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revista serrote

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  • serrote uma publicao do Instituto Moreira Salles que sai trs vezes por ano:

    maro, julho e novembro.

    comisso editorial Daniel Trench (diretor de arte), Flvio Pinheiro,

    Matinas Suzuki Jr., Rodrigo Lacerda e Samuel Titan Jr.

    assistente de arte Carol Soman

    Produo editorial Acssia Correia

    Produo grfica Letcia Mendes

    Pesquisa de imagens Etoile Shaw, Odete Ernestina Pereira, Cristina Zappa

    e Marcelo Nastari Milanez

    Pesquisa de textos Manoela Purcell, Alton Alexandre da Silva e Srgio Barbosa da Silva

    PreParao de texto Cristina Fino e Carla Mello Moreira

    PreParao e tratamento de imagens Cristina Zappa, Joanna Americano Castilho,

    Daniel Arruda, Priscila Oliveira e Ipsis Grfica e Editora.

    reviso Flvio Cintra do Amaral e Alessandra Miranda de S

    assessoria de comunicao Letcia Nascimento / [email protected]

    Copyright Instituto Moreira Salles

    Av. Paulista 1294, 14 andar So Paulo sP Brasil 01310-915

    tel 11. 3371.4455 fax 11. 3371.4497

    www.ims.com.br

    n. 1 Maro 2009

    Jornalista resPonsvel Matinas Suzuki Jr.

    imPresso Ipsis Grfica e Editora

    As opinies expressas nos artigos desta revista so de responsabilidade exclusiva dos

    autores. Os originais enviados sem solicitao da serrote no sero devolvidos.

    Para assinar 11.3371.4372 ou [email protected]

    www.revistaserrote.com.br

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    Walther Moreira Salles (1912-2001)

    fundador

    Diretoria executiva

    Joo Moreira Salles

    Presidente

    Gabriel Jorge Ferreira

    vice-Presidente

    Francisco Eduardo de Almeida Pinto

    diretor tesoureiro

    Mauro Agonilha

    Raul Manuel Alves

    diretores executivos

    Google: The Future of Books, de Robert Darnton, reproduzido sob permisso da New York Review of Books. Copyright 2009 nyrev, Inc.; The Tennessee Circus e To Expose a Fool, de H.L. Mencken, reproduzidos e traduzidos sob permisso da Enoch Pratt Free Library e do

    Esplio de H.L. Mencken, de acordo com os termos da doao testamentria do autor a essa

    instituio; Farewell to Model T, de E.B. White, impresso e traduzido sob permisso do Curtis

    Brown Group; Detroit Motors, from The American Earthquake, by Edmund Wilson. Copyright 1958 by Edmund Wilson. Reproduzido sob permisso de Farrar, Strauss and Giroux,

    llc; Exit Suharto, de Benedict Anderson, New Left Review; David, Marat: arte, politica,

    religione, de Carlo Ginzburg, 2008 Carlo Ginzburg.

    Ciclo indito de quatro aulas-show com Jos Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski

    Os msicos e professores Jos Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski apresentam um panorama da cano brasileira dos ltimos 50 anos, analisando obras-primas de Jobim, Vinicius, Caymmi e Caetano, entre outros.

    Curadoria de Lorenzo MaMM

    Promessas de felicidade O cancioneiro da parceria de Tom Jobim e Vinicius de Moraes na busca de um Brasil moderno [sp] 24 De maro | [rj] 7 De abril

    Vises do paraso: o mito de ItapoA msica de Caymmi, a Bahia e as grandes interpretaes sobre nossa gnese[sp] 29 De abril | [rj] 5 De maio

    Objetos no-identificados: da Tropiclia ao transsambaA ruptura e a atualidade do Tropicalismo, sob o prisma da obra de Caetano Veloso[sp] 26 De maio | [rj] 2 De junho

    O fim da cano O artesanato de letra e msica, e o lugar incerto da cano na cultura de massa do sculo xxi [sp] 30 De junho | [rj] 7 De julho

    o fiM da Cano

    So PauLoCentro Universitrio Maria Antonia Rua Maria Antnia, 294, Vila Buarque Informaes: 11 3255-7182 www.usp.br/mariantonia

    rio de Janeiro Instituto Moreira Salles Rua Marqus de So Vicente, 476, Gvea Informaes: 21 3284-7400www.ims.com.br de

    sign

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    ssar

    a fi

    no

    Imagens da capa e da quarta capa: Saul

    Steinberg, desenhos numa agenda do ano

    de 1954 (The Saul Steinberg Foundation/

    Artists Rights Society (ARS), Nova York).

    Imagem da pgina 1: Marcel Gautherot,

    mercado Ver-o-Peso, Belm, 1954-1957

    (Acervo Instituto Moreira Salles).

  • O ensaio um gnero sinuoso. Ele parece fcil, mas um perigo. Um descuido voc rola abaixo em uma escada sem corrimo. O ensasta sabe onde comear, mas nunca sabe onde acabar: o desvio, a vereda e a curva beira do abismo so sempre um convite. No se perder e no escorregar j seriam duas grandes coisas. O ensaio no tem pedigree. um gnero que resiste s definies, cioso da sua condio de maverick. O esprito livre quase tudo em um ensaio (algum chamou isto de heresia). No Brasil, ele tomou forma acadmica, o que uma pena, pois fica sem o que tem de bom, a espontaneidade. Por causa dela, Vinicius de Moraes achava que o essay estava na origem da brasileirssima crnica. O ensaio ideal poupa citaes e supe que as notas de rodap so um terreno minado. Na dcada de 1990, o ensaio renasceu nos EUA, no vcuo do crescimento do interesse pela narrativa de no-fico. Hoje em dia, no mundo literrio americano, ele at se confunde com certo tipo de reporta-gem mais pessoal. O Instituto Moreira Salles lana esta serrote por acreditar que, em sua multiplicidade de tons e vozes, o ensaio se fixou como gnero indispensvel reflexo e ao debate de ideias. serrote complementa as atividades do Instituto. Com esprito pblico e dotao privada, o IMS contribui ativamente para a vida cultural brasileira h quase duas dcadas. Ao virar estas pginas, alis, o leitor encontrar, aqui e ali, vestgios de seu ines-gotvel acervo. Os editores querem fazer desta quadrimestral um espao para se publicar ensaios originais, independentes, bem pensados e bem escritos no Brasil. Quem edita a serrote tem como horizonte o esprito daqueles que viram, no ensaio, o jogo e a felicidade, e, no ensasta, o homem liberto.

    Tremo quando examino o serrote. MUrIlo MEndES

    carta dos editores

    Nmero 1

  • MsicaRugas: sobre Nelson Cavaquinho, por NuNo Ramos

    Poltica internacionalSuharto sai de cena, por BeNedict aNdeRsoN

    Vida digitalO Google e o futuro dos livros, por RoBeRt daRNtoN

    seesalfabeto serroteP de Passe, por tostoS de Serrote, por fRaNcisco alvimV de Verso, por aNtoNio cceRo

    carta aberta exclusivo De mRio de aNdRade para Otto Lara Resende

    artes PlsticasPintura em suspenso, por Heloisa espadaexclusivo Pancetti, por maRcel GautHeRotDavid, Marat, por caRlo GiNzBuRG

    steinberg Pacote exclusiVoSair da linha, uma introduo a Saul Steinberg, por RodRiGo Naves Desenhos inditos de saul steiNBeRGSteinberg, os Civita e o BrasilBlack Friday, por alBeRto diNes

    200 anos de darwinO circo do Tennesse e Expondo um tolo, por H.l. meNckeN

    indstria autoMobilsticaAdeus ao Ford Bigode, por e.B. WHiteMotores de Detroit, por edmuNd WilsoN

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    literaturaOs Aforismos reunidos de Franz Kafka, por modesto caRoNe O romance e a revista, por samuel titaN JR.

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    Uma caracterstica curiosa do samba brasileiro a dificul-dade de se saber quem o autor da cano os prprios sambas so quase sempre mais conhecidos que seus com-positores, como se houvesse uma espcie de obra coletiva pairando sobre eles. Assis Valente? Ou foi Ataulfo Alves? Herivelto Martins? No seria Wilson Batista? Monsueto? Ou Manaca? Se isso resultado do predomnio, at a bossa nova, dos cantores (bastante conhecidos) sobre os compositores (bem menos), da prpria precariedade bio-grfica de tantos desses compositores (que inclua, cons-tantemente, a venda de composies, muitas vezes para os prprios cantores) e ainda da ausncia de pesquisas detalhadas sobre o assunto, aponta tambm para uma questo esteticamente importante, que merece ateno. Alguns de nossos maiores compositores parecem fazer parte, mesmo em seus momentos mximos, de um estilo, o samba, que no requer a individualizao imediata de cada obra. Da que o pot-pourri, essa forma algo detes-tvel de achatamento das diferenas entre cada cano, tenha uma recorrncia no samba que no poderia ter

    RugasSobre Nelson CavaquinhoNUNO RAMOS

    ensaio Poeta da abstrao, da sobriedade e da velhice;

    cantor circunspecto e de voz rasgada que toca um

    violo original; compositor de melodias alpinistas,

    o autor de Folhas secas e A flor e o espinho acena

    para o trgico e o extemporneo

    Rtulo da cano Rugas, de Nelson Cavaquinho, Ary Monteiro e Augusto Garcez, interpretada por Cyro Monteiro. Disco 78 rpm da Victor, n. 800406, de 1946; note-se o destaque dado no selo para o regional de Benedito Lacerda e para a participao do grande clarinetista e saxofonista Caximbinho Todas as imagens que ilustram este ensaio so do Acervo Jos Ramos Tinhoro/Instituto Moreira Salles

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    ns, os discos de Joo Gilberto esto repletos de achados assim autores de quem nunca ningum ouviu falar pro-duzindo canes altura dos compositores maiores. O estilo, quando nasce com fora, oferece mdia dos cria-dores, como um berrio annimo, matria-prima acess-vel e rica.

    Como em tantas outras coisas, a bossa nova h de ser um divisor de guas tambm neste ponto a partir dela, a cons-telao dos autores/compositores define-se com maior niti-dez. No h anonimato propriamente e o aproveitamento das composies passa a ser muito maior. O desenvolvi-mento de uma indstria cultural de segunda gerao (a da televiso/indstria fonogrfica, que sucedeu, nos anos 1960, a Era do Rdio, que vinha desde os anos 1930), ao alcance dos que vieram em seguida bossa nova, vai atribuir a cada um o que lhe prprio. O misto de anonimato e exposio, de (total) amadorismo e (mnimo) profissionalismo, carac-terstico da nossa cano at os anos 1950, encerra-se aqui. difcil especificar quanto da sua grandeza veio dessa mis-tura rara (prpria de seus anos de formao) entre o mundo privado, familiar quase, dos artistas-compositores e um grau razovel de exposio pblica por meio do rdio e de momentos como carnaval, campanhas polticas e festas em geral (estdios de futebol, por exemplo), alm de uma inci-piente indstria fonogrfica. Embora bastante amadora, a cano brasileira alcanou assim, desde as origens, um sig-nificado social que nenhuma outra forma de arte teve entre ns. Vivia, desde sempre, na boca das pessoas os anos se contavam pelas marchinhas de carnaval e para cada situao um samba logo se formava. Uma enorme solicitao pare-cia pairar no ar, ainda que no se cumprisse muitas vezes. As canes retornavam ento para o circuito ntimo sem

    em outro gnero. Com temas, rimas, solues meldicas e harmnicas at certo ponto imunes crise, com situa-es de vivncia tendendo ao coletivo (rodas, terreiros), embora tenha tantos e extraordinrios autores, o samba parece recalcar sem muito trauma o espao da autoria.1 Claro que h, desde sempre, excees, autores cuja sin-gularidade salta aos olhos, quer a gente queira, quer no: Noel, por exemplo, talvez pela engenhosidade espantosa da letra; Caymmi, pela simplicidade arquetpica de cada achado. Esta lista poderia continuar, mas no me parece equivocado pressupor, nas dcadas que assistem forma-o de nosso samba, e de grande parte de nossa cano em geral, uma predominncia do gnero sobre as con-quistas individuais.

