Revista Tempo Gislene Neder

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    Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, n 3, 1997, pp. 106-134.

    3. Tempo

    Cidade, Identidade e

    Excluso Social*Gizlene Neder**

    Seguem-se algumas questes ensejadas por um conjunto de preocupaeslevantadas em torno da temtica do controle e da excluso social, tomando-se como

    referncia a cidade do Rio de Janeiro na virada do sculo XIX para o XX.Os momentos histricos de crises e mudanas institucionais possibilitam oflorescimento de propostas de organizao social e poltica, num sentido mais amplo, bemcomo de projetos de cidade que expressam as mltiplas clivagens ideolgicas daformao histrico-social. Nestes momentos, pelas frestas das formulaes maiselaboradas destes projetos, escapam aspectos culturais significativos, que esto a indicarno apenas rupturas, mas tambm permanncias e continuidades que devem ser anotadas.Identificamos estes momentos, tambm designados de transio, atravs de recortesconjunturais mais especficos que tomamos como unidade de anlise. Sem dvida, a crisedo regime monrquico e do escravismo (ou a crise da ditadura militar) constituem

    momentos de esgotamento do autoritarismo poltico que abrem possibilidades dereestruturao poltica e social. Abrem, outrossim, debates acirrados, nos quais podemosobservar as utopias urbanas e as prticas polticas institucionais que demarcam a disciplinasobre os espaos da cidade. A vitria de certas propostas no implica, entretanto, que oanalista deva desprezar a riqueza da pluralidade ideolgica dos encaminhamentos que seapresentam.

    Particularmente no caso do recorte conjuntural mencionado (primeiras dcadas daRepblica _ a observao vlida tambm para a conjuntura histrica recente de sadada ditadura militar), verificamos uma preocupao acentuada com o controle social e adisciplina. As preocupaes com o controle da massa de trabalhadores pobres revelam o

    medo branco, ainda presente, apesar dos vrios disfarces que o racismo vem tentandoempregar neste sculo de Repblica. Sem dvida, no imediato ps-abolio, asreferncias condio de ex-escravos para a grande maioria da populao urbana no Riode Janeiro aparecem de forma mais explcitas. Por outro lado, no deixamos de anotar apresena destas mesmas preocupaes na conjuntura histrica mais recente. Asreferncias escravido esto mais esmaecidas, mas o racismo e o medo (do Outro)esto, ainda, muito acentuados.

    A sada de situaes polticas autoritrias estabelece condies para aemergncia de vises hiperblicas sobre as classes perigosas. De uma certa maneira, o

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    arbtrio e a represso criam, sob o autoritarismo, fantasias absolutistas1 de um controlesocial absoluto, que vm povoando no s os operadores das instituies de controlesocial formais (polcia e justia)2, mas todo o imaginrio social brasileiro. No limite,poderamos destacar o prprio imaginrio social carioca e seus dilemas contemporneosem torno do debate sobre violncia, cidadania, lei, ordem e segurana pblica. Apredominncia poltica do conservadorismo na transio do regime militar para o Estadode Direito tem levado para o centro nervoso do debate nacional a questo da violncia.Pensamos que a pesquisa histrica pode dar sua contribuio para este debate.

    Consideramos, destarte, que o estudo da conjuntura das primeiras dcadas daRepblica possibilita interpretaes que julgamos importantes para jogar luzes sobre omomento histrico presente. Este artigo ter como foco de anlise a conjuntura de fim daescravido e o reordenamento do Estado sob a forma republicana. A reestruturaoinstitucional que se molda sob a gide de uma Repblica autoritria e excludente vemacompanhada de um processo de redefinio da espacialidade urbana da capital federal.As opes tcnico-polticas por uma certa forma autoritria de abraar o urbanismomoderno e elevar a Capital e o pas ao rol dos pases civilizados (expresso equivalente elevao do pas ao Primeiro Mundo nos dias atuais) esto ainda produzindo efeitospolticos, sociais e ideolgicos importantes. O sugestivo trabalho do professor deurbanismo no Southern California Institute of Architecture, Mike Davis3, aponta paraprocedimentos metodolgicos nos quais a busca de certas referncias identitrias nopassado, e, sobretudo, a focalizao das conjunturas de impasses polticos e ideolgicostravadas no momento da passagem modernidade no devem estar ausentes nem dasanlises sobre as cidades, nem dos projetos (polticos e arquitetnicos) para o futuro.Para o autor, escavar o futuro de Los Angeles s possvel a partir do mapeamento dopassado da cidade. Escavemos, portanto, o futuro do Rio de Janeiro, enfocando umdestes momentos de impasse vivido pela cidade: a conjuntura de implantao do regimede trabalho livre sob a gide republicana.

    A redefinio da espacialidade urbana carioca, no momento da implantao daRepblica, est longe de ser uma criao natural, inerente dinmica do processo demodernizao, resultante de uma ordem pensada tambm como natural e que estabeleceum fio evolutivo contnuo na direo do progresso. A naturalizao do processo demodernizao presente no conjunto dos debates levantados por engenheiros e arquitetospermite que se tome a idia de modernizao/modernidade de forma exclusiva eautoritria, calcando sua reflexo no binmio civilizao versus barbrie. Neste caso, a

    * Este artigo resulta de pesquisas realizadas atravs de projeto integrado de pesquisa, financiado desde1992 pelo CNPq, que tem como tema geral Controle Social e Cidadania.** Professora do Departamento de Histria da UFF.1 Estamos trabalhando com a conceituao presente em trabalho de nossa co-autoria com GislioCerqueira Filho -Emoo & Poltica, Porto Alegre, S. A. Fabris, 1997, onde a discusso sobre os novos

    paradigmas nas Cincias Humanas feita tendo em vista a articulao entre subjetividade & poltica,atravs da Histria, da Cincia Poltica e da Psicanlise. Ver tambm de Gizlene Neder - Absolutismo ePunio, InDiscursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade, , Rio de Janeiro, Relume-Dumar/InstitutoCarioca de Criminologia, ano 1, n o 1, 1o semestre de 1996, pp. 191-207.2 A conceituao que utilizamos consta de Roberto Bergalli e Enrique E. Mari - Histria Ideolgica delControl Social, Barcelona, P.P.U., 1989, que analisam as instituies de controle social formal (Polcia e

    Justia) e controle social informal (Famlia, Religio, Assistncia Social, Escola), em Espanha e Argentina.3 Mike Davis - Cidade de Quartzo, Escavando o Futuro em Los Angeles, So Paulo, Scritta (Editora PginaAberta), 1990.

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    civilizao pensada a partir de um nico projeto de modernidade, inclusive para asreformas do espao urbano.

    A cidade e o contr ole do espao

    A passagem da Corte para capital da Repblica veio acompanhada de reformasurbansticas, envoltas no manto4 do progresso e da modernidade (evidentemente pensadacomo um projeto nico e universal) j bastante estudado pela produo historiogrficacarioca da ltima dcada5. Destarte, com a reforma Pereira Passos (1902-1906), o Riode Janeiro aburguesou-se. Aterros e desmontes foram feitos e largas avenidas abertas,espelhando nas fachadas dos edifcios os reflexos do urbanismo moderno, hegemnico nasprincipais capitais europias6. Interessante ressaltar a nfase dada, ainda nos dias de hoje,ao processo de interveno cirrgica do espao urbano, que, ao rasgaravenidas eremover os trabalhadores pobres para as periferias das cidades coloca o saber tcnico dearquitetos e urbanistas, bem como o saber mdico-sanitarista, acima de qualquer crticahumanista das opes polticas realizadas.

