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TRAVESSIAS

Revista Travessia nº 9 (2008)

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TRAVESSIAS

TRAVESSIAS

Revista de Ciências Sociais e Humanas de periodicidade anual e de sede editorial rotativa nas instituições acadêmicas ou de fomento à ciência dos países de língua portuguesa.

EDIÇÃO DO NÚMERO 9

Ministério da Ciência e Tecnologia Conselho Nacional de Dessenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq

Programa de Cooperação em Ciências Sociais para os Países de Língua Portuguesa

Endereço/Morada: Instituto Ciência Hoje Av. Venceslau Brás, 71, fundos/casa 27 – CEP: 22290-140 – Rio de Janeiro-RJ – Brasil

Editor Executivo

Renato Lessa / Iuperj (UCAM) e UFF

Editora Adjunta

Sabrina Evangelista Medeiros (EGN e UFRJ)

Conselho Editorial para o número 9

César Barreira / Universidade Federal do Ceará Francisco Carlos Palomanes Martinho / Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Peter Fry / Universidade Federal do Rio de Janeiro Sebastião Carlos Velasco e Cruz / Universidade Estadual de Campinas

Sergio Miceli / Universidade de São Paulo

Os conceitos emitidos em artigos assinados são de absoluta responsabilidade de seus autores.

Ministério da Ciência e Tecnologia Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico

TRAVESSIAS

No 9 – 2008

Rio de Janeiro, Brasil

INSTRUÇÕES AOS COLABORADORES

(1) TRAVESSIAS aceita trabalhos inéditos, sob forma de artigos e comentários de livros, sob forma de ensaios bibliográficos em Ciências Sociais. Os trabalhos deverão ser de interesse académico e social, e escritos de forma inteligível ao leitor culto; os aspectos mais técnicos e especializados deverão limitar-se ao essencial.

(2) A publicação dos trabalhos está condicionada a pareceres de membros do Conselho Edito-rial e de Avaliadores Ad Hoc – garantido o anonimato de autores e pareceristas no processo de avaliação. Eventuais sugestões de modificação de estructura ou conteúdo, por parte da Editoria, serão previamente acordadas com os autores. Não serão admitidos acréscimos ou modificações depois que os trabalhos forem entregues para composição.

(3) Os artigos devem ser apresentados via e-mail ([email protected]) acompanhados de resumos em torno de 250 palavras, em que fique clara uma síntese de propósitos, dos métodos empregados e das principais conclusões do trabalho, além de palavras-chave e dados sobre o autor (titulação acadêmica, cargo que ocupa, áreas de interesse, últimas publicações etc.).

(4) Os artigos deverão ter em torno de 30 laudas digitadas, escritas em Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5. O nome dos autores, acompanhado de grau de titulação e instituição em que actuam, deve constar na primeira página, separadamente do artigo.

(5) As recensões (resenhas) devem versar sobre livros escritos nos últimos três anos. Devem ter entre 6 e 10 páginas, Times New Roman, tamanho 12, espaço 1,5.

(6) Gráficos deverão ser acompanhados das respectivas planilhas que os originaram, com indicação das unidades em que se expressam os valores e as fontes correspondentes.

(7) As notas deverão ser de natureza substantiva, restringindo-se a comentários adicionais ao texto. Referências bibliográficas, quando necessárias, deverão aparecer no próprio texto, com a menção do último sobrenome do autor, acompanhado do ano da publicação e do número da página, quando necessário (GIL, 1984:19). Ao final do artigo deverão ser listadas as referências bibliográficas, em ordem alfabética, com a observância dos seguintes critérios:

• Para livro

Exemplo: GIL, Fernando (1984), Mimésis e Negação. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

• Para artigo em revista

Exemplo: CRUZ E SILVA, Teresa. (2004), “Identidade Religiosa e construção da democracia em Moçambique: o caso da Igreja Metodista Unida de Moçambique”. TRAVESSIAS, no 4/5, pp. 223-235.

• Para citação de artigo eletrônico

Exemplo: BRANDÃO, Gildo Marçal. “Linhagens do Pensamento Político Brasileiro”. DADOS [online]. 2005, vol. 48, no1 [dia-mês-ano da consulta], pp. 231-269. Disponível na Internet: <http://www.scielo.br/dados>. ISSN 0011-5258 [páginas e ISSN facultativos].

(8) Com a publicação do artigo ou recensão, o autor receberá cinco exemplares da revista.

Sumário

7

Apresentação

9

Gêmeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos: uma Teoria Moçambicana de Poder Político

Paulo Granjo

35

Militância Política e Religiosa: Representações Paradoxais de Pentecostais no Processo de Ocupação de Terra

Fábio Alves Ferreira

61

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal: Relações Interétnicas de Acomodação e Resistência

Manuel Carlos Silva

95

O Controle Democrático das Práticas Policiais

César Barreira

107

O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização na Análise Sociológica: Debate e Crítica

Alessandro André Leme

133

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal: a Questão Identitária

Francisco Avelino Carvalho

157

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada

Ludmila Ribeiro

187

Governamentalidade e Anarqueologia

Nildo Avelino

209

Sociologia de Cobras e Latão: Reflexões sobre a Produção de Conhecimento

das Sociedades Africanas

João Feijó

227

Ensaio Bibliográfico

As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias: Leituras da Obra de José de Souza Martins e Aihwa Ong.

Letícia de Faria Ferreira

Apresentação

Y

revista TRAVESSIAS, criada no V Congresso Luso Afro Brasileiro em Ciências Sociais (Maputo, 1998), é regular-mente editada desde 2000. Naquela altura, coube ao Iu-

perj a edição do primeiro número e do volume duplo 2/3. As edições seguintes ficaram a cargo do Instituto de Ciências Sociais, da Univer-sidade de Lisboa, e do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. No IX Congresso Luso Afro Brasileiro em Ciências Sociais, havido em Luanda, em 2006, por decisão da assembléia de conclusão, a responsabilidade editorial da revista recaiu em mãos brasileiras.

Desta feita, coube ao Programa de Cooperação em Ciências Sociais para os Países de Língua Portuguesa (Ciências Sociais/CPLP), implantado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e vinculado ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a produção e a edição da revista (números 8 e 9). O Programa foi criado em 2004, com a finalidade de apoiar ações – investigação, mobilidade de professores e investigadores e eventos científicos -, no âmbito das ciências sociais, que envolvam membros da comunidade de cientistas sociais dos países lusófonos. A responsabilidade pela edição da revista foi considerada pelo Programa como tarefa de grande relevância. TRAVESSIAS possui uma identidade editorial singular, por ser a única publicação acadêmica internacional, no campo das ciências sociais, no espaço comum dos países de língua portuguesa.

O presente número de TRAVESSIAS foi inteiramente composto por textos encaminhados à redação, a partir da chamada de artigos divul-gada no segundo semestre de 2008, pelas principais associações científicas da área, no espaço lusófono. Os textos foram selecionados pela Comissão Editorial da revista, que contou com o apoio de avaliadores externos.

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Foi significativa a remessa de artigos – cerca de 40 –, o que tornou difícil a tarefa de selecionar um conjunto publicável em apenas um número de TRAVESSIAS. A Comissão Editorial agradece o empenho dos colegas que se dispuseram a prestigiar a revista e está convencida de seu potencial de centralidade, para a comunidade de ciências sociais de nossos países, assim como de sua viabilidade e consistência intelectuais.

A expectativa dos responsáveis pela edição de TRAVESSIAS (números 8 e 9) é a de que este veículo se consolide como patrimônio comum da comunidade de cientistas sociais dos países lusófonos.

Renato LessaEditor Executivo de TRAVESSIAS (números 8 e 9)

Presidente do Comitê Gestor do Programa Ciências Sociais/CPLP (MCT/CNPq)

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos: uma Teoria Moçambicana do Poder Político

Paulo Granjo

Instituto de Ciências Sociais – Universidade de Lisboa

Resumo

À imagem de antigas referências etnográficas, os gémeos e os albinos são vistos, no sul de Moçambique, como o resultado e causa de calamidades cósmicas. Eles foram atingidos por raios dentro do útero materno e secarão o solo, a menos que sejam enterrados sob condi-ções especiais, ou simplesmente “desapareçam” da face da Terra. Os condicionalismos impostos às suas vidas e mortes foram extrapolados, nas décadas mais recentes, para conceber uma categoria inesperada de pessoas: os prisioneiros políticos que desapareceram das cadeias coloniais, ou que foram enviados pelo estado pós-independência para “Campos de Reeducação”. No entanto, não foi esse o caso dos «improdutivos» urbanos que desapareceram sob exílio interno na região do Niassa. As crenças acerca dos gémeos e albinos foram utilizadas para expressar uma declaração moral local acerca do poder politico: é socialmente ameaçador fazer perigar o poder estabelecido; mas é ilícito, para um poder legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas que tem sob sua responsabilidade.

Palavras-chave: Moçambique – Gémeos – Albinos – Presos políticos – Ope-ração Produção – Teorias políticas populares.

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Alguns anos atrás, visitei Martins Matsolo, o chefe hereditário da região onde foi construída a fundição de alumínio Mozal, perto da capital de Moçambique. Queria auscultá-lo acerca de uma ideia que se estava a espalhar entre os operários dessa fábrica: que, durante a cerimónia que precedeu a sua construção,1 ele tinha proibido a morte de cobras na área fabril, ou iriam ocorrer acidentes.

Ele disse-me que não era verdade e ficámos a discutir as razões para esse boato, que deriva da crença local em cobras possuídas por espíritos (GRANJO, 2008). Mas, como se espera que essas “cobras es-peciais” vivem em lugares com características também elas especiais, a nossa conversa levou-me a falar do peculiar cemitério da Matola, junto da fundição (imagem 1). «É um mau cemitério, não é? Quero dizer, mesmo junto ao rio, que até transborda…», perguntei.

Ele permaneceu algum tempo em silêncio e, como tantas vezes acontece quando fazemos a um moçambicano mais velho uma pergunta melindrosa, não me respondeu directamente, mas através de uma história sem aparente relação com o assunto, embora fácil de compreender por parte de alguém que dominasse as referências que a ligam à questão.

- Sim... No tempo colonial, a PIDE2 até costumava esconder ali os prisioneiros que matavam na prisão deles. Não era bem ali, mas mesmo ao lado, mais junto da água.

Imagem 1. Cemitério da Matola, junto do rio com o mesmo nome, de uma salina e da Mozal.

(1) Trata-se do “kuphalha”, uma invocação dos antepassados na qual os líderes dos seus descendentes os informam acerca de um plano dos vivos, para que pedem a sua autorização e protecção (Granjo, 2005). Os dados para este artigo foram, de facto, recolhidos durante o meu trabalho de campo para as pesquisas «Apropriação social do perigo e da tecnologia industrial – perspectiva comparativa Moçambique/Portugal», «”Tradição”, modernidade e direitos familiares em Moçambique – negociação e conflito em torno da Lei da Família» e «Nyangas e hospitais – lógicas e práticas curativas moçambicanas», todas elas financiadas pela Fundação para a Ciência e Tecnologia Agradeço a João Pina Cabral, José Fialho Feliciano e Philip Peek, pela sua leitura crítica do manuscrito.

(2) Polícia política portuguesa durante a ditadura de 1926/1974, foi renomeada DGS nos últimos anos do regime.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 11

Foi a primeira vez que ouvi falar de uma ligação simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos. Isto porque, sinteticamente, os gémeos devem ser enterrados em solo húmido ou secarão a terra; os albinos (que têm a mesma origem cósmica) supostamente não morrem, mas desaparecem; e os prisioneiros desaparecidos eram enterrados em terra molhada.

É desrespeitoso enterrar pessoas “normais” em solo molhado, porque isso corresponde a tratá-los como «mortos que secam a terra» – e essa era a razão da minha pergunta. Ao contar-me aquela história, o senhor Matsolo concordou comigo e enfatizou a importância do assunto que eu tinha levantado; mas, ao fazê-lo da forma que o fez, ensinou-me algo de novo.

Esse novo assunto – a equivalência simbólica que mencionei e o sentido que lhe subjaz – é a razão deste artigo.

De facto, existem várias referências etnográficas às restrições so-fridas em Moçambique pelos gémeos, albinos e suas mães, e até algumas interpretações antropológicas acerca delas. Se as compararmos entre si e falarmos com as pessoas hoje em dia, parece que essas restrições não mudaram muito nos últimos 100 anos, como tão pouco mudaram as excepções geográficas onde, pelo contrário, os gémeos recebem uma valoração positiva.

No entanto, essas regras resilientes e os conceitos que lhes sub-jazem eram suficientemente pertinentes para terem sido seleccionadas como uma linguagem para falar e pensar acerca dos prisioneiros políticos desaparecidos, tanto durante o colonialismo como após a independên-cia – embora não, conforme veremos, para referir os vários milhares de pessoas que, na década de 1980, foram expulsas das cidades para a remota província do Niassa, acusadas de serem «improdutivas».

A equivalência com gémeos e albinos foi empregue apenas por esses prisioneiros terem desaparecido? Durante algum tempo, pensei que essa explicação era suficiente – pelo menos se lhe adicionássemos as restrições e estigma que os prisioneiros políticos sofreram. Contudo, foram muito mais numerosos os deportados que desapareceram no Niassa, também eles sofreram restrições e estigmatização, mas a equi-valência que mencionei não é utilizada no seu caso.

Irei por isso sugerir que a equivalência simbólica entre gémeos, albinos e prisioneiros políticos desaparecidos não é apenas formal; ela expressa um conceito das relações de poder político em que prisioneiros “subversivos”, mesmo tratando-se de lutadores pela independência, são

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avaliados como anormalidades sociais negativas e ameaçadoras – ao contrário das vítimas de exílio doméstico por decisão estatal, vista como um injusto abuso de poder. No seu conjunto, esta duplicidade revela aquilo a que podíamos chamar um contrato social (ROUS-SEAU, 1974 [1762]) que serve de base à relação da população com o poder político.

Gémeos e oRdem CósmiCa

Segundo os dados proporcionados por Henry Junod (1996 [1912]: 266-272) acerca do sul de Moçambique, a relação entre os gémeos, a chuva e os enterros em solo molhado já era considerada consensual e antiga em finais do Séc. XIX3, sendo objecto de complexos rituais caso a seca ameaçasse uma determinada região.

Quando tal acontecia, a razão era sobretudo atribuída ao anterior enterro em solo seco de gémeos, de abortos ou de bebés falecidos antes da sua apresentação à lua (que marca a sua existência social e integração na comunidade), sendo o primeiro passo para obter chuva descobrir as suas campas e corrigir a situação. A par de rituais de purificação das suas mães (caso elas tivessem escondido esses enterros incorrectos), os ossos dessas crianças eram exumados para um local húmido ou lama-cento e as suas campas originais eram molhadas com água. Esta acção era desempenhada por todas as mulheres da comunidade, caminhando atrás de uma mãe de gémeos.

Na sua época, diz Junod (op cit: 371-378), o infanticídio do gé-meo mais débil já não era praticado, como nos “tempos antigos”, mas tanto os gémeos como as suas mães eram objecto de especiais restrições e controlo social.

No dia seguinte ao seu nascimento, ninguém podia trabalhar, ou as colheitas secariam. Todas as mulheres da aldeia deviam partir em direcção aos quatro pontos cardeais, cantando “que a chuva caia” e regressando com água que era despejada sobre a mãe e os gémeos. A sua cabana era queimada e passavam a viver numa outra, fora da aldeia, usando objectos em que mais ninguém podia tocar e recolhendo a água de um local exclusivo. Os gémeos não eram apresentados à lua e começavam a ser alimentados com leite de cabra

(3) Embora o seu livro The Life of a South African Tribe fosse publicado em 1912, Junod começou a escrevê-lo em 1898, com base em dados recolhidos entre 1889 e 1895; foi recolhido material extra em 1907 (HARRIES, 2007), mas nada indica que fosse esse o caso daquilo que o autor diz acerca dos gémeos.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 13

mal a sua mãe voltasse a ter menstruação. Só regressariam à aldeia quando a mulher desse à luz um bebé “normal” – o que só seria possível depois de ela seduzir consecutivamente quatro homens que desconhecessem a sua situação, a quem passaria a sua impureza através da prática sexual, provocando-lhes a morte. Mesmo após o regresso à aldeia, os gémeos eram proibidos de brincar com outras crianças, eram apontados como exemplos de mau carácter e, tal como as suas mães, eram objecto de especiais protecções rituais quando assistiam a cerimónias funerárias.

De acordo com o autor, muitas destas restrições tinham se-melhanças com as impostas às viúvas. Eram mais exigentes, duras e longas porque, se o nascimento de gémeos era identificado com a morte, tinha também uma significância cósmica – os gémeos eram chamados «filhos do céu» e a sua mãe era referida como a pessoa que fez o céu, que o carregou ou que a ele subiu. Contudo, os aspectos ameaçadores que derivavam dessa familiaridade cósmica podiam ser socialmente úteis em momentos de crise: nos mais fortes ritu-ais contra a seca, era necessário sentar uma mãe de gémeos numa cova e cobri-la de água até ao peito e, se relâmpagos assustadores se aproximassem da aldeia, só um gémeo conseguiria pedir à tem-pestade para se afastar.

Como seria de esperar, Junod interpreta essas práticas e crenças, que ouviu de forma fragmentar, de acordo com as ferramentas teóricas à sua disposição – utilizando a tipologia de princípios mágicos elaborada por Frazer (1922 [1890]). No entanto, Feliciano (1998) pôde fornecer-nos mais detalhes e uma interpretação global da posição ocupada pelos gémeos no sul de Moçambique.

Para além dos dados fornecidos pelo seu predecessor, aponta outras práticas dos finais da década de 1970 que, conforme pude verificar, ainda estão em uso actualmente. Quando um gémeo adoece, é proibido chorar, dar-lhe remédios ou perguntar-lhe se está melhor; pelo contrário, deverá ser insultado com frases como «Quando é que morre?», ou «De qualquer maneira, vai ser comido pelos peixes». Nos funerais, os gémeos devem manter-se à distância das outras pessoas. Quando um deles morre, é proibido chorar e deverão ser colocadas cinzas na fontanela do sobrevivente, para evitar que desmaie. O gémeo sobrevivente não pode tomar medicamentos, ou morrerá, e não pode ir ao funeral, ou desmaiará e cairá dentro da campa (FELICIANO, 1998: 334-336).

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Pude também ouvir e observar que o gémeo sobrevivente não pode verbalizar a morte do irmão ou irmã. Pelo contrário, deve agir como se o falecido estivesse nalgum lugar longínquo e, se al-guém que não saiba da morte lhe pedir notícias do defunto, deverá mentir, inventando alguma viagem ou dizendo que o finado se mu-dou para outro país ou província. Tal como muitas vezes acontece, várias pessoas foram incapazes de me apresentar uma razão clara para este comportamento, limitando-se a dizer que seria perigoso agir de outra forma; outras pessoas, contudo, explicaram-me que falar acerca da morte do outro gémeo traria a morte ao sobrevivente. Na atitude e nas palavras deste último, então, o gémeo morto limitou-se a desaparecer.

A característica dos gémeos que aqui mais nos interessa, no en-tanto, é o facto de eles terem que ser enterrados em solo molhado, sob pena de, tal como acontece com outras pessoas e nascimentos anormais (ver FELICIANO, 1998: 326-352), secarem a terra.

A razão desta prática e das restantes restrições impostas aos gémeos no sul de Moçambique torna-se mais clara se atentarmos na análise de Feliciano (op cit: 305-308) acerca do sistema simbólico que é localmente dominante. Em síntese, o autor sustenta que todos os fenómenos pertinentes de natureza social ou cósmica são “tradicional-mente” concebidos de acordo com um conjunto de diferentes códigos, com particular relevância para o sexual, o térmico e o culinário. No entanto, esses códigos são isomorfos e cada um deles pode ser usado para representar analogicamente (ou mesmo para dirigir a representação de) fenómenos que pertencem ao âmbito de outro código – o que, aliás, acontece de forma regular.

Neste quadro, a reprodução humana é análoga à interacção de um par incubador fogo/água e o seu resultado bem sucedido, o bebé vivo, é representado como sendo água (que pode ou não resultar de uma tempestade) e, tal como a água, os bebés normais propiciam a fertilidade global. Só provisoriamente, até à cicatrização do umbigo e ao fim do sangramento da parturiente, o bebé e a sua mãe são conside-rados «quentes». No entanto, de um aborto ou de um bebé que morre enquanto está quente, resulta um desequilíbrio térmico global que exige o enterro do cadáver num local húmido, ou a terra secará.

As analogias e substituições mútuas entre diferentes códigos vão, contudo, ainda mais longe: «se o raio, fogo que seca a terra, é como o aborto, sangue expulso que queima o bebé, e o aborto seca a terra,

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 15

como se fosse um raio; então o raio queima os bebés como se fosse um aborto.» (FELICIANO, 1998: 310)

Este ponto é crucial porque, embora também existam hoje em dia outras hipóteses populares,4 o nascimento de gémeos é corren-temente atribuído, tal como o nascimento de albinos, a um acidente cósmico. Ambos foram atingidos por raios dentro do útero materno, com consequências um pouco diferentes: os gémeos foram partidos em dois e os albinos foram queimados. É por isso que os gémeos são chamados «filhos do céu» e são eficientes interlocutores com as tem-pestades, e que os albinos eram chamados em língua ronga qhlandlati («carvão de raio»), uma palavra que muitos falantes adultos conhecem mas evitam utilizar, devido à sua carga pejorativa.

Entretanto, a interacção entre os códigos sexual e térmico clarifica um outro aspecto: devido à sua origem, os gémeos são (tal como os albinos) raios sem chuva; ao contrário dos outros bebés, nunca deixam de ser quentes, com as consequências que tal acarreta. Para além dos perigos para si próprios que derivam dessa condição, propiciam a secura e infertilidade, a desarmonia social e mesmo a doença – que é nalguns casos, normalmente relacionados com a se-xualidade, atribuída a uma situação de calor interior chamada kuhisa. Em suma, são ameaças socio-cósmicas.

É este o quadro geral de referências relativamente aos gémeos no sul de Moçambique. Para além delas, contudo, Junod (op cit: 272) menciona en passant um detalhe revelador de que, já há mais de um século atrás, as características atribuídas aos gémeos e restantes “secadores de terra” podiam ser extrapoladas para outros grupos de pessoas ameaçadoras, e ser ligadas ao destino que era dado aos seus cadáveres. De facto, dizia-se que chovia tempestuosamente sempre que as pessoas se juntavam para apanhar os barbos nalgumas lagoas, que a estação seca tinha transformado em lamaçais. Isto acontecia porque, no passado, tinham ali ocorrido batalhas e os cadáveres dos inimigos tinham sido atirados para a água.

Mas porque razão se parte do princípio, tantos anos depois, que também os prisioneiros políticos que desapareceram foram atirados para a água, ou sepultados em terra molhada?

(4) Pude ouvir duas delas em contexto urbano, de pessoas com níveis de escolaridade elevados: (1) uma mulher terá gémeos se a sua xará (a pessoa de quem herdou o nome) teve gémeos; (2) tornar-se mãe de gémeos é heredi-tário. Contudo, não só estas novas hipóteses populares torneiam a razão da própria existência de gémeos, como se verifica que os casos reais de nascimentos de gémeos em gerações sucessivas são, pelo contrário, encarados correntemente como um acontecimento estranho e excepcional, que exige uma explicação particular.

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albinos e PRisioneiRos desaPaReCidos

A ligação entre gémeos e prisioneiros desaparecidos, ambos supostamente sepultados em solo molhado, é de facto fornecida pelos albinos (imagem 2).

Acerca da crença local no desaparecimento dos albinos, João Pina Cabral (2002) enfatizou o seu estatuto intersticial, nem “negro” nem “branco”, sugerindo que eles «não morrem» porque supostamente não são enterrados, e que essa recusa de os ligar à terra significa uma recusa de pertença, numa sociedade em que pertencer é primariamente marcado pela divisão “negro”/”branco”.

Podemos de facto dizer que a actual relevância da ambiguidade “racial” dos albinos é um aspecto evidente da sua situação e do inte-resse que despertam as representações acerca deles. Mas é apenas uma pequena parte dessas representações e, muito provavelmente, não é a chave para as compreender.

Numa sociedade como a moçambicana, em que a “raça” é vista como uma realidade biológica e não como uma construção socio-ideológica, e em que a cor da pele e as “misturas rácicas” detectáveis servem de base a diferentes comportamentos para com as pessoas, não se podem ignorar as questões identitárias e hierárquicas levantadas por uma pessoa “negra” com pele “branca”. É normal que um conjunto polissémico de crenças, como este que envolve os albinos, seja utilizado para expressar essas questões. Mas não deveremos ignorar, tão pouco, que a relevância hierárquica da cor da pele é historicamente recente, e que as actuais representações acerca dos albinos são demasiado comple-xas para derivarem apenas da ambiguidade “rácica” – embora também sejam capazes de a representar.

Deveremos, por exemplo, recordar que apenas em meados do séc. XIX o primeiro imperador de Gaza5 viu, nas suas próprias pala-vras, um «branco branco» (por contraste com os “brancos” luso-indianos que costumavam comerciar no interior de Moçambique), e que esse homem era uma visita convidada a entrar no kraal real, de forma alguma uma pessoa com precedência hierárquica sobre a população

(5) Gaza era um estado do séc. XIX que ocupava grande parte do sul e centro de Moçambique, na sequência da invasão da região por um grupo guerreiro de origem Zulu chamado vaNguni, que por sua vez tinha sido empurrado dos seus territórios anteriores pelas guerras de conquista promovidas pelo rei Chaka. A sua der-rota pelos portugueses, em 1895, marca o início da ocupação colonial efectiva do interior sul de Moçambique (veja-se, por exemplo, CLARENCE-SMITH 1990 [1985], PÉLISSIER 1994, LIESEGANG 1986a, VILHENA 1996, ou NEVES 1987 [1878]). Kraal (“curral”) era a designação local das residências dos reis, juntamente com as suas cortes e gado.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 17

e autoridades locais (NEVES, 1987 [1878]). Claro que os “brancos” eram conhecidos muito antes disso, em torno das áreas limitadas onde se tinham estabelecido, mas salvo excepções regionais não ocupavam na maioria dos casos uma posição dominante, especialmente no sul de Moçambique. Por exemplo, o Governador de Lourenço Marques6 era considerado pelo rei local, em 1833, um chefe subordinado que lhe devia tributo e o argumento para atacar a sua fortaleza e o matar foi a sua insubordinação (ver LIESEGANG, 1986).

É óbvio que a relevância social da “brancura” de pele durante os tempos coloniais (1895/1975), e depois deles, é muito mais recente que a anomalia representada pelos albinos. Mas é também previsível e plausível que essa relevância seja, igualmente, muito mais recente do que a necessidade social de interpretar e explicar a excepção que os albinos constituem – uma explicação pertinente, mesmo para pessoas que pensassem ter toda a humanidade a pele castanha.

Curiosamente, Henry Junod não menciona explicitamente os albinos no seu detalhado livro Usos e Costumes dos Bantu, quando lida com as ideias dos indígenas «relativas às diferentes raças humanas» (JUNOD, 1996 [1912]: 298-300). Parece, então, que nesse tempo os albinos não lhe tinham sido apresentados como uma questão rácica.

Mas penso que de facto fala acerca deles, sem o notar, quando discute a origem da palavra valungo para designar “homens brancos” (idem: ibidem). Junod nega que a etimologia do termo venha de um verbo zulu que significa “ser justo” e sugere a palavra local valungwana, que traduz por “habitantes do céu”, especulando que tal designação viria provavelmente de alguma mitologia esquecida acerca do “homem branco”. Contudo, acreditava-se que os portugueses agora dominantes7 vinham do mar, não do céu, e os gémeos eram (e ainda são) referidos como «filhos do céu».

Embora Junod nunca tenha realmente descodificado o sentido desta última designação celestial, esse sentido era claro na informação recolhida por Feliciano em finais da década de 1970 e que eu próprio pude ouvir cerca de 30 anos depois: conforme antes mencionei, os gémeos e os albinos são filhos do céu porque, independentemente da sua concepção terrestre, receberam a sua condição excepcional ao serem

(6) Actual capital do país, Maputo. Na altura, era apenas um presídio e um porto, rodeados de algumas casas, armazéns e paliçada. A capital da África Oriental Portuguesa era então na ilha de Moçambique, mais a norte.

(7) Como referi na nota 3, os dados para o livro de Junod foram recolhidos em dois períodos: de 1889 a 1895 (antes da derrota do império de Gaza) e em 1907 (sob efectiva dominação colonial portuguesa). Os exemplos apresentados no mencionado sub-capítulo mostram que os seus dados são de 1907.

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atingidos por um raio dentro do útero materno. Os gémeos foram fendidos em dois mas os albinos não, apenas tendo sido queimados e, com isso, perdido a cor da sua pele.

No entanto, ambos alcançaram, com esse incidente, uma relação próxima e privilegiada com os fenómenos celestes. Uma relação que, conforme também já mencionei, é ameaçadora da ordem e da fecun-didade pois, no quadro simbólico em que está integrada, os gémeos e os albinos são simultaneamente “demasiado quentes” e “uma trovoada sem chuva”. Devido a essas características, carregam em si o potencial para a desordem, para a doença e para secar o céu e a terra.

Uma das consequências da origem comum e celeste dos gémeos e albinos é que, se Junod tinha razão acerca da etimologia, o mais provável é que os “brancos” tivessem sido nomeados metaforicamente a partir dos albinos (com um sentido de “caras pálidas”), com base em prévias crenças acerca destes últimos. A ser assim, os albinos foram originalmente a referência para classificar os “brancos”, e não o contrário.

Mas, mais importante para o assunto que temos entre mãos, os albinos e os gémeos são simbolicamente equivalentes. Os albinos são vistos como gémeos incompletos que, ainda mais que estes últimos, carregam em si o poder destrutivo do raio, que nem foi capaz de os fen-der a meio – e, devido a isso, também carregam maiores consequências ameaçadoras, para a sociedade e para o cosmos, do que os gémeos.

Sugiro que é devido a essa condição superlativamente ameaçadora que não é suposto enterrar os albinos em lugares e circunstâncias especiais, à imagem do que acontece com os gémeos, mas não os enterrar de todo. É por isso, então, que é suposto eles não morrerem, mas desaparecerem.

É claro que os albinos morrem e são enterrados. Alguns dos seus parentes mais próximos cumprem esse dever em segredo, seguindo os

Imagem 2. Relações simbólicas entre gémeos, albinos, prisioneiros políticos e “improdutivos”.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 19

procedimentos prescritos para os gémeos e escondendo a localização da campa. Ao fazê-lo, protegem quer a segurança cósmica quer as crenças da comunidade:8 os albinos continuam a desaparecer, porque ninguém pode afirmar que assistiu ao funeral de um deles.

Tal como acontece com os albinos, muitos prisioneiros políticos, quer antes quer depois da independência, desapareceram da vista das suas comunidades e das pessoas que os conheciam. A maioria realmente morreu, outros estabeleceram-se nas regiões onde foram encarcerados, quando terminou a sua detenção. Também vários guerrilheiros do movi-mento anti-colonial (Frelimo) foram mortos pelas tropas ou pela polícia política portuguesa (PIDE/DGS), após a sua captura e interrogatório.

Já mencionei uma história acerca do que aconteceu a alguns destes resistentes anti-coloniais desaparecidos: o seu enterro clandestino pela PIDE/DGS, junto à água do rio, perto do actual cemitério da Matola. Escrevi “história” porque, de facto, não há evidências de que tal tenha acontecido naquele local, que aliás seria uma estranha escolha para sepultar pessoas em segredo.

Dalila Mateus (2004) fornece-nos uma outra história acerca da ocultação dos cadáveres de resistentes em lugares molhados. Ouviu dizer na praia do Tofinho, perto da cidade de Inhambane, que a PIDE/DGS costumava ali atirar ao mar os cadáveres das pessoas que matava, para que fossem comidos por tubarões. Esta informação popular parece ser, de novo, uma lenda significativa, pois não existem naquela área tubarões comedores de homens e, para além disso, a praia sofreu uma enorme erosão nas últimas décadas – pelo que aquilo que parece muito fácil actualmente teria sido muito difícil de fazer há 35 ou 45 anos atrás.

Ouvi contudo, no mesmo local, uma variante dessa história, apontando agora para diversas furnas nas rochas que conduzem a ca-vernas subaquáticas. Nesta versão, a analogia com a sepultura de gémeos é ainda mais directa pois, embora os corpos fossem mandados à água, eram simultaneamente atirados para dentro da terra.

Há ainda uma outra história corrente acerca da morte e mani-pulação de cadáveres dos resistentes e guerrilheiros. Diz-se que, durante

(8) Também na vizinha Tanzânia não é suposto que os albinos morram. Mas, paradoxalmente, partes dos seus corpos são procuradas para efeitos de feitiçaria de enriquecimento, visto que o enriquecimento pessoal é visto como algo que seca a riqueza à sua volta. Por essa razão e por ser desconhecida a localização das suas campas, pelo menos 19 albinos foram mortos e mutilados post mortem, em 2007 (GETTLEMAN, 2008). Também em Moçambique, os mais poderosos amuletos e tratamentos mágicos para obter e manter riqueza e poder exigem partes de corpos humanos mas, tanto quanto sei, não especificamente de albinos. Isto pode contudo mudar em breve, devido ao ocorrido na Tanzânia e à habitual rapidez com que novas técnicas mágicas se espalham na região. Os dados acerca dos procedimentos funerários com albinos resultam de uma comunicação pessoal de Danúbio Lihahe.

Travessias 200820

o transporte em helicóptero de prisioneiros políticos até Lourenço Marques, a PIDE/DGS e as tropas portuguesas costumavam atirá-los ao mar, longe da costa. Se não é de excluir que isso possa ter acontecido, relatos fidedignos de antigos membros das tropas portuguesas, também eles horrorosos, contam uma história significativamente diferente. Alguns comandantes militares e agentes da PIDE/DGS costumavam, de facto, atirar guerrilheiros de helicópteros, quando pensavam que não iriam obter mais informações deles; mas isto era feito em terra firme e os cadáveres das vítimas eram deixados insepultos. Um dos agentes costumava até gritar sarcasticamente, nessas ocasiões: «Dizes que a terra é tua, vai ter com ela!»9

Assim, naquilo que parece ser uma reinterpretação de práticas reais que não envolviam água, as narrativas populares acerca do destino dado aos cadáveres dos resistentes independentistas desaparecidos colocam-nos sistematicamente em ambientes molhados. Essas narrativas tanto podem seguir uma analogia directa com os enterros de gémeos ou ir ainda um pouco mais longe, colocando os corpos dentro de água, em vez de sob terra molhada – tal como os albinos “vão um pouco mais longe” que os gémeos na ameaça que representam e nos constrangi-mentos impostos às suas mortes.

No entanto, esta ligação simbólica entre prisioneiros desapareci-dos, gémeos e albinos continua após a independência.

Cronologicamente, o primeiro caso que me foi mencionado refere-se a um motim de ex-guerrilheiros, pouco depois da indepen-dência. Conta-se que os rebeldes foram dominados e levados para a ilha da Xefina (situada perto da costa, na baía de Maputo, e local da tentativa de fuga do Governador em 1833), onde foram fuzilados e lançados ao mar. Até ao momento dos fuzilamentos, trata-se de factos históricos bem conhecidos, mas não pude obter qualquer confirmação acerca do que realmente aconteceu aos cadáveres.

A ilha tornou-se depois o local de um Campo de Reeducação, para pessoas que o regime considerava “comprometidas com o colo-nialismo”, “reaccionárias” ou ideologicamente heterodoxas. Acerca do que aconteceu nesta fase, é vox populi que os prisioneiros lá falecidos foram igualmente lançados à água. Contudo, um antigo prisioneiro desse campo negou a veracidade dessa história durante uma conversa comigo, chamando-lhe «um mito».

(9) Comunicação pessoal de três ex-militares portugueses (dois deles conscritos) que testemunharam este procedimento e desejam manter o anonimato.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 21

Vários outros campos de reeducação foram subsequentemente cons-truídos, sobretudo no interior e longe de Maputo. Pude ouvir acerca deles, em várias histórias contadas por pessoas que nunca lá estiveram, que as campas dos prisioneiros eram cavadas na margem dos rios. Em-bora muitos campos fossem de facto construídos junto de rios, devido às necessidades de abastecimento de água, nunca alguém que lá tenha realmente estado me confirmou esses procedimentos funerários. Pelo contrário, quatro antigos prisioneiros disseram-me que nunca viram tal acontecer e que, nos campos onde estiveram presos, as margens dos rios eram usadas para culturas agrícolas.

Também existem narrativas populares acerca de pessoas que ten-taram fugir dos campos de reeducação e não conseguiram regressar a casa, desaparecendo pelo caminho. Pude ouvir seis dessas histórias e todas elas tinham um leit motiv similar: o fugitivo morreu ao tentar atravessar um rio, onde se afogou ou foi comido por crocodilos – o protótipo de predador aquático nas zonas de interior.

Portanto, no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos no perí-odo pós-independência, as narrativas populares colocam-nos sistematica-mente – tal como acontece com os resistentes anti-coloniais desaparecidos – morrendo na água, sendo comidos por predadores aquáticos, ou sendo sepultados em solo molhado ou na própria água. E isto acontece, também, independentemente do conhecimento factual de eventos reais.

Esta última característica reforça a significância simbólica de tais histórias. Mas qual é o sentido das equivalências entre prisioneiros desaparecidos, gémeos e albinos que elas enfatizam?

Se tomássemos apenas em consideração estes dados, pareceria que as velhas crenças acerca de gémeos e albinos são usadas para mencionar prisioneiros políticos desaparecidos apenas para destacar o facto de eles terem desaparecido. No entanto, existe um outro grupo conspícuo de pessoas que também foram presas, levadas para longe das suas comu-nidades e famílias e detidas em terras distantes, de onde muitas delas nunca regressaram, e essas crenças não são usadas para falar delas.

subveRsivos e vítimas

Em Maio de 1983, ao informar o país acerca dos resultados do 4º Congresso da Frelimo, o Presidente Samora Machel anunciou que uma das decisões era «limpar as cidades de vadios, marginais, prostitutas e to-dos aqueles que não trabalham». Nas palavras de Gita Honwana (1984: 3),

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«Assim se iniciou a grandiosa operação pela produção, contra a fome e o de-semprego, contra a marginalidade e a criminalidade, pela dignidade do Homem Moçambicano; uma operação que é parte integrante da batalha económica que hoje travamos; uma operação que está sendo uma escola em que também a Jus-tiça através dos seus Tribunais, através da actuação dos seus Juízes, foi aprender uma lição de legalidade.»

Para a população comum, contudo, era difícil reconhecer sob esta retórica gloriosa os acontecimentos reais que estavam a viver.

Aquilo que recordam e mencionam são as constantes rusgas e postos de controlo, impostos pela polícia e pelas milícias oficiais junto das paragens de autocarro e nas áreas residenciais, as pessoas que não traziam no bolso o bilhete de identidade ou o cartão de trabalho a serem levadas para o Niassa antes que as suas famílias tivessem oportu-nidade de intervir, as mães solteiras sendo deportadas como prostitutas, os desempregados sendo tratados como criminosos por um estado que era dono da economia mas não lhes conseguia proporcionar trabalho, a humilhação, a dor, o desamparo e a amargura. Afinal, as pessoas lem-bram e sublinham as famílias separadas e destruídas, o trabalho forçado, os parentes desaparecidos para sempre, o abuso de poder sobre pessoas normais, sem que nada de positivo tivesse resultado de tudo isto. Lem-bram e sublinham, também, o aproveitamento do ambiente de delação e depuração para levar a cabo vinganças pessoais.

Imagem 3. Julgamento de uma mãe, durante a Operação Produção (foto Justiça Popular).

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Quando recuamos no tempo e olhamos para essa realidade através da perspectiva do Estado, na revista oficial Justiça Popular, tanto as apologéticas compte rendu dos Juízes Populares (HONWA-NA, 1984) quanto os apelos e veredictos publicados como exemplos de jurisprudência (TPCM 1984) são consistentes com as descrições populares que mencionei.

Não foi escrita qualquer lei sobre a “Operação Produção” mas, só em Maputo, foram de imediato criados 38 postos de verificação com o estatuto de Tribunais Populares mas, ao contrário destes, com o poder de sentenciar os acusados a penas de prisão ou de deportação para centros de produção ou campos de reeducação. Nas primeiras semanas, as rusgas e detenções foram tão numerosas que os Juízes Populares nomeados ti-veram frequentemente que trabalhar 48 horas consecutivas, decidindo o destino de centenas de pessoas (imagem 3).

Com a acumulação de detidos, as forças policiais começaram a mandá-los logo para os centros de evacuação, de onde seguiam directamente para o Niassa. Foram mais tarde criados grupos de triagem nos postos de veri-ficação, e só os «casos duvidosos» eram levados aos Juízes Populares. Também acabou por ser implementado um mecanismo de apelo, neste caso baseado sobretudo em juízes que já tinham alguma preparação jurídica.

A revista refere muitas decisões injustas, mesmo de acordo com os critérios draconianos da Operação Produção. Nas áreas periurbanas, hou-ve camponeses deportados porque, obviamente, não tinham nenhum cartão de trabalho passado por uma entidade empregadora. O mesmo aconteceu a vários trabalhadores empregados, porque muitas empre-sas tinham os seus registos de pessoal desactualizados (HONWANA, 1984). Entre os académicos e outras profissões proeminentes, chegou a haver casos de pessoas que foram subitamente demitidas e, ao chega-rem a casa, encontraram a polícia à sua espera para as deportar como “improdutivas”10. Outras profissões, como as de curandeiro e adivinho, não eram reconhecidas como tal pelo estado e, dessa forma, praticá-las tornou-se uma razão para deportação – tal como acontecia com os biscateiros (TPCM, 1984: 40).

Também os critérios utilizados nos apelos são com frequência surpreendentes. Um dos exemplos de jurisprudência confirma a de-portação para o Niassa de um trabalhador emigrado que esperava em

(10) Ao contrário dos restantes exemplos que menciono, tomei conhecimento destes últimos casos (que cor-respondem à punição de inimizades pessoais ou políticas que não encontravam bases legais sob outras acusações) através de comunicações pessoais, e não pelos artigos da revista Justiça Popular.

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Maputo pela renovação do seu passaporte, baseando-se a decisão no facto de ele não ter um cartão de trabalho da Suazilândia – que não existia – e de, ao contrário do que a polícia política lhe dissera para fazer, não se ter inscrito como alguém que procurava trabalho – o que não era o seu caso, visto trabalhar no estrangeiro (TPCM, 1984: 41).

De facto, apelar podia piorar a situação. Os pais de uma jovem pediram o seu regresso de um campo de trabalho perto de Maputo, pois não era “improdutiva”, à luz das últimas instruções enviadas aos postos de verificação. Mas o juiz de recurso decidiu que, como ela era mãe solteira de dois filhos «perante a total indiferença dos seus pais», era uma «mulher de mau porte» e deveria voltar a ser julgada sob essa acusação, e não como “improdutiva” (TPCM, 1984: 41). Nesta nova situação, foi provavelmente enviada para o Niassa…

As situações mais arbitrárias diziam de facto respeito a mulheres e à acusação de prostituição. Depois de 6 meses de julgamentos su-mários e deportações, um Juiz Popular sugere timidamente que talvez fosse tempo de «definir claramente prostituição e identificar a sua punição, de acordo com a nossa realidade» (HONWANA, 1984: 9), aproveitando para mencionar o caso de uma mulher que foi acusada de prostitui-ção porque se separou de um homem com quem coabitava há vários anos sem ser casada e, vivendo de novo em casa dos pais, começou a relacionar-se com outro homem antes de as «estruturas locais»11 terem ratificado a sua separação anterior. Um dos veredictos de recurso teve que sublinhar que «uma mulher não é uma prostituta apenas por ter vivido maritalmente com um português», antes da independência (TPCM, 1984: 42). E Stephanie Urdang (1989) ouviu, numa viagem de estudo através de campos de deportação, queixas sistemáticas de mulheres que diziam estar ali devido a vinganças pessoais de carácter sexual.

Que aconteceu a esses milhares de pessoas, apelidadas de impro-dutivas, delinquentes ou prostitutas? No início, havia de facto alguns centros de produção onde podiam ser colocadas a fim de desempenhar tra-balhos pesados, e ainda havia espaço nos campos de reeducação. Em breve, todos esses lugares estavam sobrelotados e o Estado não conseguia organizar novos, pelo que as pessoas eram simplesmente abandonadas longe das suas zonas de residência. Primeiro, em aldeias; depois (como aconteceu a um ícone do bairro do Xipamanine, um homem que regressou do Niassa

(11) Num quadro monopartidário que indiferenciava o Estado e o Partido Frelimo, esta expressão designava os Secretários de Bairro, os Grupos Dinamizadores e as lideranças locais das organizações de base da Frelimo, com destaque para as de mulheres e de juventude. “Estruturas” acabou por se tornar a designação popular para quaisquer di-rigentes do Estado ou da Frelimo, do nível central ao local.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 25

caminhando milhares de quilómetros), eram largadas no meio do mato, numa província onde os leões são muito comuns. A esmagadora maioria dos deportados nunca chegou a ser trazida de volta para as suas cidades. Assim, a menos que eles ou as suas famílias tenham conseguido trans-porte pelos seus próprios meios, ou morreram ou continuam a viver nas regiões onde o Estado os deixou. Para as suas famílias e vizinhos, eles desapareceram.

Curiosamente, nem os cidadãos comuns nem os simpatizantes internacionais que observavam as transformações em Moçambique (URDANG, 1989) apontaram as óbvias semelhanças entre as primeiras justificações colonialistas para o trabalho forçado (ENNES, 1946 [1899]) e o discurso acerca do trabalho que legitimava a Operação Produção, ou sequer o paralelo entre ela e a Lei do Passe e política dos Bantustões do apartheid sul-africano. Na década de 1980, aquilo que apontavam era o enorme número de pessoas que eram tratadas injustamente, mesmo de acordo com os princípios da Operação Produção. Só mais tarde esses princípios começaram a ser popularmente vistos como um abuso em si próprios, mas sem suscitarem analogias históricas locais – embora antigos responsáveis com quem tive oportunidade de falar acerca do assunto justifiquem a Operação através de uma outra analogia histórica, designadamente as restrições à circulação interna e ao estabelecimento nas cidades que vigoravam na URSS.

Mesmo assim, os deportados são vistos, em termos gerais e na grande maioria dos casos individuais, como pessoas normais que sim-plesmente se tornaram vítimas de uma utilização abusiva do poder político. E a Operação Produção acabou por perdurar como um aconteci-mento colectivamente traumático, que apenas os subsequentes horrores da guerra civil12 permitiram minimizar na memória das pessoas.

