de desapontamento.49 Isto permite que hipócritas permane-çam ligados à igreja. Até o fi m dos tempos, os maus permanecem tendo acesso aos meios da graça e estando ligados à organização externa da igreja. Eles confessam exteriormente a mesma fé que os crentes e per-manecem em comunhão com eles. No entanto, há uma diferença entre os mesmos e os crentes: a falta de fé.50 Estes não são membros do corpo de Cristo, mas apenas membros da igreja “de nome”.51 Mesmo assim, estes não anulam a santidade do povo de Deus.52 Aqueles que tornam sua impiedade manifesta por meio de obras pecaminosas nas quais persistem precisam ser declarados não pertencentes ao corpo de Cristo.53 A estes os pecados devem ser retidos, de maneira que, de acordo com sua própria determinação, continuem na condição de pecadores somente e sejam excluídos.54 (Mt 16.19; 18.17).

Estes hipócritas podem estar em contato com os meios da graça de maneira dupla. Podem tanto ouvir como pregar o Evangelho; tanto receber como administrar os sacramentos.55 Tal fato demonstra que a validade de Palavra e Sacramentos não depende da dignidade dos ministros, mas unicamente de sua essência: o próprio Cristo.56 É até mesmo possível que haja edifi cação de “feno e palha” sobre o evangelho, pelos ministros indignos, sem que isso destrua sua fé.57 Apesar disso, são perdoadas e emendadas, por não anularem o fundamento, que é Cristo.58 O problema é quando o fundamento é subvertido. “Quando o Evangelho é negado não há dúvida: a koinonia foi quebrada”.59 Nestas circunstâncias, torna-se

48 ELERT, W. Op. Cit. p.257: “only those are holy who are holy in accordance with the veredict of God.”

49 Idem.50 SCHLINK, E. Op. Cit. p.209.51 Apologia, VII, 20.52 LUTERO, M. Op. Cit. 2007, p.412.53 Idem54 Idem 55 SCHLINK, E. Op. Cit. p.210.56 Idem.57 Apologia, VII, 21. 58 Idem 59 JOHNSON, J. F. Commentary on “The Doctrine of the Church in The Lutheran Confessions”.

In: The Springfielder 1969, n.1. Chicago: American Theological Library Association, 1969, p.32: “When the Gospel is denied there is no question: the koinonia has been broken”.

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necessário que atitudes cabíveis sejam tomadas (Gl 1.6-9; 2 Jo 9-11; At 19.8-10; 1 Tm 1.19-20; At13.14-15), sem que se esqueça deva ser feito isso em amor (2 Ts 3.14-15).60 O fato é que a visibilidade da igreja exige que haja comunhão a partir da fi des quae (fé confessada).

De acordo com isso, não é possível nem preciso estabelecer uma igreja perfeitamente pura nesse mundo. “A igreja cristã não pode estar sem sofrimento, perseguição e morte, sim, nem mesmo sem pecado”.61 Esta separação defi nitiva entre verdadeiros crentes e incrédulos (entre os quais se encontram falsos crentes) só poderá ser realizada no fi m dos tempos pelo próprio Deus. Pensar diferente seria estabelecer um dona-tismo que contraria o ensino de Jesus. A ideia defendida por esta heresia era de que apenas homens e mulheres realmente bons seriam a igreja. Esta bondade poderia ser percebida por meio de atos que demonstram a santidade dos crentes. O texto bíblico, no entanto, é totalmente con-trário a uma noção assim. As parábolas de Mateus 13 apontam para a continuidade do evangelho entremeio bons e maus; cristãos verdadeiros e cristãos falsos. Talvez a mais conhecida delas é a parábola do joio e do trigo. Somente na época da colheita é possível reconhecer o que é joio e o que é trigo. Da mesma forma, somente no fi m dos tempos, no dia do juízo, serão reconhecidos quem são os verdadeiros e quem são os falsos crentes. Então o que estiver oculto será revelado. A igreja será separada do reino do diabo e os hipócritas e maus serão conhecidos.

A igreja é a comunhão dos santos. “Os crentes são os santos; os santos são os crentes”.62 Todavia, permanecem pecadores até a morte, “... nesta vida, os crentes não são renovados perfeita e completamente, completive vel consummative”.63 A realidade da comunhão dos crentes é emergente. Não há um estado de completude naquilo que os defi ne como santos, mas uma continuidade do vir a ser, efetuado pela ação de Deus nos meios estabelecidos por Ele. “O batismo destrói a culpa do pecado original, ainda que permanece o materiale”.64 “O pecado é remitido no batismo não assim que já não exista, mas de maneira que não é imputado”.65 É preciso, pois, que Cristo com sua perfeita obediência cubra todos os pecados dos crentes, que continuam sendo pecadores até a morte.66

60 Idem.61 LUTERO, M. apud ELERT, W. Op. Cit. p.262: “The Christian Church cannot be without suf-

fering, persecution, and dying, yes, not without sin either”.62 SCHLINK, E. Op. Cit. p.203: “The believers are the saints; the saints are the believers”.63 DS, VI, 7. 64 Apologia, II, 35.65 Ibid., 36. 66 DS, III, 22.

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Um olhar sobre uma comunidade reunida em um culto público onde acontece a administração de Palavra e Sacramentos parece não diferen-ciar a religião cristã de outras religiões. Não há nada de grandioso na realização externa do culto público. No entanto ali, Deus está, de fato, presente. Este é o milagre da ação de Deus. Ele realiza suas grandes obras na simplicidade dos meios de graça. Os olhos humanos não são capazes de enxergar a sua ação. No entanto, ela acontece, e somente pode ser crida, em fé.67

Assim um cristão poderá se desesperar se olhar para a aparência ex-terna das coisas. Não parece que Deus está presente no mundo. Olhando para a sua vida, só há pecaminosidade, impureza, corrupção. O bem que quer fazer, muitas vezes não consegue, e o mal, que não quer fazer, ele o faz facilmente (Rm 7). Sua vida é cheia de difi culdades e sofrimento. Mas em meio a esta realidade, Deus está presente nos meios dispostos por Ele. Eis que, se quiser se certifi car da ação de Deus, o crente a pode perceber na Palavra e nos Sacramentos; se quer perceber a santidade de sua vida, olha para Cristo e sua obra redentora, acessível nestes meios; se quer ser consolado diante de difi culdades e afl ições, isto encontra nos meios que oferecem e concedem a garantia da compaixão de Deus pela sua criação, concretizada no seu Filho que verdadeiramente sofreu pela humanidade, tendo se tornado um ser humano, para a reconciliação de todos com Deus. “A face da igreja é a face de um pecador, atormentado, abandonado, moribundo e cheio de tristeza. [...] Todavia, a fé vê o oposto, o santo, a ‘glória de Deus’ (gloria dei), a ‘glória da irmandade cristã’”.68

MODO DE EXISTÊNCIA DA IGREJA

A igreja é reunida

Os aspectos eclesiológicos considerados apontam para a natureza pas-siva da igreja. Esse seu caráter essencial se concretiza na sua existência. Em concordância com isso, o aspecto para o qual se pretende aqui chamar a atenção é de que a igreja é reunida, por Deus, em torno de Palavra e Sacramentos.

A igreja é criada pela mensagem do Evangelho. Pecadores são con-frontados com sua miséria diante de Deus, levando ao reconhecimento de seu estado de morte. Nestas circunstâncias, recebe a garantia da obra realizada pelo Filho de Deus que lhe dá salvação. É assim que a Confi ssão

67 SASSE, Herman. Luther’s Faith in the One Holy Church. Disponível em: http://mercyjourney.blogspot.com.br/2013/01, p.5.

68 ELERT, W. Op. Cit. p.262: “The face of the church is the face of one who is a sinner, troubled, forsaken, dying, and full of distress. […] Nevertheless, faith sees the opposite, the saint, the ‘glory of God’ (gloria dei), the ‘glory of the Christian brotherhood’”.

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de Augsburgo defi ne a igreja como “a congregação dos santos, na qual o evangelho é pregado de maneira pura e os sacramentos são administrados corretamente”.69 Logicamente há uma continuidade nos atos que consti-tuem a igreja. Novos membros são integrados pela obra do Espírito que opera a fé. Além disso, a redenção se deu uma vez só, mas precisa ser aplicada constantemente ao renascido pela ação do Espírito. Também está de acordo com isso a defi nição de Lutero a respeito do que é a igreja, nos artigos de Esmalcalde. Dizer que a igreja é constituída pelos cordeirinhos que ouvem a voz do bom pastor e o seguem70 signifi ca que eles a estão ouvindo permanentemente.

Não é sufi ciente apenas que haja uma teologia correta e que alguém se diga confessor das suas asserções. É preciso que a Palavra seja proclamada sem cessar. Até o fi m dos tempos deve ser proclamada a mensagem que mata e faz viver. Isto acontece por meio da pregação da Lei e do Evange-lho, distinguidos e aplicados corretamente. O foco é Cristo. A Lei é o aio que conduz a Cristo, aquele que arranca os pecadores de sua condição de perdidos e os conduz à tranquilidade e paz com Deus. Eis que aquele que administra os meios da graça é o responsável por fazer ressoar a voz do Bom Pastor para que os cordeirinhos possam segui-lo.

Sendo isto verdade, é signifi cativa a defi nição que Lutero dá à igreja. Segundo ele, “a igreja é a casa da boca de Deus”.71 A ideia surge do fato de que na comunhão dos cristãos, onde há alguém que proclama a Palavra e outros que a ouvem, o Espírito Santo atua para condenar e recriar os pecadores, para matá-los e vivifi cá-los.72 De acordo com isso, a igreja é uma comunhão de ouvintes.73 A igreja é a “comunhão daqueles que pri-meiro ouvem e creem e só depois falam”.74 A experiência mais individual de todas, que consiste no arrependimento e fé, paradoxalmente só pode ser realizada na comunhão dos santos, a qual ultrapassa lugares e épo-cas.75 Para usar as palavras de John F. Johnson: “A koinonia com Deus, em Cristo, leva à koinonia de uns com os outros na Una Sancta”.76 De maneira que a obra do Espírito Santo consiste no seguinte: “primeiro nos

69 CA, VII, 2. 70 AE, Terceira Parte, XII, 3.71 KOLB, Robert. The Sheep and the Voice of the Shepherd: The Ecclesiology of the Lutheran

Confessional Writings. In: Concordia Journal, Saint Louis: Concordia Seminary, 2010, p.328: “The Church is God’s Mouth House”.

72 Idem.73 BAYER, O. A teologia de Martim Lutero: uma atualização. São Leopoldo: Sinodal, 2007,

p.51.74 Idem.75 Idem.76 JOHNSON, J. F. Op. Cit. p.30: “Koinonia with God in Christ leads to koinonia with one an-

other.”

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conduz à sua santa congregação e nos põe no seio da Igreja, pela qual nos prega e leva a Cristo”.77

A igreja é reunida por causa da necessidade dos crentes. Os grupos de cristãos de comunidades locais não se reúnem, mas são reunidos. Por uma questão de proximidade, eles são atraídos para um lugar comum onde a Palavra é pregada e os Sacramentos são oferecidos. Este lugar, o templo, onde são reunidos os cristãos, não constitui a igreja. Ela não é esse lugar nem existe por causa dele. No entanto, ela depende dele porque nele a sua substância é oferecida. Nos meios dispostos por Deus – na água do Batismo, no pão e no vinho na Ceia e na Palavra proclamada, oferecidos naquele lugar, Cristo está convidando: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei” (Mt 11.28). Por causa disso, o Espírito Santo conduz os crentes daquele local até lá, para que sejam alimentados, uma vez que a obra do Espírito consiste em conduzir a toda verdade e Cristo é a verdade (Jo 16.13; 14.6).

O aspecto da unidade da igreja determina que a reunião das pessoas em uma comunidade local se dá a partir da essência do que é a igreja, que é Cristo. Esta comunidade que se reúne não está sozinha, mas em comunhão com cristãos de todos os tempos e lugares, uma vez que a sua fé está posta no mesmo Senhor. A catolicidade da igreja existe só porque Deus expande seu amor por todo o mundo, pelo tempo da graça. A obra de Cristo na cruz foi realizada para atrair pessoas de todas as nações (Jo 12.32). Para estar em comunhão com outros cristãos, ritos e cerimônias de qualquer tipo são dispensáveis, pois a igreja consiste naquelas pessoas em que há conhecimento e confi ssão verdadeiros da fé e da verdade. Esta confi ssão de fé verdadeira é possível somente mediante o livre curso do evangelho. Infelizmente há a possibilidade de que a estrutura se torne um obstáculo para a proclamação do evangelho.78

Além disso, o aspecto revelado e o aspecto oculto da igreja precisam ser mantidos em íntima relação. Não é possível perceber visivelmente a plenitude da Santa Igreja Cristã, que está espalhada por todo o mundo e que não corresponde a todos aqueles que dizem ser cristãos. Entretanto é possível ir até onde a visibilidade da palavra nos permite. Sendo isto verdade, é preciso que a prática das congregações que se identifi cam como luteranas busquem sempre manter-se ao que contêm as confi ssões.

A unidade, que é premissa da una sancta, deve ser refl etida na vida da igreja no mundo.79 Esta unidade só pode ser refl etida na confi ssão de

77 CM, Credo, 37.78 ROSIN, R. Lutero e a Estrutura da Igreja então e agora. In: Lutero e o Ministério Pastoral:

1º Simpósio Internacional de Lutero. Organização de Paulo W. Buss. Porto Alegre: Concórdia, 2015, p.73.

79 JOHNSON, J. F. Op. Cit. p.31.

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fé.80 A igreja como sociedade de caráter essencialmente passivo, da ação de Deus, em Cristo, pelo Espírito, não busca estabelecer essa unidade com base em aspectos externos. Esta unidade parte do centro da comunhão dos santos que são as coisas santas, a saber, Palavra e Sacramentos.

A prática da igreja leva a efeito as convicções de fé que emergem dos credos. A igreja, pois, precisa ser vista como una, santa, católica e apostólica, de acordo com as devidas signifi cações dos termos. Todos es-tes conceitos, em última análise, estão compreendidos na obra realizada pelo Espírito Santo. Porém, dentro da realidade visível, são perceptíveis lá onde Deus se dá a conhecer, ou seja, na Palavra e nos Sacramentos. Assim é preciso considerar, a partir do que expressam as confi ssões, que a verdadeira igreja visível é a Igreja Luterana, pois esta tem a palavra pura e a verdadeira administração dos Sacramentos.81 Com esta assertiva não se está negando a possibilidade de que em outros grupos denominacionais haja a ação do Espírito Santo. No entanto, isto pertence ao campo da fé. Verdadeiros crentes existem nestes grupos com um condicionante “apesar de”, referente às convicções expressas pela fé confessada dos mesmos. Em consonância com isso, no meio luterano, é preciso que haja rejeição de toda má compreensão e expressão doutrinária. É preciso sempre de novo um compromisso sério com a correta exegese bíblica. O conceito bíblico de igreja precisa ser mantido contra toda especulação e toda conceituação humana que o deturpe. Os termos do credo antigo para o conceito de igreja são explorados pelas confi ssões luteranas e expressados na afi rmação do que basta à igreja, a saber, manter-se ao essencial.

Ordenações humanas impostas à igreja como necessárias fazem com que o artigo da liberdade cristã, fundamental da doutrina evangélica, seja corrompido. Considerar a não observância destas ordenações como erro e pecado conduz à idolatria.82 Na sua primeira carta aos coríntios, Paulo aponta para o cuidado necessário com o ensino. Os que edifi cam sobre o fundamento do Evangelho devem ser cuidadosos no que fazem, para que o mesmo não seja subvertido. Não é possível que outro fundamento, além de Cristo, seja lançado (1 Co 3.10,11).

Os crentes são a igreja porque são levados à fé pela operação do Es-pírito Santo através do evangelho. Diante disso, cabe à igreja que sempre de novo se pergunte: está sendo, de fato, deixado que o evangelho esteja em evidência? É preciso que a igreja em continuidade com as confi ssões luteranas se questione: esta continuidade, que faz parte de nossa identi-dade, é real ou apenas aparente? A estrutura da igreja tem emergido da

80 Idem.81 PREUS, R.Op. Cit. p.16. 82 DS, X, 15.

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mensagem evangélica, que cria e mantém a igreja, ou tem sido o próprio conteúdo da mensagem, de maneira que seus ditames têm sido determi-nantes para o conceito de igreja? Aqueles que se preocupam em estar em continuidade com a verdade que funda e mantém a igreja desesperam de qualquer condição criada por homens para a comunhão com Deus.

A igreja está reunida

Se por um lado a igreja é reunida sempre de novo, em torno de Pala-vra e Sacramentos, administrados no culto público, por outro ela constitui uma comunhão que não está presa a um determinado lugar ou momento. Sendo sociedade de fé e do Espírito Santo, todos aqueles que têm a fé e o Espírito estão reunidos, independente do momento em que vivem e onde se encontram. Esta característica também denota a passividade dos crentes diante da ação permanente de Deus.

Cristo é aquele que se torna um ser humano para atender às necessi-dades da humanidade perdida. A palavra apresenta um Deus que vai ao encontro do pecador, em sua miséria, e provê redenção, demonstrada em aceitação incondicional. Desde então, o ser humano pecador é aceito tal como se encontra, e toda a sua vida se torna agradável a Deus porque é santifi cada por Cristo. Todas as dimensões da existência humana são redirecionadas para o plano original no qual a criação foi engendrada. É assim que a igreja não está limitada a tempo, lugares e pessoas, mas ultrapassa todos os limites e se expande por toda a ação de Deus na história, em Cristo.

Desta maneira, não há uma superioridade dos clérigos em relação aos “leigos”, antes todos estão em uma mesma condição diante de Deus. Todos são sacerdotes reais. Todos têm pleno acesso às coisas santas nas quais Deus se faz acessível aos seres humanos. Há aqueles que são ministros, os quais agem em nome de Cristo, pregando o evangelho e administrando os sacramentos publicamente. Estes, porém, não estão acima de todos os outros crentes; apenas estão em um ofício específi co, instituído por Deus assim como todos os demais ofícios e que, como os mesmos, é valorizado.83 Em última análise, todos são passivos diante da ação peculiar do Espírito Santo, através dos meios estabelecidos por Deus.