    De modo geral, pocas com grandes achados lingusti-cos so propcias a isso: a qualidade extrema das madonas, na pr-renascena, faz com que diversas delas se paream entre si e, muitas vezes, com as obras-primas de um Bellini; no barroco, a influncia de Caravaggio sobre seu tempo foi to acachapante que, embora sua prpria identidade salte aos olhos, muito difcil distinguir um discpulo do outro (e so inmeros); a semelhana entre Picasso e Bra-que assombrosa, e tambm entre eles e seus seguidores, durante os anos de desenvolvimento dos cubismos anal-tico e sinttico. Para bem e para mal, parece que, quando as conquistas estilsticas so muito bem-sucedidas (quer tenham sido produzidas por um autor identificvel ou por uma soma deles), a digital de cada artista nem sempre ocupa o primeiro plano. Algo semelhante ocorreu, entre ns, durante o barroco mineiro, onde Aleijadinho se des-taca num quadro de excelncia que quase se equipara a ele. Em outra rea, daria para pensar no cinema hollywoo-diano, muito mais refratrio noo de autoria que o cinema europeu afinal, foi preciso esperar pelo pessoal do Cahiers du Cinma francs para que a identidade de cada diretor fosse mais bem especificada. Depois dos anos de nascimento, essa estabilizao de recursos estilsticos degenera muitas vezes para o tdio e a mumificao (os

    caravaggescos so exemplo disso), mas, enquanto a coisa est viva, formando-se, testando-se, a boa notcia que muitas vezes o trabalho de um autor desconhecido ganha o estatuto e a fora de uma verdadeira obra-prima. Entre

    Da esquerda para a direita, capas dos discos Depoimento do poeta (gravadora Castelinho, 1970), Nelson Cavaquinho (Odeon, 1973) e do lp que tambm levou o nome do compositor, lanado pela RcA em 1972

    1. No se deve esquecer, alm disso, o quanto a prpria forma do samba aberta: basta ralentar o andamento que se torna samba-cano, a um passo j do bolero. Isso d aos compositores uma abertura estilstica que torna ainda mais difcil o reconhecimento. Algum diria que Ataulfo Alves, caracterizado por sambas de grande marcao rtmica e temtica (bravos, talvez seja a palavra), o autor de Saudade da professorinha?

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    ponto de vista absolutamente original e uma diferenciao estilstica ntida. Aquele patrimnio comum do samba parece interromper-se aqui e uma imparidade potica em relao ao que foi feito antes salta aos olhos. Apesar de tes-temunharem quase a origem do samba (Cartola, fundador da Mangueira, nasceu em 1908; Nelson Cavaquinho em 1911), suas melhores canes formam j uma expresso tardia do gnero, desconectada do estar no mundo do perodo, diga-mos, clssico da cano popular brasileira (dcadas de 1930 a 50). Cartola e Nelson atravessam essa poca urea do samba literalmente em fuga Cartola desaparecido, com fama de morto; Nelson vagando por a, dando e tomando esmolas, patrulhando as ruas, embebedando cavalos, trazendo gali-nhas para casa. Se Z Kti a face de alguma forma dialog-vel desse mundo ressurgido em suas parcerias com Nelson Pereira dos Santos e com Nara Leo, na potica de esquerda de composies como Opinio, Acender as velas ou

    Malvadeza duro, ou ainda no prprio show Opinio, que fez com Nara Leo e Joo do Vale , Nelson e Cartola repre-sentam, em estado puro, o amadorismo que morria afinal, quase morreram, mesmo , com sua cota de solido e esque-cimento, tornado forma e cano, em plena era nascente do profissionalismo e da indstria cultural televisiva. em nome dessa face dissipada da nossa cano que compem, numa espcie de contato permanente com a derriso e o esquecimento que, no entanto, iam diminuindo inelutavel-mente. Nascem, assim, j na contramo do tempo, reagindo urgncia quase fbica dos anos 1960 com uma espcie de extemporaneidade inabalvel. Paulinho da Viola, que vem inteiro dessa matriz, acrescenta a ela a conscincia, prpria dos trabalhos tardios.

    A primeira marca desses dois compositores a abstrao. J no servem, no respondem propriamente a nada, ou melhor nascem muitas vezes de uma situao concreta para logo se moverem at um ponto de vista distanciado, moral ou csmico. O samba parece querer libertar-se da anedota, e mesmo de qualquer identidade com uma funo, um papel, uma persona. Para colocar de outra forma, ele o movimento mesmo de ascenso do concreto ao abstrato este o caminho que percorre (diferentemente de Pauli-nho da Viola, que j nasce abstrato):3 num samba de Cartola, uma traio a um amigo (fui trair meu grande amigo) leva,

    atingir o pblico, e permaneciam nele, como tesouro des-perdiado e lenda, ou eram esquecidas de vez mas isto no seria possvel se efetivamente, em especial atravs do rdio e da indstria fonogrfica que nascia, diversas canes no tivessem cumprido o seu destino e atingido o pblico, soli-citando, ainda que vicariamente, uma produo incessante. Com a bossa nova e o salto subsequente da indstria cul-tural, em especial com o advento da televiso, alcanando o que no alcanara, atingindo quem no atingira, essa proporo de amadorismo/profissionalismo, de solido e compartilhamento, se altera. possvel falar que a poca clssica da nossa cano se encerra aqui, e que a gerao dos anos 1960 e 70 ser a expresso explosiva dessa crise.

    No entanto, na contramo desse novo momento, pr-prio dos anos 1960, com maior acesso ao mundo l fora e prximo de uma promessa mais efetiva de pblico, que duas vozes extraordinrias aparecem, no Rio de Janeiro: Cartola e Nelson Cavaquinho. Gravados em lp no incio dos anos 1970, tm em comum, alm da amizade e da escola (Mangueira), uma larga trajetria. Fizeram razovel sucesso l atrs (Car-tola foi gravado por Carmen Miranda, Chico Alves, Mario Reis, Silvio Caldas e Aracy de Almeida, nas dcadas de 1930 e 40; Nelson foi gravado por Alcides Gerardi e, mais de uma vez, por Ciro Monteiro, na dcada de 1940, e ainda por Roberto Silva e Dalva de Oliveira, na de 1950), desapareceram por um tempo e voltaram, na esteira da descoberta do morro pela classe mdia carioca, no incio dos anos 1960,2 com um conjunto de canes espantosamente forte e maduro, um

    2. preciso lembrar Thelma canta Nelson Cavaquinho, de 1966, em que a cantora baiana divide o microfone com o prprio Nelson Cavaquinho, num lp inteiramente dedicado s suas composies.

    3. Basta pensar no incio de Foi um rio que passou em minha vida do que fala afinal a cano? com uma adversativa o Porm, ai, porm da segunda parte que o tema (Um caso diferente/ que marcou num breve tempo/ meu corao para sempre) introduzido. Procurei desenvolver esse ponto de vista em Ao redor de Paulinho da Viola, in Ensaio geral. So Paulo: Globo, 2007, pp. 79-91.

    Fina flor do samba: da esquerda para a direita, Joo da Bahiana, Pixinguinha, Donga e Nelson Cavaquinho, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, Rio de Janeiro, cerca de 1970 Antonio Andrade/Abril

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    no incio da segunda parte, a uma mxima como fao tudo para evitar o mal/ sou pelo mal perseguido. O morro, de onde olha o sujeito lrico, passa a ser, antes de tudo, e literal-mente, um lugar alto, distante, isolado. Instalado ali, o com-positor, sozinho, soberano. Aquela cano que se estabi-lizou com Noel Rosa, multimrfica, penetrante, grudada ao rs do cho, fundida vida da cidade, dissipada nos bol-sos, nas vielas, nas horas da madrugada, espalhada na gria e no contexto imediato, na dana, no ganha e perde das disputas entre os compositores e do querer-ser mais ime-diato, essa cano, em suas inmeras metamorfoses, pode descansar agora, feita de uma matria mais calma e cons-tante. Assim, uma outra caracterstica de ambos aparece inevitavelmente: a sobriedade, espcie de nitidez formal, singela ou solene, que cria distncia ao mesmo tempo que compensa o indefinido do assunto. O compositor no ginga, no desvia, no malicia nada tem do malandro, e a cano vagabunda, oferecendo-se a toda hora s necessidades do mundo, parece quase absurda aqui. Ali onde a sobriedade te abandona, ali se encontra o limite do teu pensamento, dizia Hlderlin.4 H, de fato, um limite, ou contorno, nas composies de Cartola e Nelson Cavaquinho, um perten-cimento, uma espcie de pudor que multiplica a gravidade das canes. Talvez por isso seu ponto de vista seja sempre tardio parece que a vida, de certa forma, j foi vivida. A velhice , portanto, a terceira caracterstica comum a Nel-son e Cartola, o ponto de vista de quem j viveu. H uma experincia acumulada aqui, que obriga a uma conteno e sobriedade, e a um cansao de fundo que vem dela.

    Abstratos, sbrios e velhos Cartola, entre os dois, representar um ncleo mais assentado, harmnico e cls-sico; Nelson ser mais individuado e mpar, quase desagra-dvel. Cartola acena para a conciliao e Nelson, para o tr-gico. Em Cartola, o cantor, antes de mais nada, d conselhos. Aquele que j viveu sopra aos ouvidos de quem escuta: o mundo um moinho ou acontece, acontece. Quer pou-par o ouvinte, conduzi-lo a lugar seguro. Eu bem sei que no queres voltar para mim, mas, ainda assim, devias vir, para ver os meus olhos tristonhos/ e quem sabe sonhar os meus sonhos/ por fim. A cano o veculo dessa reconci-liao, e a riqueza harmnica de Cartola parece permitir a esse percurso que se torne mais longo e abstrato. Assim, as

    Letra do samba Mentiras de Adlia, escrita mo por Nelson Cavaquinho; o manuscrito foi ofertado pelo autor ao pesquisador Jos Ramos Tinhoro, no Rio, por volta de 1965

    4. Encontrei a citao num texto de Ronaldo Brito sobre Goeldi. A nossa sombra, in Oswaldo Goeldi. Rio de Janeiro: Instituto Cultural The Axis, 2002.

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    em algum ponto. O compositor arrasta a melodia para cima e para baixo, numa espcie de cmera lenta entre as notas, fazendo questo de mostrar isso estou indo daqui at ali. A composio, alis, exatamente assim o sobe e desce, ponto por ponto, de uma melodia que ameaa falhar.

    Por isso, talvez, alguma coisa nas canes de Nelson tenda ao coro, que une naturalmente essa melodia tensio-nada ponto a ponto, suprindo-a em suas fraquezas, contra-pondo-se sua vulnerabilidade. Aqui, mais do que em qual-quer outro compositor, a voz coletiva se impe. exceo de alguns clssicos, como A flor e o espinho (cuja primeira e mais famosa parte parece ser de autoria de Guilherme de Brito) ou Folhas secas (parceria dos dois), quase todas as suas canes parecem prontas para ser cantadas em coro. H vrios motivos para isso: o ponto de vista, presente tambm na melodia, de tal forma abstrato, moral, quase religioso, que prescinde das sutilezas do sujeito e tende ao coletivo. Suas interpretaes, no entanto, to pessoais, j contm essa ambiguidade. Nelson canta, a um s tempo, de modo expressivo (voz rasgada, nica, cheia de idiossincrasias; vio-lo percussivo, absolutamente original) e mecnico (diviso quase maquinal das slabas), misturando uma singulars-sima anttese do bel-canto marcao silbica montona, que aceita a neutralizao expressiva de um coro.

