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UM ANO SUBVERSANDO A LITERATURA Vol. 3 | N.º 1 |AGOSTO/ 2015 ISSN 2359 5817 Ilustrações | A. MIMURA SUBVERSA FABÍOLA WEYKAMP LEONARDO BARBOSA MARCELO DE ARAÚJO NORBERTO DO VALE CARDOSO PEDRO BELO CLARA Entrevistas: GABRIEL PARDAL A. MIMURA

Revista subversa vol 3 n 1 ago2015

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Um ano de Subversa. Abertura do Volume 3. Literatura da pesada.

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Page 1: Revista subversa vol 3 n 1 ago2015

UM ANO SUBVERSANDO A LITERATURA Vol. 3 | N.º 1 |AGOSTO/ 2015 ISSN 2359 5817

VOLUME 3 | NÚMERO 1

Ilustrações | A. MIMURA

SUBVERSA

FABÍOLA WEYKAMP

LEONARDO BARBOSA

MARCELO DE ARAÚJO

NORBERTO DO VALE CARDOSO

PEDRO BELO CLARA

Entrevistas:

GABRIEL PARDAL

A. MIMURA

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Subversa | literatura luso-brasileira |

V. 3 | n.º 01

© originalmente publicado em 01 de agosto de 2015 sob o título de

Subversa ©

Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Ilustrações

A. Mimura www.facebook.com/amimura.artist

www.e-artadvisory.com/artist/AMimura

[email protected]

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados

como autores desta obra.

Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos

textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem

com a realidad

WWW.FACEBOOK.COM/CANALSUBVERSA

@CANALSUBVERSA

[email protected]

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FABÍOLA WEYKAMP E SEU CABO DE AÇO GRAMATICAL | 6

SISO | FABÍOLA WEYKAMP | 7

TORTURA LÍRICA NUMA MADRUGADA DE ABRIL REPLETA DE

MOSQUITO GRILO E AMOR| FABÍOLA WEYKAMP | 8

INDEFERIDO O ATO DE AMAR | FABÍOLA WEYKAMP | 11

CONCEITO X | LEONARDO BARBOSA | 14

DOR 0 | LEONARDO BARBOSA |16

O SILÊNCIO DEPOIS DAS AVES | PEDRO BELO CLARA | 18

O ÚLTIMO FUNERAL DE LÊNIN | MARCELO DE ARAÚJO | 20

O MAL DOS CACOS | NORBERTO DO VALE CARDODO | 36

Entrevista: GABRIEL PARDAL e o ORNITORRINCO | 43

Entrevista: A. MIMURA | 50

SUBVERSA VOLUME 3 | NÚMERO 01 | AGOSTO DE 2015

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EDITORIAL

Volume três, número um. A Subversa completa o seu primeiro ano. Os

leitores habituados com a revista sabem que, sempre que possível, insistimos

em repetir as conquistas do projeto que, até aqui, passou tranquilamente de

um blog comunicativo para uma revista que aumenta a cada dia o número

de leitores e autores interessados em publicar seus trabalhos.

Por outro lado, não costumamos apegar-nos no discurso da dificuldade

de trabalhar com a literatura, no contexto de um país que não lê e noutro que

passa por uma crise no sistema educacional. Dificuldades e desafios na

execução, todos os projetos enfrentam, independente da área. Um trabalho

bem feito é sempre árduo, de um lado, mas facílissimo em outro, quando

representa um compromisso natural com as paixões.

Acreditamos que há uma linha tênue que separa a atitude crítica da

atitude queixosa, na qual não estamos interessadas, uma vez que a queixa

ocupa espaço, pesa o ambiente e reafirma justamente aquilo contra o que se

opõe, assumindo-o como problema seu. O que vemos, na verdade, é um

crescimento gradual e constante na aceitação da revista, mesmo

caminhando contra todos os prognósticos e avisos de que “ninguém vive de

literatura”, que “revistas literárias não despertam interesse”. Abrimos caminhos

e vemos que, assim como nos inspiramos em diversos outros projetos, hoje a

Subversa também inspira o surgimento de revistas literárias similares, questão

que reconhece uma responsabilidade artística importante. Estamos

concluindo, assim, que a literatura clama por atitudes inovadoras e que inovar

não é, necessariamente, perder em qualidade.

A versão impressa do Volume 1 segue circulando por aí. Dois

lançamentos já foram feitos, um em Porto Alegre e outro no Rio de Janeiro e,

em Agosto, vamos continuar a jornada em São Paulo (dia 15) e na cidade

portuguesa de Vila Nova de Cerveira (dia 22).

Neste número, nos subvertemos. Saímos da linha. Publicamos textos

longos, fizemos crítica, entrevistas e continuamos uma conversa que iniciou no

bairro de Botafogo. E isso ainda é pouco, diante das infinitas possibilidades que

a literatura oferece. Desejamos a todos uma ótima leitura.

As editoras.

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SUBVERSA # 1 – Versão Impressa | Volume 1 (2014)

Adquira e participe do crescimento da revista.

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Sobre o livro de poemas “Resenhas da Solidão”

(por Revista Subversa)

Nasceu em Brasília, mas vive em Pelotas há vinte anos. É formada

em Letras, mas tem fascínio por outras áreas que convidam a um

desafio qualquer. É iniciante na escrita, mas chegou bem posicionada,

conquistando reconhecimento importante na área. Publicou um livro

pequenino, que mostra a grandiosidade da poeta destemida,

despreocupada com qualquer tipo de formalidade ou personagem a

assumir.

Escreve palavras dotadas de fragilidade, que ganham força

quando se unem na forma dos versos que inventou e deu o nome de

Resenhas da Solidão. Várias solidões insignificantes, quase inexistentes,

se forem vistas sozinhas. Um belo dia, atam-se umas às outras para

ganhar um pouco mais de força. Unidas em um cabo de aço

gramatical, dizem com elegância a quê vieram. Dizem que não importa

o quão difícil será enxergá-las. Em versos, elas existem e não podem

mais ser ignoradas.

Assim como a atitude da autora, os versos são insistentes, otimistas

e oferece ao leitor uma experiência surpreendente. Como se todos nós

simplesmente já a conhecêssemos e Fabíola só estivesse assumindo um

compromisso antigo e inegável com a poesia.

WEYKAMP, FABÍOLA. Resenhas da Solidão. Editora Literacidade: Pelotas,

2015.

FABÍOLA WEYKAMP e seu cabo de aço

gramatical.

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Pelotas, RS

FABÍOLA WEYKAMP

Pelotas, RS

risco

poema

conciso

rasga

gengiva

o siso

da minha palavra insuportável

na tua boca sem memória

essa verdade que nunca me cala

SISO

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FABÍOLA WEYKAMP| Pelotas, RS.

tortura lírica numa madrugada de abril

repleta de mosquito grilo e amor

repleta de mosquito grilo e amor

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avesso isso exo expresso

aviso aquilo nego enxergo

vaso complico apego disperso

asco asco asco asco asco

vasto mim submerso

uma sacola de sentimentos soltos

recortados de revistas jornais

tudo o que meu olhar penetrar

reviro do avesso

cada aperto

eu me converto

num poema inanimado

enterrado corpo inteiro

um salto um berro me ajoelho

o eco absoluto num deserto

eu grão de sal

um grão de areia de sal

um grão de sal de areia

único na imensidão

esquecida de ícaro

imerso no aterro

desnivelado da minha

tortura lírica

convoco prismas budas e caducos xucros

iansãs maçãs e xamãs

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tudo que reza feito imãs

adoço corações amargos

com pitadas de sarcasmos

comecei comigo

acabo contigo

morro conosco

nasço enquanto

nosso tempo, poetinha:

é sempre

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FABÍOLA WEYKAMP | Pelotas, RS

indeferido o ato de amar

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indeferido menino indefinido

o manto de sangue

escorre pela palavra sacra do amor

aos olhos de jesus

não-despachado menino diferente (de nós)

deitado de bruços

sobre a grama vermelha

parece sorrir finalmente

em paz

indeferida súplica de amor

indeferido o direito humano

ao homem que tudo ama

inclusive a ti

FABÍOLA WEYKAMP, segundo o poeta gaúcho Marcelo Martins, “é poeta, faz

telepatia com cães (Otto confirma o fato) e é devota de Leminski. Em sonho seus

poemas são cantados por Gal Costa”. Publicou seu primeiro livro em 2015, Resenhas da

solidão – um livro de poesias e dor cotidiana, pela editora LiteraCidade, fruto da

conquista de um concurso literário nacional. Seu trabalho pode ser encontrado no blog

versodigital.blogspot.com.br

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LEONARDO BARBOSA | Brasília, DF.

desloques o sentido da sensação da palavra no ouvir do

momento de invasão do conceito em sua corporeidade na

boca e sentirás um vulcão em chamas dentro do espaço

simétrico da infinitação sujeita que este mesmo sentido pode

vir a ser até chegar ao

Nada

DOR 0

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LEONARDO BARBOSA | Brasília, DF.