A vida da igreja se encontra em meio ao mundo. Embora não esteja limitada, é manifestada através de pessoas e em lugares específi cos. Esta manifestação não se limita à reunião semanal em torno dos meios da graça, mas se expande para dentro do cotidiano, na vida de cada crente. Enquanto vive no mundo, cada crente tem consciência de que está em comunhão com Deus, por meio de Cristo, e também em comunhão com

83 ROSIN, R. Op. Cit. p.69.

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todos os santos de todas as épocas. Os cristãos são como membros de um corpo. Como tais, vivem, sofrem e atuam uns pelos outros.84 Conforme palavra de Lutero, a partir da fé em Jesus, “nos tornamos uma massa com Cristo, entramos numa comunhão com ele, na qual compartilhamos sua possessão, e ele entra na comunidade conosco na qual ele reparte nossas posses”.85 Este compartilhar da vida – próprio da igreja – acontece por meio das obras ordenadas por Deus. Estas são as da “vocação de cada qual, a administração da coisa pública, a administração da economia doméstica, a vida conjugal, a educação dos fi lhos”.86 Como diz Lutero, “o lugar da igreja é no templo, na escola, na casa, no quarto de dormir”.87 Jesus afi rma que onde dois ou três estiverem reunidos em seu nome, ele está presente (Mt 18.20). Até mesmo se alguém fala com Deus, a partir da sua fé em Cristo, e medita na Palavra, Deus está presente com os anjos.88

Eis que é preciso verifi car a utilidade de observâncias externas da igreja. Se estas são valorizadas acima das obras comuns da vida diária, a encarnação de Cristo é desvirtuada. O pecador se vê novamente entregue à própria sorte e isto somente pode signifi car desespero e condenação. Lutero parece ter tido consciência disso ao desprezar assuntos eclesiásti-cos em favor da vida comum.89 Somente são adequadas as tradições na medida em que são observadas em virtude de sua utilidade, servindo a bons propósitos.90

A valorização de observâncias externas da igreja acima das obras comuns da vida diária é um sério problema. Ajuda-nos para tanto a Apo-logia, no Artigo XV, que trata das tradições humanas na igreja: “Depois de enganados os homens por essa aparência de sabedoria e justiça, seguem-se males infi nitos, é obscurecido o evangelho da justiça da fé em Cristo, e vem, depois, confi ança vã em tais obras”.91 O evangelho deixa de ser evangelho. Os crentes são escravizados. Quando a ordem correta

84 ALTHAUS, P. A teologia de Martinho Lutero. Tradução: Horst R. Kuchenbecker. Canoas: ULBRA, 2008, p.317.

85 Ibid., p.322.86 DS, X, 15.87 LUTERO apud TEIGEN, B. W. Op. Cit. p.386: “The place of the church is in the temple, in

the school, in the house, in the bedchamber”.88 Idem.89 “Por isso, redigi poucos artigos. Pois que, sem isso, já temos de Deus tantos encargos a

cumprir na igreja, no estado e na família, que jamais poderemos satisfazê-los. De que serve, pois, ou a que auxilia fazerem-se, ademais disso, muitos decretos e ordenações no concílio, especialmente quando esses pontos fundamentais, ordenados por Deus, não são considerados nem observados? Precisamente como se ele tivesse de honrar a nossa bufonaria” em troca do nosso ato de calcarmos aos pés os seus sérios mandamentos” (AE, Prefácio.).

90 DS, X, 20,21.91 Apologia, XV, 26.

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é observada, os santos são servidos pela estrutura, e não o contrário. Isto decorre do fato de que esta estrutura é criada pela verdade evangélica da encarnação do Filho de Deus.92 Conforme aponta Robert Rosin, segundo Lutero, “a igreja e sua estrutura fazem parte não do sujeito, e sim do predicado, à medida que a Palavra é proclamada e faz surgir a igreja”.93

A igreja é criada e é preservada unicamente por Deus. Como corpo de Cristo, ela depende inteiramente dele, que é a cabeça do corpo. O santo povo cristão, de todos os tempos e lugares, é lugar onde “Cristo vive, atua e governa por meio da redenção, por graça e perdão dos pecados, e o Espírito Santo por meio da vivifi cação e da santifi cação, pela eliminação diária dos pecados e renovação da vida [...]”.94 A igreja pois é, em sua essência, uma realidade passiva. Os santos crentes são passivos da ação de Deus, em Cristo, pelo Espírito, por meio do Evangelho. Da mesma for-ma, a igreja é passiva dos ataques de seus inimigos. O diabo e o mundo não querem aceitar a sua permanência.

Um estudo feito por Roberto Bustamante aponta que na maioria de suas ocorrências no Novo Testamento, a palavra ekklesia recebe um pa-pel passivo. De acordo com isso, a imagem da igreja, no texto bíblico, aponta para o fato de que ela “é principalmente espaço e objeto da ação de outros (de Deus, dos seus servos e dos seus inimigos)”.95 Bustamante ainda aponta que essa passividade parece desconfortável para o cristia-nismo moderno, o qual busca ter um controle sobre suas ações, podendo prever e determinar seus resultados.96 Como aponta Rosin, apesar de haver uma nítida distinção da igreja de outras organizações sociológicas, “somos propensos a salientar nosso uso dos sinais ou notas às expensas dos sinais mesmos, a fi m de que nosso organizar e manobrar desses sinais (estrutural) também pareça importante”.97 No entanto, é preciso olhar para esta realidade de outra perspectiva. Isso não signifi ca perder a liberdade, mas é sinal do tempo escatológico em que a igreja existe, onde a redenção não é construída, mas foi realizada por Cristo e é con-ferida como um dom por meio de Palavra e Sacramentos.98 Desse modo, seu destino não depende de seus esforços, mas “do propósito eterno que

92 ROSIN, R. Op. Cit. p.65. 93 Idem.94 LUTERO, M., Op. Cit. 2007, p.405.95 BUSTAMANTE, R. Breves Reflexiones sobre la Iglesia en el Nuevo Testamento. In: Revista

Igreja Luterana, vol. 74, n.1. São Leopoldo: Seminário Concórdia, 2015, p.16: “ella es, primordialmente, espacio y objeto de la acción de otros (de Dios, de sus siervos y de los enemigos)”.

96 Ibid., p.21.97 ROSIN, R. Op. Cit. p.81. 98 BUSTAMANTE, R. Op. Cit. p.21.

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atingirá sua consumação na intervenção fi nal e iminente do Senhor em favor de seu povo”.99

Um dos sinais de reconhecimento da igreja, apontado por Lutero, é a existência de cruzes e tribulações, de fora e de dentro. O santo povo cristão “tem que sofrer toda sorte de desgraça e perseguição, toda espécie de tentação e mal (como se ora no Pai-Nosso) da parte do diabo, do mundo e da carne [...]”.100 Todos os sofrimentos que lhe sobrevêm são por causa do fundamento da igreja, que é o próprio Cristo.101 Um destes sofrimentos é a própria tentação de dar uma mão à igreja para determinar o que é essencial para sua existência. Apesar de tudo isso, permanece a verdade de que a manutenção da igreja está nas mãos de Deus. Os santos crentes recebem de Jesus o consolo por meio de suas palavras: “Bem-aventurados os que sofrem perseguição por minha causa” (Mt 5.11).

A igreja permanece unida, porque o Senhor da igreja está vivo e ativo na vida de cada um dos que têm fé, por toda a história. Assim sendo, nenhum crente está sozinho, mas em comunhão com todos os demais sobre a terra, que partilham dos mesmos sofrimentos e difi culdades da vida neste mundo. Da mesma forma, está em comunhão com todos os crentes da igreja triunfante, que já partiram e aguardam pela consumação desta era, a fi m de poder entrar na posse da herança que não perde o seu valor, que não pode estragar nem ser destruída (1 Pe 1.4). Enquanto isso acontece, se cumpre a promessa de Cristo: “Eis que estou convosco todos os dias até a consumação do século” (Mt 28.20).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A igreja é um grupo de pessoas existente para atender a objetivos em comum. É este o conceito que naturalmente se estabelece. No entanto, não é possível considerá-lo como concordante com a verdade bíblica.

A unidade da igreja católica – espalhada por todo o mundo – não se dá por costumes e tradições estabelecidas pela vontade humana, mas unicamente pela obra de Deus em Cristo. De acordo com isso, se em outras organizações sociológicas se verifi ca o signifi cado de um grupo quantitativamente – pelo número de membros que se reúnem – na igreja, que antes de tudo é uma organização teológica, se verifi ca o signifi cado do grupo qualitativamente – a partir de quem e do que reúne o grupo: Deus, pelo evangelho de Cristo.

99 Idem: “del designio eterno que va a llegar a su consumación en la intervención final e inminente de Yahvé en favor de su pueblo.”

100 LUTERO, Op. Cit. 2007, p.421.101 Idem.

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Visibilidade e ocultamento nunca podem ser extremos que se excluem. A tentativa de materializar e a tentativa de espiritualizar a igreja são tendências humanas. É preciso manter estes dois aspectos em tensão. Trata-se de mais um dos desafi os da vida a partir do evangelho em um mundo hostil. No entanto, não é possível negligenciar isso.

Do ponto de vista humano, o que une os crentes é o pecado. Do ponto de vista de Deus, o que une os crentes é Cristo. É desta forma que a igreja se estabelece. O pecado precisa ser considerado sempre em toda a sua seriedade. Ele também precisa ser tratado, e para tanto é preciso que o evangelho de Cristo seja mantido no centro da vida da igreja. Eis aí a perene necessidade da correta distinção e aplicação de Lei e Evangelho.

O ativismo que a igreja está destinada a praticar está em concordân-cia com a realidade em que ela existe, mas em discordância com aquilo que determina a sua existência, a saber, o evangelho. A igreja existe por causa e em função do evangelho. É preciso que todo e qualquer costume, atividade ou rito estabelecidos pelos crentes sejam coerentes com isso. Quando tal coisa não acontece, é preciso que os cristãos se perguntem em que medida é conveniente permanecer na prática de tais coisas.

Uma possibilidade suscitada por este artigo é uma pesquisa mais aprofundada do que a igreja tem estabelecido como prática que determina a sua existência no mundo. É preciso manter o conceito de igreja que a Palavra de Deus aponta.

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DO QUE A IGREJA LUTERANA JAMAIS PODERÁ ABRIR MÃO!

Jobst Schöne1

A formulação do tema pode parecer para alguns uma limitação, auto-afi rmação ou endurecimento confessional. Esta, porém, não é nem deve ser nossa posição. Os reformadores, orientados por Lutero, não visaram estabelecer uma doutrina nova ou uma nova igreja confessional. Eles queriam, unicamente, abrir o Evangelho, a mensagem da salvação para toda a cristandade do seu tempo no Ocidente. Eles visaram conduzir e chamar ao centro do evangelho, a Cristo, não pelo distanciar-se da Igreja na qual foram batizados e chegaram à fé, da qual receberam o ofício, mas, pelo contrário, por amor a esta igreja deformada, queriam reconduzi-la de volta ao evangelho. Que isso resultou em algo diferente do desejado, vindo a igreja do Ocidente dividir-se em muitas igrejas confessionais, tem outros motivos.

Na formulação deste tema queremos destacar algo diferente do que um tom negativo. Trata-se de acentuar por que a Igreja Luterana, na qual estamos, apesar de todas as suas imperfeições, fraquezas e até caminhos errados, nos é tão querida e preciosa, a ponto de não querer nem deixar nos desviar dela. Destacar isso é nosso objetivo. Mesmo assim, não se trata aqui de opiniões subjetivas nem de valorizações que a mim, somente, me parecem importantes, indispensáveis e dignas de serem preservadas. Trata-se da Igreja e de sua missão, daquilo que lhe foi confi ado – para toda a cristandade. Reconhecer isto, a saber, o indispensável, mantê-lo e confessá-lo, deve estar em nossos corações; se isto se perder, toda a cristandade será prejudicada. Estamos, portanto, diante de uma incum-bência ecumênica que luteranos que se mantém fi éis às Confi ssões têm a cumprir. Não se trata de interesses individuais, de autoafi rmação e de isolamento, mas de uma certifi cação própria.

Devido ao desenvolvimento a que as igrejas do mundo ocidental che-garam, chegamos a um ponto no qual uma igreja não pode ganhar à custa de outra; pelo contrário, se uma sucumbe, ela arrasta outras consigo. O fato de pessoas saírem de uma igreja (devido a escândalos, de abuso de pessoas, do mau uso do dinheiro, etc.) é tão grotesco que desencadeia

1 Dr. Jobst Schöne é bispo emérito da Selbständige Evangelisch-Lutherische Kirche (SELK), Igreja Luterana na Alemanha; artigo publicado na revista Lutherische Beiträge – 1/2016. Traduzido pelo Rev. Horst R. Kuchenbecker.

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um fl uxo de abandono também em outras confi ssões. Por outro, bons exemplos de uma igreja podem desencadear simpatia para o outro lado... Em resumo, estamos todos no mesmo barco. Por isso nos perguntamos: O que nos foi dado para ser conservado? Veremos que aqui não se trata de uma pergunta somente nossa, mas daquilo que, de forma indispensável, pertence a toda a cristandade, o que no seu todo e para o todo deve ser mantido e preservado.

Um cristão por si pode vir a vacilar em sua certeza – nós o sabemos e o presenciamos com tristeza e dor – quando ele se pergunta: Será que estou na igreja cristã correta e certa? Esta observação vem de Wilhelm Löhe. Disse ele: “Se eu encontrasse uma igreja melhor do que a Igreja Luterana, eu me mudaria e me converteria imediatamente a ela, mesmo no leito da morte” – e isto apesar de todas as fraquezas da Igreja Luterana, que ele conhecia muito bem. Mas Löhe não mudou. Outros mudaram. Tal mudança de igreja é sempre um sinal de que na atual comunidade surgiu, para o membro convertido, um determinado défi cit que o levou a abando-nar sua comunidade e deixar suas raízes. Um défi cit tão grave que o levou a buscar outras opções (que ele também poderia ter encontrado em sua comunidade atual, da qual, neste caso, ele está abrindo mão), mas que difi cilmente será compensado. O que via de regra muda numa conversão é a compreensão da salvação, com a qual Deus quer nos presentear e mostrar de onde vem, qual é a sua base e o que ela abrange.

Sob este ponto de vista, perguntamos: o que é e o que deve ser indis-pensável para a Igreja Luterana e seus fi éis? Portanto, o que torna o cris-tianismo tão amável e precioso, a ponto de, sob nenhuma hipótese, abrir mão e nos afastar dele – apesar de todas as fraquezas e deformações que a Igreja apresenta na atualidade? Em consequência disso, apresentamos aqui seis pontos, a partir dos quais queremos mostrar o indispensável, sob o qual a Igreja deve repousar, para poder cumprir sua missão.

1. A ESCRITURA SAGRADA COMO PALAVRA DE DEUS, EM LEI E EVANGELHO

A Reforma Luterana considera a Bíblia, Antigo e Novo Testamento, como única norma (única regula et norma) para doutrina e vida em sua igreja, como ela o expõe em sua Confi ssão na Fórmula de Concórdia de 1577, onde lemos: “Cremos, ensinamos e confessamos que somente os escritos proféticos e apostólicos do Antigo e do Novo Testamento são a única regra e norma segundo a qual devem ser ajuizadas e julgadas igualmente todas as doutrinas e todos os mestres, conforme está es-crito: “Lâmpada para os meus pés é a tua palavra, e luz para os meus caminhos” (Salmo 119.115). E o apóstolo Paulo escreve: “Ainda que um

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anjo vindo do céu vos pregue diversamente, seja anátema” (Gálatas 1.8). “Outros escritos, entretanto, dos antigos ou dos novos mestres, seja qual for o nome deles (inclusive Lutero), não devem ser equiparados à Escritura Sagrada, porém todos lhe devem ser completamente subordi-nados, não devendo ser recebidos diversamente de ou como mais do que testemunhas da maneira como e quanto aos lugares onde essa doutrina dos apóstolos e profetas foi preservada nos tempos pós-apostólicos” (Fórmula de Concórdia, Epítome, De Suma, Regra e Norma § 1,2; Livro de Concórdia, p. 4992). Naquele tempo em que escreveram isto, eles estavam mais apegados a Lutero do que nós hoje. Mesmo assim, de Lutero só foram incluídos nos livros confessionais os dois Catecismos, Menor e Maior, e os Artigos de Esmalcalde.

A Escritura não é somente norma e regra para ensino e vida. Ela é também um poderoso instrumento através do qual o Espírito Santo age, gera e fortalece a fé, também hoje. Onde esta Palavra de Deus é procla-mada e aceita, surge a igreja, também hoje. A Escritura Sagrada é, por isso, muito mais do que um documento histórico, subordinado às condi-ções do tempo em que foi escrito e que só pode ser lido e interpretado conforme o método histórico-crítico. Ela é – independente dos diferentes tempos de seu surgimento e das diferenças de seus autores – uma uni-dade, um todo, que deve ser tomado e exposto tendo Cristo como centro e alvo, mesmo que isto seja hoje contestado de forma veemente e não haver consenso a respeito. A Escritura não é só palavra de homens, mas ela é, em todas suas partes, Palavra de Deus, pela qual Deus nos fala e se revela a nós. A Ele, Deus, todos os expositores e proclamadores terão de prestar contas. Ninguém deve se sobrepor à Escritura, mas subordinar-se a ela. “Exegese canônica” desses textos “inspirados” é o adequado. A Palavra de Deus não se torna para nós “Palavra de Deus” de caso a caso, conforme a nossa disposição em recebê-la, mas ela é e permanece a priori.