    Alm disso, o dilaceramento das canes parece to intenso que a conciliao prvia de uma coletividade, com seu acolhimento e neutralizao, se faz necessria. Muitas vezes (O bem e o mal, Rei vadio, Minha festa prova-velmente, a nica cano feliz de Nelson , Vou partir, Rei vagabundo), o coro anuncia o tema com tamanha nfase que o cantor, ao entrar, parece j aquietado, por contraste. s vezes, ao contrrio, o cantor exasperado que se funde ao coro, no final da cano (Juzo final). De toda forma, o coro d serenidade a esse sujeito trgico, acalmando-o em seu acolhimento. isto exatamente o que Schiller diz do coro trgico grego: As personagens trgicas necessitam deste intervalo [...]. A presena do coro, que as ouve, qual uma testemunha julgadora, e que lhes doma as primei-ras exploses de paixo, motiva a circunspeco com que agem e a dignidade com que falam.5 Nelson, quando canta, parece exatamente assim: circunspecto, digno, de algum modo contido sbrio. O coro clssico um depositrio de

    grandes metforas que conduzem seu trabalho as rosas que no falam, os mundos que so moinho, os ninhos de amor que esto vazios e os ricos percursos harmnicos, adiando o retorno da melodia, tm ambos a mesma funo postergar, enriquecendo-o, como um barco atracando lentamente, um percurso de reconciliao, ainda que triste. Cartola perdeu, mas ensina ao ouvinte aquilo que perdeu, assimilando-o novamente. Seu trabalho a enorme metfora dessa perda, que se parece com tudo alvorada, morro, rosas , estando, portanto, sempre ao dispor, pronta para encontrar ( isto a metfora) a justa proporo com o mundo l fora.

    Para Nelson, o perdido perdido e no retorna no h conciliao, mas queixa, espanto, estupor. Ao contrrio do princpio metafrico, e meta-mrfico, de seu amigo e parceiro, seu trabalho procede por contiguidade e metonmia as folhas secas cadas de uma mangueira, em que o composi-tor pisa, fazem pensar na escola; as melodias, quase literalmente, sobem e descem, como passos da cruz ou do morro; as flores de Nelson, ao contrrio das rosas de Cartola, falam, e o fazem quando ele passa por elas, quando eu passo perto das flores/quase elas dizem assim: ns amanh enfeitaremos o teu fim; o amante descoberto pelo indcio fsico: o cigarro deixado em meu quarto a marca que fumas, no podes negar. Ao contrrio de Cartola, em que um encanto inesgotvel suspende os elementos para p-los em rela-o, em que tudo pode transformar-se naquilo que lhe afim (tudo serve de metfora para tudo), em Nelson as coisas, ainda que abstratas, so o que so, deixando marcas e sinais: bem sei a notcia que vens me trazer/ os teus olhos s faltam dizer/ melhor eu me convencer.

    Suas canes, quase sempre, tm rimas fixas (mgoa/olhos rasos dgua; rosto/desgosto; mundo/vagabundo; embora/agora), estruturas algo arque-tpicas e invariveis: o que conta, realmente, o movimento de subida e descida da melodia. Se em Cartola as melodias parecem espalhar-se, num desenvolvimento arrebatador e expansivo, em Nelson progridem, passo a passo, num movimento pontual, mas inexorvel, entre o aqui e o ali, como se pudssemos apontar com o dedo o seu movimento. Parecem circunscri-tas, presas a um meio que lhes oferece resistncia. Seu canto refora como nenhum outro tal aspecto. Nelson parece cantar ca-da s-la-ba como se fosse ela a unidade de significao final; separa-a de sua vizinha como se existisse por si mesma. Assim, o acento em cada ponto do percurso acaba impedindo a expanso lrica tpica das canes de Cartola (e o bel-canto correspondente, ainda presente nas interpretaes do prprio Cartola) e refora o aqui e agora aprisionado do cantor. H uma clausura, uma gravidade, uma fora entrpica que a melodia deve vencer, ausentes em Cartola. Muito da beleza e singula-ridade de Nelson vem dessa espcie de conta final entre dois adversrios quase um espanto que a cano tenha conseguido desenvolver-se, que tenha sido composta, afinal. Parece que poderia ter cedido, ter-se deixado perder

    5. Friedrich Schiller, Acerca do uso do coro na tragdia, in Teoria da tragdia, introduo e notas de Anatol Rosenfeld. So Paulo: epu, 1992, p. 81.

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    sabendo disso. O coro, em Nelson, parece o prprio arcaico conciliado, tornado acolhimento e no ser exagero pr na conta desse arcaico os maus-tratos da escravido secu-lar, da distribuio de renda pfia, do racismo latente, do alcoolismo universal, da vida brutalizada por toda parte. O coro acalma o cantor, que se entrega a ele como quem nasce de novo, uma vez que a negao imediata de seus males, dos males que o cantor est presentemente cantando o coro a solido negada, a traio negada, a misria negada. Ele diz o contrrio da cano; a sua existncia a refutao cabal do que est sendo cantado, e no de estranhar que acabe virando tema da cano e por isso que eu canto assim: l, lli lailai (coro) (Minha festa). Se h coro, ento o cantor no mais um pobre-diabo, nem est sozi-nho, mas cercado de irmos, que cantam agora com ele e para ele. Mangueira, a escola que vive at na morte (vivo tranquilo em Mangueira porque/ sei que algum h de chorar quando eu morrer), esse coro tornado gente, vida real, espalhado por a. Cantar, assim, transforma o palhao em rei e o pobre-diabo em centro do mundo. Nelson, que em tudo um artista extremado, parece mostrar em diversas composies essa passagem limtrofe entre a dilacerao quase muda, de quem talvez no consiga cantar a prxima nota, e uma espcie de acolhimento que o coro (revelando o movimento da prpria cano) oferece.

    O trabalho de Nelson Cavaquinho coloca para a cano brasileira uma espcie de limite esttico sem prejuzo da beleza cabal de tantas de suas melodias,9 o fato que ouvi-lo cantar muitas vezes uma experincia rascante, quase desa-gradvel. Seu violo preparado,10 percussivo, com notas que batem mais do que ecoam; sua voz absurda, espcie de anti-Joo Gilberto em seu flego mnimo, que se orgu-lha de dizer que est acabando a cada verso, ou meio-verso; seus temas recorrentes, suas rimas recorrentes e, principal-mente, suas melodias alpinistas, subindo e descendo passo a passo nossa frente, formam um conjunto impressionante de tristeza, dilacerao e morte. Independentemente dos anos de formao dessa potica (entre as dcadas de 1930 e 50), o fato que, no momento em que efetivamente rea-parece para o mundo, gravando ou tocando em endereo conhecido (anos 1960), parece contrapor-se solidamente ao que se anunciava sua volta. O trabalho de Nelson foge

    valores anteriores ao a que sucumbe o heri Vernant e Vidal-Naquet viam nele a forma potica do mundo agr-rio, arcaico, aristocrtico e homrico (anterior, portanto, ao mundo presente do teatro trgico), em oposio fala em prosa do cidado da plis, representado pelo ator trgico.6 Claro que essas foras no esto organizadas em Nelson Cavaquinho, mas creio ser possvel perceber em seu tra-balho uma tenso, que merece reflexo, entre o sujeito e o coletivo, entre o agora de quem canta e compe e o imemo-rial derrisrio de nossa histria, que esse coro parece des-pertar e perdoar.

    diferena da tragdia grega, o coro em Nelson Cava-quinho funde o coletivo e o individual no h duas vozes, sempre preservadas na tragdia grega, em que dois tempos diversos parecem conviver; nem oposio entre a ao tr-gica do heri e o inevitvel rebarbativo cantado pela teste-munha julgadora, o coro. O cantor e o coro nas canes de Nelson querem cantar juntos, numa espcie de conciliao csmica que a entrada das vozes femininas e masculinas no fim de Juzo final, na interpretao do prprio Nelson, exemplifica com perfeio. Ali, o cantor parece arrastado por essas vozes, que atuam no mesmo sentido que ele, elevando suas palavras a um patamar que no alcanariam sozinhas. Assim, os dois polos misturam-se, acalmam-se, consolam-se. A cano perde uma imparidade lrica quase insuportvel, que tenderia talvez dissipao, consolando-se com o ato mesmo de muitos estarem-na cantando agora.

    Tudo em Nelson Cavaquinho tende ao arcaico, ou extemporneo mas, diferena de outro Nelson (Nel-son Rodrigues, seu contemporneo e conterrneo), ele no parece dar-se conta disso. No h dois polos aqui. Nel-son Cavaquinho no o pai do samba brasileiro moderno, como Nelson Rodrigues do teatro moderno brasileiro. No h propriamente tenso entre forma moderna e contedo arcaizante aqui.7 Essa questo, presente em quase toda a arte brasileira, simplesmente no se coloca. Muito mais do que arcaico, Nelson (como Cartola) parece ter nascido extemporneo, na contramo da promessa de felicidade da dcada de 19508 e da agoridade exigente dos anos 1960. desse patamar que Nelson e Cartola compem, esque-cidos, mas tambm preservados e desse mesmo lugar que Paulinho da Viola enxerga o mundo, embora, digamos,

    7. Procurei tratar Nelson Rodrigues a partir desta tenso entre arcaico e moderno em A noiva desnudada, in Ensaio geral, op. cit., pp. 51-68.8. Ver Lorenzzo Mamm, Joo Gilberto e o projeto utpico da bossa nova. Novos Estudos, n. 34, So Paulo: Cebrap, nov. 1992.

    9. A verso de Elis Regina, com arranjo de Cesar Camargo Mariano, para

    Folhas secas, por exemplo, faz justia a uma das mais delicadas e belas melodias do nosso cancioneiro.10. Como se sabe, John Cage fez diversas peas para Piano preparado, em que o instrumento, por meio da incluso de borrachas, clavilhas e outros artefatos em seu interior, passa a soar como um batuque imprevisvel.

    6. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e tragdia na Grcia antiga. So Paulo: Perspectiva, 1999, pp. 2-3 e 12-13. O argumento de Vernant e Vidal-Naquet pode ser resumido assim: o coro fala em poesia arcaica e o heri, em prosa atual, talhada pelo vocabulrio jurdico da cidade se constituindo. No entanto, o heri a encarnao (da o uso da mscara) do semideus homrico, e o coro, a conscincia atual da comunidade, que percebe essa impossibilidade. Assim, na tenso entre o heri, que j no tem lugar, mas se expressa atravs da prosa jurdica da cidade, e o coro, que fala a linguagem arcaica, mas incorpora a conscincia atual da falncia do heri, o conflito sem soluo entre o mito e as instituies civis, entre o arcaico e o tempo presente, ganha forma.

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    ambivalncia moderno/arcaico que atravessa toda a pro-duo dos anos 1950/60/70, entre o otimismo da primeira bossa nova e o dilaceramento tropicalista. Ele nosso con-tato imediato com aquilo que deu profundamente errado em ns, sem remisso a nenhum outro: internacionalizao, desejo, cosmopolitismo. Consegue sublimar nosso fracasso sem aludir vida que podia ter sido e que no foi. Talvez deva muito de sua sobriedade e solidez formal ausncia desse elemento compsito, o desejo e a recusa do moderno, que caracteriza quase tudo o que fizemos. Em Nelson, a vida o que e, num certo sentido, aquilo que sempre foi. Por isso, no carrega ansiedade nem projeto. Parece to desej-vel quanto a morte.