CONCEITO X

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a lacuna imensa entre os pés e o chão

paira na travessia laboral

de seu próprio ritmo

para abrirmos o fogo concentrado

de seu interior

e segurá-lo com mãos irmãs

até sua desintegração incandescente

o momento em que o nome

em si

torna-se a coisa

e deixa neste espaço de tempo enigmático

o rastro de seu próprio desenvolvimento

LÉO BR é poeta e cineclubista. Reside em Brasília. Blog:

www.culturadigital.br/leonardobr/

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PEDRO BELO CLARA | Lisboa, Portugal

O SILÊNCIO DEPOIS DAS AVES

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Tarde de pérola. Num suave avanço, negras mãos

cobriam o rosto solar dos malmequeres. Que iminência de

noite? Leve, porém, o toque que transmutava cada ser e

coisa, subvertendo a cor mais íntima.

Nos estábulos, cavalos ainda luzentes de dia calavam o

ferver da ânsia. Pelos caminhos, em desarme, pareciam

imóveis sobre a eternidade subitamente despida os espectros

dos rumos não tomados. Cada flor ao vento aberta, mesmo

desejando o porvir, secretamente temia os encantos que lhes

dariam vida.

Como se a pele lembrasse o arrepio dos punhais, os

corpos, em aconchego diante do palpitar da ameaça,

amparavam a luz que sabiam adormecida. Naquele

ondulante silêncio anterior ao verter dos rios, no embalo

duma serenidade perplexa e sem nome, murmuravam

antiquíssimas preces à lua inclinada por sobre sua quase

nudez.

Então, chovia.

PEDRO BELO CLARA é autor das obras “A Jornada da Loucura” (2010),

“Nova Era” (2011), “Palavras de Luz” (2012) e “O velho sábio das

montanhas” (2013). Além de prelector de sessões literárias, é

actualmente colaborador e colunista de publicações literárias. Outros

trabalhos seus poderão ser encontrados no seu blogue pessoal,

“Recortes do Real” (crónicas diversas).

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MARCELO DE ARAÚJO | Rio de Janeiro, RJ.

O ÚLTIMO FUNERAL DE LÊNIN

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Alberto não estava atrasado, mas o tempo era curto. Seu relógio

marcava 4:03 quando o antigo elevador de um prédio comercial na

Rua do Ouvidor chegou ao quinto andar. A secretária lhe abriu a porta

de vidro antes mesmo que pudesse tocar a campainha. Ela apontou

para o sofá da sala de espera vazia e disse, já se apressando para

retornar ao telefone:

− Ele já vai atender o senhor.

Não ocorria a Alberto, àquela altura do dia, ler o jornal,

esparramado ao seu lado como um lençol recobrindo o tampo da

pequena mesa de vidro. Nem lhe interessava acompanhar dessa vez,

como ele às vezes fazia, a conversa que a secretária conduzia ao

telefone. Um amante do outro lado da linha, ou seu marido anuindo

placidamente às instruções da esposa, figuravam entre suas

especulações mais frequentes. Ele acreditava já conhecer melhor a

rotina das salas de espera dispersas pela cidade do que as paredes de

seu próprio apartamento. O que poderia ainda esperar da geografia

de locais como este? Apenas o cheiro aqui era diferente. Talvez fosse

lanolina espessa no ar.

O tempo transcorria numa outra cadência agora, com intervalos

marcados pela impressão dos cheiros que distinguia mais do que pela

sucessão de ruídos ou imagens ao redor. Não era a primeira vez que

Alberto vivia dias de hiperosmia assim. Muitos anos antes, bem longe

dali, flores lhe haviam impregnado de náusea o olfato. Por meses

procurava evitar, sem sucesso, a lembrança intermitente dos

crisântemos sem brilho no velório de seu pai. Não era o colorido difuso

das flores que o incomodava. Não se lembraria delas mesmo que

desejasse. O cheiro acre que exalavam, porém, lhe retornava amiúde.

Na sala de espera, os vapores da lanolina preenchiam cada

espaço vazio. Da posição que ocupava no sofá, ao lado da mesinha

oculta sob as notícias do dia, Alberto não via a porta por onde, de

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súbito, emergiu um homem de terno azul- marinho e sapatos pretos.

Seus passos foram logo seguidos por uma voz áspera que vinha do outro

lado da porta:

− Denise, marca para ele na semana que vem! Na quinta-feira às

três e meia de novo.

A secretária fez algumas notas a lápis na agenda e logo se

despediu do homem de terno azul-marinho com o mesmo tom de voz

que dedicava ao seu amante, ou talvez marido. Uma ficha pautada

com o nome de Alberto repousava sobre a mesa. A secretária se

levantou e, com menos entusiasmo do que o dispensado ao homem de

terno azul-marinho segundos antes, pediu que Alberto a seguisse até a

sala onde ele seria atendido.

Alberto decidira dar um fim àquela rotina de peregrinação a

consultórios, laboratórios, e purgatórios que produziam uma profusão de

resultados indecifráveis na mesma proporção de dívidas que, sabia,

jamais saldaria. Só não economizaria agora, não a essa altura dos

acontecimentos. Era ainda uma esperança, como se sua dignidade

dependesse inteiramente disso.

− Como vai, Alberto? − a voz parecia menos áspera agora.

Fazia menos de duas semanas, Alberto estivera naquela mesma

sala para que Zimmerman lhe examinasse novamente a região do

tórax. Talvez fossem também retirados alguns pontos na altura do ombro

direito, como tinham vagamente combinado na ocasião. Zimmerman

tinha setenta e quatro anos de idade, e mais de quarenta na profissão.

Alberto confiava nele mais do que na legião de médicos, enfermeiros e

radiologistas que se habituara a suportar nos últimos tempos.

Não conversaram muito. Zimmerman ajudou Alberto com o

paletó, como sempre fazia, e começou a inspecionar-lhe o abdômen e

a cintura meticulosamente. Ele percorreu toda a extensão das costas

de Alberto com as mãos, à procura de algum nódulo ou contorno

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irregular que lhe tivesse talvez escapado à visão. Deslizou então as

mãos com cuidado sobre os ombros. Não detectou nenhuma

ondulação dessa vez.

− É melhor não mexermos no ombro por enquanto − foi o primeiro

comentário de Zimmerman.

Passou então a examinar os braços novamente, de cima a baixo,

um de cada vez, e pediu que Alberto os mantivesse dobrados por

alguns segundos na altura do peito para que pudesse avaliar melhor os

cotovelos.

− Pode baixar agora − disse logo em seguida.

Não era uma anomalia grave, mas Alberto tinha um braço maior

que o outro. Zimmerman fora o primeiro a diagnosticar o problema, e a

correlacioná-lo à geometria assimétrica de seus ombros.

Quando parecia ter concluído, Zimmerman, talvez não

inteiramente convencido do check-up que acabara de realizar,

começava então a explorar novamente o tronco de Alberto, braço

esquerdo e braço direito, ombros, costas, cintura, quadril. Nada lhe

escapava e assim continuou por quase um quarto de hora em silêncio,

ocasionalmente entremeado de traços que riscava aqui e ali sobre o

dorso de Alberto.

Alberto sentia-se teso, nervoso. Receava ter de dar novamente

explicações sobre seu retorno fora de hora. Foi quando Zimmerman,

puxando Alberto um pouco para lado, pediu que ele relaxasse,

acrescentando polidamente:

− Fica na sua postura normal, Alberto. O que está havendo?

− Eu estava aqui um pouco distraído − Alberto se desculpou.

− Então, o que acha? − Zimmerman perguntou.

Alberto, de súbito, se viu três vezes refletido num amplo espelho

em forma de tríptico. Mal conseguia reconciliar as três imagens,

perplexas à sua frente, com o adulto que se tornara, com a pessoa que

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ainda acreditava ser. Eram três imagens de si. Duas, desesperadas,

pareciam querer se evadir pelos painéis oblíquos do tríptico. A imagem

do centro, porém, refletindo toda a extensão de seu corpo, lhe pareceu

mais leal, emoldurada pelo mogno das laterais do espelho oblongo.

Alberto permanecia estático. Lembrou-se por um segundo do esquife

de seu pai, e depois de uma fotografia de William Eggleston mostrando

o caixão aberto, quase teatral, de um homem negro. Nenhuma flor lhe

vinha dessa vez contaminar de enjoo as narinas. A lanolina se tornara

tão densa na atmosfera da sala de Zimmerman que Alberto se sentia

embriagado, como se lhe sobreviesse uma espécie de êxtase.