Deus nos fala na Escritura Sagrada e isto acontece, conforme a con-cepção luterana, em duas formas bem distintas: de Lei e de Evangelho, como exigência e como presente, como acusação e como absolvição, como mortifi cação e vivifi cação (cf. Apologia XII § 46; LC p. 198). Este reconhe-cimento da Reforma Luterana, essa clara distinção entre Lei e Evangelho é a chave indispensável para a compreensão da Escritura Sagrada. Assim ela deve ser lida, anunciada, aplicada e crida. Uma mistura ou confusão dessas duas formas de falar conduz ao erro dos entusiastas (isto é, a falha e errada tentativa de querer dirigir o mundo pelo evangelho), ou então

2 LIVRO DE CONCÓRDIA. (LC). São Leopoldo (RS): Editora Sinodal; Porto Alegre (RS): Editora Concórdia, 1980. - As notas ao pé das páginas são do tradutor.

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ao legalismo (que transforma o evangelho em lei, dizendo que a pessoa pode salvar-se por seus próprios esforços). O legalismo na pregação atual é um perigo permanente e constante.3

2. O QUADRO BÍBLICO DO SER HUMANO E O PODER DO PECADO (ANTROPOLOGIA)

A Escritura Sagrada, corretamente compreendida, transmite um qua-dro que pode vir a ser incômodo, porém é realista e sem maquiagem. Em relação à lei, pela qual Deus convoca o ser humano à sua presença, precisamos nos reconhecer como criaturas caídas, separadas de Deus, incapazes de salvar-nos a nós mesmos e de alcançarmos a perfeição exi-gida pela lei. Aqui cabe a defi nição do “sine metu Dei, sine fi ducia erga Deum et cum concupiscentia” (sem temor de Deus, sem fé em Deus e com concupiscência), “isto é, que desde o ventre materno, todos estão plenos de concupiscência e inclinação más e, por natureza, não podem ter verdadeiro temor de Deus e verdadeira fé em Deus” (Confi ssão de Augs-burgo II § 2; LC, p. 29). O conceito “pecado original” é mal entendido se acrescentarmos que com isso o ser humano foi privado da capacidade de fazer qualquer bem no relacionamento humano, social, econômico e em outros campos de ação neste mundo. Tão longe a compreensão luterana, em relação ao pecado original, não foi. Ela considera o ser humano, graças a um resto de livre arbítrio e sua razão humana, capaz de alcançar certa “justiça civil”, porém nenhuma “justiça divina, espiritual” que o declararia justo diante de Deus (CA XVIII § 1 e 2; LC p. 364).

Com a compreensão (defi nição) luterana do pecado original, rejei-tamos inequivocamente as defi nições da antropologia a respeito do ser humano que nos são dadas e que encontramos de muitas formas nos mais diversos campos humanos, no campo do poder e do progresso, na ressocialização de presos, na pedagogia e em outros campos. O otimismo que esses campos do saber demonstram em relação ao ser humano e sua capacidade para o bem, as catástrofes dos séculos 19 e 20 não consegui-

3 Portanto, não podemos abrir mão dessa verdade de que a “Bíblia, Antigo e Novo Testamento, é, em seu todo, palavra por palavra, inspirada por Deus. Deus deu aos escritores da Bíblia os pensamentos e as palavras exatas que deveriam empregar. Deus nos deu sua palavra a fim de fazer-nos sábios para a salvação pela fé em Cristo Jesus” (Catecismo Menor. Exposição de Schwan. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2013, p. 33,34).

4 Quanto ao livre arbítrio, ensina-se que o homem tem até certo ponto livre arbítrio para viver exteriormente de maneira honesta e escolher entre aquelas coisas que a razão compreende. Todavia, sem a graça, o auxílio e a operação do Espírito Santo, o homem é incapaz de agradar a Deus, temê-lo de coração, ou crer, ou expulsar do coração as más concupiscências inatas. Isto, ao contrário, é feito pelo Espírito Santo, que é dado pela palavra de Deus. Segundo Paulo, “O homem natural nada entende do Espírito de Deus” (1 Co 2.14).

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ram estremecer. O Iluminismo levou aos horrores da Revolução Francesa, despertou o marxismo e forneceu estímulos às barbáries do nazismo, do stalinismo e do maoísmo, para que esses pudessem se desenvolver – e ainda se crê que, no fundo, o ser humano é bom e só as circunstâncias da vida o tornam mau. A Escritura Sagrada, no entanto, nos ensina que “é mau o desígnio do homem desde a sua mocidade” (Gênesis 8.21). A história da humanidade e os acontecimentos da atualidade nos fornecem a confi rmação do pecado original.5 Esse quadro pessimista (ou melhor, realista) a Reforma Luterana destaca com clareza, mais do que outras confi ssões. É impossível para a Igreja Luterana abrir mão dessa defi nição. É impossível unir-se às concepções da Igreja Católica sobre a natureza humana e a graça, e sua doutrina da cooperação humana na salvação. Isso torna nossa união com ela impossível.

3. COMO DEUS DIRIGE O MUNDO E SUA IGREJA

O quadro bíblico de Deus tem dois lados. Primeiro, a Bíblia nos mostra o Deus oculto, inescrutável, enigmático (Deus abscondito), cuja ira, juízo e castigo temos de temer; segundo, o Deus compassivo, misericordioso, gracioso, o Deus de amor, que em Cristo se tornou homem, para nos sal-var – esse é o Deus manifesto (Deus revelatus), que nos permite olhar no coração de Deus e reconhecer sua verdadeira vontade. Ambos os lados de Deus encontram o ser humano no tempo, nos cruéis destinos da vida e na misericórdia que lhe é anunciada e dada. Mesmo assim, Deus não se deixa dividir, mas permanece Deus uno e vivo, que se dirige e fala a nós em sua Palavra, por Lei e Evangelho. Ele é o Deus que nos atrai ao arrependimento (à volta a Deus) e à fé (o confi ar em sua misericórdia).

Ao aspecto duplo da imagem de Deus corresponde a forma dupla pela qual Deus governa o mundo e sua igreja. Ele sabe que a inclinação do ser humano para o mal precisa ser mantida sob controle. Para isso, Deus usa a lei, a força da lei, a espada, pelas autoridades instituídas (seu reino da mão esquerda), a fi m de manter a ordem, assegurando, assim, mais ou menos a justiça civil e evitando o caos.

Amor, misericórdia, graça e perdão, no entanto, são formas que Deus usa em sua Igreja (reino da mão direita) para governar e chamar as pes-soas a si. Ambos os reinos são governados e dirigidos pelo mesmo Deus, porém de maneira diferente e com objetivos (alvos) diferentes. Ambos os reinos não devem ser misturados para não serem ambos prejudicados. Separar Igreja e Estado dá a ambos a liberdade para servirem ao ser hu-

5 O pecado original é o pecado que herdamos de Adão, isto é, a completa corrupção de toda a natureza humana, agora privada da justiça original, inclinada para todo o mal e sujeita à condenação (Catecismo Menor, pergunta 100, p. 68).

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mano, cada qual em sua forma. Se misturarmos esses dois reinos (como acontece no Islã, onde uma Igreja se torna Igreja do Estado, dependente do Estado), então facilmente se praticam injustiças em nome da religião (como por exemplo em Genebra, no tempo de Calvino6); por fi m, a Igreja torna-se um serviçal do Estado, ou o Estado torna-se um Estado de Deus. A distinção da forma de Deus governar os dois e a consequente separação de Estado e Igreja pertence à tarefa da qual a Igreja Luterana não pode abrir mão.

4. DEUS-HOMEM E A SALVAÇÃO DO SER HUMANO

A respeito de Deus, a Igreja cristã confessa no Credo Niceno: “[...] o qual por nós homens e pela nossa salvação desceu do céu e se encarnou pelo Espírito Santo na virgem Maria e foi feito homem”. Nesse aconte-cimento baseia-se a obra salvífi ca de Cristo, seu sofrer, seu morrer, sua ressurreição, sua ascensão e sua volta no fi m dos séculos. A Igreja Antiga resumiu tudo isso no dogma da cristologia. A Reforma Luterana aceitou esse dogma sem reservas. Dessa doutrina provém a doutrina luterana da salvação, a soteriologia. Ambas as formas são inseparavelmente unidas. A humanação de Deus visa a nossa salvação, nossa bem-aventurança, e aconteceu, unicamente, “para nossa salvação”.

Neste ponto bate o coração da Reforma Luterana, a saber, pela cris-tologia se fundamenta a justifi cação do pecador, unicamente por amor a Cristo, somente por graça, pela fé (em Cristo e sua obra). “Justifi cação” é hoje uma palavra mal compreendida e mal-entendida. Ela signifi ca a livre absolvição da culpa, do pecado, sem nossa cooperação e participa-ção, um receber passivo, de fora, que Deus nos pronunciou e atribuiu (ou, como dizemos: “oferece, dá e sela” completo perdão dos pecados). Ele nos declara justos. A justifi cação não é uma doutrina que precisa ser captada pelo intelecto e refl etida, mas é um acontecimento, algo que se concretiza ao ser humano e no ser humano. Justifi cação pressupõe o ser pecador da pessoa e sua confi ssão de pecados (isto é, reconhecimento de sua necessidade de salvação). Ele é e permanece pecador, mas torna-se, aos olhos de Deus, pela absolvição, “justo”, para o correto louvor pela salvação, pelo perdão que a obra vicária de Cristo lhe conquistou. A com-preensão “em nosso lugar”, como nosso substituto, obra vicária, é aqui o ponto central que une cristologia com soteriologia.

6 Calvino escreveu suas teses sobre Política e Igreja em 1535. Ao tentar implantá-las em Genebra, foi expulso. Retornou em 1541. Exigiu para si plena autoridade para implantar a “teocracia”, a cidade de Deus, em 1553. Passou a exigir de todos os cidadãos a “confissão de fé” e passou a perseguir e executar os que não a aceitaram. Muitos foram mortos por sua inquisição. Outros tantos fugiram. (Lutheran Cyclopedia, Concordia Publishing House, 1954, p. 155).

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A fórmula da Reforma Luterana “simul justus et peccator” (simultane-amente justo e pecador) descreve o cristão justifi cado. Sua “santifi cação” (= a transformação da pessoa, que vive de forma justa em pensamentos, palavras e ações) deve ser vista como principiante, ainda com imperfeições, pois aqui na vida terrena não será perfeita. Nesse sentido, a santifi cação não deve ser tomada como base e pressuposto para a justifi cação, mas como consequência, como fruto dela. A santifi cação brota da justifi cação, mas não a opera. Essa clara distinção entre justifi cação e santifi cação, em ordem irreversível, primeiro a justifi cação, depois a santifi cação, não é aceita pela Igreja Romana (Católica), nem pelas igrejas reformadas e similares.7 Ela é uma das partes de cujo ensino e prática a Igreja Luterana não pode abrir mão. A justifi cação é dada, a saber, o justus (o ser justo), somente por graça, somente pela fé (= o confi ar na misericórdia de Deus, que em Cristo se tornou realidade), unicamente por amor a Cristo. Isso se torna mais visível pelo quadro de Lutero da “feliz troca”: culpa, morte e pecado, trocados por justiça, perdão e pureza; morte por vida. Isso a pessoa alcança pela união com Cristo. Sua fé (para o colocar de forma bem clara) não opera a salvação, nem em parte com o auxílio de Deus, mas a recebe. A fé é recebida como presente de Deus. Este apegar-se, voltar-se a Deus é operado pelo Espírito Santo, que opera a fé pelos meios da graça ordenados por Deus, confi ados à sua Igreja: palavra e sacramentos.

5. OS SACRAMENTOS E O CULTO

Justifi cação e sacramentos estão juntos de forma inseparável. Sem os sacramentos, os frutos da obra salvífi ca de Cristo permanecem no passado. Lemos no Catecismo Maior: “‘Quem crer e for batizado será sal-vo’” (Marcos 16.16). Compreende-se, por isso, da maneira mais simples, assim: a força, a obra, o proveito, o fruto e o fi m (alvo) do batismo é salvar... É bem sabido, entretanto, que ser salvo não signifi ca outra coisa que ser liberto do pecado, da morte, do diabo, chegar ao reino de Cristo e com ele viver eternamente. Vês aqui de novo em que grande apreço se deve ter o batismo, visto que nele alcançamos tão inexpressível tesouro” (Catecismo Maior, Do Batismo, § 24; LC, pp. 477-478). Da mesma forma, a Santa Ceia: “Porque, de outra maneira, como saberíamos que tal acon-teceu ou que nos deve ser dado de presente, se não nos fosse anunciado mediante a pregação ou palavra oral? De onde é que o sabem ou como

7 Lemos no Catecismo Menor: Justificação: Recebemos remissão dos pecados e nos tor-namos justos perante Deus, não pelas nossas obras, mas pela graça, por Cristo, mediante a fé (pergunta 209). O artigo da justificação pela fé temos que guardar fielmente em todos os tempos por ser o artigo principal da doutrina cristã, pelo qual a Igreja de Cristo se distingue de toda a religião falsa, sendo dada a glória somente a Deus e constante con-forto ao pecador (pergunta 211). Catecismo Menor. 3ª ed. Porto Alegre: Editora Concórdia, 2013.

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é que podem apreender o perdão e dele se apropriar, se não se atém à Escritura e ao evangelho e neles não creem? Ora, o evangelho todo e este artigo do Credo: “Creio numa única santa Igreja Cristã, na remissão dos pecados, etc.”, mediante a palavra foram incorporados neste sacramento e apresentados a nós. Por que haveríamos de permitir que se arranque dos sacramentos esse tesouro, quando eles têm de confessar tratar-se das mesmas palavras que ouvimos por toda a parte no evangelho?” (Ca-tecismo Maior, Da Santa Ceia, § 31-32; LC, p. 489). Os sacramentos estão presos totalmente à Palavra de Deus. Se a Palavra cai, os sacramentos caem também. Agora, no entanto, a Palavra executa, opera, cria o que ela afi rma, visto que o próprio Cristo está na Palavra e fala em linguagem humana. Conforme Lutero, ela é uma Palavra de ação – ação que é bem real naquilo que ela fala.

Esta compreensão realista do cumprimento e da ação da Palavra de Deus – na proclamação, bem como na consagração e na distribuição real dos elementos – caracteriza a posição de Lutero e também, não em grau menor, a posição da Igreja Luterana. Ela crê, ensina e confessa a presen-ça real de Cristo na Santa Ceia para nossa salvação. Ele (a saber, Jesus) prega. Ele batiza. Ele absolve. Ele torna seu corpo e sangue presentes, para que sejam distribuídos e recebidos.

Se essa confi ssão da presença real de Cristo em sua Palavra e da presença real de seu corpo e sangue na Santa Ceia em, com e sob o pão e o vinho, se perde e se ela não for mais confessada de forma clara e confi ável na administração da Santa Ceia, mas reduzida à presença pes-soal “em Espírito” (encoberta num véu por palavras veladas, que não são mais textuais, mostrando o quanto já se desviou da fé e da confi ssão da presença real), então a Igreja perde o que a torna Igreja no sentido pleno: o ser povo de Deus, em cujo meio Cristo está pessoalmente presente e seu Espírito agindo em nós. Trata-se aqui daquilo de que a Igreja vive, e se isso se perde, ela morre.

Visto ser a Igreja gerada da Palavra de Deus e dos sacramentos, e deles viver, o culto, em cujo meio esses dons de Deus são “administrados”, proclamados e recebidos, é o centro de toda a vida da Igreja Luterana. Isso inclui a prática da Confi ssão e da Absolvição, pela qual nos é aberto o caminho de volta ao batismo, quando é dado o perdão ao pecador con-trito e arrependido, por ordem e poder de Deus. Tal confi ssão e absolvição perdeu-se quase totalmente na Igreja do Ocidente. Como substitutivo entrou, sorrateiramente, a ideia de que Deus é cordial e amoroso, que nunca se ira, não castiga, nem julga ninguém; todos “são aceitos” por ele assim como são e como querem continuar a viver. Essas são pessoas que não necessitam mais de reconciliação, nem contrição, nem confi ssão e absolvição. O pastor Claus Harms (1817) disse zombeteiramente: “Na

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Idade Média,o perdão ainda custava dinheiro. Hoje, o temos de graça e cada um se serve sozinho do perdão como quer”.

6. O MINISTÉRIO E A IGREJA

Como último ponto na enumeração de assuntos dos quais a Igreja da Reforma não pode abrir mão está sua posição em relação ao Ministério da Igreja, enraizado na comunhão dos santos, naquilo que chamamos de Igreja. A “comunhão dos santos” (communio sanctorum), como o confes-samos no Credo Apostólico, sabemos que é originalmente a participação nas coisas santas, nos santos sacramentos. De fato, a Igreja brota da Palavra e dos sacramentos, por meio deles o “corpo de Cristo” se edifi ca, pois a Igreja não surge de resoluções de pessoas que se reúnem para a fi nalidade de praticarem juntos a religião (Schleiermacher pensou assim). Pelo contrário, é pela Palavra anunciada em seu meio e pelos sacramentos administrados em seu meio que a fé é gerada. É pela fé que as pessoas são incorporadas ao povo de Deus, no corpo de Cristo. Não são os fi éis que fazem a Igreja, mas a Igreja faz os fi éis através dos meios que lhe foram conferidos: Palavra e sacramentos. Assim, a Igreja, como congregação dos santos, agradece total e inteiramente ao agir e falar de Deus, visto ser ela criação da Palavra de Deus (creatura verbi divini).

Para levar os dons de Deus, Palavra e sacramentos, às pessoas, a fi m de implantar e fortalecer nelas a fé, Cristo deu à sua Igreja “pastores” e instituiu o santo ministério que eles exercem. Na instituição desse ofício pelo próprio Cristo, que chamou e enviou os apóstolos, a Igreja preci-sa manter-se de forma imutável e não pode ver nisso uma instituição humana. A concepção de que o santo ministério emana do “sacerdócio universal de todos os crentes” e é simplesmente uma instituição humana para manter a boa ordem, é bem pietista, mas não é doutrina da Igreja Luterana (por isso também não se encontra assim em nossas Confi s-sões). Pelo contrário, a proclamação e a administração dos sacramentos (sempre é exercido “vice et loco Christi”), é confi ada aos portadores do ministério que Cristo instituiu. Eles, como responsáveis diante de Cristo, devem exercer seu ministério de forma conscienciosa, sem falsifi cações. Sua incumbência e sua autoridade remontam aos apóstolos, aos quais Jesus chamou diretamente.