    Em 1968, Leon Hirszman realizou um pequeno documen-trio sobre Nelson Cavaquinho. Vale o esforo de assisti-lo.11 Em tudo despretensioso, soma aparentemente descosida de dez ou 15 takes, trata-se na verdade de um filme forts-simo, essencial para a compreenso de Nelson. Nele, como nos penetrveis contemporneos de Hlio Oiticica, tudo parece dentro. Estamos sempre colados ao que aparece, como se no fosse possvel olhar nada de longe. No entanto, ou talvez exatamente por isso mesmo, aquela cumplicidade da cmera em relao ao seu objeto, e de seu objeto em rela-o cmera, tpica de tantos documentrios e reportagens recentes, ainda no nasceu aqui. A luz estourada, a presena acidental e absurda do microfone de som direto, a aluso quilo e queles que esto atrs da equipe de filmagem, a absoluta ausncia de naturalidade de todos os que aparecem no filme (menos do prprio Nelson), criam um lado de l perturbado pela cmera, alheio e heterogneo, mas por isso mesmo centrado e autntico. Numa cena especialmente feliz, sob o som de Tire o seu sorriso do caminho, a cmera persegue uma moa, que foge ferozmente dela, esconden-do-se atrs das amigas, das mos e do prprio cabelo, e ser-vindo, neste movimento, de mira para o que aparece atrs dela: um ptio cheio de gente e fachadas de casas, um ptio onde entramos sabendo, pelo comportamento de nossa anfitri, que no deveramos entrar. Em outra sequncia, sob a trilha de um estranha cano, cuja letra fala de um pimpolho de cinco anos que fuma charuto e pede mulher,

    crianas bebem cerveja (mas pode ser tubana), galinhas se espalham pela casa, tudo parece bbado, disperso, em festa e deprimido, como uma cena de crueldade infantil de Dickens, mas na qual nossos valores j no servem: as crianas esto sendo aliciadas? Esto realmente bebendo lcool? O efeito cmico? Trgico? A depresso explcita de Nelson autntica? Perigosa? Vai matar o pintinho que tem entre as mos ou est brincando com ele? As coisas, neste filme, parecem alheias na medida mesma em que se mostram de todo despreparadas para aparecer para ns. Esse despreparo a matria primeira do filme, sem que se saiba bem se no ser nosso ao olh-lo. Por isso no tanto a misria, tema por excelncia do cinema novo, que est sendo captada nesses longos travellings, com os grandes valores que sempre se depositam nela estupor, piedade, princpios, revolta. No, pois a passi-vidade da misria ficou de fora, expulsa pelo comportamento incomodado de tantos que aparecem no filme, pela figura estranhssima, cabocla e albina, de Nelson, mas principalmente pelas canes que surgem ao fundo. O que est sendo flagrado alguma coisa que foi esquecida, mas que parece ter-se organizado plenamente nesse esquecimento. Algo que tolera a cmera, mas no se entrega a ela, que consegue fugir dela, ou mostrar-se enquanto foge, dirigindo a cmera em sua fuga. As figuras e canes vm da, voltam para a e querem ficar a. No precisam de ns. A ltima e extraordinria cena do filme merece descrio. A cano Vou partir, e Nelson est cantando sozinho (Vou partir/ No sei se voltarei/ Tu no me queiras mal/ Hoje Carnaval// Partirei para bem longe/ No precisa se preocupar/ S voltarei pra casa/ Quando o Carnaval acabar, acabar). A tomada, noturna, comea de fora das portas abertas de um bar. Um zoom revela uma mesa em cujo centro Nelson toca e canta, cercado de pessoas. Corte para uma tomada de longe, do alto, inteiramente preta, onde a luz do bar se tornou um pequeno retngulo na parte inferior do quadro, numa composio que remete dire-tamente, com incrvel fidelidade, ao mundo das xilogravuras de Goeldi. No momento do corte, o coro entra. Pela primeira vez em todo o filme, ouvi-mos o coro tpico das canes de Nelson; pela primeira vez em todo o filme, alguma coisa filmada de longe. De longe, para que o coro entre. De longe, porque ficamos de fora.

    Artista plstico e escritor, NUNO RAMOS autor de Cujo (1993) e O po do corvo (2002), ambos pela Editora 34. Ensaio geral, sua coletnea de ensaios editada pela Globo, foi um dos mais importantes lanamentos editoriais de 2007. Em 2008, lanou , reunindo contos e crnicas.

    11. A obra inteira de Hirszman est sendo restaurada. De todo modo, encontrei oito minutos do filme (mais que a metade) no YouTube.

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    Como navegar na paisagem da informao que est apenas comeando a aparecer? A questo mais urgente do que nunca, a julgar pelo recente acordo entre o Google e os escri-tores e editoras que o estavam processando por alegada vio-lao de copyright. Nos ltimos quatro anos, o Google vem digitalizando milhes de livros, incluindo muitos cobertos por copyright, das colees de grandes bibliotecas de pes-quisa, e tornando os textos acessveis online. Os escritores e editoras objetaram que digitalizar constitua uma violao de seus direitos autorais. Depois de demoradas negociaes, os queixosos e o Google chegaram a um acordo, que ter consequncias profundas na maneira como os livros chega-ro aos leitores no futuro previsvel. Qual ser esse futuro?

    Ningum sabe, porque o acordo to complexo que fica difcil perceber os contornos legais e econmicos no novo estado de coisas. Mas aqueles de ns que so responsveis por bibliotecas de pesquisa tm a clara viso de um objetivo comum: queremos abrir nossas colees e torn-las dispo-nveis a leitores de todas as partes. Como chegar l? Talvez a nica ttica praticvel seja a vigilncia: enxergar o mais

    O Google e o futuro dos livrosRobeRt DaRnton

    dilemas contemporneos O acordo com as

    editoras permitir ao site de buscas criar o maior

    acervo de livros da histria da humanidade; o his-

    toriador e diretor da biblioteca de Harvard teme

    que as bibliotecas, na contramo do esprito do Ilu-

    minismo, percam a sua funo pblica

    As imagens que ilustram este ensaio so da instalao sem ttulo que a artista britnica Rachel Whiteread fez para a Bienal de Veneza de 1997. Ela lembra o interior de uma biblioteca domstica, feita em gesso, com as prateleiras vazias e os livros dependurados por baixo delasRACHEL WHITEREAD, Untitled (Paperbacks), 1997. Courtesy of the artist and Luhring Augustine, New York.

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    longe que se puder; manter os olhos na estrada, lembrando-se de olhar no espelho retrovisor.

    Quando olho para trs, fixo-me no sculo 18, no Iluminismo, em sua f no poder do conhecimento e no mundo de ideias em que ele operou aquilo a que o iluminista se referia como Repblica das Letras.

    O sculo 18 imaginava a Repblica das Letras como um reino sem polcia, sem fronteiras e sem desigualdades, exceto as determinadas pelo talento. Qualquer um podia juntar-se a ela exercendo os dois atributos principais da cidadania: escrever e ler. Escritores formulavam ideias e leitores as julga-vam. Graas ao poder da palavra impressa, os julgamentos se estendiam por crculos cada vez mais amplos, e os argumentos mais fortes venciam.

    A palavra se espalhava tambm por cartas escritas, pois o sculo 18 foi uma grande era de intercmbio epistolar. Lendo a correspondncia de Voltaire, Rousseau, Franklin e Jefferson cada uma enchendo cerca de 50 volumes , possvel observar a Repblica das Letras em operao. Esses quatro escritores debatiam todas as questes de seu tempo numa sequncia contnua de cartas que interligava Europa e Amrica numa rede de infor-mao transatlntica.

    Eu aprecio particularmente a troca de cartas entre Jefferson e Madison. Eles discutiam de tudo, especialmente a Constituio dos Estados Unidos, que Madison estava ajudando a escrever na Filadlfia enquanto Jefferson representava a nova repblica em Paris. Eles escreviam amide sobre livros, pois Jefferson amava visitar as livrarias da capital da Repblica das Letras, e com frequncia comprava livros para o amigo. As compras incluram a Encyclopdie de Diderot, que Jefferson achava que havia conseguido por uma pechincha, embora tivesse tomado uma reimpresso pela primeira edio.

    Os dois futuros presidentes discutindo livros pela rede de informao do Iluminismo uma viso eletrizante. Mas antes de esse quadro do passado ser confundido pela emoo, devo acrescentar que a Repblica das Letras s era democrtica em princpio. Na prtica, ela era dominada pelos bem-nascidos e pelos ricos. Longe de poder viver de suas plumas, a maioria dos escritores tinha que cortejar patronos, solicitar sinecuras, fazer lobby por nomeaes para publicaes estatais, esquivar-se dos censores e disputar seu acesso a sales e academias onde as reputaes se faziam. Enquanto sofriam injustias nas mos de seus superiores sociais, eles se voltavam uns contra os outros. A disputa entre Voltaire e Rousseau ilustra seus respectivos temperamentos. Em 1755, aps ler o Discours sur lorigine et les fondements de lingalit parmi les hommes [Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens], de Rousseau, Voltaire escreveu a ele: Recebi, Monsieur, seu novo livro contra a raa humana Ele nos faz desejar cair de

    quatro. Cinco anos depois, Rousseau escreveu a Voltaire. Monsieur, eu o odeio.

    Os conflitos pessoais se misturavam com distines sociais. Longe de funcionar como uma gora igualitria, a Repblica das Letras sofria a mesma doena que corroeu todas as sociedades do sculo 18: o privilgio. Os privilgios no se limitavam a aristocratas. Na Frana, eles se aplica-vam a tudo no mundo das letras, incluindo a impresso e o comrcio de livros, que eram dominados por guildas exclu-sivas, e os prprios livros, que no podiam sair legalmente sem um privilgio real e a aprovao de um censor impressa com todas as letras no texto deles.

    Uma maneira de entender esse sistema recorrer sociologia do conhecimento, em especial, noo de Pierre Bourdieu de literatura como um campo de poder formado por posies conflitantes dentro das regras de um jogo, ele prprio subordinado s foras dominantes da sociedade em geral. Mas no preciso filiar-se escola de sociologia de Bourdieu para reconhecer as conexes entre literatura e poder. Vistas da perspectiva dos jogadores, as realidades da vida literria contradiziam os altos ideais do Iluminismo. Apesar de seus princpios, a Repblica das Letras, tal como ela realmente operava, era um mundo fechado, inacessvel aos desprivilegiados. Entretanto, quero invocar o Ilumi-nismo numa defesa da abertura em geral e do livre acesso em particular.

    Se passarmos do sculo 18 para o presente, haver uma con-tradio similar entre princpio e prtica bem aqui, no mundo das bibliotecas de pesquisa? Uma de minhas cole-gas uma senhora calma, pequenina, que poderia evocar o esteretipo de Marion, a bibliotecria1. Quando encontra pessoas em festas e se identifica, elas s vezes dizem com condescendncia: Uma bibliotecria, que legal. Me diga, como ser uma bibliotecria? Ela responde: Essencial-mente, tem a ver com dinheiro e poder.