− O que acha? − Zimmerman, já um pouco impaciente,

perguntou mais uma vez.

Alberto reconheceu num instante que se tratava de uma

pergunta retórica. Zimmerman era o último de uma geração de

alfaiates que jamais se veria novamente. Apenas por ignorância,

àquela altura de sua carreira, alguém poderia seriamente lhe censurar

o caimento de um terno, o corte de um colete, ou as proporções

ascendentes na lapela de um jaquetão. O posicionamento dos botões

viria mais tarde, dispostos ao longo de coordenadas que Zimmerman

acabara de riscar com o giz sobre a fazenda de lã. Então restaria

apenas marcar a altura correta dos punhos assimétricos de Alberto. Os

botões nas extremidades das mangas seriam inteiramente funcionais e

residiriam numa trilha de caseados todos feitos à mão, diferentes

daqueles afixados à máquina, que se viam em ternos de loja apenas

para decoração do paletó.

− Está excelente, Seu Zimmerman − respondeu Alberto, ainda sob

o poder da epifania olfativa que o mantinha imóvel naquela posição.

Alberto não sabia o primeiro nome de Zimmerman, nem jamais lhe

ocorreu perguntar; sabia apenas que devia começar com V, porque VZ

eram as inicias invariavelmente estampadas sobre uma recôndita

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etiqueta costurada no interior do bolso interno de cada paletó, na

altura do peito à esquerda, seguidas do mês e ano da confecção.

Então, para todos os efeitos, quando Alberto pensava nas roupas de

Zimmerman, viam-lhe à mente sempre as mesmas iniciais, como

reencarnações da mesma pessoa: levar VZ-de-linho para as férias no

litoral; pegar VZ-risca-de-giz na lavanderia; vestir VZ-xadrez durante o

almoço no jóquei; não esquecer VZ olho-de-perdiz para a conferência

em Genebra; escovar VZ-de-flanela antes de subir a serra em agosto.

Sorridentes ou circunspectas, leves ou encorpadas, eram mais

aparições de VZ em seu armário do que concubinas no harém de

algum sultão. Elas o envolviam, como se lhe proporcionassem proteção;

elas o acolhiam, como lhe servissem de morada.

E como o projeto de uma casa que se concebe na planta, e

lentamente se edifica, a construção do novo terno de Alberto tivera

início quase dois meses antes, quando Zimmerman trouxe abaixo, à

bancada da oficina, o antigo molde em papel pardo que registrava a

arquitetura de suas roupas. Os moldes do alfaiate, alguns dobrados em

prateleiras, a maior parte pendurados em cachos pelo teto, lembravam

uma vasta coleção de pergaminhos. Era um para cada cliente, cada

cliente com sua topografia peculiar de braços desnivelados, ombros

desiguais, ou quadris desproporcionais. Alguns moldes pairavam no

ambiente como fantasmas sobre os quais se inscreviam as últimas

medidas de corpos há muito tempo decompostos; outros, como o de

Alberto, retornavam às mãos do alfaiate em ciclos mais ou menos

regulares. Mas como era sempre incerta esta fronteira entre vivos e

mortos, Zimmerman os mantinha todos ali em comunhão, à espera da

encomenda que um dia chegaria.

− Alberto, eu achei que você só ia voltar aqui no final do ano −

Zimmerman observou, talvez na expectativa de interromper por um

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minuto o silêncio entre os dois. − Você foi nomeado adido na Finlândia?

Embaixador em Moscou? − o alfaiate acrescentou em tom de ironia.

Alberto provava um terno preto, o paletó em forma de jaquetão,

com duas fileiras de botões e lapelas apontando para o céu. Ele estava

um pouco mais magro, e jamais lhe ocorrera antes encomendar um

terno preto, pesado e robusto como aquele. Sem saber ao certo o que

dizer, ou por onde começar, Alberto disparou o primeiro comentário

que lhe veio à cabeça:

− Seu Zimmerman, alguns homens abandonam a família; outros

caem em desgraça, acusados de traírem os amigos e o país. Mas eles

permanecem leais aos ternos que vestem. É a forma mais sublime de

lealdade porque é a única forma de se manterem leais a si mesmos.

Zimmerman riu, sem entender direito o comentário, ou que tipo de

resposta era aquela. Alberto, ele próprio desconcertado pelo que

acabara de dizer, tentou se explicar:

− O senhor sabe, Guy Burgess foi o maior traidor que a Inglaterra

já viu. Estudou nas melhores instituições; galgou os postos mais elevados,

mas era também um dos principais informantes da KGB em Londres.

Burgess repassava para os russos as instruções que recebia, todas

sigilosas, e despachava para missões suicidas espiões britânicos em

territórios sob domínio soviético. − Alberto tossiu um pouco. Intercalou

uma pausa, e sem saber ao certo aonde ia dar essa história, prosseguiu:

− Então na década de cinquenta, temendo ser descoberto,

Burgess fugiu para Moscou e lá passou seus últimos dias. Mas o exílio a

que se viu forçado; a desonra que se autoinfligiu; os privilégios que

sacrificou; o alcoolismo a que finalmente sucumbiria; nada disso o

atormentou tanto quanto a distância que o separava de seu alfaiate.

Sua missão mais complicada foi enviar em segredo, ao alfaiate em

Londres, encomendas para substituir o único terno que tinha levado na

fuga. O alfaiate, ele próprio indiferente ao passado de Burgess,

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recompensou sua lealdade. Poucos meses depois, o antigo espião já

podia ser visto pelas ruas de Moscou num terno da Savile Row. Ele mais

parecia um diplomata inglês, recrutado pelo dedo da rainha, do que

um espião desmascarado. De alguma forma, ele tinha de se manter leal

a si mesmo, e se reconciliar com a pessoa que era. Ao alfaiate em

Londres Burgess devia o que restava de sua dignidade no exílio.

− Mas isso era a década de cinquenta, Alberto. − Zimmerman

protestou. − Olha as fotos do Rio na época. O Cassino da Urca era um

mundo à parte. As pessoas sabiam se vestir, não era esse mar de

chinelo e camisetas pelas ruas da cidade. Outro dia mesmo entrou aqui

um sujeito dizendo que ia se casar, e que precisava de um blazer. Um

blazer! E nem gravata ele queria. Expliquei que isso não era roupa pra

casamento, que ninguém sela uma união assim. Ele insistia. Queria

porque queria minha conivência nesse crime. A moça podia até dizer

sim, mas a minha resposta era não. O rapaz saiu daqui tão enfezado

que quase me quebra a porta de vidro. A aliança não é o ouro que se

carrega no dedo, Alberto, mas a lembrança da roupa que se veste no

dia. Vai tentar explicar isso pra alguém.

Alberto, ainda sem entender se discordavam em alguma coisa,

se lembrou de outra aliança. Um episódio que pode não ter lhe custado

a carreira, mas que atrasou em pelo menos cinco anos a promoção

que esperava há quase três. Quando o Itamaraty foi informado pelo

embaixador em Washington, e se deram conta do imbróglio em que

Alberto se metera, já não havia fios que pudessem puxar para desfazer

aquela trama.

− Seu Zimmerman, em dois mil e dois, antes de estourar a guerra

no Iraque, Naji Sabri era ministro das relações exteriores no governo de

Sadam Hussein. Sabri pretendia abandonar o país e desertar de vez

para o lado ocidental, só não sabia como. O governo americano não

podia negociar diretamente com ele, e oferecer asilo em troca de

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informações, sem atiçar a desconfiança dos espiões do ditador. Não

tinham ideia de como cooptar o ministro e, quem sabe, evitar aquela

guerra, sem correr o risco de apenas precipitar um conflito que já

parecia inevitável. O senhor sabe então qual foi a solução que

encontraram para selar a aliança de Sabri com o ocidente? − Alberto

perguntou, sem esperar pela resposta de Zimmerman. − O serviço

secreto americano recorreu, primeiro, à mediação de um insuspeito

diplomata brasileiro. Em seguida, a um alfaiate.

− Um alfaiate? − perguntou Zimmerman incrédulo.

− Um alfaiate − repetiu Alberto, sem sugerir, mas também sem

negar, se fora sua a ideia. − Combinamos que Sabri discursaria nas

Nações Unidas vestindo um terno feito à mão; um terno que seria mais

tarde reconhecido pelos agentes do governo americano. Este seria o

sinal de que o ministro pretendia realmente debandar para o ocidente

e deixar o regime de Sadam. Numa tarde de dezenove de setembro

em Nova Iorque, a data eu não esqueço, um ministro de Estado

discursava para o mundo em sessão plenária da ONU, mas quem falava

era o terno. Um batalhão de intérpretes não saberia traduzir a

mensagem que apenas nós compreendíamos. Era Sabri dizendo sim no

altar da diplomacia. Sua lealdade tinha sido costurada com agulhas e

linhas de um alfaiate que nunca recebeu o bastante pelo serviço que

prestou. − Alberto concluiu, sem disfarçar o orgulho pela parcela que

lhe coube no esquema da Casa Branca.