    No entanto, os projetos alternativos de cidade que impliquem a articulao deidias envolvendo qualquer resistncia poltica e cultural e a preservao de espaosidentitrios no precisam, necessariamente, estar relacionados ao atraso ou barbrie.Num certo sentido, poderamos fazer uma reflexo analgica tomando algumas idiassobre histria e memria, aventadas por Jacques Le Goff7. A cidade pode serconsiderada como um espao privilegiado de construo da memria coletiva.Tomaramos a cidade, portanto, como um monumento (O monumentum um sinal dopassado8). E certas reas da cidade (portanto, no necessariamente toda ela) poderiamser vivenciadas como espaos constitutivos de referncias tnico-culturais dos vrios

    grupamentos urbanos historicamente estabelecidos.O monumentum, assim considerado, designaria os atos comemorativos, que,para Le Goff, teriam dois sentidos: uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura- arco de triunfo, coluna, trofu, prtico, etc (e, poderamos acrescentar, a rua, as casas eoutras edificaes etc.); ou um monumento funerrio destinado a perpetuar a recordaode uma pessoa no domnio em que a memria particularmente valorizada (a morte). Omonumento destina-se, portanto, a ligar-se ao poder de perpetuao, voluntria ou

    4 Estamos usando a metfora religiosa propositalmente, uma vez que o apego frreo aos argumentostcnicos, na verdade, est a revelar prticas institucionais dogmticas fortemente enraizadas no ocidentecristo; ver de Pierre Legendre - O Amor do Censor, ensaio sobre a ordem dogmtica, Rio de Janeiro,

    Forense Universitria/Colgio Freudiano do Rio de Janeiro, 1983; ver tambm, do mesmo autor -Lmpirede la Vrit, Paris, Librairie Arthme Fayard, 1983.5 A bibliografia recente sobre a idia de progresso, modernizao e modernidade no Rio de Janeiro abundante. Citaremos somente o trabalho de flego (e pioneiro neste enfoque temtico) de Jaime LarryBenchimol - Pereira Passos, um Haussmann Tropical, Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca/SecretariaMunicipal de Cultura, 1992. Embora a publicao sob a forma de livro seja recente, o trabalho data de 1982,quando foi apresentado como dissertao de mestrado em Planejamento Urbano e Regional doCOPPR/UFRJ.6 Ver de Carl Schorske - Viena fin-de-sicle,Poltica e Cultura , So Paulo, Companhia das Letras, 1988;ver tambm do mesmo autor - The Idea of the City in European Thought: Voltaire to Spengler, In OscarHandlin & John Burchard - The Historian and the City, The MIT Press and Harvard University Press,1963.7

    Jacques Le Goff - Documento/Monumento, In Memria-Histria, Enciclopdia Einaudi, volume 1,Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984.8 Op. Cit - pp.95.

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    involuntria, das sociedades histricas (trata-se de um legado da memria coletiva).Queremos com isto dizer que as reformas urbanas realizadas na capital federal __ a dePereira Passos e as das dcadas posteriores __ implicaram, no contedo, e, sobretudo,na forma, procedimentos polticos autoritrios, tpicos de processos de modernizaoconservadora, empreendidas por uma Repblica autoritria e excludente, cujos efeitos desegregao do espao urbano fazem-se ainda presentes. Demolies, desmontes eremoes (tudo em nome do progresso e do traado tecnicamente definido) tm sido asestratgias destes reformadores, sem qualquer preocupao com a preservao dosespaos de construo da identidade da cidade. A perda de referncias identitriaspropiciada pelo processo de expulso/remoo e de segregao social produz,evidentemente, efeitos de distanciamento social. A remoo empreendida no incio dosculo empurrou os trabalhadores pobres de origem africana para os morros da periferiado centro da cidade. A localizao desta periferia, entretanto, guarda uma proximidadegeogrfica com a cidade (como de resto, atualmente, quase a totalidade das favelas estogeograficamente prximas das reas urbanizadas da cidade). Entretanto, o processo desegregao e excluso social tem criado barreiras psico-afetivas que produzem efeitosideolgicos de distanciamento cultural9.

    A questo que nos colocamos consiste em definir em que medida a defesa dapreservao dos espaos urbanos como lugares de memria (coletiva) __ constitutivos deum processo identitrio, e que, sem dvida, tm implicaes de resistncia poltica ecultural diante de projetos reformadores autoritrios e moderno-conservadores __ podeou no converter-ser em puro movimento de resistncia de utopias urbanas retrgradas.Estas utopias urbanas retrgradas so freqentemente consusbtanciadas em lamentaesrepetitivas de um passado urbano ednico idealizado, que retornam nas falas doscontemporneos sobre a cidade, como se estivessem permanentemente a negar-lhe oprprio presente10.

    9 Esta temtica encontra -se em artigo de nossa co-autoria com Gislio Cerqueira Filho - Quando o Eu umOutro, InDiscursos Sediciosos, Crime, Direito e Sociedade , ano 1, nmero 2/ 2o semestre de 1996, Rio deJaneiro, Instituto Carioca de Criminologia, pp. 87-95. Neste artigo tomamos a perspectiva terica do jcitado Emoo & Poltica, e trabalhamos a intolerncia que se manifestam no compartilhamento deespaos urbanos pblicos.10 Interessante sublinhar aqui que a primeira parte do comentado livro do jornalista Zuenir Ventura -Acidade partida, So Paulo, Companhia das Letras, 1994, intitulada A Idade da Inocncia e que tem, noitem 1, o subttulo Vivendo pertinho do cu, molda-se neste tipo de utopia urbana retrgrada. Ainda queo autor anuncie na introduo o desejo de unir as duas cidades (o Rio de Janeiro rico e o pobre),

    resultantes de sucessivos projetos urbansticos segregadores, e que considere a poltica de apartheidumdesastre, nesta abertura, Zuenir Ventura refere-se a aspectos de um Rio paradisaco, memorvel pelo

    prisma de uma classe mdia da Zona Sul da cidade. O conjunto das lamentaes do paraso perdido,porque toma sua prpria memria como a totalidade da memria coletiva de toda uma cidade, ajuda poucono encaminhamento de solues futuras. Sobretudo, porque no h registro histrico de uma maiorintegrao geogrfica e social em dcadas passadas na cidade do Rio de Janeiro. Ao contrrio, temossustentado que a histrica da cidade neste sculo de Repblica a da excluso e do controle autoritrio damassa de trabalhadores pobres de origem africana. As saudades de viver pertinho do cu contidas emsuas lamentaes, estariam a referir-se muito mais aos tempos em que estes trabalhadores noreivindicavam tanto os direitos aos espaos pblicos (a circulao livre pelas ruas e a freqncia s

    praias). Esto, portanto, longe de constituir-se numa procura da experincia perdida, que na pena deWalter Benjamin, por exemplo, teria ganho uma qualidade nova, um significado messinico

    revolucionrio que a distingue radicalmente do Kulturperssimismus conservador de um Stefan Georgeou de um Ludwig Klages, segundo Michel Lwy -Romantismo e Messianismo, Ensaios sobre Lukcs eBenjamin, So Paulo, Editora Perspectiva/EDUSP, 1990, p. 190.

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    A modernizao das cidades, sobretudo do Rio de Janeiro, constitui, contudo, umdos aspectos do processo histrico de passagem ao capitalismo que envolve, na virada dosculo XIX para o sculo XX, o aprofundamento do aburguesamento, com a implantaodo regime republicano. Neste contexto, deve-se considerar a passagem do regime detrabalho escravo para o trabalho livre e seus desdobramentos no tocante s formashistricas de controle social definidora dos marcos de excluso social que se voimprimindo na cidade.

    Relativamente ao controle social e disciplina, sublinhe-se que, durante aescravido, estes eram praticados no interior da prpria unidade produtiva, a fazenda,sendo o controle social exercido diretamente pelo senhor de escravos (e seus capatazes ecapites-de-mato), sobretudo nas reas rurais. O controle social da populao pobre elivre ocorria como um desdobramento destas prticas, dentro da lgica do regimeescravista. Nos centros urbanos, esse controle era feito tambm pelas instituies policiais,que, desde a transferncia da Corte para o Rio de Janeiro, foi melhor aparelhada para talfim. As autoridades policiais, no entanto, eram unnimes nas queixas em relao sdificuldades de se policiar uma cidade sob o regime de escravido. Para elas, melhor seriaque os escravos fossem transferidos para as fazendas11. Com o fim da escravido, tornou-se necessria a reforma das instituies de controle social (polcia e justia). Inscrevem-sea as reformas das instituies policiais nos primeiros anos do novo sculo e a criao daEscola de Polcia (1912)12.