Incumbência e autoridade são transmitidos, hoje, pela ordenação. Cristo age hoje por meios, a saber, dos ministros ordenados. A Igreja tem o dever de examinar os candidatos à ordenação e transmitir o ministério àqueles que o querem administrar conforme a vontade de Deus. (E, con-forme a visão da Igreja antiga e a maioria das igrejas fi eis às Confi ssões, isso excluía ordenação de mulheres). A imposição das mãos que acontece

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na ordenação é um sinal valioso da continuidade através dos séculos, mas não substitui a “sucessão apostólica”, porém a acompanha.

Esse pastorado apostólico, chamado também de “Ofício da Pregação”, tem sempre um caráter de “servo”. Ele não foi instituído para dominar, para exercer “domínio”, mas tem sua autoridade unicamente da Palavra de Deus. Essa Palavra cria por si a aceitação em fé. Os portadores do santo ministério e os fi éis na comunidade estão unidos um ao outro e não devem existir um sem o outro.

Agora, nem a Escritura como tal, nem o culto ordenado por ela, nem a liturgia, nem a pregação, nem o santo ministério, nem a comunidade – seja lá como se chamem – têm fi nalidade em si mesmos, mas servem ao louvor a Deus e à salvação das pessoas para a vida eterna. Assim, a indispensável fi nalidade, da qual nunca podemos abrir mão, da qual a Igreja foi encarregada de levar ao coração e à mente das pessoas, não encontramos em nenhuma exposição melhor formulada do que na expli-cação do 2º Artigo do Credo Apostólico de Lutero:

Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus, gerado do Pai desde a eternidade, e também verdadeiro homem, nascido da virgem Maria, é meu Senhor. Pois me remiu a mim, homem perdido e condenado, me resgatou e salvou de todos os pecados, da morte e do poder do diabo; não com ouro e prata, mas com seu santo e precioso sangue e sua inocente paixão e morte, para que eu lhe pertença e viva submisso a ele, em seu reino e o sirva em eterna justiça, inocência e bem-aventurança, assim como ele ressuscitou dos mortos, vive e reina eternamente. Isto é certa-mente verdade.

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HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA CONFISSÃO DE AUGSBURGO

Lucas André Albrecht1

INTRODUÇÃO

Discussões sobre forma e conteúdo são tópicos recorrentes na vida da Igreja Luterana, especialmente no início do século XXI. Uma das frases que se popularizou nestas conversações é “temos o melhor conteúdo, só precisamos de uma boa embalagem”. Ainda que esta frase, em si, precise ser melhor considerada, quando se trata de formas, de fato, as divergên-cias são maiores do que em relação a conteúdos. Quais os métodos que são adequados, quais as formas que não prejudicam o conteúdo, quais as ilustrações adequadas para a mensagem bíblica são temas que, normal-mente, não se esgotam. Um dos maiores receios inferidos deste tipo de diálogo é a ‘perda da unidade’, e da ‘identidade’ luterana, ao se abdicar de formas, e até tradições, que, em certas circunstâncias, são consideradas parte da essência da igreja.

Na televisão, esta tensão é ampliada. Veículo que trabalha primor-dialmente com a imagem, exige, na ocupação de seu espaço, constante crescimento e profi ssionalização na utilização de seus recursos fundamen-tais. Uma iniciativa luterana que trabalhe com imagem, portanto, muda a forma, a produção e a emissão de mensagens, sermões, uma vez que a tradição homilética luterana, quase na sua totalidade, refere-se ao locus de pregação presencial, especialmente o culto em comunidade. Não se identifi ca um campo específi co de ensino e pesquisa sobre pregação no ambiente televisivo. Assim são os conceitos e conteúdos da pregação no contexto presencial que auxiliam a lançar luz sobre a comunicação luterana na TV.

No contexto da discussão sobre unidade, essência da igreja e ritos (formas), recebe destaque a afi rmação clara das confi ssões luteranas, especialmente em seu artigo VII, a respeito do papel das formas na essên-cia da igreja e sua missão. Para a verdadeira unidade da Igreja, nenhum rito (forma) é essencial, mas sim, Palavra e sacramentos. A partir destes

1 Teólogo pelo Seminário Concórdia (1998) e pela ULBRA (2015). Jornalista (2011) e pós-graduado (2014) pela ULBRA. Mestre em Teologia pelo Seminário Concórdia (2015). Capelão da Aelbra/ULBRA em Canoas, RS. Produtor, apresentador e diretor do programa “Toque de Vida”, da Ulbra TV, desde 2004. ([email protected])

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pilares, as formas adequadas são desenvolvidas para que o evangelho chegue aos corações. Conquanto tradições e formas de expressão esta-belecidas tenham reconhecido valor para a Igreja, nenhuma delas é parte da essência da Igreja, e sim, decorrência dela. Como ressaltou Helmut Thielecke, a cada geração, o evangelho precisa ser pregado de maneiras diferentes, renovadas, uma vez que questões únicas surgem a cada gera-ção. “O evangelho precisa ser constantemente encaminhado para um novo endereço, porque o destinatário tem se mudado constantemente”.2

A partir do referencial homilético luterano de pregação presencial, este artigo verifi cou aspectos da construção do sermão na contemporaneidade, especialmente no ambiente televisivo. Investigou alguns processos de construção e emissão da mensagem luterana para a televisão, tomando como objeto observável o programa Toque de Vida, da Ulbra TV. Ainda, buscou no artigo VII da Confi ssão de Augbsurgo a fundamentação para a variedade nas formas e maneiras de comunicar a Palavra de Deus às pessoas, trazendo a dinâmica entre essência (Palavra e sacramentos) e formas (ritos).

1. PREGAÇÃO LUTERANA

A partir da Grande Comissão de Cristo3 e, especialmente, do evento na festa de Pentecostes,4 os cristãos tiveram confi rmada a certeza de que o papel da Igreja Cristã no mundo é, primariamente, anunciar o evangelho de Jesus Cristo. Os apóstolos afi rmam que não podem deixar de falar do que viram e ouviram.5 Paulo afi rma que a fé vem pelo ouvir da pregação da Palavra. Por isso, é necessário haver, também, quem a pregue.6 Ao longo de suas epístolas, aponta diversas vezes para o ofício da pregação e sua importância para a Igreja Cristã.7 Desta forma, ao longo dos séculos, a comunicação do evangelho, normalmente chamada de pregação, na Igreja Cristã se consolidou como condição indispensável à sua existência e manutenção.

Desde o início do movimento da Reforma Protestante, a pregação foi uma das funções principais de um pastor. Proclamar o evangelho a partir do púlpito era o meio mais comum de ensinar a doutrina. Até mesmo as funções do trabalho pastoral foram redefi nidas, procurando criar mais

2 THIELECKE, Helmuth. How Modern Should Theology be? London: Fontana, 1970, p.10 3 Evangelho de Mateus 28.194 Atos, Capítulo 25 Atos 4.206 Romanos 10.14-177 Por exemplo: 1 Coríntios 1.23; 2 Coríntios 4.1-6; 2 Coríntios 5.18-21; Filipenses 1.15-18;

Colossenses 1.28-29;

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espaço para a pregação.8 No entanto, o próprio Lutero nunca externou claramente uma posição sobre como exatamente deveria ser a forma de um sermão luterano. Ele logo abandonou o modo formal e temático da Idade Média na pregação. Criou um estilo próprio, com sermões focados em exposições bíblicas.9

Na homilética luterana, a tarefa não é tratar apenas de princípios teóri-cos, mas inclui o treinamento prático. O sermão se distingue da pregação no sentido mais amplo pelo fato de ser uma das partes litúrgicas do culto em comunidade.10 Defi nir pregação luterana é uma tarefa gigantesca, frente à vastidão de material e práticas no Brasil e ao redor do mundo. Assim, abordamos apenas alguns aspectos deste desafi o. David Schmitt, analisando a maneira como pastores falam uns com os outros a respeito da pregação, observa que eles tendem a isolar um ou outro aspecto per-tinente à construção da mensagem:

Alguns dizem que o sermão é simplesmente “apresentar o texto novamente às pessoas”. Outras falam sobre a pregação no con-texto de novos cristãos e como o sermão deveria ser mais sobre ensino, mais parecido com um Estudo Bíblico. Outros se prendem fi rmemente à linha da proclamação evangélica e dizem que, quan-do o pregador sobe ao púlpito, ele precisa, simplesmente “afl igir os confortáveis e confortar os afl igidos”, ou “matar as pessoas com a lei e as ressuscitar com o evangelho.” Ainda outros falam sobre a importância do uso de histórias da vida contemporânea e como o contar histórias é uma maneira de se relacionar com as pessoas.11

Schmitt conclui que, ouvindo este tipo de manifestação, se ouve di-versas vozes, sem, contudo, ter uma visão geral e mais completa. Cada pastor tem um pedaço da tapeçaria, mas nenhum deles consegue olhar para o todo.12 Por isso, procurar uma visão global, ou ao menos estabelecer um corte para defi nir a pregação, auxilia na compreensão mais ampla da tarefa do pregador.

Para Dieter Jagnow, a pregação bíblica é “um evento de comunicação que tem por objetivo ajudar as pessoas a ouvirem a eterna e imutável

8 BURNETT, Amy N. How to preach a protestant sermon: a comparison of Lutheran and Reformed homiletics. Department of Faculty Publications, Department of History. v. 63, Lincoln, 2007. n. 2, Disponível em: http://digitalcommons.unl.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1106&context=historyfacpub Acesso em 01 dez 2015.

9 Id. Ibid.10 KIRST, Nelson. Rudimentos de homilética. São Leopoldo: Sinodal, 198511 SCHMITT, David R. The tapestry of preaching. Disponivel em: http://concordiatheology.

org/2011/09/the-tapestry-of-preaching/ Acesso: Outubro, 201512 Id. Ibid.

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Palavra de Deus em suas mutáveis situações cotidianas”.13 É uma peça co-municacional que visa atingir as necessidades reais de pessoas reais.14

Revisando autores da homilética luterana, especialmente Richard Caemmerer, C.F.W. Walther, Vilson Scholz e Ely Prieto,15 uma das possí-veis defi nições para o sermão luterano poderia trazer a característica de apresentar em seu conteúdo: cristocentrismo, lei e evangelho, falar da pessoa e da obra de Jesus Cristo, ter apenas um objetivo, levar em conta a perícope (texto bíblico), trazer ensino teológico da Igreja e ter adequação ao contexto e realidade dos receptores.

2. PREGAÇÃO E TELEVISÃO

Quando se fala em pregação cristã na TV, as referências culturais brasileiras, com maior velocidade, identifi cam as denominações proemi-nentes no cenário televisivo, de origem predominantemente pentecostal e neo-pentecostal. Como o faz, por exemplo, Luiz Carlos Ramos, no artigo “Persuasão homilética na Idade Mídia”. Ramos analisa a prática homilética cristã em sua inter-relação com o fenômeno dos meios de comunicação de massa, particularmente a televisão. Afi rma que:

Nossa opinião é a de que se, por um lado, a programação televisiva encontrou forte inspiração na prática homilética reli-giosa, atualmente a experiência da pregação nas igrejas busca nos meios de comunicação o seu modus operandi (método), o seu modus faciendi (técnica) e o seu próprio modus vivendi (es-tilo de vida).16

Para Ramos, religião e mídia inspiram-se mutuamente, tanto em termos de forma como de conteúdo. Argumenta que, particularmente quanto à TV, o conteúdo deve ser simplista e simplifi cador, para fácil assimilação do telespectador, além de superfi cial, emotivo, narcisista, entre outros.17 A inspiração entre religião e mídia é mútua, sendo que os princípios homiléti-cos que pautam a prática religiosa se refl etem na concepção comunicativa

13 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre, Concórdia, 2010, p.9.14 Id.Ibid., p.9.15 A pesquisa detalhada pode ser acessada em: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos

e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

16 RAMOS, Luiz Carlos. Persuasão homilética na Idade Mídia. A pregação contemporânea e os meios de comunicação de massa. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/camin-hando/caminhando-15/caminhando-15/persuasao-homiletica-na-idade-midia-a-pregacao-contemporanea-e-os-meios-de-comunicacao-de-massa Acesso em 26 de maio, 2015

17 Id. Ibid.

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dos meios seculares.18 Da mesma forma que “quanto mais visual, maior será a chance de certo conteúdo ser veiculado pelo meio televisivo. Daí a impossibilidade de, neste caso, separar-se forma de conteúdo”.19

Assim, segue Ramos, quando a religião se serve desse canal de co-municação,

ela não tem outra escolha, a não ser render-se às exigências próprias do meio. Sua mensagem converte-se, necessariamente, em mercadoria, e a experiência de Deus, ou da fé, é colocada lado a lado com outros produtos do mercado. Há, atualmente, uma indústria milionária e competitiva que se empenha para atender a uma demanda sem precedentes, e que aquece o mercado dos bens religiosos.20

O artigo de Ramos, ao fundamentar-se em autores como Barthez e Gabler, alinha-se com críticas recorrentes aos veículos, especialmente os conceitos de “sociedade do espetáculo” e “república do entretenimento”, datados no século XX. Briggs e Burke, na obra “Uma história social da mídia”, demonstram, no entanto, que a ideia do espetáculo social – rituais públicos, por exemplo – pode ser recuada a data tão antiga quanto, pelo menos, o século XVII. “A palavra ‘espetáculo’, comumente usada no século XVII, foi ressuscitada no século XX”.21

A televisão, apesar de suas características distintivas, não parece ser pioneira no apelo à emotividade e em sua tendência à massifi cação. A afi rmativa de que “o espetáculo tornou-se o mundo”, derivado de A so-ciedade do espetáculo (1967), deve ser contrastada com o comentário de Richard Adler, escritor americano de televisão: “A tela pequena limita gravemente a efi cácia do espetáculo”.22

Outro ponto destacado por Burke e Briggs é o fato de que a maior parte das críticas feitas à televisão nos anos 1960 e 1970 fi cou ultra-passada. No entanto, “algumas parecem curiosamente persistentes”.23 A televisão continua a ser criticada por ser uma agência de redução e trivialidade dos assuntos e notícias, como também uma força negativa, distorcendo conteúdos e fatos. Entretanto, McLuhan, nos anos 1980, já

18 Id.Ibid.19 Id.Ibid.20 Id.Ibid.21 BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p.19.22 BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet. 2ª ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. p.249.23 Id.Ibid., p.244

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era bem menos citado do que 20 anos antes. Os debates iam além, es-pecialmente abordando o papel da família. Muitos diziam que as crianças precisavam de proteção contra a televisão, mas pouco consenso havia sobre a forma de fazer isso.24 Depreende-se, assim, que, tendo recebi-do críticas ferozes, especialmente entre os anos 1960-80, a televisão também tem sido vista, mais recentemente, com menos preconceito e por ângulos positivos, como exemplo, sua utilização como veículo de comunicação e informação.

Quando olhamos a pregação em meios de comunicação a partir da visão luterana, encontramos em Robert Rosin a defi nição de que há mui-tos tipos de veículos de comunicação – mídias – e o papel dos cristãos, especialmente dos comunicadores, é aprender o que eles fazem e de que maneira afetam a mensagem. E recomenda:

Faça uso de todas elas da melhor forma possível, para contatar aqueles que Deus quer que sejam dele outra vez. Seja sóbrio e, então, de qualquer direção que você venha vindo com a men-sagem, transmitida pela mídia do momento, siga na direção da cruz.25

Rosin reforça, também, a necessidade do preparo e adequação ao meio em que se comunica a mensagem, já que o meio afeta a mensagem:

Percebemos o quanto os meios de comunicação – as mídias – de fato moldam a mensagem? Se não percebemos o que um meio ou uma mídia pode fazer à mensagem que leva ou transmite, podemos nos dar mal.26

Isto, evidentemente, não nega a ação do Espírito Santo. Sem preparo, a pregação pode ser uma mera repetição da palavra, como um mantra. Relembra que aí está a razão de o Seminário possuir estudo e ensino de homilética e interpretação bíblica. “Este é o motivo pelo qual pastores e as pessoas em geral se esforçam por dizer as coisas da melhor maneira possível [...] Precisamos aprender a dar o melhor de nós”.27

24 Id. Ibid., p.24425 ROSIN, Robert. O meio molda a mensagem. In: Lutero e a comunicação: o uso da mídia na

proclamação do evangelho. Organizado por Paulo W. Buss. Nilo Waccholz, ed. Porto Alegre: Concórdia, 2015, p.53

26 Id. Ibid., p.3727 Id. Ibid., p.38

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2.1 Pregação luterana na televisão

Diversas iniciativas da IELB no ambiente televisivo já aconteceram e continuam acontecendo.28 Para este artigo, abordamos aspectos da pro-dução e emissão do programa Toque de Vida, da ULBRA TV, de Canoas, RS. Embasado na tradição homilética luterana, surgiu em novembro de 2004, por meio da Comunidade Evangélica Luterana São Paulo (CELSP) e sua mantida, a ULBRA. Projetado para ser um programa diário no novo canal de televisão da Universidade, a ULBRA TV, foi criado com a estrutura básica de música e mensagem.