Zimmerman já conhecia dos jornais uma parte da história, mas

escutá-la agora de Alberto era dar carne aos personagens das

manchetes. Quando o caso em Nova Iorque veio à tona, poucos meses

após o discurso de Sabri, Alberto se viu forçado a relatar detalhes de

sua participação no estratagema. O Senado exigiu, primeiro, a sua

cabeça, depois, a exoneração. A imprensa, porém, queria ambas, e só

não conseguiu porque coube ao Al-Qaeda decretar que qualquer

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cabeça serviria, contanto que fosse a de um brasileiro em conluio com

a ONU na cruzada contra o Islã. A morte de Sérgio Vieira de Mello, ele

próprio um antigo cliente de Zimmerman, pode não ter redimido Alberto

do inferno a que fora condenado, mas serviu para alterar sua posição

num tabuleiro de xadrez que nem a imprensa nem o Senado conseguia

compreender. O amigo morto, promovido agora a mártir, deu aos

jornalistas notícias frescas para vender, e com as eleições adentrando

os portais do Senado, o bispo na catedral da diplomacia foi se

tornando aos poucos um peão inoperante, paralisado na retaguarda

de outras peças mais valiosas de um jogo sem lances definidos.

Um fiapo de linha preta − Zimmerman percebeu − pendia da

manga esquerda no paletó de Alberto. Zimmerman o espanou, como

se fossem cerdas de uma escova o dorso dos dedos; aproveitou para

aplainar com as mão as ombreiras, e se convencer de uma vez de que

não havia nenhum corrugado escondido por ali. Jamais houve um terno

que lhe deixasse a oficina com riscos de giz, fios à mostra ou qualquer

falha de caráter. As manchas que surgiriam mais tarde, porém, não

eram culpa sua.

Pela primeira vez, depois de tantos anos, ocorreu a Zimmerman

colocar em xeque o orgulho de Alberto. Não que desconsiderasse a

satisfação de ver, nos relatos que ouvia, sua profissão elevada ao

patamar que merece. Disso nunca teve dúvida. Enxotaria dali quantos o

fizessem novamente trincar de raiva os dentes, ainda que a

impaciência pudesse lhe custar um cliente, ou uma porta estilhaçada

talvez. Nenhum alfaiate recebe o bastante pelos serviços que presta... −

repetia consigo as palavras de Alberto. E quem recebe a conta −

acrescentou − desembolsa às vezes com juros mais do que seria justo

pagar.

− Mas o plano serviu para alguma coisa, Alberto? A guerra

estourou de todo jeito em Bagdá. Eu devia ter usado uma entretela de

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ferro no paletó do Sérgio, ao invés de crina de cavalo como ele sempre

pedia. O caimento eu não sei, mas teria sido a minha parte também na

divisão de alfaiataria da ONU. Você leu na VEJA, Alberto? O Sérgio uma

vez liderou de terno e gravata um comboio para ajuda humanitária na

Guerra da Bósnia, bem antes da confusão no Iraque. Era sempre o

mesmo jaquetão que ele pedia.

Zimmerman vasculhava sem pressa uma gaveta com páginas de

revista e recortes de jornal. Alberto acompanhava com os olhos, uma a

uma, as folhas se acumulando sobre a mesa. Príncipe Charles numa

favela do Rio de Janeiro; Dom Pedro Gastão a cavalo em Petrópolis;

deputados e senadores em posição de combate; ministros do STF lado

a lado em procissão, atores. Os que não eram seus clientes − dizia −,

serviam de modelo. Sua estratégia era manter em segredo quem era

quem, e alimentar entre clientes conjecturas sobre o alcance de sua

reputação.

− Edição de vinte e três de janeiro de dois mil e oito. Os assessores

não entendiam por que tanta elegância em meio a morteiros nos

Bálcãs, mas o Sérgio insistia: "Se nos mostrarmos na melhor aparência,

vamos lembrar as pessoas aqui da dignidade que elas costumavam ter."

− Zimmerman leu o trecho sublinhado como quem recita algum

versículo. Um lápis esfolara sem dó uma longa cicatriz nas fibras do

papel. Zimmerman passou para Alberto o recorte garimpado na

desordem da gaveta, e retomou em seguida as honras ao fantasma de

Sérgio:

− E dignidade ele tinha. Se fossem necessárias três, quatro, cinco

provas ele vinha sem reclamar. Certa vez só não cancelou um voo

porque ninguém saiu daqui antes das dez, a passadeira de plantão me

reclamando no ouvido, mas é sempre dela o retoque no final. Ninguém

vai pra guerra ou foge para o exílio num terno mal passado. Mas vai

tentar explicar isso também.

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Alberto tentava explicar à esposa, a do primeiro casamento, mas

seus argumentos apenas davam estofo às suas próprias decisões. Só

Alberto se convencia da urgência da viagem. Partiu sozinho no exílio a

que se impôs e foi estudar filosofia em Paris. A família nunca o perdoou.

Seu olhar, um pouco alheio às exéquias do alfaiate, boiava sobre a foto

de Sérgio na matéria da revista. Foi nos seminários de filosofia em Paris

que se conheceram. A diplomacia lhes parecia então mais um

protocolo de hostilidades do que uma promessa de carreira. Mas por

pouco tempo. A cada reencontro, nos anos que se seguiram, faziam

revisões no exame das circunstâncias que os levaram, cada um por um

caminho, aos corredores da ONU, aos arcos do Itamaraty. Podiam

passar alguns anos sem se ver, sem uma única carta, enviada ou

recebida, nenhum telefonema sequer, mas, quando se encontravam,

bastava-lhes esticar o fio da última frase, deixada em suspenso no

saguão de algum hotel, ou numa esquina de Ipanema, para reaver o

emaranhado da conversa que nunca terminava. A distância entre os

dois − Alberto percebeu − parecia mais fina agora. Mas nenhum fiapo

de culpa o ligava à lembrança do amigo.

A página da revista ainda flutuava a menos de um palmo do

rosto, a outra mão tateando algum apoio na aresta da mesa, quando

Alberto se lembrou das mesmas insinuações no Senado, e do desenlace

de um jogo que só se definiria alguns meses depois:

− Sabri acabou não desertando, mas conseguiu fugir do Iraque,

se bem que sem a nossa ajuda. Com ele fora do jogo, e sabe-se lá

quem mais empurrava as peças, ninguém podia comprovar no início o

que só precisariam admitir no final, que Sadam não tinha arma química

nenhuma pra esconder. Curveball, o falso informante iraquiano exilado

na Alemanha, apareceu como um bônus. A estratégia na Casa Branca

era manter em segredo quem jogava com quem, e alimentar na

diplomacia conjecturas sobre o alcance da disposição que tinham

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para evitar a invasão. Foram muitas baixas depois, e a crina de cavalo

sob o forro no paletó do Sérgio acabou se perdendo nos escombros

também.

− O plano de vocês então não serviu mesmo pra nada, Aberto −

concluiu Zimmerman, indiferente ao sarcasmo de Alberto.

− Serviu! − Alberto continuou, antes que Zimmerman pudesse

requentar outro lance−. Não se passaram três meses do atentado em

Bagdá e o pessoal da embaixada na Líbia foi enviado para Washington.

Ninguém entendeu nada na primeira semana da missão. Depois do

retorno, porém, quando falavam português em Trípoli, o pessoal da

embaixada só chamava o Kadafi de Zezinho. Precisavam de um

codinome, uma espécie de senha. Era só pronunciar seu nome nas ruas

e as pessoas ao redor, desconfiadas, cheiravam conspiração. E não por

acaso. Em outubro de dois mil e três o serviço secreto americano

interceptou um cargueiro chinês que rumava para Líbia. Era uma

encomenda pro Zezinho. Num dos containers, encontraram todo o

material para a construção de uma bomba atômica: peças para as

centrífugas, reagentes, programas de computador, tudo, até o manual

de instrução para a montagem das ogivas. A operação enterrou de vez

o sonho de Kadafi. E mais importante ainda: levou à descoberta de um

esquema para a venda de armas nucleares e à prisão de seu líder, um

paquistanês chamado Abdul Khan. Mas só chegaram até ele porque os

detalhes para a montagem do brinquedo, acredite, o tal do Khan havia

deixado numa sacola da alfaiataria que frequentava em Islamabad,

com nome e endereço da loja. Bastou ir até lá, consultar as fichas do

alfaiate, enfileiradas uma a uma numa caixa de sapatos, e

desembaraçar as linhas do novelo que conduziam à participação de

Kahn no esquema. O sujeito orquestra uma rede internacional para

vender armas nucleares, fica milionário, engana por anos uma legião

de espiões que se estendia até a Rússia, passa por cima do serviço

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secreto do próprio país; mas, no final, ele despacha uma bomba como

se fosse uma entrega do alfaiate. Ele confiava no alfaiate como quem

se entrega a um bisturi.