    Estamos de volta a Pierre Bourdieu. No entanto, a maioria de ns apoiaria os princpios inscritos em lugares proemi-nentes de nossas bibliotecas pblicas. Gratuito para todos, diz-se acima da entrada principal da Biblioteca Pblica de Boston; e, nas palavras de Thomas Jefferson, entalhadas em

    1. Personagem do musical The Music Man, escrito por Meredith Wilson em 1950. A adaptao para o cinema foi lanada em 1962, com Shirley Jones no papel de Marion Paroo, uma bibliotecria solteirona, trabalhadora, irritadia, reservada e cabea, que desafia a pequena cidade de River City, no estado de Iowa, ao recomendar livros de Chaucer e Balzac. O filme passou no Brasil com o nome de O vendedor de iluses. [n. do E.]

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    acionistas. Do jeito como as coisas esto, por exemplo, Bab-bitt, de Sinclair Lewis, publicado em 1922, est em domnio pblico, enquanto Elmer Gantry, de Lewis, publicado em 1927, s entrar em domnio pblico em 2022.2

    Descer dos altos princpios dos Pais Fundadores s pr-ticas das indstrias culturais de hoje sair do reino do Ilu-minismo para o tumulto do capitalismo corporativo. Se voltssemos sociologia do conhecimento para o presente como o prprio Bourdieu fez , veramos que vivemos num mundo projetado por Mickey Mouse, violento e cruel.

    Esse tipo de teste da realidade far os princpios do Ilumi-nismo parecer uma fantasia histrica? Vamos reconsiderar a histria. proporo que o Iluminismo esmorecia, no in-cio do sculo 19, estabelecia-se o profissionalismo. poss-vel acompanhar o processo comparando a Encyclopdie de Diderot, que organizou o conhecimento num todo orgnico dominado pela faculdade da razo, com sua sucessora do fim do sculo 18, a Encyclopdie mthodique, que dividia o conhe-cimento em campos que podemos reconhecer hoje em dia: qumica, fsica, histria, matemtica e o resto. No sculo 19, esses campos se transformaram em profisses certificadas por PhDs e guardadas por associaes profissionais. Eles se metamorfosearam em departamentos de universidades e, no sculo 20, haviam deixado sua marca em campi qumica abrigada neste prdio, fsica naquele, histria aqui, matem-tica ali, e, no centro de tudo, uma biblioteca, geralmente pro-jetada para parecer um templo do saber.

    Ao longo do caminho, publicaes especializadas brota-ram nos campos, subcampos e sub-subcampos. As socieda-des doutas as produziam, e as bibliotecas as adquiriam. Esse sistema funcionou bem durante cerca de 100 anos. A as editoras comerciais descobriram que podiam fazer uma for-tuna vendendo assinaturas dessas publicaes. Quando uma biblioteca universitria subscrevia, os alunos e professores passavam a esperar um fluxo ininterrupto de edies. Os preos podiam ser reajustados sem causar cancelamentos porque as bibliotecas pagavam pelas assinaturas e os profes-sores no. O melhor de tudo: os professores forneciam traba-lho de graa ou quase de graa. Eles escreviam artigos, julga-vam artigos enviados e serviam em conselhos editoriais, em

    letras douradas na parede da Trustees Room da Biblioteca Pblica de Nova York: Eu vejo a difuso de luz e educao como o recurso mais confivel para melhorar a condio de promover a virtude e aumentar a felicidade do homem. Estamos de volta ao Iluminismo.

    Nossa repblica foi fundada sobre a f no princpio central da Repblica das Letras do sculo 18: a difuso da luz. Para Jefferson, o Iluminismo ocorreu por intermdio de escritores e leitores, livros e bibliotecas especialmente bibliotecas, em Monticello, na Universidade de Virgnia, e na Biblioteca do Congresso. Essa f est incorporada Constituio dos Estados Unidos. O Artigo 1, Seo 8, estabelece copyright e patentes apenas por perodos limi-tados e sujeitos ao propsito superior de promover o progresso da cincia e das artes utilitrias. Os Pais Fundadores reconheciam os direitos de auto-res a um justo retorno sobre seu trabalho intelectual, mas colocavam o bem pblico acima do lucro privado.

    Como calcular a importncia relativa desses dois valores? Como os autores da Constituio sabiam, o copyright foi criado na Gr-Bretanha pelo Statute of Anne [Estatuto de Anne], em 1710, com a finalidade de con-ter as prticas monopolistas da London Stationers Company [Companhia dos Livreiros e Editores], e tambm, como seu ttulo proclamava, para o encorajamento do saber. Na poca, o Parlamento estabeleceu a durao do copyright em 14 anos, renovvel apenas uma vez. Os Stationers tentaram preservar seu monoplio de publicao e de comrcio de livros defendendo numa longa srie de aes judiciais o copyright perptuo, mas eles perde-ram na sentena definitiva de Donaldson contra Becket em 1774.

    Quando os americanos se reuniram para escrever o anteprojeto de uma constituio, 13 anos depois, eles no geral favoreceram a viso que havia predominado na Gr-Bretanha. Vinte e oito anos pareciam tempo sufi-ciente para proteger os interesses de autores e editoras. Alm desse limite, o interesse do pblico devia prevalecer. Em 1790, a primeira lei de copyright tambm dedicada promoo do saber acompanhou a prtica britnica ao adotar um limite de 14 anos, renovvel por outros 14.

    Hoje, por quanto tempo se estende o copyright? Segundo o Sonny Bono Copyright Term Extension Act de 1998 (tambm conhecida como Lei de Proteo de Mickey Mouse, porque Mickey estava prestes a cair em dom-nio pblico), ela dura o tempo de vida do autor, mais 70 anos. Na prtica, isso normalmente significa mais de um sculo. A maioria dos livros publi-cados no sculo 20 ainda no entrou em domnio pblico. No que diz res-peito digitalizao, o acesso a nossa herana cultural geralmente termina em 1 de janeiro de 1923, a data a partir da qual grande nmero de livros est sujeito a leis de copyright. Ele permanecer ali a menos que interesses privados assumam a digitalizao, embalem-na para consumidores, vincu-lem os pacotes por meio de acordos legais, e os vendam para o lucro dos

    2. O Copyright Term Extension Act de 1998 retroativamente estendeu em 20 anos os direitos para livros protegidos por copyright aps 1 de janeiro de 1923. Infelizmente, a condio dos direitos autorais de livros publicados no sculo 20 complicada por uma legislao que estendeu 11 vezes o copyright durante os ltimos 50 anos. At a lei federal de 1992, os detentores de direitos tinham que renovar seus copyrights. A lei de 1992 retirou esse requisito para livros publicados entre 1964 e 1977, quando, segundo o Copyright Act de 1976, seus copyrights durariam pela vida do autor mais 50 anos. A lei de 1998 estendeu essa proteo para a vida do autor mais 70 anos. Portanto, todos os livros publicados aps 1963 continuam protegidos por copyright, e um nmero desconhecido desconhecido em razo de informaes inadequadas sobre as mortes de autores e dos donos de copyright , publicado entre 1923 e 1964, est tambm protegido por copyright. Ver Paul A. David e Jared Rubin,

    Restricting Access to Books on the Internet: Some Unanticipated Effects of U.S. Copyright Legislation. Review of Economic Research on Copyright Issues, v. 5, n. 1, pp. 23-53, 2008. Disponvel em: . Acesso em: 19 fev. 2009.

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    parte para difundir conhecimento moda do Iluminismo, mas, sobretudo, para promover as prprias carreiras.

    O resultado se destaca no oramento de aquisies de cada biblioteca de pesquisa: a assinatura anual do Journal of Comparative Neurology custa us$ 25.910; a de Tetrahedron custa us$ 17.969 (ou us$ 39.739, se enfeixada com publicaes afins como um pacote Tetrahedron); o preo mdio de uma publicao especializada em qumica us$ 3.490; e os efeitos propagat-rios prejudicaram a vida intelectual por todo o mundo do aprendizado. Em razo do custo exorbitante de publicaes peridicas, as bibliotecas, que costumavam gastar 50% de seu oramento de aquisies em monografias, agora gastam 25% ou menos. As editoras universitrias, que dependem de vendas a bibliotecas, no conseguem cobrir seus custos publicando mono-grafias. E os jovens pesquisadores que dependem de publicar para promo-ver suas carreiras esto em risco de extino.

    Felizmente, esse quadro de fatos duros da vida no mundo do saber j est obsoleto. Bilogos, qumicos e fsicos j no vivem em mundos separados; his-toriadores, antroplogos e estudiosos de literatura tampouco. O velho mapa do campus j no corresponde s atividades dos professores e alunos. Est sendo redesenhado por toda parte, e, em muitos lugares, os projetos interdisciplina-res esto se transformando em estruturas. A biblioteca continua no centro das coisas, mas ela injeta nutrio por toda a universidade e, frequentemente, at nos rinces mais remotos do ciberespao, por meio de redes eletrnicas.

    A Repblica das Letras do sculo 18 foi transformada numa Repblica do Saber profissional, e agora est aberta a amadores amadores no melhor sentido da palavra, amantes do saber em meio cidadania em geral. A aber-tura est operando por toda parte, graas aos acervos de artigos digitaliza-dos de acesso aberto disponveis sem custos a Open Content Alliance, a Open Knowledge Commons, OpenCourseWare, o Internet Archive e a empreendimentos abertamente amadores como a Wikipedia. A democra-tizao do conhecimento agora parece estar na ponta dos dedos. Podemos dar vida ao ideal do Iluminismo na realidade.

    Nesse ponto, algum pode suspeitar que eu pulei de um gnero americano, a lamria, para outro, o entusiasmo utpico. possvel, imagino, os dois tra-balharem juntos como uma dialtica, no fosse o perigo da comercializao. Quando empresas como o Google olham para bibliotecas, elas no veem meramente templos do saber. Veem ativos potenciais ou o que chamam de

    contedo, prontos para ser garimpados. Construdos ao longo de sculos a um custo imenso de dinheiro e trabalho, acervos de bibliotecas podem ser digitalizados em massa a um custo relativamente baixo milhes de dlares, certamente, mas pouco comparado ao investimento que receberam.

    Bibliotecas existem para promover o bem pblico: o encorajamento do saber, saber gratuito para todos. Empresas existem para ganhar dinheiro para seus acionis-tas uma boa coisa, tambm, pois o bem pblico depende de uma economia lucrativa. Contudo, se permitirmos a comercializao do contedo de nossas bibliotecas, no h como contornar uma contradio fundamental. Digitalizar acervos e vender o produto de maneira que no garanta amplo acesso seria repetir o erro que foi cometido quando editoras exploraram o mercado de publicaes especiali-zadas, mas numa escala muito maior, pois transformaria a Internet em instrumento de privatizao de um conheci-mento que pertence esfera pblica. Nenhuma mo invis-vel interviria para corrigir o desequilbrio entre o bem-estar pblico e o privado. Somente o pblico pode fazer isso, mas quem fala pelo pblico? No os legisladores da Lei de Prote-o Mickey Mouse.

    No se pode legislar o Iluminismo, mas possvel estabe-lecer regras do jogo para proteger o interesse pblico. Biblio-tecas representam o bem pblico. Elas no so empresas, mas precisam cobrir seus custos. Elas precisam de um plano de negcios. Pense no velho lema da Con Edison3 quando teve que rasgar as ruas de Nova York para chegar infraes-trutura embaixo delas: Escavar preciso. As bibliotecas dizem: Digitalizar preciso. Mas no em quaisquer ter-mos. Precisamos faz-lo no interesse do pblico e isso sig-nifica responsabilizar os digitalizadores perante a cidadania.