Em um sentido um tanto diverso do que propõe Ramos, o programa Toque de Vida apresenta características peculiares de pregação na TV. Uma das maneiras de ressaltar esta percepção é recorrendo à fala de três produtores ao longo da história da atração. Fernanda Bordinhão entende que o programa atinge seu objetivo ao focar nas pessoas abertas a novas informações, com fé e com um perfi l mais contemporâneo. “São pessoas que reservam um espaço pequeno de tempo diariamente para receber palavras de conforto, de motivação”.29 Fabiano Silva entende que a efi cácia do programa reside, em grande parte, no fato de abordar situações reais e evidentes do cotidiano, incluindo também datas comemorativas. “A efi cácia [está] em sua simples e breve comunicação”, ressalta, indicando que a mensagem atinge tanto os que são cristãos como tem potencial de conquistar os que não são.30 Para Tatiana Nucci, o programa conseguiu chegar rapidamente à sua proposta de atingir a quem o assiste com uma mensagem positiva, de maneira atrativa, de fácil acesso a toda família. Sendo um programa que chega a públicos diferentes, precisou ter formato totalmente abrangente e dinâmico.31

Bordinhão ressalta que, do seu ponto de vista,

Um dos principais fatores que eu acreditava ser importante na edição dos programas era passar uma mensagem de maneira mais informal, sem o comprometimento de serem palavras e ações regradas e sempre as mesmas. Não sou luterana, mas aprendi muitas coisas editando, participando das gravações dos cultos e

28 Excelente pesquisa nesta área pode ser encontrada em: BUSS, Paulo Wille. Um grão de mostarda: a história da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. V. 2. Dieter Joel Jagnow, ed. Porto Alegre: Concórdia, 2006.

29 BORDINHÃO, Fernanda Chacon. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concór-dia.

30 SILVA, Fabiano Ribeiro da. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para nin-guém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

31 NUCCI, Tatiana In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dis-sertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

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do Toque de Vida, de maneira mais tranquila, sem a obrigatorie-dade de entrar para a religião. O Toque de Vida era assim, para o público que quer fazer o bem, receber mensagens de motivação e repassar uma mensagem de vida, para a vida das pessoas.32

Pastores que já atuaram na produção e gravação de mensagens para o Toque de Vida também manifestaram suas impressões sobre o recorte televisivo da comunicação luterana. Paulo Brum, por exemplo, destaca uma linguagem objetiva e informal, procurando uma proximi-dade/empatia com os telespectadores, buscando uma aplicação cristã à vida cotidiana.33 Ângelo Elicker reforça esta noção ao apontar a busca por uma linguagem acessível, de fácil compreensão, “como se fosse um bate-papo com alguém do lado”.34 Na mesma linha, Marcos Schmidt demonstra preocupação com uma “linguagem simples para não com-plicar a comunicação”.35 Walter Ries Jr. cita o uso de uma linguagem de comum entendimento, “não tão igrejal”.36 O tema da simplicidade volta a ocorrer em Tiago Albrecht, quando relata buscar a linguagem mais simples possível, tentando conectar com o dia a dia das pessoas, como se fossem “parábolas modernas”.37

O programa, ao longo do tempo, procurou trabalhar também a lingua-gem do ponto de vista jornalístico, evitando repetições desnecessárias, excesso de chavões e lugares comuns e também de muletas na fala. O Toque de Vida trabalha, primordialmente, o binômio ilustração e aplicação. Em quase todas as mensagens gravadas, a ideia presente é utilizar uma ilustração bíblica, do cotidiano, fatos históricos, objetos e outros, para, então, fazer uma relação com a Palavra de Deus, tanto no aspecto da justifi cação como da santifi cação.

Isto vai ao encontro de Jagnow, quando afi rma que qualidade na men-sagem passa também pelo emprego de ilustrações, que é um dos recursos

32 BORDINHÃO, Fernanda Chacon. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concór-dia.

33 BRUM, Paulo César Fernandes. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concór-dia.

34 ELICKER, Ângelo Naor. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

35 SCHMIDT, Marcos. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dis-sertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

36 RIES, Walter Trescher Júnior. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para nin-guém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

37 ALBRECHT, Tiago José. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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criativos mais comuns na pregação.38 Justin Rossow, citando Hughes e Kysard, observa que o uso predominante de ilustrações e metáforas não está apenas nas bordas, mas também bem no centro da teologia e do discurso cristão.

O próprio evangelho pode ser proclamado em termos de nasci-mento, vida, salvação, luz, comida, resgate, redenção, herança, reconciliação, casamento, expiação, limpeza, salvação, libertação, vitória, pagamento de dívida ou um veredito de inocência, para citar apenas alguns poucos.39

Para Jagnow, o maior desafi o do pregador luterano, talvez, seja o de aplicar as verdades de Deus ao cotidiano de seus ouvintes, “levan-do em consideração as necessidades espirituais presentes e o destino eterno de homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, letrados e analfabetos, ricos e pobres”.40 A linguagem simples e objetiva, fazendo uso de ilustrações, destacada pelos entrevistados, está em correlação com o uso da criatividade na construção de uma mensagem sucinta para a televisão.

A relação com o cotidiano e o objetivo de estabelecer conexão com a vida das pessoas são também preocupação de Robert Kolb. Descrevendo o começo da conversa dos cristãos com pessoas que ainda não têm a fé cristã, ressalta que “eles percebem que a agenda inicial deste diálogo é estabelecida pelas experiências de vida que impuseram perguntas que precisam de resposta”.41 Mais adiante, Kolb destaca:

Essas perguntas e respostas, é claro, não concluem o testemunho cristão. Elas nem mesmo o simplifi cam. Antes, elas colocam a base para uma aplicação efi caz das mensagens de Deus àqueles que não estavam escutando.42

Outro aspecto que emerge pode ser conectado à Teoria da Relevância, proposta por Dan Sperber e Deirdre Wilson. Para estes autores, a premissa fundamental é de que, raramente, dizemos exatamente o que queremos comunicar. Em algumas ocasiões, podemos ser mais sucintos, utilizando

38 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.27239 ROSSOW, Justin P. Preaching the Story behind the Image: A Narrative Approach to Metaphor

for Preaching. Ph.D. diss., Concordia Seminary, 2008., p.540 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.9.41 KOLB, Robert. Comunicando o evangelho hoje. Traduzido por Dieter Joel Jagnow. Porto

Alegre: Concórdia, 2009, p.10.42 Id.Ibid., p.11.

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menos conteúdo, e, mesmo assim, nos fazemos entender.43 Com isso, os autores demonstram a importância não apenas do código linguístico, mas também do contexto dos falantes de dos ouvintes, como veículos de sen-tido. Isto indica que podemos ser relevantes mesmo não utilizando todas as palavras que, supostamente, seriam necessárias para trazer sentido, desde que utilizemos a nosso favor o código linguístico juntamente com o contexto adequado para que os telespectadores compreendam o sentido do que está sendo comunicado. Pattermore indica:

Contexto, na Teoria da Relevância, é um conceito cogniti-vo – um conjunto de proposições que consideramos verda-deiras, ou, provavelmente, verdadeiras. O resumo de todas estas ideias é o nosso ambiente cognitivo. Evocando um contexto, aquele que fala tanto compele como constrange quem ouve na direção de uma interpretação específi ca.44

E como deve ser uma mensagem luterana para a televisão? Os pas-tores que atuaram na produção do Toque de Vida opinam que ela “não deve ter chavões igrejeiros”, deve ser simples, com um sorriso nos lábios e sem rotulações.45 Bem elaborada, comunicativa, criativa, dinâmica, atual, comprometida com a sua confessionalidade, responsável com sua doutrina e, sobretudo, que tenha a mesma linguagem de Jesus, ou seja, o amor pelas pessoas.46 Identifi cada com o público, relevante para os dias atuais, fundamentada na Bíblia, visual e retoricamente agradável aos olhos e ouvidos dos telespectadores.47 O DNA da homilética luterana: falar de maneira simples e próxima do tempo em que se vive, reformando e adequando a linguagem”.48

43 PATTEMORE, Stephen. On The Relevance of Translation Theory. In: Review and Expositor, n. 108, Spring 2011, p. 266. Na mesma página, o autor ilustra: “If I shout “Fire!” in a crowded room, it will be understood by everyone to mean, “The house is on fire. Leave the building immediately”. I could say exactly what I mean, but it would be not so relevant because it would take too long for the listeners to process and might not gain their attention in the first place. Similarly, few in the room would interpret my utterance to mean, “Squeeze the triggers of your guns” although in another context that might be the precisely relevant meaning. No code system conceivable distinguishes these two meanings of “Fire!” Context does that.”

44 PATTEMORE, Stephen. On The Relevance of Translation Theory. In: Review and Expositor, n. 108, Spring 2011. p. 267.

45 ALBRECHT, Tiago José. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

46 SCHMIDT, Marcos. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dis-sertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

47 BRUM, Paulo César F. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

48 REGIANI, Herivelton. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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É possível mencionar também:

- pensada para um público primariamente não-luterano;

- embasada e focada em conceitos básicos da fé cristã;

- aplicada ao cotidiano das pessoas;

- pensar em longo prazo, estabelecimento de relacionamentos;

- não colocar todo o conteúdo em cada mensagem;

- bem trabalhada visualmente;

- focada em argumentos claros e consistentes, sem necessidade de apelações ou imposições.

Do ponto de vista da recepção, os produtores do programa Toque de Vida entendem que ele atinge seu objetivo ao focar nas pessoas abertas a novas informações, com fé e com um perfi l mais contemporâneo.49 Indicam que sua efi cácia reside, em grande parte, no fato de abordar situações reais e evidentes do cotidiano. Uma comunicação simples e breve, indicando que a mensagem atinge tanto os que são cristãos como tem potencial de conquistar os que não são.50

Neste contexto, um aspecto relevante a ser contrastado é que, embora construídas para serem veiculadas no ambiente televisivo, com criatividade e variedade, não se pode inferir categoricamente a tendência manifesta por Ramos, de que a adesão irrestrita aos modelos comunicacionais te-levisivos – especialmente emotividade, simplismo e comercialismo – se aplique ao modo luterano de conceber e produzir mensagens para este meio de comunicação. Nem de que a mensagem televisiva luterana também “converte-se, necessariamente, em mercadoria, e a experiência de Deus, ou da fé, é colocada lado a lado com outros produtos do mercado”.51 Pelo contrário, ao analisar a forma de construção das mensagens relatadas pelos pastores, observa-se proximidade com o que descreve Prieto, quando afi rma: “Como pregadores, temos que confrontá-los [os pós-modernistas] com a metanarrativa da Escritura. Através da história narrativa do evan-gelho, o Espírito Santo pode fazer da História a história deles. A verdade da Bíblia, a verdade deles”.52

49 BORDINHÃO, Fernanda Chacon. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concór-dia.

50 SILVA, Fabiano Ribeiro da. In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para nin-guém. Dissertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

51 RAMOS, Luiz Carlos. Persuasão homilética na Idade Mídia. A pregação contemporânea e os meios de comunicação de massa. Disponível em: http://www.metodista.br/ppc/camin-hando/caminhando-15/caminhando-15/persuasao-homiletica-na-idade-midia-a-pregacao-contemporanea-e-os-meios-de-comunicacao-de-massa Acesso em 26 de maio, 2015

52 PRIETO, Ely. Communication skills for postmodern challenges. San Antonio; 2003. Trabalho apresentado em sala de aula para curso de pós-graduação. p.3

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Quando se verifi ca a realidade da televisão como veículo diário, ali-cerçado em grande parte na busca pela novidade constante e no rápido descarte do conteúdo já exibido, pode ser manifestada a impressão de que o grande esforço empreendido em sua utilização, na comparação tempo investido em preparo versus público atingido/resultado obtido, pode ter sido infrutífero. Rosin, no entanto, auxilia:

Lutero entende que aquilo que se proclama é a viva vox Dei, a voz de Deus. O pregador e as palavras que ele fala são passageiros, mas a mensagem transmitida trouxe vida.53

Sob esta ótica, é possível delinear algumas características da comu-nicação luterana na televisão: linguagem clara e objetiva, conectada à vida dos telespectadores. Utilização de ilustrações do cotidiano, linguagem informal. Preocupação com a qualidade de áudio e vídeo. Edição qualifi -cada, buscando dar dinâmica ao programa. Evidencia-se que, levando em conta estes ingredientes juntamente com aqueles tradicionais da pregação luterana, a comunicação televisiva da IELB busca, por meio de ilustrações e conexões com a vida diária, em poucos minutos, conectar o telespectador ao evangelho. A característica distintiva para com a pregação presencial reside no fato de não ter diante de si a audiência e de que esta audiência imaginária é composta de um grupo não confessional, isto é, um amplo espectro de pessoas de todas as origens possíveis.

3. ARTIGO VII DA CONFISSÃO DE AUGSBURGO E A PREGAÇÃO LUTERANA TELEVISIVA

Pregar na televisão, de certa forma, é arriscar-se. As exigências deste ambiente de comunicação passam por criatividade, dinâmica de formas, tempo e outros fatores externos à construção homilética em si com que o emissor busca alternativas de comunicar-se com o seu público. O próprio fato de levar em conta a audiência, seus interesses, anseios, suas neces-sidades, leva o pregador a pensar não apenas na produção e emissão, mas também na recepção. E isto vai afetar a forma com que procura se comunicar com o público que o assiste, ainda que seja invisível.

Neste contexto, a prática homilética, em seu conteúdo e apresentação, encontra apoio no artigo VII da Confi ssão de Augsburgo. Analisando cons-trução, formatação, conteúdo e público intencionado dos comunicadores luteranos para a televisão, sua reiterada afi rmação da busca por expressar

53 ROSIN, Robert. O meio molda a mensagem. In: Lutero e a comunicação: o uso da mídia na proclamação do evangelho. Organizado por Paulo W. Buss. Nilo Waccholz, ed. Porto Alegre: Concórdia, 2015, p.42

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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um conteúdo que não muda, utilizando formas variáveis, a consonância com o princípio expresso na Confi ssão de Augsburgo, em seu Artigo VII, quando trata da essência e conteúdo do culto e da mensagem cristã e sua relação com as formas de fazê-lo:

E para a verdadeira unidade da igreja basta que haja acordo quanto à doutrina do evangelho e à administração dos sacramentos. Não é necessário que as tradições humanas ou os ritos e cerimônias ins-tituídos pelos homens sejam semelhantes em toda a parte.54

Na Apologia, os confessores avançam este ponto. Ao mencionarem a condenação romana a este artigo, mencionam a distinção feita entre ritos universais e particulares. A Santa Sé aprovaria alterações neste último, não abrindo mão, entretanto, dos primeiros.55 Com certa ironia, os confessores dizem não entender com clareza o que aqui querem os teólogos de Roma, já que está evidenciada a preocupação com a unidade verdadeira, “isto é, a unidade espiritual, sem a qual não pode existir fé no coração ou justiça do coração diante de Deus”.56 E confi rmam:

Para isso, dizemos, não se requer similitude em matéria de ritos humanos, quer universais, quer particulares, porque a justiça de fé não é justiça presa a certas tradições [...]. Para essa vivifi ca-ção nada contribuíram tradições humanas, quer universais, quer particulares. Nem são elas efeitos do Espirito Santo, como o são a castidade, a paciência, o temor de Deus, o amor ao próximo e as obras de caridade.57

Neste contexto, o pregador é alicerçado na noção de que seu compro-misso fundamental com o Reino de Deus, a obra de Cristo e as Confi ssões Luteranas é ser fi el em Palavra e sacramentos. Conduzir seu ministério com a maior certeza possível de que está pregando a Palavra clara e corretamente e administrando os sacramentos como Cristo instituiu. Não é estritamente necessário que se apegue a formas, manuais, formatos e ritos previamente estabelecidos, ainda que consolidados pela tradição da Igreja, pois estes não são requeridos para a unidade verdadeira, isto é, a unidade espiritual.58 Os reformadores são enfáticos em afi rmar que

54 LIVRO DE CONCÓRDIA. Arnaldo Schüler, trad. 4 ed. Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993, p.66.

55 Apologia da Confissão. In: Livro de Concórdia. Arnaldo Schüler, trad. 4 ed. Porto Alegre: Sinodal/Concórdia, 1993, p.182

56 Id. Ibid., p.18257 Id. Ibid., p.18358 Apologia da Confissão. In: Livro de Concórdia. Arnaldo Schüler, trad. 4 ed. Porto Alegre:

Sinodal/Concórdia, 1993, p.183.

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ritos diferentes de maneira nenhuma ameaçam a unidade da Igreja, ainda que, pela tranquilidade do trabalho, acreditem que a manutenção de ritos universais lhes agrade.59

Um dos fatores fundamentais que move os reformadores na direção oposta à igreja romana é a noção arraigada de que a observância de ritos, sejam universais ou particulares, contribuiriam, de alguma forma, na jus-tifi cação pela fé – algo que já fora refutado extensamente na Apologia, IV. Enfatizam, assim, que a discussão neste ponto se trata de serem tradições humanas necessárias ou não para a justiça diante de Deus. Resolvida esta questão, seria possível, então, trabalhar a questão secundária, isto é, tradições humanas como necessárias para a unidade da Igreja.60

Os confessores reagem à afi rmativa de seus adversários de que os ritos universais deveriam ser observados por serem transmitidos pelos próprios apóstolos. Ironizam, então, este argumento, mostrando que existe preocupação com os ritos, mas não com a doutrina apostólica. Indicam, então, que isto deve ser julgado exatamente como os apóstolos o fazem em seus escritos, quando mostram que não querem impor ônus às consciências de que tais ritos seriam necessários para a justiça perante Deus. Não queriam pôr justiça e pecado na observância de comida, dias e coisas semelhantes. Pelo contrário, opiniões como esta Paulo chamou de “doutrina de demônios”.61

A visão do recorte televisivo da comunicação homilética luterana apresentada até aqui, especialmente ao se preocupar com formas e adaptações em seu cuidado e preocupação com o receptor, encontra dissonâncias. Por exemplo, David Luecke, no que diz respeito ao rela-cionamento sermão e comunicação. Utilizando pesquisa realizada com pastores das duas principais igrejas luteranas dos Estados Unidos so-bre o comportamento de ouvintes frente a sermões luteranos, aponta que o estudo trouxe a hipótese de que “o comprometimento com uma comunicação mais efi caz pode levar ao afastamento da norma luterana de abordagem na pregação e culto, pelo fato de colocar ênfase maior nas necessidades e interesses dos ouvintes e participantes”.62 Robert Schaibley vai ainda além. Não se deve levar em conta as necessidades dos ouvintes, uma vez que a pregação luterana não é comunicação, e sim, proclamação. O pastor tem um ofício dado por Deus e, por causa dele, realiza no sermão um anúncio unilateral da verdade bíblica, para

59 Id.Ibid, p.18360 Id. Ibid., p;18461 Id.Ibid., p.184-562 LUECKE, David S. Trends among Lutheran Preachers. Word and World, Volume XIX,

Winter 1999. Disponível em: http://www2.luthersem.edu/Word&World/Archives/19-1_Preaching/19-1_Luecke.pdf Acesso em 21 nov. 2010. p.22.