Alberto parecia um pouco abatido e tentava não mostrar que se

amparava agora numa das laterais do espelho à sua frente.

Zimmerman, percebendo a situação, puxou para Alberto uma cadeira

sob o pretexto de que precisava examinar outra vez o caimento das

calças. Ele sempre fazia isso, para ver se a não puxavam aqui ou ali ao

se sentar.

Antes que pudessem retomar a discussão, e prevendo os

argumentos de Alberto, Zimmerman se lembrou do que lera sobre os

ternos de Lênin. Uma história que deixava o povo russo dividido:

− Alberto, os russos podem ter seus espiões, infiltrados na Inglaterra

e Paquistão; eles podem ter armas nucleares e acabar com raça

humana; mas, você sabe, nunca tiveram bons alfaiates.

− Como assim? Perguntou Alberto intrigado.

− Quando Lênin morreu, resolveram embalsamá-lo. Primeiro, para

que todo o povo russo pudesse acompanhar o cortejo e participar do

funeral; mais tarde, vendo que era densa a multidão e longo o funeral,

resolveram mumificá-lo de vez. No início, ele usava roupa militar; mas

depois, para desfazer as impressões imperialistas que a farda sugeria,

resolveram lhe dar um terno. Mas não um terno qualquer. Os ternos do

Lênin vivo eram feitos na Suíça. O Lênin morto, superior ao Lênin vivo na

hierarquia do Kremlin, não vestiria nada inferior.

Devagar, Alberto descruzou as pernas, para que o alfaiate

examinasse melhor a bainha das calças.

− A cada três anos − continuou Zimmerman − lhe enviam então

da Suíça um novo terno preto. De vez em quando o longo velório de

Lênin tem de ser interrompido, por uma ou duas semanas, para que os

médicos do Kremlin lhe examinem o corpo e prescrevam alguns

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cuidados. Em seguida, retomam a eterna vigília na Praça Vermelha. Na

década de sessenta, até resolveram modernizar um pouco o guarda-

roupa de Lênin. Consumiram na época mais de dez mil metros

quadrados da melhor fazenda de lã, da Nova Zelândia e da Inglaterra,

até que os alfaiates suíços conseguissem entregar um terno à altura do

grande herói socialista. Mas ocorre que a crise financeira veio

atrapalhar o longo funeral de Lênin − Zimmerman continuou. − Sem o

apoio do governo, as contas do alfaiate suíço começaram a se

acumular, sem contar o preço de uma boa fazenda lã, digna de um

revolucionário como Lênin. Então, a pergunta que o povo russo se faz

agora é se não deviam enterrar de uma vez o pobre do Lênin.

Alberto refletiu por um momento sobre a história do alfaiate e

comentou:

− Um terno sem corpo é um terno morto, mas um morto sem terno

é uma afronta à humanidade. Quem jaz ali no mausoléu da Praça

Vermelha não é o Lênin morto, mas o seu terno suíço. É o terno que atrai

as massas e inspira as multidões. O terno é a glória eterna de Lênin. Um

terno suíço sustenta sozinho o que sobrou do socialismo. Nenhum

peregrino jamais suportaria a espera sob o céu do inverno moscovita

para ver Lênin de jeans e moletom. Que Lênin então vista seu terno

suíço ou encerrem de uma vez o funeral!

Zimmerman soltou uma risada de se ouvir do outro lado da porta.

Ao recuperar o fôlego, ele pediu que Alberto se levantasse. Observou as

calças novamente, de cima para baixo, de baixo para cima, e

decretou logo em seguida:

− A calça está na medida, Alberto. Impecável − acrescentou sem

modéstia. O alfaiate se lembrou então de sua pergunta original, e

retornou uma vez mais à questão:

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− Mas Alberto, você com suas histórias da diplomacia... Acabou

não me dizendo por que um novo terno agora no meio do ano, e preto

ainda por cima!

Alberto pensou por um instante, se escorou novamente na lateral

do espelho e, olhando para o alfaiate refletido à sua frente, respondeu:

− É para um funeral. Ainda sem data marcada.

Zimmerman tentou esboçar um sorriso. Os dois, então, logo se

entregaram ao silêncio que imperava antes na sala.

Naquela noite, Alberto sentiu-se reconfortado ao se lembrar do

cheiro da lanolina. Logo adormeceu. Sonhou com o abraço

prolongado que VZ-cor-de-noite em breve lhe daria.

MARCELO DE ARAÚJO é escritor e pesquisador. Doutorou-se em filosofia pela

Universidade de Konstanz, Alemanha. Professor de filosofia da Universidade

Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Publicou dois livros sobre o filósofo René Descartes, e um sobre Dom Pedro II.

Publicou também artigos acadêmicos em livros e periódicos de filosofia, e

textos de ficção em revistas e jornais. Site do autor:

www.marcelo-de-araujo.blogspot.com.br

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NORBERTO DO VALE CARDOSO | Chaves, Portugal

O MAL DOS CACOS

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«Se ainda tivesse espaço, carvão, e paredes disponíveis,

poderia escrever uma teoria geral do esquecimento.»

(José Eduardo Agualusa, Teoria Geral do Esquecimento)

Dizia-lhe que, do andar cimeiro - durante a noite, quando a

cidade dormia após a recolha do lixo, e o camião se esvaía pela rua

levando consigo o ruído da vida e o odor das vidas -, a água

despertava e principiava a descer pelas paredes, insólito fenómeno

que atribuía a supostos cães que, segundo contava, urinavam pelo

prédio a partir da mansarda. A essa hora do silêncio os cães saíam dos

seus antros secretos para assolar as cabeças dos habitantes do país

inferior.

Quando contava estas coisas, fosse a quem fosse, ninguém

creditava as suas palavras de senso, atribuindo, ao invés, esses cães

imaginários e essas águas fugidias a desvãos mentais, vulgarmente

apelidados de loucura, isto por mais que ele insistisse que cães sobre as

cabeças inundando as casas, cães despertando após a instalação do

silêncio posterior à passagem do camião do lixo rua acima,

argumentando com marcas de fios de urina escorrendo nas paredes

da casa.

Tinha ainda em si a memória das paredes inchadas, dos buracos,

da pintura disforme, das janelas interiores, daquele vazio que só as

casas antigas sabem ter nas ruas desabitadas. Nelas um odor de coisas

apodrecendo, de corpos em putrefacção; a anuência do Sol em não

comparecer; outras ruas dentro das ruas e, por dentro delas, casas,

pátios, estendais e rapazes.

Na casa onde os cães, como gente, habitavam por cima da

gente, como gente que não era como os cães, lembrava-se das

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escadas, que não se limitavam a ser um ponto de acesso entre

andares, mas, dizia-lhe ele, entre dois mundos: o mundo das pessoas e

o mundo dos cães que, entre uivos, dominavam a noite e danavam o

seu sono. Rompia a sua narração e acrescentava que,

esporadicamente, tentara subir aquelas escadas para confrontar os

animais, mas que jamais o conseguira, pois, nesses momentos, surgia-

lhe, não soubera nunca de onde, uma força de areias movediças nas

pernas.

Prostrava-se no seu ponto mais descendente de homem e

gatinhava pelas escadas de volta ao seu leito, mas temia esse

percurso, dado que, a meio das escadas, encontrava-se um espelho

que fora tapado por um lençol muitos anos antes, aquando da morte

do senhor da casa, homem que nunca vira, mas cuja presença se

definia em interdições várias de aceder ao andar superior. O espelho

era a imagem desse morto, de um homem que nunca vira, mas que se

tornara, para si, em senhor do mundo superior.

Essas remotas interdições, que entrevia na memória em

imagens díspares (guarda-chuvas nunca usados, espetados no

bengaleiro do próprio espelho, bordado de naturezas mortas), tinham

como propósito evitar que os garotos do caseiro (como ele era) fossem

algum dia mexer nas coisas dos senhores que, então, passaram, a ser

só da senhora viúva, uma mulher fininha, ciosa da sua solidão,

entretida a ouvir a telefonia enquanto fazia croché sobre as brasas

numa braseira de lata.