    Seria ingnuo identificar a Internet com o Iluminismo. Ela tem o potencial de difundir conhecimento alm de qualquer coisa imaginada por Jefferson; mas, enquanto ela estava sendo construda, link por hyperlink, os interesses comerciais no ficaram sentados ociosamente ao lado. Eles querem controlar o jogo, assumir seu controle, possu-lo. Eles competem entre si, claro, mas to ferozmente que se eliminam mutuamente. Sua luta pela sobrevivncia est levando a um oligoplio e, ganhe quem ganhar, a vitria poder significar uma derrota do bem pblico.

    No me entendam mal. Sei que empresas precisam pres-tar contas a acionistas. Acredito que os autores devam receber pagamento por seu trabalho criativo e que as editoras merecem ganhar dinheiro com o valor que acrescentam aos textos forne-cidos pelos autores. Admiro a bruxaria de hardware, software,

    3. Empresa fornecedora de energia eltrica e gs natural em Nova York. [n. do E.]

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    4. O texto integral do acordo pode ser encontrado em: . Para informaes legais do Google a respeito do acordo, ver a pgina 35 de The New York Review of Books, v. 56, n. 2, 12 fev. 2009.

    fornecendo a busca de textos integrais e tornando livros em domnio pblico acessveis na Internet sem nenhum custo para o usurio. Por exemplo, agora possvel para qualquer pessoa, em qualquer lugar, ver e baixar uma cpia digital da primeira edio, de 1871, de Middlemarch, que est no acervo da Bodleian Library, em Oxford. Todos lucraram, incluindo o Google, que colheu receita de alguma publicidade discreta anexada ao servio, o Google Book Search. O Google tambm digitalizou um nmero sempre crescente de livros de biblio-tecas que estavam protegidos por copyright para fornecer ser-vios de busca que exibiam pequenos trechos do texto. Em setembro e outubro de 2005, um grupo de autores e editoras moveu uma ao coletiva contra o Google, alegando violao de copyright. Em 28 de outubro passado, aps demoradas negociaes, as partes litigantes anunciaram um acordo, que est sujeito aprovao do Tribunal Distrital dos EuA do Dis-trito Sul de Nova York.4

    O acordo cria uma empresa conhecida como o Book Rights Registry para representar os interesses dos detentores de copyright. O Google vender o acesso a um banco de dados gigantesco, composto principalmente por livros das bibliote-cas de pesquisa que estejam fora de catlogo e protegidos por copyright. Faculdades, universidades e outras organizaes podero subscrever, comprando uma licena de consumo do Google, que cooperar com o registro para a distribuio de toda a receita aos detentores de copyright. O Google reter 37% e o registro distribuir 63% para os detentores de direitos.

    Enquanto isso, o Google continuar colocando livros em domnio pblico acessveis a usurios para ler, baixar e impri-mir, de graa. Dos sete milhes de livros que o Google decla-radamente digitalizou at novembro de 2008, um milho so obras em domnio pblico; um milho so protegidas por copyright e impressas; e cinco milhes so protegidas por copyright mas esto fora de catlogo. essa ltima cate-goria que fornecer o grosso dos livros que ser disponibili-zado pela licena institucional.

    Muitos dos livros com copyright e impressos no estaro disponveis no banco de dados, a menos que os detentores dos direitos optem por inclu-los. Eles continuaro sendo vendidos da maneira normal como livros impressos e tam-bm podero ser comercializados eventualmente em leito-res de e-book como o Kindle, da Amazon.

    mecanismos de busca, digitalizao e ranking de relevncia algortmica. Reco-nheo a importncia do copyright, embora ache que o Congresso fez melhor em 1790 que em 1998.

    Porm ns tambm no podemos ficar esperando sentados como se as foras do mercado pudessem operar pelo bem pblico. Precisamos nos engajar, nos envolver, e recuperar o justo domnio do pblico. Quando digo

    ns, quero dizer ns o povo, ns que criamos a Constituio e que deve-ramos fazer os princpios do Iluminismo por trs dela informar as reali-dades cotidianas da sociedade da informao. Sim, precisamos digitalizar. Mas, mais importante, precisamos democratizar, precisamos acesso aberto a nossa herana cultural. Como? Reescrevendo as regras do jogo, subordi-nando interesses privados ao bem pblico e tirando inspirao da repblica primitiva para criar uma Repblica Digital do Saber.

    O que provocou estas reflexes lamurientas e utpicas? O Google. Quatro anos atrs, o Google comeou a digitalizar livros de bibliotecas de pesquisa,

    Na biblioteca imaginria e intimista da artista Rachel Whiteread temos espectros de livros sem cor, sem ttulos, sem autores. Quando se chega perto, possvel identificar a presena de papis impressos na composio da textura da obra. Embora a artista no tenha colocado ttulo, h, entre parnteses, a palavra Paperback, que, nos eua, remete s edies mais baratasRACHEL WHITEREAD, Untitled (Paperbacks), 1997. Courtesy of the artist and Luhring Augustine, New York.

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    Depois de ler o acordo e compreender seus termos o que no uma tarefa fcil, j que ele tem 134 pginas e 15 apndices de juridiqus pode-se ficar embasbacado: eis uma proposta que poder resultar na maior biblioteca do mundo. Seria, claro, uma biblioteca digital, mas poderia fazer sombra Biblioteca do Congresso e a todas as biblio-tecas nacionais da Europa. Mais ainda, na busca dos termos do acordo com os autores e editoras, o Google conseguiu se tornar tambm o maior negcio de livros do mundo no uma cadeia de lojas, mas um servio de fornecimento ele-trnico capaz de superar a amaznica Amazon.

    Uma empresa em tamanha escala est fadada a provocar reaes dos dois tipos que estamos discutindo: de um lado, entusiasmo utpico; de outro, lamrias sobre o perigo de concentrar poder de controlar o acesso informao.

    Quem no se comoveria com a perspectiva de colocar virtualmente todos os livros das maiores bibliotecas de pesquisa dos EuA ao alcance de todos os norte-americanos, e talvez, eventualmente, de todas as pessoas do mundo com acesso Internet? A feitiaria tecnolgica do Google no s traria livros para leitores; ela tambm abriria opor-tunidades extraordinrias de pesquisa, de uma gama de possibilidades de buscas diretas de palavras at complexas garimpagens de textos. Sob certas condies, as bibliotecas participantes tambm podero usar as cpias digitalizadas de seus livros para criar substituies para ttulos que foram danificados ou perdidos. O Google preparar os textos de maneira a ajudar leitores com deficincias.

    Infelizmente, o compromisso do Google de fornecer livre acesso a seu banco de dados em um terminal em cada biblioteca pblica est cercado de restries: os lei-tores no podero imprimir nenhum texto protegido por copyright sem pagar uma taxa aos detentores dos direitos (embora o Google tenha se proposto a pag-las no comeo); alm disso, um nico terminal dificilmente satisfar a demanda em bibliotecas grandes. Mas a genero-sidade do Google ser uma ddiva para leitores das biblio-tecas Carnegie5 em cidades pequenas, que tero acesso a mais livros que os atualmente disponveis na Biblioteca Pblica de Nova York. O Google pode tornar realidade o sonho do Iluminismo.

    Mas tornar? Os filsofos do sculo 18 viam o monoplio como impor-tante obstculo difuso do conhecimento no apenas monoplios em geral, que dificultavam o comrcio, segundo Adam Smith e os fisiocratas, mas monoplios especficos, como o da Stationers Company em Londres e a guilda dos vendedores de livros em Paris, que sufocaram o livre comr-cio de livros.

    O Google no uma guilda e no se props criar um monoplio. Ao con-trrio, ele perseguiu um objetivo louvvel: promover o acesso informao. Mas o carter do acordo coletivo torna o Google invulnervel competio. A maioria dos autores de livros e editoras que possuem copyright nos EuA est automaticamente coberta pelo acordo. Eles podem optar por sair, mas, faam o que fizerem, nenhuma nova iniciativa de digitalizao poder sair do cho sem conquistar seu consentimento um a um (uma impossibilidade prtica) ou sem se ver atolada em outra ao coletiva. Se for aprovado pelo tribunal um processo que poder levar at dois anos , o acordo dar ao Google o controle sobre a digitalizao de virtualmente todos os livros cobertos por copyright nos Estados Unidos.

    Esse desfecho no foi antecipado no comeo. Olhando para trs, para o curso da digitalizao a partir dos anos 1990, podemos ver que perdemos uma grande oportunidade. Uma ao do Congresso e da Biblioteca do Congresso ou uma grande aliana de bibliotecas de pesquisa apoiada por uma coalizo de fundaes poderia ter feito o trabalho com um custo vivel e planejado, de modo a colocar o interesse pblico em primeiro plano. Ao distribuir o custo de vrias maneiras um aluguel baseado na quantidade de uso de um banco de dados ou uma linha oramentria no National Endowment for the Humani-ties [Dotao Nacional para as Humanidades], ou da Biblioteca do Congresso , poderamos ter proporcionado a autores e editoras uma legtima receita, enquanto manteramos um acervo com acesso livre, ou no qual o acesso fosse baseado em tarifas razoveis. Poderamos ter criado uma Biblioteca Digi-tal Nacional o equivalente no sculo 21 Biblioteca de Alexandria. tarde demais, agora. No s no conseguimos perceber essa oportunidade, mas, pior ainda, estamos permitindo que uma questo de poltica pblica o controle do acesso informao seja determinada por uma ao judicial privada.

    Enquanto as autoridades pblicas dormiam, o Google tomava a inicia-tiva. Ele no procurou resolver seus assuntos nos tribunais. Prosseguiu com seus negcios, escaneando livros em bibliotecas, e os escaneava de maneira to eficaz que despertou o apetite de outros por uma parte dos lucros poten-ciais. Ningum deve questionar a pretenso de autores e editoras receita com direitos que devidamente lhes pertence; ningum tampouco presume um julgamento rpido para as partes litigantes da ao. O juiz da corte dis-trital se pronunciar sobre a validade do acordo, mas isso diz respeito prin-cipalmente diviso de lucros, e no promoo do interesse pblico.

    5. Bibliotecas criadas com doaes do empresrio Andrew Carnegie (1835-1919). Entre 1883 e 1929, foram criadas 1.689 delas s nos EuA. [n. do. E.]

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    Como consequncia inesperada, o Google desfrutar do que s pode ser chamado de monoplio um monoplio de novo tipo, no de ferrovias ou ao, mas de acesso informao. O Google no tem competidores srios. A Microsoft abandonou seu grande programa de digitalizar livros h vrios meses, e outras empresas como a Open Knowledge Commons (antiga Open Content Alliance) e o Internet Archives so minsculos e ineficazes em comparao ao Google. S o Google tem a riqueza para digitalizar em escala. E, tendo acertado com os autores e editoras, ele poder explorar seu poder financeiro do interior de uma barreira legal protetora; isso porque a ao coletiva cobre toda a classe de autores e editoras. Nenhum empres-rio novo conseguir digitalizar livros dentro do territrio cercado, mesmo que tenha recursos para isso, porque teria que travar todas as batalhas de copyright novamente. Se o acordo for sustentado pelo tribunal, somente o Google estar protegido de obrigaes de copyright.

    O histrico do Google sugere que ele no abusar de seu poder fiscal-legal, duplamente protegido. Mas o que acontecer se seus atuais dirigentes venderem a companhia ou se aposentarem? O pblico descobrir a resposta nos preos que o Google cobrar no futuro, especialmente o preo de licen-as de subscries institucionais. O acordo deixa o Google livre para nego-ciar acordos com cada um de seus clientes, embora ele anuncie dois princ-pios diretores: (1) A realizao da receita a taxas de mercado para cada livro ou licena em favor dos detentores de copyright e (2) a realizao de amplo acesso aos livros pelo pblico, incluindo instituies de ensino superior.