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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ser aceito ou rejeitado. A pregação envolve a presença do ouvinte, mas não necessariamente sua cooperação.63

Por outro lado, encontram ressonância em Kolb sobre a necessidade de se compreender as perguntas e traumas das pessoas à margem da fé para uma aplicação efi caz da Palavra.64 Partilham, também, da opinião de Jagnow, que destaca a criatividade e variedade como forma de levar em conta, com seriedade, o ouvinte. Citando Gerald Knoche, indica que a criatividade pode ser vista como a construção de uma ponte entre a imutável Palavra de Deus e o sempre mutável grupo de ouvintes a quem ela se dirige.65 Afi rma que é importante gerar condições adequadas que permitam ação criativa e recriativa de Deus acontecer na vida dos ouvin-tes com o maior vigor possível.66 Mas faz o destaque, em acordo com o ensino bíblico luterano:

A verdadeira resposta do ouvinte não surge por causa da sua habilidade como pregador, mas como resultado da ação do Espírito de Deus. Você deve buscar ser ou tornar-se um pregador criativo, sim, mas santifi cadamente criativo.67

Robert Kolb afi rma que não apenas o conteúdo da mensagem deve ser preciso, mas também precisa ser apresentado de forma correta. Assim como falou ao público dos apóstolos e profetas, tanto tempo atrás, deve ser “direcionado com precisão para a situação do ouvinte contemporâneo”.68

Retoma-se, aqui, a ênfase de Jagnow na criatividade e variedade na pregação. Observa que a pregação pode ser vista como uma expressão artística, pois o pregador é um artesão que atua como instrumento de Deus de forma ordenada e expressiva.69 Criatividade na pregação “é o

63 SCHAIBLEY, Robert. “Lutheran Preaching: Proclamation, Not Communication,” Concordia Journal, St. Louis, v.18, n.1, p. 6-27, jan.1992.

64 Uma introdução a respeito das teorias da recepção encontra-se em Stuart Hall, Nilda Jacks e Caroline Escosteguy. Estas, por exemplo, entendem o receptor como indivíduo ativo. A mensagem dos meios é uma forma cultural que pode estar sujeita à análise e interpretações diferentes da intenção original, já que a audiência é composta por pessoas que produzem sentido. Assim, o que caracteriza a análise de recepção é uma comparação entre o con-teúdo dos meios e o da audiência, confrontando a estrutura do conteúdo com a resposta da audiência a ele (cf. referências na bibliografia).

65 KNOCHE, Gerald. In: JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.66

66 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.6767 Id. Ibid, p.6668 KOLB, Robert. Comunicando o evangelho hoje. Traduzido por Dieter Joel Jagnow. Porto

Alegre: Concórdia, 2009, p.17.69 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.66

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olhar que procura ver o que é familiar a partir de uma nova perspectiva ou de um contexto diferente”.70

Sob o título “atualização, não acomodação”, vale, ainda, buscar em Kolb o referencial de que as palavras que são anunciadas devem ser claras e compreensíveis para as pessoas que não estão familiarizadas com o contexto das Escrituras, evitando, no entanto, o perigo de, ao construir a ponte, fi xar-se demais no lado em que ela toca a cultura predominante. Os cristãos não podem esquecer-se da orientação do Espirito Santo nesta questão. Mas,

eles também precisam lembrar que o Espírito Santo não opera de uma forma mágica. Ele guia e aconselha através do intenso estudo da Palavra e da cultura para a qual nos chamou para sermos teste-munhas. Ele guia e aconselha através de irmãos na fé, que também estão engajados no estudo do conteúdo, ou ensino da Palavra, e sua aplicação e proclamação na sociedade em que vivem.71

Para isso, trabalho duro é indispensável. Não é possível dividir a co-municação pastoral entre pregadores criativos e não-criativos, defende Jagnow, pois resultados criativos são possíveis na vida de qualquer pastor, em qualquer área do ministério.72 É o que defende Knoche, para quem os bons resultados na pregação se dão menos por dons superiores e mais por trabalho árduo ao longo do tempo. Pastores criativos são aqueles que entenderam criatividade como algo importante e trabalharam constante-mente nesta direção.73

Quando alguma dúvida ainda resta sobre a importância de uma comu-nicação clara do conteúdo cristão dentro de formas adequadas ao ambiente de comunicação – no recorte aqui abordado, a televisão –, depoimentos como o dos produtores são uma lembrança de que o artigo VII faz parte do cotidiano do comunicador luterano:

Foram anos de aprendizagem através de mensagens e expla-nações. Muitas vezes, as mensagens pareciam ser escritas diretamente para mim. O formato simples e direto, a linguagem coloquial utilizada, com toda certeza, são fatores determinantes para o sucesso e a longa vida do programa.74

70 Id. Ibid., p.6671 KOLB, Robert. Comunicando o evangelho hoje. Traduzido por Dieter Joel Jagnow. Porto

Alegre: Concórdia, 2009, p.16.72 JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia, 2010, p.6973 KNOCHE, Gerald. In: JAGNOW, Dieter Joel. Pregação criativa. Porto Alegre: Concórdia,

2010, p.69. 74 NUCCI, Tatiana In: ALBRECHT, Lucas André. Pregando para todos e para ninguém. Dis-

sertação de Mestrado, 2015. Disponível na Biblioteca do Seminário Concórdia.

HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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Ao redigirem o Artigo VII da Confi ssão de Augsburgo, e também sua Apologia, insistindo em que a essência da Igreja encontra-se em Palavra e Sacramentos, os reformadores, portanto, com quatro séculos de an-tecedência, contribuíram também para embasar uma sólida e saudável teologia e prática homilética da Igreja nos meios de comunicação do século XX e XXI.

CONCLUSÃO

Ser criativo e investir na variedade de formas é, de certa forma, arriscar-se. No ambiente televisivo, esta aventura fi ca ainda mais rica pelo desafi o da comunicação com um público amplo e ‘invisível’. A busca pelo ideal de não subverter o conteúdo, mas fl exibilizar as práticas que fazem parte do cotidiano homilético de cada pastor, tem sua necessidade ampliada no ambiente de utilização de veículos de comunicação como a televisão.

A homilética luterana tradicional possui uma vasta produção e, como destaca Schmitt, é uma tapeçaria onde, provavelmente, ninguém tem a peça toda, mas todos podem contribuir como uma parte. A homilética para a televisão, no entanto, ainda é uma peça por ser tecida, um campo que pode ser amplamente explorado e para o qual este artigo buscou trazer uma pequena contribuição.

Utilizar os fundamentos da homilética luterana como base para a prática da comunicação do evangelho, sem dúvida, é fundamental para o pregador luterano. Apoiar-se no artigo VII da Confi ssão, neste contexto, dá a segurança e certeza das possibilidades e alternativas existentes para que Palavra e Sacramentos, a essência da Igreja, cheguem às pessoas nas formas e ritos que melhor estejam adequados ao contexto onde se está inserido, comunicando, incansavelmente, e de todas as formas possíveis, o amor de Jesus Cristo pelo ser humano.

REFERÊNCIAS

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HOMILÉTICA LUTERANA, PREGAÇÃO TELEVISIVA E O ARTIGO VII DA C. DE AUGSBURGO

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AUXÍLIOS HOMILÉTICOS

AUXÍLIOS HOMILÉTICOS: PUBLICAÇÕES DE 1990 A 2014

Ao longo de sua história, a revista Igreja Luterana tem procurado au-xiliar os pregadores da palavra de Deus por meio de auxílios homiléticos produzidos por pastores e estudantes de Teologia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil e de igrejas irmãs. Tendo em vista que nas três últimas décadas foram publicados auxílios para todas as séries normalmente uti-lizadas nas pregações em congregações da IELB, a publicação de auxílios homiléticos está temporariamente interrompida. A equipe editorial estu-da formas de no futuro novamente vir a oferecer auxílios semelhantes, inclusive tendo em vista recentes alterações em alguns textos da Série Trienal.

No propósito de auxiliar os pregadores na elaboração de sermões, bem como servir de material de apoio para estudos bíblicos por parte de pastores e líderes leigos, disponibilizamos abaixo a indicação das edições da revista a partir de 1990 em que se encontram os auxílios referentes a cada série de leituras. Informamos aos leitores que a maior parte destas edições está disponível na página eletrônica do Seminário: (http://semi-narioconcordia.com.br/seminario/biblioteca/revistail.php)

Os números colocados referem-se, respectivamente, ao ano e a edição da revista em que se encontram os auxílios homiléticos. Tendo em vista modifi cações em algumas leituras para determinados domingos do ano eclesiástico, nem todos os textos da atual série Trienal estarão contem-plados.

A equipe editorial agradece o trabalho realizado pela então secretária do Seminário, Sra. Cárin Fester e pela atual secretária acadêmica, Sra. Ivete Schwantes, que participaram na elaboração dos dados colocados abaixo.

Trienal A

Antigo Testamento – 1990/1, 2001/2, 2002/1, 2010/2, 2011/1

Epístola –1992/2, 1993/1, 2013/1

Evangelho – 1995/2, 1996/1, 2008/1, 2013/2 e 2014/1

Trienal B

Antigo Testamento – 1994/1, 2002/2 e 2003/1

Epístola – 1996/2, 1997/1, 2011/2 e 2014/2

Evangelho – 1999/2 e 2000/1

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IGREJA LUTERANA

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Trienal C

Antigo Testamento – 1993/2, 1994/1, 1995/1, 2009/2 e 2010/1

Epístola – 1997/2 e 1998/1

Evangelho –1991/2, 1992/1, 2000/2, 2001/1 e 2012/2

Tradicional Reformulada

Antigo Testamento – 1998/2 e 1999/1

Epístola – 2004/1

Evangelho – 1990/2, 1991/1, 2008/2 e 2009/1

Estudos baseados no Catecismo Menor de Martinho Lutero – 2004/2

Estudos baseados em histórias Bíblicas do Antigo Testamento – 2006/1 e 2006/2

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RESENHA

PLESS, John T. Martin Luther: Preacher of the Cross. Saint Louis: Concordia Publishing House, 2013.

Edenilson Gass1

Martin Luther: Preacher of the Cross é uma análise e abordagem da teologia pastoral de Martinho Lutero. Nesta obra, John T. Pless nos con-templa com seu vasto conhecimento sobre a vida e teologia de Lutero, mostrando como este atingiu a maturidade teológica a partir da própria experiência com a Escritura e, especialmente, como ele aplicou sua teo-logia nas diversas situações de seu ministério pastoral. Pless enfatiza a essência extra nos da compreensão teológica de Lutero, mostrando que diante do sofrimento e da morte, o cristão deve manter os olhos fi xos no Cristo crucifi cado.

Com base nisso, o autor discorre sobre assuntos essenciais como o cuidado pastoral a doentes, enlutados e afl itos; a vocação como chama-do ao exercício da fé e do amor; e a dimensão escatológica do batismo. Também trabalha sobre assuntos difíceis e delicados, como predestinação, perseguição e problemas conjugais, fundamentado em bons escritos de ou sobre Lutero.

Esta não é uma obra doutrinária da teologia de Lutero que traz sua defi nição sistemática sobre os dogmas da Igreja Cristã. É, isto sim, uma mostra da abordagem cristológica/cristocêntrica do Dr. Martinho Lutero de forma aplicada às necessidades humanas, que tira o foco equivocado de sobre o problema ou pecado e direciona para aquele que prometeu estar conosco todos os dias até a consumação dos séculos.

Isso é o que o leitor encontrará nos seguintes títulos de Martin Lu-ther: Preacher of the Cross: 1) A visitação e os catecismos: diagnóstico e remédio; 2) Cuidado pastoral em tempos de ansiedade e afl ição; 3) Cuidado pastoral face à dúvida e ao desespero; 4) Cuidado pastoral à luz da vocação; 5) Cuidado pastoral para casamentos; 6) Cuidado pastoral ao pobre, necessitado e perseguido; 7) Cuidado pastoral ao doente e moribundo; 8) Cuidado pastoral do enlutado; 9) Batismo como meio de consolo na teologia pastoral de Lutero.

O posicionamento de Pless é de que os pastores do século XXI ainda devem estudar a teologia de Martinho Lutero a fi m de aplicá-la em seu próprio ministério. Ele diz: “Esta era e é minha convicção que quanto mais pastores estiverem envolvidos pela teologia de Lutero, tanto mais forte

1 Especialista em Teologia pelo Seminário Concórdia de São Leopoldo/RS. Mestrando em Teologia Prática na mesma instituição.

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IGREJA LUTERANA

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será sua pregação de arrependimento e fé”. Para Pless, conhecer e aplicar a teologia de Lutero não só é algo signifi cativo, senão que de extrema importância para o diligente cuidado das almas.

O pastor – e, de forma especial, o pastor luterano – precisa conhecer a teologia de Lutero. Não apenas com o intuito de possuir conhecimento, porém de fazer teologia, ou seja, de aplicar a palavra de Deus, sob a correta distinção de Lei e Evangelho, ao povo de Deus e a determinados cristãos individualmente quando enfrentam tentações, sofrimento e luto. Assim também o pastor precisa desenvolver a naturalidade em apontar o pecado com a Lei, consolar com o puro Evangelho e levar os cristãos a louvar a Deus em qualquer situação, sabendo que ele, em sua infi nita sabedoria, é quem rege e governa sobre o mundo, o pecado e o diabo.

Além disso, Lutero entendeu que nenhuma cruz é tão pesada quanto a cruz de Cristo, que nenhum pecado é grande demais para o Cordeiro de Deus e que o cristão nunca sofre sozinho, pois conta sempre com a presença e o cuidado do próprio Deus. Tudo isso, irrefutavelmente, faz de Lutero “O pregador da Cruz”.

O propósito de Pless, portanto, é justamente demonstrar como a teo-logia de Martinho Lutero é útil no exercer a cura d’almas. Seelsorgerlich é o termo que Lutero usa para falar do ato de curar almas. E o que cura a alma e a consciência é o que está no centro da teologia de Lutero: a doutrina da justifi cação. Ou seja, o fato de que o ser humano pecador é perdoado e reconciliado pelo Deus justifi cador sem nenhum mérito ou dignidade de sua parte. Curar almas, por conseguinte, não é ensinar o cristão a acalmar a consciência com boas obras ou reta vida moral. Isso ou onera mais ainda a consciência ou produz falsa segurança. Curar almas, no entanto, é anunciar o perdão dos pecados. É apontar para Cristo, o salvador da humanidade.

Portanto, Pless atinge seu propósito ao trazer de forma direta e siste-mática vários exemplos da teologia de Lutero sendo aplicada às pessoas em seus mais diversos momentos de dor e dúvida, seja em forma de carta, sermão, conversa ou aconselhamento. Pless demonstra que a teo-logia é sempre prática e pastoral, pois é a palavra de Deus não apenas sendo vivida, mas também “acontecendo”, agindo entre os cristãos. E é esta Palavra que traz o riquíssimo tesouro do Evangelho, o qual torna co-nhecido o Deus absconditus, agora Deus revelatus em Cristo Jesus. Deus que ama, perdoa e salva.

Qualquer tipo de teologia que não leva, pela pregação do Evangelho, a pessoa a colocar-se diante de Cristo e buscar somente nele socorro e salvação, é enganosa e diabólica. Teologia bíblica distingue Lei e Evan-gelho e os aplica apropriadamente, sempre com o intuito de fi nalmente

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pregar o Evangelho e apontar para o Cristo crucifi cado. E é para isso que o pastor, por seu ofício e chamado, recebe autoridade: pregar a Palavra e administrar os sacramentos para o conforto e salvação dos cristãos.

O livro, por isso, é de grande valia para quem busca exercer devida-mente o cuidado espiritual ao sofredor e encaminhar os cristãos na fé salvadora, preparando-os para o seu encontro com Cristo. A vida cristã é composta por muitas cruzes. O que, para Lutero, é motivo de grande regozijo, pois ressalta a união do crente com Cristo. E a mais apavorante cruz é precisamente o último inimigo: a morte. Cuidado pastoral é, em última análise, preparar o cristão para morrer na certeza da vida eterna, confi ante que, para quem está em Cristo, “a morte está morta”.

É, portanto, uma excelente leitura para pastores, a fi m de que cum-pram cabalmente seu ministério, pregando sempre o Cristo crucifi cado para consolo e salvação. Entrementes, é também importante conteúdo a ser absorvido por todos os líderes e membros da Igreja Cristã para o indispensável exercício da mútua consolação.

MARTIN LUTHER: PREACHER OF THE CROSS

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RESENHA

SCHEIBLE, Heinz. Melanchthon, uma biografi a. Tradução Walter O. Schlupp. São Leopoldo/RS: Editora Sinodal, 2013.

Horst Kuchenbecker1

Heinz Scheible é um dos grandes pesquisadores de Melanchthon, sendo também coordenador do Departamento de Pesquisa sobre Melanchthon da Academia de Ciência de Heidelberg, Alemanha. O seu livro Philipp Me-lanchthon, Eine Gestalt der Reformationszeit, 1993, inclui dois mapas: de suas viagens e das cidades alcançadas por sua correspondência. Ele cita resultados impressionantes de suas pesquisas. Por exemplo: Melanchthon visitou mais de 176 cidades, algumas delas diversas vezes. Temos mais de 9.500 fragmentos de suas cartas, dirigidas a mais de 500 pessoas, em diversos países: Alemanha, França, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Espanha, Itália, Dinamarca, Suécia, Polônia, Prússia, Romênia, Rússia, etc. Destas pesquisas resultou este livro: Melanchthon, uma biografi a.