    Paralelamente s reformas urbansticas, que maquiaram e embelezaram a capitalfederal, articulou-se uma estratgia de controle social a ser projetada face massa de ex-escravos. Era o medo branco, manifestado diante das possibilidades de alargamento doespao (poltico e geogrfico) da populao afro-brasileira. Jornais do incio do sculo13revelam claramente as preocupaes acerca do que fazer diante do aumento dacriminalidade urbana. sada de uma estratgia autoritria de controle social(escravismo/mo-narquia), como j vimos, o medo diante das incertezas face s estratgiasque mantivessem os ex-escravos sob controle, que os impedissem de reivindicar direitos eespaos, apareceu de forma explcita na grande imprensa carioca. Interessante notar anfase dada ao debate sobre o aumento da criminalidade na imprensa carioca do incio dosculo, que pontuava, de um lado, a ineficcia e a precariedade da polcia e, de outro, asua arbitrariedade. Naquele momento, reivindicavam-se melhorias generalizadas, queincluam o reaparelhamento da polcia, mais represso e mais controle sobre os espaosda cidade. Enfim, a grande imprensa fazia a campanha da lei e da ordem.

    Elysio de Carvalho

    14

    desenvolveu reflexes sobre a especificidade dacriminalidade carioca, com incurses extremamente sugestivas na questo tnica. O

    11 Ver Sidney Challoub - Vises da Liberdade, So Paulo, Companhia das Letras, 1990. Neste texto o autorpontua o fato dos escravos urbanos poderem ser confundidos com libertos ou se esconderem atravs douso de sapatos ou chapus, iludindo as autoridades policiais e d ificultando o policiamento.12 Gizlene Neder e Nancy P. Naro - A instituio policial no Rio de Janeiro e a construo da ordem

    burguesa no Brasil (1870-1930), in A polcia na Corte e no Distrito Federal, Rio de Janeiro, DIE/PUC-RIO, 1981, pp. 227-301.13Jornal do Brasile O Paiz.14Elysio de Carvalho foi anarquista, freqentador da boemia carioca (Antnio Cndido - Radicais de

    Ocasio, In Teresina, Etc., Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980). Foi tambm crtico literrio, alm deprofessor e diretor da Es cola de Polcia do Rio de Janeiro. Escreveu vrios artigos tcnicos para oBoletimPolicial, peridico ligado instituio policial carioca.

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    pensamento policial, na pena desse autor, sofisticou-se e introduziu uma viso moderna decontrole social.

    As tramas do poder na primeira metade do sculo revelam grandes manobras nadefinio da espacialidade urbana. Mais recentemente, foram privilegiados os estudossobre o poder dentro de espaos urbanos mais complexos e de estrutura social maisdiversificada, que exigiam uma maior sofisticao nas estratgias de controle social. Ditode outro modo, os planos e reformas urbansticas que modernizaram o Rio de Janeiroforam acompanhados de projetos de controle social que redefiniram a ao policial emoldaram os padres de conduta e sociabilidade no espao urbano carioca. Definiram,tambm, o lugar de cada grupamento tnico-cultural e/ou social15. Reside neste ponto odeslanchar de um processo acentuado de segregao no espao urbano carioca, quando acidade europia, aquela resultante do processo de urbanizao e reforma promovidopor Pereira Passos, diferenciou-se das reas para onde os trabalhadores pobres(geralmente negros) foram empurrados: os morros e a periferia (que poderamos chamarde cidade quilombada). A relao que se estabelece no Rio de Janeiro entre estasduas partes foi definida, de um lado, como dissemos, pelas opes urbansticasautoritrias de Pereira Passos. Sidney Challoub16 alude forma como as reformas urbanasdesarticularam a cidade negra, empurrando seus moradores para fora do centro dacapital.

    Tentemos, pois, rastrear os desdobramentos poltico-culturais deste processo quemarcaram a cidade at os dias de hoje. Sem dvida, o debate sobre remoo Xurbanizao das favelas tem origem nestas opes do incio da Repblica, emboraatinja momentos de radicalizao poltica no auge do lacerdismo. Na verdade, osproblemas polticos vividos hoje pela cidade moderna tm seu ponto de partida nestasopes e levar isso em conta significa que no podemos nos esconder atrs de problemasrelativamente recentes da conjuntura atual como o narcotrfico, deixando com isso dereconhecer as origens histricas do problema urbano carioca. De modo que importaidentificar os entraves psico-afetivos e culturais para a formulao de polticas urbanasadequadas. Ressalte-se que o debate travado entre arquitetos e engenheiros inscreve-seno dogmatismo tecnicista que se escuda num saber sobre o qual poucos tm condies deargumentar. De um modo geral, tende-se a no discutir muito as opes tcnicas eestticas do modernismo. Entretanto, quando a discusso sobre o espao urbano entra noterreno dos direitos aos espaos da cidade (circulao pelas ruas, praas e acesso spraias), os nimos se exaltam, e leigos e sobretudo lideranas polticas opinam,

    procurando definir os rumos histrico-geogrficos e geopolticos da cidade.Evidentemente, a designao cidade quilombada tomada aqui como umametfora, dado o isolamento e a falta de polticas pblicas a que estas reas da cidade doRio de Janeiro estiveram submetidas. De outro lado, devemos considerar aspectosrelacionados ao processo de resistncia cultural da populao de origem afro-brasileira alisituadas. Exatamente na conjuntura ps-abolicionista que temos a radicalizao de umapoltica que segregou mais explicitamente o espao urbano carioca (justamente quando acidade negra do perodo colonial-imperial foi desarticulada). Os morros, sobretudo,

    15 Gizlene Neder - Violncia & Cidadania, Porto Alegre, S.A. Fabris, 1994.16

    Sidney Challoub - Vises da Liberdade, So Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 287; e do mesmoautor, Medo Branco de Almas Negras: Escravos, Libertos e Republicanos na Cidade do Rio, InRevis taBrasileira de Histria-ANPUH, So Paulo, v. 8 no 16, maro-agosto de 1988. pp. 83-107.

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    foram constituindo-se em reas de refgio para a populao desalojada pelas reformasurbanas. A rejeio s propostas de urbanizao destas reas (vigente at os dias dehoje) e a manifestao de um estado psicossocial de pnico das elites em relao aosmoradores das reas quilombadas desde os primeiro anos da Repblica, afinam-se como autoritarismo da segregao imposta.

    Combinadamente a este autoritarismo das reformas urbanas, os idelogos docontrole social, muitos deles lderes intelectuais da instituio policial e judiciria carioca,traaram um projeto que confirmou e acentuou a segregao. A atuao desordenada econtundentemente repressora da polcia na primeira dcada do regime republicano (1890-1900) dirigiu-se contra a capoeiragem. Temos a esse respeito vrios depoimentos emlivros e artigos da grande imprensa. Os relatrios de chefes de polcia confirmam umaintensificao da atuao da polcia contra os capoeiras. Esta atuao ser chamada deemprica pelos idelogos da polcia duas dcadas depois. Queremos com isto dizer quea polcia carioca, atravs de seus mais importantes idelogos do incio do sculo,reconheceu a necessidade de uma polcia cientfica em oposio polcia emprica.Reconheceu, tambm, a necessidade de definir uma estratgia de atuao, j que atento nada tinha sido sistematizado. Estas preocupaes de modernizao atravs daintroduo de recursos tcnicos e modernos de investigao policial aparecem enquantoestratgia apresentada por uma viso liberal da atividade policial que esteve, no Rio deJaneiro, circunscrita s primeiras dcadas da Repblica, quando as opes porestratgias autoritrias ainda no tinham se afirmado politicamente. Elysio de Carvalhorepresentou esta corrente. A atuao mais expressiva desta corrente consistiu namobilizao pela criao da Escola de Polcia (1912) e na publicao de uma revistaespecializada (Boletim Policial), que circulou regularmente por mais de uma dcada.Conquanto as posies polticas liberais que defendiam uma radicalizao no sentido deuma polcia cientfica no tenham sido hegemnicas, o registro do empreendimentorealizado confirma a pluralidade ideolgica da conjuntura. Registre-se, por exemplo, avinda de Edmond Locard, especialista belga, para proferir conferncias, bem como oempenho na divulgao das tcnicas de investigao policial explicitado em vrios artigosdoBoletim.

    A viso liberal-conservadora que formulou estratgias autoritrias de controlesocial imps-se. As conferncias judicirio-policiais de 1917, convocadas pelo chefe depolcia da capital federal, Aurelino Leal, acabaram por dar forma s estratgias decontrole social no Rio de Janeiro, definindo a geopoltica que tramou o poder na cidade,

    complementar s reformas urbanas da dcada anterior. Tais conferncias, que ocorreramnum ano de extrema agitao poltica, tanto no Brasil (particularmente na capital) como naEuropa, custaram ao chefe de polcia uma forte oposio, sobretudo da imprensa. AChefatura de Polcia do Rio de Janeiro reuniu, nos sales da Biblioteca Nacional, policiais,magistrados, jornalistas e outros intelectuais para discutir competncias e estratgias deatuao da polcia e da justia no Rio de Janeiro.