    O que acontecer se o Google privilegiar a lucratividade ao livre acesso? Nada, se eu li os termos do acordo corretamente. Somente o representante legal, agindo pelos detentores de copyright, tem o poder de forar uma mudana nos preos de subscrio cobrados pelo Google, e no h nenhuma razo para se esperar que ele se oponha, caso os preos fiquem muito eleva-dos. O Google pode optar por ser generoso nos preos, mas poderia tambm empregar uma estratgia comparvel que se mostrou to eficaz nas publi-caes acadmicas especializadas: primeiro, atrair assinantes com preos iniciais baixos, e depois, quando eles estiverem fisgados, aumentar os valo-res at o ponto em que o comrcio suportar.

    Os defensores do livre mercado podem argumentar que o mercado se corrigir. Se o Google cobrar demais, os clientes cancelaro suas subscries, e o preo cair. Mas no existe uma relao direta entre oferta e demanda no mecanismo para as licenas institucionais vislumbradas pelo acordo. Estudantes, professores e clientes de bibliotecas pblicas no pagaro pelas subscries. O pagamento vir das bibliotecas; e se as bibliotecas no con-seguirem arranjar dinheiro suficiente para a renovao de subscries, elas podero provocar protestos ferozes de leitores que se acostumaram com o

    Filho de um jornalista do The New York Times morto na Segunda Guerra, RobeRt DaRnton especia-lizou-se no sculo 18 francs. professor da Universidade de Harvard e, desde julho de 2007, dire-tor de sua biblioteca, considerada a quinta maior do mundo, com 15 milhes de volumes. Vrios de seus livros foram publicados no Brasil, incluindo Boemia literria e revoluo (1987) e Edio e sedio (1992), ambos pela Companhia das Letras. Ele est completando 70 anos agora em 2009. TRADuo DE Celso PaCiorniCk. Este texto foi publicado pela The New York Review of Books, 02.12.09.

    servio do Google. Em face dos protestos, as bibliotecas provavelmente cor-taro outros servios, incluindo a aquisio de livros, como fizeram quando as editoras elevaram o preo das publicaes especializadas.

    Ningum pode prever o que acontecer. Podemos somente ler os ter-mos do acordo e imaginar o futuro. Se o Google tornar acessvel, a um preo razovel, os acervos combinados de todas as grandes bibliotecas norte-ame-ricanas, quem no aplaudir? No preferiramos um mundo em que esse imenso corpus de livros digitalizados estivesse acessvel, mesmo por preo alto, a outro contexto em que ele no existisse?

    Talvez, mas o acordo cria uma mudana fundamental no mundo digi-tal ao consolidar o poder nas mos de uma empresa. Tirante a Wikipedia, o Google j controla os meios de acesso informao online para a maioria dos norte-americanos, quer queiram procurar pessoas, bens, lugares ou quase tudo. Alm do Big Google original, temos Google Earth, Google Maps, Google Images, Google Labs, Google Finance, Google Arts, Google Food, Google Sports, Google Health, Google Checkout, Google Alerts, e muitas outras empresas Google a caminho. Agora, o Google Book Search promete criar a maior biblioteca e o maior negcio de livros que jamais existiu.

    Quer tenhamos compreendido o acordo corretamente ou no, seus termos esto amarrados de tal forma que no podem ser desmembrados. Neste ponto, nem Google, nem os autores, nem as editoras, nem o tribunal distrital provavelmente modificar substancialmente o acordo. Mas esse tambm um ponto crtico no desenvolvimento do que chamamos de socie-dade da informao. Se tivermos o equilbrio errado neste momento, os interesses privados podero sobrepujar o bem pblico no futuro previsvel, e o sonho do Iluminismo poder ser to fugidio quanto sempre foi.

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    Quando jogava, gostava mais de dar um belo e eficiente passe, que resultasse em gol, que envolver o adversrio com um ldico drible ou mesmo fazer um gol.

    Alm de ser fundamental para se chegar ao gol, o passe correto, por manter a posse de bola, tambm importante para a defesa, pois evita o ataque do adversrio.

    O passe, cada vez mais, o fator mais determinante no estilo do futebol atual e moderno. Progressivamente, aumentou o nmero de passes e diminuiu o de dribles. Com isso, o futebol se tornou mais tcnico, mais previsvel e menos fantasioso.

    Para se manter a posse de bola, diminuiu a quantidade de passes mais difceis, mais longos, para frente, de curva, e aumentou a de passes para o lado, curtos e de chapa (com a parte medial e interna do p).

    Os passes podem ser tambm rasteiros e pelo alto, previs-veis e surpreendentes. H ainda os passes de cabea, de peito, de costas, com as ndegas, de calcanhar e com outras partes do corpo. Ronaldinho Gacho faz isso com frequncia.

    O passe de curva, com a parte superior e interna do p ou com os dedos laterais (trs dedos, de rosca, trivela), um timo recurso tcnico para fazer a bola contornar o corpo do adversrio e chegar ao companheiro que est atrs do marca-dor. um passe bonito e inventivo. A linha reta no sonha (Oscar Niemeyer). Os grandes jogadores de meio-campo sem-pre fizeram isso muito bem.

    ppasse, por tosto

    ALFABETO serrote

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    Didi foi o grande mestre do passe de curva, com os dedos laterais (trivela). Para executar o passe, Didi contornava o corpo e virava o p. Mesmo seus passes mais simples eram de grande beleza e eficincia. Da mesma forma, ele batia as faltas. A bola subia e, de repente, caa dentro do gol, como uma folha seca. Da, o nome de Folha Seca.

    Gerson foi o mestre do passe preciso, tec-nicamente correto. A bola viajava pelo alto uns 30 a 40 metros e chegava aos ps ou ao peito do companheiro, na posio correta para ele dominar e chutar. Gerson raramente passava a bola de curva. Batia na bola com a parte da frente e o dorso do p. Os seus pas-ses longos e pelo alto para gols de Pel e Jair-zinho, na Copa de 1970, so inesquecveis.

    Garrincha no foi somente o maior dribla-dor e o mais ldico jogador brasileiro de todos os tempos. Garrincha era tambm timo passador. Ele driblava e, em uma frao de segundos, olhava para o compa-nheiro entre os zagueiros e colocava a bola nos ps ou no peito do atacante, para fazer o gol. Garrincha no cruzava. Ele passava a bola.

    Ronaldinho Gacho o mestre atual do passe surpreendente. Em uma frao de segundos, antes de a bola chegar a seus ps, ele mapeia os movimentos dos companheiros e adversrios, calcula a velocidade da bola e de todos os que esto sua volta, e coloca a bola com preciso entre os zagueiros, em mins-culos espaos, para o companheiro finalizar.

    Essa capacidade de alguns atletas de ver, saber e calcular tudo o que est a sua volta, como se fossem guiados por um megacom-putador, chamada pelos especialistas de inteligncia cinestsica.

    Os psicanalistas falam que um saber inconsciente, intuitivo, que antecede ao racio-cnio lgico. Ele sabe, mas no sabe que sabe. Ele faz e depois pensa no que fez.

    Outros acham que uma deciso medu-lar, reflexa, que no passa pela conscincia e pelo crebro, como acontece com os animais.

    Alguns atletas, como era ntido em Pel, tm um campo visual muito maior que outros, em consequncia de privilegiada ana-tomia do globo ocular. Pel tem os olhos grandes e bem abertos. Parecia enxergar at o que estava em suas costas. Outros atletas,

    Marcelinho Carioca um raro jogador que chuta e passa bem com a parte superior e interna do p e com os dedos laterais. A bola vai forte, de curva, e muda vrias vezes de direo.

    Rivellino, alm de ter um passe preciso e surpreendente, gostava de olhar para um lado e tocar para o outro. Ronaldinho faz isso tambm com frequncia. Esse passe deixa o adversrio sem ao e s vezes pega at o companheiro desprevenido.

    Dependendo da posio e da funo do jogador, o passe necessita ser diferente. Havia no passado grandes centro-mdios, cls-sicos, como Danilo Alvim, Dino Sani, Zito, Z Carlos do Cruzeiro, que recebiam a bola dos zagueiros e dos laterais e, com um passe rpido, preciso e muitas vezes longo, colocavam a bola do outro lado, nos ps do companheiro. Esses centro-mdios foram substitudos pelos volantes, que quase s marcam. Isso tem mudado. Comeam a apa-recer grandes talentos nessa posio, com passes excepcionais, longos e curtos. Hoje, o melhor de todos Pirlo, do Milan e da seleo italiana.

    que tm olhos mais profundos e envolvidos por maior estrutura ssea, tm uma viso perifrica muito menor. Enxergam quase somente o que est a sua frente.

    Os oftalmologistas falam que o campo visual pode ser ampliado em qualquer pes-soa com exerccios especficos. No futuro, os oftalmologistas faro parte tambm das comisses tcnicas.

    Os jogadores que do muitos passes curtos e para os lados so os que erram menos. Por outro lado, so os que do menos passes decisi-vos. O ideal para uma equipe ter os dois tipos de passe, o mais fcil e mais curto, para manter a posse de bola, e o mais difcil e mais longo, para surpreender o adversrio e tentar colocar o companheiro em condies de fazer o gol.

    O grande passe no somente o que coloca a bola com preciso, no lugar certo e esperado. Mais eficiente ainda tentar sur-preender e pr a bola onde menos se espera.

    Assim como o gol confirma a eficincia de um time, e o drible simboliza a indivi-dualidade e a improvisao, o passe repre-senta o futebol coletivo, a solidariedade, a organizao e a unio de uma equipe.

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    Certa vez, um alfaiate das redondezas em que Saul Steinberg trabalhava precisou fechar sua loja no meio da semana. Na porta da oficina, em vez do protocolar Fechado por motivo de sade, afixou um cartaz em que se lia: Estou doente. Adam Gopnik, amigo do desenhista e crtico da revista New Yorker publicao em que Steinberg tambm trabalhou, por quase 60 anos, 87 capas e mais de 1.200 desenhos , conta que a frase fez seu colega sorrir por vrios dias. E com razo: havia nela a sem-cerimnia que caracterizou seus desenhos, sempre espicaando com fina ironia as conven-es que podem tornar a vida uma montona sucesso de comportamentos previsveis.

    Mas afinal qual a diferena entre fechado por motivo de sade e estou doente? Convenhamos, quem diz estou doente parece estar em piores condies do que aquele que ps a adequao s boas normas de conduta acima de tudo, includa a a prpria sade. E a Saul Steinberg interes-sava sobretudo pr em questo o papel dessas rotinas de costumes a carimbos, do corte de cabelo forma de conce-ber o mundo na vida que levamos.

    Sair da linha: uma introduo a Saul Steinbergrodrigo naves

    exclusivo Publicamos pela primeira vez alguns dos

    desenhos que Saul Steinberg fez em uma agenda, ao

    longo do ano de 1954; seria possvel reconstruir toda

    a formidvel tradio da arte moderna por meio de

    seus cartuns

    Saul Steinberg fotografado, por volta de 1949, pelo amigo austraco Bernard Rudofsky, que era arquiteto, curador, designer de objetos e roupas, e viveu no Brasil entre o final da dcada de 1930 e o incio da de 40 Bernard Rudofsky

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    O violinista que se entrega com paixo a seu instrumento (veja a capa de serrote) encarna todos os msicos que fazem de seu ofcio um ritual de enlevo e sentimentalidade. No entanto, a preciso do trao de Steinberg que revela de maneira notvel o tradicionalismo de tantas execues musi-cais. Violino e violinista se compem basicamente de uma nica linha. E essa continuidade entre msico e instrumento transpe para o mundo visvel a aspirao a uma transio plena entre subjetividade e arte, ambio res-ponsvel por muitos arroubos romnticos e sempre no limite do kitsch. Mas a natureza da linha contnua de Steinberg sinuosa aqui, angulosa acol introduz com preciso rudos num desenho musical que ambicionaria a pura plasticidade, e assim furta-o a sua ambio mxima. E no entanto difi-cilmente recusaramos alguma simpatia a esse ser to convencionalmente compenetrado, pois tambm da arte de Steinberg sempre partilhar algo com seus temas: no h vida sem rotinas, por isso rimos.