Ao perguntar a pessoas de diferentes bairros de Maputo o que aconteceu a esses deportados que nunca regressaram, nunca recebi uma resposta que mencionasse água, solo molhado ou crocodilos. Em mais de 30 entrevistas e conversas informais acerca deste assunto, encontrei também um leit motiv comum, mas que é muito diferente daquele que referi no caso dos prisioneiros políticos desaparecidos: de acordo com as histórias, ou essas pessoas continuaram a viver no Niassa; ou foram

(12) Pouco depois da independência, em 1975, os regimes minoritários “brancos” da Rodésia (Zimbabué) e África do Sul começaram a apoiar grupos de oposição armada para actuarem em Moçambique, cuja acção acabou por evoluir para uma guerra civil em larga escala que apenas terminou em 1992. Acerca dos horrores dessa guerra, veja-se por exemplo Geffray (1991), Hall & Young (1997) e Granjo (2006).

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comidas por leões; ou morreram por qualquer outra razão e foram sepultadas de acordo com os costumes vigentes nessa província.

Esses maputenses não conhecem realmente as características dos tais costumes funerários do Niassa que mencionam, mas partem do princípio que se tratará de enterros em solo seco. Um tal fim é, não obstante, visto como lamentável, pois supõem que o ritual seja diferente do seu – e portanto estranho para os deportados falecidos – e porque os espíritos dos defuntos ficarão sozinhos no Niassa, sem a companhia dos seus parentes vivos e mortos.

Devo, entretanto, sublinhar que esta narrativa recorrente acerca do destino dado aos cadáveres é particularmente significativa porque, conforme Feliciano (1998) já salientou, quando um forasteiro morre deverá ser sepultado em solo húmido, “à cautela”, pois para a população local é fácil ver que o defunto não é um albino, mas nunca se pode ter a certeza de que ele/ela não é um gémeo, ou a mãe de alguém que seca a terra. Partir do princípio de que as pessoas do Niassa não tomaram essa habitual precaução para com forasteiros que, afinal, estavam numa posição estigmatizante é, portanto, uma forte declaração (embora talvez não consciente) de que eles não a deveriam tomar. É, de facto, uma reivindicação de que os deportados não merecem ser enterrados como gémeos ameaçadores.

Também os relatos públicos do homem do Xipamanine que mencionei algumas páginas atrás eram duplamente significativos, pois constituíam testemunhos da sua experiência pessoal e, ao mesmo tempo, reconfigurações dessa experiência à luz das expectativas e consensos da audiência. Quando ele atravessou o país a pé, teve também que passar rios a vau, de forma a evitar postos de controlo nas pontes. Es-sas travessias e o concomitante perigo de crocodilos eram momentos impressionantes das suas narrações, mas nunca atribuía aos crocodilos a morte de outros deportados, embora mencionasse com frequência a sua morte por parte de leões e o terror que a todos suscitava a possi-bilidade de tal lhes acontecer.

Verificamos então que, em completa oposição aos prisioneiros políticos desaparecidos (ver imagem 2), os deportados desaparecidos na Operação Produção – que também foram presos e mandados para longe pelo Estado, sob condições e acusações estigmatizantes – são sistema-ticamente representados como tendo sido enterrados em solo seco ou comidos por predadores terrestres, mesmo se é provável que alguns deles se tenham na realidade afogado, ou sido comidos por crocodilos.

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Num contexto retórico e conceptual em que os prisioneiros políticos são equiparados a gémeos/albinos, os deportados desaparecidos são, as-sim, veementemente apresentados como não sendo gémeos/albinos.

Uma das consequências deste facto é que a imagem projectada sobre os prisioneiros políticos desaparecidos não pode ser apenas uma afirmação do seu desaparecimento. Uma segunda consequência é que se torna necessário clarificar os sentidos atribuídos às diferenças entre estes dois grupos de pessoas desaparecidas, para que possamos compre-ender o sentido dessa imagem.

uma teoRia PoPulaR do PodeR PolítiCo

Tendo eu referido que os deportados da Operação Produção são vistos como vítimas inocentes do poder político, seria tentador aplicar aos prisioneiros políticos, inversamente, o rótulo de culpados.

Essa seria, contudo, uma assunção simplista.Por um lado, seria simplista pelo facto de dois grupos muito di-

ferentes de prisioneiros políticos desaparecidos surgirem amalgamados, nas narrações populares, sob uma mesma equivalência aos gémeos e albinos: os heróis que morreram pela independência (que depressa foi apresentada como sinónimo de revolução socializante); e as pessoas que, sob imputações estigmatizantes, foram acusadas de conspirar contra a independência, o Povo Moçambicano e a revolução.

Em segundo lugar, seria simplista por ser bem sabido que uma detenção como prisioneiro político não deriva necessariamente de uma culpa ou de um acto censurável. Isto é imediato no caso dos re-sistentes anti-coloniais. Mas a maioria das pessoas concordará também que após a independência, junto com “verdadeiros” pró-colonialistas, contra-revolucionários e ideologicamente heterodoxos, muitos prisio-neiros foram detidos apenas porque se queixaram um pouco mais alto de assuntos que também desagradavam aos seus vizinhos e colegas, ou porque tomaram as atitudes “erradas” no momento errado, mesmo que tivessem razão em fazê-lo – como no caso apresentado neste pungente relato de um ex-prisioneiro político:

Nesse tempo, eu não era contra-revolucionário, nada! Estava con-tente com a independência e aceitava como ela era, mesmo as coisas que não gostava. Por exemplo: se tinha que se fazer dias de trabalho voluntário, porque é que eu ficava de enxada na mão, a capinar e a fazer buracos? Sou mecânico, por amor de Deus! Não sabia usar uma enxada e as outras pessoas não sabiam fazer mais nada. Eu ia ser

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mais útil a fazer o meu trabalho de graça, naquele dia. Mas nunca me queixei dessas coisas. Não gostava, mas fazia o meu melhor e aceitava. E aceitava a Frelimo mandar, porque nos trouxe a independência. Mas mandaram-me para o campo de reeducação como contra-revolucionário e sabotador! Foi assim: uma peça importante de uma máquina partiu e o director da fábrica mandou-me fazer uma nova. Eu disse que não se podia fazer, que era preciso importar. Expliquei que não tínhamos aquele aço e as ferramentas que eram precisas e que, se substituíssemos por uma peça feita por nós, outras iam partir. O director não sabia nada de mecânica e indústria. Era só um “camarada dedicado da luta armada”13 e então fui preso como sabotador. Depois, aconteceu o que eu disse. Ele é que foi o sabotador, mesmo. Mas fui eu que fiquei anos no campo de reeducação.

Assim, a diferenciação popular entre deportados e prisioneiros polí-ticos não decorre dos actos particulares que eles efectuaram (ou não) e da culpa atribuída a esses actos concretos, mas da posição que eles mantêm perante o poder e da avaliação pública que é feita acerca dessa posição.

Por outras palavras, o objecto da avaliação popular, neste jogo de identificação e diferenciação, não é a culpa ou inocência de actores con-cretos, mas aquilo que é lícito ou ilícito quer na relação das pessoas com o poder estabelecido, quer na forma como esse poder é exercido.

Efectivamente, conforme antes mencionei, os gémeos e os albinos têm outra característica pertinente, no contexto socio-cultural do sul de Moçambique, para além do desaparecimento destes últimos e da sua origem cósmica comum: ambos são ameaças socio-cósmicas que fazem perigar a ordem da reprodução do mundo, nos seus aspectos naturais e sociais.

Dado que o desaparecimento é comum aos deportados e prisio-neiros políticos acerca dos quais se contam as histórias que temos vindo a acompanhar, o assunto que é enfatizado nos destinos opostos que são atribuídos aos seus cadáveres é, então, o carácter ameaçador que é ou não reconhecido a cada um dos grupos (veja-se imagem 2).

Assim sendo, a coexistência entre, por um lado, uma equivalência simbólica entre prisioneiros políticos desaparecidos e gémeos/albinos e, por outro lado, a sua diferenciação dos deportados desaparecidos na Operação Produção, expressa um conceito – ou, melhor dizendo,

(13) A independência de Moçambique, em 1975, foi precedida e acompanhada por um êxodo quase geral das pessoas com origens europeias ou asiáticas (RITA-FERREIRA, 1988). Visto que o acesso à educação escolar e aos postos de chefia era muito racializado no tempo colonial, isto criou uma dramática escassez de pessoal qualificado na maioria das áreas e actividades. Dessa forma, o voluntarismo e o currículo político tornaram-se, muitas vezes, o único critério disponível na nomeação para postos de liderança em instituições administrativas e económicas.

Gémeos, Albinos e Prisioneiros Desaparecidos 29

uma teoria – das relações de poder político que mantém interessantes paralelos com as sugestões de Harry West (2008) acerca do norte de Moçambique.

Sejam heróis da independência ou ameaças a ela, sejam culpados ou simplesmente pessoas consideradas subversivas pelo poder (não im-porta quando ou qual), os prisioneiros políticos ameaçam a sociedade global e não apenas aqueles que ocupam o poder. Pessoas normais a que se tornaram vítimas de um abuso de poder generalizado não são ameaças sociais; pelo contrário, são merecedoras de preocupação e consideração públicas.14

Em termos mais gerais, de acordo com essa teoria política popular, é ilícito e socialmente ameaçador fazer perigar o poder estabelecido, a partir do momento em que ele é reconhecido como tal, e quem o faz torna-se uma anormalidade social ameaçadora. Fazer perigar o poder estabelecido é fazer perigar não apenas os poderosos, mas também a ordem e equilíbrio sociais. Entretanto (tão importante como a afirma-ção anterior), é também ilícito, para um poder estabelecido e legítimo, tomar decisões injustas acerca das pessoas sob sua responsabilidade, em vez de assegurar o seu bem-estar básico, conforme deveria.

As resilientes representações sociais acerca dos gémeos e albinos foram, então, manipuladas para expressar de forma crítica uma visão do poder subtilmente equilibrada, que pode ser muito enganadora se focarmos a nossa atenção em apenas um dos seus pólos. Tudo o que conseguiremos ver, nesse caso, será ou uma atitude dependente e exigente ou (olhando para o pólo oposto) uma resignada e quase automática submissão ao poder.

Quando a tomamos no seu conjunto, contudo, aquilo que en-contramos é um “contrato social” (ROUSSEAU, 1762) que, de facto, é similar a várias descrições de conceitos “tradicionais” de poder político na África sub-sahariana:15 Um poder estabelecido pode ser considerado legítimo devido a diversas razões diferentes (neste contexto, a genealogia, a conquista, a legitimidade revolucionária ou eleições democráticas); mas o reconhecimento social da legitimidade do poder, mesmo que consensual, não significa que todas as suas decisões e práticas sejam legítimas, mesmo que elas sejam realizadas ao abrigo das competências que são reconhecidas

(14) Seria interessante verificar que destino era atribuído pelos relatos populares aos cadáveres das pessoas falecidas em trabalho forçado durante o regime colonial, mas não consegui encontrar referências a esse assunto.

(15) Para além da vasta bibliografia científica acerca deste assunto veja-se, por exemplo, o fascinante romance sul-africano The Wrath of the Ancestors (JORDAN, 2004 [1940]).

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a esse poder. O reconhecimento público da legitimidade do poder impõe, aos poderosos, responsabilidades para com a protecção e bem-estar da população que governam. Se o poder estabelecido falha a concretização dessas responsabilidades – ou as desrespeita – nas suas acções concretas, essas acções são ilegítimas, embora o próprio poder não o seja.

Assim, focar apenas um dos pólos deste “contrato social” tem consequências mais vastas que o mero equívoco interpretativo ou científico. Pode, também, restringir a capacidade para compreender as dinâmicas políticas correntes.

Após 80 anos de domínio colonial e 33 anos de independência sob governação de um mesmo partido, que nem sequer enfrentou re-sistências explícitas à sua mudança de um paradigma socializante para uma política neo-liberal, é muito compreensível que as elites políticas moçambicanas foquem a sua atenção no pólo da resignação e submissão popular ao poder – afinal, aquilo que é mais visível e tranquilizador a partir da posição em que se encontram.

Foi por isso, parece-me, que essas elites se mostraram tão surpre-endidas pelos violentos motins contra os aumentos de preços de trans-portes que abalaram Maputo no início de Fevereiro de 2008 (GRANJO, 2008a) e declararam que existia uma «mão invisível» externa por detrás deles. Tal como se compreende que, simetricamente, alguns apoiantes mais fervorosos do maior partido de oposição tivessem a esperança de assistir, nessas movimentações populares, ao dobre de finados do poder da Frelimo, logo numa das regiões onde esta tem uma votação mais massiva (PEREIRA, 2008). Encarando em simultâneo as duas vertentes do contrato social que referi, contudo, aquilo que estava sobretudo em causa nos motins era uma declaração popular da inaceitabilidade de que o poder continue a ser exercido sem consideração pelas necessidades básicas das pessoas sobre as quais se exerce, sem que tal pusesse em questão o próprio poder estatal e a força política que o ocupa.

Mas, se parece agora claro, a partir dos dados e interpretações que apresentei, que as velhas representações acerca de gémeos e albi-nos foram seleccionadas como matéria-prima para expressar de uma forma sistemática uma visão popular do poder e para classificar, em função dela, recentes actores dos acontecimentos políticos, não há nada de “natural” nessa escolha. A selecção dessa metáfora, em detrimento de alguma das outras linguagens locais que são mais habitualmente utilizadas para falar do poder (como por exemplo a feitiçaria) é, pelo contrário, excepcional e surpreendente.

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É provável que tudo tenha começado com esse perturbante acto de desaparecer, que é comum aos dois contextos e parece ter oferecido, aos albinos e gémeos, uma insuspeitada pertinência para simbolizarem questões políticas recentes.

O facto de terem sido seleccionados para esse efeito revela, no entanto, um outro ponto importante: mostra até que ponto são ainda hoje relevantes, no Moçambique urbano e periuburbano, as represen-tações e crenças acerca de gémeos e albinos.

RefeRênCias biblioGRáfiCas:

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Resumo

Este artigo é resultado de uma pesquisa realizada no Assentamento Herbert de Souza, localizado em Moreno, interior do Estado de Per-nambuco. Tal pesquisa procurou constatar quais são as representações religiosas de camponeses praticantes de alguma religião pentecostal e que foram beneficiados com desapropriação do Engenho Pinto, trans-formado posteriormente em assentamento. Esse assentamento é com-posto de camponeses dentre os quais muitos se professam praticantes de atividades religiosas pentecostais. Por meio de pesquisa qualitativa, com entrevistas sem-estruturadas, constatamos que a identidade reli-giosa daqueles camponeses interferiu ou interferem no desenrolar de seu cotidiano de pequenos agricultores. Percebemos no decorrer da investigação que os assentados pentecostais, todos beneficiados pela ação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), atualizam suas representações religiosas de acordo com a demanda de vida que os motivou quando da entrada deles no processo de ocupação. Foi cons-tatado também que o lugar e o tempo no qual aconteceu a inserção de cada pentecostal fez com que eles desenvolvessem elaborações religio-sas diferenciadas acerca do Movimento, da terra e do que concebem como prática religiosa. Assim eles tecem redes de significado que dão ordem às suas concepções de mundo. Nesse hibridismo de concepções criamos três tipos ideais de pentecostais: os pré-ocupação, os pós-ocupação e os pró-ocupação. Consideramos, finalmente, que as representações são elaboradas num momento de crise, em que há um intercâmbio de

Militância Política e Religiosa: Representações Paradoxais de Pentecostais

no Processo de Ocupação de Terra

Fábio Alves Ferreira

Programa de Doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco

Y

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saberes entre o que afirma o MST e o que sistematiza as doutrinas da comunidade religiosa à qual os fieis estejam vinculados.

Palavras-Chave: Representações religiosas – Pentecostais – Assentamento Herbert de Souza – Religião – Cultura camponesa – MST.

Nesse artigo pretendemos descrever e analisar as representações religiosas dos pentecostais instalados no Assentamento Herbert de Souza (AHS), localizado em Moreno, na região metropolitana do Es-tado de Pernambuco, no Brasil. As representações desses pentecostais relacionam-se com as condições que desencadearam a sua entrada no assentamento. Portanto, elas se diversificam a partir da localização social do sujeito. Para compreender isso dividimos os pentecostais ali presentes em pré-ocupação, pró-ocupação e pós-ocupação. A criação desses tipos ideais, conforme modelo weberiano facilitou o entendimento do discurso a partir da motivação e justificativas de envolvimento no processo de tomada de terra e fixação de residência no Assentamento.

O AHS foi assim nomeado em 4 de setembro de 1997 com um total de 147 famílias assentadas, alocadas em uma área de 1.523 hectares. Dessas, 22 famílias são praticantes de alguma religião pentecostal, que pode variar entre as duas igrejas presentes no assentamento: Assembléia de Deus, ou Batista Monte Moriá.

No decorrer desta pesquisa, entrevistamos 11 pessoas repre-sentantes de nove famílias pentecostais residentes no AHS. Durante as pesquisas ali realizadas também tivemos conversas prolongadas e informais com dezenas de outros pentecostais e não pentecostais. Todos eles nos ajudaram a perceber e interpretar as redes simbólicas religiosas ali estabelecidas. Nossa pesquisa se caracteriza, portanto, como uma pesquisa qualitativa, na qual adotamos a observação par-ticipante e entrevistas semi-diretivas.

No decorrer desse texto transcrevemos a fala dos pentecostais entrevistados durante nossa imersão no campo de pesquisa. Colhemos depoimentos que nos ajudaram na compreensão do ethos de nossos sujeitos e dos símbolos que permeiam o seu cotidiano. Para tanto, uti-lizamos dois aportes teóricos: primeiro, o conceito de representações coletivas de Durkheim, explicitado com propriedade em As Formas Elementares da Vida Religiosa. Esse conceito depois foi desenvolvido por outros pesquisadores com o termo representações sociais. A segunda ferramenta foi o conceito de cultura e também religião, muito caros a

Militância Política e Religiosa 37

Clifford Geertz. Tomamos por base as obras O saber local e A interpre-tação das culturas. No decorrer do texto, dialogaremos com outros teóricos, buscando esclarecer todas as nuanças dos processos sociais estabelecidos no Assentamento Herbert de Souza. Dadas as trincheiras pelas quais interpretamos nosso objeto em questão, partimos para exploração dos conceitos.

Durkheim entende a religião como fato social, portanto, em termos coletivos. Ele emprega o termo fato social para designar aqui-lo que é externo ao indivíduo e dotado de poder coercitivo sobre o mesmo (DURKHEIM, 2005). Dessa maneira, constitui-se um desafio entender a religião na modernidade a partir de Durkheim. A pluralidade contemporânea favorece a entrada de diversos sistemas de significação, num mesmo espaço social (SANCHIS, 2003). Ainda assim a sua teoria nos fornece pistas fundamentais para interpretar o fenômeno religioso na cultura camponesa. O termo representações refere-se a elaborações que dão sentido ao mundo dos sujeitos sociais que as construíram (JOVCHELOCITCH, 1998). Para Durkheim, as representações co-letivas contêm duas características que as qualificam como fato social: primeiro por ser externo às consciências individuais; segundo, é pelo fato de exercer ação coercitiva sobre as mesmas (MINAYO, 1998).

Afirmar que as representações religiosas são coletivas implica em dizer que a religião traduz um estado da coletividade. A teoria de Durkheim acerca da religião é que todas elas são apenas uma transpo-sição da sociedade para o plano simbólico. Isso porque as sociedades necessitam de crenças para as quais reportarão enquanto esta, por sua vez, constitui-se como sistema de representação valorativo, para o qual educa, disciplina e forma os cidadãos. O totem, nesse sentido, é a realidade transfigurada projetada pelo consciente coletivo (CIVITA, 1983).

Já o conceito de cultura, em Geertz, é um conjunto de teias que atribui significado à vida humana em sociedade. Por isso, o estudo das culturas deve dirigir-se no sentido de interpretar os símbolos dos grupos sociais, buscando o significado dos mesmos no cotidiano dos indivíduos (GEERTZ, 1989). Para Geertz, todos os acontecimentos são colocados em redes locais de saber (GEERTZ, 2001). Ele ainda sustenta que não é a partir de fatos gerais que o ser humano constrói a religião (Id). A aproximação entre Durkheim e Geertz se dá, em nossa perspectiva, pelo fato de Durkheim não negar o aparecimento de novas representações para responder a questões para as quais não se tem respostas. Ou seja, as representações não são estáticas.

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Outro autor igualmente relevante para nossa abordagem é Serge Moscovici, que desenvolve a teoria das representações sociais, proveniente de Durkheim. Em que consiste, então, a diferença de Durkheim e o conceito de representação coletiva para Moscovici e a idéia de representação social? Segundo Gerard Duveen (DUVEEN, 2004) a teoria durkheimiana está orientada em interpretar aquilo que mantém as sociedades coesas. Dedica-se ao entendimento daquilo que estrutura e conserva a sociedade. Já a teoria das representações sociais de Moscovici, investiga menos o caráter coercitivo das representações, dedicando-se à sua heterogeneidade na sociedade moderna.

Para Moscovici, uma das funções das representações sociais é convencionar os objetos e acontecimentos. Assim, por exemplo, é que se sabe quando alguém levanta o braço para demonstrar cordialidade ou impaciência (MOSCOVICI, 2004). Essa função aproxima-se do exemplo dado por Geertz, das crianças que piscam os olhos (GEERTZ, Op.cit). Elas praticam os mesmos atos, porém com significação dife-renciada dentro da rede local de saber. Geertz utiliza-se desse aconte-cimento simples para mostrar que existe uma estrutura de significado que permite o entendimento dos movimentos das pessoas e, no caso das crianças, essa estrutura ajuda a discriminar qual o significado de cada ato, aparentemente igual. Em Moscovici, esse mesmo fenômeno, seriam os signos de comunicação convencionados, isto é, tornado em representação social.

Ora, tanto Durkheim, quanto Geertz dissertam sobre a relevância do símbolo na construção e manutenção dos valores de um determinado grupo. Para Geertz, os símbolos sagrados agregam em si mesmos o ethos de um povo. Ele considera ethos a visão de mundo de um determinado grupo; as qualidades e disposições morais e estéticas, o caráter e a qua-lidade de vida. Para Durkheim, os símbolos representam as expectativas das pessoas e fazem com que os sentimentos possam perdurar e impedir o esfacelamento das idéias, propósitos e história do grupo.

Aliás, sem símbolos, os sentimentos sociais só poderiam ter existência precária. Se os movimentos, pelos quais esses sentimentos se expri-miram, se inscrevem sobre coisas que duram, eles próprios se tornam duráveis. Essas coisas evocam continuamente tais sentimentos aos espíritos e os mantêm perpetuamente despertos; é como se a causa inicial que os suscitou continuasse a agir. Assim, o emblematismo, necessário para permitir que a sociedade tome consciência de si, não é menos indispensável para assegurar a continuidade dessa consciência. (DURKHEIM, 1989)

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Regina Reyes Novaes chama de alquimia de conceitos, símbolos e imagens o que acontece na formação do discurso de um movimento social (NOVAES, 1997). Os símbolos condensam toda a variedade de expectativas do grupo. Portanto, eles são resultados de uma hetero-geneidade de motivações, de razões diferentes, que agregam em um único objeto o desejo da comunidade. Esses símbolos são elaborados a partir do contato com outros sujeitos. Segundo Sandra Jovchelovitch, o sujeito constrói na sua relação com o mundo, novos significados. Em suma, ela entende que é no contato com o outro que as representações têm início (JOVCHELOCITCH, 1998).

As representações religiosas dos pentecostais do Assentamento Herbert de Souza foram criadas de acordo com o espaço e lugar que os indivíduos ocupavam na sociedade, da qual sentiam parte, antes de sua entrada no Assentamento. Ou mesmo, o lugar que o pentecostal passa a ocupar no assentamento após seu estabelecimento. Essas repre-sentações atribuem significado às suas atividades, legitimando-os nos novos papéis sociais que assumem. Neste caso há uma atualização das representações religiosas de acordo com a demanda social vivenciada pelos mesmos.

As representações construídas pelos pentecostais no AHS são entendidas numa situação de privação de condições básicas de sobrevi-vência. Para esclarecermos tais concepções, voltamo-nos para Durkheim, com a ressalva de que este estudou uma religião totêmica e, portanto diferente das estruturas observadas nas religiões contemporâneas, que possuem um complexo repertório doutrinário. Esclarecidas as diferenças contextuais, citemo-lo:

Essas classificações sistemáticas, como efeito, são as primeiras clas-sificações que encontramos na história; ora, acabamos de ver que elas se modelaram pela organização social, ou antes, que tomaram por quadros os próprios quadros da sociedade (...) Por que viviam agrupados é que os homens puderam agrupar as coisas; por que, para classificar estas últimas, limitaram-se a lhes destinar um lugar nos grupos que eles próprios formavam. (...) A unidade desses primeiros sistemas lógicos apenas reproduz a unidade da sociedade (DUR-KHEIM, Op. cit. p. 189-190).

Sem tomar por base categorias gerais para análise do pente-costalismo no Brasil, entendemos que as condições sociais às quais os trabalhadores estiverem submetidos farão com que haja uma remode-lação de sua fé (RIOS, 2001). Essa remodelação facilitará a inserção do

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pentecostal num movimento que imprimirá nele (neste trabalhador e por tanto sujeito social), um novo comportamento dentro da sociedade. Reportamo-nos a Rolim, quando assevera que os personagens históricos do pentecostalismo foram, quase em sua totalidade, oriundos de segmen-tos pobres da sociedade. Há uma influência desse fato social na produção religiosa nesse movimento religioso. O mesmo diz que a explicação sobre ele seria difícil sem levar em conta tais fenômenos (ROLIM, 1985).

As representações religiosas dos pentecostais do Assentamento Herbert de Souza foram criadas a partir dessa lógica. Elas surgiram para legitimar as novas ideologias e possibilitar a ação do camponês evangélico. Em outros termos, Durkheim e a sociologia do conheci-mento posterior insistem que “as noções fundamentais do espírito, as categorias essenciais do pensamento podem ser produtos de fatores sociais” (DURKHEIM, Op. cit).

PenteCostais no aHs: ConfiGuRação dos GRuPos

Nessa pesquisa partimos do conselho de Geertz, a respeito do papel de densificar o óbvio nos acontecimentos cotidianos (GEERTZ, 1989, p. 15), a fim de tornar evidentes as estruturas nas quais se assentam o imaginário dos pentecostais residentes do AHS. Para interpretar tais estruturas dividimos os pentecostais em três tipos ideais: pentecostais pré-ocupação, pró-ocupação e pentecostais pós-ocupação. A classificação dos pen-tecostais em pré, pró e pós-ocupação foi a metodologia que encontramos para compreender melhor as diversas visões da terra, de Deus e da igreja entre os religiosos do assentamento. Cada enquadramento de pentecostal, de acordo com seu engajamento, o coloca num lugar específico que o diferencia do anterior ou posterior. Estar na condição de pré-ocupação significa vivenciar espaços que os pós-ocupação não experimentaram. Estes, por sua vez, colocam-se nas situações diferentes que os motivaram na busca da terra. Tentaremos detalhar esses tipos ideais.

Contudo, percebemos que tal metodologia apresenta insuficientes fronteiras para compreender os sistemas simbólicos criados por cada grupo. Até porque as percepções se entrecruzam, dependendo do as-sunto a ser tratado e do tempo no qual o fenômeno ocorreu. Para ser mais detalhista, percebemos, por exemplo, que houve uma migração da visão acerca do MST entre os pentecostais pré-ocupação e pró-ocupação, nas questões relativas à possibilidade de ascensão social. Porém, esses dois tipos de pentecostais continuaram divergentes quando argumentavam sobre a vivência tranqüilo no Engenho Pinto, posteriormente transformado em

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assentamento. Para os pentecostais pré-ocupação, a entrada do MST no assentamento desencadeou uma constante inquietação no cotidiano das agrovilas; essa percepção é similar às dos pentecostais pós-ocupação, que repudiam a ação do MST, considerando-a violenta. Dessa manei-ra, as representações dos pentecostais pré-ocupação se aproximam das representações dos pós-ocupação. E, portanto, deixam de afinar com as representações dos pentecostais pró-ocupação. No entanto, quando a te-mática a ser discutida é a igreja, todos os três tipos ideais de pentecostais concordam numa única opinião. Para eles a “igreja” é o espaço onde ocorre a atividade fundamental. Sem ela, eles seriam pessoas “indig-nas com aquele que lhes conferiu a salvação”. Nos tópicos seguintes, discutiremos as representações dos pentecostais sobre suas práticas doutrinárias e suas relações com o MST.

RePResentações PaRadoxais: PenteCostais, mst e a teRRa

Os pentecostais, já residentes do Engenho Pinto no período anterior à ocupação, mantiveram uma postura arredia acerca do MST. Animaram-se inicialmente com a possibilidade da divisão da terra e com o dinheiro proveniente dos projetos para desenvolvimento dos agriculto-res. Entretanto, com o passar do tempo, começaram a expressar o desejo de retorno ao tempo no qual trabalhavam para o dono do engenho. Tais posturas tornam-se perceptíveis através do discurso dos pentecostais, nos quais falavam de uma organização que permeava o assentamento. Sentiam-se assistidos, acobertados, sobretudo financeiramente. Mesmo ganhando uma “quantia pouca de dinheiro” por cada tonelada de cana que pudessem colher, falavam de uma prosperidade lenta, mas contínua. Esse discurso se sustentou no pressuposto de que atualmente “não há organização no Engenho”. M.T.S.L. nos informou que:

Antes tinha 600 pessoas empregadas. Cum nada, cum nada o povo tinha seu salário, seu décimo e hoje? Saiu esses projeto aí, mas os marajá comeu tudo. De oito mil e tanto que saiu, só chegou pra gente cinco e pouco. Três mil reais eles comeram e agora é a gente que vai pagar.1

(1) MTSL, pentecostal e morador pré-ocupação do MST. Entrevista em: 02 nov. 2007. Todos os nossos interlocu-tores são identificados com as letras iniciais de seus nomes, para que pudessem ter as suas identidades resguardadas. Por fim, queremos esclarecer que na transcrição das falas dos pentecostais, com os quais tivemos contato, foram mantidas as formas particulares e o modo específico deles falarem. Portanto, apresentar os termos expressos corretamente na língua portuguesa seria impossível, pois eles usam uma linguagem coloquial. Segue-se que a colocação de “SIC” na frente de cada erro tornaria o texto extremamente marcado por “sics”.

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A razão para essa atitude se dá, a nosso ver, porque, agora como pequenos proprietários de terras doadas pelo INCRA, eles deviam seguir uma política de produção determinada por uma instituição governamental. Os assentados começaram então a perceber que não havia lucro; aliás, essa é uma reclamação de todos os demais que foram ouvidos. Segundo o INCRA, eles deveriam se deter no plantio da lavoura branca, tais como batata, mandioca, abóbora e outros legumes e frutas. O problema é que, segundo o depoimento dos pentecostais, isso não é suficiente para sobrevivência. Dessa maneira, os pentecostais pré-ocupação relembravam da submissão ao patrão, acompanhada pela certeza do salário no fim do mês.

Essa visão negativa, causada pela proibição de se plantar cana-de-açúcar, foi transferida aos resultados da ação desencadeada pelo MST. Daí a idéia de que o MST é um movimento que traz miséria para os agricultores pobres. No entanto, há dois anos, o INCRA cedeu à plantação de cana-de-açúcar entre os beneficiários do Assentamento Herbert de Souza. No depoimento de V.S.P., percebemos claramente a mudança. Ainda assim, essa mudança de representação a respeito do MST não é homogênea entre os pentecostais pré-ocupação. Isso porque outros continuaram afirmando a degradação daquele espaço rural em virtude da desapropriação desencadeada pela ação do movimento. En-tre os agricultores pentecostais que continuam a afirmar uma melhor situação no tempo do Engenho, estão aqueles que, na época em que trabalhavam para o proprietário da fazenda, galgavam um status ou um cargo que lhe trazia diferencial significativo aos trabalhos desenvolvidos pelos demais agricultores. As representações sobre o movimento são: “o MST é um movimento de bagunça e Deus não é dessas coisas”; “por causa desse movimento que o engenho está desorganizado, as pessoas desempregadas e as terras sem produção”. Entretanto, estas são opiniões individualizadas e não expressam uma idéia comum entre eles.

A ordem do INCRA era pra não plantar cana. Só lavoura branca. Mas eles viram que ninguém ia pagar o banco se não fosse com cana. Aí liberaram. Eu sempre vi esse movimento como uma coisa que tava trazendo confusão e na verdade trazendo tormento pra os pobres que mora no campo. E trazendo mais gente que já passa dificuldade na cidade pra passar mais ainda nos engenhos. Mas você me perguntou como eu acho essas coisas diante de Deus; (...) uma coisa dessas nunca é de Deus. Deus traz bênçãos, alivia. Mas as vez a gente demora pra entender as coisas: com o passar do tempo que eu fui ver que isso trouxe uma diferença pra todos. Porque de dez anos pra cá eu sinto a

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diferença. Eu planto a minha caninha, faço uma lavoura de macaxeira uma coisa dessas (...) antes, de 100 reais que custasse uma conta de terra de cana, você ficava com 20, 15 reais. Agora é sua: você planta e é tudo seu.2

A afirmação de V.S.P. nos mostra que a autonomia financeira atual é entendida como resultante dos benefícios pela desapropriação requerida e conquistada através do MST. Dessa maneira, os pentecostais pré-ocupação começaram a expressar novas construções sociais acerca do MST, aproximando-se dos pentecostais pró-ocupação. Nesta perspectiva, o Movimento foi um instrumento de Deus para que as pessoas ali tivessem a oportunidade de crescimento e autonomia no meio rural. Ora, nos discursos dos pentecostais pré-ocupação, fica clara a idéia de que o MST foi um agente fundamental de mudança social. Nessa linha continua a afirmar V.S.P. que:

O sistema de Deus é este: latifundiário não tem terra e agricultor não tem terra. De Deus é a terra e a sua plenitude. Então a terra é de todos. E tudo o que acontece é de Deus e este movimento agrário veio pra ajudar mesmo os sofredores.3

A mesma idéia aparece no discurso de R.J.B., um pentecostal pró-ocupação: “todo mundo tem que ter uma terra pra morar. Um lugar preservado só pra isso. E depois que inventaram os sem-terra eu acho que isso é uma lei.”4 Embora haja uma flutuação na visão acerca do MST, podemos observar que as representações passaram de um “Movimento desordeiro” para um “Movimento instrumentalizado por Deus”. Todavia, há pentecostais que, em outros pontos, continuaram afirmando as dife-renças de outrora, principalmente sobre a percepção do espaço social.

Antes era mais tranqüilo, pois antes o povo tinha a consciência de que aqui tinha dono. E hoje briga por tudo, acho que num entenderam e aí não cuida do lugar. Vê como tá a sede, aquela casa tá caino os pedaços. Agora hoje tem mais facilidade. Nunca que antes a gente imaginava que podia ir num shopping, fazer um churrasco. Essas coisas antes quem fazia era só rico. Tinha as festas na casa grande, mas a gente num ia não. Quem ia mesmo era os parentes do dono. Hoje todo mundo tem moto, tem celular. As facilidades é mais.5

(2) VSP pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 10 nov. 2007.

(3) Id. Ibid.

(4) RJB pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.

(5) ISS pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 02 jun. 2007.

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O MST é errado porque faz aquela inganja por terra. Num é verdade? Tá certo que divide as coisas e cada um tem um pedaço de terra pra cum nada plantar sua macaxeira. Mas hoje em dia é mato por tudo. Cada um tem sua terra, mas ninguém se dedica.6

No assentamento as estratégias de sobrevivências são coletivas e individuais. Em parte porque a localização dos lotes define um me-lhor aproveitamento do mesmo ou sua quase nulidade na produção. Por outro lado, as tentativas de emprego na cidade definem em nível particular as tentativas de sobrevivências. As concepções em torno do que alí está instalado contrastam com as imagens do antigo dono do engenho, onde todas as ordens, e acontecimentos dependiam especifi-camente de sua autorização. Em outras palavras, havia somente um ator social oficialmente reconhecido para decidir sobre os demais atores, cujos papéis conferiam aos camponeses a submissão. Dessa maneira, a ordem e a sua manutenção não cabiam ao conjunto de moradores, mas à autoridade do dono do engenho.

Nas representações dos pentecostais pró-ocupação, permanece a concepção de que o movimento foi um instrumento de Deus usado para ampará-los quando estavam em uma situação sem resposta ou esperança. Wilson de Luces Machado escrevendo sobre os pentecos-tais e os conflitos entre religião e ação política constatou, por meio de pesquisa realizada nos Assentamentos Sumaré I e II, no Estado de São Paulo, que a ocupação da terra por parte dos pentecostais surgiu como uma orientação de Deus aos problemas que eles enfrentavam, cada um em sua particularidade (MACHADO, 1995).

Os pentecostais que se engajaram no MST, e participaram da ocupação do Engenho Pinto, interpretaram essa inserção como uma prática aprovada por Deus, mesmo lidando com a reprovação de sua comunidade religiosa. Machado também constatou, em sua pesquisa, que a justificativa dos pentecostais em Sumaré I e II, a de que Deus autorizava-lhes a ocupação, servia como elemento amenizador pelo fato de sentirem-se excluídos por “contaminarem-se ou envolverem-se com lideranças humanas, mas sim que cumpriam sua obediência ao que Deus estava ordenando que fizessem” (MACHADO, Op.cit. p. 83). O comentário de A.S.S. uma pentecostal pró-ocupação mostra de que maneira ela legitima a sua ação no MST: “o MST naquele tempo foi colocado por Deus porque tem gente preguiçoso, mas tem gente que

(6) MTSL, pentecostal pré-ocupação. Entrevista em: 02 de nov. 2007.

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tá precisando. Saiu terra, saiu projeto, a palavra de Deus diz: faça a sua deligência que eu te darei.” 7

A maneira como os pentecostais pós-ocupação representam, em seu imaginário, a atuação do MST deve ser entendida pela situação por eles experimentada quando entraram no assentamento. Estes, como o próprio nome indica, entraram posteriormente à ocupação. Mesmo constatando que residem num lugar tomado pela ação coletiva e radical de um movimento, conceberam a ilegalidade do ato. E quando indaga-dos sobre beneficiados desse processo, argumentaram que sua imersão no campo se concretizou após desapropriação da terra pelo INCRA. Esses religiosos constroem representações que condenam este tipo de atuação. D.S.S. afirmou com todas as letras que:

A Bíblia é clara nisso: se eu pego uma coisa que não é minha isso é roubo. E Deus não aprova esse tipo de comportamento. Porque veja bem: você tem esta bolsa, você comprou esta bolsa, ela lhe pertence. Se eu tomasse de você e ficasse pra mim. Isto não é errado?8

Essas diferentes perspectivas nos mostram a complexidade das visões políticas ali existentes. Há paradigmas diferentes entre membros de uma mesma comunidade. Sendo que esta comunidade é colocada em suas vidas como aquela que rege os símbolos sagrados e, portanto o comportamento sacro ou profano do associado. Basta compararmos as posições de A.S.S. com as de D.S.S. para percebermos as diferentes falas baseadas em um só texto bíblico. Ambos utilizaram um mesmo texto para legitimar e para deslegitimar a ocupação de terra.

Assim como o povo de Israel tava precisano. Tava precisano de terra e Deus deu a terra prometida e num foi fácil não. Teve que ir e tomar a força. Então desde os tempo antigo é assim e ta lá na Bíblia, Deus deu a terra pra o povo nela viver. Poder plantar e colher o fruto da vida.9

Eu acho que tudo é de Deus. Tudo nesse mundo. Mas tem as leis aqui que faz uma coisa passar pro nome de uma pessoa. E esta coisa neste mundo vai ser daquela pessoa. Por isso que eu não concordo em tomar o que é de outro. Porque essa pessoa suou pra ter.10

(7) ASS tem 52 anos de idade e é casada com SPS, de 65 anos. Ambos são pentecostais pró-ocupação.

(8) DSS tem 61 anos de idade e mora no Assentamento há nove anos. Pentecostal pós-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.

(9) ASS pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 05 out. 2007.

(10) DSS pentecostal pós-ocupação. Entrevista em: 13 out. 2007.

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Porém, ao ser perguntado: “mas o povo de Israel não tomou uma terra que já tinha morador?”, a resposta foi a seguinte:

Mas sobre o povo de Israel é o seguinte: aquele povo que estava cativo só entrou na terra prometida porque a terra já tinha sido prometida a Abraão muitos anos antes. Então a terra já era do povo. Ela não foi invadida não!11

Aqui há duas visões explicitamente opostas, mas elas não repre-sentam problemas no cotidiano dos pentecostais camponeses. Como entender tais paradoxos? Talvez possamos pensar que isso ocorra por causa da ausência de uma demanda política que exija deles um posi-cionamento partidário público. Ora, no momento da ocupação hou-ve rompimento de uma postura religiosa velada que os colocava em oposição à tradição de não-envolvimento político, praticado por sua comunidade religiosa. Assim, quando conquistado o direito de divisão do Engenho, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra se afastou gradativamente. Isso gerou um acomodamento e eles passaram a visualizar os problemas menores surgidos em seu cotidiano de agri-cultor assentado a partir da ótica do possuidor de terra.

Além disso, destacamos que este não-conflito, mesmo admitindo a existência do contraste entre as diferentes percepções dos pentecostais, pode ser visto numa tentativa, por eles empreendida, de passar a idéia de união entre os adeptos de sua religião para o pesquisador. Já que o mesmo foi alvo constante de tentativas de conversão por parte dos pentecostais. Daí, os pentecostais utilizavam a tão comum oposição entre mundo profano e espaço sacro que é o templo de sua igreja. Conside-rando que o pesquisador se constituía num adepto em potencial, não cabia deixar explícito as discordâncias entre eles.

Diante das várias narrativas por eles apresentadas surgiu-nos uma pergunta: como se identificam os filhos dos pentecostais pró-ocupação? Quais as representações dos pentecostais que não se encaixam dentro da estrutura proposta nesta pesquisa de pré, pró, e pós-ocupação? Este é o caso daqueles que se converteram depois de legalizada a ocupação da terra. Eles são igualmente a favor do MST ou se aproximam de uma prática política mais amena?

Queremos a seguir retratar dois depoimentos que apontam para as representações por estes elaboradas acerca do Movimento.

(11) DSS Op. cit.

Militância Política e Religiosa 47

Entenderemos como eles mesmos se identificam na questão de tomada da terra e do MST. Um é parte da entrevista de M.R.S., filho de A.S. e o outro é de F.B., filho de pais não-pentecostais e que atualmente não residem no assentamento.

Diante de Deus nós devemos respeitar o que é dos outros. Mesmo tomando para que se cumpra a lei, para que não haja mais tanta gente com dificuldade. Eu jamais faria uma invasão. Eu não sou dessas coisas e acho que o crente não deve se envolver com isto não. Deus dá a oportunidade na hora certa pra cada um.12

Sou a favor do MST porque meu pai de criação foi assentado e agora tem onde morar e onde conseguir seu pão. Mas diante de Deus ta errado porque tomou à força. Mas por outro lado deu terra pra muita gente que não tinha onde morar.13

Os dois fragmentos de discurso amparam-se na atitude cautelosa que está presente na visão de mundo dos pentecostais daquela região. Estes não estão mais sujeitos a uma situação de privação das condições básicas de sobrevivência. Reputamos como constituinte do próprio ethos do pentecostal uma negativa da aquiescência no envolvimento em questões de embates políticos. Entendemos por ethos o conjunto de características morais, afetivas e comportamentais de um determinado grupo.

Resumidamente, inferimos que a percepção dos pentecostais pré-ocupação acerca do ato de buscar a terra é semelhante aos pentecostais pró-ocupação. Para estes, a terra é de todos, pois Deus é o grande possuidor. Já os pentecostais pós-ocupação compreenderam que a terra é de quem dela tem os direitos legais para habitar ou explorá-la da maneira que lhe convier. Para compreender tal processo de diferenças de represen-tações entre os religiosos de uma mesma comunidade, nos reportamos a Peter Berger, para quem o processo dialético de construção social, é formado por três passos condicionantes do ser humano. Nesse processo, o ser humano torna-se pessoa, os valores subjetivos são construídos e a interligação entre eles faz com que a sociedade e o ser que a constrói sejam elaborados e re-elaborados continuamente. É por isso que Ber-ger afirma que a atuação do ser humano no mundo caracteriza-se por uma instabilidade congênita. Nessa perspectiva o indivíduo se define ininterruptamente (BERGER, 1985, p. 20).

(12) MRS filho de AS, que é pentecostal pró-ocupação. Entrevista em: 21 ago. 2007.

(13) FB, filho de pentecostais pré-ocupação. Os pais mudaram para a cidade e o mesmo continuou morando no Assentamento. Entrevista em: 21 ago. 2007.

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o imaGináRio dos PenteCostais militantes do mst

Uma figura significativa do início do pentecostalismo foi William Joseph Seymour. Um filho de ex-escravos da Louisiana que iniciou suas pregações aos 36 anos de idade em Los Angeles em abril de 1906. Nesse período, começou a haver uma série de movimen-tos incomuns na comunidade de Seymour. Rapidamente a mídia se voltou para os acontecimentos que ali aconteciam, como êxtases, glossolalias e curas divinas. Esse movimento ficou conhecido como “avivamento de Azuza Street”. Foi assim que Seymour tornou-se famoso e desencadeou um movimento que se expandiu por todo o mundo. Logo a Azuza Street tornou-se roteiro oficial de cristãos espalhados por todo o país. Cristãos, negros e brancos, afluíam para Los Angeles em caravanas ansiosos por viverem experiências religiosas como as observadas naquele lugar (CAMPOS, 1995).

Na concepção de Weber, o profeta genuíno apresenta-se com a criação e o anúncio de novos mandamentos e formas “legí-timas” de se comportarem. Weber ainda argumenta que o profeta surge nos momentos de crise, quando o mundo ao redor do fiel ou militante se apresenta com instabilidade. Outra vez, voltamos a Weber, quando afirma que o reconhecimento nasce do entusiasmo ou da miséria (WEBER, 1972, p.159, 160). Assim aconteceu com a imagem construída pelos pentecostais que ocuparam o Engenho Pinto. Jaime Amorim, líder do MST em Pernambuco, foi quem liderou a ocupação das terras e, portanto, esteve em contato direto com todos os militantes. Atualmente, Jaime Amorim é o presidente estadual do MST e reside em Caruaru, onde está localizada a sede estadual do Movimento. Assim como os primeiros líderes pente-costais, esse também instaurou, no imaginário dos pentecostais ali presentes, uma nova situação.