    As conferncias definiram o zoneamento do espao de tolerncia policial nagrande cidade, como forma de exerccio de controle dos comportamentos indesejveis. Jem meados do sculo XIX, Eusbio de Queiroz, frente da chefia de polcia da Cortepor vrios anos no perodo imperial, dera provas de conhecer estas estratgias de

    confinamento em reas de tolerncia, formuladas pela escola londrina de polcia, aprimeira a pensar e preparar profissionalmente a ao policial de vigilncia nas grandes

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    cidades. No sculo XIX, estas cidades foram pensadas como espao do anonimato, doesconderijo e retratadas pelo olhar de poetas e literatos das ruas, como Baudelaire emParis, analisado por Walter Benjamin17, cuja interpretao tem inspirado tantos trabalhossobre o Rio de Janeiro.

    Em 1917, tambm foram debatidos temas como infncia abandonada, jogo dobicho e agitao poltica. As concluses das conferncias judicirio-policiais sugeriram odisciplinamento do espao urbano. Naquela conjuntura demarcou-se o espao permitido(tolerado) para as manifestaes polticas18, que foram deslocadas do largo de SoFrancisco para a avenida Central19. Demarcou-se, tambm, o espao permitido (tolerado)da malandragem (Lapa e Estcio). Observe-se que tanto a Lapa quanto o Estcio soduas reas de passagem entre a cidade quilombada e a cidade europia. Assim umparedo da ordem foi edificado, delimitando as fronteiras destes espaos com aconstruo de vrios prdios (delegacias, quartis e presdios). Do largo da Lapa (ondelocaliza-se o Quartel-Geral da Polcia Militar) at o Estcio (onde encontra-se o hojechamado complexo penitencirio da Frei Caneca, que engloba as antigas Casas deDeteno e de Correo), encontramos um sucesso de edificaes ligadas, sobretudo,s instituies policiais que vm alegoricamente antepondo-se, como uma parede(invisvel) a ser transposta, aos moradores dos morros e da periferia que querem teracesso cidade.

    No somente foi erguido um conjunto de edifcios ligados s instituies decontrole social. Cabos subterrneos de comunicao foram construdos para a instalaode caixas de aviso policial nos postes de iluminao pblica. J implantadas em Berlim,Paris e Londres, as caixas de aviso policial devem ter produzido uma multiplicao dosefeitos inibidores-repressivos de quartis, delegacias e presdios, e sua localizaoconfirma nossa idia de que foi construdo um paredo da ordem. Os investimentospblicos na modernizao de equipamentos para as instituies policiais implicaram umprojeto de cabeamento que, embora subterrneo, em alguma medida, traou oparedo.Estas caixas de socorro policial, que chegaram a um total de 272 em 193220, operavampelo sistema Morse e foram adquiridas nos EUA para a ento Fora Policial do DistritoFederal (hoje Polcia Militar).

    A observao das trs plantas reproduzidas em anexo permite-nos tirar algumasconcluses. Em primeiro lugar, atente-se para o fato de que estas plantas representam,sobretudo, projetos, nos quais podemos identificar, principalmente, as intenes polticasnelas contidas. Pela ordem, a primeira etapa da obra est datada de 16 de fevereiro de

    1907 e teve lugar nas adjacncias do Estcio (Planta N

    o

    1), havendo uma concentraode caixas em torno do Quartel Novo da Polcia, na rua Frei Caneca. Uma linha traadaat o Catumbi, onde os cabos substerrneos sobem, de um lado at a rua Baro de

    17Walter Benjamin - Paris no Segundo Imprio, In Obras Escolhidas, 2a edio, III, So Paulo,Brasiliense, 1991, pp. 9-103.18 Annaes da Conferncia Judiciria-Policial, 1o Volume - Theses, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918,

    pp.284-285.19 Embora j batizada como Rio Branco, a avenida ainda designada por avenida Central nadocumentao que fundamenta este argumento que data de 1917. Pela observao de outras fontes,

    podemos concluir que o processo de renomeao no implicou no uso geral e imediato do novo nome.20

    Carlos Alberto Fernandes Neves e Erasto Miranda de Carvalho -Polcia Mili tar do Estado do Rio deJaneiro, Resumo Histrico, 2a edio, Rio de Janeiro, Centro de Estudos Histricos da Polcia Militar doEstado do Rio de Janeiro, 1988, p. 24.

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    Petrpolis indo s imediaes do tnel do Rio Comprido, chamado por BenjaminCostallat de o tnel do pavor, porque lugar de criminosos e outras figurasamedrontadoras21. Noutro lado, as caixas foram projetadas at o largo do Rio Comprido,no comeo da rua do Bispo. Neste trecho da cidade, podemos tambm verificar que apreocupao das autoridades levou construo do paredo at reas bem distantesdo centro da capital. No ano seguinte, projetou-se a instalao das caixas nas ruas docentro (Plantas no 2 e no 3). Por estas plantas pode-se observar claramente oconfinamento da Lapa. Todo o projeto de instalao de cabos e caixas de aviso policialcircunda os morros de Santo Antnio (Planta no 3) e do Castelo (Planta no 2). Nenhumacaixa de aviso policial foi instalada na Lapa propriamente dita. O policiamento ostensivo ea montagem de alegorias para a internalizao ideolgica da represso e do controlehaviam de ser empreendidos nas reas destinadas ao comrcio, aos bancos e s moradiasde boas famlias. Por ali circulavam os trabalhadores pobres, oriundos de reasconfinadas da cidade, geralmente prestadores de servios braais e domsticos, quedeveriam portar-se segundo regras de hierarquia e disciplina rgidas, estabelecidas porposturas municipais.

    As fronteiras erigidas entre a ordem e a desordem ganharam concretude noimaginrio social e poltico carioca e disciplinaram, portanto, o deslocamento e asociabilidade urbanos. Estabeleceram, de forma sutil e alegrica, o territrio de cadagrupamento tnico-cultural e apontaram o padro hegemnico de atitudes ecomportamentos face problemtica da alteridade22. Assim que, pela excluso e pelasegregao, a cidade europia pouco conhece da cidade quilombada. O mesmono se pode dizer do contrrio. O trabalhadores pobres eram obrigados a se deslocar e atransitar pela cidade em funo do trabalho. Mecanismos de controle social repressivosforam, ento, construdos historicamente, erigindo barreiras entre as duas cidades. Se,portanto, a cidade europia no conhece a outra parte da cidade, coube polciarealizar expedies e estabelecer um relacionamento de controle sobre os moradoresda cidade quilombada. As batidas nos morros (algumas vezes chamadas deinvases), feitas por policiais aos locais de moradia dos trabalhadores urbanos pobresno tinham qualquer objetivo investigativo de busca de indcios criminais ou mesmo depoliciamento ostensivo, levando segurana aos seus moradores. Tinham (a ainda tm)papel inibidor-repressivo para efeito de controle e disciplina, vale dizer, para efeito de umvigilncia permanente das ruas e dos espaos pblicos.

    21

    Benjamin Costallat -Mistrios do Rio, Rio de Janeiro, Bibliotecas Carioca, 1990, pp. 57-63.22 Tzvetan Todorov -Nous et les Autres, la reflexion franiase sur la diversit humaine, Paris, Ed. Minuit,1989.

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    falta de originalidade de Aurelino Leal, em 1917, no tocante as afirmativas deuma impossibilidade de adoo completa dos preceitos de polcia judiciria investigativavigentes em Londres ou Paris, devemos acrescentar sua aguda clareza poltica, que deresto tambm estava presente em Eusbio de Queiroz no sculo passado. Aurelino Lealfoi pragmaticamente contundente. No pronunciamento de abertura das conferncias de191723, o ilustre jurista e chefe de polcia discorreu sobre as vrias caractersticas daspolcias europias. Falou da francesa, aludiu ao pioneirismo e tcnica da polcia inglesa.Afirmou a impossibilidade de descartar vrias das tcnicas da polcia inglesa, pelo fato deser esta a primeira a profissionalizar-se. Por fim, definiu sua preferncia pela polcia alem

    23 Aurelino Leal -Polcia e Poder de Polcia, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1918.

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    (por ele chamada de prussiana), diante dos graves e difceis problemas advindos deuma ordem poltica e social carente dos vrios componentes da sociedade liberal. Dealgum modo, estas afirmativas apontam, hoje, para algumas permanncias destesargumentos polticos do incio do regime republicano no Brasil. O autoritarismo dasprticas policiais que atuam para estabelecer a segregao do espao urbano invoca,ainda hoje, um conjunto de ausncias, de faltas (de civilidade, de modernidade; masna verdade, trata-se de ausncia de europeidade, diante de um no reconhecimento dacomposio demogrfica multitnica da populao carioca) para justificar a violnciainstitucional. Pensamos que a identificao do momento histrico no qual estas estratgiasforam definidas ponto fundamental para uma crtica conseqente deste autoritarismo.