    Dois aspectos da biografia de Steinberg podem ter contribudo para sua capacidade de identificar os ritos sociais que tornam a existncia menos ameaadora e imprevisvel: o judasmo e os Estados Unidos, ou seja, a falta de lugar e o lugar por excelncia (a outra terra prometida). O desenhista nas-ceu em 1914 em uma famlia judaica romena e com 19 anos mudou-se para Milo, onde se formou em arquitetura e publicou seus primeiros desenhos na imprensa. Em 1941, as presses crescentes do fascismo italiano levam-no a abandonar a Europa via Portugal, com a inteno de conseguir residncia nos eua, o que s obtm aps uma estada forada em Santo Domingo.

    E ento, nos Estados Unidos, esse judeu franzino se ps a cutucar com humor e simpatia aquilo que os americanos produziam de mais slido: clichs, imagens idealizadas, tipos populares, comportamentos e con-venes, que podiam ir de Papai Noel a Tio Sam, dos Pais Fundadores aos anncios baratos, do dlar s estrelas do cinema. Um de seus trabalhos mais conhecidos e com toda a razo traa um mapa-mndi a partir de Manhattan, em que cosmopolitismo e provincianismo trocam de posio a todo instante, como se o imaginrio de toda uma populao encontrasse ali sua sntese perfeita. Em primeiro plano, a Nona Avenida funda a rea-lidade de uma metrpole que se desdobra na Dcima Avenida, comea a

    dispersar-se no rio Hudson, em vagas localidades americanas (Nebraska, Las Vegas), para logo desembocar na China, Japo e Sibria, regies apenas ligeiramente delineadas, como se na mente de um nova-iorquino mdio tivessem a definio de uma miragem.

    Essas circunstncias de sua vida, porm, no levariam a nada se Stein-berg no encontrasse uma forma de expresso condizente com seu olhar dissonante. Ele afirmava que toda a histria da arte me influenciou: pin-turas egpcias, desenhos de banheiros pblicos, arte primitiva e de loucos, Seurat, desenhos infantis, Paul Klee. Nada a objetar. Mas faltaria acres-centar que a atrao por todas essas manifestaes no existiria se a arte moderna no tivesse mostrado um enorme interesse por aqueles que fugiam aos convencionalismos acadmicos. E de fato Steinberg no foi apenas um dos grandes artistas modernos. De certo modo, seria possvel reconstruir toda essa formidvel tradio a partir de seus cartuns: a eco-nomia formal de seu conterrneo Brancusi, a liberdade das linhas de Mir e Klee (talvez o artista que mais lhe abriu caminhos), as estranhas justa-posies dos surrealistas, as colagens cubistas (o uso preciso de carimbos e tantos outros signos grficos), o rigor formal dos construtivistas mais a ironia dos dadastas.

    Clichs, convenes, rituais e lugares-comuns alcanam sua eficcia mxima apenas quando proporcionam respostas automticas. Ou seja, s existem de fato quando no se mostram. Se pararmos para refletir diante de um bom dia lanado ao acaso por um conhecido qualquer, a engrenagem do mundo emitir um rangido. E assim a forte reflexividade moderna sem-pre s voltas com a verdade de linhas, cores, planos e manchas, que tinham deixado de ser um instrumento para a reproduo do mundo e valiam por si mesmas caa como uma luva para a consecuo do plano de Steinberg, pois constitua o oposto da positividade balofa das convenes. Minha linha, afirmou ele numa entrevista de 1965, quer lembrar constante-mente que feita de tinta. Eu reivindico a cumplicidade de meu leitor, que transformar essa linha em significao, utilizando nosso solo comum, feito de cultura, histria e poesia. O leitor, seguindo minha linha com os olhos, torna-se um artista.

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    aparncias que a mulher ousou violar se articula a partir de carimbos, da figura de George Washington (cuja efgie ilustra as notas de us$ 1) e da guia americana, s vrias padronagens decorativas. Como as burocracias, das quais os carimbos e Steinberg tinha uma formidvel coleo deles so o smbolo, a moral tambm pode no passar de uma mascarada, jogo que orientou a ateno de outro moderno, James Ensor. Mas sua perspic-cia no para a. Entre a fala do ordeiro senhor (frankly) e o ambiente (as faces de George Washington) se estabelece um termo comum que asso-cia a honorabilidade do cavalheiro cdula de us$ 1, Steinberg aproxima valores morais, valores monetrios e subservincia. Assim, no espanta que a extremidade em que sua indignao alcana o ponto mximo a mo direita com o indicador a espetar a face da senhora tambm mude de natureza e se converta em carimbo, a mais perfeita prtese desse estra-nho membro do corpo humano, a hipocrisia.

    O crtico norte-americano Harold Rosenberg autor de alguns dos melho-res ensaios sobre sua obra afirma que Steinberg soube incorporar a seus desenhos procedimentos que a arte pop tornaria correntes apenas a partir dos anos 1960, de cdulas de dinheiro a rtulos de mercadorias. O desenho comentado acima mostra que Rosenberg tem razo no que diz. Os carimbos presentes nele no tm a estrita funo formal que jornais, selos ou rtulos possuam nas colagens cubistas. So tambm contedos. No entanto, convm no esquecer que essa visualidade banal passava, nas mos de Steinberg, por um banho cido que decididamente no interessava a Andy Warhol, para quem a indiferena diante do mundo elevou-se categoria de valor supremo.

    Steinberg afirmou certa vez que quando admiro uma paisagem, logo procuro pela assinatura no canto inferior direito. Essa viso irnica de si mesmo ajuda a entender melhor uma modstia e uma argcia que iam alm da escolha de jornais e revistas como veculos para seus desenhos. Por no estar livre das concepes cristalizadas que criticava em seus trabalhos, o artista tambm abdicava da tentativa de alcanar uma espcie de estrato social primeiro, um solo de absoluta espontaneidade e totalmente alheio s normas e convenes, do qual, evidentemente, ele seria um ldimo repre-sentante, como Jean-Jacques Rousseau certa feita chegou a imaginar.

    Steinberg sempre evitou tornar-se um estilista. Ao contrrio, lanou mo de todos os estilos imaginveis, porque sabia que tambm eles, estilos, poderiam se tornar mais um lugar-comum. No entanto, decididamente foi a linha que marcou seus trabalhos. Uma linha que, por ser feita de tinta e por no ser a reproduo servil dos traos de outra coisa, trazia toda a fra-gilidade e leveza dos seres que s tm a si mesmos como justificativa. E a simplicidade moderna do trao de Steinberg tinha tambm a capacidade de pr em evidncia o esquema de coisas e situaes, como uma circunfern-cia com dois pontos e uma linha curva consegue remeter ao rosto humano sem imit-lo fielmente. Assim, ao mesmo tempo em que, por esse esquema-tismo, guardava semelhana com hbitos e convenes, afastava-se deles pela recusa verossimilhana. Seria ento com esse instrumento delicado que o artista estaria pronto a enfrentar as fortalezas deste mundo.

    A deciso de fazer da imprensa seu veculo por excelncia tornou sua arte ainda mais aguda. Afinal teria como pblico as mesmas pessoas que punham em circulao os esteretipos que ironizava, num meio que os produzia aos milhares e com a modstia que a delicadeza de seu trao pedia. Os dese-nhos que seguem todos inditos foram realizados numa agenda de 1954. Podem ter a desvantagem de no fazer parte de um projeto grfico maior, em relao ao qual Steinberg quase sempre pensava seus trabalhos. No entanto, alm de serem todos excelentes, tm uma qualidade que ajuda a entender melhor a sua arte: sua simplicidade, sem as relaes intrincadas de muitos de seus trabalhos, faz ver nitidamente como o desenhista procedia.

    O senhor venervel que submete a esposa frase Frankly we are disappointed [Francamente, estamos desapontados] incorpora todos os traos dos dramalhes moralistas. Se nos limitssemos s linhas que constroem homem e mulher, j veramos com clareza como o trao de Steinberg ele mesmo significativo. Enquanto o vetusto senhor se delineia com traos firmes e decididos, sua esposa mal se firma em seu contorno molenga. A admoestao moralista, porm, de imediato remete probidade da esposa, s aparncias que, supostamente, no soube manter.

    E a se revela ao mximo o talento do desenhista, pois praticamente todo o ambiente em que o casal se encontra ou seja, o mundo das

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    A cantora lrica que teve o corpo cortado em dois, cada metade deslocada para um lado, fez por merecer. Afinal, ao conceber-se como um duto de ar e delegar apenas aos pulmes a fora de seu canto a impostao tpica do gnero , s restou ao desenhista parti-la ao meio e, assim, interromper o fluxo de algum que se entendia como um tubo. Mas a leveza das linhas com que Steinberg a constri no conduz apenas ao riso, ao contribuir para esvaziar o corpo slido, tpico dos grandes cantores lricos. Como Steinberg no se jul-gava melhor que os tipos que satirizava, vemos simpatia e compaixo acom-panharem permanentemente seus julgamentos. E assim, a cantora, feita com linhas to frgeis, parece pronta a redimir-se e rearticular-se, j que o artista deu a seu corpo os prprios instrumentos com que poderia redesenhar-se.

    A cena de lazer aqutico encimada pela palavra Liberty tambm mostra bem como ele olhava com simpatia os costumes que insistia em ironizar. O bucolismo da situao est longe de ocultar seus possveis vnculos com o poderio americano, tanto blico quanto econmico. E por isso o recurso ao reflexo dos smbolos do poder na superfcie da gua adquire tanto sen-tido. Mas tambm o reflexo dos barcos que os torna ainda mais lricos, pois faz com que a leveza dessas atividades que nos livram das duras rotinas se transforme numa quase miragem, com tudo que tm de transcendncia e fantasia. Mesmo a famlia real cujos rostos se resumem a carimbos to goyesca que parece A famlia de Carlos IV, pintada pelo espanhol em 1800 , termina, de to mordaz, por despertar nossa compaixo.

    E o gato que monta um cavalo resume com singeleza as ideias de Stein-berg, mesmo porque o felino se assemelha muito s feies do desenhista que o traou. Em lugar de orgulhar-se por controlar um animal mais possante, o gato revela admirao e espanto. Invertidas as posies de fora, em lugar de dominao surge simplesmente perplexidade, a condio de uma compre-enso mais aguda do mundo. No surpreende ento que o desenhista vol-tasse tanto a esse felino em seus trabalhos. Gatos so bichos domsticos que, diferentemente dos ces, no passam a vida em busca do reconhecimento dos humanos. E essa autonomia a renncia a seguir o que esperam de ns havia de instigar Steinberg. Apenas quando adormecidos (ver o desenho na contracapa de serrote) se deixam conformar pacificamente.

    Mas Steinberg tambm amava os ces e tudo que eles representam de leal-dade. No catlogo de sua grande retrospectiva no Whitney Museum of Ame-rican Art, em 1978, no por acaso a ltima prancha traz um cachorro apoiado sobre as costas de uma tartaruga, olhand