Segundo lhe dizia, essa velha (que nunca descia do seu andar)

compenetrada que estava no seu croché incessante (silencioso como

os seus próprios passos) e nas suas brasas que não esmoreciam,

guardava os cães para que estes, na sombra da noite, prosseguissem o

trabalho de poder: manter a distância entre aqueles dois mundos,

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sustendo a tese de que o senhor da casa continuava vivo no andar

subterrâneo entrevisto pelos telhados semitransparentes.

Ninguém o cria. Todos os tomavam por louco. É que, agora, a

sua memória assemelhava-se a um armário embutido numa parede,

lugar onde se guardavam caixas de medicamentos com nomes

ininteligíveis e propriedades inexplicáveis para retardar os efeitos da

doença, o que fazia variar a sua têmpera. O homem debatia-se com

os seus cães interiores e era como se transportasse às costas uma porta

e a colocasse em qualquer lugar e, abrindo-a, escutasse, entre a

névoa, latidos de cães.

Toda esta capacidade imaginativa tivera o seu rompimento

quando um dia, pela manhã, o rosto do homem apresentara

escoriações e marcas que ninguém podia explicar, mas que o próprio

rapidamente atribuiu ao facto de cair pelas escadas da casa. Desde

esse momento, desde essa queda pelas escadas que se inclinavam

como a ladeira ao lado da casa, enquanto as pernas se entorpeciam,

nunca mais fora o mesmo. E jamais deixara de recontar a história, que

assinalava diariamente como se de um recontro com a história pessoal

se tratasse, alterando pormenores anteriores, como aquele de recriar

que as escadas tortas, porque alguém torcendo os degraus, uma

entidade fantasmática e muda ladeada por um matilha.

A cabeça deste homem nunca mais fora a mesma, nunca mais

desde que as escadas, as escadas, as escadas, nome feminino que,

para os demais, não mais representava que a negação do

envelhecimento, do cansaço de uma vida, porque a vida ruas, casas,

becos, ladeiras, andares, bengaleiros, espelhos, portas, cães. A vida

escadas que se sobem e descem, curvas numa estrada, memórias, a

amálgama de passados que se amontoam até à imaginação.

Conhecia-o e já não sabia quem era, o nome próprio, o nome

de família, conhecia-o e não se lembrava, era como se a sua relação

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e as suas confidências fossem hoje remotas como buracos no tempo,

como cães urinando pelas paredes de uma casa. Às vezes as pessoas

dos retratos convertiam-se em assassinos compactuando com os cães

e as águas moventes, que estavam ali agora, para o atirar pelas

escadas dobradas, montando um cenário de espinhos, de cardos, de

escolhos, furtando uma mulher (com quem estivera casado durante

décadas) que só muito remotamente havia sido sua.

Escadas ou espelhos ou buracos ou cães pelas paredes. Já não

falava então, latia de noite como os cães tendem a uivar no seu

desespero de pressentimento, o tremor de terra antes do tremor de

terra, a morte antes da morte, a perda do eu antes da perda do eu, as

mãos assim, assim, passando-as pelo cabelo que não compreendia

branco, num suplício de cão ferido a solicitar aquilo que ______________

(não quero dizer o quê).

Enterrado com os livros, era mais ou menos como se imaginava.

Caíra nu na banheira do mesmo modo que nascera, afinal a vida é

tão igual! Que diria aqui Arquimedes da ocupação dos corpos? Isso,

da ocupação dos corpos, porque só corpos imersos na água, pouco

mais, a não ser uma sensação indefinível, que era o que ele sentia ao

cair, porque agora caía em qualquer lado. (Fará o mesmo efeito a

imersão na terra?) Já não era lesto. E o mundo passara a ser uma

gigantesca banheira, onde escorregava sem sustento. O pénis um

peixinho frugal, um caule infrutífero. É o homem ao contrário: primeiro a

ver a sombra enquanto emerge de uma qualquer casualidade

evolutiva, depois a própria sombra, o seu corpo que dava sombra

caindo na sombra para ser a sombra. Uma sombra que não pode ter

sombra de si. Afinal, as sombras titãs dos homens.

À época, a tia trabalhava com os velhinhos no hospital, lugar

exacto onde nascera e do qual recordava um cheiro a canja

misturado com remédios. Não podia emigrar assim, ele é que migrava,

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como as aves, quando a primavera vinha, o inverno definhava. O seu

advento era ser como as aves. A tia de há vinte anos agora outra,

tratando-o, dando-lhe de comer como aos bebés e aos velhinhos

mortos de há duas décadas. A comida feria-lhe a garganta. A pele

tinha feridas. E ele dizia que dos cardos, porque os cães vinham pela

noite e traziam cardos pela boca, roçando no seu corpo, obrigando-o

a engolir.

Construíra a sala de trabalho na garagem. Procuravam-no e ali

estava ele reutilizando o carro que já não podia guiar pela estrada que

soubera como as mãos (Beethoven compunha sinfonias que não

podia ouvir, que nunca chegou a ouvir. Ele podia ouvir, ouvir os cães,

ouvir as vozes, ele podia ouvir os cardos gritando como se os seus gritos

proviessem de celas onde se trabalhassem cilícios. Ele podia. E se

podia, era a sua vez de ter as mãos no volante, de ser novamente

senhor da sua vida, de ser livre, mesmo que fosse só a pensar. E então

a estrada tinha outra vez os seus contornos, que sabia de cor, curva a

curva, casa a casa, terra a terra, café a café. É que ele começara a

morrer quando deixara de fazer a estrada por ordem médica, devido

a problemas de coluna: a morte era uma tábua; a morte eram cães

urinando sobre as pessoas; a morte cardos caudilhos fodendo um

homem.) e que percorria para levantar os cacos que havia de vender

para seu sustento.

Sim, houvera ainda o tempo em que era o homem que vendia

cacos. Mas afinal a vida não passara disso mesmo, de cacos, cacos de

um corpo, cacos de uma vida, que as memórias partiam em vez de

agregar, e que o levavam a inventar aquelas histórias, que alterava

pontualmente, como a de dizer que na queda das escadas partira a

coluna, e que, por causa dessa queda, agora estava ali, imóvel,

observando, impotente, os acontecimentos da noite que nem o carro

do lixo era capaz de levar.

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(A coluna – a gramática, a lei, a ordem, melhor: o estilo. Não era

ali que estava a prefiguração do eu, da sombra do eu? Sim, na coluna,

mas que ele tinha em cacos, que tratava no doutor Hespanha, que lhe

dizia que a culpa dos cacos das costas eram os cacos da vida, vá lá, a

infância a vergar, a arar, a colher, a podar, a semear, e não da queda

nas escadas.)

Ficara alguns anos entrevado numa cama, como se fosse

possível, na imobilidade, colar os cacos da vida, deixá-los adquirir uma

massa compacta que suportasse mais algum tempo o estilo da

existência ou da vida. Como se a vida não fosse uma amálgama de

cacos sobre a qual não entendemos coisa nenhuma. A vida de cada

pessoa é uma ampola inescrutável em que as coisas se alteram,

misturam e mutam com o tempo.

NORBERTO DO VALE CARDOSO é autor de vários livros de poesia,

estando incluído em antologias. Publicou, em 2005, o romance

Impressão Digital. Professor e investigador, tem-se dedicado ao estudo

da obra de António Lobo Antunes, sendo autor de A Mão-de-Judas:

Representações da Guerra Colonial em António Lobo Antunes (Texto,

2011).

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Como muitos leitores já sabem, o lançamento da Subversa no Rio de

Janeiro foi muito interessante e diferente de tudo o que já fizemos por aqui.

E o fato desta experiência ter sido muito positiva para todos nós deve-se

muito à colaboração do ORNITORRINCO, idealizado por Gabriel Pardal,

um autor que vai se manifestando entre textos, imagens e criações de

diversos formatos, entre eles o livro Carnavália.

GABRIEL PARDAL e o ORNITORRINCO:

“É uma ideia simples, mas a missão é

complexa”.

FOTO: Camilo Lobo

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Mais que uma união de forças e um mero apoio para um

lançamento, a parceria tomou forma de ferramenta de discussão de

pontos de vista fundamentais para quem trabalha com literatura. Para

quem está comprometido com ela, seja individual ou coletivamente. Que

está preocupado, tanto com sua utilidade como com a angústia da

inutilidade que só um belo texto é capaz de proporcionar. Para todos que,

enfim, enxergam na escrita (e na leitura) uma maneira de elaborar e

aperfeiçoar uma ideia através de uma forma, seja um desabafo, um

impulso estético ou o desejo mais elevado por um mundo melhor.

Por essas e outras, resolvemos trazer um pouco desta conversa aqui,

no número de aniversário da Subversa, que ganhou vários presentes nos

últimos dias, sendo a noite de 21 de Julho um dos mais curiosos.