Um livro impressionante que merece ser lido por pastores e leigos. Para podermos compreender melhor o fundo histórico, as lutas doutrinárias nas quais Melanchthon estava envolvido e as pessoas relacionadas a essas doutrinas, recomendamos que antes de ler a biografi a, leiam o livro de Otto A. Goerl: Cremos, por isso também falamos: uma introdução à Fórmula de Concórdia. Melanchthon foi um grande humanista e teólogo. Ele recebeu o título de Praeceptor Germanie (Professor da Germânia). Teve uma grande capacidade de diálogo. Visto que Lutero, como proscrito, não podia viajar para todos os lugares, coube a Melanchthon participar das conferências e diálogos. Estes tinham seus perigos, por exemplo, ceder demais no afi rmar doutrinas. O livro nos dá uma boa visão das lutas doutrinárias e esforços despendidos por Melanchthon pela Reforma.

1 Horst Kuchenbecker é pastor emérito da IELB, residindo em São Leopoldo/RS.

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VEITH JR., Gene Edward. Espiritualidade da cruz: os caminhos dos pri-meiros evangélicos. Tradução: Paulo S. Albrecht. Porto Alegre: Concórdia, 2014.

Timóteo Felipe Patrício1

Ser luterano signifi ca ser “cruciano”. A teologia luterana tem como princípio que não há como conhecer a Deus tal como Ele é sem que antes Ele se revele. Isto acontece através de Cristo, em sua obra que consiste em sofrimento e morte de cruz.

O livro de Gene E. Veith apresenta de uma maneira simples e facilmen-te compreensível a perspectiva luterana a respeito do relacionamento do ser humano com Deus. O ponto de partida é a situação do ser humano, corrompido e digno de condenação em si mesmo, sem condição alguma de mudar isso. Toda espiritualidade falsa (que leva a ou emerge de uma teologia falsa) ignora este aspecto. É a única forma de construir uma espiritualidade que valoriza esforços humanos na busca por algo que dê sentido para a existência. A espiritualidade luterana, no entanto, come-ça pelo reconhecimento desta condição. A única solução possível para a mesma é a ação de Deus. Esta acontece, por sua graça, através de seu Filho, Jesus Cristo.

Veith destaca os caminhos para Deus que emergem da aspiração es-piritual do ser humano, apontadas pelo teólogo Adolf Koeberle. Estes são: o caminho do moralismo, que procura alcançar o favor de Deus por meio da perfeição na conduta moral; o caminho da especulação, que busca al-cançar a perfeição de entendimento, vista como a chave para a realização espiritual; e o caminho do misticismo, no qual a alma tenta alcançar a perfeição ao se tornar um com Deus. Todos estes caminhos são falsos e levam a nada, a não ser ao desespero.

A resposta para essas aspirações espirituais emergem das Escrituras, de acordo com Lei e Evangelho. A Lei revela a inviabilidade dos caminhos construídos pelo ser humano, ao mostrar sua condição desesperadora, e o Evangelho revela que eles são desnecessários, ao mostrar que Deus já construiu um caminho até o mundo, em Cristo. Com alguns textos signi-fi cativos, Veith mostra que a palavra de Deus desmantela qualquer tipo de espiritualidade humana. “Não há justo, nem um sequer [para acabar com o moralismo], não há quem entenda [para acabar com a especula-

1 Timóteo F. Patrício, pastor na Congregação Cristo, em Duque de Caxias, RJ. É formado em Teologia (Bacharel e Especialista) na Universidade Luterana do Brasil. Esta resenha foi apresentada na disciplina de “Seminário em Teologia Contemporânea” e recomendada pelo professor da disciplina, Dr. Paulo M. Nerbas.

RESENHA

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ção], não há quem busque a Deus [para acabar com o misticismo]” (Rm 3.10, 11). Diz Jesus: “Eu sou o caminho [para acabar com o moralismo], a verdade [para acabar com a especulação] e a vida [para acabar com o misticismo]” (Jo 14.6).

A expansão das considerações de Veith levam o leitor a perceber a simplicidade da ação de Deus entre seu povo. A acessibilidade a Deus que faz parte da loucura da teologia da cruz é proposta contra toda religiosida-de humana construída sobre uma base fraca e que conduz a rumos nada promissores. É de suma importância que crentes tenham esta percepção a respeito de sua vida cristã, vivida tanto na comunhão com os irmãos na fé quanto em meio à vida comum do dia a dia.

Os crentes precisam ter consciência do que signifi ca “ser igreja”, e o livro fornece uma perspectiva para tanto. As características da igreja não podem ser dimensionadas, de acordo com critérios humanos, a partir da vida diária dos crentes. Na luta contra o pecado, a queda é constante; na vida diária, há dor e sofrimento; no culto, não há uma manifestação visível da glória de Deus; a igreja cristã está dividida em diversos grupos denominacionais; a doutrina falsa é disseminada... diante desses e de outros aspectos, cristãos podem se perguntar: onde está a una, santa, católica e apostólica? Nenhuma destas verdades acerca da igreja parecem ser verdade. No entanto, estas verdades, fazendo parte do credo, são con-teúdo de fé, não características que podem ser buscadas e encontradas a partir do esforço humano. Não há como alcançar estas verdades por meio do moralismo, da especulação ou do misticismo. Estas são verdades que pertencem à fi des quae (fé que é crida).

Olhando para os atos externos realizados em um culto na igreja, não parece haver nada de grandioso. No entanto, pela fé é possível crer que nesses atos simples Deus está “comungando” com seus fi lhos. Em cada culto estão presentes os meios da graça – o Santo Evangelho, o Santo Batismo e a Santa Ceia. Sendo assim, Cristo está presente e ali há perdão de pecados. Deus não está distante, no céu, mas presente entre o seu povo, servindo-o com a sua graça. Na simplicidade da palavra, do batis-mo e da ceia, Deus está realizando o milagre do perdão. Não há como perceber, mas Deus está presente.

Na sua vida diária, cristãos não têm constante tranquilidade; são diariamente atormentados pelo pecado e suas consequências. Para den-tro desta realidade, precisam de uma verdade que os console. Esta é a verdade do evangelho. Não precisam eles buscar sua santidade em si mesmos. A sua santidade está em Cristo, que também está presente e ativo em suas vidas para lutar contra o pecado. O sofrimento permanece até a morte. No entanto, a mensagem cristã não deixa que esta realidade leve os santos crentes ao desespero. Jesus, verdadeiro Deus, é também

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ESPIRITUALIDADE DA CRUZ: OS CAMINHOS DOS PRIMEIROS EVANGÉLICOS

verdadeiro homem, que viveu como um de nós e mostrou compaixão pela condição humana. Em meio às difi culdades da vida, há a promessa e a certeza da aproximação de Deus em Cristo, que acontece pelos meios da graça. Além disso, há o sofrimento que acontece em nome e por causa de Cristo. A vida dos fi lhos de Deus é uma vida de peregrinos e forasteiros, que carregam a sua cruz em virtude de seguir a Cristo. No entanto estes males e tribulações são sinais da igreja. Cristo consola o seu povo dizendo: “Bem-aventurados sois quando, por minha causa, vos injuriarem, e vos perseguirem, e, mentindo, disserem todo mal contra vós. Regozijai-vos e exultai, porque é grande o vosso galardão nos céus” (Mt 5.11-12).

Cristãos precisam ter consciência de que Deus se agrada da sua vida comum. Para tanto, o livro parece ser um bom recurso. Cristo é aquele que se torna um ser humano para atender às necessidades da humanidade perdida. A palavra apresenta um Deus que vai ao encontro do pecador, em sua miséria, e provê redenção, demonstrada em aceitação incondicional. O ser humano pecador é aceito tal como se encontra e assim toda a sua vida se torna agradável a Deus porque é santifi cada por Cristo. Todas as dimensões da existência humana são redirecionadas para o plano original no qual a criação foi engendrada. De acordo com isso, as obras ordenadas por Deus são as da vocação de cada qual, a administração da vida pública, a administração do lar, a vida conjugal, a educação dos fi lhos.

Diante de todas essas considerações, há uma proposta que deve ser feita. O conteúdo deste livro deve ser levado aos membros das congre-gações luteranas. Em momentos nos quais há estudos bíblicos, este livro pode servir como um ótimo guia. Além disso, a divulgação do mesmo é muito oportuna. A leitura deste conteúdo, sem dúvidas, oportunizaria inúmeros insights a respeito do que confessa a teologia luterana. Isso permitiria uma vida consciente da bem-aventurança divina, a resultar em um testemunho convicto de expressões básicas da fé cristã. Ter consci-ência do que é o evangelho: nós precisamos disso e este livro é uma bela ferramenta para tanto.

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SEM MIM VOCÊS NÃO PODEM FAZER NADA!

João 15.5

Vilson Scholz1

As palavras de Jesus, em João, costumam ser memoráveis, além de serem complexas. Isto representa um desafi o adicional para o pregador. E, quando o texto é uma passagem bem conhecida como “Eu sou a videira, vocês são os ramos”, a difi culdade só faz aumentar.

O que você escolheria como tema de pregação, tendo o texto de João 15.1-8? Alguém diria: Pregue o texto todo. Não será possível, hoje, e ra-ramente é. Alguém poderia preferir o v. 8: “Nisto é glorifi cado o meu Pai: que vocês deem muito fruto”. A ênfase acabaria sendo invariavelmente de lei: vamos produzir frutos! Ou, por que não “Eu sou a videira, vocês são os ramos”? Mas, no meu caso, eu repetiria a palestra de hora e meia que fi z num congresso de servas alguns anos atrás. Não será possível.

É costume ler este texto para enfatizar a necessidade de produzir frutos. Até li outro dia um estudo sobre este texto e o autor, num bom tom de lei, fi cou enfatizando que os ramos precisam fi car conectados com a videira. Como? Produzindo frutos! Pode isso? Na verdade, deve ser o contrário.

Meu pastor pregou sobre o tema “A igreja é feita de ramos”. De fato, temos aqui uma bela maneira de falar sobre a igreja. Videira e ramos; cabeça e membros: são belas descrições da igreja, com ênfase no fato de que ela não existe sem a videira. Mas talvez seja bom não perder de vista quem fala neste texto, a saber, Jesus. E ele diz, entre outras coisas, “sem mim vocês não podem fazer nada”.

“Sem mim vocês não podem fazer nada” é uma frase marcante de Jesus. É daquelas que facilmente podemos tirar do contexto. E a pergunta que podemos fazer é: isto é bom ou ruim? É boa notícia ou é má notícia? Acho que vi nalgum lugar esse texto ser incluído numa lista de promessas bíblicas! Estranho. Parece que essas palavras soam mais negativas do que positivas. Ficam positivas se alguém inverter a afi rmação, dizendo: Comigo vocês podem fazer tudo.

1 Professor do Seminário Concórdia e ULBRA e Consultor de Traduções da Sociedade Bíblica do Brasil. Mensagem proferida na Capela do Seminário Concórdia.

DEVOCIONAL

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Sem mim vocês não podem fazer nada! Tomada isoladamente, a frase de Jesus poderia ter uma aplicação em termos bem amplos, no sentido do “nele nos movemos e existimos”. Aqui estaríamos, então, no âmbito da criação. Tomada isoladamente, a frase de Jesus poderia ser usada, como já foi e ainda é, num contexto em que o assunto é salvação: sem Jesus a salvação é impossível. Só que esse “sem mim” pode ser entendido de duas maneiras: “sem a minha ajuda” e “separados de mim”. Se fosse “sem a minha ajuda”, Jesus seria um poderoso aditivo ou uma espécie de “energético” que nos possibilita fazer o que de outra forma não seria possível. Não se trata de sinergismo no sentido de nós cooperarmos, mas sinergismo ainda mais crasso no sentido de pensarmos que Jesus nos dá uma simples “mãozinha”. O contexto de João 15 sugere mais a noção de “separados de mim”, e não sem a minha ajuda. Não há salvação em nenhum outro (At 4.12).

A frase de Jesus começa com um “porque”, mostrando claramente que se trata de uma continuação da conversa. Não é uma frase isolada. O versículo todo diz: “Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem per-manece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada”. Lido neste contexto, o “não podem fazer nada” se refere a dar fruto. Um ramo separado não dá fruto. Por outro, o ramo que permanece na videira dá muito fruto. Portanto, separado da videira o ramo nada produz.

A diferença não é entre mais ou menos poder, mas entre ter vida e estar morto. Na sua epístola (que é a do mesmo domingo), João afi rma: “Nisto se manifestou o amor de Deus em nós: em haver Deus enviado o seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele” (1Jo 4.9).

Sem mim, diz Jesus, nada. O contrário do “sem mim” é “permane-cendo em mim”. E “permanecer” é um verbo marcante, pela repetição, neste texto. São sete ocorrências em oito versículos. (Isso deve ter soado estranho quando dito pela primeira vez, naquela ceia de despedida; hoje, à luz da Páscoa, nem estranhamos tanto.)

A gente poderia esperar uma perspectiva mais “einsteiniana” (a teolo-gia como ela realmente é), em que Jesus dissesse: Eu permanecerei em vocês, para que vocês possam permanecer em mim. Mas Jesus traz uma abordagem mais “newtoniana” (a teologia como é percebida, de um ponto de vista mais fenomenológico) e diz: permaneçam em mim.

Este é um imperativo um tanto incômodo, pois nos deixa sozinhos com a tarefa. Por isso podemos perguntar: Como se dá este permanecer? Isto pode fi car como algo extremamente abstrato, quase como um exercício mental. Mas isso não é algo abstrato, e sim algo que se dá concretamente. Não deveria ser um simples exercício de pensamento ou concentração no infi nito.

SEM MIM VOCÊS NÃO PODEM FAZER NADA!

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Jesus aponta para a palavra. “Se as minhas palavras permanecerem em vocês [...]” (v.7). Poderíamos pensar na direção do batismo, que é “ativado” diariamente pelo arrependimento. Mas hoje eu gostaria de lem-brar o contexto em que estas palavras foram faladas. Foi na noite em que Jesus foi traído. João não tem a instituição da ceia em seu Evangelho, mas estas palavras foram faladas na noite da última ceia. (Não é por nada que o tema da videira aparece; aquela era a ceia pascal.) Por isso, vou propor uma leitura eucarística deste texto.

Nesta ceia que hoje celebramos, Jesus diz: “Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em mim, e eu nele, esse dá muito fru-to”. Este permanecer recíproco (eu nele e ele em mim) é a linguagem da comunhão, que nos remete à santa ceia. Ela aparece, nestes termos, em 1Co 10.16: Não é fato que o cálice da bênção que abençoamos é a comunhão do sangue de Cristo? E não é fato que o pão que partimos é a comunhão do corpo de Cristo?

À luz do texto de hoje, comunhão minha com Cristo e de Cristo comigo. Desejar a santa ceia é desejar essa comunhão, é confessar: sem Jesus não dá! Vários de nossos hinos nos ajudam a expressar esse anseio. No hino 346 dizemos: “De ti, Senhor, careço”. No hino 263, confessamos: “Nele (neste manancial precioso) tenho união estreita, com Jesus união perfeita”. E, no hino 323, concluímos: “Por isso eu preciso de ti, meu Senhor”.

Sempre afi rmamos que a santa ceia é o centro do culto; na verdade, ela é o centro da vida cristã. O ideal seria se todos pudéssemos comer este pão e beber deste cálice ao mesmo tempo. Todos os ramos da videira aqui reunidos se conectando com a videira ao mesmo tempo. Isto não é fácil de fazer, na prática, nem é necessário. Mas eu gostaria de sugerir que hoje pensássemos na vinda à ceia como o momento em que o ramo se reconecta de uma forma toda especial e singular à Videira. São os ramos se conectando à videira, participando do fruto da videira, que é a ceia. E este permanecer não tem nada de abstrato: é tão concreto quanto comer o pão e beber do cálice!

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OS VERDADEIROS ADORADORES

João 4.19-30

Leonerio Faller1

Prezados irmãos e irmãs em Cristo.

Há uma tendência de as pessoas separarem o sagrado do profano, a vida dentro da igreja e a vida fora da igreja, como se fossem dois mun-dos diferentes. Numa das congregações onde fui pastor, certa vez um luterano diretor de uma grande empresa disse-me algo que não estava de acordo com a Palavra de Deus. Eu respondi: “Mas, Fulano, não está certo o cristão agir assim”. Ele logo retrucou: “Pastor, igreja – igreja; negócios – negócios”.

A Palavra de Deus nos ensina que toda a vida do cristão é sagrada, é culto, a menos quando age contra a vontade de Deus.

Este ensino vemos no lema da IELB para 2016: “Vou viver e anunciar o que o Senhor tem feito na vida de culto e serviço”. Culto a Deus acontece no culto corporativo (cristãos reunidos com Palavra e sacramentos), mas também na vida diária (no lema entendemos com a palavra “serviço”).

Para esta mensagem, tomei a liberdade de escolher parte do texto do encontro de Jesus com a mulher samaritana tendo como tema OS VER-DADEIROS ADORADORES.

Jesus e os discípulos tinham saído da Judeia (região Sul) em direção à Galileia (região Norte). Entre as duas regiões, fi cava a província da Samaria. Para irem da Judeia para a Galileia precisavam atravessar Sa-maria, a não ser que fi zessem um desvio. Jesus e os discípulos tomaram o caminho mais curto, no qual fi cava a cidade chamada Sicar. Jesus não escolheu aquele caminho apenas por ser mais perto. Mas, como escreve o evangelista, “era-lhe necessário atravessar a província de Samaria” (v.4). Possivelmente para salvar as pessoas que encontraria.

Era meio-dia. Chegaram ao poço de Jacó. Jesus fi cou ali e os discípulos foram à cidade comprar comida. Neste meio tempo veio uma mulher tirar água do poço. As mulheres geralmente vinham tirar água em grupos e numa hora mais fresca do dia. Esta mulher veio sozinha; é possível que ela não quisesse a companhia das suas vizinhas ou as vizinhas não qui-sessem acompanhá-la.