Jaime Amorim articulou a ocupação do engenho e as poste-riores ocupações da sede do INCRA. Os pentecostais o reputam como portador de uma mensagem estimulante, progressiva e de Deus para os sem-terra do assentamento. Assim como William Joseph Seymour foi o agente catalisador de uma situação que necessitava de uma teodicéia, os agentes políticos do MST serviram de su-porte das situações vivenciadas pelos militantes. Estes encontraram no discurso de seus líderes resposta a uma demanda que requeria uma nova compreensão e uma nova ação no mundo. Nesse sentido,

Militância Política e Religiosa 49

tencionando a ação política estritamente, o líder serviu como um profeta. Reiniciou a produção de um capital religioso que culminaria em dois resultados: isentaria os indivíduos de culpa, pois ofereceria liberação divina para o ato; e congregaria pessoas para realizar o processo de resistência ao latifúndio.

Ato profético semelhante aconteceu com o fundador das Ligas Camponesas, Francisco Julião, que utilizou o código civil, em com-plementação com a bíblia, para arregimentar camponeses. A sua peda-gogia consistiu em mostrar que a opressão que atingia os protestantes e a opressão sobreposta aos camponeses era semelhante e não havia bipolaridade. Tanto a um quanto a outro estava negado o direito de liberdade, de dignidade de vida. Esse discurso não demonstrava quan-titativamente o número de protestantes envolvidos nas Ligas, mas nos sugere ter havido muitos trabalhadores dos canaviais que compartilha-vam da mesma fé evangélica e que se envolveram nas lutas camponesas (NOVAES, Op. cit.)

Shepard Forman destacou o depoimento de um camponês que se reportou a Julião como “o príncipe da vida”. Um significado devido à formação acadêmica dele, do qual surgiriam as respostas e diretrizes a serem acatadas. Em continuação, Forman destacou ainda: “quando lhe perguntaram de que modo isso seria feito, respondeu: ‘isso eu não sei, pois sou ignorante. Estou esperando uma explicação e então seguirei!” (FORMAN, 1979, p. 306).

À semelhança do papel desenvolvido por Julião nas Ligas Camponesas, Jaime Amorim também desenvolvia o discurso político articulado com o conhecimento religioso. Por isso, os assentados do Herbert de Souza se reportaram a Jaime Amorim como uma pessoa digna, sem a qual não conquistariam o assentamento. Amorim, ainda que não fosse procedente de nenhuma religião, foi considerado um enviado de Deus, um anunciador de soluções para a vida difícil que os agricultores estavam levando. Essa perspectiva aparece nos depoimentos de V.S.P. e de M.S., quando afirmam:

O MST, apesar de ser um partido comunista, veio para o povo que ta sofrendo para fazer essa reforma agrária. E esse, esse... é Jaime Amorim - como se rapidamente tivesse esquecido o nome - , é o comando que sabe trabalhar. Nunca mandou ninguém fazer confusão e veio como um resolvedor dos problemas.14

(14) VSP, pentecostal pré-ocupação. Em: 10 nov. 2007.

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Jaime Amorim é um homem de coragem e de fé porque entrar num negócio desse só um homem de fé. E mandava o povo trabalhar onde não tinha lavoura do dono. O propósito dele era que todo mundo tivesse o que comer. Ele enfrentou com a gente o rico, o todo poderoso dono disso aqui. Entramo com 70 pessoas e já tinha 40 morador.15

Tal mecanismo criador de espaços sagrados e profanos nos reporta a Émile Durkheim. Ora, é característico aos pentecostais eleger uma pessoa que represente seus anseios. Essa aproximação da religiosidade pentecostal no MST com o mecanismo descrito por Durkheim é possível por meio do conceito de que a religião só pode ser definida prescindindo de características comuns a todas. Espaço sagrado e espaço profano talvez sejam duas categorias de aproximação entre as religiões. Assim nos mostra Durkheim: “Se ela [a sociedade] vem a entusiasmar-se por um homem, se acredita descobrir nele as principais aspirações que a marcam e os meios de satisfazê-las, esse homem será colocado acima dos demais e como que divinizado. Ele será investido pela opi-nião de majestade perfeitamente análoga àquela que protege os deuses” (DURKHEIM, 1989, p. 267).

O destaque dado à atuação de Jaime Amorim deve-se à sua liderança carismática. Para Weber, o caráter carismático está baseado em um tipo puro de dominação. A liderança carismática é baseada na veneração no poder heróico de uma pessoa ou na ordem que ela repre-senta (WEBER, Op.cit. p. 141). Entretanto, o conceito de carisma será desenvolvido aqui a partir dos comentários de Geertz. Segundo Geertz existe uma dificuldade nos textos de Weber, pois não fica explícito o significado do termo carisma. Na perspectiva de Geertz, o carisma ora aparece com ênfase à característica que alguma personalidade possui de arrebatar multidões; ora parece referir-se a um status adquirido com destaque de tal característica. Em tese, a incongruência levantada por Geertz nos escritos de Weber, pergunta sobre o que de fato seja carisma: um status, estímulo; ou fusão dos dois (GEERTZ, Op.cit. p. 182).

A explicação que se tem dado para o aparecimento de persona-lidades que se tornam líderes carismáticos, principalmente no contexto dos EUA, segundo Geertz, deve-se à desordem social que ele chama de: psicopatologia, que a desordem social alimenta (Id. Ibid. p. 183). Jaime Amorim, na perspectiva dos pentecostais, foi a pessoa que representou a compreensão necessária da militância do Assentamento Herbert de Souza.

(15) MS, pentecostal pró-ocupação. Em: 13 out. 2007.

Militância Política e Religiosa 51

Algo que faltou em sua comunidade religiosa. Assim então, um novo sistema é erguido pelo qual transita as mentalidades dos pentecostais.

Luis Roberto Lemos do Prado desenvolveu a idéia de que a árdua caminhada de militância é permeada pela lembrança e festa, que preservam a memória de outros militantes que marcaram a história. Resgatar a memória e, inconscientemente, divinizar alguns persona-gens, faz parte da estratégia e necessidade do MST. Dessa maneira o movimento adiciona ao seu repertório personalidades que, em sua perspectiva, incorporaram a resistência e galgaram vitória na busca de justiça. Tais como: Martin Luther King, Zumbi dos Palmares, Emiliano Zapata, Sandino, Ernesto Che Guevara, José Martí, Darcy Ribeiro, Flo-restan Fernandes, Rosa Luxemburgo, Margarida Alves, Chico Mendes, dentre outros (PRADO, 2002, p. 105).

Todos esses personagens são utilizados pelo MST numa identifi-cação direta com a situação atual vivenciada pelos sem-terra. As músicas cantadas nas frentes de ocupação, a bandeira sempre hasteada nos acam-pamentos e assentamentos, as marchas, as assembléias, as festas; enfim, todos esses elementos são realizados com uma significação que vai além de um mero ato de realizá-los. Na concepção de Prado, esse é o processo místico que permeia a ação do MST. “A vivência coletiva destes ele-mentos faz com que cada militante adquira uma profunda paixão pelas lutas populares, associada à valorização da vida das pessoas e do planeta, revelada no cultivo inadiável da auto-estima” (Id. Ibid. p. 107).

Em nossas observações, pudemos notar que, nos pentecostais militantes do MST do Assentamento Herbert de Souza, não há uma lembrança de tais símbolos. Apesar disso, eles afirmam o quanto foi emocionante cantar o hino nacional e aclamar os gritos de guerra sobre reforma agrária.16 Os interlocutores vibraram literalmente ao narrar esses fatos. Ocupar uma terra e reivindicar a sua possessão era a consciência de um direito que aqueles pentecostais nunca souberam, como também representou uma atitude ativa que nunca tiveram na sociedade. Naquele momento, sentiram-se de fato cidadãos e não se importaram em juntar-se a outras pessoas de confissões religiosas diferentes. O importante mesmo, naquele momento, era a união em torno de um ideal comum, que foi a conquista do direito de trabalhar na terra própria.

A nossa hipótese para explicar o esquecimento dos símbolos e mitos do MST, por parte dos pentecostais militantes do AHS deve-se ao

(16) Assim diziam os gritos de guerra: “MST essa luta é pra valer”, “reforma agrária já”.

Travessias 200852

gradativo distanciamento do Movimento e conseqüente acomodação dos militantes.17 Lançamos mão de Maurice Halbwachs, especialmente quando se refere à memória individual, que, para fazer sentido de uma experiência, deve dialogar e atualizar as lembranças de outras pessoas acerca da experiência que eles comunicam. Portanto, é necessário que os outros compactuem com as mesmas lembranças do acontecimento social fundante (HALBWACHS, 2004).

Na teoria social da memória, Halbwachs destaca que a cons-trução de uma memória coletiva depende do compartilhamento das lembranças comuns. Por isso, caso haja uma situação da qual a memória do indivíduo não recorda, é porque ele não se sente mais incluído ou dentro da memória coletiva que determinado grupo retém. Nesse caso, os pentecostais do AHS não elaboraram correlação com aquele fato so-cial, guardado na memória coletiva do grupo de assentados. O resultado disso é que há pouco ou quase nenhum significado na vida dos mesmos. Experimentou-se um sentimento que não mais os dominava.

Geertz mostra o quanto o poder é associado a emblemas visíveis e transformado igualmente em alegoria da prosperidade, da justiça e da honra, como mecanismo de legitimação da dominação (GEERTZ, 1989). Observamos que, no tipo de liderança cultivada nos assenta-mentos do MST, em particular no AHS, foram igualmente utilizados aspectos de alegoria para convencer e gerar convicção nos militantes. Parece haver uma resistência mental para absorver tais valores naqueles que já são praticantes de uma religião pentecostal. Isso pressupondo que haja um corpo de doutrinas que rege as suas ações. Aderir a uma nova cosmovisão não é algo facilmente praticado, porém, ampliar esta mesma cosmovisão incluída de maneira que adotem um novo modo de ser, só acontece em condições de desajuste profundo de sua condição de ser cidadão na sociedade. Nesses momentos de extrema delicadeza dos militantes pentecostais, bem observados pelas narrativas de nossos informantes, eles aderem a outra esfera de combate, que é a militância através da ocupação de terras.

Entretanto, para se chegar a esse estágio, o MST também adotou mecanismos semelhantes aos que são apontados por Geertz. A busca de referenciais na história, o retorno a uma situação bem presente no imaginário coletivo, como, por exemplo, citações de acontecimentos

(17) Um de nossos interlocutores, quando indagado sobre a razão do nome do Assentamento, respondeu que Herbert de Souza foi “um cara do MST que foi assassinado porque lutava pelo povo”. D. N. pentecostal pré-ocupação. Em: 10 nov. 2007.

Militância Política e Religiosa 53

míticos como se fossem reais e representativos de um problema social moderno. Para representar isso, os líderes narravam a história bíblica da tomada da terra por Moisés, descrita no livro de Êxodo. Quando perguntados sobre quem seria exemplo para eles, responderam: “aquele que liderou a ocupação [Jaime Amorim] era um grande exemplo a ser seguido”. Tais falas eram seguidas de uma impostação da voz e ênfases faciais que nos sugeriram a idealização do tempo da lona, bem como eles se referem ao período da ocupação. Talvez esse tenha sido o tempo mais propício à construção do herói.

Dizer que idealizaram o tempo da lona requer comentários que possam amparar esta afirmação. Reportamo-nos a um fato na história do assentamento, sendo, portanto vivenciado pelos pentecostais pré, pró e pós-ocupação: o assassinato de José Roseno da Costa, presidente da co-operativa em 21 de março de 2004.18 Todos concordam em qualificá-lo como um lutador das causas populares e destacam que o assentamento esteve organizado até o dia de sua morte. Porém, tal fato não aparece inicialmente no discurso dos pentecostais. A não-referência ao presidente é sinal de que idealizaram o tempo da lona e não os tempos posteriores.

Jaime Amorim fazia parte do tempo da lona e, portanto foi atu-ante num momento propício para legitimação das ações dos líderes. A morte do presidente ocorreu num momento no qual a adequação à nova condição de “com-terra” havia se instalado entre eles. Pois já não vivenciavam as situações de incerteza que os acometiam no início do protesto. A interpretação do assassinato de José Roseno da Costa, dada pelos pentecostais e demais assentados, refere-se ao fato dele se colocar explicitamente a favor da preservação ecológica de algumas partes do engenho, terras das quais tentavam-se roubar madeira. Nesse sentido, a morte foi ocasionada por questões políticas.

RePResentações e leGitimação: o PenteCostal no aHs

Regina Reyes Novaes aponta que nas Ligas Camponesas, movi-mento que reivindicava terra que se originou em Pernambuco na década de 1950, o trabalhador quando recorria à justiça, passava a ter a carteirinha de camponês, isto é a carteirinha de filiação às Ligas. Ou seja, as Ligas eram os espaços onde o camponês encontrava o suporte para pleitear sua

(18) José Roseno da Costa, o Tarimba, como era conhecido por todos, foi assassinado no próprio Assentamento. Segundo as narrativas, ele estava em seu bar quando foi abordado por dois homens de moto. Após beberem cervejas deram um tiro na cabeça de Tarimba.

Travessias 200854

causa frente a um tribunal. Nesse processo, havia uma parcela de medo diante das ameaças dos mais fortes. Sobre isso, escreve Novaes:

A experiência coletiva de perder o medo, elemento fundamental na interi-orização da dominação, exigiu, no decorrer do processo, o reforço da iden-tidade do camponês como aquele que adere a um grupo e passa a partilhar seus símbolos e representações, diferenciando-se de outros trabalhadores que não pertencem à mesma organização (NOVAES, Op. cit. p. 53).

Esse fenômeno foi similar a adesão dos pentecostais ao MST. Estes já pertenciam a um grupo religioso que reforça os laços de rela-cionamento. Aderir a outro movimento de ordem secular pressupõe, como em muitos dos casos relatados, romper com os laços anteriores. O grau de dificuldade desse ato reside no fato de que a instituição à qual pertenciam relega a si mesma a instrumentalização do sagrado, que, nesse caso, colocava-se como detentora de todas as respostas para o indivíduo. Assumir outra forma de busca da justiça conjuntamente com pessoas de outras religiões, segundo o depoimento dos interlocutores, seria o mesmo que se entregar a um desvio religioso.

A idéia de pertencimento a um contingente histórico, injustiçado e massacrado pelos governantes, uma idéia presente nas prédicas do MST, fizeram com que os militantes pentecostais se sentissem fortalecidos pela nova escolha, facilitando a assimilação de uma nova identidade. Dessa vez, uma identidade pró-ativa em relação às mudanças da sociedade rural. É essa condição propícia que favorece o aparecimento de pessoas que se tornam personalidades, nas quais se corporificam os desejos dos militantes. Tal situação facilita também o aparecimento de utopias. Na análise do discurso dos pentecostais pré-ocupação, que tiveram um motivo forte para inserção no MST e que significou independência do grupo social anterior, a utopia é permeada de conotação religiosa. A.S.S. expressa bem isso:

Quando Jesus voltar vai fazer justiça e juízo para todos que faz injustiça no mundo. Os homens começaram com esse negócio de pegar um pedação. Desde criança eu ouvi falar da terra forra. Meus avós conta-vam que viria a terra forra para todo mundo trabalhar. A terra forra chegou, assim como chegou a libertação para os cativos que esperava a alforria, a terra também tinha que ser forra (A.S.S, pentecostal e militantes pré-ocupação).

Marisa de Fátima Lomba de Farias percebeu bem a força dessa utopia ao constatar que as representações religiosas dão sentido ao vivido pelas famílias:

Militância Política e Religiosa 55

Sabe-se que historicamente, na terra, se compôs um cenário de relações familiares que se combinou e/ou se fortaleceu com o trabalho na terra, que constituindo espaços de continuidades e (des)continuidades de antigos laços familiares e/ou de sociabilidade. Essas relações familiares são caracterizadas, muitas vezes, por relações míticas com a terra de trabalho, alicerçadas nas representações religiosas, especificamente, de um Deus que ouve ‘a voz do povo oprimido’, o que imprime uma coloração própria às ‘maneiras de fazer’ as práticas cotidianas... (FARIAS, 2006, p. 2).

Nessa perspectiva, o MST “instrumentalizado por Deus”, apresenta-se como mediador eficaz e fundamental para transformar o cotidiano sofrível, num tempo de descanso. A infertilidade da terra se transformaria em abundância de comida. O desprovimento da casa em satisfação dos desejos dos filhos. Portanto, a relação da terra com a libertação dos escravos e com Deus é uma relação que perfaz as ausências de seu passado. A terra apresenta-se, dessa maneira, como a chegada ao paraíso e o direito legítimo de conquista do espaço social.

Essa criatividade é explorada por Michel de Certeau. Ele defende que a individualidade é o espaço onde acontece uma pluralidade, orga-nizada ou não, do que é determinado na coletividade social (CERTEAU, 2005). Na perspectiva de Certeau, a produção da imagem e o uso que se faz dela pode ter duas categorias passíveis de análises: a primeira é uma bricolagem na economia cultural dominante, metamorfoseando o que foi posto como lei, e que, dentro da esfera do dia-a-dia dos indivíduos, vividos em particulares ou em grupos marginais, aplica-se de outra maneira. A segunda categoria defende que a bricolagem surge segundo os “seus interesses próprios e suas próprias regras” (Id. Idib. p. 40).

Esta é uma ferramenta relevante para compreensão do desenrolar do cotidiano dos militantes que se professam pentecostais dentro do MST. As regras, doutrinas e representações oficiais da igreja à qual estão vinculados mantêm-se intactas. A sua interpretação e sua aplicação nas situações vivenciadas pelos sujeitos religiosos, porém, é diferenciada. E essa capacidade inventiva do sujeito pentecostal do AHS está represen-tada no desejo de posse da terra. A sua tomada da terra representou um marco histórico, no qual já estava profetizado que aconteceria: “meus avós contavam que viria a terra forra pra todo mundo trabalhar...”

A percepção da liderança dos grupos pentecostais não recobre o MST com status de sacralidade. Pelo contrário: para esses, o MST é um movimento político, que, embora traga benefícios, instaura uma

Travessias 200856

esfera de guerra, morte e desordem. Representações presentes não só no discurso da liderança como também no discurso dos pentecostais pós-ocupação. O depoimento reproduzido abaixo sobre a razão da igreja se fazer presente no Assentamento é do presbítero R.B.S., responsável pelas atividades religiosas Igreja Assembléia de Deus no AHS: “A finali-dade não é outra a não ser converter o povo para o bom caminho. Bom comportamento, palavras de conselho. É nosso privilégio estarmos ali, conseguimos aquela parte para construir. Queremos ver paz”.19

Já M.S., um pentecostal pró-ocupação, que militou diretamente no MST, na ocasião da ocupação do Engenho Pinto, definiu da seguinte maneira o que representa a paz para a igreja pentecostal presente no assentamento:

Se fosse pra fazer a luta do jeito que o movimento faz ninguém ia querer fazer. Se já é crente, já não é bagunceiro. Num é que nós é bagunceiro (risos), mas do jeito que a gente [o MST] faz eles [pen-tecostais] num faz não. Porque quando parte pra essas coisas eles fala logo: nós num somos disso, nós somos da paz (M.S. Op. cit).

A paz, para os sujeitos pentecostais que ocuparam a terra, repre-senta a sua conquista e a possibilidade atual de nela viver sem o risco da expulsão ou da situação de incerteza que vivenciavam antes de seu engajamento. Em contrapartida, a paz para as instituições religiosas pre-sentes no AHS representa a passividade em questões sociais, ainda que em condições nas quais a incerteza posta coloque em xeque a própria existência. Voltamo-nos a Farias novamente, pois se torna claro que as representações construídas acerca de Deus podem perfazer dois cami-nhos na vida dos indivíduos sem terra: primeiro, conduzir a libertações à medida que constroem um Deus que se apresenta como provedor dos eixos sociais, solucionadores de problemas como saúde, amor, trabalho, etc, e desencadeia atitudes solidárias; mas que pode aparecer como opressão quando as representações religiosas são apropriadas por alguma igreja que geralmente nega a criatividade dos indivíduos para resolver os problemas cotidianos (FARIAS, Op.cit. p. 10).

ConsideRações finais

As representações religiosas são eficazes, pois atribuem às tênues construções humanas valores meta-históricos. Dando dessa maneira uma consolidação que contraria aquilo que mais incomoda o ser humano:

(19) RBS. Entrevista em: 10 nov. 2007.

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as contingências da vida que desorganizam o seu cosmos e, portanto gera crise. A religião entra como estrutura de plausibilidade, pois atribui às verda-des humanas a verdade última da vida. Para Berger, essas construções da realidade humana são contraditórias e precárias; porém, com a explicação religiosa, tornam-se seguras e definitivas (BERGER, Op.cit).

Se há algo, portanto, que questiona a realidade legitimada, é a incerteza da vida em sua durabilidade física. A ameaça da morte desafia, na perspectiva de Berger, todas as definições socialmente objetivadas da realidade. Aqui acontece a heterogeneidade no fenômeno pentecostal que tende a se tornar homogêneo nas correções comportamentais dos indivíduos. No caso do assentamento, a questão da contingência da vida desencadeia o aparecimento de representações diferentes, culminando em sistemas particulares de cada grupo que não corresponde necessa-riamente ao da comunidade religiosa de origem.

Destacamos ainda que o pentecostalismo presente no Assenta-mento Herbert de Souza não pode ser considerado como um movi-mento messiânico no sentido empregado por Queiroz. Ela entende que as crenças messiânicas pressupõem uma necessidade de salvação terrena. A religiosidade que ali se expressa não é um movimento ativo que em prol de suas crenças estabelece um plano de ação na socie-dade com força prática de protesto (QUEIROZ, 1977). Isso se torna claro pelas orientações da liderança aos adeptos de sua religião. Neste sentido, podemos enfatizar que os pentecostais pró-ocupação possuem expectativas messiânicas bastante contextualizadas e ajustadas às situa-ções vivenciadas pelos militantes. Ou seja, seus anseios condizem com a justiça implacável de um ser que corrigirá as imperfeições do mundo, incluindo a questão da posse da terra.

No caso dos pentecostais pós-ocupação, apresentamos as suas características com as semelhanças mantidas com o que Henry Desro-che designou ser a esperança evaporada. Com isso ele quer afirmar que há religiões “tão atestatórias de um além que ela se torna contrária a qualquer contestação” (DESROCHE, 1985, p. 18). Esses pentecostais mantêm uma esperança religiosa sem vínculos com demandas sociais, sobretudo se tais demandas perfaçam o caminho de sua própria atuação de transformação social. Posturas de resignação, mesmo reconhecendo-se beneficiados pela ação de um movimento que agiu contrário ao que pregam. A síntese das representações desses pentecostais acerca da igreja atesta esta afirmação. Para eles, a igreja é o lugar de paz, ou seja, o am-biente onde não deve haver espaços para discussão de tais situações.

Travessias 200858

Já os pentecostais pró-ocupação entendem a igreja como o lugar onde não há traição ou onde as pessoas encontram compreensão, desde que sejam agentes de uma nova situação e que os coloque à margem das doutrinas da igreja. Para os pentecostais pré-ocupação, a igreja é o lugar de união, possivelmente fazendo alusão às formas de decisões instaladas no Assentamento após desapropriação. Para eles, antes, havia ordem e calmaria no engenho; após o MST e a entrada de novas famílias, as decisões passaram a ser tomadas na base da discordância constante e o resultado, na perspectiva dos agentes religiosos, “é mato tomando conta de tudo”. Podemos organizar um quadro comparativo que sintetize as representações dos pentecostais, de acordo com sua entrada no movi-mento. Com ele, damos por encerrado esse artigo.

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Agentes religiosos Representações: Representações: Representações:

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Pentecostais Agente de ajuda aos É de Deus e, Lugar de união Pré-ocupação pobres do Brasil. portanto de todas as pessoas

Pentecostais Mecanismo de Deus É de Deus e, Lugar de pessoas Pró-ocupação portanto de todas as confiáveis. pessoas.

Pentecostais Partido político É de Deus, mas Lugar de paz – não Pós-ocupação violento – Deve ser quem detém violência e não repudiado. autoridade é quem enfrentamento com tem o registro autoridades instituídas jurídico de posse.

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Resumo

As relações entre maiorias autóctones e minorias étnicas-imigrantes lançam importantes desafios à democracia e exigem uma nova gestão política, uma vez que determinadas situações históricas e actuais têm demonstrado que a identidade étnica não traduz uma realidade imutável mas é relacional e tem constituído, na esteira da tese weberiana, uma fonte de clivagem social tão ou mais importante como a identidade de classe. As posições de relativa desvantagem social e económica em que se encontra(va)m membros de minorias étnicas e imigrantes, agravadas pelas definições e categorizações externas por parte dos membros da alegada maioria, comportam tensões e encerram contradições que reflectem as da própria comunidade ou sociedade autóctone. As instituições desta e membros do endogrupo autóctone desejam a ‘integração’ das minorias étnicas-migrantes como exogrupo mas, simultaneamente, reagem, subalternizando-as e confinando-as, por exemplo, à ocupação de determinado lugar sócio-espacial. Por sua vez, os membros das minorias étnicas e migrantes ressentem-se e apresentam formas reactivas de resistência que incitam reviver e rea-limentar a identidade cultural de origem e uma eventual demarcação face ao exterior.

Entre outros modelos de alcance intermédio cabe salientar, por exemplo, em relação à questão da identidade étnica e cultural modelo quadrimodal de aculturação delineado, entre outros, pelo psicólogo social Berry (1980), em que a aculturação, a assimilação, a separação e a

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal: Relações Interétnicas de Acomodação

e Resistência

Manuel Carlos Silva

Departamento de Sociologia – Instituto de Ciências Sociais / Universidade do Minho

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marginalização constituíam modalidades estratégicas dos actores sociais na gestão das suas trajectórias entre a cultura de origem e a cultura da sociedade de acolhimento, sendo avançado o conceito ‘integração’ como referencial dos diversos modos de relacionamento interétnico.

Na base de dados extraídos duma pesquisa entre imigrantes afri-canos dos PALOP no Noroeste de Portugal, nomeadamente no distrito de Braga, o autor contesta os pressupostos funcionalistas deste autor na medida em que assume de maneira acrítica o conceito de aculturação, o qual seria visto como uma espécie de género face às diversas diferenças específicas. Ora, tendo presente os diversos níveis de análise avançados por Bader (1991, 2005), Berry fixa-se na aculturação e na assimilação e arreda da análise os constrangimentos de vária ordem, em especial, a questão fulcral do poder económico e político a nível sócio-estrutural na sociedade de destino, a nível organizacional-institucional e a nível das interacções quotidianas entre a alegada maioria e as minorias étnicas, ignorando os “registos ocultos”, no dizer de Scott (1990), as formas de esquivamento passivo e distanciamento, acomodação instrumental ou resistência silenciosa, aliás sintomáticas de identidades étnicas contidas como as de imigrantes africanos negros em Portugal.

1. intRodução: o PRoblema

Portugal, país tradicional de emigração, tem vindo a constatar nas últimas décadas uma notável mudança societal, ao transformar-se também em país receptor de imigrantes. Não actuando preventivamente nem fornecendo condições sociais mínimas aos imigrantes, como aliás aos próprios portugueses em situação de pobreza, o Estado poderá acor-dar tardiamente quando as clivagens ou os confrontos se manifestarem com a sua crueza ou até crueldade. Por outro lado, convém precaver-nos contra uma forma perversa de ideologia dominante que parte do princípio etnocêntrico que os autóctones ou estabelecidos têm não só o dever como o direito de incorporar ou assimilar os de fora, ou seja, os imigrantes e demais minorias étnicas ou culturais. Por fim, importa ter presente que a declaração do princípio da diferença, se não deve constituir apenas um slogan para afirmar subrepticiamente a supremacia dos nacionais, tão pouco pode resumir-se a um simples alibi ou táctica conjuntural para incorporar os não nacionais a médio-longo prazo.

A questão que se coloca será, contextualizando-a, a seguinte: em que medida os portugueses brancos têm ou não comportamentos preconceituosos e quais as atitudes dominantes dos portugueses face

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a imigrantes africanos negros que desde os anos sessenta e sobretudo após 1974-75 foram afluindo a Portugal? Em que medida as minorias nacionais de imigrantes se sentem e estão inseridos na sociedade de acolhimento, em que medida a desejam e de que modo gerem a sua presença no país receptor? De que modo as instituições serão capazes de gerir as diferenças? Mais, em que medida os portugueses que, não obstante se afirmarem, em regra, não racistas, apresentam contudo práticas e representações veladas de discriminação para com os imi-grantes nomeadamente os africanos negros? E, por fim, verificando-se, como se explicam?

Salvo alguns artigos e recentes projectos – alguns já com resul-tados (cf. MACHADO 1992, 1994, VALA et al. 1999, CABECINHAS 2003, KHAN 2003, Silva et al 2006) – não se têm produzido estudos sistemáticos sobre esta questão em Portugal. Apesar dalguns factos e até visíveis atitudes de discriminação face a negros co-residentes, Portugal (ainda) não conhece, de facto, situações de gravidade semelhante à das cidades inglesas, francesas, belgas, suíças ou alemãs. Tal situação terá provavelmente a ver, como refere Machado (1992:124 ss), com a não concentração residencial e a fraca expressão numérica das comunidades emigrantes – quando comparadas com as de outros países europeus –, com a não existência de fortes contrastes socio-culturais com segmen-tos ou categorias sociais desfavorecidas da população portuguesa1 e até com a presença de continuidades culturais sobretudo linguísticas. Por outro lado, como refere Machado (1992:134), a politização da questão étnica em Portugal encontra-se numa fase, senão embrionária, ainda não consolidada, até porque, para além da omissão política por parte do Estado, o próprio movimento associativo dessas minorias que ali-menta essa politização é recente, fraco e/ou está bastante dependente de partidos de esquerda, solidários com a causa das minorias étnicas, mas de expressão minoritária no contexto nacional.

A par ou em articulação com outras formas de desigualdade (classe, género, idade), etnicidade constitui um dos principais eixos de diferenciação social, clivagem cultural e política, dando lugar, não raro, à “etnicização” da exclusão social (cf. GLAZER e MOYNIHAN 1975, MACHADO 1992:123 ss, FERNANDES 1995:15 ss),2 tal como o reforça Wieviorka (1992:214):

(1) As categorias sociais mais vulneráveis à pobreza em Portugal são, por ordem decrescente: idosos pensionistas; agricultores de baixos rendimentos; assalariados de baixo nível de remuneração; trabalhadores precários e da economia informal; minorias étnicas; desempregados; e jovens de baixa escolaridade e qualificações à procura de primeiro emprego (Almeida et al. 1992: 77).

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a etnicidade é uma categoria que parece dever aplicar-se prioritari-amente a grupos que a nossa sociedade põe à parte, a quem recusa a integração social e económica....

Os grupos étnicos dominantes, sobretudo quando confrontados a viver numa área residencial partilhada com grupos étnicos minori-tários, sentem-se entalados entre a necessidade de respeitar os valores da democracia plural (liberdade, justiça, igualdade) e o sentimento de rejeição para com esses grupos étnicos considerados estranhos e outsiders, sobretudo quando partem do pressuposto que estes são concorrentes e vêm ameaçar a sua posição.

Como diz Wieviorka (1993), as relações entre maiorias autóctones e minorias étnicas lançam importantes desafios à democracia e exigem, como refere Pierré-Caps (1995), uma nova gestão política, uma vez que determinadas situações históricas e actuais têm demonstrado que a identidade étnica tem constituído uma fonte de clivagem social tão ou mais importante como a pertença de classe. Tal como refere Seabra (1994), a própria tensão vivida pelas minorias étnicas entre integração e exclusão encerra contradições que reflectem as da própria comunidade ou sociedade autóctone face a elas, pois esta deseja a integração daquelas, mas simultaneamente reage, subalternizando-as e confinando-as, por exemplo, à ocupação de determinado espaço. Se, por um lado, a retórica oficial proclama o imperativo de integração e a promoção das minorias étnicas, sempre que membros destas acedem a determinados recursos, lugares ou espaços, nomeadamente em meio urbano, e conhecem uma caminhada num sentido ascendente, emergem ressentimentos e fenómenos de resistência por parte de membros da maioria, sobretudo quando, perante a ‘concorrência’ de membros das minorias, se sentem ameaçados, vulneráveis ou precarizados (cf. RUDDER e TABOADA-LEONETTI in SEABRA 1994:16, 17, VENÂNCIO 1999:127). Estas reacções, por sua vez, incitam à revivescência e ao reforço da identidade cultural por parte das minorias étnicas, que realimentam o sentimento de pertença pela preservação dos seus traços identitários, o que contribui para manter e até reforçar processos de distanciamento, quando não de separação e exclusão social interétnica. Tal distanciamento faz com

(2) É a este fenómeno que se refere Machado (1992:123): “falar de etnicidade é, genericamente, falar da relevância que a pertença a determinados grupos étnicos pode adquirir no plano das desigualdades sociais, das identidades culturais e das formas de acção colectiva” e, por seu turno, Fernandes (1995:15): “De uma maneira ou de outra, as pessoas são continuamente afastadas da esfera de bens, privilégios, do mundo dos valores, da escolaridade normal ou de um meio familiar digno” (1995:15).

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que cada grupo tenha uma consciência mais ou menos nítida da sua própria situação social e da posição dos outros, gerando uma potencial eclosão de conflitos, os quais sedimentam, por sua vez, a consciência de cada um dos grupos contendores. Com efeito, um grupo étnico, sempre que separado social e economicamente dos demais ou quan-do, como enfatizam Simmel (1987), Elias e Scotson (1969), Bourdieu (1979), Giddens (1997), se apresenta como distintivo pelas suas origens, vínculos de pertença e práticas culturais, demarca-se de e/ou é demar-cado por outros grupos nas suas relações interétnicas, as quais poderão caracterizar-se ora por co-presença e coexistência, ora por distância e exclusão, ora ainda por afrontamento e hostilidade. As estratégias de preservação das identidades étnicas reforçam-se, sempre que as mino-rias são alvo de processos de exclusão no país de acolhimento ou por parte da etnia dominante, fazendo emergir o que Weber (1978:303) denominava comunidade negativamente privilegiada e Myrdal (1944) designava de subclasse étnica.3 Este conceito em Myrdal foi construí-do a partir da existência de categorias étnicas que sofriam de privação relativa num contexto de pobreza e/ou exclusão social. As subclasses, constituídas, amiúde, por trabalhadores imigrados e outras minorias têm sido e ainda são apresentadas como ‘perigosas’ em certos círculos conservadores, sem que estes se preocupem em aprofundar as raízes e causas da marginalidade e da criminalidade nomeadamente urbana: dificuldades de acesso à escola e situações de desemprego, desintegração social, barreiras socio-culturais e/ou linguísticas, sendo o acumular de obstáculos e dificuldades de vária ordem, nomeadamente o problema habitacional que segrega um determinado grupo étnico como um grupo minoritário excluído e discriminado.

Sempre que a pertença étnica comporte um eixo de diferen-ciação social e sobretudo, como reiteram Machado (1992:123-124) e Seabra (1994:9 ss), ocorra um processo de construção de identidade socio-cultural das minorias étnicas contrastante com o da sociedade en-volvente, estas duas (pre)condições favoráveis a mobilizações colectivas são susceptíveis de desembocar em conflitos interétnicos. Em diversos países e regiões, tais clivagens têm comportado, nas últimas décadas, repercussões tão ou mais relevantes que os conflitos de classe, cujo po-tencial de mobilização tem vindo a diminuir relativamente nas últimas

(3) Era aliás aos grupos desprivilegiados, quase párias, que, vivendo em “comunidades desprezadas”, Weber (1978) se referiu e tipificou na sua classificação de classes, sendo o conceito de pária também retrabalhado na América por Du Bois em torno do negro americano do início do século XX.

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décadas. Já Weber (1978) e neoweberianos como Parkin (1979), Rex (1986:27) alertaram para o facto de que, enquanto as classes ou formas associativas nomeadamente com base na pertença de classe, precisando de ajustar racionalmente os seus interesses, só o adquirem gradualmente ou, em terminologia marxista, forjam a consciência de “classe para si” de modo progressivo, exigindo tempo e compromissos, as filiações étnicas, incorporando um sentimento de pertença e afectividade em base (quase)comunal ou comunitária, beneficiam da particularidade adicional de já possuírem o sentimento de formarem um todo mas disponível para a mobilização, quando necessária (cf. SILVA 2000:64).

2. da “inteGRação” soCial a uma Cidadania PluRiétniCa

Entre outros modelos de alcance intermédio cabe salientar, por exemplo, em relação à questão da identidade étnica e cultural, o modelo quadrimodal de aculturação4 delineado por Berry (1980), em que a aculturação, a assimilação, a separação e a marginalização constituíam modalidades estratégicas dos actores sociais sociais na gestão das suas trajectórias entre a cultura de origem e a cultura da sociedade de aco-lhimento. Berry (1980), embora considere o seu modelo quadrimodal da aculturação como algo não ideal e, como tal, sujeito às mudanças das relações interétnicas, assume de maneira acrítica o conceito funcionalista de aculturação, o qual seria visto como uma espécie de género face às diversas diferenças específicas. O próprio conceito de aculturação, além de herdeiro do berço estruturo-funcionalista, detém, para já em termos etimológicos, uma dimensão de negação ou privação da própria cultura. Donde, admitir aculturação como conceito‘guarda-chuva’ de diversos modos de relacionamento entre os grupos étnicos enferma à partida de um enviesamento teórico, pelo que tal conceito, não dando conta das diversas formas de relacionamento inter-grupal nomeada-mente interétnico, deveria ser banido para este efeito ou, pelo menos, circunscrever-se apenas a abarcar duas das modalidades apontadas por Berry (1980): a assimilação e a integração. Por fim, há que sublinhar que, nesta tipologia arquitectada em torno dos processos de interacção interétnica, Berry (1980) acaba por arredar da análise os constrangi-mentos de vária ordem, em especial a questão fulcral do poder – não só

(4) Para Berry (1980) aculturação é abordada como um fenómeno multilinear, como um conjunto de alternativas (integração, assimilação, separação, marginalização) mais do que uma simples modalidade que desemboca na as-similação ou na absorção por parte da sociedade de acolhimento.

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do poder político na sociedade de acolhimento, mas das várias formas de poder nas diversas esferas societais.

O conceito de integração apresenta para Berry (1980), em termos de médio-longo prazo, uma dupla positividade do indivíduo ou, mais exactamente, uma relação positiva de equidistância, quer em relação à sua própria cultura e ao seu próprio grupo de pertença, quer em direcção aos grupos da sociedade de acolhimento. Esta pretensa relação de equi-líbrio estável nas duas direcções eventualmente opostas não é contudo sustentável a médio-longo prazo, pois o processo de integração não é resultante da simples vontade ou decisão dos indivíduos em questão e, em regra, por razões de tempo e outros constrangimentos, um dos pólos da tensão entre culturas tende a subordinar-se ou a claudicar em função do pólo oposto mais forte. Além disso, há aparentes comportamentos de ‘integração’ e, portanto, de não afrontamento que o são a título me-ramente instrumental ou mesmo de autodefesa no sentido de retirar o máximo proveito possível em termos individuais ou familiares, mas tal não corresponde a uma integração efectiva na sociedade receptora.

A tese de Berry (1980), segundo a qual as chamadas situações de separação e de marginalização seriam, dum ponto de vista sistémico, respostas negativas dos actores sociais e/ou reflexos da incapacidade do sistema em integrar os indivíduos ghetizados ou marginalizados, igno-ra de modo soberano que elas amiúde também exprimem de modo informal, subterrâneo e oculto as formas quotidianas de fuga e resis-tência silenciosas, passivas e, como tal, sintomáticas de uma identidade étnica contida ou reprimida. A identidade colectiva numa situação de separação/demarcação poderá constituir um processo de identificação e mesmo de integração não no grupo dominante mas justamente no seio dos grupos dominados. Além disso, por que é que a dita marginalização implicaria, de facto, a perda total da cultura de origem e/ou que a não integração na sociedade de acolhimento deva ser necessariamente co-notada em termos negativos? Será que os marginalizados serão despidos de alguma forma de cultura? Não será esta visão um vago reflexo de formas perversas de ideologia etnocêntrica que parte do pressuposto que as minorias deverão ser, senão assimiladas, pelo menos integradas, aceitando tacticamente as suas diferenças culturais para num segundo momento as dobrar à cultura, à sociedade e ao Estado dominantes?

Subjacente a este conceito de integração mitigada reside, com efeito, uma estratégia de interculturalismo que Stoer e Cortezão (1999) denominam de ‘multiculturalismo benigno’ e que também designei de

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‘interculturalismo táctico’ (SILVA 2000) que, a curto prazo, visa evitar clivagens e rupturas mas, estrategicamente e a longo prazo, pretende conseguir a incorporação ou a fusão dessas minorias étnicas nos parâ-metros políticos e ideológicos vigentes. Tais estratégias políticas, supos-tamente mais humanistas e democráticas do que a exclusão ou reclusão sociais, para além de não produzirem tão rapidamente os efeitos deseja-dos, são contudo confrontadas com princípios duma multiculturalidade crítica que pressupõe o respeito pela respectiva identidade étnica e pelo reconhecimento dum espaço de afirmação política próprio.

A este tipo de interculturalismo táctico se associam amiúde atitudes de condescendência paternalista que, embora não sejam confundíveis com puras estratégias assimilacionistas, têm certamente em vista a adaptação/acomodação das etnias e (sub)culturas minoritárias às etnias e culturas dominantes. Por outro lado, esta concepção interculturalista, ora táctica, ora ingénua, ignora ou, pelo menos, obnubila duas questões centrais: as diferenças e contradições nas posições objectivas de vida e sobretudo a questão do poder entre ambos os grupos protagonistas e a relação de forças dos respectivos agentes criadores e portadores das diversas culturas.

A interculturalidade adquire relevância e sentido em base de-mocrática mas ela só é, de facto, possível, se, como referem Dias et al. (1997:141), cada uma das culturas aprender a conhecer os seus limites inerentes, se auto-interprete e dialogue com as demais. Daqui se infere a necessidade e a importância do pensamento crítico e do chamado multiculturalismo crítico ou progressivo (cf. SANTOS 1995, TAGUIE-FF 1995:308-344, STOER e CORTEZÃO 1999). Não basta, por isso, proclamar princípios universalistas “que não passam da face iluminada de uma imagem da sociedade de que o racismo é a face sombria” (TOURAINE 1995:42), tal como o demonstra também Wachsman (in PIERRÉ-CAPS 1995:228), ao concluir que o discurso internacional dos direitos humanos traduz a concepção do universal elaborada pelo ocidente numa “contemplação narcísica de si”. Sem menosprezar determinados avanços e conteúdos progressistas proclamados desde o iluminismo, não será que esta razão ocidental se pretende e inclusive se arroga como universal porque se alimenta do poderio económico e político?

Rex (1995:297) considera que “o pensamento político europeu só di-ficilmente ainda admite a ideia de uma sociedade realmente pluricultural”, pois uma tal sociedade pluricultural não só exige que haja uma única cultura política de direitos iguais no domínio público, como também reclama o livre curso da tolerância e do reconhecimento da língua, da religião,

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dos costumes familiares e da cultura das minorias no domínio privado, concluindo que a União Europeia, não cumprindo estas exigências, co-nhecerá cada vez mais racismo5. Mais, a política de exclusão poder-se-á transformar em política de reclusão através de uma integração autoritária e, não raro, violenta e, justamente por isso, globalmente mais ineficaz.

Países assentes nos princípios do Estado de Direito têm desenvol-vido alguns mecanismos contra o racismo flagrante, frontal e agressivo. Contudo, têm surgido, nas últimas décadas, o que alguns autores (TA-GUIEFF 1988, PETIGREW e MEERTENS 1995:127, VALA et al 1999) designam de racismo subtil, o qual, segundo recentes investigações na área da sociologia e da psicologia social é, do ponto de vista cognitivo, relativamente coerente, não se tratando de uma tomada de posição cons-ciente mas mais de um processo subconsciente ou inconsciente.

A acentuação dos estereótipos negativos sobre as minorias étnicas exprime e reflecte a exclusão/rejeição destas por parte considerável dos membros do grupo étnico dominante. Se, por um lado, tais atitudes incitam as comunidades das minorias étnicas a reforçar a sua identidade, refugiando-se nela para alimentar um sentimento de pertença e coesão de grupo e para garantir a sua reprodução social6, tal reforço identitário acentua, por sua vez, a exclusão a que são sujeitos, funcionando estes mecanismos num sentido circular (cf. PINTO 1995:37-51).

As identidades sociais produzem-se a partir da interacção dialéc-tica entre o lugar ocupado pelos actores sociais na estrutura social – na qual interferem basicamente, entre outros, factores como a classe social, o género, a etnia, a idade – e a construção social das mesmas forjadas e incorporadas nas trajectórias dos próprios actores sociais. Na formação das identidades sociais, tal como a conceptualiza Pinto (1991:218), imbricam-se dois processos: um primeiro em que os actores sociais se fundem entre si e se integram em conjuntos mais vastos de pertença ou de referência (processo de identificação); e um segundo em que os actores sociais tendem a demarcar-se, autonomizar-se e diferenciar-se socialmente, fixando, em relação a outros, distâncias e fronteiras mais ou menos rígidas (processo de identização).

(5) Rex (1995) salienta as desigualdades cívicas e sociais que resultam da actual União Europeia e que “separarão os cidadãos da Comunidade Económica Europeia que gozarão do direito de livre circulação e os imigrantes na mesma Comu-nidade que não beneficiarão desse direito: os imigrantes brancos vindos do Leste, os imigrantes originários do Terceiro Mundo e um grande número de indivíduos em situação irregular e de refugiados” (1995:295).

(6) Wieviorka (1993:181 ss) reconhece aqui a etnicidade na sua plenitude: em nome da sua identidade particular, da respectiva experiência ou da necessidade de assegurar a sua sobrevivência em épocas particularmente difíceis, um grupo étnico é capaz de apelar à sua memória para “pressionar” a história.

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A pertença étnica, reivindicada ou atribuída, só existe e será in-teligível na condição de serem pressupostos certos prerequisitos, como vimos acima. As relações interétnicas fornecem-nos um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento das relações sociais, sendo este um código de contraste, na medida em que a identidade étnica se afirma, por um lado, “negando” a(s) outra(s) identidade(s) e, por outro lado, em confronto com ela(s), apreendida(s) num sistema de representações de carácter ideológico (cf. BARTH 1969, OLIVEIRA 1976: 5 ss, SÁN ROMAN 1986, MEMMI 1993).

Do exposto poder-se-á inferir ser necessário não só contrariar os preconceitos e as formas de racismo subtil entre os cidadãos da maioria autóctone dominante como também exigir-se aos Estados europeus, em nome do princípio constitucional da igualdade de tratamento, uma nova atitude para com as minorias étnico-culturais, incluindo obviamente as comunidades de imigrantes. Dum consi-derável grau de práticas discriminatórias e representações racizantes não é pertinente deduzir concepções essencialistas em torno do racismo como se este fosse uma espécie de propriedade intrínseca de determinadas pessoas, enquanto outras seriam imunes a tal. Ele é o resultado de determinadas estruturas e contextos específicos, de relações sociais assimétricas perpassadas de etnocentrismo e dominação de uns grupos sociais sobre outros, caracterizadas por contrastes de identidades, culturas e estilos de vida entre dominan-tes e dominados. Se o conflito em bastantes situações não assumiu outras proporções de confronto mais violento, tal se deve, entre outros factores, ao facto de as próprias comunidades migrantes, além de minoritárias, serem desprovidas de recursos internos e ex-ternos suficientes nomeadamente não deterem capacidade política e organizativa adequada.