    Aurelino Leal deu mostras, portanto, de grande capacidade de utilizao dopragmatismo pombalino, que, segundo Raymundo Faoro24, perpassa os processos demodernizao conservadora presentes no mundo luso-brasileiro, desde as reformasempreendidas em Portugal pelo marqus de Pombal. Em outras palavras, Aurelino Leal,cujo habitus da formao jurdica brasileira por ele adquirida permanece ainda atreladoa uma matriz portuguesa, atuou na chefia de Polcia da capital tentando introduzir asmodernizaes requeridas para uma atualizao da instituio policial. Esta atualizaono implicou, contudo, o abandono das premissas de excludncia do pensamento polticoe da afetividade portugueses, fortemente calcados na viso de mundo tomista erigidamente hierarquizada.

    Um mapa das prti cas de contr ole

    Destarte, diante das incertezas quanto forma de controle social destacaremos

    alguns aspectos da ao e do pensamento jurdico-policial do incio do sculo, que, noRio de Janeiro, mostrou-se vigoroso e criativo.Importante frisar que os estudos at aqui realizados sobre a instituio policial na

    capital federal tm-se baseado nos relatrios dos chefes de Polcia e dos ministros daJustia e nos processos criminais. irregularidade dos relatrios dos chefes de Polciacontrape-se a regularidade (pelo menos at 1930) dos relatrios dos titulares da Justia,ainda que, muitas vezes dependamos do grau de empenho dos ministros, bem como de suaformao profissional e intelectual, na preparao dos relatrios. O mesmo pode ser ditosobre os relatrios dos chefes de Polcia. Quanto maior a pretenso intelectual ou aprpria formao acadmica do ocupante do cargo, melhor a qualidade da informao e

    dos comentrios apresentados.

    24 Raymundo Faoro -Existe um Pensamento Poltico Brasileiro? , So Paulo, tica, 1994.

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    A partir dos relatrios dos chefes de Polcia, a historiografia sobre a cidade do Riode Janeiro vem, h mais de uma dcada, interpretando dados relativos represso dacapoeiragem e da vadiagem25. Tambm aqui as assertivas acerca da ao policial nosentido de pressionar a constituio do mercado de trabalho j foram bastante trabalhadaspela historiografia brasileira. Portanto, parte considervel destas interpretaesfundamenta-se em quadros extrados destes relatrios, que apontam a vadiagem como acontraveno mais reprimida.

    25 Ver, entre outros, Luiz Srgio Dias - Capoeira, Morte e Vida no Rio de Janeiro, In Revista do Brasil,Ano 2, No 4, Rio de Janeiro, Rioarte, 1985, pp. 106-116.

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    Entretanto, ainda carece-se de um esforo no sentido de apontar com uma maiorclareza as origens histricas de prticas poltico-policiais ditas tradicionais, definidoras deum conjunto de aes ainda hoje em uso, que devem ter tido seu momento deinveno26. Quais seriam ento as tradies inventadas das instituies policiais

    26

    Eric Hobsbawm e Terence Ranger -A inveno das tradies, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984. Nestetexto os autores mostram como uma srie de alegorias de poder poltico externalizadas publicamente(paradas militares, bandeiras, hinos, etc) tiveram um contexto de inveno de tradies, com o

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    cariocas? Qual foi o momento de inveno da tradio policial na cidade do Rio deJaneiro? Ou seja, quais as origens histricas das estratgias de controle socialestabelecidas pela instituio policial da capital federal no momento da restruturao doEstado sob a forma republicana?

    Para desenvolver nossa interpretao a respeito deste processo tomaremos asfontes acima mencionadas (relatrios de chefes de Polcia e de ministros da Justia),combinando-as com os relatos e vises expressos em livros, folhetos e artigos de opinio,j enfocadas por ns em outros textos27. Tomaremos tambm como fonte osLivros daCasa de Deteno, guardados no Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro, queintegram o fundo da Polcia Civil. Como consultamos esta fonte e colhemos dadoscomplementares s fontes j consultadas, podemos, portanto, avanar um pouco mais ealargar nossa compreenso sobre o perodo histrico estudado e sobre a histria docontrole social na cidade. Apontaremos alguns aspectos que nos pareceram importantes,para alm da constatao j bastante conhecida acerca da represso vadiagem.

    Os dados contidos nosLivros da Casa de Deteno no perodo enfocado pornossa pesquisa servem de base para a nossa reflexo. Vale esclarecer que utilizamosalguns volumes desses livros __ os referentes a toda a dcada de 1880, os de 1892 a1896, 1903/1904,1909, 1912 a 1915, 1917, 1921, 1924/1925 e de 1927 a 1929 __ eque nos faltam dados acerca da dcada de 1930 em diante. Cabe salientar tambm queno foi possvel trabalhar todos os meses dos anos mencionados. Ainda assim, olevantamento empreendido permitiu-nos a montagem de alguns quadros.

    Convm destacar igualmente o fato de que osLivros da Casa de Detenooferecem um quadro ainda no conhecido, posto que uma boa parte das detenes notem seqncia na instituio judiciria por durarem, em sua maioria, dois ou trs dias, semque seja aberto inqurito e o suspeito julgado. Podemos ver, neste caso, as estratgias dapolcia no tocante ao controle da espacialidade urbana. Quem preso? Por qu? Emoutras palavras, a ao policial estaria tendo um efeito inibidor-repressivo, no sentidodado por Michel Foucault28 quando refere-se ao presdio (e suas alegorias do poder).No h da parte da ao policial o objetivo constitucional de polcia judiciria(investigao/inquritos/apurao de responsabilidade penal).

    O registro era feito no momento da entrada na Casa de Deteno e preenchido mo. Os livros foram impressos em tipografias, com o formulrio contendo os campos aserem anotados pelo funcionrio encarregado. Dentre os itens registrados nos livrosencontramos como causas de deteno embriagues, distrbio/algazarra,

    vadiagem/gatunagem e capoeiragem. Os livros registram as vrias ocupaes dos detidos,revelando uma gama to variada quanto as profisses dos trabalhadores urbanos no Riode Janeiro na virada do sculo XIX para o XX (sapateiros, padeiros, alfaiates, pedreiros,estivadores, empregados domsticos, carregadores etc). Registram, tambm, a etnia (coma classificao do positivismo adotada at hoje no Brasil) - branca, preta, morena eparda. A idade, se alfabetizado ou no e a moradia dos detentos tambm estoregistrados.

    acirramento das contradies e tenses vivenciadas pelas sociedades europias na virada do sculo XIXpara o XX.27

    Ver especialmente o quarto captulo de Discurso Jurdico e Ordem Burguesa no Brasil, Porto Alegre, S.A. Fabris, 1995.28 Michel Foucault - Vigiar e Punir, Petrpolis, Vozes, 1977.

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    Relativamente s causas da deteno, no encontramos muito mais do que j foidito desde os primeiros trabalhos feitos sobre o tema. Assim, a vadiagem era acontraveno mais reprimida. Gostaramos, no entanto, de apontar alguns detalhessignificativos que esta primeira abordagem dosLivros permite adiantar.

    Trabalhamos, ainda, uma dcada anterior Repblica (a dcada de 1880) paraefeito de comparao e coleta de indcios para o nosso recorte cronolgico (primeirasdcadas da Repblica) . Encontramos, ao longo das dcadas analisadas, registros dedetenes que discriminam embriagues, distrbio e algazarra, novamente, num s registro,combinadas, vadiagem, embriagues e gatunagem. Noutro item parte, capoeiragem.Utilizamos um formulrio de captao das informaes destes registros, organizando ositens mais diretamente ligados ao tipo de pesquisa e ao enfoque que lhe estamos dando.Optamos por repetir alguns indicadores pelo fato de aparecerem anotadosseparadamente, como uma s ocorrncia, ou combinados com mais de um tipo deocorrncia. No nos foi possvel decifrar a lgica das combinaes. Parece-nos queobedecem a uma prtica que, repetida, tornou-se tradicional entre os escrives dainstituio policial.