1 Prof. Leonerio Faller é diretor do Seminário Concórdia de São Leopoldo/RS. Sermão pro-ferido na abertura do ano letivo em 19 de fevereiro de 2016.

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Jesus pediu à mulher: “dá-me de beber”. Judeus observadores das leis teriam receio de se contaminar com uma pessoa samaritana e certamente não pediriam água a uma mulher. Porém, sem estes preconceitos, Jesus pediu água a ela e daí surgiu um longo diálogo.

As diferenças religiosas entre judeus e samaritanos eram sérias e pro-fundas. Os judeus desprezavam os samaritanos porque estes não eram ‘sangue puro’ judeu, mas sangue judeu com estrangeiro. A hostilidade foi aumentada quando os samaritanos construíram um templo rival no monte Gerizim por volta do ano 400 a.C.

Mesmo que o templo tenha sido destruído (em 108 a.C.), para os samaritanos o lugar para adorar a Deus era o monte Gerizim (ali perto), mas para os judeus era Jerusalém. No entanto, na conversa que Jesus teve com a mulher samaritana disse que o lugar não é importante.

E Jesus apontou para um futuro que já havia chegado na sua pessoa: “Vem a hora e já chegou”, e acrescentou: “em que os verdadeiros adora-dores adorarão o Pai em Espírito e em Verdade” (Jo 4.23).

Jesus desvia a atenção do lugar de adoração para os verdadeiros adoradores.

Quem são eles?

Os verdadeiros adoradores são as pessoas envolvidas pelo Deus Triúno.

1. Jesus disse: “São estes que o Pai procura” (v.23).

Ninguém se torna um adorador de Deus por esforço próprio, pois o ser humano não tem nenhuma capacidade natural para voltar-se para Deus e adorá-lo. O ser humano por natureza adora a si e a outros deuses. Por isso Jesus disse que é o Pai quem “procura” os verdadeiros adoradores. Ou seja: É Deus Pai quem transforma seres humanos idólatras em ver-dadeiros adoradores.

Na conversa que Jesus estava tendo com a mulher samaritana, o Pai estava justamente transformando aquela mulher pecadora perdida eternamente numa verdadeira adoradora. A procura do Pai é resultado de seu amor.

Se você e eu somos adoradores de Deus, é porque Deus Pai realizou este milagre de procurar, de encontrar e de transformar-nos em adora-dores dEle.

2. Os seus adoradores o adoram “[...] em Espírito e em Verdade” (v.24).

Jesus disse que os verdadeiros adoradores do Pai são aquelas pessoas que o adoram “em Espírito...”. O que isso signifi ca? Há intérpretes que entendem que adorar em espírito é adorar o Pai com a alma, com a parte

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mais íntima do ser. Isto também é. Porém é mais. Quando no evangelho o apóstolo João narra que Jesus enviaria “o outro consolador” (14.16), João relata que o próprio Jesus explica que “o outro consolador” é “o Espírito da Verdade” (14.17), ou seja, o Espírito Santo. Adorar o Pai em Espírito é adorá-lo no poder do Espírito Santo.

E adorar “[...] em Verdade”? O que signifi ca? Há quem interprete ado-rar “em verdade” como adorar com sinceridade, com honestidade. Porém, ao observarmos em que sentido o apóstolo João usa a palavra “verdade” em seu evangelho, concluímos que é mais do que isso. No capítulo 14, versículo 6, João cita aquela importante autoconfi ssão de Jesus: “Eu sou o caminho e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim”. Jesus diz que ele é “a Verdade”. Adorar o Pai “em Verdade” signifi ca adorar o Pai estando em Jesus, com fé em Jesus, perdoado por Jesus.

Portanto, os verdadeiros adoradores são aquelas pessoas – também você e eu – que, pela ação do Espírito Santo, creem em Jesus e prestam culto a Deus com toda a sua vida e em qualquer lugar.

Como os verdadeiros adoradores adoram a Deus?

Voltemos à mulher samaritana. Quando Jesus disse para ela “Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em Espírito e em Verdade”, ela respondeu: “Eu sei [...] que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas” (v.25).

Dos livros do Antigo Testamento, os samaritanos só aceitavam os cinco livros de Moisés. Não aceitavam os livros proféticos nos quais havia tantas profecias sobre a vinda do Messias. Eles criam na promessa da vinda do grande profeta registrada por Moisés em Dt 18: “O Senhor, teu Deus, te suscitará um profeta do meio de ti, de teus irmãos, semelhante a mim; a ele ouvirás [...] em sua boca porei as minhas palavras, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar” (v.15 e 18). Segundo os samaritanos, não se poderia esperar nenhum outro profeta entre o primeiro, Moisés, e o segundo profeta prometido.

Mas, se a mulher usou o termo profeta com sinceridade, ela estava prestes a descobrir quem era o estrangeiro que conversava com ela. No primeiro capítulo do evangelho, o apóstolo João relata sobre a conversão de Natanael – o ‘milagre’ que Jesus fez para Natanael crer foi dizer quem era Natanael sem nunca tê-lo visto antes. Assim também o Espírito Santo estava trabalhando no coração da mulher, convencendo-a de que aquele homem que podia dizer-lhe tudo o que ela já tinha feito sem conhecê-la antes, só poderia ser o cumprimento da profecia de Deuteronômio.

Quando a mulher disse “eu sei que há de vir o Messias, chamado Cristo” (v.25), “disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo” (v.26). O apósto-

OS VERDADEIROS ADORADORES

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lo relata que “naquele momento chegaram os seus discípulos e fi caram admirados, pois ele estava conversando com uma mulher. Mas nenhum deles perguntou à mulher o que ela queria. E também não perguntaram a Jesus por que motivo ele estava falando com ela. Em seguida, a mulher deixou ali o seu pote, voltou até a cidade e disse a todas as pessoas: – Venham ver o homem que disse tudo o que eu tenho feito. Será que ele é o Messias? Muitas pessoas saíram da cidade e foram para o lugar onde Jesus estava” (Jo 4.27-30 NTLH).

Vejam, irmãos e irmãs, a maravilhosa ação de Deus Espírito Santo no coração daquela mulher. Pela maneira de Jesus agir e pelas suas palavras, a mulher começou admirando-se daquele estrangeiro, depois confessou-lhe que também esperava o Messias chamado Cristo e, quando Jesus disse que ele era o Cristo e falava com ela, ela esqueceu-se que viera ao poço para buscar água e foi à cidade convidar seus conhecidos para ve-rem “um homem que (lhe) disse tudo quanto (tem) feito”. E perguntava: “Será, porventura, o Cristo?” (v.30). Nesta pergunta de aparente dúvida já havia fé no Messias, o Cristo, e esta fé levou a mulher a agir em amor querendo que seus conhecidos também conhecessem aquele profeta, o “Messias, o Cristo”.

Esta transformação acontece nos corações de todas as pessoas quando o Espírito Santo opera a fé: leva as pessoas a agirem em amor para com Deus e para com o próximo.

Assim também tem acontecido conosco. Todos os nossos bons senti-mentos, desejos, palavras e ações são produzidos pelo Espírito Santo. E ele deseja sempre continuar produzindo em nós a boa vontade de servir a Deus e ao próximo em amor, levando-nos a continuar adorando-o no culto corporativo e no culto da vida diária.

Porém, a nossa natureza humana pecadora é má, inimiga de Deus, quer o nosso mal espiritual e luta em nosso íntimo nos dando preguiça, indisposição para não obedecermos à vontade de Deus e nem agirmos em amor com nosso próximo.

Que bênção de Deus é termos aqui no Seminário e na ULBRA a Palavra de Deus em abundância nas salas de aula, nas devoções e nos cultos nas capelas! Porém, uma grande tentação da parte de nossa natureza peca-dora e apoiada por Satanás é nos tornar meros profi ssionais da Palavra ou estudar a Bíblia apenas academicamente, sem o sincero desejo de “fala, Senhor, porque o teu servo ouve” (1 Sm 3.9). Estes inimigos espirituais nos fazem ver difi culdade em sair do quarto de estudo ou do apartamento para irmos à capela para culto ou devoções. Por isso precisamos sempre analisar como está o nosso cuidado com a vida espiritual também durante a semana, aproveitando ou não os momentos cúlticos no campus.

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Outra tentação que sofremos é não termos sempre sentimentos, pala-vras e atitudes de amor uns com os outros, seja demonstrando indiferença, seja não tratando com respeito nosso próximo.

Tantos pecados todos nós cometemos diante de Deus e com o próxi-mo, merecendo então a condenação eterna. Nossos pecados exigiram que o Filho de Deus viesse ao mundo (nasceu judeu), sofresse e morresse. Nesta época da Quaresma somos lembrados de quanto o Filho de Deus teve que sofrer para salvar a humanidade. Mas esta época também nos lembra que Ele fez tudo com muito amor e perfeição, realizando completa salvação. Este Deus Filho – Jesus, judeu, Deus e homem – disse à mu-lher samaritana que “a salvação vem dos judeus” (v.22) e os amigos da samaritana, após ouvirem Jesus, confessaram: “Este é verdadeiramente o salvador do mundo” (v.42).

Este salvador, o Messias, o Cristo, diz a nós como disse à mulher sa-maritana e aos seus amigos: ‘Eu sou o Cristo. Eu sou o seu salvador. Eu dei a minha vida pelos meus amigos, incluindo você. Hoje lhe darei o meu sacramento da Santa Ceia e lhe perdoarei todos os seus pecados e lhe dou salvação eterna. Mas, desde agora lhe dou a minha paz’.

Conta-se que às margens de estradas no interior da Índia de vez em quando é possível encontrar um local de descanso chamado ‘samatanga’, onde o caminhante, debaixo de um sol escaldante, pode descansar. No samatanga ele tem sombra, água fresca e lugar para sentar. Depois que o viajante tem suas forças e ânimos renovados, continua a viagem com nova disposição.

Podemos dizer que o culto corporativo é o ‘samatanga’ que o Pai nos oferece, para o qual Jesus nos convida para conversar conosco pela sua Palavra, renovando-nos com o perdão dos pecados, e o Espírito Santo fortalecendo nossa fé, acalmando nosso coração atribulado e capacitando-nos para continuarmos nossa adoração a Deus no dia a dia. Cada vez que nós, como fi lhos e fi lhas amados do Pai celeste, participamos de momentos cúlticos no Seminário, na ULBRA e nas congregações, somos renovados para a vida de culto diário realizando nossas tarefas e convivendo em amor com nossos semelhantes. Assim se evidencia o lema da IELB: “Vou viver e anunciar o que o Senhor tem feito na vida de culto e serviço”.

Sem dúvida, é maravilhoso saber que o Pai celeste nos tornou seus verdadeiros adoradores através do Espírito Santo que nos fez crer em Jesus como salvador. Bem como é maravilhoso saber que o Espírito Santo nos capacita com uma disposição voluntária para o culto diário, de modo que podemos até imitar a mulher samaritana convidando uns aos outros para os momentos cúlticos, inclusive convidando nossos familiares residentes

OS VERDADEIROS ADORADORES

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aqui, a fi m de se encontrarem com o Messias Salvador e ouvirem dele: ‘Os teus pecados estão perdoados. Vai em paz’.

Em cada momento de culto corporativo podemos imaginar Jesus nos convidando; no culto nos perdoando, nos alimentando espiritualmente, e depois do culto nos acompanhando para o culto diário. Amém.

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ELE VIGIA! VOCÊS ESTAGIAM!

Marcos 13.24-37

Rony Marquardt1

INTRODUÇÃO

Fim de ano. Cansados da correria de provas, trabalhos, preparativos para as férias? E os estagiários – ansiosos? As coisas se encaminham para o fi m do ano e muita coisa está por acontecer no novo ano.

É neste espírito de fi m das coisas e de um novo começo que a leitura do evangelho do último domingo do ano da Igreja nos coloca. Quero des-tacar deste texto de Marcos 13 os versículos 27, 32 e 33: “E ele enviará os anjos e reunirá os seus escolhidos dos quatro ventos, da extremidade da terra até a extremidade do céu. Mas a respeito daquele dia ou da hora ninguém sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai. Estai de sobreaviso, vigiai [e orai]; porque não sabeis quando será o tempo”.

I.

Dúvida cruel: “Quando será a volta de Jesus?” Quantos já tentaram e ainda tentam desvendar este mistério! E o próprio Jesus já havia dado a resposta a esta pergunta:

• “Ninguém sabe” – nem os homens, apesar de tentarem calcular e predizer a volta de Cristo;

• “Ninguém sabe” – nem os anjos, que são apenas ministros a serviço de Deus;

• “Ninguém sabe” – nem o Filho, Jesus Cristo, que, segundo a sua natureza humana e antes de sua ressurreição, escolheu não saber.

Mas “alguém sabe” – o Pai, que controla o tempo e a duração não apenas de nossa vida, mas da existência do mundo e do universo. Ele criou tudo e no momento certo tudo destruirá para fazer “novos céus e nova terra”.

E é justamente pelo fato de ninguém saber quando será que o nosso Deus de amor nos ensina a lição da fi gueira: “Quando já os seus ramos

1 Rev. Rony Marquardt é Vice-Presidente de Ensino da Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Sermão proferido na Capela do Seminário Concórdia por ocasião da designação de estagiários, em 25 de novembro de 2015.

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se renovam, e as folhas brotam, sabeis que está próximo o verão. Assim, também vós: quando virdes acontecer estas coisas, sabei que está pró-ximo, às portas”. Já estava às portas quando Jesus estava no mundo e, agora, com toda certeza, está mais perto ainda.

E o próprio Jesus mostra os sinais que precedem e acompanham este tempo do fi m: irão surgir falsos salvadores que enganarão a muitos, procurando desviar as pessoas da verdadeira fé em Jesus; acontecerão guerras, tremores de terra e fome; os cristãos serão perseguidos; o amor se esfriará; e o evangelho da salvação será anunciado em todo o mundo, a todos os povos, para que as pessoas creiam e sejam salvas. São estes os sinais do fi m do mundo, que vemos acontecerem a cada dia.

É por isso que é tão importante a palavra insistentemente repetida por Jesus: “Vigiai!” Ficai alerta, acordados. Mas eu ando tão cansado! Está cada vez mais difícil fi car acordado e vigiar. Há tantas coisas que pedem a minha atenção que quando penso que Jesus pede para eu fi car alerta e vigiar, eu fi co com medo. Acho que preciso de uma ajuda para fi car alerta. Quem sabe se eu fi zer como os caminhoneiros que, para conseguirem fi car mais tempo acordados dirigindo, tomam o que eles chamam de “rebite”? E quais poderiam ser os rebites espirituais que me manteriam vigiando?

• Talvez se eu for sempre ao culto, estiver sempre em contato com a Palavra de Deus?

• Ou se eu ofertar pelo menos o dízimo?

• Quem sabe se eu for para o Seminário me preparar e depois for um pastor dedicado?

• Claro que, além disso, devo ser um bom fi lho, marido, pai, não roubar, não matar, não mentir.

Será que isso vai me ajudar a fi car “vigiando”? Será que com isso Deus vai se agradar de mim e me dar uma chance no dia em que ele voltar?

Mas outra dúvida cruel continua: será que eu já fi z o sufi ciente para Deus enviar os anjos me recolherem ao seu lar celestial? E se ele voltar bem na hora que eu não estiver vigiando, vamos dizer assim, numa escor-regadela e estiver praticando um pecado? Daí, não vai ter outro jeito: vou acabar no meio dos cabritos, longe das ovelhas e do rebanho de Deus.

Como estou cansado! Por mais que eu tente, não consigo fi car tran-quilo, não consigo fazer esta coisa simples que Jesus pede de mim. Não consigo vigiar! Estou perdido, pois o dono da casa vai voltar e me encon-trar dormindo!

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II.

Acho que, nisso tudo, estou deixando de fazer uma coisa fundamental. Estou só olhando para mim, como se eu tivesse poder em mim mesmo para poder vigiar, como se isso dependesse unicamente de mim! Estou cansado porque estou olhando na direção errada.

Graças a Deus que ele vem ao meu encontro em sua Palavra e me faz olhar na direção certa. Sempre de novo, como aconteceu no meu Batismo e como acontece na Santa Ceia, Jesus me faz olhar para ele e no que ele fez por mim e por todos. Ele vigiou! Ele fi cou acordado! Ele fi cou fi rme em sua fé e jamais abandonou a vontade do Pai. E fez isso não por si mesmo. Ele não precisava. Ele fez isso por mim. Ele se cansou e se entregou à morte para que eu não precise andar cansado e morrer! Ele vive para que eu possa descansar!

Este é o segredo: “Vigiai... e descansai!” A nossa salvação está em Cristo. Podemos descansar. É por isso que podemos continuar vivendo a nossa vida sendo bons fi lhos, pais ou maridos. É por isso que podemos ir ao culto, ofertar, estagiar e pastorear! Não para vigiarmos e conseguirmos a salvação, mas porque alguém – o Filho de Deus – já vigiou por nós, e nos convida a vigiarmos descansando nele. É por isso que podemos continuar a tarefa de Cristo e que foi dada por ele à sua Igreja até o dia em que ele voltar, a missão de proclamar o Evangelho para a salvação das pessoas.

CONCLUSÃO

Queridos estagiários de 2016: não é sublime servir a um Salvador assim? Não é consolador saber que não depende de nós a nossa vigilân-cia, mas tão somente dele? É assim que vocês podem ir pelo Brasil nesta confi ança: ele está com vocês. Ele vigia! Vocês estagiam!

É o que Jesus quis dizer em Apocalipse 22.(11,12): “O justo continue na prática da justiça, e o santo continue a santifi car-se. E eis que venho sem demora, e comigo está o galardão que tenho para retribuir a cada um segundo as suas obras”. Continuemos nossa caminhada nesta vida nesta certeza: não está em nós, mas em Cristo. Ele, e somente ele, é o Vigilante!

É dele a promessa: “Certamente, venho sem demora”. E seja nosso o pedido: “Amém! Vem, Senhor Jesus!”

ELE VIGIA! VOCÊS ESTAGIAM!

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