Para Lévi-Strauss (1975) – para quem a civilização implica a coexistência de culturas, oferecendo entre elas o máximo de diversi-dade – a civilização mundial, sem negar ou mutilar a originalidade e especificidade de cada uma das culturas, pressupõe a articulação e a aliança das diversas culturas. Vivendo nós em sociedades plurais,7 urge a tomada de consciência deste facto, de modo não só a tolerar mas a aceitar gradamente o diferente, o estranho à nossa identidade e cultura.

(7) Giddens (1997:310) define sociedades plurais como sendo aquelas “onde existe uma grande variedade de grupos étnicos englobados na mesma ordem política e económica, mas, por outro lado, completamente distintos uns dos outros. Fala-se, por isso, em mistura mas não em associação. Vivem todos lado a lado, mas separadamente, dentro da mesma unidade política”.

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Perante os problemas e as ameaças à coexistência e à convivên-cia pluriétnica e multicultural, é curial questionar-se sobre quais os caminhos que se afiguram mais prováveis nas próximas décadas, quer na América, quer, pelas acrescidas dificuldades do modelo político a configurar, na Europa. Uma das pistas de solução, sobretudo defen-dida por certas correntes monolíticas, resume-se à integração pura e simples, ou melhor, à assimilação das minorias étnicas, forçando, senão a curto, pelo menos a médio-longo prazo, os seus membros a renunciar à endogamia, às suas práticas religiosas e demais tradições culturais e, assim, moldá-los pelos padrões, normas e valores domi-nantes. A palavra de ordem seria: “ou te integras e deixas-te assimilar ou põe-te a andar”.

Uma segunda consistiria numa fusão de culturas (melting pot), procurando dar lugar a novas formas culturais. No entanto, dado o maior peso ou influência da tradicional cultura dominante, mesmo que esta não apresente uma estratégia de aniquilação das demais, este modelo acabará no predomínio da cultura autóctone dominante.

Uma terceira defenderia o princípio da diversidade e do plu-ralismo cultural, em que todas as culturas seriam igualmente dignas e reconhecidas. Este caminho é defendido sobretudo pelas organizações das próprias minorias étnicas e organizações anti-racistas solidárias com as minorias e cuja divisa, cada vez mais popularizada, se resume: “Todos diferentes, todos iguais”. A defesa do multiculturalismo não poderá ser simplesmente de ordem táctica e, por outro lado, só poderá ser efectiva, se acompanhada por uma política de partilha do poder e não de sim-ples subalternização estratégica, a médio-longo prazo, das respectivas minorias étnicas e culturais.

Independentemente do modelo social mais adequado para fazer face a este problema, importa assumir como prioridade política, pelo menos, a intensificação de medidas de prevenção, regulação e superação da conflitualidade inter-étnica. Só deste modo é possível, a curto-médio prazo e de modo gradual e progressivo, criar condições favoráveis para combater situações de rotulagem, estigmatização e exclusão sociais e perseguir um objectivo estratégico a médio-longo prazo: a convivência pacífica e a solidariedade entre os portugueses autóctones e os diferentes grupos étnicos.8

(8) cf. respectivamente Becker 1968, Goffman 1988, Weber 1978, Abou 1990, Almeida et al. 1994, Xiberras 1993, Martins 1996.

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Diversos são os autores que vão apontando para a realização deste objectivo a necessidade de uma educação multicultural. Um tal discur-so, ao dar lugar ao reconhecimento da diferença, é um primeiro passo positivo. No entanto, se ele se resumir a uma simples folclorização das diferenças assumidas como exóticas (música, dança, alimentação), tal po-derá revelar a face do ‘multiculturalismo benigno’, a que se referem Stoer e Cortezão (1999) ou desembocar no que Santos (1995) designa com justeza uma “gestão controlada da exclusão”. Quando não caricata, esta folclorização, tranquilizando as consciências e ficando-se não raro pelas boas intenções, comporta efeitos perversos de despolitização anestesiante. O multiculturalismo educativo, quando simples retórica ‘inofensiva’ e sem consequências políticas na relação com o poder, servirá ora para reforçar a guetização, ora para assimilar, numa segunda fase, as culturas e os frágeis poderes dos grupos minoritários. Não basta preservar a identidade cultu-ral, há que fornecer meios e recursos que permitam que os grupos ditos excluídos e desprovidos conquistem eles próprios, de modo organizado, o seu lugar na sociedade, influenciando decisivamente a própria dinâmica do poder local, regional e central. E isto é tanto mais válido e premente quanto se, no processo de globalização transnacional, as identidades das minorias étnicas estão a sofrer uma erosão pela via educativa, ao mesmo tempo a sua identidade e valores culturais podem constituir uma forma de resistência à triunfante lógica da globalização.

O combate ao racismo depara-se, porém, com diversas dificul-dades: uma patente ineficácia devida à falta de vontade política para o fazer e certa argumentação das políticas anti-racistas9 , que contribuem para a “racialização” da vida social e política. É, então, necessário cami-nhar numa outra direcção para que possamos alcançar a atitude que, a nosso ver, é a verdadeiramente positiva – reconhecer o princípio do pluralismo cultural, assumindo as diversas exigências que daí advêm. Revela-se, assim, urgente reconstruir espaços sociais e políticos que combinem três orientações: (i) sentido comum de pertença a uma sociedade; (ii) clareza das escolhas políticas; (iii) e maior participação política (TOURAINE 1995:43).

(9) Taguieff (1995: 309-317) evidencia as contradições ideológicas do discurso anti-racista: a contradição do “pluricultural”, que consiste em enunciar a eminente respeitabilidade das diferenças grupais e, simultaneamente, apontá-las como uma causa da falta de respeito entre as pessoas; a contradição das atitudes eruditas face à “raça”, pois os preceitos legais (que, enquanto proibitivos da discriminação em função da “raça”, pressupõem que as diferenças “raciais” são um factor de discriminações) contradizem a proclamada e provada não cientificidade da noção de “raça”; a contradição das duas tolerâncias, traduzida na necessidade de compreensão entre humanos que não podem compreender-se; a contradição da posição mistófila, que para combater a mistofobia elogia imod-eradamente a mistofilia; o dilema da hipertolerância diferencialista e da concepção assimilacionista da cidadania, traduzida na oscilação entre os ideais da coexistência e da assimilação progressiva

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 73

Neste sentido Taguieff (1995: 308-344) salienta a importância do desenvolvimento do pensamento crítico capaz de reconhecer os seus próprios limites, o que deverá envolver a participação da escola, pois a prevenção pela educação é, segundo o autor, essencial para combater os preconceitos, embora tal missão seja complementada pela respon-sabilidade intelectual dos jornalistas, uma vez que o exame crítico do racismo contemporâneo tem de considerar as suas duas principais características: a hipermediatização e a instrumentalização políticas. Paralelamente, há que antecipar o racismo através de políticas volun-taristas geradoras de uma ética da responsabilidade capaz de criar um “civismo anti-racista que, juntamente com a virtude da justiça, redescobriria as da generosidade e dedicação” (TAGUIEFF 1995: 344).

3. entRe a inseRção, a CondesCendênCia PateRnalista e a exClusão soCial

Dadas as dificuldades e barreiras de selecção no sistema educativo e as desiguais oportunidades no acesso ao emprego e/ou à criação de empresas no país de origem e no pais de acolhimento, a grande maioria dos membros das minorias étnicas não integra as classes empresariais ou as profissões libe-rais e sente-se confrontada, em termos de emprego, em posições marginais, instáveis e precárias, tal como se pode constatar do seguinte retrato sócio-profisssional dos grupos migratórios provindo dos PALOP10:

(10) A pesquisa foi realizada no distrito de Braga e sob a minha orientação (Manuel Carlos Silva), na sequência de projecto aprovado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (POCTI/SOC 103/96/2001) realizada em 2001- 2003, cujo relatório final foi concluido em 2006. Para além de um inquérito elaborado a portugueses não ciganos com uma amostra de 2000 inquéritos e uma amostra de 142 inquéritos a portugueses-ciganos,

Fonte: IIAPB, 2003

Gráfico 1: Profissão actual dos imigrantes dos PALOP

0 5 10 15 20 25 30 35 40 Operário fabril ou de construção civil Empregado do comércio ou serviços

Artesão Pequeno comerciante

Trabalhador qualificado assalariado Profissão liberal

Estudante Outra

n = 287

Outra

Estudante

Profissão liberal

Trabalhador qualificado assalariado

Pequeno comerciante

Artesão

Empregado do comércio ou serviços

Operário fabril ou de construção civil

0 5 10 15 20 25 30 35 40

Travessias 200874

Apesar das dificuldades de aceder a trabalhadores do sector se-cundário – parte deles em situação irregular – foi possível constatar que 39% dos inquiridos eram operários fabris, da construção civil ou artesãos, os quais, acrescidos dos 12% empregados no sector terciário (comércio e serviços), somam uma maioria de 51%.11 Ou seja, as ditas subclasses étnicas, além de deterem, em regra, posições de desvantagem e dependência, mantêm amiúde ocupações pior remuneradas no mercado de trabalho (cf. gráfico 3), deixam de ser objecto de igual tratamento e protecção perante a lei e são não raro alvo de discriminação por parte de agentes das várias instituições (policiais, de saúde, segurança social, escolares). Além disso, amiúde, por razões de enconchamento identitário ou mesmo de autodefesa, constituem-se em mundos isolados, separados ou até segregados em ghettos, cuja baixa ou nula comunicação com fo-râneos provoca sentimentos de insegurança e medo junto de membros das comunidades autóctones, o que reforça os processos de rotulagem e estigmatização das minorias étnicas.

É correntemente assumido como desejável que os imigrantes e minorias étnicas se integrem e sejam integradas na sociedade envolvente, maioritária, sem que se problematizem os termos em que a almejada in-tegração possa e deva ocorrer. Porém, antes de discutirmos e avaliarmos a justeza ou não desse desiderato, importa aferir o que se entende por cada conceito, procurando destilar alguns critérios que permitam traduzir e concretizar cada um deles. Pela minha parte problematizo o conceito de integração pela ambiguidade que encerra e, de modo inequívoco o rejei-to, quando ele implique homogeneização e subalternização das culturas vindas de fora, porque, tal como referem Dias et al. (1997:141), sendo “um conceito socialmente manipulado sob uma perspectiva funcional, significaria uma espécie de assimilação elegante, sem hostilização, que de forma subtil constitui um marco num Estado de Direito … que garanta direitos e oportunidades para todos os cidadãos”. É este aliás o conceito-chave que é invocado por Berry (1997) que, tal como o resumi na rubrica 2., arquitecta uma tipologia de quatro possíveis respostas dos actores sociais ao meio envolvente: duas

foi elaborado um inquérito específico a africanos negros com uma amostra de 300 inquéritos a afri-canos negros residentes no distrito de Braga, sendo este último inquérito o que diz respeito ao texto. O questionário foi estruturado nas seguintes componentes: identificação pessoal em termos de variáveis como sexo, idade, estado civil, nacionalidade, profissão, habilitação escolar, situação e antecedentes antes da vinda para Portugal, motivos da emigração, apoios institucionais e informais, trajectória laboral, salários/renta, condições de trabalho, tipo de alojamento e equipamentos domésticos, relações com vizinhança, dificuldades de inserção social, relação com autoridades, percepções e representações sobre portugueses, crenças e afinidades políticas,caracterização dos africanos, expectativas para os filhos, etc.

(11) Convém ter presente que um não desprezável número de respondentes declara que, além da profissão prin-cipal na construção ou nos serviços, tem outro trabalho complementar, tendo alguns, nomeadamente guineenses, referido ser também futebolistas, certamente em clubes de terceira divisão ou locais.

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 75

adaptativas, consideradas positivas tais como a integração e a assimilação e outras duas vistas como negativas: a segregação ou marginalização.12 Ou seja, dependendo do grau de satisfação, da incorporação linguística e cultural, do desempenho económico, assim será o grau de integração dos membros das comunidades migrantes, um posicionamento que converge, de certo modo, com o assumido por Rocha Trindade (1995:358).

Um outro conceito mais sofisticado mas aceitável e que tem sido utilizado é o de inserção, o qual já não tem todavia a mesma conotação po-lítico-ideológica de subalternização social e cultural em relação à sociedade e cultura dominantes, mas tão só a inserção social em termos habitacionais, laborais, educativos, enquanto cidadãos, não lhes sendo exigido pautar-se pelas normas e valores da cultura dominante. Eis, portanto, a questão que importa indagar, tendo em conta o que já pudemos apurar e continuare-mos a desenvolver. Não há, a este respeito, uma resposta uniforme, pois, enquanto observamos e comprovamos haver membros das comunidades migrantes dos PALOP inseridos na sociedade portuguesa, na perspectiva acima referida, outros há que de modo algum se sentem inseridos e outros ainda estão em parte inseridos mas reservam para si espaços e nichos da sua identidade sócio-cultural, vivendo um processo de relativa adaptação de maneira instrumental, tal como mostraremos quer em termos quantitativos, quer em termos qualitativos. Assim o clarifica Vasco:

Isto é dificil, eu tive que vestir muitas capas e, passe a expressão, engolir muitos sapos. Tinha que vestir a capa de que a minha posição era uma posiçao inferior, tive que vestir essa capa. Tive que vestir a capa de que estava tudo bem e de que estava satisfeito com o patrão, com a empresa e com o trabalho; tive que vestir outra que considerava a maneira e o ritmo como se trabalhava, aquilo era escravatura moderna entre aspas: era violento o ritmo de trabalho, havia uma diferenciação nítida entre pessoal africano e pessoal não africano a trabalhar, e depois houve também umas coisas caricatas que tive, que observei, que tive que engolir. Havia muita exigência, muita pressão, nao havia maneira de tratos – tipo faz isso -, não sei se é linguagem própria da construção civil – a linguagem da construção civil é muito própria, é muito rude -, mas também assisti a muito absentismo da parte do pessoal, o pessoal sempre que tivesse uma oportunidade para não trabalhar, não trabalhava e nas situações mais delicadas possíveis, desde estar a dormir em cima de um andaime, num quarto escuro com risco de cair, o pessoal às vezes dizia que aquilo era para se vingar das pessoas que os tratavam muito mal (st,s,h,33 anos, bancário)

(12) Tal como referi no enquadramento teórico, o autor peca de um psicologismo de cariz individualista porque não analisa o contexto e as diversas variáveis presentes na interação dos actores sociais, para além de assumir como padrão referencial os valores da cultura dominante.

Travessias 200876

Quanto questionado se tinha sido discriminado no trabalho e como se sentia, Vasco é peremptório:

“Sim fui discriminado, sim objectivamente, como os outros. Sentia-me muito revoltado e às vezes pensava que, se eu tivesse um outro meio de ganhar a vida, abandonava logo; cheguei mesmo a confrontar as pessoas com esse tipo de situação. Se calhar, eu tinha mais à-vontade de fazer isso porque sabia que aquilo não ia ser futuramente a minha vida, não ia ser o meu futuro e, então, estava à-vontade e confrontava muito os patrões e as pessoas, refilava muito e discutia; e o facto de eu refilar e discutir granjeou-me um outro estatuto, mudaram-me, continuei na construção civil mas passaram-me para um trabalho mais leve, e havia comentários do género – “vê-se que você nao é pessoa para esse trabalho” – e eu uma altura perguntei – “quem é que é pessoa para esse trabalho?” – era mais ou menos, isso e muito mais, coisas muito complicadas”. (st, 33 anos, operário e agora bancário).

Deste modo, as modificações na variável inserção serão determi-nadas pelos perfis de cada grupo, analisados no âmbito das condições de vida reais e das mundividências culturais, onde se formam sistemas sociais diferenciados e aí se produzem universos simbólicos específicos. Neste sentido, torna-se pertinente auscultar os actores sociais sobre o grau de facilidade ou tipos de dificuldades de adaptação e inserção na sociedade de acolhimento:

Da análise do gráfico 2 podemos constatar que os inquiridos destacam três principais dificuldades no processo de adaptação: ao nível dos hábitos e costumes (50%); na esfera da habitação (38%) – situação que pode, em parte, ser explicada pelo preconceito – e no mundo do

Gráfico 2: Dificuldades encontradas no processo de adaptação

Fonte: IIAPB, 2003

0% 20% 40% 60% 80% 100%

Língua

Trabalho

Hábitos/costumes

Serviços públicos

Habitação

Outros

Sim Não

n = 283

Outros

Habitação

Serviços públicos

Hábitos/costumes

Trabalho

Língua

0% 20% 40% 60% 80% 100%n= 283

SimNão

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 77

(13) Sobre as categorias em situação de precariedade e de pobreza, referem Almeida et al (1994:91), “de modo geral, as categorias da população mais vulneráveis à pobreza, são essencialmente os desempregados de longa duração, jovens à procura do primeiro emprego e certas minorias étnicas, nomeadamente africanos, asiáticos, ciganos, deficientes e idosos com recursos limitados.

trabalho com 35% de respostas. A língua surgiu como o obstáculo menos frequente (10%), situação que se compreende quando constatamos que 64% dos inquiridos fala, em casa, a língua portuguesa.

Embora sob formas não tão extensas e dramáticas como nalguns bairros das grandes áreas metropolitanas como Lisboa e Porto, tam-bém em Braga, a par de imigrantes que têm conseguido um razoável emprego e nível de vida, uma parte considerável deles é afectado por situações de exclusão social e de pobreza relativa, quando não absoluta, constituindo os imigrantes africanos uma das categorias vulneráveis à pobreza e precariedade social a que Almeida et al (1992:91) se referiram na sua tipologia sobre pobres e excluídos sociais na sociedade portu-guesa.13 Procurando saber os níveis de remuneração salarial, obtivemos os seguintes resultados distribuídos nos seguintes escalões:

Analisado o gráfico, ressaltam, em primeiro lugar, como traço dominante, os baixos salários: 37% situam-se entre 401 a 600 euros e 33% entre 251 e 400 euros, a que acrescem 4% que se encontram abaixo dos 250 euros. Apenas 14% ganham entre 601 a 700 euros e uma menor fatia de 9% entre 701 a 800 euros e 1% com mais de 800 euros. Assim, 76% dos inquiridos recebem apenas um salário abaixo do salário médio, dos quais parte considerável (acima de 30%) abaixo do salário mínimo. A esta discrepância não serão alheios processos de

0% 20% 40% 60% 80% 100%

0 5 10 15 20 25 30 35 1982

Gráfico 3: Salário médio mensal

Fonte: IIAPB, 2003

801€ e mais

701€ - 800€

601€ - 700€

401€ - 600€

251€ - 400€

menos de 250€

Travessias 200878

discriminação salarial também em função da origem étnico-racial, de género ou simplesmente migratória.

Para parte dos imigrantes o primeiro problema é mesmo o do próprio acesso ao trabalho, o qual, permitindo a percepção de um ren-dimento, proporciona ao indivíduo a possibilidade de acesso aos bens materiais, de consumo e todo um conjunto de necessidades a satisfazer em termos materiais, políticos e cultural-simbólicos. O poder de compra resultante da remuneração salarial constitui como que a base nuclear que orienta e abre possibilidades aos indivíduos não só de satisfazerem as suas necessidades, como de elevarem a sua autoestima e o seu sentido de dignidade cidadã. Assim, uma permanente diferenciação salarial em relação aos autóctones, para não falar nalguns casos de não pagamento, propicia o surgir do sentimento de discriminação, podendo, em casos mais extremos, levar à exclusão social. Para além do predomínio de baixos salários e da execução de trabalhos mais duros e mal pagos, acrescem ainda as diferenças salariais entre homens e mulheres: 84% das mulheres aufere menos de 600€/ mês (contra 70% dos homens), sendo que destas 49% recebe entre 251-400€ (cf. anexo 1).

Para além de trabalhos com salários baixos e da execução de trabalhos mais duros, do ponto de vista do esforço físico, nas grandes obras públicas, de infraestruturas (pontes, autoestradas) e de construção civil, o que mais magoa os imigrantes negros é a discriminação de que são objecto: “Eu lá no trabalho sou visto como o diferente, todos me tratam não pelo nome mas como o black” (g,h,35 anos, armador de ferro) e um outro: “Há a ideia de que tudo que vem de África não tem capacidade de pensar!” (cv, h, 21 anos, estudante).

Quanto a descontos, segundo os dados obtidos, ao lado de 41% que fazem descontos para a segurança social e duma parte menor com cerca de 9% que têm seguros privados ou outros, há um considerável contingente de 30% que não têm qualquer seguro em contexto laboral ou privado. Por outro lado, questionados sobre quais as mudanças no percurso migratório, para 47% dos inquiridos o processo migratório não trouxe alterações significativas ao nível das suas condições de vida, apesar de 43% afirmarem que houve melhorias substanciais contra os 7% que dizem ter piorado – o que terá sobretudo ocorrido aos que por razões de descolonização ou de guerra saíram do seu país, forçando-os a descida de estatuto ou a piorarem as suas condições económicas. Se o melhoramento no nível das condições de vida é algo que sobressai para uma parte dos inquiridos, tal não se estende à maioria como verificamos.

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 79

Falar em condições de vida, principalmente em percursos migratórios, leva-nos a acrescentar a questão das estratégias de poupança que são encetadas pelos imigrantes e que os leva a reconhecer que “valeu a pena” emigrar, independentemente do seu projecto de regresso/ permanência. Enquanto uns denotam dificuldades de inserção e adaptação à socieda-de receptora, outros conseguem estabelecer pontes e ligações, pela via escolar e/ou laboral, em parte também dependendo tais atitudes dos tempos de residência e fixação no território, em particular das relações de vizinhança, amizade e pelas vicissitudes do percurso ou pelas relações de amizade e/ou ligações afectivas e emocionais que vão construindo nos seus próprios espaços, esbatendo-se diferenças em processos de mis-cigenação com casamentos ou uniões de facto interétnicos. O tempo de permanência tem efeitos diferentes sobre os imigrantes e, numa análise ao destino das poupanças, constatamos que 32.5% dos inquiridos poupam para comprar uma casa em Portugal, 21.9% poupam para regressar ao país de origem e 14.4% para enviar para a família.

Se uns adiam o projecto de regresso, outros consolidam esse pro-jecto consoante os tempos de imigração. Por sua vez, 50% dos imigrantes inquiridos responderam que pretendem regressar por razões diversas das quais se destaca, com maior número de respostas (29%), outras activida-des para além das tipificadas, normalmente associadas às qualificações; e de seguida, com 25% que quer investir em pequena empresa ou em pequeno comércio (25%), 35% ainda não sabe se regressará e 15% não pensa em regressar alegando, como motivos, ter melhores condições de vida em Portugal (40.3%) e ter família já estabelecida (28%).

Esta questão do regresso/permanência põe em relevo a vivên-cia – contraditória nalguns casos – entre nacionalidade e cultura, o ser português por nacionalidade, mas africano na cultura. Representando a nacionalidade um vínculo jurídico por parte do cidadão a um país e a um Estado, para os imigrantes que pretendem permanecer em Portugal, a aquisição da nacionalidade constitui o derradeiro e culminante passo do processo gradual de inserção neste país.

Da lista de instituições listadas verifica-se que as entidades mais procuradas pelos imigrantes são o hospital (82.7%), o Serviço de Es-trangeiros e Fronteiras (SEF) (79.7%), o consulado (71.4%) e o centro de Saúde (77,8%). As opiniões que os imigrantes têm da acção destas entidades não são nem boas nem más, apesar de podermos verificar uma tendência para uma apreciação negativa em relação ao serviço das repartições públicas.

Travessias 200880

“...quando nós nos dirigimos a uma instituição qualquer (...) de uma forma geral, o africano existe como uma pessoa que veio entre aspas desenrascar-se – como nós dizemos em São-Tomé –, uma pessoa que não tinha lugar para cair morto, há sempre aquele tratamento de ter-ceira, de rejeição, a forma mesmo inclusive de falar connosco já mostra que a abordagem que a pessoa faz da questão ja é uma abordagem pejorativa. Por exemplo, quando vamos anualmente renovar os nossos vistos, creio que no SEF, aliás, muitas das vezes é onde se nota maior discriminação”. (st, homem, solteiro, 21 anos, estudante).

Em suma, é em relação aos serviços públicos que várias queixas fo-ram formuladas, dirigindo-se mais em relação ao SEF e outras repartições públicas, incluindo também as escolas. Ora, como veremos, estas formas de discriminação institucional reforçam a produção da diferenciação entre o “nós” e o “eles”, cavando mais o fosso já existente na própria sociedade.

4. soCiabilidades e inteRaCções Quotidianas na Comunidade envolvente

Para os imigrantes é crucial manter as solidariedades familia-res e grupais e as redes interpessoais que permitam a sua inserção e suportem, também, novas estratégias migratórias. Um dos factores determinantes das migrações é, precisamente, o acesso a redes sociais de parentesco e amizade, que já existiam nos países de acolhimento. A solidificação dos mecanismos de solidariedade e dos laços de entrea-juda são uma primeira fase indispensável, porque estas sociabilidades, no quadro dos processos de reprodução, sobrevivência e reciprocidade, permitirão estratégias de maximização das possibilidades de obtenção de sucesso no processo de adaptação.

Desta forma, de entre os tipos de sociabilidade existentes e, para além dos já analisados apoios no momento de chegada e dos relacionamentos com as diversas instituições da sociedade de aco-lhimento, são de relevar, principalmente, as relações de vizinhança, as amizades que se vão construindo no dia a dia. Quanto às relações de vizinhança, vários dos inquiridos e, posteriormente, entrevistados consideram que têm sobre as relações de vizinhança outras atitudes e práticas diferentes das que ocorrem não só entre eles como das que têm lugar entre os portugueses:

O que eu achei mais complicado foi lidar com as pessoas, porque eu cumprimentava sempre com um bom dia, por exemplo, e ninguém me dava resposta. Eu ficava mesmo chateada! (g,mu, 41 anos, cabeleireira).

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 81

A mesma ideia é expressa por um caboverdiano que, no seu dia a dia, fez notar o seguinte:

Lá em Cabo-Verde, se me relacionar com uma pessoa durante três semanas, depois se passamos na rua cumprimentamos, quer passe um ou cinco anos. Aqui as pessoas viram a cara! (cv,h,21 anos, estudante).

Alguns dos entrevistados mostraram um certo espanto perante o modo como os próprios portugueses, de uma maneira geral, são in-sensíveis a diversas situações sociais de exclusão como o caso dos “sem abrigo” e os “velhos”.

Eu não percebo a mentalidade aqui, porque aqui quem está mal, está mesmo mal, porque ninguém ajuda. Nós não somos assim. Por exemplo, os sem abrigo dormem no chão, à chuva…Se um tiver a dormir à porta do meu prédio, eu não vou conseguir dormir descansada! No meu país isso não acontecia, alguém ia arranjar um sítio. E os velhos? Aqui deixam-se no lar. Isso entre nós não acontece (g, mu, 41 anos, cabeleireira).

No que concerne as relações de vizinhança, 92% dizem não ter problemas, mas esta percepção positiva do relacionamento com a vizi-nhança se deve principalmente ao facto de, a par das proximidades entre africanos e sobretudo conterrâneos, se verificar distanciamento consciente dos membros das comunidades migrantes face à maioria branca.

Como estratégia eu tenho de fazer a minha vida e não me meter na vida dos outros, não me meter em situações desagradáveis e fazer a minha vida (a, 28 anos).

eles não me chateiam para não haver problemas, é essa a relação que eu tenho com eles (...) para evitar problemas, para evitar confusão, para ficar na minha, convivemos, damo-nos bem, há portugueses espectaculares, como há portugueses maus, como para nós, há africanos espectaculares, há africanos que não prestam. (m,s,h,24 anos, estudante).

Se a estratégia de evitamento surge como forma de obviar si-tuações de conflito e confronto, não deixam de transparecer, também, quesílias latentes ao nível das relações interétnicas ou interfamiliares, como nos deixam percepcionar as conclusões de estudos parcelares realizados em Vila Verde e em Barcelos, entre portugueses versus ciganos-portuguees e cidadãos negros (cf. Silva e S.Silva 2002; Silva e Pinto 2004). A maioria de respostas refere um bom relacionamento com a vizinhança; os respondentes que referem algum problema apontam como principais motivos os vertidos no gráfico 4:

Travessias 200882

Dos motivos invocados, a par de 34% que aduzem “falta de com-preensão” e “falta de diálogo” e 55% que apresentam “razões culturais”, sobressaem, com 79% das respostas, motivos racistas:

Não fui bem aceite na família do meu marido. Senti e vivi muito racismo na escola” (a,mu,cs,53 anos, licenciada, professora 1º ciclo)

“Tínhamos um vizinho (...) que dizia que ouvia barulho da nossa casa, é incrível podia ser barulho exterior, mas ele dizia que era da nossa casa, e sempre, pra aí à meia-noite, ele tocava a campainha porque estávamos a fazer barulho; é que ele chegou quase a bater-me na escada (...) só porque eu respondi, porque ele disse “vocês pretos só vêm pra’qui fazer confusão, vocês deviam voltar para a vossa terra”, e eu respondi “então que tirem todos os portugueses d’África”. (...) Eu tive que avisar o senhorio, é que era mesmo implicância (st,s,m,21 anos, estudante)

Alguns, ao referirem que a maioria dos portugueses é racista, não deixam de reconhecer também o inverso (“os negros são também racistas” (a,h,24 anos, operário), mas justificam-no por razões defensivas, por retaliação ou em nome da honra: “os negros são também racistas mas em defesa de honra pessoal ou de grupo” (a,h,s,29, estudante universitário), ou simplesmente “por causa de não darem os mesmos direitos de um português” (a, h, s, 30 anos, curso médio, vendedor). O mesmo se diga quando os portugueses os avaliam como pessoas agressivas, mostrando sê-lo quando se sentem objecto de discriminação ou tratamento injusto:

Agora acho que a agressividade é agora menor, mas se a gente não é agressiva, está feita, a gente tem que se defender, por isso passa a ser um traço mais frequente. O africano, se lhe ‘baterem’ e ele souber que têm razão, deixa, fica quieto, mas se soube que quem lhe bateu não tem razão, uih, ele tem de levar a dele avante!

Gráfico 4: Motivos dos problemas com os vizinhos

Fonte: IIAPB, 2003

Outros

Receio do diferente

Falta de diálogo

Razões culturais

Falta de compreensão

Motivos racistas

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

n= 26Sim Não

0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% 100%

Motivos racistas.

Falta de compreensão.

Razões culturais.

Falta de dialogo.

Receio do diferente.

Outros

sim não

n = 26

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 83

A seguir aos motivos de racismo são apontadas, em ordem de-crescente, as razões culturais (55%), falta de compreensão e/ou diálogo (29%) e, embora residualmente, o “receio do diferente”, um motivo aduzido e valorizado heuristicamente por alguns psicólogos sociais (cf. Vala et al. 1999), o que de resto transparece nalguns dos desabafos: “Para mim o maior entrave é a questão cultural, a questão é a falta da compreensão, a estranheza” (h,a,s,29,estudante universitário). Talvez este e outros mo-tivos de estranheza face ao diferente possam explicar por que é que a taxa das respostas negativas ao “encontro frequente com vizinhos” seja largamente superior às respostas positivas: 62% não tiveram contacto com vizinhos versus 38% que o tiveram.

Este resultado já é por si sintomático dos processos de evitamento e menor frequência de contacto com vizinhos. Porém, o evitamento, tal como o definiu Goffman (1974), tanto pode ser expressão duma estratégia consciente e de omissão calculada com contornos discri-minatórios, como também pode ser reflexo condicionado do medo pelo diferente derivado do desconhecimento mútuo, da angústia em torno do desconhecido, supostamente assumido como “perigoso” ou preconcebido como “raiz de incerteza, perturbação ou mal estar”. No caso específico dos imigrantes africanos, encontramos as questões das representações que se vão formando acerca dos residentes negros e que podem, de facto, ser um obstáculo ao relacionamento

O problema da imigração é que há uma má imagem em torno do imi-grante…Enquanto as pessoas virem os africanos como alguém agres-sivo, vai ser difícil a gente integrar-se. Generaliza-se muito as coisas… Para mim o maior entrave é a questão cultural, a questão é a falta da compreensão, a estranheza (a, h, 29 anos, estudante universitário).

Se pretendermos destrinçar como é que os diversos grupos das diferentes nacionalidades convivem ou não com os vizinhos brancos, os dados do inquérito evidenciam os seguintes resultados:

Angolana Guineense Moçambicana Caboverdeana S. Tomense Outra Total

nº % nº % nº % nº % nº % nº % nº %

22 17 2 7 7 19 8 14 3 23 13 37 55 19

68 54 16 59 18 49 32 56 7 54 13 37 154 52

37 29 9 33 12 32 17 30 3 23 9 26 87 29

127 100 27 100 37 100 57 100 13 100 35 100 296 100

Indiv. Portugueses

Outros imigrantes

Portug e imig

TOTAL

Quadro 5: Convívio com grupos por nacionalidades

Fonte: IIAPB, 2003

Travessias 200884

Como podemos constatar, e numa primeira leitura, a maior parte das amizades/ convívio é feita com outros imigrantes do mesmo país (52%) e, dentro desta percentagem, a amizade intra-grupal, ainda que transversal aos vários grupos, é mais visível entre os guineenses (59%) e os cabo-verdianos (56%). 29% afirmaram que se relacionam amiga-velmente com portugueses e imigrantes e 19% só com portugueses, sendo que aqui se destacam os moçambicanos e os santomenses. Assim, verificamos que existe um adensamento das redes de sociabilidade intra-imigrantes pelos contactos e pelas amizades que se vão construindo.

O grau de etnicidade variará consoante os contrastes sociais e culturais que demarcam as minorias e as maiorias no contexto em que se inserem. Segundo Machado (1992), apesar do aumento e da diversi-ficação das minorias étnicas em Portugal, com especial relevância para os grupos étnicos vindos dos PALOP, o fenómeno da etnicidade é, até ao momento, pouco expressivo. Também em Braga foi possível verificar situações de privação entre imigrantes e não imigrantes no que respeita as condições socio-económicas, o alojamento, assim como modos de vida e processos de identificação similares em relação à língua, à filiação religiosa. Ou seja, a par de algumas diferenças significativas entre uns e outros, há também claras continuidades em termos de condição social desfavorecida entre a maior parte de imigrantes e uma franja significativa de portugueses autóctones em situação de pobreza. Não obstante estas continuidades, as sociabilidades e relações interétnicas, nomeadamente entre africanos negros e portugueses autóctones são ainda relativamente débeis, sobretudo no tocante aos cruzamentos que impliquem relações de intimidade e sobretudo casamentos interétnicos, tal como o refere um estudante angolano:

Quanto à comunidade africana aqui em Braga em relação à comuni-dade portuguesa, da experiência que eu tenho, digamos assim, há uma disparidade, uma certa discrepância, um certo afasta mento, porque não é muito fácil um africano namorar ou contrair casamento com uma moça que seja portuguesa. Isso é um problema às vezes, não, isso é uma ameaça às vezes. Os portugueses entendem que isso poderia estragar a raça e eu acho que isso está mal. Porque quando uma pessoa gosta da outra e a outra também, deve-se permitir que as coisas se passem. Se os pais intervierem para que não se realize, acho que isso é mau, acho isso mal (a, 40 anos, estudante).

Em matéria de acolhimento, a análise do gráfico 6 permite-nos destacar três principais posições: a mais consensual que se prende com uma razoabilidade do acolhimento, com 56% das respostas; as posições

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 85

francamente favoráveis, do “bom” ao “óptimo”, que concentram 18% das opiniões; e as abertamente desvaforáveis (“mau” e “péssimo”) que são emitidas por 26% dos inquiridos.

De “são boa gente” (g, mu, 42 anos, limpeza) a atitudes mais negativas como “Eles mandam-nos embora quando querem. Nós somos colónia portugue-sa, mas nós não merecíamos (g, mu, 44 anos, 12º ano, serviço de limpeza) a percepção relativa ao acolhimento é razoável, o que se pode prender, efectivamente, com lógicas de tolerância e de não hostilização, mas desde que “cumpram as suas obrigações”. Ou seja, segundo uma entrevistada “alguns portugueses ‘racistas” não nos aceitam, querem que ocupemos o nosso lugar, não tolerando que ascendamos numa posição acima deles” (g, mu, 42 anos,12ºano, mulher de limpeza, professora na Guiné), o que é constatável, como vimos noutros textos (SILVA e SILVA 2002, SILVA e PINTO 2004), nas visões e nos discursos dos autóctones sobre os imigrantes e os ciganos.

À excepção de uma minoria residual de 2% para os quais os portugueses “não discriminam nem são racistas”, para 54% só alguns portugueses são racistas, para 30% “os portugueses são na sua maioria racistas”, para 14% os “ portugueses são todos racistas”, um retrato que não deixa de suscitar alguma preocupação. Mesmo podendo relativizar os 14% que dizem que todos os portugueses são racistas, questão que não deixa de ser produto de vivências concretas de discriminação, o certo é que 30% considera que a maioria dos portugueses é racista.

...no norte, tendo em conta o conservadorismo que ainda se verifica cá, pronto, o tratamento já é diferente, porque as pessoas têm uma certa resistên-cia em aceitar a diversidade étnica, a diversidade racial, e qualquer tipo de inovação é facilmente rejeitado (st, homem, solteiro, 21 anos, estudante).

Gráfico 6: Percepções sobre o acolhimento dos portugueses

Fonte: IIAPB, 2003

n= 297

Mau 16%

Péssimo 10%

Óptimo 3%

Bom 15%

Razoável 56%

Travessias 200886

Estas representações negativas sobre os portugueses na sua interação com os imigrantes articulam-se e traduzem também percepções e convicções em torno de questões mais relacionadas com factos discriminatórios, sobretudo em relação a negros e a portugueses ciganos, avaliações que, embora com diferentes graus, são anotados no seguinte gráfico:

À parte a resposta generalizante e talvez simplista de que todas as pessoas estrangeiras são discriminadas (19%), os mais discriminados são, na opinião de 48% dos inquiridos, os negros e os ciganos que, quando somados aos 14% que só referiram ciganos e aos 19% que só mencio-naram os negros, faz subir esse valor para 81%. Os inquiridos conside-ram, contudo, que os negros são os mais discriminados, situação que poderá estar claramente associada a experiências e vivências subjectivas de construção de sentido da sua realidade e do seu estatuto enquanto imigrante. Apesar desta opinião, não deixa de ser clara a consciência de que o racismo é visível tanto por parte dos portugueses como dos negros. “Racismo há em todo o lado, em África também há dizendo: lá vai o branco”, mas não deixam também de notar que estas atitudes são, em grande parte, uma forma de defesa.

4. balanço e ConClusão

Feita uma breve introdução a conceitos centrais em torno das relações interétnicas e enunciado o problema, neste texto cingi-me, com base nalguns dos resultados do inquérito e das entrevis-tas, a caracterizar brevemente os inquiridos em termos laborais e

Gráfico 7: Percepções sobre os grupos mais discriminados

Fonte: IIAPB, 2003

n= 292

Os negros 19%

Todas as pessoas entrangeiras

19%

Os negros e os ciganos

48%

Os ciganos 14%

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 87

sócio-profissionais para me centrar nas suas percepções e repre-sentações sobre os portugueses autóctones brancos. Traçou-se um breve panorama não só das dificuldades dos imigrantes na chegada, como a sua situação a nível laboral e profissional nomeadamente o exercício de profissões predominantemente desqualificadas, mais duras e mais mal pagas. Por fim e, em particular, os modos como são tratados nas sociabilidades interétnicas e quotidianas com os portugueses não negros, sendo de relevar a percepção de não se sentirem de corpo inteiro na sociedade portuguesa, o que é verifi-cável pela sua opinião sobre as dificuldades encontradas na chegada e na permanência no país sobretudo do lado das instituições, em particular as policiais, pela natureza e grau de acolhimento por parte de portugueses autóctones brancos e, de modo especial, pelo modo como se relacionam com os vizinhos e como são tratados por este e pela comunidade envolvente.

As desigualdades e exclusões sociais são produzidas e reproduzidas pela acção social dos diversos tipos de actores sociais e esta, por sua vez, é estruturada pelas condições (pre)existentes das desigualdades. No en-tanto, a fim de evitar qualquer raciocínio de tipo circular, impõe-se uma hierarquização dos níveis de análise. Assim, embora cada um dos níveis tenha a sua relativa autonomia, lógica e campo específicos, dever-se-á manter, na esteira de Bader e Benschop (1988) e Bader (2005), a seguinte hierarquia de níveis de compreensão-explicação: o nível socio-estrutural, embora não determine totalmente, estrutura e integra o organizacional e este, por sua vez, o interaccional, afastando-se esta posição de qualquer alinhamento incondicional em relação quer à teoria organizacional e das elites, quer à teoria interaccionista simbólica, quer ainda da teoria dos jogos ou das redes que esquecem ou subalternizam os aspectos estruturais. Em suma, em relação ao velho dilema estrutura-acção, torna-se cada vez mais insustentável, em termos exclusivos ou unidimensionais, a defesa de um dos pólos da dicotomia pelo facto de se cair ora no monolitismo ora no dogmatismo teórico-metodológico.

A pertença étnica, reivindicada ou atribuída, bem como as rela-ções interétnicas fornecem-nos um código de categorias destinado a orientar o desenvolvimento das relações sociais, sendo este um código de contraste, na medida em que a identidade étnica se afirma, por um lado, “negando” a(s) outra(s) identidade(s) e, por outro lado, em confronto com ela(s), apreendida(s) num sistema de representações de carácter político e ideológico.

Travessias 200888

Embora não tenha sido tratado de modo central, procuramos aferir até que ponto os imigrantes se sentem social, económica, politica e culturalmente inseridos na sociedade de acolhimento, dando conta do relativo baixo grau de inserção social, o que se tornou visível no baixo grau de intensidade de relacionamento intervicinal e, sobretudo, na per-cepção de se sentirem discriminados nos contextos laboral, residencial e outras situações dos seus quotidianos. Ou seja, é possível concluir que se, por um lado, ao nível das relações de sociabilidades, os imigrantes, sem negar atritos e conflitualidades internas, evidenciam relações mais fortes de entreajuda, de proximidade e mesmo de amizade, já nas relações entre membros de grupos étnicos – imigrantes e autóctones –, persistem, a par de acções de boa vizinhança e solidariedade, bastantes preconceitos e distâncias sociais que parecem não confirmar a tão propalada política de ‘integração’ – um conceito ambíguo equívoco e discutível – tendo, no tocante aos imigrantes africanos negros, a sua confirmação nesta parte empírica do projecto. As estratégias dos imigrantes por si próprios, em grupo ou em associações de imigrantes, foram sobretudo de sobrevivência e melhoria das suas condições de vida, procurando superar os constrangimentos de vária ordem. Nesta óptica, não obstante as dificuldades constatadas ao nível quantitativo e qualitativo, vão melhorando as suas condições de existência e assegurando níveis mínimos e até satisfatórios por comparação às suas sociedades de origem. Porém, nas sociabilidades e relações face a face, os imigrantes, tendo a consciência das diferenciações sócio-económicas e culturais, sentindo as formas de discriminação ora velada ora flagrante, salvo nalguns casos em que ripostavam com raiva e revolta ainda que contida, ficam desapontados e denotam atitudes expressivas de sentimen-tos de contenção e de evitamento de conflitos. Mantendo a sua cultura, afirmam, na maioria, estar abertos às culturas da sociedade de acolhimento – o que no modelo de Berry (1980) representaria integração –; de modo algum, porém, tal corresponde à maioria dos casos: desde as dificuldades na adopção de certos hábitos e costumes até às experiências sentidas de indiferença e discriminação por parte do exogrupo maioritário. Seja com base em dados de ordem quantitativa, seja com base em testemunhos ricos de ordem qualitativa, é-nos possível concluir, com base numa abordagem compreensiva e interpretativa de cariz weberiano, que os sentimentos ora de indiferença, ora de exclusão e de discriminação por parte de um núme-ro considerável de membros do exogrupo maioritário são uma realidade vivida à qual subjazem, para além das diferenças e preconceitos étnico-culturais, constrangimentos de vária ordem – económica, social e política – que no exogrupo são projectados sobre as minorias étnicas e imigrantes.

Imigrantes Africanos no Noroeste de Portugal 89

Neste processo está sempre presente a racialização e a etnicização discrimi-natória respectivamente na base dos caracteres biológicos (sobretudo cor da pele) e dos traços alegadamente étnicos-culturais por parte dos membros da sociedade receptora. Neste processo é fácil de inferir estarmos perante representações essencialistas e fixistas de cultura, à qual subjazem consciente ou inconscientemente imagens negativas e depreciativas do outro – neste caso africano negro – e motivos de hierarquização, umas subtis outras mais denotativas do que Bastos et al (1999) designam de estratégias de acultu-ração antagonista, herdeiras não só das representações do passado colonial, como tributárias dos processos de homogeneização cultural no contexto nacional e da globalização hegemónica do mundo de hoje.

Revela-se, assim, urgente reconstruir espaços sociais e políticos que permitam a aceitação e o reconhecimento das suas identidades sócio-culturais e dos seus modos de vida para, a partir daí, obter vivências reais de multi-culturalidade, sem que tal implique a subordinação ou subalternização de uma cultura pela outra. Mas tal só poderá ocorrer no quadro do já referido multiculturalismo crítico, estratégico e não apenas táctico. Por outro lado, contrariamente a posições radicalizadas que assumem que só no quadro duma sociedade socialista será possível realizar uma sociedade multicultural, importa contudo entretanto apontar algumas pistas a curto e médio prazo: estabelecer pontes de comunicação entre membros da maioria e das minorias, denunciar agressões e violências raciais, estimular a criação de escolas e pro-fessores multiculturais que combatam preconceitos, apelar à responsabilidade de organizações políticas e associações cívicas, dos cidadãos e, em particular, de determinados grupos sociais relevantes na formação da opinião pública (organizações políticas, políticos, intelectuais, jornalistas, líderes locais).

-250€

251€ - 400€

401€ - 600€

601€ - 700€

701€ - 800€

801€ e +

TOTAL

MASCULINO FEMININO TOTAL

nº % nº % nº %

6 3 3 5 9 4

47 27 30 49 77 33

69 40 18 30 87 37

30 17 4 7 34 15

19 11 4 7 23 10

1 1 2 3 3 1

172 100 61 100 233 100

Anexo 1: Diferenças salariais entre homens e mulheres

Fonte: IIAPB, 2003 (IIAPB = Inquérito aos imigrantes africanos dos PALOP´s)

Legenda: Distrito de Braga; a =angolano/a; cv=caboverdiano/a; m=moçambicano/a; st=sãotomense; g=guineense; h=homem; um=mulher; s=solteiro/a; c=casado/a.