    Tabela I: Detenes no Rio de Janeiro (1880/1889)

    CAUSAS 1880 1881 1882 1883 1884 1885 1886 1887 1888 1889 totais

    EMBRIGUES 116 58 26 40 52 54 30 42 46 8 472

    DISTRBIO/ALGAZARRA 738 750 322 247 371 414 482 456 831 175 472

    VADIAGEM/EMBRIAGUES/GATUNAGEM 560 197 100 94 125 99 88 66 188 80 944

    CAPOEIRAGEM 19 21 26 15 36 33 32 79 158 61 1888

    NO IDENTIFICADO/NO DECLARADO 114 41 2 2 6 14 3 1 19 73 3776

    GATUNAGEM 147 88 53 7 23 68 61 41 49 14 7552

    VADIA GEM 878 301 161 154 186 149 115 160 357 59 15104

    OUTROS 604 233 142 144 232 172 136 148 325 122 30208

    TOTAL ANUAL 3176 1689 832 703 1031 1017 947 993 1973 592 4950

    Fonte: Livros da Casa de Deteno, Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro.

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    Distrbio/algazarra/embriaguez so motivos para vrias detenes ao longo das dcadaspesquisadas. Das 1.689 ocorrncias registradas no ano de 1881 (nos meses de abril,maio, agosto e setembro), 750 foram motivadas por distrbio e algazarra; no mesmo ano,301 prises foram feitas por vadiagem e vadiagem/embriaguez/gatunagem contam com197 detenes. No ano de 1889 (ano da Proclamao da Repblica) estiveram nossadisposio os livros dos meses de novembro e dezembro. Das 592 detenes feitas, 175foram por distrbio/algazarra; 80 por vadiagem/embriagues; 61 por capoeiragem e 122apenas por vadiagem (sem outra motivao coadjuvando).

    J em 1892, das 655 detenes levantadas (setembro e outubro), 229 forammotivadas por distrbio/algazarra, 67 por embriagues/vadiagem/ga-tunagem e 66 porvadiagem. Nos Livros dos dois primeiros anos do sculo XX a que tivemos acesso(meses de janeiro e fevereiro de 1903/1904), das 753 (1903) e 752(1904) detenes,261 e 114, respectivamente, foram por algazarra/distrbio.

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    Tabela II: Detenes no Rio de Janeiro (1890/1896)

    CAUSAS 1890 1892 1893 1894 1895 1896 TOTAISEMBRIAGUES 2 1 9 2 48 2 64DISTRBIO/ALGAZARRA 45 229 263 155 100 285 1077VADIAGEM/EMBRIAGUES/GATUNAGEM 19 67 35 11 27 29 1141CAPOEIRAGEM 32 1 0 1 2 5 41NO IDENTIFICADO/NO DECLARADO 2 10 30 2 0 19 63

    GATUNAGEM 2 141 123 71 70 170 104VADIAGEM/EMBRIAGUES/GATUNAGEM 14 66 69 23 14 78 264OUTROS 27 140 380 193 85 166 991TOTAL ANUAL 143 655 909 458 346 754 1255Fonte: Livros da Casa de Deteno (Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro)

    Tabela III: Detenes no Rio de Janeiro (1903/1929)

    CAUSAS 1903 1904 1909 1912 1913 1914 1915 1917 1921 1924 1925 1927 1928 1929 TOTAIS

    EMBRIAGUES 6 51 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 58DISTRBIO/ALGAZARRA 261 214 1 0 0 0 0 1 2 0 0 0 0 0 479VADIAGEM/EMBRIAGUES/GATUNAGEM

    15 5 0 0 1 0 0 1 1 0 0 0 0 0 537

    CAPOEIRAGEM 5 10 6 0 0 0 20 54 4 0 0 2 5 1 107

    NO DECLARADO/NO IDENTIFICADO 57 46 4 103 129 0 1 3 47 4 2 1 28 5 430GATUNAGEM 208 79 54 0 40 12 56 73 168 49 10 80 62 85 537VADIAGEM 78 132 25 0 27 26 181 241 310 24 6 227 186 142 1605OUTROS 123 215 391 6 93 25 116 114 448 94 47 186 211 266 2335TOTAL ANUAL 753 752 482 109 290 63 374 487 980 171 65 496 492 499 3940

    Fonte: Livros da Casa de Deteno (Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro)

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    Se retomarmos a comparao entre a dcada de 1880 e o das dcadasposteriores, encontraremos pistas significativas. Ocorreram no ano de 1885, 14 detenesmotivadas por batuques, numa clara aluso etnia dos detidos. Neste caso, deduzimostratar-se de detenes relacionadas aos cultos religiosos afro-brasileiros. Perguntamo-nosse as detenes por algazarra/distrbio em dcadas posteriores no estariam tambmrelacionadas perseguio s religies africanas, que seguiram sendo registradaspredominantemente como distrbio ou como algazarra. Joo do Rio argumentava que

    ... era possvel que muita gente no acreditasse nem nas bruxas, nem nos magos,mas no h ningum cuja vida tivesse decorrido no Rio sem uma entrada nas casassujas onde se enrosca a indolncia malandra dos negros e das negras 29.

    De modo que no era nenhuma novidade que a presena das religies e tradiesafricanas preocupassem, alm do contista, as autoridades policiais e judicirias e,evidentemente, eclesiticas.

    Fixando-nos to somente no item distrbio/algazarra, cujo ndice de detenes elevado, podemos observar, em primeiro lugar, que seu destaque em relao vadiagem(que tratamos num item parte) deve-se ao fato de que a ao policial indica um tipo depoliciamento ostensivo com alto poder inibidor-repressivo, porque contava com umapermanncia por dois ou trs dias no xadrez, como dissemos, cuja motivao nochegava a ser propriamente a vadiagem no sentido da resistncia de uma parte dapopulao pobre (e livre dos laos de escravido) a ingressar no mercado de trabalho.Tratava-se, portanto, de ao policial no sentido de definir comportamentos esociabilidade urbana e estabelecer o poder dos vrios grupamentos tnico-culturais esociais sobre o espao urbano. Distrbio e algazarra implicavam um dado subjetivo que

    limitava as possibilidades de reunies e de festejos espontneos (a palavra algazarra ensejaesta interpretao).

    Por outro lado, vrias prises por motivos relacionados intensa agitao polticade trabalhadores anarquistas e socialistas (e que no eram propriamente espontneas nosentido a que nos referimos acima) foram registradas como distrbioda ordem pblica,quase igualando as detenes por vadiagem. Sublinhe-se que o termo empregado noregistro foi distrbio e no agitao poltica. (somente no ano de 1890 encontramosindcios de que os detidos eram grevistas).

    Se cruzarmos as detenes por distrbio/algazarra com os indicadores deocupao e moradia registrados nos Livros da Casa de Deteno, podemos fazer algumas

    dedues importantes.

    29 Joo do Rio -As religies no Rio, Rio de Janeiro, Organizaes Simes, 1951, p. 34.

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    Tabela IV: Ocupao dos detidos no Rio de Janeiro (1890/1929)

    OCUPAO 1890 1892 1893 1894 1895 1896 1903 1904 1909 1912 1913 1914 1915 1917 1921 1924 1925 1927 1928 1929 TOTAL

    NoIdentificado

    0 0 0 0 3 1 11 5 2 4 24 1 0 0 0 0 0 0 2 5 58

    NoTrabalhador

    0 0 0 0 2 1 393 8 16 9 15 0 1 2 3 8 5 221 240 167 1091

    Trabalhador 143 655 909 458 341 752 349 739 464 96 251 62 373 485 977 163 60 275 250 327 1149

    Total Anual 143 655 909 458 346 754 753 752 482 109 290 63 374 487 980 171 65 496 492 499 9278

    Fonte: Livros da Casa de Deteno (Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro).