SUB | QUANDO O ORNITORRINCO FOI CRIADO, QUAIS ERAM AS

EXPECTATIVAS DAQUELE MOMENTO E COMO VOCÊ VÊ ISSO HOJE?

Gabriel | Minha ideia era simples: reunir um pequeno grupo de

amigos e conhecidos em um projeto onde escreveríamos de forma livre e

pessoal sobre o que estávamos vivendo e enviar para outros amigos que

se interessariam por essas reflexões escritas. Escolhi os integrantes desse

grupo por um único critério, eu sabia que eles escreviam, e, sobretudo,

gostava do que eles escreviam e queria que eles escrevessem mais e que

as pessoas os lessem. No início os textos eram enviados quinzenalmente

por e-mail para um grupo de assinantes que foi crescendo com o tempo.

Em uma sociedade carregada pelo cultura da imagem, abastecendo a

internet com bilhões de fotos, vídeos, memes, gifs, minha proposta foi criar

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uma casa onde só valesse o texto puro e simplesmente. Uma ilha de textos

no mar de pixels.

O projeto foi mudando com o tempo pois íamos descobrindo novas

formas de executá-lo e nos interessando por outras trocas. Saímos do e-

mail e fomos para um site. Deixamos de escrever semanalmente para

publicar todos os dias,e começamos a aceitar colaboradores. Tínhamos

um projeto ambicioso, queríamos criar um documento sobre o que é viver

nesses tempos de agora, publicando textos de não-ficção que

desenvolvessem um pensamento sobre os acontecimentos do presente.

Hoje, como o ORNITORRINCO existe há quatro anos, é possível enxergar

isso com mais clareza, quero dizer, esses últimos anos não foram fáceis, e

suas experiências estão registradas no nosso arquivo. É uma ideia simples

mas a missão é complexa. Somos loucos.

FOTO: Camilo Lobo

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EM RELAÇÃO AO PÚBLICO LEITOR DO ORNITORRINCO, HAVIA UM PÚBLICO

ALVO? SE SIM, ELE EXISTE, PERMANECE?

O público mudou, o grupo mudou, tudo foi mudando nessa

trajetória. De repente uma ideia que começou com 70 leitores passou para

1.000 a 4.500 por dia. Fomos perdendo a noção de quem estava

acessando. Comentários e colaborações começaram a chegar de todo o

país, pessoas de diferentes gerações, profissionais de várias áreas enviando

textos. Por exemplo, após junho de 2013, publicamos vários artigos sobre

as manifestações, um de um historiador, de um poeta, um psicólogo,

promovendo diferentes reflexões sobre um assunto que afetava a todos.

Mas nunca focamos em público, não. Não houve nenhuma reunião

onde chegamos a pensar que deveríamos escrever para um grupo de

pessoas. Homens, mulheres, adultos, adolescentes, etc., é para todo

mundo.

É UMA EVIDÊNCIA IMPORTANTE DE QUE EXISTEM LEITORES INTERESSADOS

NESTE TIPO DE ILHA. VOCÊ ACHA QUE AS ESTATÍSTICAS QUE VEMOS POR AÍ DIZEM

ALGO, REALMENTE, DOS LEITORES BRASILEIROS? ACHA QUE TEM INFLUÊNCIA NA

MOTIVAÇÃO DE QUEM TRABALHA NA ÁREA?

Penso nisso diariamente, e mesmo quando não penso, a questão

está comigo. Quem lê? Por que faz isso? Estamos em 2015 e por que há

ainda quem escreve? Escrever e ler é importante? Para cada uma dessas

perguntas posso ter respostas diferentes a cada dia.

Recentemente tomei um café com um amigo escritor que me

contou que pela manhã, por pelo menos duas horas, vem se dedicando a

escrever seu romance. Falei que também estou escrevendo um livro e que

tento todo dia rabiscar alguma coisa, mas quase sempre é difícil, doloroso,

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exige uma energia difícil de arrancar. Muitos escritores falam disso aí, do

quão difícil é escrever. E aqui no Brasil é mais difícil ainda, ser escritor não

é nada. Não paga as contas. Não levam à sério. Diga que é escritor que

vão te perguntar como que você sobrevive.

Segundo a última pesquisa, a média de leitura do brasileiro e de 1,7

livros por ano. Pode pôr nessa conta a Bíblia, livros de auto ajuda, best

sellers internacionais… O Brasil é um país em que o povo saiu da

analfabetização direto pra TV. Somos educados pela imagem, pela

relação passiva com a televisão. Não há estímulo à leitura nas famílias, no

trabalho, entre amigos, nem nas escolas, que deveria ser a responsável por

isso. Olha a grade curricular dos adolescentes, em uma semana eles têm

cinco aulas de física, matemática, química, e uma de literatura. Não há

igualdade, a literatura é desde aí tida como uma disciplina inferior, que

merece menos atenção, é desimportante.

Se a situação é essa, então porque o escritor brasileiro

contemporâneo desperdiça seu tempo fazendo essa atividade cheia de

dor, avencas, tortuante? Porque para o escritor não há outra alternativa.

Não tem jeito. Eu posso evitar (procrastino bastante), mas não adianta,

acabo sentando e escrevendo. É como uma maldição. O escritor não tem

escolha, é preciso fazer.

Dito isso, é preciso entender os processos atuais. A média de leitura

do brasileiro é de 1,7 livros por ano, mas acredito que as pessoas têm lido

bastante sim. A internet é o novo lugar de leitura. Está certo que a maioria

passa mais tempo vendo vídeos e fotos, mas os sites de notícias, artigos, os

blogs estão aí sendo compartilhados pelas mesmas pessoas que leram 1

livro ou nenhum. Elas estão lendo sim, só que na internet. Um dia desses

conheci uma garota que disse que gosta do que escrevo, mas nunca leu

meu livro, tudo o que leu está no ORNITORRINCO. Ou seja, publiquei o

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"Carnavália" em 2011, e não devo ter vendido mais do que 500 livros, já no

ORNITORRINCO alcançamos uma média de 2.000 leitores por dia (o que é

bem pouco comparado a outros sites). Então posso dizer que estão lendo

o que escrevo, existem leitores, só que em outra plataforma. E aí? Um texto

publicado na internet é menor do que no livro? Quando escrevo na internet

eu o faço com menos vontade? Não e não. Até escrever nas redes sociais,

considero como uma atividade literária. É assim que é agora, que estamos

sendo lidos, que se chega à literatura, é assim que se escreve e publica

nos dias de hoje.

Escritor não é só o que escreve livros. O mercado editorial ainda não

conseguiu se entender com isso. Mas tudo bem, os "especialistas"

costumam levar mais tempo para aceitar o que as pessoas já estão

fazendo naturalmente.

A literatura, o escritor, os leitores, não estão mais presos aos livros.

FOTO: Camilo Lobo

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E SOBRE O MOMENTO EM QUE O ORNITORRINCO PASSOU A REALIZAR A

REPÚBLICA, COMO FOI QUE ISSO ACONTECEU? HOUVE ALGUMA MUDANÇA

SIGNIFICATIVA NOS RUMOS DO PROJETO, OLHANDO HOJE?

O República ORNITORRINCO surgiu pois queríamos entrar em contato

com as pessoas que só conhecíamos virtualmente. É um dos

desdobramentos do ORNITORRINCO que eu mais gosto. A ideia é essa:

abrir as portas da nossa redação para discutir com os leitores e

colaboradores os assuntos da semana. Sempre aparece uma galera bem

bacana e entramos pela noite conversando, trocando ideias, opiniões, e

acabamos saindo de lá mais espertos.

Em todas as edições eu e o Domingos [Guimaraens, colunista] nos

reunimos para decidir a pauta do evento, a ordem, como vai funcionar,

essas coisas. Criamos um roteiro de base, mas na hora deixamos o caos

bagunçar, somos dominados pelos imprevistos, pelas interações com as

pessoas.

E o República afeta a nossa escrita e vice-versa. É bom isso, fazer o

escritor sair de casa, falar com o público, com os parceiros, se misturar.

Pois é isso, se misturar é a nossa parada. Tem bicho mais misturado

do que um ornitorrinco?

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ENTREVISTA COM A MIMURA:

“CADA TRAÇO É UMA DECISÃO

FINAL”

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SUB | HÁ ALGUMA RELAÇÃO FORTE, NO SEU PROCESSO DE CRIAÇÃO,

COM ALGUMA FILOSOFIA ESPECÍFICA, COMO, POR EXEMPLO, O DASEIN? (TO

MIMURA "EVERYTHING, DYING, IS LIVING").