Travessias 200890

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Resumo

O presente artigo descreve as mudanças ocorridas no campo da segurança pública após a promulgação da Constituição de 1998. Conhecida pelos juristas, como Constituição Cidadã, a principal das mudanças implantada por esta Constituição está relacionada ao exercício democrático da população no controle sobre a violência policial. Entre outras formas de controle, o texto se propõe a analisar a intervenção das denúncias apresentadas a Corregedoria como um mecanismo que permite a aplicação do poder policial de acordo com o respeito aos direitos humanos.

Palavras-chave: Cidadania – Democracia –Violência – Polícia.

intRodução

“A polícia me parou, e agora?”. Com este título o Governo Federal lançou, em 2008, uma cartilha em que pretende orientar a po-pulação brasileira como se comportar e quais os direitos que o cidadão possui ao ser abordado pela polícia nas ruas. Esta preocupação a favor dos direitos do cidadão sugere mudanças nas relações entre o Estado e a sociedade civil, no que diz respeito ao uso legítimo da violência.

Nos dias atuais, a perspectiva de que os tempos são outros e a polícia não é mais a mesma de antes, instiga um debate acerca da importância

O Controle Democrático das Práticas Policiais

César Barreira

Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal do Ceará

Antonio dos Santos Pinheiro

Universidade Regional do Cariri – URCA e Laboratório de Estudos da Violência – LEV

Y

Travessias 200896

do controle democrático no exercício das atividades policiais. No pre-sente artigo discuto a importância da participação da sociedade civil no controle democrático sobre o exercício das atividades policiais. Muitos atores sociais encamparam esta luta, entre outros, o Ministério Público, os Conselhos Comunitários de Defesa e Cidadania, representantes das entidades dos direitos humanos e a Corregedoria de polícia.

O estudo realizado na Corregedoria de policias, no Estado do Ceará, concentrou esforços em duas direções: o acompanhamento dos processos-denúncia e a realização de entrevistas com policiais civis e militares. Além destes recursos metodológicos, pude exercitar a “par-ticipação observante” no interior dos gabinetes por meio de longas conversas com os Corregedores-chefes e seus auxiliares. As conversas possibilitaram descobertas que nem sempre puderam ser reveladas, sob pena de comprometer os segredos de justiça.

Os dados qualitativos sugerem duas possibilidades. Em um pri-meiro momento, a necessidade de rever o papel atribuído aos políciais como “carrascos da sociedade”. Em segundo momento, analisa como as formas de resistências podem manifestar-se, por exemplo, em práticas corporativas. Desta forma, as mudanças e as resistências entre velhas e novas práticas policiais podem ser explicadas tanto pela emergência das lutas da sociedade civil organizada por justiça e acesso à polícia, bem como pela permanência de vícios do passado.

O artigo propõe uma análise mais detalhada sobre o papel exer-cido pela Corregedoria de polícia em coibir ações consideradas cri-minosas perante órgãos responsáveis pela segurança pública e também por parte da população que luta em suas comunidades pela redução da violência policial.

1. a Constituição fedeRal de 1988 e os diReitos Humanos

A Constituição Cidadã de 1988 possibilitou, entre outras con-quistas de cidadania, um direcionamento das políticas de segurança pública para a observância e proteção aos direitos fundamentais. Esta questão contribuiu da mesma forma para divergências em torno do reconhecimento da associação entre direitos humanos e cidadania. Para alguns dos entrevistados, não são cidadãos aqueles que infringiram a lei e a ordem. Outros consideram que todos são cidadãos, independente-mente da situação jurídica, social e econômica.

O Controle Democrático das Práticas Policiais 97

A existência de um equilíbrio ente as duas posições é quase im-possível, pois o que está em jogo são, geralmente, divergências pautadas em juízos valorativos. Em busca de um meio termo existem outros grupos considerados “esclarecidos” no interior da polícia e da justiça que, ao justificarem que é preciso defender a sociedade dos crimes e criminosos, argumentam sobre a necessidade de não culpabilizar cada vez mais aqueles duplamente penalizados, ou seja, os que se encontram desprovidos de oportunidades no acesso às condições econômicas e a justiça.

Para estes grupos, na punição aos criminosos e ao crime que cometeram, deve-se recorrer com cautela para que não se corra o ris-co de reprodução da violência pela violência. Em suas considerações, afirmam que as mudanças no nível de relacionamento com o poder público possibilitaram uma melhor conscientização sobre o papel das polícias como forças adicionais na produção da segurança e promoção dos direitos humanos.

Eu acho que são duas coisas que estão abraçadas: direitos humanos e segurança pública. A segurança pública existe para garantir os direitos humanos, não existe segurança pública sem o respeito aos direitos humanos, são duas coisa absolutamente irmanadas. O país avançou nesta área, com a Constituição de 88, nós temos um novo regimento, uma lei, novos procedimentos policiais. Os avanços estão presentes, hoje, através dos órgãos de fiscalização, através da corregedoria, do Ministério Público, que exerce um controle externo da polícia civil e militar, enfim, por todas estas ferramentas que foram criadas para tornar a segurança pública mais transparente, mais eficiente, e, mais absolutamente legal, sob a observância de todos os preceitos consti-tucionais. (Entrevista concedida pelo Delegado de Polícia Civil Área Operacional Integrada II, em 18/01/2007)

Os casos de violações aos direitos humanos são apontados por este delegado como um exemplo de uma concepção errônea de “se-gurança cidadã” ou “participativa”. Nestes casos, o que está em xeque é o “direito a ter direitos”, ou seja, a capacidade em exercer livremente as cobranças e garantir igualdade aos meios de justiça. O problema é que, às vezes, a destituição dos direitos ao “cidadão” pode gerar uma situação em que a vítima não tenha interesse em formalizar uma de-núncia contra os policiais.

Em outros casos analisados, sugerem que a conscientização em cobrar da polícia um trabalho compatível com a promoção da cidadania, é resultante de um contexto em que os cidadãos estão aprendendo com a experiência democrática a exigirem mais da polícia um tratamento

Travessias 200898

justo e respeitoso. O exercício do controle externo das polícias justifica-se como a possibilidade de positivar e conscientizar-se a respeito de práticas que ponham em questionamento a arbitrariedade no exercício da atividade policial.

A sociedade, hoje, é mais esclarecida, ela busca os seus direitos. Em muitas ocasiões, no passado, a polícia era arbitrária, era tida como uma polícia truculenta e hoje não, a sociedade e o cidadão sabem dos direitos. Eu acredito que nós temos que seguir esta cartilha que está na Carta de 1988, que é respeitar os direitos individuais e coletivos do cidadão, porque meu direito termina quando o do outro cidadão começa. A segurança pública, apesar de ser dever do Estado, é direito e responsabilidade de todos, independentemente, de ser policial ou não. (Entrevista concedida pelo Comandante da área operacional X em 12/11/2006).

No processo de conscientização acerca dos “direitos a ter di-reitos”, as reivindicações não se resumem somente aos grupos não marginalizados, pois, por exemplo há casos de pessoas que estão em conflito com a lei fazerem a denúncia contra determinados policiais. De acordo com o depoimento de uma escrivã de polícia, que trabalha há dezessete anos na Corregedoria, o acréscimo no número de denúncias ocorreu com a intervenção dos direitos humanos, sendo este dado, um indicador de que:

“a população estaria mais consciente e não teria medo em de-nunciar a polícia, porque sabe que será tomada uma providência para o caso em questão, mas, quando se faz necessário que se conste nos autos do processo que eles estão sendo pressionados por medo, muitos, optam por não assinar a denúncia, mesmo que a gente saiba, e, ele tenha consciência que o problema é exatamente este”. (Entrevista concedida por uma polícial civil, em 12/06/2007)

O reconhecimento de que a consolidação da democracia repre-senta um passo importante nas lutas pelo acesso à justiça e na promoção dos direitos humanos se contrapõe a uma realidade em que policiais costumam violar as determinações disciplinares, que estabelecem o uso comedido da força nas operações policiais1.

(1) Os princípios básicos estabelecidos pelas Nações Unidas sobre o uso da força e de armas de fogo, resolução n. 45/166 de 18 de dezembro de 1990, estabelece que o recurso a estes procedimentos deva estar orientado de acordo com os princípios de necessidade, proporcionalidade, legalidade, oportunidade e ética. Cabe ao aplica-dor da lei observar a discricionariedade, para que seus atos não configurem uma ação arbitrária de poder. Ver. NOGUEIRA, Antonio Soares e AMARAL, Lima. A importância dos princípios de direitos humanos sobre o uso da força e de armas de fogo para a Polícia Militar do Ceará. Fortaleza. (mimeo), 2001.

O Controle Democrático das Práticas Policiais 99

É realidade, porém, que apesar dos avanços no controle da violên-cia a partir da implantação de leis como, por exemplo, a Lei de n. 9.455, de 1997, que tipifica o crime de tortura, muitos policiais ainda adotam tal procedimento no trabalho preventivo e investigativo de crimes com a conivência de grupos conservadores da sociedade civil.

As lutas pela redução da violência, propostas levadas a frente pelas novas políticas de segurança cidadã demonstram, por outro lado, que tem sido de suma importância o controle democrático sobre as práticas policiais na perspectiva de coibir abusos e assegurar o uso da violência de acordo com os princípios de proporcionalidade, legalidade, oportunidade e ética.

2. “Quem ContRola os ContRoladoRes?” – PolíCia e Cidadania

Em “o futuro da democracia”, Bobbio (2000) sugere que na com-preensão de quaisquer mudanças na direção de uma segurança democrática deve-se recorrer, antes de tudo, a velha pergunta histórica: “Quem controla os controladores?”. O cerne desta questão está centrado no entendimento de que em uma sociedade, onde os cidadãos não exercem o controle so-bre os grupos dominantes, é possível que o poder não seja uma “arma” a serviço da cidadania e da democracia, mas, simplesmente um dispositivo para impor as vontades soberanas do Estado sobre os súditos.

No Brasil, particularmente, a transição do período de exceção para o período democrático foi marcada por uma fase de instabilidade no relacionamento entre polícia e comunidade. Por esta razão, Pi-nheiro (1996) ao analisar as resistências à implantação de um projeto de segurança cidadã, definiu que, na sociedade brasileira, “o passado nem é passado ainda”, ou seja, apesar das mudanças não são poucos os policiais que nos trabalhos de rua recorrem às velhas práticas punitivas para coibir os delinqüentes ou possíveis suspeitos.

Por outro lado, as lutas populares que tiveram como marco inicial, a década de 80, possibilitaram mudanças na segurança pública2. As propostas aprovadas pela Constituição Cidadã sugerem, portanto, uma discussão em torno das propostas de “nova concepção de segurança” onde os agentes de segurança estejam mais vigilantes as demandas de cidadania pela de-mocratização da justiça social e respeito aos direitos humanos.

(2) A participação social nas questões relacionadas à segurança pública surge diante da própria necessidade dos grupos e indivíduos em garantir seus deveres e obrigações prescritos no art.144 da Constituição Federal, que define a segurança pública como “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”.

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O termo “polícia cidadã” ou “segurança cidadã” como termo correlato à promulgação da Constituição de 1988 é compreendido, assim, como um tipo de segurança que tem por prioridade, aspectos destacados como fundamentais: o controle das práticas policiais e o reforço dos vínculos com a comunidade.

De acordo com a filosofia de segurança comunitária, a figura do policial comunitário como mediador de conflitos é referendada como parte substancial de um processo que permite aos agentes responsáveis pela aplicação da violência caminhar na direção da pacificação das condutas sociais, com base na otimização da cidadania e à noção de direitos (FELTES, 2003; MATIAS DA SILVA, 2007).

Nestes termos, o conceito de cidadania é compreendido como amplo e diversificado que não exclui, não nega os direitos, mas tenta incluí-los no interior de uma sociedade que luta pela democratização no acesso a justiça. A junção entre cidadania e democracia é, portanto, percebida por aqueles que recorrem à Corregedoria, como inseparáveis, pois, como argumenta Bobbio (2004 p.21), “sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução dos conflitos sociais”.

3. AccountAbility nas Relações entRe PolíCia e Comunidade

A participação da sociedade em prol de uma segurança cidadã, segundo Lemgruber (2003: p.45), é fundamental no processo civiliza-tório, e, esta deve exercer-se por meio do controle externo e interno, no exercício das práticas policiais, ao lutar para equacionar o emprego da força com respeito aos direitos humanos. A idéia de que o controle sobre as polícias ou o accountability é parte intrínseca ao processo de-mocrático, sugere o lugar do controle sobre a violência como um dos canais importante na luta pela solução pacífica dos conflitos sociais.

Na própria definição do papel da polícia, a implantação de mecanismos de controle no acesso a justiça justifica-se pela idéia de segurança como relacionada à concepção não menos universal de cidadania e humanização nas relações sociais. O argumento sobre a impossibilidade de existência de uma polícia democrática, que não tenha como correlato os termos “cidadã” e “humana”, indica para um caminho contrário, cuja direção, é a observância aos direitos humanos que se exerce pelo controle democrático sobre as práticas policiais.

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O controle democrático, segundo Phillips e Trone (2003: p.30), per-mite que a própria sociedade aponte para a confiança nas instituições como representantes dos direitos humanos, pois, “tanto a polícia, como a cidadania, devem batalhar continuamente para desenvolver confiança mútua”, em busca de um projeto compartilhado de segurança cidadã, que tenha por objetivo assegurar práticas abusivas do poder constituído no Estado.

No Estado do Ceará, por exemplo, a criação dos conselhos parti-cipativos do Judiciário e Promotoria de Justiça e de Segurança Pública3, em 2001, e a unificação das corregedorias de polícias militar e civil, possibilitaram que a população pudesse exercer o controle democrático sobre as práticas policiais. Como nos lembra Balestreri (2003), inicia-tivas como estas permitem que, não simplesmente a população, mas, os próprios policiais lutem pelo reconhecimento de si como agentes “promotores dos direitos humanos” e da democracia.

4. o ContRole da violênCia Como “Caso e Coisa de PolíCia”

A questão da legitimidade no uso da violência é tema recor-rente quando está em discussão o papel desempenhado pela polícia e sociedade democráticas de direito.Max Weber contribui, inicialmente, para esta discussão ao lembrar que a legitimidade está assegurada pela capacidade dos agentes em recorrer à violência de acordo com uma racionalidade que lhe é peculiar, como por exemplo, a garantia da ordem e o exercício da lei, mas, reconhece que, em determinado momentos, este exercício pode extrapolar seus limites de ação.

A falsa idéia, como nos lembra Arendt (1994), de que a violência pode representar ganhos de poder inverte a possibilidade em rever as práticas policiais e sua aplicabilidade no exercício legítimo da violência. Com objetivo de evitar os “excessos de poder” no exercício da violência, cabe à Corregedoria de polícia, como órgão complementar da Secretaria de Segurança Pública, a missão de prevenir e punir os abusos.

Através do incentivo para que as pessoas vítimas de violência policial denunciem os “maus policiais”, este órgão busca por em prática o controle democrático contra aqueles que não costumam cumprir e zelar pelo respeito e integridade física dos cidadãos ao cometerem atos

(3) Proposta similar aos dos Conselhos de Justiça foi à criação, em junho de 2006, no país de uma Secretaria Especial de Direitos Humanos – SEDH, para prevenir e controlar casos de tortura.

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julgados pela justiça como passíveis de punição, entre outros, agressões físicas e morais, extorsão e invasão de domicílio.

As denúncias apresentadas à Corregedoria de Polícia, no Ceará, em primeiro momento, caracterizam o problema da violência policial como decorrência da própria dificuldade da população no acesso à jus-tiça. Esta questão, segundo Bobbio (2004) está relacionada à dificuldade de proteção e reconhecimento dos direitos.

A não proteção contradiz a Constituição Federal de 1988, onde em seu artigo primeiro, estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, a segurança e à propriedade”.

Ao conceder a voz, particularmente, “aos oprimidos”, ou seja, para aqueles que não têm condições econômicas de acesso à justiça, a Corregedoria assume o duplo papel de ser, ao mesmo tempo, uma instância de poder jurídico e assistência social4. Na opinião do coman-dante de policiamento da área operacional X, a cobrança sobre as falhas nas práticas policiais, é resultante de um processo de conscientização da população sobre seus direitos como cidadãos.

Do ponto de vista mais geral, é possível ler nas denúncias um sentimento de indignação por parte de uma população, que clama por justiça social e o fim da violência nas relações sociais. Na própria de-núncia existe algo de arbitrário que, em determinadas circunstâncias, em razão do medo e das constantes ameaças, a vítima pode conduzir o caso, alegando a inocência do algoz pelas arbitrariedades cometidas ou, em outros casos, não se intimidarem diante das ameaças sofridas5.

Nos processos-denúncia apresentados à Corregedoria, não são poucas as críticas, por parte dos corregedores, sobre as intervenções policiais em conflitos e suas implicações em relação aos direitos hu-manos. Estes alegam que no arbítrio de um conflito, uma ação social legítima e pública deve primar pelo uso controlado da força física e respeito aos direitos humanos. Esta questão sugere que a defesa da sociedade é, portanto, “coisa de polícia”, pois, a intervenção da

(4) Na Corregedoria, atualmente, existem cinco gabinetes de trabalho, onde os processos são analisados por cor-regedores antes de serem encaminhados para o Corregedor Geral. Em sua formação, os Corregedores tanto o Geral, como os chefes e auxiliares são bacharéis em direito.

(5) No estudo sobre a relação entre crime e cotidiano nas práticas policiais, em São Paulo, entre o período de 1880 a 1924, Fausto (2001: p. 186) constatou da mesma forma que, as principais razões para o medo e a insegurança nas relações entre polícia e sociedade, estavam relacionados somente à curva dos delitos, mas, a outros fatores como, por exemplo, a “recusa da população pobre a discutir a violência policial nos bairros populares”

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Corregedoria em casos de violência policial não pode prescindir de regras que garantam a defesa do cidadão.

A busca de reparação do dano causado à vitima é percebido por aqueles que procedem à denúncia como algo que não está re-lacionado simplesmente com a punição ao policial, como também com a possibilidade em ser tratado de forma justa e respeitosa como um cidadão digno. A denúncia revela que o cidadão que busca por justiça pretende, ao mesmo tempo, contribuir para mudanças no relacionamento entre polícia e comunidade por intermédio de um trabalho igual e respeitoso.

Em alguns casos denunciados, as vítimas questionam que as ati-tudes dos policiais em uma situação de agressão física ou verbal não são compatíveis com a de uma polícia que deveria preservar a segurança dos cidadãos. Os sindicados vêem na denúncia a possibilidade de lutarem contra uma situação de desrespeito praticada por alguns policiais que, de acordo com suas considerações, não estão cumprindo com o seu dever constitucional em prestar segurança de qualidade, não só prendendo bandidos, mas, principalmente, respeitando as pessoas da comunidade.

Para os policiais que se sentem intimidados com a possibilidade de terem seus direitos cerceados pela punição, as conseqüências resul-tantes de uma denúncia possibilitam que suas ações sejam devidamente punidas, de acordo com os regulamentos disciplinares presentes nos regulamentos de conduta no exercício da atividade policial. Para os que temem a violação do regulamento, uma ameaça, por parte da ví-tima, pode sugerir que sejam mais cautelosos ao abordarem as pessoas, principalmente, se estas tiverem a coragem de acusá-los.

Nos casos de denúncias envolvendo policiais, parte das testemu-nhas são lideranças comunitárias que querem um bairro mais seguro, e outra parte é constituída por pessoas que são encorajadas a não se calarem diante de ameaças físicas ou verbais praticadas por policiais civis e militares. A participação, particularmente, das primeiras, permitem que, em casos de dúvidas acerca do comportamento de alguns policiais, estas possam contribuir no trabalho de investigação sobre a conduta do policial denunciado. Os corregedores consideram que a cobrança da sociedade civil é, portanto, fundamental na conquista da confiança na justiça e no aparelho policial.

No que se refere ao encaminhamento das denúncias, existem duas formas de fazê-las. Nos casos em que as vítimas são pessoas de maior poder aquisitivo ou “membros distintos” da sociedade, a

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exemplo, de médicos, advogados, dentre outros, é comum que en-trem com uma ação de representação devidamente acompanhada por advogados, e, em casos onde as vítimas, são pessoas das “classes populares” existem duas alternativas: encaminhar a denúncia via entidades representativas, tais como, conselhos, comissão de direitos humanos ou prestar a queixa, ir diretamente à Ouvidoria dos órgãos de segurança pública.

Na análise sobre a importância da punição aos policiais sob sindicância, a não formalização da denúncia ou, até mesmo, casos em que a vítima manifesta o encerramento do processo, sugere um recuo na produção da lei e da ordem, de acordo com as conquistas de cidadania. Este desafio tem sido superado, em parte, pelo com-promisso dos corregedores em passarem confiança na punição aos infratores, aplicando sanções que tenha por finalidade não simples-mente punir por punir, mas, que a punição sirva de exemplo para que outros não sigam o mesmo caminho.

ConClusão

A transição democrática na sociedade que culminou na parti-cipação da sociedade civil, por outro lado, segundo Pinheiro (2000), nem mesmo tem sido suficiente para reduzir os altos índices de criminalidade e violência. Na cidade de São Paulo, o aumento dos crimes violentos, por exemplo, têm provocado o esvaziamento dos espaços públicos, e, na ausência de tais espaços, as relações interpessoais passariam a ser regidas pelos códigos privados de conduta social. Esta questão tem contribuído para o que chamou de “esvaziamento do monopólio da violência”.

Na opinião de um corregedor-chefe, por mais que a população esteja consciente sobre seus direitos ao fazer uma denúncia contra ações criminosas praticadas por policiais, existe ainda, a possibilidade de o agente acusado causar o mal decorrente de uma situação de raiva por ter sido alvo de intervenção judicial. A partir de sua experiência de policiamento nas ruas, considerou que este tipo de pensamento é cultural, em que um sentimento de impunidade diluída por todo corpo social permite que as pessoas, quando lesionadas e informadas sobre os seus direitos, procurarem a justiça legal, manifestem a recusa em levar o caso à delegacia, primeiro, pela indisponibilidade de tempo para prestar a queixa, e, segundo, pela descrença que a queixa possa resolver a situação de indignação em decorrência da lesão sofrida.

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Para as instituições que lutam a favor dos direitos humanos, a exemplo do controle externo exercido pela Corregedoria de polícia, a violência e a criminalidade crescente envolvendo, particularmente, os agentes responsáveis pela segurança pública tem sido um constante problema que, se não solucionado, pode impossibilitar o estreitamento de laços sociais entre as polícias e a sociedade.

RefeRênCias biblioGRáfiCas

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Resumo

Do conjunto de transformações ocorridas no final do século XX, as Reformas do Estado e as reestruturações nos setores infra-estruturais adquiriram relevância político-econômica e institucional, assim como também relevância para a análise teórico-científica. Desse processo destacaram-se as privatizações nos setores elétricos dos países em desenvolvimento. Por outro lado, tal processo marcou uma redefi-nição de orientações e estratégias para o desenvolvimento. É perante tal processo de mudanças que se faz necessária a análise das privatizações do setor elétrico e suas respectivas motivações político-econômicas e ideológicas. Ou seja, quais foram às motivações para as mudanças e quais foram os atores que participaram deste processo e como se beneficiaram do mesmo.

Palavras-Chave: Setor Elétrico – Privatização – Estado – Estratégias para o Desenvolvimento.

O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização na Análise Sociológica: Debate e Crítica

Alessandro André Leme

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Estadual de Campinas

Y

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o setoR elétRiCo e sua Constituição Como PRoblema soCiolóGiCo

A reflexão sobre o setor elétrico implica em compreendê-lo em sua complexidade, ou seja, do ponto de vista econômico, institu-cional e político, levando em conta os diversos atores que o compõe (agentes privados e públicos). Para tal, o “olhar” sociológico sobre a questão se faz necessário.

No aspecto econômico, o conceito de “setor” apresenta a fun-ção de reunir empresas ou atividades econômicas que apresentam interesses comuns ou mesmo que constituem unidades de agrega-ção. Tal qual podemos verificar na divisão da economia em setores primário, secundário e terciário, onde cada setor pode apresentar mais de um tipo de indústria1.

Todavia, a discussão sobre o conceito “setor” remonta praticamen-te à história da economia política, encontrando suas raízes na divisão de trabalho e na especialização presentes na obra de Adam Smith (A riqueza das nações). Smith argumentava sobre a separação de atividades e a distinção entre agricultura e indústria (separando com isto dife-rentes ramos do trabalho). Outro fator, também presente em Smith e importante para a definição de setor, é o corolário da especialização e da interdependência, que tem como conseqüência a compreensão do setor como um processo coletivo.

Em Ricardo e Marx também podemos verificar a presença dos temas da especialização, da interdependência e das estruturas produtivas e suas respectivas implicações para o desenvolvimento do capitalismo em seus contextos histórico (e suas particularidades teórico-metodológicas).

Keynes e Schumpeter são outros autores da economia que, de forma direta ou indireta, vão contribuir para o debate sobre a dimensão setorial e sua respectiva importância para o entendimento do dinamismo da economia capitalista.

No aspecto institucional o conceito de “setor” é marcado por uma crescente política de institucionalidade de sua estrutura e função, assim como também de atuação, mesmo quando esta se dá no mercado.

(1) A definição do termo “indústria” também pode variar segundo a concepção teórica, ou seja, enquanto para algumas teorias ele está associado a algum tipo de mercado, para outros ele se vincula a uma determinada base técnica específica. Ver melhor este debate em Acumulação e crescimento da firma, (GUIMARÃES, 1981).

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Já o entendimento do setor como um complexo de organizações e papéis sociais estruturados em torno de um conjunto de atividades compartilhadas, foi foco de análise e compreensão por parte de Velasco e Cruz2 que o definiu da seguinte maneira, num primeiro momento:

Setor é um complexo de organizações e papéis estruturados em torno de atividades que compartilham uma ou mais características social-mente reconhecidas como foco duradouro de interesses coletivos, (VELASCO E CRUZ, 1997:23).

Com isto, Velasco e Cruz nos demonstra que o setor ao mesmo tempo em que se constitui como processo de diferenciação nas socie-dades modernas, também representa apenas um dos domínios em que se exercem as políticas do Estado.

Neste sentido, o setor entendido enquanto subconjunto institu-cionalizado de relações sociais, tendo atenção privilegiada do Estado, contém inúmeras dimensões que podem ser compartilhadas no espaço (territorialidade) ou não, como veremos posteriormente na forma de organização do setor elétrico, em particular.

Dentro deste debate evidencia-se que a complexidade existente em um determinado setor (composto por diversos atores e relações sociais) está fortemente marcada pela presença do Estado, seja pelas constantes demandas recebidas (quando de setores industriais, por exemplo). Ou pela necessidade de atuação específica e direta nos setores por meio de políticas setoriais, ou mesmo, políticas públicas voltadas para o bom desenvolvimento do setor (quando relativos a seres infra-estruturais sobre gestão estatal).

Todavia, este último aspecto se alterou em alguns setores na dé-cada de 1990, tal como o da energia elétrica ou das telecomunicações, no que concerne a composição dos atores sociais que os compunham. Ou seja, há a saída do Estado como promotor do desenvolvimento nesses setores para “jogá-los” ao mercado, inserindo neste novo arranjo a presença de entes reguladores que vão apresentar novos desenhos institucionais e novas composições sociais e técnico-políticas.

Cabe ressaltar aqui que o setor elétrico brasileiro é composto majoritariamente pela geração por fonte hidroelétrica, cuja organização

(2) Embora a argumentação de Velasco e Cruz tenha como ponto de partida a relação entre o Estado, os em-presários e o desenvolvimento industrial, a discussão teórica realizada pelo autor nos propicia entendermos melhor a complexidade e a forma com que os diversos atores presentes em um determinado setor atuam – se movimento e, que tipo de relação estabelecem com o Estado (demanda, pressões e etc.).

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do mesmo se deu em duas esferas no país, ou seja, a geração de posse do governo federal e as gerações de posse dos governos estaduais e municipais (PCH’s). Esta estrutura Federativa do Brasil vai ser um fator importante na redefinição do setor, por um lado, e, no tipo e ritmo de reformas e reestruturações, seja na geração e/ou na distribuição elétrica, por outro.

Isto porque, para além dos problemas inerentes ao setor (geração, transmissão e distribuição), a reestruturação do setor no Brasil ainda teve que enfrentar problemas vinculados à estrutura e conflitos fede-rativos no país.

Esses diversos fatores presentes na noção de “setor” se com-plexificam um pouco mais quando trazidos para a análise do “setor elétrico”. Isto porque este setor apresenta algumas particularidades na sua forma de organização e no modo como o setor se movimenta e se relaciona com outros setores da economia e/ou esferas sociais e político-econômicas.

O setor de energia (elétrica) é um setor estratégico para a produção e reprodução das sociedades capitalistas. Ou seja, a energia é indispensável ao funcionamento do aparelho produtivo de que dispõe uma determinada sociedade, como também responde por parte significativa da fruição e reprodução da vida de cada indivíduo desta totalidade social.

Este setor pode ser visto num primeiro olhar a partir de duas grandes situações. A primeira caracteriza-se pela fonte como a eletrici-dade é gerada, ou seja, pela fonte primária quando de origem hidráu-lica, nuclear, geotérmica, fotovoltaica, eólica e maremotriz. E de fonte secundária quando provem de centrais termoelétricas alimentadas por carvão, por combustível pesado ou por gás natural.

A segunda se refere à esfera do consumo que também se divide em duas categorias, a saber: como insumo produtivo e como bem de consumo. Como insumo produtivo pode entender o aparecimento daqueles insumos destinados à potencialização do trabalho, alimentando o processo de produção e distribuição de bens destinados ao consumo ou à reposição ampliada do aparelho reprodutivo e da sociedade em geral. Trata-se, portanto, da parcela de energia requerida para levar a finco a produção industrial e agrícola, bem como o transporte desta produção até os centros consumidores.

Já como bem de consumo, podemos compreender a parcela da energia cujo consumo é realizado diretamente pelos indivíduos, tanto

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no âmbito doméstico, com a utilização de eletrodomésticos e eletroele-trônicos, como no de serviços, como transporte (particular ou coletivo) ou em iluminação pública.

O setor de energia (elétrica), seja como fonte primária ou secundária, sendo consumido como insumo produtivo ou como bem de consumo, caracteriza-se como um setor fundamental para o padrão de desenvolvimento econômico, social e espacial das socieda-des urbanas e industriais decorrentes das transformações ocorridas/geradas pela Revolução Industrial e intensificadas durante o século XX. Desatacaram-se duas indústrias nesse setor, a saber: a indústria petrolífera e a indústria elétrica.

Aqui daremos mais ênfase à segunda. Todavia, não vamos “olhá-la” apenas pelo viés econômico/produtivo, mas também vamos compre-endê-la pela presença dos diversos atores que a compõem, dos diversos arranjos político-institucionais presentes e de sua respectiva forma de atuação e organização junto ao Estado.

O setor elétrico pode ser descrito por um conjunto de esferas que, somadas, dão característica ao setor. As esferas são a econômica, a tecnológica e a político-institucional.

Pela esfera econômica temos a energia elétrica como insumo produtivo e como bem de consumo. Enfim, temos a energia como mercadoria a ser produzida e consumida no mercado (regional/na-cional ou internacional). Na esfera tecnológica temos os processos de conversão de determinadas fontes (carvão, petróleo, hidroeletrici-dade e gás natural, por exemplo) em formas de energia (motriz e de iluminação). Ou seja, temos o processo pelo qual se produz energia elétrica, que hoje em dia tem como componente a busca da produção de energia elétrica pelo menor preço, com a maior qualidade ener-gética, o menor desperdício e a melhor qualidade ambiental (menos impactante ao meio ambiente).

Já a esfera político-institucional se refere ao conjunto de políti-cas, instituições e leis que são criadas para definir, ordenar e coordenar o setor elétrico e seus respectivos atores. Nesta esfera fica evidente a presença do Estado no planejamento (indicativo ou determinativo, conforme o modelo adotado) e institucionalização do setor, isto por-que o setor elétrico não é um setor de atividade econômica como outros. O que faz com que mesmo os países vinculados fortemente às proposições do liberalismo econômico, apresentem uma ação dos governos e de suas respectivas administrações públicas com certo peso

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para as escolhas energéticas, seus planejamentos e suas respectivas estruturas reguladoras.

A junção das esferas supra mencionadas foram fundamentais para o desenvolvimento do setor de energia elétrica pelo mundo com a criação de novos mercados, novos atores, novas fontes de energia e novas formas de organização deste setor no espaço/território, ou seja, no espaço e no tempo (como territorialização e como relações de poder e dominação).

Evidenciaremos alguns pontos como ilustração das particularida-des presentes no setor elétrico e que o distingue das demais atividades econômicas, são elas: a garantia de abastecimento e a competitividade econômica; a gestão dos recursos naturais; a proteção dos consumidores e externalidades e irreversibilidades.

Na garantia de abastecimento e na competitividade econômica, caso haja uma interrupção no abastecimento de carburantes, de com-bustíveis ou de eletricidade sempre vai apresentar um custo muito alto por provocar uma paralisia de toda ou de parte substancial da atividade econômica ou de infra-estruturas da vida urbana (iluminação pública e residencial, por exemplo). Ou seja, interrompe-se um dos principais mecanismos e meios de reprodução das sociedades capitalista.

Na gestão dos recursos naturais, mesmo quando o Estado não é o proprietário de todo o subsolo, ele ainda é responsável pelas con-dições de exploração dos recursos naturais no território nacional. No caso brasileiro em particular, após a criação do Código de Águas em 1934, também compete ao Estado à exploração das quedas d’água e dos demais tipos de aproveitamentos hidroelétricos.

No que se refere à proteção aos consumidores, as infra-estruturas fixas, tais como: gasodutos, oleodutos e redes elétricas (transmissão em alta tensão e distribuição em baixa tensão para atendimento aos consu-midores residenciais), são muito sensíveis às economias de escala, o que dificulta a concorrência nessas esferas de atividades, caracterizando-as como monopólios naturais, apenas sujeitos a algum tipo de regulação.

Embora tanto as primeiras redes de gás (manufaturado), como também as de eletricidade tenham sido construídas por empresas priva-das, com o seu desenvolvimento e expansão alguns fatores começaram a estrangular o setor, principalmente a inexistência de concorrência. Ou seja, ou duas redes elétricas seriam instaladas em uma mesma rua, gerando desperdício, ou realmente se configuraria esta esfera como monopólio e no caso desta última alternativa, sendo conduzido pelo Estado.

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A solução arrumada e que caracterizou esta esfera do setor, foi o controle do Estado sobre o funcionamento das indústrias de rede (transmissão em alta tensão e distribuição). Os Estados passariam a estabelecer regimes jurídicos de concessão de serviços públicos que garantiria um monopólio territorial à empresa concessionária (privada ou pública), cuja contrapartida estatal seria o controle das tarifas e dos investimentos.

Por fim, as externalidades e irreversibilidades marcam um se-tor cuja maioria das atividades energéticas consome recursos naturais e impacta de alguma forma o meio ambiente (em maior ou menor intensidade segundo a fonte geradora).

Uma vez verificadas algumas das especificidades do setor elétrico frente às outras atividades econômicas, vamos brevemente evidenciar quais são os grandes atores que são os principais consu-midores de energia.

Primeiramente, a indústria é um grande consumidor de energia elétrica (e também de outras fontes energéticas – petróleo, gás natural), e tem nela a fonte de funcionamento de suas atividades.

Os transportes hoje em dia se sustentam eminentemente por petróleo e derivados, restando apenas um percentual muito pequeno de móveis alimentados por eletricidade (alguns trens e metros).

O residencial-terciário que, em conjunto, consomem quase o mesmo que o setor industrial. O residencial se caracteriza pelas residências individuais ou coletivas e os respectivos usos de eletrodo-mésticos e eletroeletrônicos; o terciário, pelas atividades de serviços (escritórios, comércios, escolas, hotéis, instalações esportivas, culturais e de lazer, dentre outras).

Vimos até o momento que o setor elétrico pode ser gerado por fonte primária ou secundária e que o setor se constitui de três es-feras (a econômica, a técnica e a político-institucional). Além disso, ele apresenta muitas especificidades quando comparado a outros setores de atividades industriais e possui alguns consumidores centrais (indústria, residencial, terciário/comercial, transporte e agricultura).

O setor elétrico ainda é marcado por uma organização setorial que o divide em três ou mais partes, a saber: a geração/produção, a transmissão de alta tensão e a transmissão de baixa tensão (distribui-ção) e mais recentemente se criou à comercialização (nos países que realizaram as reformas orientadas para o mercado no setor).

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Esta divisão do setor nos evidencia a complexidade de atores e instituições componentes e atuantes no setor elétrico. Para melhor visu-alização do setor, vamos apresentar um pouco do como o setor elétrico brasileiro se organizou e com quais atores foi composto. É sabido que as especificidades da matriz energética brasileira cuja fonte (predominante) é a hidroeletricidade reserva suas particularidades frentes a fontes ter-moelétricas (a carvão, gás ou nuclear). Todavia, para fins de ilustração da complexidade do setor elétrico, o caso brasileiro é bastante ilustrativo.

O setor elétrico brasileiro, embora date suas primeiras usinas hidroelétricas e/ou termoelétricas (a carvão ou madeira) ainda no final do século XIX, vai ser somente a partir da década de 1930 que vai começar a se institucionalizar de forma mais efetiva enquanto fator de desenvolvimento e modernização do país.

Este processo de modernização do país contemplava simulta-neamente um processo de crescente urbanização e industrialização do Brasil, principalmente a partir do Pós-Segunda Guerra Mundial. E é nesse contexto que o setor de energia elétrica (no caso brasileiro, de vocação hidroelétrica) se fortalece e passa a ser encarado como fator de modernização do país, por um lado, e, por outro, como um dos setores responsáveis para superar os estrangulamentos presentes no processo urbano-industrial brasileiro.

Em outras palavras, o setor elétrico brasileiro, por meio de sua indústria hidroelétrica representou uma importante etapa para o pro-cesso de substituição de importações, principalmente nos fatores de substituição de importações de equipamentos. (KLEIN, 1986).

A matriz vai ser predominantemente a hidroeletricidade como fonte geradora/produtora de energia, seja, pelas Usinas Hidroelétricas ou pelas Pequenas Centrais Hidroelétricas (PCH’s). Neste modelo também se montou uma estrutura de transmissão de energia em alta-tensão cuja finalidade era de transportar a energia gerada nas usinas hidroelétricas aos centros consumidores. E uma estrutura de distribuição em baixa tensão para levar a energia aos consumidores finais (residencial, industrial, comercial, e rural).

A geração/produção de energia elétrica constituiu-se predomi-nantemente por hidrelétricas estatais (federais e estaduais) implantadas pelas cinco regiões do país (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul) usufruindo do grande percentual de águas interiores que o Brasil possui para a instalação de Grandes Centrais Hidroelétricas e Pequenas Centrais Hidrelétricas espalhadas pelas bacias hidrográficas brasileiras.

O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 115

O Sistema de Transmissão de energia elétrica brasileira apresenta um Sistema Interligado Nacional (SIN) onde participam empresas da região sul, sudeste, centro-oeste, nordeste e parte do norte (tendo apenas aproxi-madamente 3,4% da capacidade de produção de eletricidade do país fora deste sistema, localizados em pequenos sistemas locais – principalmente na região norte do país). A predominância hidroelétrica de energia, o tamanho e as características do Sistema Interligado Nacional (SIN) brasileiro fazem dele único em termos mundiais (www.ons.com.br).

Ainda há um sistema de distribuição em baixa tensão que leva a energia elétrica aos consumidores finais, caracterizando o setor na sua forma estrutural de composição tríade, ou seja, geração/produção, transmissão em alta tensão e distribuição.

Essa estrutura nos mostra a característica técnica/econômica do setor, ainda temos as seguintes características constituintes do setor, a saber: a econômica, referente aos meios e mecanismos de financia-mento do setor e a político-institucional, referente à definição insti-tucional e aos marcos governamental e regulatório do setor elétrico brasileiro, assim como também, a definição dos atores participantes em cada esfera setorial.

a PRivatização em PeRsPeCtiva CRítiCa: HistóRia e debate

No final do século XX, defrontamo-nos com grandes transfor-mações em esfera global, dentre as quais, a globalização e o neolibe-ralismo adquirem relevância teórica entre pesquisadores, cientistas e intelectuais dos mais diversos campos do saber, e, prática na orientação macroeconômica, adotada integralmente ou em parte por diversos países no mundo. Especialmente pelos países em desenvolvimento e, entre eles, salientamos o caso do Brasil, da Argentina e do México, enquanto ilustração aos propósitos deste paper.

Associado às transformações supra mencionadas, encontra-se as mudanças na forma de apreender, implantar e conduzir a política econômica (em seus aspectos micro e macroeconômicos). Neste sentido, as estratégias desenvolvimentistas adotadas pelos Es-tados, principalmente no Pós-Segunda Guerra Mundial passam a serem desacreditadas, e sofre grandes críticas decorrentes em parte pelos efeitos engendrados pela crise político-econômica do final da década de 1970.

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Durante a década de 1980, as reformas propostas em esfera global, principalmente para os países Latino-Americanos perpassavam o tema das “estratégias para o desenvolvimento”. Com a consolidação e hege-monia das orientações político-econômicas das Reformas liberalizantes, ocorre uma forte pressão para que os países em desenvolvimento se integrem e criem os arranjos institucionais necessários ao livre fun-cionamento da economia de mercado (VELASCO E CRUZ, 2004; SALLUM JUNIOR, 2001).

Este processo foi marcado por fatores exógenos e endógenos aos países em desenvolvimento e apresentaram dois grandes movimentos no âmbito do Estado Nacional. O primeiro se refere aos chamados ajustes estruturais, ou seja, as Reformas cuja centralidade passava pela adequação do Estado as novas contingências globais, a economia de Mercado, a integração comercial e conseqüentemente as alterações institucionais necessárias a este processo de ajustamento propalado pelo Banco Mun-dial e FMI como meios necessários a nova ordem econômica global. (BANCO MUNDIAL, 1987, 1989, 1991, 1994 e 1997).

A segunda se refere às alterações no âmbito da organização da Administração do Estado. Ou seja, o modelo de gestão burocrático racional marcante e fundamental para o funcionamento e organização do Estado Moderno no século XX precisaria ser substituído e/ou complementado por um modelo de gestão gerencial, mais voltado para a lógica de mercado (PEREIRA, 1997a; 1997b).

Essas alterações afetaram diretamente o Estado, não somente por uma mera relação quantitativa (de mais ou menos Estado), mas também por fatores qualitativos, afinal, como nos mostra Sallum Junior (2001), “o Estado é a principal instituição de base nacional” (principalmente quando se trata de países em desenvolvimento). As mudanças no âm-bito do Estado não são somente alterações institucionais, normativas, mas também rearranjos de estruturas de poder e redefinição de atores políticos e econômicos constituintes e/ou influente no Estado, no Poder, ou melhor, nas estruturas de Poder.

Desde então, por um conjunto de fatores endógenos e exógenos (agências multilaterais, por exemplo) a esses países em desenvolvimento, tem ocorrido um conjunto de escolhas que visam à reestruturação na condução econômica para o desenvolvimento e crescimento das res-pectivas economias. Donde a lógica liberalizante volta a ter um espaço central, marcada por um conjunto de restrições político-econômicas de corte de gastos, de eliminação de subsídios, privatizações e abertura da economia, entre outros.

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Porém, o movimento exposto acima não ocorreu de forma sin-crônica no conjunto dos países em desenvolvimento, especialmente os já citados neste artigo (Brasil, Argentina e México). Isto nos evidencia que as reformas engendradas nesses países se, por um lado, apresentam fatores uniformes no que tange as proposições fundamentais, por outro lado, também nos mostrou que à dinâmica e a forma com que cada Estado soberano foi conduzindo suas reformas foi diferenciado no tempo e no espaço3.

Este quadro que apresentamos nos evidencia que o conjunto de mudanças ocorridas tem afetado tanto a organização burocrática do Estado (instituições diversas) como também no plano das instituições econômicas internacionais. Neste sentido, o Estado a as diversas agên-cias e organizações supranacionais tem passado por enormes reformas, cujo público alvo principal tem sido os países em desenvolvimento. Tal fato acaba por fortalecer a necessidade de estudos comparados sobre as experiências de reformas econômicas em países em desen-volvimento, entre elas, as ocorridas nos setores infra-estruturais, tal como o da energia elétrica.

As discussões sobre as privatizações e principalmente as ocorri-das nos setores de infra-estrutura anteriormente geridos por empresas públicas em diversos países em desenvolvimento e mesmo em alguns países desenvolvidos nos remetem a questões de natureza e de práticas (políticas e econômicas).

Isto porque, para o quadro conceitual do liberalismo econômi-co as empresas públicas seriam portadoras de algumas contradições, uma em particular bastante significativa, qual seja: a de que a em-presa pública ao mesmo tempo em que se apresentava como fator de acumulação de capital, também representava um instrumento de política de governo. Fato inconcebível para esta linhagem teórica, por contrariar as possibilidades de tomada de decisões no livre jogo do mercado.

Embora indesejada pelo liberalismo econômico, as empresas públicas ocuparam um lugar de destaque tanto nos países desenvolvidos, como também nos países em desenvolvimento, principalmente a partir do Pós-Segunda Guerra Mundial.

(3) Cabe reforçar aqui que a forma com os diversos atores sociais, políticos e econômicos se organizam, se confrontam e costuram consensos preservam particularidades históricas inerentes ao espaço de disputas locais (regionais ou nacionais).

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Os setores mais visados e mais facilmente transformados em em-presas públicas foram os voltados para os serviços de utilidade pública ou os necessários à implantação de indústrias de base nos países em desenvolvimento. Onde a necessidade de romper com os estrangula-mentos econômicos passavam por uma estratégia de substituição das importações, como o verificado no caso brasileiro, por exemplo.

Outro fator presente nos países em desenvolvimento era a baixa capacidade dos grupos locais em darem respostas rápidas e efetivas à necessidade de implantar uma indústria num processo que exige grandes mobilizações de capital num tempo relativamente curto de maturação e, ao mesmo tempo não representavam atrativos para o capital internacional. Tal quadro é verificado no caso do setor elétrico brasileiro, principalmente a partir da década de 1950, seja sob um governo democrático (segundo mandato de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e João Goulart) ou sob governos autoritários (governos militares pós-64).

Mesmo oriunda das motivações expostas acima, a empresa pública sofreu fortes ataques dos ideários em prol da liberalização econômica desde o início. Ou seja, para esta abordagem teórica, a interferência do Estado nas questões econômicas estaria criando muito mais problemas (por mais que estes somente aparecessem em médio prazo) do que soluções para suas respectivas economias. Seja porque o Estado seria ineficiente na condução econômica ou porque geraria déficit público, a solução sempre se apresentava como a transferência do controle dessas empresas para o setor privado.