    Tabela V: Moradia dos detidos no Rio de Janeiro (1890/1929)

    MORADIA 1890 1892 1893 1894 1895 1896 1903 1904 1909 1912 1913 1914 1915 1917 1921 1924 1925 1927 1928 1929 totalNoConhecida

    0 1 3 7 7 7 13 23 28 17 49 2 10 13 7 16 4 145 178 113 643

    Conhecida 143 654 906 451 339 747 740 729 454 92 241 61 364 474 973 155 61 351 314 386 8635Total Anual 143 655 909 458 346 754 753 752 482 109 290 63 374 487 980 171 65 496 492 499 9278

    Fonte: Livros da Casa de Deteno (Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro).

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    Dos 9.278 detidos entre 1890 e 1929, 8.129 declararam ser trabalhadoresmencionando algum tipo de profisso, 1.092 no eram trabalhadores e 58 fichas noforam preenchidas neste campo. 8.635 declararam possuir moradia e deram o endereode onde moravam e outras referncias familiares (pai, me, esposa) 30. Temos aqui umasituao semelhante encontrada por George Rud31 que, pesquisando, dentre outrasfontes, a documentao policial na Frana, no encontrou nas fantasmticas multides dedesordeiros urbanos que povoaram o pensamento poltico europeu de meados do sculoXIX mais que simples trabalhadores, com endereo fixo e ocupao definida.

    Voltemos dcada de 1880 para efeito de comprao. Se somarmos asdetenes que envolveram distrbio e algazarra considerando o indicador vadiagemteremos um total de 1.348 do total de 1.689 no ano de 1881; 314 de 592 do ano de1889; 362 de um total de 655, em 1892; 354 de 753 detenes em 1903 e 451 das 752detenes realizadas em 1904. Se compararmos isto com os dados fornecidos pelosrelatrios de chefes de Polcia disponveis, encontraremos uma proporcionalidade bemprxima desta que estamos relatando. Os Livros da Casa de Deteno, ao qualificarem asmotivaes das detenes realizadas pela polcia, apontam para uma diferena entre arepresso vadiagemenquanto expresso da resistncia ao trabalho e algazarra, quetanto pode ter ocorrido por desordem e bebedeira (o indicador embriagues muitasvezes acompanha o resgistro da algazarra) quanto por agitao poltica. Muitas vezes,pudemos observar que os registros indicam que os detidos por algazarra eram vizinhos.Entretanto, num ou noutro caso, a ao policial encaminhava a disciplina no espaourbano, definindo a circulao e a permanncia dos vrios agentes histricos pela cidade.Foram, pois, detenes por dois ou trs dias, por causa de algazarra, ou uma briga, abebedeira, ou a manifestao poltica, realizadas fora dos espaos designados para taisocasies. O pensamento policial e a ao policial evidenciavam claramente uma maiortolerncia para a malandragem/vadiagem na Lapa e no Estcio, por exemplo, do que nossubrbios onde residiam os trabalhadores pobres. Nestes espaos destinados malandragem, observamos inclusive a heroicizao dos malandros. Em contrapartdia, nasreas reservadas para o trabalho e residncias, a malandragem fortemente condenada32.

    Devemos atentar, ainda, para a necessidade de tentar preencher algumas questeslacunares, sobretudo nos dados colhidos para o perodo compreendido entre 1910 e1930. Nesses anos, muito embora encontremos o mesmo formulrio com os mesmoscampos a serem preenchidos, h indicaes de displicncia no preenchimento do livro deregistro por parte do funcionrio encarregado (ou dos funcionrios encarregados).

    Tambm podemos especular sobre a possibilidade de a autoridade policial ter passado aexigir que a anotao do campo que registra a natureza do crime ou do delito fosse feitapelo nmero do artigo do Cdigo Penal (de 1890). Neste caso, poderamos pensar, emvez de displicncia, na incompetncia dos funcionrios que no manuseavam o cdigo.

    30No trabalhamos estes dois itens especificando o tipo de ocupao ou o local da moradia. Apenasestabelecemos a oposio trabalhador X no trabalhador e moradia X no moradia. Qualquer outro

    pesquisador interessado no estudo dos trabalhadores urbanos cariocas poder fazer uso desta fonte,uma vez que os dados sobre o tipo de ocupao e a nacionalidade dos detidos esto anotados. Paranossa pesquisa importaram apenas os totais de detidos que declararam, por exemplo, a ocupao, jque a vadiagem totalizava quase a metade, seno mais, das causas de deteno.31

    George Rud - A Mult ido na Histria, Rio de Janeiro, Campus, 1991, p. 191 (referimo -nos a Listegnrale en ordre alphabtique des inculps de juin 1848,Archives Nacionales , Paris).32 Ver novamente de nossa autoria:Discurso jurdico e Ordem Burguesa no Brasil, op. cit.

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    Esta especulao fundamenta-se no fato de que pudemos observar uma recorrncia maioraos nmeros dos artigos do Cdigo Penal a partir de 1900.

    Se a informao quanto s causas da deteno lacunar nestes primeiros anos dosculo XX, o mesmo no ocorre em relao aos outros indicadores (moradia eocupao). Interessante sublinhar que, quanto s causas da deteno, temos um nmeroalto (391 dos 454 em 1909, por exemplo) cujas causas no foram anotadas - displicnciaou incompetncia do funcionrio? A julgar pela letra e a maneira de escrever, pensamospoder tratar-se de displicncia.

    Tambm cabe especular sobre uma maior arbitrariedade da instituio policial, atal ponto que as causas da deteno no precisavam ser anotadas nas dcadas de 1910 e1920. A julgar pelas manifestaes encontradas na imprensa carioca neste mesmoperodo, as queixas desta arbitrariedade policial eram freqentes. Neste caso, a anotaoda causa da deteno podia ficar ao alvedrio do funcionrio, que decidia sobre aconvenincia de preencher ou no o campo.

    Dos 482 detidos em 1909, 454 declararam a moradia e 464 a ocupao. Em1912, dos 109 detidos, 96 tinham ocupao e 92 moradia. J neste ano, o campo dascausas da deteno completamente ignorado. No ano de 1917, o campo volta a serpreenchido: 241 foram por vadiagem; 485 tinham ocupao e 474 moradia. Em 1921, das980 detenes, 310 foram por vadiagem. Neste ano temos tambm 448 prises poroutros motivos. O que levou o funcionrio a anotar as causas destas detenes emoutros? Insistimos na displicncia e especulamos que estas prises poderiam dirigir-secontra manifestantes polticos. Mas j nesta quadra, podemos tambm especular que amaioria da populao sabia da necessidade de declarar sua ocupao. O imaginriosocial no s havia incorporado a ideologia burguesa de trabalho, quanto tambm era doconhecimento de todos que vadiagemdava cadeia. Poderia ter havido, portanto, muitadissimulao na hora de prestar informao para registro no momento de entrada naDeteno. Alis, a dissimulao constitui caracterstica fortemente presente na resistnciapopular, mormente quando trata-se de envolvimento com a polcia. Neste caso,ancoramo-nos apenas nas indicaes referentes ao local de moradia, informao que,num continuum, apresenta bastante regularidade. Qualquer fantasia que alimentasse omedo das autoridades policiais e dos moradores da cidade europia diante deste sujeitohistrico desconhecido encontra-se desmentida por uma referncia regular a endereosconhecidos, registrveis.

    Dois outros indicadores devem ser analisados para a compreenso da ao

    policial na capital federal e seus efeitos inibidor-repressivos: etnia e idade dos detidos.

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    Tempo, Rio de Janeiro, Vol. 2, n 3, 1997, pp. 106-134.

    Tabela VI: Idade dos detidos no Rio de Janeiro (1890/1929)

    IDADE 1890 1892 1893 1894 1895 1896 1903 1904 1909 1912 1913 1914 1915 1917 1921 1924 1925 1927 1928 1929 totalNoIdentificada

    0 0 1 0 0 6 11 6 3 8 30 1 6 2 5 1 0 0 1 4 85

    Outros 80 337 466 231 174 382 393 418 209 41 105 27 121 169 374 69 20 202 221 211 4250Entre 20 e 30

    anos

    63 318 442 227 172 366 349 328 270 60 155 35 247 316 601 101 45 294 270 284 4943

    Total Anual 143 655 909 458 346 754 753 752 482 109 290 63 374 487 980 171 65 496 492 499 9278

    Fonte: Livros da Casa de Deteno (Arquivo Pblico do Estado do Rio de Janeiro).