A. MIMURA | Dasein, a velha noção heideggeriana que fede a

túmulo, o ser aí, o ser em conformidade com a regra, que é a morte, não

da regra, que é infinita, mas do ser particular que nasce e por isso está sob

a regração (im)piedosa da morte; em parte sim, mas, não devido à

fatalidade de tudo caminhar para a morte, mas de modo inverso, de tudo

conter poética e exuberância de vida e por esse motivo, sus generis,

devemos nós, ao Todo, constantemente, interesse e deslumbramento. A

criação se for verdadeira vive deste momento: do nosso fascínio infantil

com o deslumbramento que tudo encerra; a própria criação, a obra, deve

procurar esta dualidade poética entre exuberância de vida e morte; morte

no sentido de adicionar estranheza à obra, no sentido do passo extra, no

nosso passo para lá da floresta Negra (utilizando a noção circunstancial de

Heidegger, o tipo escreve o funesto, mas belo e profícuo livro, na floresta

Negra, enquanto a esposa lhe tricotava meias e este fumava cachimbo à

noite, em silêncio, e muitas das vezes com os lenhadores; o livro ganha

outro encantamento se soubermos a realidade da sua estruturação, bom,

pelo menos para mim). Um matador de touros afirmava algo, como que,

um passo a menos e não há arte e um passo a mais e é nossa morte. É

preciso chegar a isto na obra, deve ser cada trabalho o limbo preciso do

equilibro máximo entre exuberância e perda, é neste momento inefável

que o génio se manifesta: no passo extra, que transforma o trabalho no ser

ai, em Dasein, o ser que explora ao máximo a sua linguagem no

prolongamento máximo que a sua finitude suporta. De qualquer modo,

não creio em filosofias de criação, nem em filosofia alguma, porque creio

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na liberdade anarquista, que pertence a todo o artista, criador, etc, uma

liberdade tal que se compõe de todas as filosofias.

VOCÊ GOSTARIA DE FALAR UM POUCO SOBRE O CONTEXTO NO QUAL ESTÁ (OU

NÃO ESTÁ) INSERIDO COMO AUTOR DE UMA OBRA VISUAL DESTA COMPLEXIDADE?

A obra sem complexidade não é obra, é uma coisa, que felizmente

o Tempo varre do mau gosto circunstancial humano de uma época;

enquanto autor, nunca creio que o autor, o mensageiro, seja importante,

se este, o autor, deseja a importância da obra, o que é comum,

normalmente significa que este não tem importância, e, raramente, a obra

tem significado ou valor algum. E ainda usando o bom velho sorumbático

Heidegger este afirmou e, bem, ao jornal Der Spiegel numa entrevista: “A

luz da publicidade obscurece tudo.” A complexidade da obra deve advir

da complexidade dos temas e do modo como é executada; eu não

penso nunca a obra de outro modo, tem que me fascinar a mim primeiro, e

eu não cedo ao apaixonamento que o autor revela pela revelação

primeira da sua pena, exijo sempre mais, exijo a esta, tudo, até a sentir

ceder e carpir por dentro, como algo que quebra, e, é esta violência que

cria uma obra visual com a complexidade desejada a todas as grandes

obras, que perduram, porque dialogam atemporalmente com a

complexidade do humano.

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O EROTISMO CONVOCADO PELAS IMAGENS PARECE TER RELAÇÃO ÍNTIMA COM

AMUTAÇÃO COM O HORROR. QUER FALAR ALGO SOBRE ISSO?

O que é o erotismo senão um excesso para lá da beleza, uma

mutação onde o horror se manifesta voluptuoso numa expressão

desconhecida e sedutora?

Que interesse tem a beleza sem o horror? A beleza, sem o horror, é

uma coisa inútil, vazia e frustre, uma coisa que o tempo irá massacrar,

dizimar, num instante terrível e quase imediato. Imaginemos a Mona Lisa

sem o sorriso. Isso seria Beleza. E, o que seria a Mona Lisa, sem o sorriso

enigmático, sem o sorriso respassado pelo horror e o mistério que esta não

revela, senão um retrato medíocre e aborrecido? O erotismo é dar corpo e

inteligência à beleza, que nenhum destes dois atributos possui, e este dar

corpo, é obtido através do horror, só o horrível possui a inteligência da

mutação e o fogo do corporeidade para se mover no mundo. Como tal, o

erotismo estabelece relação íntima com o horror, com a fealdade, porque

a beleza não é lúbrica, aliás, a beleza praticamente não é, ou seja, para o

ser de facto, precisa do que não possui de modo algum, como, por

exemplo, da inteligência da lubricidade, como tal, para que o erótico

resulte, o conceito de belo, tem que ser a parte menor, a parte ínfima, e

trespassado visceralmente pelo horror, para que a poção resulte, perfeita e

inebriante.

A. MIMURA É UM PSEUDÔNIMO, UM ESCONDERIJO OU UMA AFIRMAÇÃO?

Eu sou uma mulher malaia, e isto está longe de ser uma verdade

absoluta, mas, não resulta daqui, que se tome a afirmação, como um

esconderijo e menos por um pseudónimo, as mulheres não gritam: buceta,

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pelos portos onde os barcos navegam, eu navego; como tal, A.Mimura

permite-me todo e qualquer jogo que deseje, sem a necessidade de

buceta gritar, como uma mulher, e isto está longe e ser uma verdade

absoluta, nos barcos, onde os portos, navegam; e, tal como afirmei. Eu

navego. A.Mimura como A.Miyajima como outra coisa qualquer que me

divirta e me apeteça, ou, para ser objectivo: talvez não seja de todo assim.

COMO RESUME SUA TRAJETÓRIA COMO ARTISTA, TANTO EM RELAÇÃO À ATITUDE,

COMO ÀS TÉCNICAS? ONDE É POSSÍVEL ENCONTRAR O SEU TRABALHO? ONDE

ELE VIVE?

A minha trajectória como artista define-se com especial felicidade

comum a todo e qualquer artista genial que tenha nascido nu país

portugal; a minha atitude em relação a esta circunstância, é de,

conformidade e aceitação, tanta e tamanha, que a situação é quase

perfeita, amamo-nos, maravilhosamente e ferozmente, com ódio

profundo, e, mutuamente. Deste modo o meu trabalho está todo

vocacionado para o exterior e é no exterior U.K., U.S.A. etc, que tenho

quase todas as exibições e participações. Em relação ao trabalho

propriamente dito, faço questão de explorar tudo, desenho, pintura,

escultura, performance, cinema, foto, you name it... E simpatizo com tudo

o que é projecto mainstream e parcerias com diferentes linguagens e

abordagens. A técnica deve na minha opinião de ser sempre mestiça, ou

seja, jogar com conjugações, pintura/desenho, desenho/foto,

pintura/escultura, etc. Opto muitas das vezes pelo desenho porque me

diverte e me ajuda a pensar um tema, é algo móvel e imediato, é

semelhante a escreveres um trecho poético, e isso agrada-me; além de

que, precisas de um atelier para pintares, mas para desenhares não é

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preciso muito; opto, também quando desenho, por caneta de tinta negra,

gosto da crueza desta, e papel de tamanho A4, e realizo tudo num sopro,

sem esboço, trabalhando só com o móbil da ideia. Gosto do jogo de teres

que usar o acaso e a falha do traço e, do facto, de cada traço que realizas

envolver uma consequência, cada traço é uma decisão final, tens que ter

o pulso preciso e, especialmente, tens que desenhar sem medo e com a

musa a guiarte o pulso, és o desenho a cada traço, e tens que o sentir

vibrar até ranger, como as cordas de um piano que ameaçam ceder e, é

esse som, de quase quebra da melodia, que resulta numa obra original e

nunca igual, uma obra em tensão, que o espectador sente em

desconforto e simultâneo fascínio. De qualquer modo num plano

generalista de aproximação do meu trabalho ao estilo, para além do meu

e isso é definitivo para seres singular, estabeleço pontes invisíveis com o

expressionismo alemão, a pintura japonesa e a temática do existencialismo

humano. O trabalho vive entre amigos, entre alguns compradores mais

sagazes, entre coleccionadores avant agard, entre algumas galerias, no

atelier, que está a rebentar de trabalhos amontoados, em links virtuais e,

especialmente, em mim. O sítio mais fácil para ir ver o trabalho é no

facebook, pois é acessível a qualquer um. Eis o link:

https://www.facebook.com/amimura.artist?fref=ts. Para novos projectos ou

ideias eis o meu email: [email protected]

Aconselho vivamente também o livro de erótica poética e ilustração :

Ketojin o negociante de amor; que pode ser adquirido através de um

email para a editora livros de ontem:

http://issuu.com/abismo_humano/docs/abismo_humano_16

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PARCEIROS:

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Edição e Revisão:

Morgana Rech e Tânia Ardito

Recepção de originais:

[email protected]