A construção histórico-econômica da privatização como única alternativa para adoção de políticas econômicas orientadas para o mer-cado nos países em desenvolvimento, embora tenha reservado algumas especificidades de país para país4, podemos afirmar que as privatizações tiveram papel central no debate sobre as reformas do Estado na década de 1990, principalmente nos países latino-americanos, especialmente o caso Argentino e o Brasileiro, respectivamente os que mais privatizaram.

A Argentina apresenta sua primeira experiência de liberaliza-ção em 1976, após o golpe militar (pondo fim à segunda experiência

(4) O caso que mais se diferenciou dos demais, segundo Velasco e Cruz, foi o Coreano por a partir do pós-guerra construir uma industria já assentada na lógica do mercado, ou seja, a Coréia ao contrário dos demais países não conferiu um papel importante à empresa pública. Ao passo que quando todos os países vão discutir sobre as privatizações a Coréia vai direcionar suas reformas para o estabelecimento de fronteiras mais transparentes entre os interesses privados e o poder público, na tentativa de evitar os vícios dos grupos monopolistas - independente de ser privado ou público -, (VELASCO E CRUZ, 2004:98-99).

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peronista). Entre 1976 e 1982, implantaram-se muitas políticas neste sentido que passaram pelo programa de eliminação de controles dire-tos de importação e redução tarifária; liberação de preços e salários e redução de restrições às operações cambiais.

Segundo Velasco e Cruz (2004), a Argentina reverteu medidas prévias de liberalização, levantando barreiras não aduaneiras, incluindo proibição de importações e sistemas de concessão de licenças.

Como parte de programa heterodoxo de combate à inflação, o governo Alfonsín impõe controles diretos sobre preços e salários. Frente às dificuldades enfrentadas na administração do Plano Austral, já em 1986 ocorre a renovação da política de liberalização comercial, acelerando-se em 1991 (BASUALDO, 2002).

Embora nos últimos dois anos do governo Alfonsín tenha havido uma adesão ao discurso das reformas econômicas liberalizantes, isto não se traduziu em medidas mais efetivas de política. O que por sua vez, só passam a ser adotadas a partir de 1989, com a eleição de Menem à presidência do país. A forte crise hiperinflacionária e os sucessivos “apagões” elétricos não só levaram à saída de Alfonsín da presidência antes do tempo institucional, como também deram força social e política para que Menem aderisse com toda a força às orientações econômicas voltadas para o mercado.

A Argentina privatizou suas empresas entre os anos de 1990 e 1999 a uma média anual de 4,46 bilhões de dólares, respectivamente 1,51% de seu PIB, em 1999. Já o Brasil privatizou a soma de 6,98 bi-lhões de dólares, o equivalente a 0,93% do seu PIB, em 1999, embora o ano de 1998 tenha sido o que o país mais tenha privatizado (33,427 bilhões de dólares), (VELASCO E CRUZ, 2004).

O México, por sua vez, tem no Plano Nacional de Desenvolvi-mento do presidente Echevarria (1970/1976) um grande movimento marcado por dois processos, de um lado ocorre uma forte intervenção do estado na economia e, por outro lado, há inúmeras mobilizações do empresariado contra tal processo.

Outro fato marcante foi à estatização dos bancos decretada pelo presidente López Portillo logo em seguida da Moratória da dívida externa em 1982, gerando com isto forte abalo nas relações entre o Estado e o empresariado no México. Porém, vai ser somente a partir de 1986, nos governos de La Madrid e Salinas Gortari que começam a ocorrer as reformas liberalizantes.

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Como complemento e especificidade do caso mexicano, as re-formas econômicas internas estão intimamente vinculadas às mudanças promovidas em sua política econômica internacional, se expressando primeiramente pela adesão do país ao GATT – em 1986 – e nas ne-gociações seguintes de integração regional com o Canadá e os Estados Unidos – NAFTA.

Como evidenciado até o momento, as privatizações se assenta-ram numa lógica de entregar ao mercado os setores da economia mais atrativos aos grupos econômicos nacionais e internacionais. Todavia, esta tomada de decisão não é meramente técnica, ou seja, marcada por uma escolha simplesmente técnico-burocrática. Ela passa também por uma tomada de decisão política, ou seja, sobre que tipo de Estado e que tipo de atuação compete a este novo Estado, centrado muito mais na fiscalização e regulação dos setores rentáveis da economia por meio de agências reguladoras, tal qual veremos no caso brasileiro com a criação na ANEEL para o setor Elétrico, da ANATEL para o setor de Telecomunicações e da ANP para o setor de Petróleo para nos atermos apenas a algumas.

Todavia, as tomadas de decisões do plano governamental para realização de tais reformas privatistas também não foram fáceis por conter um conjunto de atores muito grande participando de forma direta ou indiretamente deste processo.

Além do Estado Nacional (representado por suas diversas for-ças e instâncias – executivo, legislativo, judiciário; oposição política; movimentos sociais; ONG’s e capital econômico nacional/regional e local) marcando um conjunto de negociações e debates endógenos, havia também os fatores exógenos, caracterizando por um lado, as recomendações de diversas agências multilaterais e de fomento (FMI, Banco Mundial e etc.) e, por outro, pelas fortes pressões das imensas massas de capital transnacional requerente de novos mercados para investimentos e continuidade de seus respectivos processos de acu-mulação e concentração.

As reformas econômicas realizadas nas décadas de 1980 e 1990 nos países em desenvolvimento têm sido amplamente discutidas pela literatura (econômica, política, sociológica, entre outras). Uma questão central posta neste conjunto de debates é a busca de entendimento sobre como se deram as transformações das idéias político-econômicas que vigoraram nos anos 1970, marcado pela crença no desenvolvimento estruturado em um Estado forte, poderoso e com uma forte dose de

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protecionismo para as reformas voltadas para o mercado que reinaram durante a década de 1990.

Já ao final dos anos 1980, em função de drásticas mudanças ocorridas no cenário nacional, os países em desenvolvimento começam a formular e implementar um conjunto de políticas econômicas mais ortodoxas. O quadro de fundo dessas decisões era a presença de um ambiente recessivo, com interrupção dos fluxos externos de financia-mento, abundantes no período anterior, (VELASCO JR, 1997).

O objetivo primário era o controle do déficit público e da inflação e, ao mesmo tempo buscavam-se meios de fazer frente ao pagamento das dívidas assumidas junto às instituições financeiras inter-nacionais. Do ponto de vista da estratégia de desenvolvimento também havia mudanças, entre elas, a venda de empresas estatais e a eliminação total ou parcial de barreiras tarifárias, tendência, esta, reforçada e ace-lerada nos anos 1990.

As pressões externas são outro fator que contribuíram para as reformas econômicas nos países em desenvolvimento, todavia aqui não pretendemos “olhá-las” de forma unidirecional, ou seja, impostas independente das vontades nacionais. Os fatores externos se dinamizam com um conjunto de fatores internos (elites econômicas e políticas) para favorecerem a realização de reformas, ou seja, há um processo de interação em contextos de negociação de interesses.

As reformas orientadas para o mercado no final do século XX, marcam no âmbito do Estado um conjunto de reformas, reorientações e reestruturações que visavam a transição do Estado Burocrático ao Estado garantidor do livre jogo do Mercado.

Ou seja, a tendência mundial vinha impactando os Estados-Na-ções com a globalização que, entre outros efeitos, marcou um processo de integração regional, seguida por uma crise do Estado-Nação e por um crescente avanço do capitalismo financeiro, que por sua vez, trouxe novas ameaças, mas também novas oportunidades em esfera global para as economias dos Estados no final do século XX (principalmente nos países latino-americanos).

A década de 1990 (no Brasil) teve como marco político na agenda privatista os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC). Todavia este movimento começou a se institucionalizar ainda no governo de José Sarney, a partir de 1985, passando pelo governo do presidente Fernando Collor de Mello e do presidente Itamar Franco até chegar e se fortalecer com o FHC (no primeiro e no segundo mandato).

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No entanto, algumas distinções e observações devem ser feitas. A primeira delas se refere à presença das privatizações enquanto reformas econômicas para redefinição de modelos e/ou de padrão de desenvolvimento.

Neste primeiro caso percebe-se nitidamente que, embora as privatizações começassem a ocorrer no setor de siderurgia no governo do presidente José Sarney, não havia por parte deste uma opção decla-rada em sua agenda pública para realização de tais reformas. É o que podemos denominar de uma particularidade, afinal as privatizações se caracterizaram como uma produção de política pública que não cons-tava, de fato, da agenda pública, da pauta governamental.

Já os governos seguintes, embora dando continuidade à lógica privatista, vão aprofundá-la como fator central de reformas propostas na agenda política e na pauta governamental. Talvez a exceção seja o governo do presidente Itamar Franco que, embora não fosse enqua-drado como um político voltado para esses tipos de reforma, teve seu governo, em parte, agindo mediante aos movimentos começados e propostos no governo do presidente Collor.

No governo do presidente Fernando Collor há um marco muito importante para as reformas orientadas para o mercado, ou seja, a criação do Programa Nacional de Desestatização (PND) que vai marcar no plano institucional e político as reformas liberalizantes. É a partir daí que se alteram algumas leis, criam-se novos arranjos e dá-se início à reestruturação do setor elétrico brasileiro na sua esfera federal e estadual, ora em sintonia, ora em conflito com os entes da Federação (Governo Federal e Governos Estaduais).

É dentro deste quadro liberalizante e de recomendações para mudança do modelo de desenvolvimento econômico dos países em desenvolvimento que o setor elétrico é envolvido. Mediante tal con-texto histórico, verificaremos como se deu este embate no Brasil, ou seja, como o país agiu mediante tais movimentos globais.

As Reformas do Estado no Brasil deu-se a partir do início da década de 1990, no governo do presidente Fernando Collor, sob influência dos órgãos supranacionais, tais como o FMI, o BIRD e a OMC, entre outros. Das ações oriundas de tal reforma, destacam-se aquelas denominadas de ‘privatização’ e ‘desestatização’. Muitos são os questionamentos e reflexões sociológicas, políticas e econômicas que se pode fazer sobre as mesmas.

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O primeiro questionamento refere-se à suficiência das estra-tégias neoliberais na condução de um novo ciclo de investimentos. Poderia as mesmas ser eficazes na retomada de um desenvolvimento que preveja a mitigação das graves distorções sociais e distributivas? O Estado Brasileiro durante a década de 1990 deixou enlevar-se pelas premissas neoliberais na tomada de decisão concernente aos rumos dos setores estratégicos, entre eles, o da produção e distribuição de energia elétrica, por exemplo, alegando, entre outros, o ajuste fiscal e a melhoria do Bem Estar Social como decorrência “natural” deste processo.

O ideário neoliberal5 foi proposto, na década de 1980, por ex-poentes da economia e política dos EUA e da Inglaterra, a saber: os governos de Reagan e Thatcher respectivamente. Vendeu-se como sendo a melhor (senão a única) saída para os países ditos emergentes retomarem seu desenvolvimento econômico com condições de com-petitividade produtiva no cenário internacional gerando, por via de conseqüência, as benesses sociais tão necessárias.

Destacou-se, na veiculação dessas premissas, o ‘Consenso de Wa-shington’, realizado em 1989, o qual reuniu economistas do governo norte-americano e de instituições internacionais, tais como o FMI. A reforma financeira, o comércio liberalizado, o controle da inflação, o ‘Estado Mínimo’, e principalmente, a privatização, foram algumas das me-tas propostas naquela ocasião. Embora o marco político e simbólico da onda neoliberal seja os governos Thatcher e Reagan, donde ocorre um movimento global. Alguns países tiveram um movimento nesta direção precocemente, destacamos o Chile e a Argentina ainda sob ditadura militar (1976/1983), outros países, por sua vez, tiveram um movimento mais tardiamente, tal qual o caso da Índia. Por fim há os casos de embate interno muito grande entre os defensores e os críticos de tais propostas como o ocorrido na Coréia e em Taiwan durante a década de 1990.

As propostas apresentadas acima, por um lado, redefinem o papel do Estado no que concerne a sua função essencial, por outro, também se veicula a idéia por meio discursivo, que a implantação do Estado Mínimo juntamente com o equilíbrio fiscal e ajuste das contas públicas em si, seria condição suficiente para engendrar, por decorrência, a sus-tentabilidade e equidade social tão almejada no país. Sobre tal discurso,

(5) As principais orientações político-econômicas e ideológicas do neoliberalismo consistem na proposição de “estado mínimo”, ou seja, o Estado deve deixar de ser o investidor para ser o regulador e fiscalizador do “livre mercado”. A estabilização da moeda e contenção da inflação, a abertura comercial, a flexibilização do mundo do trabalho e a privatização também ocupam uma centralidade no neoliberalismo.

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Bermann (2002) ao analisar o Índice de Gini6 dos seguintes anos (1981, 1986, 1990, 1993, 1995, 1998 e 1999) evidencia que, mesmo após a estabilização da moeda – Plano Real – praticamente não houve altera-ções significativas no Índice, ou seja, as reformas supra em si não foram capazes de, por decorrência, como o proposto, melhorar as condições sociais e diminuir a desigualdade social existente no Brasil.

Muitos investidores internacionais passaram a impor como con-dição de continuidade de interesse nas transações com os países ditos emergentes, que os mesmos acatassem as diretrizes e políticas de reformas econômicas enunciadas pelo ‘Consenso de Washington’. A condição-mór era a de que houvesse privatização das empresas inseridas nos chamados setores estratégicos para o desenvolvimento, o que foi em grande medida acatado, incorporado e implantado pelo Estado Brasileiro durante a década de 1990. Principalmente no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, donde se privatizou o setor de Telecomunicações e parte do Setor Elétrico (os dois setores juntos responderam por praticamente 62% do montante das privatizações) (BNDES, 2004).

É com base neste contexto histórico, político, econômico e ins-titucional envolvendo atores locais/nacionais e internacionais vincu-lados aos organismos multilaterais de financiamento e propositores de modelos para condução político-econômico que o Brasil vai realizar sua Reforma do Estado a partir da década de 1990.

Ou seja, as reformas geradas a partir de 1990, iniciadas com o governo do Presidente Fernando Collor de Melo sofreram fortes influ-ências das orientações do Banco Mundial, a saber: abertura comercial (1990); Plano Nacional de Desestatização - PND (1990); Renegociação da Dívida Externa (assinada em 1992); Plano Real (1994); Quebra dos monopólios e restrição ao capital estrangeiro (1995) e Lei de Concessão de Serviços Públicos (1995).

O PND, criado em 1990, pela Lei n.º 8.031, durante o governo do presidente Collor, é o documento norteador das privatizações. O processo de reestruturação do setor elétrico – privatização – acirra-se a partir de 1993 com a promulgação da Lei n.º 8.6317. Em 1995, com a promulgação das Leis das Concessões n.º 8.987 e o Decreto

(6) O Índice de Gini varia de 0 (igualdade máxima) a 1 (desigualdade máxima)

(7) Esta Lei eliminou o regime tarifário pelo custo de serviço, abrindo espaço para o processo de criação do Produtor Independente de Energia (PIE) e o estabelecimento de regras para fixação de níveis tarifários, além de estabelecer a obrigatoriedade de contratos de suprimento de energia (contendo quantidades e preços) (FERREIRA, 2000).

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n.º 9.074, que regulamentaram o artigo 175 da Constituição8, criou-se condições legais para que os geradores e distribuidores de energia elétrica pudessem competir pelo suprimento dos grandes consumi-dores de energia elétrica.

O setor elétrico foi um dos setores que tiveram que se adequar a esta nova realidade imposta pelo FMI e pelo Banco Mundial. As reformas para o setor elétrico foram orientadas em dois níveis: um macroeconômico voltado para a eliminação do déficit das empresas estatais e outro vinculado ao equilíbrio das contas do setor público. Outro de caráter microeconômico visando à melhora na eficiência do setor e a criação das condições necessárias à obtenção de financiamento privado para o setor.

Fruto do PND foi constituído a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica9 - no ano de 1997. Sua finalidade de regular e fiscalizar a produção, transmissão, distribuição e comercialização de energia elé-trica, cuja direção ainda compete aos atores vinculados à rede política estatal demonstrou não uma descontinuidade do controle estatal sobre o setor, mas, sim, um novo tipo de envolvimento e comprometimento do Estado. Cabe ainda o questionamento sobre a efetiva atuação da ANEEL enquanto uma agencia de estado ou de governo.

Algumas das reflexões sobre a questão dos impactos econô-micos oriundos das reformas estatais, dentre elas a que faz Cano (2000:250), destaca que:

tanto no que se refere à administração quanto à privatização de suas empresas, o Estado permitiu que houvesse desmantelamento de seus principais órgãos decisórios de planejamento e a redução efetiva da capacidade de formular políticas de desenvolvimento.

Nosso entendimento, todavia, é o de que não houve um desmante-lamento strictu, mas um reordenamento das funções do Estado de molde a reiterar uma política econômica que, de um lado, marca a heteronomia da nação brasileira, isto é, uma situação nas quais os rumos nacionais são fortemente influenciados por interesses exógenos e, por outro, mantêm-se os compromissos com a rede de relações político-econômicas tradicionais

(8) O artigo 175 incubiu “ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. – Parágrafo único. A lei disporá sobre: o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; os direitos dos usuários; política tarifária; a obrigação de manter serviço adequado”.

(9) A ANEEL foi aprovada pelo Decreto 2.335 de 6 de Outubro de 1997.

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do Estado Brasileiro. Formando um compósito emblemático para o ple-no desenvolvimento social e econômico da nação, fato compartilhado com Dowbor (2000b), Santos (1998), Furtado (2001), Maranhão (2001) Pinguelli, Tolmasquim e Pires (1998) e Sauer (2002), entre outros.

Entrementes, as benesses aos capitais que adentraram ao proces-so de privatização ocorrido durante a década de 1990 não faltaram, contaram com a prática de financiamento pelo BNDES de até 50% do valor do leilão das concessões de energia elétrica, inclusive para as empresas transnacionais. Essas (como a – AES10, concessionária que entrou na Geração de Energia Elétrica Tietê) e os grandes grupos empresariais nacionais (Bradesco, Camargo Correa, Votoratim, entre outros) souberam se aproveitar da rede de oportunidades e proteção gerada. E houve, ainda, brechas na legislação do Imposto de Renda que permitiu aos compradores das estatais deduzirem os sobre-preços (ágios) do lucro tributável, o que lhes deu um desconto de cerca de 30% sobre os referidos ágios (CANO, 2000).

A necessidade de analisar a privatização numa perspectiva histórico-estrutural11, perante a qual, é possível constatar a ocorrência de modificações na relação entre o Estado e o setor privado. Embora as características da privatização sejam a transferência de ativos e de capital – reelaborando as condições de concorrência, a dimensão de clientela e a política de recursos humanos da própria empresa de ma-neira profunda –, há especificidades na forma como o Estado busca legitimidade social para efetivar tal processo, bem como também, em quais razões o levou a escolhê-lo (LEME, 2001).

Corroborando tal análise, Maranhão (2001) afirma que não foi por incapacidade do Estado que o setor elétrico brasileiro começou a voltar para o setor privado a partir de 1995, mas sim, por um conjunto de pressões exógenas que cobraram, com altos juros, o pagamento da dívida feita pelo Brasil para a construção do modelo do sistema elétrico estatal e eficiente que sobreviveu até o início dos anos 1990.

(10) Essa empresa também fez parte da concessão que controla a distribuidora de energia elétrica de São Paulo até meados de 2006 - Metropolitana -, uma das maiores distribuidoras de energia elétrica do país.

(11) O conceito de processo histórico-estrutural nos parece aqui particularmente interessante por permitir, no âmbito metodológico, a necessária fusão entre estrutura e história na análise social. Isto porque, sob tal perspec-tiva, as estruturas são concebidas como produto da luta social e como resultado da imposição social, sendo, deste modo, analisadas diante de processos. Conforme bem observa Cardoso (1993: 97), “a idéia de que existe uma explicação histórico-estrutural tem a ver com o processo de formação das estruturas e, simultaneamente, com a descoberta das leis de transformação dessas estruturas. Trata-se de conceber as estruturas como relações entre os homens que, se bem são determinadas, são também (...) passíveis de mudança, à medida em que, na luta social (política, econômica cultural), novas alternativas vão se abrindo à prática histórica. Neste sentido, o objeto da análise não se reifica em atores, mas se dinamiza em conjuntos de relações sociais.”

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(...) as fissuras oriundas dos grandes investimentos em geração por meio da tomada de empréstimos internacionais de maneira inadequada à realidade financeira mundial do final dos anos 1980. O governo tomou dinheiro spot em péssimas condições, agravando o quadro da dívida externa. (...), além disso, alheio à crise internacional, o governo insistiu em fazer Itaipu de uma vez só, ignorando estudos dando conta de que o potencial hidroelétrico da Bacia Platina poderia ser aproveitado por várias usinas que iriam sendo construídas, com comprometimento financeiro menos oneroso (MARANHÃO, 2001).

Somado a isso, Furtado (2001), nos mostra que o programa brasileiro de privatização – e aqui inclui o setor elétrico –, des-pontou porque a meta era resolver o balanço de pagamentos e não para solucionar a crise já anunciada por diversos especialistas, ou seja, a finalidade da privatização se apresentava inadequada desde a sua implantação.

Como se percebe, as orientações de políticas liberalizantes para o mercado, com algumas diferenças são generalizadas entre os países em desenvolvimento. De forma geral e simplificada podemos afirmar que os países em desenvolvimento tiveram um movimento histórico de acentuação da intervenção estatal na economia, prin-cipalmente nos setores estratégicos, tal como a energia a partir da segunda guerra mundial.

Para melhor ilustrarmos o movimento mencionado acima, citamos o caso do Brasil que Pós-Segunda Guerra Mundial engen-dra um movimento de desenvolvimento econômico centrado nas “mãos” do Estado. Esta forte intervenção estatal, principalmente nos setores de infra-estrutura perdurou-se de forma crescente até meados da década de 1970, passando por forte estagnação na década de 1980, seguida por reformas liberalizantes na década de 1990, tal como já mencionado.

Já a reestruturação do setor elétrico brasileiro não tem sido muito enfatizada nos estudos sociológicos recentes, embora haja algumas refle-xões sobre as Reformas do Estado e nela, algumas discussões a respeito do processo de privatização em geral. Dos autores da sociologia que estão à frente de tal assunto, destacamos Petras (1999), que recentemente fez uma crítica ao neoliberalismo e às reformas sob essa inspiração.

Por outro lado, as investigações sociológicas que se debruçam criticamente sobre as proposiçõe s neoliberais, por vezes contrastam com as convicções de outra parte dos estudiosos em áreas correlatas e,

Travessias 2008128

por outras, corroboram com as mesmas. Na economia, Bresser Perei-ra (1995), ao retornar a discussão do ‘livre mercado’, gerou muitos dos argumentos que as autoridades encamparam para justificar a adoção das medidas privatistas. Porém, Cano (2000) salienta as conseqüências negativas para a economia decorrente da privatização e na mesma perspectiva está Biondi (1999 e 2000).

Na perspectiva econômica ainda podemos citar Tolmasquim (2002), que por sua vez, tem debruçado esforços críticos para compre-ender a reestruturação do setor elétrico brasileiro, suas conseqüências negativas e quais possibilidades estão postas para o desenvolvimento sustentável, sem oneração do Estado e nem dos consumidores. Isto é, tentativas de construções alternativas a reestruturação do setor elétrico ocorrida durante a década de 1990.

Na Ciência Política, Tavares de Almeida (1997 e 1999) afirma que as privatizações têm ocorrido mediante uma articulação político institucional que, em alguns momentos, peca pelos exageros (por parte do Executivo) na adoção de Medidas Provisórias (MP), configurando um Executivo forte frente a um Legislativo fraco12.

Muitos outros são os atores e campo do saber que também tem dedicado relativa atenção à reestruturação do setor elétrico brasileiro, dentre eles destacamos Pinguelli, Tolmasquim e Pires (1998), Bermann (2002), Sauer (2002), entre outros, que numa visão interdisciplinar entre a engenharia elétrica, a física e a economia têm realizado um ‘olhar’ crítico no que concerne às reformas do setor elétrico praticadas durante a década de 1990.

A compreensão sociológica e política crítica, em diálogo com o saber de outras áreas das humanidades e interdisciplinares, nos darão as condições científicas e intelectuais para desvendar o fenômeno em referência, isto é, entender a relação entre o Estado, o capital (transna-cional ou nacional) e a sociedade no processo de reestruturação do setor elétrico não apenas como uma simples relação dicotômica. Mas como uma construção, a partir de relações de poder, propiciadas por atores e regras jurídicas e políticas institucionais específicas, donde o movimento geral da economia se faz pertinente. É nesse sentido que as transforma-ções ocorridas no setor elétrico dos países em desenvolvimento e, do Brasil em particular foi analisada e compreendida neste paper.

(12) A autora ainda expõe que parte das privatizações também é motivada pela mudança nas idéias predominantes sobre o papel do Estado na economia.

O Setor Elétrico Brasileiro e a Privatização 129

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intRodução

O discurso de que os jovens filhos de imigrantes se encontram numa crise de identidade está largamente difundido, tanto no que se refere a produções de carácter socio-antropológico, bem como no dis-curso do senso comum. Assiste-se ao recurso a asserções do tipo “eles [os descendentes] não sabem quem são (...) se são caboverdeanos, ou se são portugueses”,2 para se referir ao problema que constitui a defi-nição, ou a necessidade de definição, da identidade dos descendentes de imigrantes. Quanto ao discurso académico, o posicionamento iden-titário dos filhos de imigrantes caboverdeanos em Itália poderá estar conotada à ideia de indefinição, quando se diz que “os descendentes não são nem carne nem peixe”(MONTEIRO, 1997). A mesma ideia estará presente na afirmação de que “ as «segundas» gerações são por excelência o «lugar» da crise”(ALMEIDA, 2000).

Verifica-se que o problema da chamada ‘segunda geração’ tem merecido a reflexão de vários autores em diversos contextos, desig-nadamente o dos Estados Unidos da América,3 com a chegada de contingentes de imigrantes oriundos de diversos pontos do globo; ou

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal: a Questão Identitária1

Francisco Avelino Carvalho

Centro de Estudos de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa

(1) À Professora Doutora Margarida Marques por todo o incentivo e pela disponibilidade que sempre revela e aos colegas do SociNova/Migrações pelos comentários.

(2) Palavras de um morador do bairro das Fontaínhas ( Entrevista n.º 6).

(3) Nos Estados Unidos da América os estudos sobre a segunda geração ganham particular relevância nas décadas de 40 e 90 (Portes 1999:97).

Y

Travessias 2008134

o designado “fenómeno dekassegui”4 (SASAKI, E. citada por L. SU-GIMOTO, 2004) relativo à emergência da questão dos descendentes de imigrantes japoneses no Brasil; ou ainda, sobre o aparecimento de gerações de filhos de imigrantes portugueses em França.5

Quanto a Portugal, um dos aspectos que resulta da abordagem de Machado (1994) da questão dos filhos de imigrantes de origem africana em Portugal é a chamada de atenção para a sua, pelo menos, dupla perten-ça. Nesse sentido os filhos de imigrantes caboverdeanos corresponderiam aos novos luso-caboverdeanos, como forma de ultrapassar as insuficiências da designação «segunda geração», remetendo assim para uma categorização que funde duas referências de nomenclatura nacional.

Neste artigo pretende-se explorar a diversidade de posicionamentos identitários que os descendentes assumem, através de identificações distin-tas que desenvolvem em relação ao seu país de origem, Portugal, e à dos pais, Cabo Verde; do modo estratégico como se apropriam e manipulam atributos identitários como a língua, a musica e a gastronomia; das relações interpessoais que estabelecem; das imagens que elaboram tanto sobre os portugueses como sobre a forma como pensam que são vistos.

Deste modo procura-se mostrar que por detrás dos posiciona-mentos identitários alicerçados num dado atributo, tecem-se tramas complexas que justificam evitar o enclausuramento em categorias onde, de resto, se ancoram os discursos de crise.

As entrevistas semi-directivas aqui submetidas à exploração6 e codificação7 foram realizadas a 16 filhos de imigrantes caboverdeanos com idades entre 15 e 18 anos e residentes em Lisboa. No processo de construção da amostra, optou-se por um número reduzido de pessoas a inquirir, uma vez que não se pretende fazer inferências globais (GHI-GLIONE e MALATON, 1993:55) e porque nos estudos qualitativos a representatividade em termos estatísticos não se coloca (GHIGLIONE e MALATON, 1993:55; COLLER, 2000:34).

(4) Designação atribuída à migração de descendentes nipónicos - os nikkeis - para o Japão, iniciada na década de 80 (Sasaki citada por L. SUGIMOTO (2002, 24 a 30 de Junho).

(5) Vejam-se, M. B. ROCHA-TRINDADE (1986) Villanova, R. (1983).

(6) Para a exploração das entrevistas elaborou-se uma grelha de análise abarcando aspectos tais como os espaços em relação aos quais os descendentes desenvolvem identificações; a relação que estabelecem com o seu país de origem e com o de origem dos pais; e as relações interpessoais que estabelecem, cruzando-os com as representações que elaboram, os atributos identitários que convocam e a dimensão temporal (passado, presente e futuro).

(7) Na codificação das entrevistas procedeu-se à classificação dos diversos excertos, atribuindo-os a um ou mais aspectos da problemática contemplados na grelha, mas cientes de que, seguindo o raciocínio de Bardin (1995:115), a selecção de determinados excertos “sem tratar exaustivamente todo o conteúdo” encerra “o perigo de elementos importantes serem deixados de lado, ou de elementos não significativos serem tidos em conta”.

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 135

2. imiGRantes de seGunda GeRação: invenção de um ConCeito

Como é possível falar de «imigrantes» a propósito de pessoas que não «imigraram» de parte nenhuma e que são, de resto, declaradas de «segunda geração»(BOURDIEU, 1998:20).

A interrogação colocada por Bourdieu toca na questão central que se levanta à volta da designação que se atribui aos filhos de imigrantes nascidos no país de acolhimento dos progenitores. É que tal designação, quando não é devidamente explicitada, remete-os automaticamente para a categoria de imigrantes, quando não podem ser considerados tecnicamente como imigrantes (ROCHA-TRINDADE, 1995: 50), precisamente, por já terem nascido no país de destino dos pais. Daí que vários autores (PORTES, 1999, MARQUES, 2000) recorrem à expressão filhos de imigrantes ou descendentes, para se referirem a esses indivíduos. Contudo, ainda é usual a designação de imigrantes de se-gunda geração na construção da sua identidade social.

Atribuir a esses filhos de imigrantes a designação de imigrantes pode representar a demissão da sociedade de acolhimento em relação às suas responsabilidades para com este aspecto da questão da imigração, uma vez que o remete para a sociedade de origem dos pais, como se a situação que se gera à volta dos descendentes se tratasse de “uma mera reedição, com os mesmos parâmetros, do «problema» anterior dos imigrantes, uma espécie de reprodução social mecânica” (MACHADO, 1994:120).

Na análise da problemática dos descendentes não se pode também negar o recurso à expressão segunda geração quando tem o sentido da acepção utilizada por Portes, isto é, enquanto categoria constituída por “indivíduos nascidos de pais estrangeiros no país de acolhimento” (PORTES, 1999:97), remetendo para a ideia de ser a primeira geração de descendentes que surge após a chegada dos pais.

Sendo assim, no caso da imigração caboverdeana em Portugal já terão existido várias segundas gerações, tantas quantos os momentos his-tóricos de chegada de contingentes significativos de originários daquele arquipélago que, desde os inícios do século XX têm vindo a instalar-se neste país: período 1900-1920; anos 60; anos 80 (CARREIRA, 1977).

Pelo que a presença de imigrantes caboverdeanos em Portugal corres-ponde a um continuum de gerações em que coexistem filhos, netos e bisnetos descendentes de imigrantes chegados nos diferentes períodos citados.

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3. alGumas ConsideRações sobRe o ConCeito de identidade

A formação de identidades em contextos imigratórios reveste-se de alguns aspectos particulares que importa referir. Portes e Rumbaut (2001:151) evidenciam a ligação que une o processo de categorização com o de construção identitária ao mencionarem que este começa com a aplicação de um selo a si próprio, num processo cognitivo de autocategorização que passa tanto pela reclamação de pertença a um grupo ou categoria, como pelo estabelecimento de contrastes com outros grupos ou categorias.

Considerando que “a categorização está muitas vezes relacio-nada com valores diferenciais” e que “(...) a interacção entre, por um lado, valores diferenciais derivados socialmente e mecanismos cogni-tivos de categorização, por outro, é particularmente importante em todas as divisões sociais entre o “nós” e o “eles” (TAJFEL citado por SAINT-MAURICE, 1993:393), então os contextos migratórios podem constituir-se como espaços por excelência de ocorrência de interac-ção entre modos de pensar, sentir e agir diferentes e diferenciadores, e que conduzem ao processo de construção de categorias e identidades igualmente diferentes e diferenciadoras.

Nesse processo de formação de identidades há dois aspectos que se destacam. Por um lado, a importância que assume o aspecto relacional, pois, o “nós” é sempre construído em relação a “eles”, acabando muitas vezes por se proclamar uma identidade decalcando-a, pela negativa, da do outro(MAALOUF, 2002:22), do “eles”.

Nesse sentido, assim como um irlandês católico diferencia-se dos ingleses pela religião, como refere Maalouf, também um portu-guês diferenciar-se-ia de um caboverdeano pela cor da pele. Estes dois elementos aqui referidos, a religião e a cor da pele, inserem-se num conjunto mais vasto que é o dos atributos, cuja forma de selecção, constitui o outro aspecto que se destaca no processo de formação de identidade. Com efeito, há uma série de atributos que vem juntar-se aos supramencionados tais como a língua, a nacionalidade, a classe so-cial, a música, as festas, a gastronomia, entre outros, que, por um lado, de forma arbitrária e não por ser o atributo que o grupo alvo gostaria de ver como o seleccionado para o identificar e, por outro, a variação da relevância a que o atributo seleccionado está sujeito de situação de interacção para situação de interacção. Se em Portugal, no processo de

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 137

categorização social, a cor da pele é determinante para a identificação de um jovem descendente de imigrantes caboverdeanos como imigrante de segunda geração, já em Cabo Verde, pode-se avançar que, o atributo local de nascimento é que assume essa preponderância.

Contudo, é de salientar que por detrás dessa selecção de apenas um, ou pouco mais, atributos em vista à definição de uma identidade, reside uma lógica que assenta numa “concepção estreita, exclusiva, preconceituosa, simplista, que reduz a identidade inteira a uma úni-ca pertença” (MAALOUF, 2002:13). Negar tal ideia permite que se esbatam as ligações automáticas entre determinados atributos e certas identificações e/ou identidades, abrindo deste modo a possibilidade de uma concepção que não assenta num único elemento, o que permite ao indivíduo a assunção das suas múltiplas pertenças e a possibilidade de variar de situação para situação. Sem que, como alerta Giddens, essa diversidade contextual promova a fragmentação do self ou a sua desintegração em múltiplos selves. Em muitas circunstâncias pode até promover a sua integração, uma vez que “ uma pessoa pode usar a diversidade de modo a criar uma auto-identidade distinta que incor-pora positivamente elementos de diferentes cenários numa narrativa integrada” (GIDDENS, 2001: 175).

Identidade como processo dinâmico

A identidade não se compartimenta, não se reparte em meta-des, nem em terços, nem se delimita em margens fechadas (MAALOUF, 2002:10).

O sentido que está subjacente a estas palavras de Maalouf dis-tancia-se claramente da concepção fechada e exclusiva de identidade, referida anteriormente, e pode constituir-se como ponto de partida para uma proposta de uma identidade dinâmica que assenta em dois pressupostos fundamentais: a constituição da identidade com base numa multiplicidade de elementos, e não apenas num único, e o carácter con-tínuo do processo de construção identitária. Neste sentido a identidade de cada indivíduo tem na sua constituição um conjunto de elementos que vão para além dos que figuram nos designados documentos ofi-ciais – bilhetes de identidade, passaporte - ou dos que são eleitos como marca distintiva e, consequentemente, identificadora nas interacções quotidianas. Sendo que a importância de cada elemento pode variar com o tempo, de situação para situação, bem como em relação aos demais elementos o que demonstra a mutabilidade da hierarquia das pertenças,

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que por sua vez, pode modificar os comportamentos dos indivíduos (MAALOUF, 2002:22). É ainda de notar que todos esses elementos tais como, língua, cor da pele, classe social, religião, nacionalidade, entre outros, apresentam-se numa imbricação complexa onde nem sempre fica claro quais são os mais importantes para a construção da identidade dos indivíduos, uma vez que “todos eles têm uma capacidade similar de ordenar a realidade, capacidade que está na base de todo o processo de construção identitária”(VILA, s/d:16).

Partindo de uma proposta de concepção identitária que assenta numa multiplicidade de pertenças fica afastada a ideia de “uma só per-tença maior, tão superior às outras em todas as circunstâncias que se po-deria legitimamente chamar de identidade”(MAALOUF, 2002:21).

É ainda de se referir o carácter contextual da maior parte das categorias que recebem o estatuto de essências identitárias como a raça, a religião, a nacionalidade, uma vez que são construídas refle-xiva ou autoreflexivamente (PEREIRA, 2002:107-108). Na questão das identidades o valor dessas categorias pode se situar apenas no plano analítico, onde se pode proceder à segmentação da identidade em fracções relevantes, mas sem nunca tomar qualquer uma delas como a identidade.

O outro pressuposto em que assenta a acepção dinâmica de iden-tidade é o que tem que ver com o carácter contínuo do seu processo de construção. Neste sentido a identidade, ao contrário da concepção essencialista, não é algo que é dado ao indivíduo na sua forma inteira e definitiva desde a nascença, mas sim uma (re)construção que ocorre ao longo da vida como resultado de vários processos de interacção e inserção em que é constantemente negociada em relação aos outros num processo em que os contornos são continuamente definidos e redefinidos (VILA, s/d:5).

Daí que, face às criticas a que tem sido sujeita, a noção de iden-tidade como integral, originária e unificada, Hall (1996:6) descreve no seu lugar os conceitos de identidade e de identificação como:

... a process of articulation, a suturing, an overdetermination not a subsumption ... Like all signifyng practices, it is subject to the ‘play’, of difference. It obeys the logic of more than one. And since as a process it operates across difference, it entails discursive work, the binding and marking of symbolic boundaries, the production of ‘frontier-effects’. It requires what is left outside, its constitutive outside, to consolidate the process.

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 139

Em suma, é esta a acepção de identidade, acima sintetizada, como algo dinâmico, flexível, que obedece à lógica de mais do que um, aberto continuamente a influências diversas e que assenta numa multiplicidade de pertenças cuja importância está sujeita a oscilações segundo o tempo e a situação, que se quer adoptar neste trabalho.

A situação particular dos descendentes: da posição de ombreira...

A análise da questão da identidade dos descendentes revela, por um lado, a posição de ombreira em que os filhos de imigrantes se encontram, crescendo aparentemente entre a cultura dos pais e a da sociedade de acolhimento e, por outro, o rumo que acabam assumindo, identificando-se com ou afastando-se de, em maior ou menor grau, uma ou outra matriz.

Segundo o que nos refere Portes, para a sociedade americana, esta posição de ombreira tem-se constituído como um terreno de dificuldades que caracteriza afirmando que “crescer no seio de uma família de origem imigrante foi, desde sempre, um difícil processo de conciliação da língua e das orientações culturais de pais nascidos no estrangeiro com as solicitações para a assimilação da sociedade de acolhimento” (PORTES, 1999:97). Daí a socialização complexa desses descendentes marcada por uma bipolaridade de referências que tanto pode corresponder, como estar contra as duas culturas em presença (ROCHA-TRINDADE, 1986:617). O que tem conduzido a “uma série de tensões familiares e sociopsicológicas, raramente resolvidas, que terminam, muitas vezes, ou com a rejeição da cultura dos pais, ou com a fuga ao confronto com a sociedade exterior” (PORTES, 1999:97).

Sendo assim, os descendentes de imigrantes, enquanto seres “fron-teiriços de nascimento”(PORTES, 2002:47) acabam por transportar em si próprios pertenças diversas, ou até contraditórias, colocando-se na linha de fronteira étnica, religiosa ou outra, que separa o imigrante da sociedade de acolhimento.

Por isso, confrontam-se com a necessidade de se definirem a si próprios tanto “em relação a múltiplos grupos de referência (às vezes em dois países e em duas línguas)” como no que diz respeito “às classificações a que são submetidos pelos colegas nativos, escolas, a comunidade étnica e a sociedade em geral ou mais vasta” (PORTES e RUMBAUT, 2001:150).

Contudo, nessa demanda de definição, deparam-se com novas questões. Pois, mediante as identificações assumidas, arriscam-se, nas

Travessias 2008140

relações quotidianas, a ser acusados de rejeição do país de origem, ou então é-lhes negada socialmente pelos autóctones, ou adiada ju-ridicamente, a posse de determinados elementos – a nacionalidade formal no caso de Portugal, por exemplo - que podem ser tomados como símbolos da identidade correspondente à da sociedade de acolhimento dos pais.

Por outro lado, o ponto que é tomado como referência para a avaliação da situação em que vivem, constitui igualmente um foco de conflito entre os ascendentes e os descendentes. Com efeito, enquan-to que os pais orientam-se para o país de origem, para onde acabam muitas vezes por regressar, e tomam como ponto de referência os salários e as condições de vida da terra natal (PORTES, 1999:3-4), os seus filhos, contudo, orientam-se para o país receptor e comparam-se “eles próprios com os que estão à sua volta, com base na sua similari-dade ou diferença com os grupos de referência que mais directamente afectam as suas experiências – especialmente com recurso a marcas socialmente visíveis e categorizadoras como género, fenótipo, língua e nacionalidade”(PORTES e RUMBAUT, 2001:151).

Particularmente, no que diz respeito à experiência caboverdeana note-se que sobre a construção da identidade dos descendentes pesa ainda aquilo que Rodrigues chamou de efeito projector em que há a selecção de apenas alguns aspectos da identidade como agressividade, perigosidade e estranheza de comportamento, que depois são projec-tados sobre os caboverdeanos, englobando os seus filhos.

... ao desgaste identitário e à formação de novas identidades

Os traços culturais que o imigrante traz da sua sociedade de origem tendem a diluir-se com o passar de gerações. Wieviorka consi-dera que a partir do momento de chegada à sociedade de acolhimento ocorre uma perda de vitalidade em termos identitários, constatando-se que os indivíduos, ou pelo menos alguns, afastam-se da sua identidade de origem, o que reflecte na fragilização social da segunda e terceira gerações, uma vez que perdem parte dos recursos económicos e cul-turais colectivos (WIERVIRKOVA, 2002:142). Ainda o mesmo autor, aludindo-se ao contexto francês, refere-se aos jovens de segunda gera-ção de imigrantes de origem magrebina como definindo-se “mais pela fraqueza das suas referências comunitárias e pela sua participação numa cultura internacional ou hipermoderna (o hip hop, a roupa de marca, o uso dos meios de informação e comunicação mais recentes, etc.) que

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 141

pelo dinamismo das suas culturas de origem, de facto desestruturadas” (WIERVIRKOVA, 2002:142). No entanto é preciso ter em atenção que, como diz Portes, esse processo de desgaste identitário é vivido pela maioria dos grupos étnicos, mas não por todos, embora se verifique que a erosão da etnicidade e da identidade étnica ocorre no decurso de três gerações, sendo que a “herança étnica, incluindo a língua materna étnica, deixa frequentemente de ter qualquer papel importante na vida da terceira geração”(PORTES e RUMBAUT, 2001:150).

Nos contextos imigratórios, a par da transformação das identida-des marcadas pela sociedade de origem ocorrem novas configurações identitárias junto dos filhos de imigrantes com maior ou menor grau de afastamento da sociedade de origem dos ascendentes, ainda mais que não seja pela inclusão de elementos socialmente atribuídos à sociedade de acolhimento dos pais, por meio do processo de socialização. Ao enfraquecimento dos laços comunitários de que fala Wieviorka não corresponderá o reforço de outras ligações?

4. identifiCações Que desenvolvem os desCendentes: estRatéGias e PosiCionamentos diveRsos

Dado à já referida tentação que, por vezes, se verifica de remeter os descendentes de imigrantes para uma categoria homogénea, desig-nada de imigrantes de segunda geração, importa realçar a diversidade de situações que ocorre tanto no desenvolvimento de identificações como a nível das representações recaídas sobre si.

Ao analisar as entrevistas realizadas procurou-se verificar como é que se desenvolve o processo identitário de filhos de imigrantes ca-boverdeanos em Portugal, tentando dar conta das identificações que desenvolvem, dos elementos a que recorrem e das representações que constróem em relação a Cabo Verde e Portugal.

Recorreu-se ao conceito de identificação como forma de assi-nalar o carácter prático, a incorporação de elementos provenientes de mais do que uma matriz e a flexibilidade das relações, ideias e práticas que esses filhos de imigrantes desenvolvem.

Na análise dos dados resultantes das entrevistas emergem quatro identificações que são desenvolvidas pelos descendentes abordados: caboverdeana, portuguesa, luso-caboverdeana, pretoguês e pan-étnica. Catego-rias que correspondem a quadros mais amplos aos quais os filhos de imigrantes reivindicam a sua pertença, movendo-se entre as influências

Travessias 2008142

culturais em presença, na perspectiva de construir, “dar sentido à sua experiência vivida, encontrando ou reencontrando uma pertença colectiva, pontos de referência”(WIERVIRKOVA, 2002:145). Sendo que a identificação assumida, ou como diz Wieviorka, “a identidade escolhida constitui então a melhor resposta frente à desqualificação que lhe imputa uma diferença que é sinónimo de inferioridade” (WIERVIRKOVA, 2002:145).

A exploração das identificações aqui referidas efectua-se a um nível relativamente abstracto sem a preocupação de alistar exaustiva-mente os atributos que lhe dariam conteúdo, até porque seguindo essa via estar-se-ia a incorrer em contradição com a noção de identidade já assumida neste trabalho, pois estar-se ia a atribuir a essa noção deter-minados limites fixos e princípios de exclusividade entre as categorias, descurando o dinamismo, o aspecto relacional, a componente negocial e estratégica que está presente nas relações de pertença que os filhos de imigrantes estabelecem. Por outro lado, revela-se um processo flexível pelo que a identificação desenvolvida pode mudar com o tempo, ou até mesmo na sucessão das situações de uma entrevista. Exemplo disso é o que ocorre na entrevista n.º1 em que o interlocutor inicialmente refere-se a Cabo Verde como sendo a terra “deles” demarcando-se do conjunto de indivíduos que vêm aquele país como a sua terra, enquan-to que afirma que “Portugal é fixe! É a minha terra (...)”, e continua, dizendo que “(...)uma pessoa diz que nós também nascemos cá, pronto, que somos portugueses (...)”, estabelecendo uma identificação da qual, mais à frente, no decorrer da entrevista, acaba também por distanciar-se quando manifesta “(...) eu sou também caboverdeana.”