    Tabela VII: Etnia dos detidos no Rio de Janeiro (1890/1929)

    ETNIA 1890 1892 1893 1894 1895 1896 1903 1904 1909 1912 1913 1914 1915 1917 1921 1924 1925 1927 1928 1929 totalNoIdentificada

    0 1 0 0 1 1 0 1 2 6 24 1 1 0 0 1 0 0 1 6 46

    Amarela 0 0 0 0 0 0 5 1 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 7Morena 8 47 158 104 36 58 81 16 15 1 2 0 0 0 8 0 0 0 4 2 540Preta 28 104 101 54 52 131 135 162 124 41 42 12 89 88 198 18 14 87 75 74 1629Parda 18 127 80 55 55 136 187 134 72 26 54 21 106 143 254 40 11 157 170 164 2010

    Branca 89 376 570 245 202 428 345 438 268 35 168 29 178 256 520 112 40 252 242 253 5046Total Anual 143 655 909 458 346 754 753 752 482 109 290 63 374 487 980 171 65 496 492 499 9278

    Fonte: Livros da Casa de Deteno

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    Em primeiro lugar, constatamos que, diferentemente das causas da deteno quenem sempre estavam anotadas nas primeiras dcadas do sculo XX, este dois camposapresentam regularidade no preenchimento. Tomaremos, para complementar nossainterpretao, alguns dos anos enfocados para comparao.

    Entre os anos de 1890 e 1929, dos 9.278 detidos, 5.046 eram brancos e 4.186eram pretos, pardos e morenos somados; quase a metade da populao considerada. Emrelao idade, h tambm um equilbrio: 4.943 tinham entre 20 e 30 anos e 4.250tinham outras idades, contabilizadas por ns em conjunto. Este dado, por exemplo, difere,aparentemente, das observaes correntes acerca de uma tendncia universal dajuventude masculina para o banditismo e a criminalidade. Por outro lado, uma vez que ocrime poltico no era destacado da criminalidade comum, compreende-se a deteno depessoas com mais de trinta anos.

    Ainda quanto etnia, observe-se que em 1892, 376 dos 655 detidos (tambm emapenas dois meses que puderam ser observados) eram brancos, constando 278 entrepretos, pardos e morenos; 328 tinham entre 20 e 30 anos contra 337 de outras idades. Em1903, dos 753 detidos nos meses de janeiro e fevereiro, 345 eram brancos e 308 erampretos, pardos , morenos e amarelos (aparecendo pela primeira vez em nossa pesquisaeste ltimo indicador no registro); 349 tinham entre 20 e 30 anos e 393 outras idades (11fichas no tiveram este campo preenchido). No ano de 1904, nos dois meses pesquisados,dos 752 detidos, 313 no eram brancos, contra 438 brancos. Ainda em 1909, quandopesquisamos trs meses (maio, junho e julho), dos 482 detidos, 212 no eram brancos e268, brancos; 270 tinham entre 20 e 30 anos, e 209, outras idades, e trs fichas notiveram o campo anotado.

    Em 1912, encontramos 68 pretos, pardos e morenos contra 35 brancos dos 109detidos; 60 tinham entre 20 e 30 anos e 41 outras idades (sendo que oito registros noforam preenchidos). Em 1915, 195 dos 374 detidos em julho e agosto eram pretos,pardos e morenos e 178 brancos; 274 tinham entre 20 e 30 anos. Em 1917, dos 487detidos nos meses de abril, maio e junho, 231 eram pretos, pardos e morenos, e 256brancos; 316 tinham entre 20 e 30 anos. Em 1921, 460 dos 980 detidos em oito mesespesquisados eram de etnia afro-brasileira e 520, brancos; 601 tinham entre 20 e 30 anos.Em 1927, nos trs meses pesquisados, 244 dos 496 detidos no eram brancos e 252,brancos e 294 tinham entre 20 e 30 anos, enquanto 202 tinham outras idades. Notamos,tambm, o registro de vrias crianas que foram detidas das mais diferentes idades (3,4

    anos/um beb de oito meses/ meninos de oito e nove anos). Embora no tenhamos nospreocupado propriamente com o local de moradia, mas com o fato dos detidos terem ouno endereo conhecido, pudemos notar pelos registros que vrios deles eram moradoresda mesma rua, com a numerao das residncias, geralmente diferente, indicando relaesde vizinhana e possvel solidariedade poltica ou comunitria, a ser melhor pesquisada.

    A descrio acima est longa, mas procede para a fundamentao de algumasreflexes sobre a ao policial, face aos vrios grupos tnico-culturais presentes nasociedade carioca.

    Sublinhe-se que, desde a dcada de 1880 at 1920 h uma certo equilbrio entreos detidos brancos e os de origem afro-brasileira (registrados como pretos, pardos e

    morenos); somente no ano de 1912 o nmero de no brancos detidos (entre 20 e 30anos) foi quase do dobro dos brancos. Considerando que a agitao poltica (como as

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    manifestaes operrias eram registradas pela polcia) intensa ao longo dos anos queestamos enfocando, podemos explicar o referido equilbrio entre brancos e no brancosnos dados acima analisados. Quer dizer, a forte presena de imigrantes de origemeuropia na cidade do Rio de Janeiro explica a convivncia do medo branco com aquesto socialna cidade; por esta mesma razo as faixas etrias dos detidos entre 20-30 anos (universalmente tidos como propensos resistncia bandidagem) vemacompanhada equilibradamente com outras idades. No caso, a deteno por agitaopoltica engloba tambm trabalhadores casados, com mais idade. Em outro trabalho querealizamos33, trabalhando com oBoletim Policial(peridico ligado Chefia de Polciada capital federal, onde encontram-se vrios artigos sobre estrangeiros e agitaopoltica), ressaltamos a aceitao x rejeio do discurso policial em relao aosestrangeiros. Em certas circunstncias, o estrangeiro era tratado como bom trabalhador,em outras como elemento nocivo, a contaminar o dcil e passivo trabalhadornacional 34. Observe-se que ainda hoje o discurso policial usa a expresso o nacionalpara designao dos brasileiros.

    A convivncia da questo tnica com a questo social, da forma como acimanos referimos, apareceu no discurso jurdico e policial no perodo considerado.Lideranas intelectuais do pensamento jurdico-policial discorrem acerca das classesperigosas, incluindo reflexes sobre a periculosidade e as tendncias criminalidade dosbrasileiros de origem africana35. Ancorados no determinismo biolgico (dada a grandepenetrao das idias de Cesare Lombroso) e na ideologia racista de psicologia dasmultides de Gustave Le Bon __ que, na Europa, justificava a elitizao do processopoltico-decisrio__ estas lideranas impuseram-se e criou-se, no Brasil, uma ambinciapsicossocial tambm de justificativa da excludncia, sobretudo de pobres e negros, com amanuteno do poder pelas oligarquias agrrias. Entretanto, confrontados tais fatores comas detenes que de fato eram realizadas no perodo, podemos verificar que a aopolicial atingia brancos e no brancos igualmente. Como a imigrao vai ser dificultadacom a Constituio de 1934, acreditamos ser possvel, em anos posteriores, a tendnciade crescimento das detenes afetando maior quantidade dos brasileiros de origemafricana; mas isto o desenvolvimento da consulta nos Livros da Casa de Deteno nadcada de 1930 poder confirmar.

    De toda maneira, ainda que o movimento operrio pesasse nas estatsticas dasdetenes, o medo branco aparece com fortes manifestaes de subjetividade e, aoque tudo indica, a idia de que o morro pode descer, que povoa a fantasmagoria do

    imaginrio carioca hoje, tem origens histricas que no podem ser desconsideradas nosestudos sobre a cidade do Rio de Janeiro.

    (Recebido para publicao em janeiro de 1997)

    33 Gizlene Neder -Discurso Jurdico e Ordem Burguesa no Brasil, Porto Alegre, S. A. Fabris, 1995.34 Len Medeiros de Menezes - Expulso: soluo cirrgica em defesa da ordem, In Cadernos deHistria/Arrabaldes, Srie I (Colquio Cidade, Poder e Memria, organizado por Gizlene Neder), Niteri,1996, pp. 80-88.35

    Elysio de Carvalho prope em A Polcia Carioca e a Criminalidade Contempornea, op. cit., umcurrculo para a Escola de Polcia, onde aparece um curso intitulado Histria Natural dos Malfeitores,onde aparece claramente a influncia do determinismo biolgico, racista, to em voga naquela conjuntura.