As identificações caboverdeano, português, luso-caboverdeano, pretoguês e pan-étnica são malhas largas que deixam em aberto con-figurações bastante mais complexas.

Uma vez exemplificado o carácter flexível das identificações, passa-se a apresentá-las.

Caboverdeano

Embora cientes de que não se pode falar da existência de um caboverdeano no sentido essencialista do termo, esta noção ganha particular importância na constituição de identidades sociais desses filhos de imigrantes.

Atente-se nesta identificação desenvolvida nas entrevistas reali-zadas como dá conta a seguinte passagem, a que o descendente recorre

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 143

para exemplificar uma situação em que identifica-se como caboverdeano. Tinha ido a uma loja, acompanhada de uma colega recém-chegada de Cabo Verde e que quis ser ela a dirigir-se à lojista como forma de co-meçar a praticar o português, não tendo conseguido fazer-se entender, a entrevistada acaba por intervir. Conta que:

(...) de certa forma ela estava a menosprezar a menina, mas por detrás, estava também a menosprezar os caboverdeanos, porque para não vir para Portugal se não sabe falar e tal, para ficarem no país deles, para não virem chatear ninguém. Depois, naquele momento disse-lhe que eu também era caboverdeana (...) – (Entrevista N.º 3)

A assunção como caboverdeana passa pela defesa do grupo étnico de pertença e passa também pela negação da identificação como portuguesa:

(...) eu nunca me senti portuguesa. (...) chegam ao pé de ti e dizem, ah tu nasceste cá, és portuguesa, eles pensam que somos, mas não, eu sou caboverdeana ... – (Entrevista N.º 3)

Aqui o recurso à origem associada à ascendência é utilizado para construir e alimentar oposições (ROOSENS, 2003:125), ao mesmo tempo que é assumido como elemento central para a cons-trução da sua identidade, o que a leva a desvalorizar o facto de ter nascido em Portugal.

Português

Na assunção como português, ao contrário daquele que identi-fica-se como caboverdeano, o facto de ter nascido em Portugal ganha importância central, em detrimento da ascendência:

Eu sou portuguesa. Eu estou cá, nasci cá ... simplesmente os meus pais são de Cabo Verde e ... olhe, eu até gosto de Cabo Verde, não é nada disso. Mas, eu sinto que não tenho nada a ver com a vida de lá. Nasci cá, sou portuguesa ... tenho passaporte e tudo. – (Entrevista N.º 12)

Afirma nunca ter passado por uma situação em que tivesse a necessidade de afirmar que é portuguesa.

Para quê? Eu sei quem eu sou, não tenho que estar a discutir, a pro-var p’rás pessoas (...) Se tiver que discutir, discuto os meus direitos. – (Entrevista N.º 12)

Travessias 2008144

Se para alguns filhos de imigrantes caboverdeanos a cor da pele está sempre presente, neste caso, tratou-se de um atributo praticamente ignorado pelo entrevistado, não revelando nenhuma importância par-ticular nas identificações que constrói.

Luso-caboverdiano

Nesta identificação está presente a procura de valorização de ambas as matrizes culturais, tanto a do seu país de origem como a do país de origem dos pais:

(...) nunca fui a Cabo Verde, e tenho uma extrema necessidade de ir lá, pelo menos para encontrar a minha raiz cultural não é? porque afinal de contas eu tenho a minha raiz cá, eu tipo, adoro Portugal, sinto-me tipo, portuguesa mesmo. Em termos culturais, em termos de educa-ção foi aqui que eu recebi os meus valores, mas em termos de sangue sinto uma grande ligação com Cabo Verde e quero ir lá conhecer (...). – (Entrevista N.º 2)

Embora avisados por Maalouf (2002:10) que as identidades não se repartem em metades, nem em terços, não podemos deixar de con-siderar o modo como este filho de imigrante procura quantificar a sua dupla pertença quando confrontada com uma questão provocante, se se sente mais caboverdeana ou mais portuguesa:

É difícil essa pergunta [risos], é mesmo bastante difícil! Eu acho que é assim, tipo meio a meio, eu acho que sem estar a querer aldrabar [risos], nem nada disso, acho que é mesmo meio a meio. – (Entrevista N.º 2)

Os dois próximos trechos contêm alguns dos elementos a que a este filho de imigrantes caboverdeanos recorre para ilustrar a sua, pelo menos, dupla pertença. Exemplifica que o que a faz sentir portuguesa é a sua adoração por Lisboa, a gastronomia que até prefere à cabover-deana e, ainda, elege um ponto de contacto: a saudade.

(...) sinto-me portuguesa, por exemplo, adoro Lisboa ... adoro, por exemplo, algumas tradições portuguesas mesmo ...por exemplo, olha, adoro [risos] a comida, se calhar ainda mais até do que a caboverdeana. Apesar de gostar da cachupa, mas gosto ainda mais da comida portu-guesa. – (Entrevista N.º 2)

Considera que é demonstrativo do caboverdeano que “sente no sangue” o gosto que tem pela Cesária Évora, “pelas batidas das músicas”

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 145

e pela maneira de conviver, mais “agradável”, com mais “amizade”, de forma mais “simples”.

Procura conciliar as suas raízes culturais, reconhecendo-as e dando-as a conhecer aos “dois lados”: compra bolachas e doces de Cabo Verde para os amigos “portugueses” e fala da “cultura portugue-sa aos amigos de Cabo Verde”. Considera que quando encontra a sua amiga caboverdeana na rua e fala crioulo com ela está a demonstrar e a defender a sua raiz cultural.

A procura de conciliação das heranças recebidas, sem a so-brevalorização de uma em relação à outra, pode até ser o mais desejável da parte dos pais, assim como para certas instituições das sociedades de origem e de acolhimento. Todavia, a realidade é muito mais complexa, pelo que se regista a ocorrência de processos de identificação que resultam de modos diversos de apropriação dos elementos identitários disponíveis.

Pretoguês

A decisão de incluir essa designação entre as aplicadas às categorias de identificações aqui referidas, prende-se com a ênfase recorrente que é colocada no atributo cor da pele. Um dos entrevistados afirma:

(...) eu digo que eu sou tuga,8 mas tuga preto, um pretoguês. Eu digo, eu digo ... quando as pessoas me perguntam de onde é que eu sou, eu digo que os meus pais são de Cabo Verde, que eu nasci cá, mas ... que sou tuga preto, é assim que eu digo. – (Entrevista N.º 1)

No momento em que este filho de imigrante assume-se como preto apela à associação entre o preto da cor da pele e a posse do bi-lhete de identidade português para se definir. Trata-se de uma proposta de redefinição da categoria português que assim passaria a abranger indivíduos negros. Daí que, para dizer o que é que a faz sentir portu-guesa, afirma que:

Deve ser por causa do bilhete de identidade ... eu tenho o bilhete de identidade português ... pelo menos é a única coisa que mostra que uma pessoa é portuguesa. Porque cá em Portugal a única coisa que faz calar os tugas é o bilhete de identidade, né?, porque para os tugas a cor da pele quer dizer tudo. – (Entrevista N.º 1)

(8) Tuga, expressão com sentido equivalente a português.

Travessias 2008146

Esta forma de identificação difere da anterior, na medida em que, se para aquela há a aceitação de ambas as matrizes identitárias correspondentes à sua sociedade de origem e à dos pais, para esta o posicionamento é caracterizado por uma alternância discursiva, ora aproximando-se da matriz caboverdeana e distanciando-se da portu-guesa, ora aproximando-se da portuguesa e distanciando-se da cabo-verdeana. Numa situação de conflito a identificação com a categoria português é reivindicada com mais força, como quem reclama um direito com base no factor local de nascimento.

(...) às vezes quando sai alguma confusão assim, nos autocarros, nos comboios, porque tuga gosta de mandar as pessoas para a terra deles ... é isso né? aí é que, às vezes, (...) uma pessoa diz que nós também nascemos cá, pronto, que somos portugueses, pena é que nós somos pretos ... – (Entrevista N.º 1)

Pan-étnica,

Para a consideração da categoria pan-étnica como uma das identificações que os descendentes desenvolvem levou-se em conta, por um lado, o facto de que nos bairros degradados e nos bairros de realojamento há uma conotação que se estabelece entre os filhos de imigrantes de origem africana e símbolos e estilos de comportamen-to que se inspiram numa cultura “afro-americana”, distinta da dos seus progenitores, com uma forte componente da cultura designada de “adversarial”. Recorrem a aspectos simbólicos como estilos de musica rap e hip-hop, graffiti e ainda expressões verbais como dread e getto, que utilizam com o objectivo de contestar as normas e valores institucionais (MARQUES, 2000:137). Ainda segundo Marques et al (2000:137) o que se verifica é que “actualmente estes símbolos e comportamentos tendem a generalizar-se e a constituir modas entre a juventude, com a globalização da cultura afro-americana que extra-vasa as fronteiras étnicas e nacionais e se enraíza como subcultura a nível mundial”9, alargando assim o conjunto de referências culturais disponíveis para os processos de identificação.

Nos excertos que se seguem evidenciaram-se essas referências que se inserem em quadros que estão para lá das duas matrizes, a sociedade de origem dos pais e a sociedade de origem dos descendentes, que têm servido de balizas às identificações até aqui estabelecidas pelos filhos

(9) Wieviorka (2002:142) designa de cultura internacional ou hipermoderna.

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 147

de imigrantes. Conjugam-se os gostos musicais manifestados, onde se incluem o rap e o raggae, e a identificação que assume como rapper, ao que se acrescenta a identificação com o black, a referência à África como origem e o guetto como espaço de residência:

O black já está a sofrer há bué de time meu. Sempre discriminado, sempre maltratado, injuriado tás a ver? Desde os tempos dos nossos avós, a cena da escravatura, tu já estudaste história, andas na escola, sabes estas coisas ... o black sofre por todo o lado. – (Entrevista N.º 4)

Sobre a forma como ocupa os tempos livres diz:

(...) ... às vezes, vou jogar à bola com a malta, ouvir uns rags, vamos ao centro da juventude, rappamos e ... fazemos uns improvisos, assim, fumamos umas ganzas10 e assim, né?, porque eu gosto de estar aqui no getto que é onde me sinto bem, junto com a malta, na boa, a fazer essas cenas de que te falei. – (Entrevista N.º 4)

Ao referir ao sofrimento do black, que já perdura há muito, desde o tempo dos “avós” remete para as representações sobre a diáspora afri-cana, englobando todo o processo de imigração e a própria escravatura, símbolo da opressão secular do povo negro, e a assunção de África como origem. Cabo Verde surge retratado com base na experiência paradisíaca da sua visita como representação do oposto do acolhimento que é dispensado ao black noutras paragens:

(...) mas lá já é diferente, é a tua origem, é a África de onde todos nós saímos. É lá que está a origem, o teu pé, quando falas todas as pessoas te ouvem, te entendem, te tratam bem! Eu digo, Cabo Verde é uma maravilha, é uma maravilha. – (Entrevista N.º 4)

Ao apontar a África como origem, está a posicionar-se para além das fronteiras nacionais de Cabo Verde, do mesmo modo que ao identificar-se como black, recorre a um conceito que está para além do caboverdeano, do português ou ainda do pretoguês.

5. sobRe as imaGens: o “eles” e Como aCHam Que são vistos

Na construção identitária o “eles” surge como aquele em relação ao qual o “nós” é definido, assumindo assim um papel relevante nessa relação de que é parte integrante. Daí o interesse em compreender

(10) Substâncias psicotrópicas.

Travessias 2008148

como é que os descendentes vêem os portugueses na medida em que essa imagem surge ao mesmo tempo como resultado e elemento que sustenta a interacção entre os descendentes e indivíduos de ascendência maioritária portuguesa. Consideremos os seguintes trechos de entrevistas:

(...) porque os tugas são assim, tugas têm mania, começam a chamar-nos de pretos, a dizer para irmos para a nossa terra. – (Entrevista N.º 1)

(…)É um povo um bocado falso, tu sentes muita falsidade neles (...). São um bocado fechados, abrem-se, mas não se abrem completamente, tipo, mas e ... não são todos , é claro! Certo é que alguns não é por culpa deles né? Acho que vem da educação que os pais transmitem e essas coisas assim. – (Entrevista N.º 3)

(…) Aqui em Portugal (…) as pessoas te ignoram por simples coisas, tu és black, lá porque simplesmente tu és preto, já é motivo suficiente para te desprezarem, te ... te pisarem se for preciso. – (Entrevista N.º 4)

Nestes excertos transparece a construção negativa do “eles”, cuja caracterização assenta em expressões como “fechados”, “falso”, “desconfiados” e “cheio de mania”. Aqui espelha-se a dimensão para o qual Pereira Bastos chama atenção: a identidade como um processo de busca de uma superiorização sobre o outro (J. G. PEREIRA BASTOS, 2003).

Quanto à imagem que os descendentes pensam que é construída sobre eles, respeitante à sua identidade, é de realçar o seguinte testemunho que chama a atenção na medida em que constitui um protesto em relação ao tratamento discriminatório que lhe é dispensado tanto por indivíduos de ascendência portuguesa maioritária, como por indivíduos oriundos de Cabo Verde, onde se incluem jovens recém-chegados daquele país.

(…) Jovens que vieram de Cabo Verde estudar, estavam lá a falar dos jovens de segunda geração, mas falavam de nós como se fossemos um mundo à parte. E se ... aí está o problema fulcral nesta questão toda. É que somos vistos como seres à parte, como mundos à parte tanto pelas pessoas originárias de Cabo Verde, como os portugueses. Por exemplo, os portugueses vêem-te a passar na rua obviamente que vêem que tu és diferente, que tens uma origem diferente, por causa da tua cor de pele, já os caboverdeanos chegas ao pé deles ... ou falas muito bem português [risos], ou dizes que nasceste cá, tipo és passado aaa ... literalmente, quase como tipo ignorante, porque não sabes a tradição, não nasceste lá. – (Entrevista N.º 2)

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 149

Deste modo o “eles” alarga-se também aos caboverdeanos vindos de Cabo Verde. É assim que este testemunho se coloca perante o reapa-recimento, mas desta feita nos filhos, desse sentimento de dupla ausência com que Sayad (1999) caracteriza o imigrante, ausente do seu país de origem e do país de acolhimento. Nega-se-lhes a pertença tanto à sua sociedade de origem, que os remete para a sociedade de origem dos pais, onde de facto não estão, como à sociedade de origem dos pais.

Também verificam-se alusões a situações vividas no quotidiano que, por um lado, sustentam o sentimento de discriminação que os filhos de imigrantes experimentam e, por outro, o descontenta-mento face a estereótipos que os associam à prática de crimes, como ilustram as seguintes passagens:

(...) Vou a uma loja de roupa com uma amiga portuguesa, em primeiro lugar para quem olham, não é para ela, mas sim para o descendente caboverdeano [risos] porque já estão naquela, naquela ... pronto como que avisados de que vais assaltar porque os outros assaltam. – (Entrevista N.º 2)

Vêem-te e não querem saber, és preto, logo és isto, és aquilo, és um bandido, preto é ladrão. – (Entrevista N.º 4)

Contudo, é preciso considerar, como nos alertam Marques et al (2000:155), que dentro do próprio bairro ocorre a reprodução de estereótipos dominantes em que os jovens acabam por ser respon-sabilizados por actos criminais, sendo que “os jovens nascidos em Portugal de pais de origem imigrante são por vezes apontados, no terreno, como os maiores causadores de distúrbios e «confusão» nos bairros”(MARQUES et al, 2000:140).

Os estereótipos construídos enquanto produtores de realidade for-necem elementos tanto para a categorização de indivíduos, como para a viabilização das redes interpessoais. Se se os entender como parte de uma campanha que tem como finalidade promover a separação, divisive cam-paign, como designam Portes e Rumbaut, então poderão ocorrer efeitos não intencionais tais como, o acentuar da diferença entre grupos e o ele-var da consciência de grupo dessas diferenças (PORTES e RUMBAUT, 2001:148), o que poderá também reflectir, por exemplo, na proclamação de uma identificação ou na constituição do circulo de amigos. Sem que exista um padrão único na definição das relações interpessoais, nota-se contudo, que no excerto seguinte, transparece a ideia de que não se trata de uma situação “normal” ter uma “melhor amiga portuguesa”.

Travessias 2008150

(...) a minha melhor amiga mesmo é portuguesa, não vou te dizer que não é portuguesa, há já muito tempo que nos conhecemos e tal, mas ... para que chegássemos a esta fase também, para que chegás-semos neste ponto de amizade tivemos que desenvolver muito. – (Entrevista N.º 3)

6. Cabo veRde, PoRtuGal e o mundo enQuanto esPaços de RefeRênCia

Nos processos de identificação desenvolvidos pelos jovens des-cendentes de imigrantes caboverdeanos, Portugal e Cabo Verde, surgem como dois espaços de referência que ocupam um lugar importante, tanto no quotidiano desses jovens, como nos seus projectos de vida futura. Do mesmo modo espaços mais amplos marcam os processos de identificação desenvolvidos por esses jovens: trata-se do espaço da diáspora africana e o da emigração caboverdeana. Este último pode ser tomado como referência para se estabelecerem relações de aproximação ou de distanciamento, procedimentos que os confirmam como espaços possíveis no âmbito dos projectos de vida futura.

Detendo-se um pouco sobre o presente e considerando represen-tações em torno desses espaços, constata-se que a imagem de Portugal é enformada de opiniões contrastantes. Tanto é uma “maravilha”, propor-cionando espaços de consumo e lazer, como tem um “povo fechado e egoísta”. Contribui ainda para essa imagem negativa a ideia de que face aos preconceitos existentes a condição de filho de imigrante representa dificuldades acrescidas, como se constata no seguinte excerto:

E ... eu como descendente de caboverdeanos, mesmo que fosse descen-dente de portugueses, eu acho que o meu futuro... acho que não tenho perspectivas de um futuro muito brilhante aqui dentro de Portugal. Isso já de partida se fosse descendente de portugueses. Agora, como sendo já descendente de caboverdeanos ainda é menos brilhante ainda. Primeiro porque as pessoas na generalidade né?, colocam barreiras e eu ainda vou encontrar barreiras muitas mais. – (Entrevista N.º 2)

A referência ao espaço da diáspora africana surge também para explicar o tratamento designado de discriminatório de que se consi-dera alvo no presente, estabelecendo uma ligação entre o passado da negritude e o seu quotidiano:

O black já está a sofrer há bué de time meu. Sempre discriminado, sem-pre maltratado, injuriado tás a ver? Desde os tempos dos nossos avós, a cena da escravatura (...). – (Entrevista N.º 4)

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 151

No que diz respeito a Cabo Verde, a terra de origem dos pais, os discursos concentram-se à volta das pessoas caracterizadas por “uma grande amizade” entre si, “gentis”, “dispostas a te estender as mãos” e o povo que é visto como:

(...) Sonhador e que às vezes corre o mundo atrás dos seus sonhos. – (Entrevista N.º 3)

Deste modo, não se evidencia aqui a valorização positiva do percurso imigratório dos pais, vistos como “sonhadores” e “corajo-sos”, capazes de sair do seu país e correr o mundo atrás de um sonho? Compreendendo e, de certo modo, conferindo alguma legitimidade, à decisão de emigrar, que os pais tomaram anos, ou décadas antes?

No que se refere à construção do futuro dos filhos de imigran-tes entrevistados há três espaços que são tomados como referências: Portugal, Cabo Verde e o mundo da emigração caboverdeana.11 Quanto ao lugar que Portugal ocupa, registamos duas situações distintas. Há aquele cujo projecto futuro passa pela sua continuidade neste país, como afirma:

Eu cresci cá e olha eu nem sequer penso em ir trabalhar para Londres, ou para morar em França (...). No meu sonho mesmo, não entra nen-hum desses sítios, só se é para ir passar férias e depois voltar, mas para ficar não, Portugal para mim está óptimo! – (Entrevista N.º 1)

Os outros espaços referidos ajudam a definir o espaço de iden-tificação, num jogo de aproximações e distanciamentos. A definição do espaço com o qual se identifica – Portugal, passa pela negação de outros destinos da emigração caboverdeana.

Entretanto, a saída de Portugal pode surgir também como uma alternativa a ser considerada, como se constata, no seguinte trecho:

Depois de eu terminar o curso espero trabalhar fora de Portugal, porque aqui dentro de Portugal, sinceramente, acho que não dá para eu aplicar os meus conhecimentos. É um país muito fechado, fechado demais ... não dá para conseguires expressar dentro da tua actividade, a tua área, tás a ver? – (Entrevista N.º 3)

(11) Malheiros, num estudo sobre a comunidade caboverdeana de Lisboa e Roterdão, revela-nos que é entre os mais jovens (15-34 anos) que se registam os valores mais baixos quanto ao desejo de instalar-se em Cabo Verde e os mais altos quanto à hipótese de fixação em países terceiros. Enquanto que este último aspecto “mostra que a cultura migratória está viva e que a possibilidade de mobilizar este recurso é equacionada” (Malheiros, 2001: 330).

Travessias 2008152

Cabo Verde aparece como um dos destinos no projecto futuro de jovens descendentes de imigrantes caboverdeanos. Por um lado, há aqueles filhos de imigrantes que se sentem satisfeitos com o seu país de origem, Portugal, e deste modo, não consideram a possibilidade de fixarem-se em Cabo Verde, nem temporariamente, sendo um dos factores o impacto negativo da deslocação a Cabo Verde.

Por outro lado, verifica-se também que a visita à terra de origem dos pais tem um impacto positivo junto de outros filhos de imigrantes, contribuindo até para o reforço da identificação com Cabo Verde, a ponto de afirmarem que terão sentido que “é lá que está a origem”, apesar de não pretenderem voltar para lá, senão temporariamente.

(...) Eu já não consigo viver em Cabo Verde, eu já não me adapto a Cabo Verde. (...) Quando eu sair de Portugal outra vez, é para viver num outro país do mundo, da Europa, mas ... é isso. Cabo Verde é uma maravilha, mas eu não adapto mais, é difícil para mim, mas eu volto para lá ainda, volto porque Cabo Verde é uma maravilha, como te disse, gostei muito. – (Entrevista N.º 4)

A Europa, uma das áreas do globo onde se verifica uma presença significativa de imigrantes caboverdeanos, constitui um dos espaços em relação ao qual projecta-se o futuro, confirmando-se as redes sociais (PORTES, 1999:23) como elementos importantes na definição do destino emigratório.

Há ainda aqueles que, na construção do seu projecto de vida futura, colocam a possibilidade de ir temporariamente, ou mesmo de viver em Cabo Verde, para, por meio das qualificações adquiridas, darem o seu contributo para o desenvolvimento do país:

(...) eu quero lá ir, estar lá um tempo, por exemplo, cinco anos a ver se me adapto bem, se for aquilo que eu quero, se for aquilo que eu gosto, se eu não encontrar tipo barreiras, obviamente, que eu vou querer ficar, lá não é?, obviamente que eu vou querer ajudar. – (Entrevista N.º 2)

Ou ainda motivados pelo desejo de estabelecerem contacto com as localidades de origem dos ascendentes, como se depreende das palavras:

(...) ah! vontade de viver em Cabo Verde é algo que não me falta! (...) Principalmente eu gostaria muito de ir até o Tarrafal, para ir ver assim de perto, como é que é o Tarrafal,12 mesmo a sério! – (Entrevista N.º 3)

(12) Localidade no interior da ilha de Santiago, de onde os pais são originários.

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 153

Este desejo de contacto com a terra dos pais e a vontade de viver lá, poderá ser entendida, de certo modo, como um regresso, não no sentido de uma das fases do percurso migratório (ROCHA-TRINDADE 1995:39), mas enquanto o regresso às origens, tomadas como ancestrais.

7. alGuns asPeCtos ConClusivos

Pode-se constatar que os descendentes abordados não se revêem numa mesma categoria identitária, uma vez que assumem pertenças que diferem entre si. Todavia, fica patente a percepção de que são vis-tos como pertencentes a uma mesma categoria, como “seres à parte”, tanto pelos caboverdeanos com que interagem no seu dia a dia como por indivíduos de ascendência maioritária portuguesa. Ainda no que se refere à imagem que pensam que a sociedade de acolhimento constrói sobre eles, nota-se o predomínio de um sentimento generalizado de discriminação pelo que o facto de se ser descendente é encarado como constitutivo de “dificuldades acrescidas” no que se refere à construção de futuro no país de acolhimento. Mas, mais uma vez, dando conta dessa diversidade de posicionamentos que ocorre no seio dos entre-vistados, há quem se se sinta bem no seu país de origem, Portugal, não pretendendo por isso ir viver para qualquer outro país.

Para a construção da sua identidade estes filhos de imigrantes recorrem a atributos relacionados com o campo musical, a gastrono-mia, a língua (crioulo), a cor da pele, o local de nascimento, o bilhete de identidade (português), as maneiras de estar “característicos” de caboverdeanos e portugueses e o sentimento de discriminação.

O modo como lidam com os atributos, para a construção iden-titária, revela a existência de estratégias de manipulação e negociação que visam conferir realce a determinados aspectos, em função da identificação que se pretende assumir. Apenas dois exemplos. O duplo uso que se faz do “eu nasci cá”. Aquele que pretende reforçar a sua ligação com Portugal, recorre ao local de nascimento, para defender um encadeamento lógico do tipo eu nasci cá, logo sou português. Enquanto que o descendente que afirma-se caboverdeano desvaloriza o facto de ter nascido cá, quando diz eu apenas nasci cá, mas sou tão caboverdeano quanto tu. Um outro exemplo é a forma como é interpretada a posse do bilhete de identidade português, símbolo de nacionalidade. Há aquele descendente que afirma: eu sou português só de documento. Enquanto que um outro argumenta que é português porque tem o bilhete de identidade que o confirma. Sem contar com as situações em que jogam com os

Travessias 2008154

atributos, procurando acentuar ora os que se inscrevem no quadro das suas origens europeias, ora no das suas origens africanas.

A forma como Portugal e Cabo Verde marcam presença nesse processo de construção identitária, enquanto referências importantes, é caracterizada por uma considerável diversidade, como se pode constatar pelos dados obtidos. Domina a imagem de um Cabo Verde de sonho de pessoas “amáveis e gentis”, mas que pode tornar-se numa decepção com uma visita às ilhas, onde pode não confirmar-se a imagem construída que é reveladora da socialização que está por detrás dessa leitura.

Contudo é de realçar a inesperada inclusão, nos projectos de vida futura, da possibilidade de viver em Cabo Verde. Aspecto que contraria a ideia de que os jovens descendentes vêem Cabo Verde apenas como destino de férias. No entanto, é preciso assinalar que há um traço em comum entre os entrevistados que manifestaram essa vontade. Isto é são todos estudantes do ensino superior, visando a obtenção de um diploma académico e, logo, colocados numa posição privilegiada face ao mercado de trabalho em Cabo Verde. Daí que questionamos se haverá alguma relação entre as habilitações académicas e/ou profissionais com o projecto de viver em Cabo Verde?

O que remete para a necessidade de se compreender que circunstân-cias sociais estariam por detrás desta escolha e, de um modo mais amplo, que circunstâncias são favoráveis a que escolhas identitárias dos descendentes.

Embora já tenha sido referido, salienta-se que o estudo de caso en-quanto metodologia adoptada permitiu captar as matizes que compõem o quadro da distribuição das posições identitárias que os descendentes de imigrantes assumiram, no entanto, não confere legitimidade a possíveis generalizações, o que, aliás, também não constitui objectivo deste trabalho. Portanto as categorias avançadas, caboverdeana, portuguesa, luso-caboverdeana, pretoguês e pan-étnica, correspondem a tipos construídos a partir dos discur-sos dos jovens descendentes entrevistados, e, por isso, não são passíveis de serem encontrados na realidade enquanto formas essencializadas. Trata-se de um esquema de leitura que visa dar conta das posições identitárias ocorridas, mas sem valorizar a dimensão quantitativa.

A constatação dessa diversidade de posicionamentos, permite avançar que, sem menosprezar a importância na construção identitária que assume o facto de os descendentes nascerem e crescerem entre dois “mundos” diferentes, há que acrescentar que outros “mundos” também concorrem para esse processo, designadamente, o “mundo” transnacional, deixando a discussão da identidade dos descendentes de

Filhos de Emigrantes Caboverdeanos em Portugal 155

ter como balizas apenas Cabo Verde e Portugal, enquanto referências mais amplas. De igual modo, outras lógicas que não apenas a da adesão/recusa, concorrem para esse processo, por exemplo, o da combinação estruturante de diversos elementos.

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Resumo

A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada locali-dade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual a diferença entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade legal) e o tempo despendido para o processamento de uma causa criminal (morosidade necessária) em cada realidade; e b) quais são os principais fatores que de acordo com esta revisão explicam o tempo da justiça criminal em ambas localidades.

Brasil e Portugal foram escolhidos como objeto de análise por-que são filiados a tradições jurídicas semelhantes, inclusive, no que diz respeito à existência de uma legislação que estabelece o tempo máximo do processo. Por outro lado, os estudos realizados no Brasil sempre re-ferenciam os estudos realizados em Portugal tanto no que diz respeito à metodologia utilizada como ainda no que diz respeito aos fatores utilizados como possíveis explicações para o menor ou maior tempo de processamento. Neste sentido, reunir os estudos realizados em ambas realidades pode auxiliar na melhor compreensão do problema e ainda apontar questões que, apesar de relevante, ainda não foram abordadas por esses estudos.

Palavras-chave: Tempo da justiça criminal – Morosidade legal – Morosidade necessária – Brasil – Portugal.

O Tempo de Justiça Criminal: Portugal e Brasil em uma Perspectiva Comparada

Ludmila Ribeiro

Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro Centro de Estudos Latino-Americanos da Universidade da Flórida

Y

Travessias 2008158

intRodução

Uma das temáticas mais relevantes no que se refere ao direito em ação é a relativa à capacidade do sistema judicial em processar de forma eficiente as demandas que chegam ao seu conhecimento. De acordo com Santos (1996) um desses indicadores é o tempo despendido pelos sistemas judiciais (Cíveis, Criminais, Trabalhistas, dentre outros) no processamento do caso desde a sua ocorrência até a sentença que encerra, institucionalmente, o conflito.

A problemática atual dos sistemas de justiça criminal se refere a sua incapacidade de processar adequadamente os delitos que chegam ao seu conhecimento, especialmente pela demora excessiva no julgamento de uma dada infração. O efeito perverso deste problema é o fato de ele contribuir para a disseminação da idéia de impunidade. Isso porque, se o tempo de processamento do delito é excessivo, a probabilidade de a punição acontecer em um horizonte muito distante do tempo presente é real e, com isso, a idéia de que o crime compensa deixa de ser uma falácia para se tornar uma realidade.

Assim, o estudo do tempo de processamento de um delito pelo sistema de justiça criminal é importante porque este é um indicador da própria capacidade das organizações em implementar a idéia de justiça. Se o tempo da justiça é longo, é cada vez menos provável cor-rigir falhas técnicas na condução administrativa dos procedimentos ou localizar testemunhas, eventuais vítimas, possíveis agressores. Se o tempo da justiça é curto, corre-se o risco de suprimir direitos consagrados na Constituição e nas leis processuais penais, instituindo, em lugar da justiça, a injustiça (ADORNO e IZUMINO, 2007).

A sociologia contemporânea (portuguesa e brasileira) tem ana-lisado cada vez mais esta temática na tentativa de: a) calcular o tempo despendido pelo sistema de justiça criminal no processamento de uma infração penal e; b) compreender em que medida os sistemas de justiça criminal aplicam ou não os dispositivos legais que regulam o tempo de um processo.

No que se refere ao cálculo do tempo propriamente dito, o pressuposto para a realização deste tipo de estudo diz respeito ao con-traste dos conceitos de morosidade necessária e de morosidade legal. A morosidade legal seria aquela estabelecida pela lei, pelos códigos. Já a

pode ser entendida como o tempo ideal de du-ração de um processo, tempo este que harmoniza rapidez e eficiência

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 159

com a proteção dos direitos (que, em algumas situações, demandam a extensão do prazo prescrito em lei). Assim, um sistema de justiça será considerado tanto mais eficiente quanto menor a diferença existente entre a morosidade legal e a morosidade necessária (SANTOS, 1996). Mesmo porque:

O Conselho da Europa tem considerado que um processo estará em atraso logo que dure mais que o tempo exigido pelo sistema penal vigente, considerando as exigências decorrentes das regras processuais, constitucionais e outras que garantam direitos ou interesses legítimos do acusado, da vítima ou de terceiros. (SANTOS, 1996: 397).

Nesses termos, parte dos estudos realizados em Portugal e no Brasil dedicados à análise do tempo dos sistemas de justiça criminal tem como objetivo calcular a morosidade necessária dessas instâncias e compará-la à morosidade legal. O propósito deste cálculo é verifi-car a diferença entre os limites prescritos pelos códigos e a realidade dos sistemas de justiça criminal. A partir desse cálculo esses estudos problematizam a questão da implementação do direito no âmbito das estruturas jurídicas e apontam para a importância de se refletir sobre a diferença existente entre o direito no papel e o direito em ação.

O segundo objetivo perseguido pelas pesquisas realizadas sobre o tema em Portugal e no Brasil diz respeito à compreensão dos de-terminantes do tempo da justiça. Essas análises, no entanto, tendem a possuir elementos diferenciados de acordo com a tradição jurídica em questão: common law ou civil law.

De acordo com Siegel e Senna (2007), o sistema judiciário dos Estados Unidos da América pode ser definido como partidário da tradição jurídica da Common Law. Neste sistema, o direito é criado ou aperfeiçoado pelos juízes: uma decisão a ser tomada em um caso depende das decisões adotadas para casos anteriores e afeta o direito a ser aplicado a casos futuros. Neste sistema jurídico, a análise do caso se faz a partir de determinados precedentes e não através de determina-dos diplomas legais que regulem aquela questão. Quando não existe um precedente, os juízes possuem a autoridade para criar o direito, estabelecendo um precedente.

O sistema da Civil Law é de origem romano-germânica, o que equivale a dizer que dentro de seu arcabouço institucional todas as controvérsias devem ser dirimidas de acordo com os diplomas legais que regem aquela questão. Assim, casos semelhantes podem implicar em decisões diferentes na medida em que a solução anterior de um

Travessias 2008160

caso não produz vinculação da matéria para a decisão de casos subse-quentes. No âmbito deste sistema a resolução da controvérsia se dá pela interpretação do diploma legal e não pela vinculação de precedentes (SIEGEL e SENNA, 2007). Neste sistema, o que é estabelecido é tanto o prazo de duração global do processo, como também o tempo que cada um dos operadores do direito pode despender na realização de um ato processual.

O ponto relevante de ser destacado para esta análise é o fato de que Portugal e Brasil são partidários da tradição jurídica da Civil Law e, por isso, tanto o tempo para a prática de cada ato que compõem o processo penal, como ainda o tempo para a duração do processo penal como um todo encontra-se estabelecido em códigos publicados antes do início do processamento do crime.

Outra questão importante de ser destacada quanto a semelhan-ça entre as realidades Portuguesa e Brasileira diz respeito a forma de funcionamento do sistema de justiça criminal. Em ambos os casos, a ocorrência de um delito implica em seu registro na Polícia Judiciária. A este registro segue-se a fase de inquérito policial, durante a qual são reunidas as provas de que: a) houve crime e b) quem o praticou foi o indivíduo indiciado pela autoridade policial.

O encerramento da fase policial ocorre a partir do envio dos autos do inquérito (já que todos os atos desta fase são devidamente documentados e escritos) ao Ministério Público. Este órgão tem a competência para a) requisitar o início da ação penal pelo oferecimento da denúncia; b) requisitar o arquivamento do inquérito policial por entender que não houve crime ou que não foi o indivíduo indiciado na fase policial o responsável pela sua ocorrência.

Caso o Ministério Público ofereça a denúncia, tem-se início a fase judicial, durante a qual o Estado procurará punir o autor do cri-me sempre garantindo a este o direito de ampla defesa. Assim, a cada ato do Ministério Público segue-se conseguinte pronunciamento da defesa, que pode ser pública ou particular dependendo da condição sócio-econômica do acusado.

A atuação do Ministério Público e da Defesa é sempre me-diada pela atuação do juiz, o qual possui ainda a competência para pronunciar a sentença de absolvição ou condenação. Neste segundo tipo de sentença, o juiz possui ainda a competência para estabelecer a sentença que o condenado deverá cumprir. Contudo, esta função do juiz é reduzida apenas ao estabelecimento da pena nos casos em que

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 161

há julgamento pelo júri1, já que a decisão de condenar ou absolver o réu é dada pelos jurados.

Assim, as pesquisas sociológicas realizadas em Portugal e no Brasil sobre o tempo da justiça criminal procuraram compreender em que medida o tempo global do processo ou o tempo individual de cada fase (da polícia e do judiciário) é ou não explicado pelas ca-racterísticas dos envolvidos em detrimento das características legais e processuais do fato.

A partir desta primeira apresentação do tema, os objetivos des-te artigo são: a) apresentar os estudos já realizados sobre a temática tempo da justiça criminal em Portugal e no Brasil; b) mensurar as diferenças entre morosidade legal e morosidade necessária em cada tempo e lugar; c) compreender os determinantes do tempo do pro-cesso criminal no âmbito dessas duas realidades filiadas a tradição jurídica da Civil Law.

Para tanto, este artigo encontra-se estruturado em três seções. A primeira apresenta os estudos realizados em Portugal sobre a temática “tempo de processamento da justiça criminal” e a segunda revisa os estudos com objetivo semelhante que tiveram lugar no Brasil. A terceira e última seção sumariza as principais consonâncias e divergências entre os estudos realizados em ambas localidades.

O ponto de partida das análises sobre morosidade no Brasil: os estu-dos sobre o tempo de duração do processo desenvolvidos em Portugal

No âmbito da tradição jurídica da Civil Law, o país que produziu um maior número de estudos sobre o tempo da justiça criminal é Portugal. O núcleo de pesquisa responsável por este tipo de projetos é o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o qual é coordenado por Boaventura de Souza Santos e tem como objetivo principal discutir a capacidade, efetividade e eficiência dos tribunais portugueses.

O interesse pelo tempo de duração dos processos criminais flo-resceu quando da aprovação do novo Código Processo Penal Português no ano de 1987 (Decreto-Lei nº 78/87). Isso porque, quando da publi-cação deste diploma, colocou-se em discussão não apenas a necessidade de se reformar institutos que não mais faziam sentido para a realidade portuguesa, mas, ainda, a necessidade de esta sociedade contar com uma

(1) No Brasil, o julgamento pelo júri é privativado dos crimes dolosos contra a vida. Em Portugal, este ocorre sempre que acusação e defesa o julgarem conveniente.

Travessias 2008162

justiça mais rápida e capaz de solucionar os conflitos de maneira mais efetiva ao que vinha realizando até então.

A grande inovação colocada por este código foi o estabeleci-mento de um prazo único de 10 dias para a realização de qualquer ato. Isso porque, o Código de Processo Penal (CPP) Português anterior, tal como o Código de Processo Penal Brasileiro, estabelecia uma série de prazos diferenciados para a realização dos atos processuais depen-dendo de quem o praticava (polícia, ministério público, defensoria pública, judiciário).

Nesta reforma ficou estabelecido ainda que os prazos legais do inquérito seriam de seis meses para réus presos e de oito meses para réus soltos (art. 276). Já o art. 306 do mesmo diploma legal estabeleceu que o prazo máximo de duração da instrução criminal seria de dois meses para réus presos e de seis meses para réus sol-tos. Portanto, a partir de 1987, em Portugal, o processo penal deve durar oito meses, em se tratando de réu preso e dez meses, em se tratando de réu solto.

Em sendo dessa forma, as pesquisas iniciadas no ano de 1989, em Portugal, se destinavam a verificar, em que medida, o tempo estabelecido pela reforma do Código de Processo Penal de 1987, como necessário para o processamento de uma causa criminal desde a data do crime até a data da sentença era ou não respeitado pelas organizações que compõem o sistema de justiça criminal. Além deste primeiro objetivo, essas pesquisas se destinavam a compreender quais eram os fatores que explicavam o prazo de duração de tais processos criminais (SANTOS et al, 1996).

A primeira etapa desta pesquisa verificou que, no período compreendido entre os anos de 1989 e 1993, o tempo compreendido entre a data do crime e a data da sentença se alterou ligeiramente, passando de 920,4 dias (2,5 anos) em 1989 para 794,1 dias (2 anos) em 1993. A pesquisa verificou ainda que, em média, um processo-crime durava de 28 a 32 meses no período compreendido entre os anos de 1989 e 1993.

Analisando o peso percentual dos processos que se encerraram em um ano, contando desde a data do crime até a data do julga-mento, tem-se uma evolução de 20,1% (em 1989) para 29,2% (em 1993). Os dados permitiram constatar ainda que a maioria dos cri-mes se resolveu em menos de três anos, apesar de uma percentagem significativa de casos terem duração superior a cinco anos (Tabela 1).

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 163

De acordo com os dados sumarizados na Tabela 1, no período compreendido entre os anos de 1989 e 1993, metade dos processos criminais portugueses eram encerrados em até 1,9 anos após a data do crime. Essa tabela indica ainda uma certa tendência de redução do tempo de processamento, dada a redução percentual do número de casos que se encerra em um período superior a três anos.

No estudo publicado por Ferreira e Pedroso em 1997, foram analisados processos encerrados no período compreendido entre os anos de 1990 e 1995, com o intuito de compreender os principais fatores que atuavam como variáveis de redução ou aumento do tempo de processamento em cada tipo de área. Essa diferenciação de acordo com a área do direito foi necessária porque o que explica a duração de um processo de natureza civil não é, necessariamente, o que interfere na duração de um processo criminal. Por fim, os resultados desta pesquisa permitiram aos autores constatar que:

Em 1990 e 1995 resolveram-se, respectivamente, 64,8% e 62,4% dos processos num ano e 17,5% e 19,9% entre um e dois anos. Refira-se, no entanto, que nesta fase processual sobreviveram mais de 3 anos 5.223 (9,7%) e 8.407 (10%) respectivamente em 1990 e em 1995. De salientar, no entanto, que entre a data do crime e a data da sen-tença, em primeira instância, os processos que duraram mais de três anos cresceram de 25,3% (12.250) em 1990 para 30,9% (24.954) em 1995. Estes resultados demonstram que, nesta óptica, o desem-penho do sistema judicial piorou e a investigação judicial continua a ser um ponto de estrangulamento do sistema judicial criminal. (FERREIRA e PEDROSO, 1997: 94).

1989 1990 1991 1992 1993

N % N % N % N % N %

9686 20% 10468 21% 10699 17% 17117 21% 20518 29%

16325 34% 18138 36% 22722 35% 26188 33% 23391 33%

9088 19% 9136 18% 13532 21% 15609 20% 11942 17%

7953 16% 7722 15% 10943 17% 12931 16% 5516 8%

5162 11% 5031 10% 6913 11% 8043 10% 8963 13%

48214 100% 50495 100% 64809 100% 79888 100% 70330 100%

(*) Tempo do processo calculado desde a data do crime até a data da sentença

(**) Processos criminais encerrados entre 1989 e 1993

Duração (anos)

< 1

1 e 1,9

2 e 2,9

3 e 5,9

5 e mais

TOTAL

Tabela 1 - Morosidade penal(*) em Portugal para causas criminais(**)

Fonte: Santos et al (1996)

Travessias 2008164

Na tentativa de melhor compreender as razões do aumento da morosidade processual criminal no período compreendido entre 1990 e 1995, a equipe do CES, sob a coordenação da professora Concei-ção Gomes, analisaram três casos de longa duração nos tribunais de Coimbra, Setúbal, Lisboa e Monsanto. As principais conclusões deste trabalho dizem respeito ao fato de que o primeiro grande ponto de bloqueio do fluxo do sistema de justiça criminal português é a fase de investigação criminal, pois, os processos tendem a “parar” nos institutos de medicina legal, sempre que a perícia médica se faz indispensável ao esclarecimento do caso (GOMES, 1998).

Outros fatores que interferem no tempo de processamento crimi-nal são os atrasos decorrentes de: a) não pronunciamento do Ministério Público no prazo adequado, b) não comparecimento de testemunhas e do próprio acusado nas audiências de inquirição, c) demora no cumpri-mento das cartas precatórias para a oitiva de testemunhas e, d) demora do próprio magistrado em marcar a data da audiência, principalmente, quando esta suscita a realização do júri (GOMES, 1998).

Já no entender de Fonseca (2004), uma das razões para a mo-rosidade da justiça criminal, especialmente no período compreendido entre os anos de 1992 e 2001, é a queda da produtividade judicial. De acordo com a autora, a ausência de um sistema de punição de magis-trados, escrivães e promotores pela demora excessiva no processamento da causa, fez com que muitos desses permanecessem com o processo por um tempo muito além do razoável. Assim, se em 1992 cada fun-cionário era responsável por 117 processos, hoje cada um é responsável por apenas 69 processos. Com isso, o tempo de processamento da ação praticamente dobrou nesses nove anos.

O estudo publicado por Gomes no ano seguinte (2005) foi rea-lizado a partir da solicitação do Ministério da Justiça. Esta análise teve como resultado a avaliação do tempo de processamento do sistema de justiça criminal português. Com isso, foi possível verificar que para o período compreendido entre os anos de 2000 e 2004, os crimes contra a vida demoravam, em média, 15 meses (contados a partir da data do crime) para receberem uma sentença (Tabela 2).

Outro dado interessante de ser enfatizado a partir da análise da Tabela 02 é o fato de que, no período compreendido entre os anos de 2000 e 2004 o tempo de processamento dos crimes contra vida se reduziu substancialmente. Isso porque, se no ano de 2000, eram neces-sários 17 meses para processar um delito contra a vida, no ano de 2004 eram necessários 14 meses para realizar a mesma atividade.

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 165

Considerando a média do período (15 meses) é possível afirmar que no período compreendido entre os anos de 2000 e 2004, o tempo efetivado pelo sistema de justiça criminal português para o processa-mento dos crimes contra a vida era bastante similar ao prescrito pela lei portuguesa como adequado para o processamento de crimes cujos réus encontram-se em liberdade.

O CPP português estabelece que o prazo para o processamento de crimes (em geral) é de 8 meses para réus presos e de 14 meses para réus soltos. Contudo, como os dados organizados pelo Observatório da Justiça Portuguesa não fazem diferenciação entre réus presos e réus soltos não é possível verificar em que tipo de processo a morosidade é mais pronunciada (GOMES, 2005).

Investigando os determinantes do tempo de processamento das causas criminais, os autores puderam verificar que a presença de algu-mas características aumenta a probabilidade de o caso durar mais que o prescrito pela legislação, quais sejam: a) a insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos; b) o aumento considerável de litígios dadas as alterações de ordem legislativa, social, económica ou outra; c) a crescente complexidade dos casos; d) a ausência ou limitação de recursos aos meios alternativos de resolução de conflitos; e) a excessiva burocratização dos procedimentos judiciais e f) a opacidade do sistema judicial (Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, 2005).

Revisando essas informações, Duarte (2007) constatou que a morosidade dos processos criminais é devida, sobremaneira, aos recursos aos tribunais superiores, os quais implicam em grande dispêndio de tempo e, por conseguinte, esquecimento do caso. Por isso, os processos que contam com advogados particulares são exatamente os mais lentos,

2000 2001 2002 2003 2004 Média

13 11 9 10 10 11

20 21 16 5 3 13

18 17 16 15 16 16

16 14 12 11 10 13

43 9 77 62 43 47

17 16 15 14 14 15

(*) Duração média em meses dos processos encerrados entre 2000 e 2004.

(**) Natureza da causa criminal – APENAS CRIMES CONTRA A VIDA.

Crimes contra a vida

Homicídio simples e qualificado

Homicídio privilegiado a pedido da vítima ou infanticídio

Homicídio por negligência

Tentativa de homicídio

Outros crimes contra a vida

Todos os crimes contra a vida

Tabela 2 - Tempo médio(*), em número de meses, para o processamento das causas criminais(**)

Fonte: Ministério da Justiça Português / Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Travessias 2008166

já que esses não poupam esforços em manejar todos os tipos de recursos previstos nos códigos penais e de processo penal portugueses. Tanto é assim que, de acordo com o autor, 30% do tempo do processo criminal é destinado apenas ao recurso às instâncias superiores.

Portanto, considerando os estudos realizados pela equipe de pesquisadores do Centro de Estudos Sociais (CES) é possível verificar que, no período compreendido entre os anos de 1989 e 2004 o tempo da justiça criminal portuguesa não apenas diminuiu (como um todo) como se tornou bastante semelhante ao prescrito pelo Código de Processo Penal Português como adequado ao processamento dos réus presos durante o processo (Tabela 3).

Os dados apresentados na Tabela 3 são interessantes, em um primeiro plano, por revelarem que, em Portugal, 16 anos após a publi-cação do novo prazo de processamento, os processos criminais eram encerrados dentro do prazo prescrito legalmente.

No que se refere a natureza dos estudos realizados, uma outra ressalva também é importante de ser realizada. Isso porque nas pes-quisas sobre o tempo de duração do processo criminal as fontes de informação utilizadas são as oficiais, são os bancos de dados do Mi-nistério da Justiça. Neste caso, as contagem de tempo não são fruto de pesquisas, na maioria dos casos, realizadas diretamente nos processos criminais julgados em um determinado ano ou em um determinado período de tempo.

Tempo médio de processamento Diferença entre o tempo médio do Ano (em dias) caso e o tempo estabelecido pelo Desde a data do fato até a condenação Código de Processo Penal(*)

(*) De acordo com as pesquisas realizadas em Portugal neste mesmo período.

Tabela 3 - Sumarização do tempo médio de processamento dos processos criminais encerrados em Portugal entre 1989 e 2004(*)

N.A. - Período anterior à publicação do CPP. (*) Considerando-se o prazo de 14 meses para réus soltos, já que os dados coletados não fazem esta diferenciação entre réu preso e réu solto.

1989 920 5001990 893 4731991 939 5191992 885 4651993 794 3742000 510 902001 480 602002 450 302003 420 02004 420 0

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 167

Por fim, no que diz respeito às causas da morosidade processual no âmbito da justiça criminal portuguesa, tem-se que o excesso de formalismos em um primeiro plano e, em um segundo plano, as pró-prias limitações colocadas pela tradição Civil Law, são apontadas como as principais causas para extensão do prazo do processo para além do previsto em lei (Tabela 4).

De acordo com a Tabela 4, nos estudos realizados em Portugal, ficou evidente que apenas as características processuais e legais do caso, as características organizacionais do sistema e as características temporais do processo é que explicam a duração do tempo de pro-cessamento e, por conseguinte, aumentam as chances de o caso ter um tempo maior que o prescrito pelo CPP.

VARIáVeIS APONTADAS COMO CAuSAS DA MOROSIDADe PROCeSSuAL RefeRêNCIAS

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Nenhuma característica dos envolvidos aparece, na justiça portuguesa, como relevante para explicação do tempo de processamento de uma causa criminal

CARACTeRÍSTICAS PROCeSSuAIS

Presença de advogado particular Duarte (2007)

Não uso da justiça alternativa(dada a ausência deste recurso ou de outros capazes de tornar a justiça mais rápida) Gomes (2005)

Ausência de pronunciamento do Ministério Público no prazo adequado Gomes (2005)

Não comparecimento de testemunhas e do próprio acusado nas audiências de inquirição Gomes (2005)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Ausência de órgãos específicos destinados a monitorar o tempo dos tribunais Fonseca (2004)

Insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Aumento considerável de litígios Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Pedido de perícia médica Gomes (2005)

Julgamento do caso por um Juízo Especial (Júri) Gomes (2005)

Crimes qualificados (casos mais complexos) Observatório Permanente da Justiça Portuguesa (2005)

Recursos para os tribunais superiores Duarte (2007)

CARACTeRÍSTICAS TeMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação Ferreira e Pedroso (1997); Gomes (2005)

Tabela 4 - Sumário dos principais estudos realizados sobre a temática em Portugal determinantes do tempo do processo criminal

(desde a década de 1990 até o ano de 2007)

Travessias 2008168

As informações sumarizadas nesta tabela são importantes porque, no Brasil, todos os estudos sobre tempo de duração do processo criminal fazem referência às pesquisas do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Assim, organizar o resultado das pesquisas de acordo com a relação que cada tipo de fator possui com o tempo de duração do processo auxiliar a compreender as semelhanças e diferenças desta realidade no que se refere ao tipo de fenômeno que aumenta as chances de o caso incorrer em morosidade processual.

Por fim, cumpre destacar que os pesquisadores brasileiros se uti-lizam não apenas da mesma metodologia para cálculo do tempo global e do tempo parcial de processamento (tempo da fase de investigação e tempo da fase judicial) como ainda utilizam as variáveis apontadas por esses estudos como possíveis explicações para a morosidade no cenário brasileiro. Neste sentido, cumpre agora apresentar os estudos realizados sobre este tema no cenário nacional.

o temPo do sistema de Justiça CRiminal bRasileiRo

Para compreender o tempo de processamento de um delito pelo sistema de justiça criminal brasileiro, a primeira atividade a ser realizada é a de calcular o prazo prescrito pelo Código de Processo Penal (CPP) neste sentido. Isso porque ao contrário do que ocorre em Portugal, o CPP brasileiro estabelece prazos diferenciados dependendo de quem possui com-petência para a sua prática e ainda de acordo com a natureza do crime.

Nestes termos, a opção apresentada aqui foi a de transcrever o tempo do processamento dos crimes dolosos contra a vida. Isso porque esses são os casos que demandam um tempo mais longo para serem julgados, em detrimento dos crimes comuns, os quais se encerram com a publicação do resultado do julgamento (art. 592 – CPP).

De acordo com Mirabette (2001), o tempo previsto pelo CPP para o processamento do delito de homicídio doloso é diferenciado do tempo prescrito para processamento de outros crimes comuns (como, por exemplo, o estupro), porque, no Brasil, os crimes dolosos (intencionais) contra a vida não são julgados por um juiz singular, mas, por um Tribunal composto de juízes leigos que através do de-pósito de votos sim / não absolvem ou condenam o autor do fato (tribunal do júri).

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 169

Assim, para cálculo de tais tempos, tal como sugerido por Adorno e Izumino (2007), foram identificados todos os prazos estabelecidos no Código de Processo Penal – CPP para processamento de um crime, com destaque para: o tempo de duração dos inquéritos; intervalo entre o inquérito e a denúncia; intervalo entre o oferecimento da denúncia pelo promotor e o aceite desta pelo juiz; intervalo entre o aceite da denúncia pelo juiz e o interrogatório do réu; duração da instrução cri-minal; tempo gasto com as providências ordinárias do rito processual, tais como oitiva de testemunhas, defesa prévia, alegações finais, pronúncia, libelo e contra-libelo acusatório, e julgamento pelo tribunal do júri.

Ao final deste exercício, foi possível constatar que, para crimes comuns, o tempo prescrito pelo Código de Processo Penal é de 129 dias para réu preso e 179 dias para réu solto. Importante salientar que, de acordo com a classificação de Santos (1996) este é o prazo deno-minado de morosidade legal para os crimes comuns, posto ser este o tempo formalmente prescrito pelo Código de Processo Penal.

Já para os crimes dolosos contra a vida, o CPP prescreve como tempo de duração legal, desde o registro do delito pela autoridade policial até o primeiro julgamento pelo Tribunal do Júri, o prazo de 310 dias (ou 10, 3 meses) para o caso de réu solto e 260 dias para o caso de réu preso.

Considerando essas informações é possível afirmar que, no Brasil, o tempo de processamento dos crimes dolosos contra a vida é 2,01 maior do que o tempo prescrito para o processamento dos crimes comuns para os casos de réu preso e 1,73 vezes maior para os casos de réu solto. Esses resultados apontam, por sua vez, para a expectativa de um processo penal mais complexo, no caso de crimes dolosos contra a vida em comparação com o processo de crimes comuns.

Esses resultados apontam ainda para diferenças no funcionamento da justiça criminal brasileira e portuguesa no que se refere ao tempo de processamento. Isso porque se em ambas há uma diferenciação de tempos legais dependendo da situação jurídica do réu (preso ou solto), apenas no Brasil há uma diferenciação de tempos legais de acordo com a intencionalidade e o objeto do delito. Isso porque nesta localidade, legalmente, os crimes dolosos contra a vida possuem um tempo maior de processamento do que os crimes comuns.

Uma vez apresentadas as disposições legais relativas ao tempo do processo criminal no Brasil, tem-se início a revisão das pesquisas realizadas nesta localidade propriamente dita.

Travessias 2008170

Adotando uma perspectiva histórica para a apresentação dos es-tudos sobre o tempo de processamento da justiça criminal já realizados no Brasil, é possível afirmar que o primeiro acerca da diferença entre morosidade legal e morosidade necessária foi o intitulado “Continui-dade Autoritária e Construção da Democracia”.

Esta pesquisa coordenada por Paulo Sérgio Pinheiro teve como objetivo analisar os processos de linchamentos ocorridos no Brasil no período compreendido entre os anos de 1980 a 1989. No que se refere à metodologia utilizada tem-se que este trabalho baseou-se nas pes-quisas desenvolvidas pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e centrou-se na investigação do tempo de processamento de casos de violação de direitos humanos.

A pesquisa identificou aproximadamente 3.519 casos de lin-chamentos ocorridos em todo o território brasileiro no período compreendido entre os anos de 1980 e 1989. Dado o volume e a impossibilidade de analisar detidamente todo esse universo, foi necessário realizar uma seleção dos casos a serem analisados em profundidade. Para tanto, os critérios adotados foram os seguintes: a) presença da opinião pública por intermédio da mídia; b) intervenção do poder público por meio das agências policiais e judiciárias; e c) participação da sociedade civil, organizada e não-organizada, seja em virtude da identificação das comunidades onde os casos ocorreram, seja em virtude da intervenção dos movimentos sociais no pedido de justiça diante do caso.

O resultado desse trabalho foi a identificação de 162 casos, ocorri-dos no eixo Rio–São Paulo. Destes, foi possível ter acesso aos inquéritos e processos penais de 28 casos ocorridos no estado de São Paulo. A análise desses 28 casos de linchamentos ocorridos em São Paulo permitiu veri-ficar que a morosidade necessária é acentuada nos crimes que envolvem a violação de direitos humanos, ultrapassando em vários números de dias o tempo médio do processo dos crimes de homicídio doloso, que era, a esta época, de um ano e meio no Município de São Paulo.

De forma geral, o tempo médio de processamento dos lincha-mentos que tiveram lugar em São Paulo, no período compreendido entre os anos de 1980 a 1989 pode ser vislumbrado na Tabela 5. A análise desses dados demonstra que a média dos tempos de processa-mento dos linchamentos era de 74,34 meses, tempo este 738% maior que o estabelecido pelo Código de Processo Penal como necessário à duração deste tipo de ação penal.

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 171

A segunda conclusão do estudo diz respeito aos fatores de aumentam o tempo de processamento do delito, quais sejam: a) requisições de laudos ausentes e complementares, b) solicitação de informações a outros órgãos, c) mandatos de citação e intimação não cumpridos. Ou seja, nos casos dos linchamentos ocorridos em São Paulo no período de 1980 a 1989 e que receberam uma condenação do judiciário até o ano de 1989, as causas para a extensão do prazo prescrito do CPP são relacionadas a uma série de atividades que são indispensáveis ao andamento do processo e que em razão do excesso de formalismo demandam um longo tempo para serem cumpridas (PINHEIRO et al, 1999).

O segundo estudo desenvolvido também nesta seara foi o reali-zado por Izumino (1998), o qual coletou informações sobre casos de violência contra a mulher registrados nas delegacias de mulheres de São Paulo no ano de 1996. A autora utilizou esses casos para analisar a intervenção judicial em conflitos de gênero que resultaram em desfecho fatal para mulheres ou em lesões corporais. Os resultados de tal análise denotaram que: a) 40,96% dos processos instaurados foram encerrados entre doze e 24 meses, b) 21,69% dos processos se encerraram em menos de doze meses; c) 21,69% dos processos se encerraram entre 24 e 36 meses, d) 8,43% dos processos se encerraram em 48 meses (8,43%), e; e) 1,20% se encerraram em um tempo superior a 48 meses.

Portanto, de acordo com Izumino (1998), para casos de violência doméstica nos quais há a morte da mulher pelo seu parceiro ou por alguém da família, espera-se que o encerramento do processo criminal

Tribunal Competente Tempo médio (meses)

Campinas 120,33 Lapa 101,41 Ribeirão Pires 100,34 Itapec. Serra 92,28 Carapicuíba 91,3 Mauá 68,48 Praça da Sé 61,11 Jardim Noronha 22,52 Osasco 11,29 Média das médias 74,34 Tempo do CPP 10,16

Tabela 5 - Tempo médio de duração dos processos de linchamentos no estado de São Paulo

(APeNAS casos que resultaram em condenação - Período de 1980 a 1989)

Fonte: Pinheiro et al (1999:785).

Travessias 2008172

que coloca a punição ou a absolvição do autor do fato ocorra em um prazo médio de 12 a 24 meses, contados da data do delito.

No livro intitulado “Morosidade da justiça: causas e soluções”, o tempo da justiça é analisado por diversos monografias de direito que foram or-ganizadas por Svedas et al (2001) para a publicação em um único volume. De acordo com os autores, a morosidade processual, apesar de ainda não se constituir em foco dos estudos diretamente relacionados ao funcionamento dos tribunais, deve ser melhor compreendida para que soluções pontuais possam ser propostas para o tema. Nestes estudos o formalismo processual é a maior causa da morosidade processual no Brasil. Tal fenômeno faz com que muitos processos demorem entre 3 e 5 anos para chegar ao Supremo Tribunal Federal na tentativa de se decidir quem é o juiz competente ou se é adequado este ou aquele caminho procedimental.

No que diz respeito aos responsáveis, ou seja, a quem dá ensejo a esta morosidade, tem-se que os funcionários dos cartórios são os que mais contribuem para a extensão dos prazos processuais para além dos limites previstos em lei. Isso porque, de acordo com o levantamento dos autores, os juízes são responsáveis por 10% do tempo de uma ação, os advogados por 20% da demora e o cartório (a burocracia) retém o pro-cesso 70% do tempo total de processamento (SVEDAS et al: 2001).

Apesar de estes estudos terem despertado a atenção das ciências sociais brasileira para a importância de se analisar o tempo de proces-samento de uma demanda criminal, foi a partir do estudo de Vargas (2004) que os estudos desta natureza se multiplicaram em termos de escopo e metodologias de análise.

Vargas (2004) analisou todos os Boletins de Ocorrência de estupro2 registrados na cidade de Campinas, entre os anos de 1980 e 1996. Para proceder à descrição do tempo despendido em cada uma das fases de processamento, a autora utilizou informações sobre 446 registros iniciais de estupro e seus desdobramentos. Os primeiros registros datam ano de 1988 e os últimos desdobramentos na justiça, datam o ano de 1999.

A análise estatística do tempo entre o registro da queixa e a sen-tença neste caso, demonstrou que são fatores que influenciam o tempo de processamento dos casos de estupro: a) Idade da vítima, já que réus acusados de estupro de vítimas com até 14 anos de idade têm seus

(2) Importante destacar que a análise de Vargas (2004) se restringiu ao crime de estupro porque este delito possui regras diferenciadas no que se refere ao tempo de processamento quando a vítima é menor de quatorze anos. Isso porque, nesses casos, de acordo com o art. 224 do Código Penal há presunção de violência e, por conseguinte, aumento do juízo de reprovação sobre este delito.

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 173

processos tramitando quase quatro vezes mais rápido do que aqueles com vítimas de 14 anos ou mais e b) prisão durante o processo, posto que o fato de o réu ter sido preso durante o processo diminui em cinco vezes o tempo do registro da queixa até a sentença.

Apesar da grande contribuição do trabalho de Vargas (2004) para o en-tendimento do tempo da Justiça Criminal, bem como dos fatores associados à morosidade processual, sua análise restringiu-se a poucos casos, não permitindo identificar padrões e regularidades e menos ainda fazer generalizações.

Em estudo publicado em 2005, Vargas, juntamente com Blavatsky e Ribeiro, analisou o tempo de tramitação dos processos de homicí-dio no estado de São Paulo a partir de duas bases de dados: a) a da Fundação SEADE, que possuía as informações oficiais (da polícia e da justiça) sobre o processamento de todos os casos de homicídio (simples e dolosos) registrados no estado de São Paulo e cujo registro inicial na polícia ocorreu entre os anos de 1991 e 1998, e; b) a resultante da análise de todos os casos (93) de homicídio doloso cujo arquivamento do processo ocorreu no ano de 2003 na cidade de Campinas.

Os resultados da análise da base de dados da Fundação SEADE indicavam que, no Estado de São Paulo, no período compreendido entre os anos de 1991 e 1998, um delito de homicídio doloso demorava, em média, 2,69 anos (983 dias) para ser julgado pelos Tribunais. Já a análise da base de dados construída a partir dos casos arquivados em Campinas no ano de 2003 indicou que são variáveis que afetam o tempo compre-endido entre o registro da ocorrência e a sentença final (Quadro 1).

Com a análise dessas duas bases de dados, as autoras puderam constatar que as variáveis determinantes do tempo das três fases prin-cipais do procedimento (inquérito policial, denúncia, processo judicial) atuam seguindo a seguinte relação: para cada dia de acréscimo em cada um destes tempos há o acrescimento de uma unidade na probabilidade de se ter um processo mais moroso, ou seja, que demande mais tempo do que o delimitado pelos códigos para percorrer todas as fases previstas entre o registro da ocorrência e a sentença final do júri.

De acordo com as autoras, esta constatação aponta para o efeito cumulativo dos atrasos dos processos, pois, o fato de uma fase demorar mais do que o previsto, implica que as fases subseqüentes também de-mandaram um tempo maior do que o prescrito para se encerrarem.

Os resultados sumarizados na Tabela 3 enfatizam ainda a cons-tatação de Santos (1996: 442) acerca da morosidade nos tribunais portugueses, qual seja: “a morosidade é tanto mais forte quanto mais variadas, intensas e cumulativas forem as suas causas”.

Travessias 2008174

No ano de 2006, tem-se a publicação do trabalho intitulado “Flu-xo do crime de homicídio no sistema de justiça criminal em Minas Gerais”, o qual foi desenvolvido pela Fundação João Pinheiro sob a coordenação de Eduardo Cerqueira Batitucci. Este trabalho analisou uma amostra de processos de homicídios dolosos julgados por três diferentes comarcas judiciais do estado de Minas Gerais no período compreendido entre os anos de 1985 e 2003.

Os resultados indicaram que a maior parte do tempo de pro-cessamento é referente ao encerramento do Inquérito Policial, o qual demora, em média, 304 dias. Quando o Inquérito Policial, já termi-nado, é devolvido, pelo Ministério Público, à Organização Policial para a continuidade das investigações, o tempo médio ultrapassa 680 dias. Estes resultados evidenciam a falência do modelo investigativo adotado pela Polícia Civil em Minas Gerais e sua incapacidade insti-tucional de fazer frente às demandas dos casos de homicídio doloso (BATITUCCI, CRUZ e SILVA, 2006).

VARIáVeL DIReçãO De CAuSALIDADe COM O TeMPO De PROCeSSAMeNTO Tipo de crime Crimes mais graves aumentam o tempo de processamento, pois, em regra, contam com a presença de advogado particular a utilizar os recursos processuais protelatórios que podem levar a materialização da prescrição.

Revelia do Réu Implica em aumento do tempo, dada a dificuldade dos funcionários judiciais em se comunicarem com outros cartórios e delegacias de polícia para, desta forma, encontrar o réu.

Problemas na fase policial A fase com maior tempo de duração é a do inquérito policial, dada a dificuldade de obtenção de provas, de demora na realização de perícias e, inclusive, de identificação do autor do delito

Adiamento do julgamento Em qualquer fase do processo, faz com que o tempo de processamento seja aumentado A advogados particulares manejam este instituto neste sentido e a ausência de defensores públicos faz com que ele termine por ocorrer sucessivas vezes.

Dificuldade na localização Implica em aumento do tempo em razão da demora dos tribunais em de testemunhas processarem as cartas precatórias

Prisão do indivíduo ao longo Fazem com que o tempo de processamento seja muito menor, pois, a de todo o processo ou em maioria desses casos pede urgência dos tribunais. algum momento do processo

Natureza da defesa Advogados particulares fazem com que o processo dure mais, ou para que seu cliente seja beneficiado com a prescrição ou para que este alcance uma pena menor.

Número de recursos O uso de recursos legalmente previstos visa atender aos interesses do acusado da prática do delito de homicídio, dado que os atrasos no processamento podem implicar em uma punição menor ou mesmo na extinção do processo pelo decurso do tempo.

Quadro 1 - Principais variáveis que explicam o tempo de processamento do homicídio doloso

(Casos encerrados no ano de 2003 em Campinas – 93 no total)

Fonte: Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 175

Ainda neste ano, em dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, Ruschel (2006) analisou os casos de homi-cídio doloso, julgados em primeiro grau no ano de 2004, na cidade de Florianópolis. Com isso, o autor pôde constatar que: os réus foram processados em um tempo médio de 784 dias, sendo que o menor tempo foi de 303 dias e que o maior tempo foi de 2378 dias. Ou seja, o tempo máximo foi 7 vezes maior que o tempo mínimo.

No que se refere aos elementos que podem dar ensejo à morosi-dade constatados nesta pesquisa, tem-se que as cartas precatórias e os re-cursos de habeas corpus, bem como outros pleitos ao Juiz, prolongaram a duração do Processo Penal. Casos com recursos aos tribunais superiores são os que demandam mais tempo, pois, para tanto são necessários de 1 a 9 meses, para a volta da resposta ao Fórum, acrescidos de mais dois meses para agendamento de uma nova data para o Julgamento.

Análise recente, porém circunscrita ao tempo policial, ou seja, a fase compreendida entre a data do fato e a data de encerramento do in-quérito policial, é a coordenada por Ratton e Fernandes (2007). Este trabalho analisou os casos de homicídio doloso que ocorreram na cidade de Recife, nos anos de 2000 a 2004 e cuja autoria foi esclarecida.

Os resultados desta pesquisa apontam para o fato de que o tempo médio da fase policial é de 86,55 dias para casos que envolvem apenas um réu e de 150,29 para casos que envolvem mais de um réu. Consi-derando que o tempo previsto para a duração desta fase é de 35 dias (se o réu estiver preso) ou 65 dias (se o réu estiver solto) é possível afirmar que os casos de homicídio doloso ocorridos em Recife sofrem de certa morosidade para o encerramento do inquérito policial.

No ano de 2007, tem-se a publicação do trabalho de Adorno e Izumino (2007), os quais analisaram a questão da morosidade no julga-mento de crimes dolosos contra a vida. Para tanto, eles se basearam nas informações relativas a dez casos de linchamentos, que tiveram lugar em são Paulo, no período compreendido entre os anos de 1980 a 1989 e que integram a base de dados resultante da pesquisa “Continuidade Autoritária e Construção da Democracia”.

Em um primeiro plano, os autores calcularam a morosidade legal (aquela resultante da contabilização dos prazos previstos no Código do Processo Penal) a qual estabelecia o dispêndio de 10,2 meses para conclusão de todos os procedimentos judiciais e judiciários, desde o registro da ocorrência policial até a sentença judicial transitada em julgado para os casos de crimes dolosos contra a vida.

Travessias 2008176

Em seguida, os autores mensuraram a morosidade necessária nestes casos, qual seja, o tempo médio real para processamento de uma causa de linchamento em São Paulo. Para tanto, eles utilizaram como base os dados estatísticos relativos ao tempo de processamento destes crimes que foram julgados pelo IV Tribunal do Júri do Fórum Regional da Penha (município de São Paulo) no período compreendido entre os anos de 1984 e 1988 (Tabela 6).

As conclusões desta pesquisa apontam para o fato de que a maioria dos casos de linchamento julgados no Fórum da Penha no período compreendido entre os anos de 1984 e 1988 demorou entre 12 e 24 meses para receber uma sentença de absolvição, condenação ou des-classificação do delito.

Por fim, no ano de 2008, Ribeiro e Duarte (2008) analisaram 624 casos de homicídio doloso cujo processo foi iniciado e encerrado nos Tribunais do Júri da cidade do Rio de Janeiro no período com-preendido entre os anos de 2000 e 2007. A vantagem desta base de dados diz respeito ao fato de ela ser uma cópia do sistema original de movimentação processual do próprio tribunal de justiça. Ou seja, as autoras trabalharam com os dados oficiais do sistema.

O estudo desta base de dados permitiu às autoras constatar que para os casos de homicídio doloso, cujo processo foi distribuído e en-cerrado em quaisquer dos tribunais do júri da capital entre os anos de 2000 e 2007, o tempo médio de processamento global (desde a data do

Tabela 6: Tempo Médio (em meses) de duração dos processos de crimes dolosos contra a vida em São Paulo

APeNAS casos julgados pelo IV Tribunal do Júri do fórum Maria da Penha (Cidade de São Paulo) Período de 1984 a 1988

Natureza da Sentença

Tempo médio Absolvição Condenação Desclassificação Total de duração N % N % N % N %

< 12 meses 26 37% 70 41% 20 37% 116 39% 12-24 meses 32 45% 73 42% 27 50% 132 44% 24-36 meses 9 13% 24 14% 7 13% 40 13% 36-48 meses 3 4% 2 1% - 5 2% Sem informação 1 1% 3 2% - 4 1% TOTAL 71 100% 172 100% 54 100% 297 100%

Fonte: Adorno e Izumino (2007: 148)

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 177

crime até a data da sentença) é de 707 (setecentos e sete dias) dias. Isso significa que o sistema de justiça criminal da cidade do Rio de Janeiro demorou, neste período, aproximadamente, 1,93 anos para decidir o destino dos réus que praticaram este delito.

No que se refere aos fatores processuais capazes de explicar o tempo de processamento (únicos disponíveis nesta base de dados) tem-se que apenas as variáveis flagrante e condenação foram estatisticamente significantes. De um lado, o flagrante atua como fator de redução da morosidade necessária. Por outro lado, o fato de o caso se encerrar com uma condenação atua como fator de extensão do tempo global de processamento. Já as outras variáveis (homicídio qualificado, homicídio praticado com concurso de agentes e presença de testemunhas) não interferiram expressivamente no tempo de duração do processo.

Como a pesquisa de Ribeiro e Duarte (2008) foi a última pu-blicada sobre este tema no Brasil é possível afirmar que, até o ano de 2008, todas as pesquisas realizadas sobre o tempo da justiça criminal apontaram para a incapacidade deste em implementar os dispositivos do Código de Processo Penal no que se refere ao tempo para proces-samento do delito de homicídio doloso (foco da maioria das pesquisas realizadas no Brasil) desde a ocorrência do delito até a sentença que encerra o processo (Tabela 7).

No que se refere aos fatores capazes de explicar o tempo do pro-cesso criminal de homicídio doloso, essas pesquisas apontaram como variáveis que aumentam o tempo do processo: a) o fato de o crime ter

Tempo médio Diferença entre de processamento o tempo médio ANO (desde a data do fato do caso e o tempo até a data da estabelecido pelo condenação Código de Processo (em dias) Penal(*)

1980-1989 2230 1920

1990-1998 983 673

1985-2003 911 601

2004 784 474

(analisados pelas pesquisas brasileiras no período entre 1999 e 2007)

Tabela 7: Sumarização do tempo médio de processamento dos casos de homicídio doloso

(*) Considerando-se o prazo de 310 dias para réus soltos, já que alguns dos dados coletados não fazem esta diferenciação entre réu preso e réu solto.

Travessias 2008178

sido praticado na forma qualificada em detrimento da forma simples, b) a excessiva burocratização dos procedimentos judiciais, c) a presença de liberdade provisória durante o processo em detrimento da prisão em flagrante, d) a existência de Cartas Precatórias, e) os problemas enfren-tados durante a fase de investigação e f) os recursos para os tribunais superiores (Tabela 8).

Esta tabela permite verificar ainda que os fatores que determinam a extensão do tempo do processo para além do previsto pelo CPP em Portugal aparecem também nas análises brasileiras como fatores que aumentam o tempo de processamento do crime.

Contudo, não é possível afirmar que o tempo da justiça criminal no Brasil e em Portugal é explicado pelos mesmos fatores em ambas as localidades. Isso porque as pesquisas realizadas no Brasil partem das

VARIáVeIS APONTADAS COMO CAuSAS DA MOROSIDADe PROCeSSuAL RefeRêNCIAS

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Casos de estupro com vítimas com idade inferior a 14 anos são processados mais rapidamente que vítimas com idade superior a 14 anos Vargas (2004)

CARACTeRÍSTICAS PROCeSSuAIS

Presença de advogado particular Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Ausência do acusado em quaisquer dos atos do processo Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais Pinheiro et al (1999), Svedas et al (2001)

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Crimes qualificados (casos mais complexos) Izumino (1998), Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Julgamento do caso por um Juízo Especial (Júri) Código de Processo Penal (1941)

Liberdade provisória Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Pedido de perícia médica Pinheiro et al (1999)

Pedido de provas adicionais Pinheiro et al (1999)

Presença de advogado particular Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005)

Presença de Cartas Precatórias Pinheiro et al (199), Ruschel (2006)

Recursos para os tribunais superiores Svedas et al (2001), Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005); Ruschel (2006)

CARACTeRÍSTICAS TeMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação Vargas, Blavatsky e Ribeiro (2005); Batitucci, Cruz e Silva (2006).

Tabela 8 - Sumário dos principais estudos realizados no Brasil sobre as temáticas determinantes do tempo do processo criminal

(desde a década de 1990 até o ano de 2007)

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 179

conclusões alcançadas nas pesquisas portuguesas e, com isso, apenas as variáveis que aparecem como relevantes para o tempo naquela análise são, usualmente, testadas no cenário brasileiro. Esses resulta-dos apontam, portanto, para o fato de que as variáveis selecionadas nos estudos portugueses como relevantes para a análise do tempo possuem impactos semelhantes no tempo global de processamento em ambas as realidades analisadas.

ConsideRações finais

A proposta deste artigo foi realizar uma revisão dos estudos realizados sobre o tempo de processamento da justiça criminal em Portugal e no Brasil. Para tanto, as pesquisas realizadas em cada localidade foram sumarizadas com o objetivo de verificar: a) qual a diferença entre o tempo prescrito pelas legislações (morosidade legal) e o tempo despendido para o processamento de uma causa criminal (morosidade necessária) em cada realidade; e b) quais são os principais fatores que de acordo com esta revisão explicam o tempo da justiça criminal em ambas localidades.

No que se refere ao primeiro objetivo, foi possível constatar que, em cada país, as legislações sobre o tempo de duração do pro-cesso criminal são distintas, em termos de: a) ano de publicação da legislação, b) limite de tempo fixado; c) situação jurídica do réu e d) natureza do delito (Tabela 9).

País Nome do Ano da Prazo Máximo Há diferenças Há diferenças diploma legal Legislação Estabelecido(*) de tempo de de tempo acordo com a quanto a situação jurídica natureza do réu do crime? (preso ou solto)?

Portugal Código de Processo Penal Português 1987 420 Sim Não

Brasil Código de Processo Penal Brasileiro 1941 310 Sim Sim

Tabela 9 - Diferenças e semelhanças entre as legislações sobre o tempo da justiça criminal em Portugal e no Brasil.

(*) Para cálculo do prazo máximo, usou-se como parâmetro o réu solto.

Travessias 2008180

Analisando a Tabela 8, é possível verificar que a legislação bra-sileira é a mais antiga sobre o assunto. No entanto, o prazo por ela estabelecido é inferior ao previsto na Portuguesa. Considerando estes fatores, é possível pontuar que talvez o tempo de processamento previsto pelo CPP brasileiro necessite ser adaptado para um valor mais próximo ao previsto pelo CPP português.

As razões para esta pontuação dizem respeito ao fato de que a legislação portuguesa não apenas é mais recente que a brasileira (a portuguesa foi publicada há 21 anos atrás, enquanto a brasileira foi publicada há 67 anos atrás), mas, ainda ao fato de que, após esta altera-ção, os tribunais portugueses passaram a respeitar mais o prazo previsto pela legislação e, com isso, na atualidade, o tempo médio da justiça criminal desta localidade é exatamente o previsto pelos códigos.

Um segundo ponto importante de ser destacado a partir da Tabela 08 diz respeito ao fato de que os Códigos de Processo Penal, brasileiros e portugueses, estabelecem limites temporais diferenciados de acordo com a natureza jurídica do réu durante o processo: preso ou solto. Isso ocorre porque, tanto no Brasil e em Portugal, caso esta diferença não esteja inscrita no diploma legal, dificilmente ela poderá ser aplicada na realidade cotidiana dos tribunais. Assim, para garantir que os réus presos tenham um tratamento diferenciado pelas estruturas burocráticas, esses diplomas legais trazem previsões expressas sobre esses fatos em seu interior.

Por fim, tem-se que, no Brasil, existem regras diferenciadas de acordo com a natureza do delito. Isso ocorre porque nesta realidade os crimes dolosos contra a vida são de competência privativa do Tribunal do Júri e, por isso, possuem um processamento diferenciado, mais longo posto que bifásico (MIRABETTE, 2001).

Em Portugal esta diferenciação do tempo em razão do cri-me ou do juízo competente não ocorre porque o júri pode ser requerido pelo Ministério Público e o próprio acusado nos casos de crimes contra a vida, violação de direitos internacional hu-manitário e ainda nos casos em que a pena máxima seja superior a oito anos de prisão (art. 13 do CPP Português). Nesse sentido, como o julgamento pelo júri não se constitui em procedimento ordinário previsto para o julgamento de determinados crimes, mas, em procedimento extraordinário a ser requerido pelas partes, as regras temporais aplicáveis a este são as mesmas que se regulam o julgamento pelos tribunais comuns.

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 181

Uma vez destacadas as conclusões relativas ao primeiro ob-jetivo desta revisão bibliográfica, cumpre destacar a semelhança e a diferença dos estudos no que se refere aos fatores que explicam o tempo da justiça criminal no Brasil e em Portugal. Neste sentido, o primeiro ponto a ser destacado diz respeito a metodologia empre-gada em cada uma dessas análises.

Este ponto é importante porque, no Brasil, as bases de dados que viabilizam o estudo dos determinantes do tempo da justiça cri-minal são resultado da consulta individual a uma amostra de proces-sos criminais encerrados em um dado período em dada localidade. São exceções a esta regra os estudos realizados por Vargas, Blatasky e Ribeiro (2007) e Ribeiro e Duarte (2008), pesquisas essas que utili-zam o sistema oficial de informação de São Paulo e Rio de Janeiro (respectivamente) para cálculo do tempo da justiça criminal e para a análise dos determinantes deste.

Já em Portugal, os estudos realizados sobre esta temática uti-lizam a base de dados do próprio sistema e, por isso, essas pesquisas, ao invés de trabalharem com a amostra, trabalham com o universo de todos os processos encerrados naquele período de tempo. A van-tagem deste método em relação aos demais diz respeito ao fato de ele permitir a produção de informações mais confiáveis não apenas sobre o tempo da justiça criminal como também sobre os fatores que influenciam este tempo.

Outra ressalva metodológica importante de ser realizada é o fato de, no Brasil, a análise do tempo da justiça criminal não é re-alizada de maneira geral, mas, de acordo com a natureza do crime. Isso ocorre porque o Código de Processo Penal deste país estabe-lece regras diferenciadas para o processamento do delito de acordo com o natureza e a intencionalidade deste. Assim, crimes dolosos contra a vida possuem, legalmente, um processamento mais longo do que crimes comuns, merecendo portanto, uma análise distinta. Contudo, em Portugal, os estudos não realizam estas distinções. Neste caso, o que é analisado é o tempo global da justiça criminal, pouco importando a natureza do delito.

Comparando os resultados encontrados em cada uma dessas pesquisas, no que se refere aos fatores capazes de explicar o tempo de duração do processo, foi possível constatar que, são variáveis que con-tribuem para a extensão do tempo de duração de um caso criminal em Portugal e no Brasil os sumarizados na Tabela 10.

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A tabela 10 é interessante porque denota que, apesar de as pes-quisas realizadas no Brasil terem como ponto de partida as pesquisas realizadas em Portugal, algumas variáveis que explicam o tempo de processamento em uma realidade não são as mesmas que explicam o tempo de processamento em outra.

Entre as variáveis que parecem mais se adequar a esta constatação tem-se que, no Brasil, o tempo da justiça criminal é aumentado pelo uso de diversos instrumentos processuais que podem ser administrados pela acusação e defesa no sentido de reunir um número maior de provas que per-mitam a cada parte comprovar o seu argumento no curso do processo.

VARIáVeIS APONTADAS COMO CAuSAS DA MOROSIDADe PROCeSSuAL PORTuGAL BRASIL

CARACTERÍSTICAS DOS ENVOLVIDOS

Casos de estupro com vítimas com idade inferior a 14 anos são processados mais rapidamente que vítimas com idade superior a 14 anos X

CARACTeRÍSTICAS PROCeSSuAIS

Presença de advogado particular X X

Ausência do acusado em quaisquer dos atos do processo X X

Não uso da justiça alternativa (dada a ausência deste recurso ou de outros capazes de tornar a justiça mais rápida X

Ausência de pronunciamento do Ministério Público no prazo adequado X

CARACTERÍSTICAS ORGANIZACIONAIS

Excessiva burocratização dos procedimentos judiciais X X

Ausência de órgãos específicos destinados a monitorar o tempo dos tribunais X

Insuficiência de infra-estruturas judiciárias e de recursos humanos X

Aumento considerável de litígios X

CARACTERÍSTICAS LEGAIS

Crimes qualificados (casos mais complexos) X X

Julgamento do caso por um Juízo Especial X X

Liberdade provisória X X

Pedido de perícia médica X X

Pedido de provas adicionais X

Presença de Cartas Precatórias X

Recursos para os tribunais superiores X X

CARACTeRÍSTICAS TeMPORAIS

Problemas no andamento da fase de investigação X X

Tabela 10

Sumário das variáveis apontadas pelas pesquisas como explicativas do aumento do tempo de duração do processo penal em Portugal e Brasil

O Tempo da Justiça Criminal: Portugal e Brasil 183

As variáveis organizacionais, por sua vez, não podem ser colocadas como fatores que não afetam o tempo da justiça criminal Brasileira apesar de afetarem o tempo da justiça criminal portuguesa. Isso porque, tais fatores ainda não foram incluídos nas análises nacionais sobre o tema dada a dificuldade de coleta de informações neste sentido.

Portanto, o que a revisão dos estudos sobre o tempo de duração do processo criminal denotam é o sistema de justiça criminal brasileiro, em regra, desrespeita o prazo legalmente estabelecido para processamento deste tipo de ocorrência ultrapassando-o para além de um mínimo razoável. O sistema de justiça criminal português, por sua vez, opera em uma perspectiva diferenciada já que, desde o ano de 2003, este vem apresentando tempos médios de processamento criminal semelhantes aos estabelecidos pelo código de processo penal.

Essas pesquisas denotam ainda que o tempo de processamento do de-lito pelo sistema de justiça criminal tende a ser maior, em ambas as realidades, quando o caso apresenta determinadas características, tais como: a) Ausência do acusado em quaisquer dos atos do processo; b) Crimes qualificados (casos mais complexos); c) Julgamento do caso por um Juízo Especial; d) Liber-dade provisória; e) Pedido de perícia médica; f) Recursos para os tribunais superiores e; g) Problemas no andamento da fase de investigação.

Esses fatores indicam que, quaisquer que sejam as sensibilidades jurí-dicas em questão, os sistemas de justiça criminal operam sob a perspectiva de morosidades seletivas, posto que o padrão de tempo é diferenciado, es-pecialmente, de acordo com as características processuais e legais do caso.

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Resumo

O curso inédito intitulado Du gouvernement des vivants, proferido por Michel Foucault no Collège de France em 1980, constitui um momento importante nos estudos em governamentalidade. Em 1978, no curso Sécurité, territoire, population, Foucault introduziu o problema do governo e um primeiro deslocamento que levou da linguagem da dominação para as artes de governar, marcando a operacionalização da sua análise em termos de governamentalidade através de estudos sobre a razão de Estado e o neo-liberalismo como tecnologias de governo. No curso de 1980, retoma o estudo da governamentalidade no eixo verdade-subjetividade, introduzindo um segundo deslocamento que leva do tema Poder-Saber para o tema do governo dos homens pela verdade sob a forma da subjetividade. A partir deste deslocamento, Foucault inaugura uma postura intelectual que chamou de anarqueologia dos saberes. O artigo aborda estes deslocamentos da analítica do poder de Foucault, situando sua importância nos estudos em governamentalidade e as implicações que uma anarqueologia do poder estabelece com o pensamento anarquista. A abordagem comporta dois movimentos: o primeiro apreende a im-portância que o deslocamento saber-poder/verdade-subjetividade ocupa nas análises em governamentalidade; o segundo aborda o neologismo anarqueologia como a descrição de uma história da força da verdade no Ocidente pela análise dos diversos regimes de saber e suas conexões com regimes jurídicos, penais, governamentais etc., propondo uma genealogia das formas da obediência moderna.

Palavras-chave: Poder – Governamentalidade – Anarqueologia – Subjetivi-dade –Verdade.

Governamentalidade e Anarqueologia

Nildo Avelino

Núcleo de Sociabilidade Libertária / Pontifícia Universidade Católica - São Paulo

Y

Travessias 2008188

No curso inédito intitulado Du gouvernement des vivants1, pro-ferido no Collège de France no ano de 1980, Michel Foucault operou um deslocamento analítico que levou do tema poder-saber para o tema subjetividade-verdade. Meu objetivo é abordar este deslocamen-to procurando mostrar que ele não somente constitui um momento importante para a análise que Foucault empreendeu em termos de go-vernamentalidade, mas também mostrar de que modo ele implica uma aproximação, talvez a mais direta e positiva de que se tem notícia, entre Foucault e o pensamento anarquista dos séculos XIX e XX, através do neologismo anarqueologia. A abordagem proposta comporta, portanto, dois movimentos: um sobre a importância que o deslocamento saber-poder/verdade-subjetividade ocupa na análise da governamentalidade, e outro sobre o neologismo anarqueologia e algumas correlações pos-síveis com a anarquia.

da GueRRa PaRa o GoveRno

Segundo Daniel Defert (2001:57), é a partir de dezembro de 1972 que Foucault “empreende a análise das relações de poder a partir da ‘mais indigna das guerras: nem Hobbes, nem Clausewitz, nem luta de classes, mas a guerra civil.’” Data deste período o curso, por ele proferido no Collège de France, em 1973, intitulado La société punitive, e que inicialmente deveria chamar-se “La société disciplinaire” (Ibid.:58). Nesta ocasião, Foucault toma na análise o domínio histórico das táticas punitivas através das quais as diferentes sociedades estabeleceram contra aqueles que infringiram suas leis, suas regras, o exercício de seu poder etc. Propunha definir, a partir das diferentes táticas punitivas como o banimento, a compensação, a marca, a clausura etc., quais relações de poder eram efetivamente colocadas em funcionamento. As diferentes táticas punitivas deveriam funcionar, portanto, como analisadores do poder, e Foucault (1973:16) acrescentava que “se é verdade que o sistema das táticas penais pode ser visto como analisador das relações de poder, o elemento que será considerado central é o elemento da luta política em torno do poder e contra ele; é todo o jogo dos conflitos, das lutas que existem entre o poder tal como ele é exercido em uma sociedade e os indivíduos ou grupos que buscam, de uma maneira ou de outra, escapar desse poder, que o contestam localmente ou globalmente, que contradizem suas ordens e suas regras. (...) É, portanto, a noção de

(1) Para excertos do curso ver Foucault, 2007.

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‘guerra civil’ que deve ser colocada no coração de todas essas análises das penalidades.” A guerra civil é tomada como matriz de todas as lutas em torno do poder, a propósito do poder e contra ele, matriz para a analítica do jogo entre uma luta permanente e as diversas táticas de poder. “Com efeito, poder-se-ia mostrar que a guerra civil (...) habita, atravessa, anima, investe o poder em toda parte. Encontram-se precisa-mente os sinais disso sob a forma desta vigilância, desta ameaça, deste monopólio da força armada, numa palavra, de todos os instrumentos de coerção que o poder efetivamente estabelecido se dá para poder se exercer. O exercício cotidiano do poder deve ser considerado como uma guerra civil; exercer o poder é, de alguma maneira, conduzir a guerra civil, e todos esses instrumentos, essas táticas de que falei, essas alianças, devem ser analisados em termos de guerra civil. (...) o poder não é o que suprime a guerra civil, mas é o que a conduz e a continua; e, se é verdade que a guerra exterior é o prolongamento da política, é preciso dizer, do mesmo modo, que a política é a continuação da guerra civil.” (Ibid.:32-33)

Nestas passagens, Foucault (1999a:55) aparece claramente ligado ao tipo de análise realizada na História da loucura que descreve o sur-gimento na Europa de “uma categoria da ordem clássica” conhecida como internamento, responsável por colocar 1% da população parisiense no interior do Hospital Geral alguns anos apenas após sua fundação, e que atingiria bruscamente “seu limiar de manifestação na segunda metade do século XVII” sob a forma da exclusão pelo internamento como fato maciço. Essa mesma categoria foi retomada na Ordem do Discurso para descrever os procedimentos de exclusão e interdição que durante séculos atravessaram a vontade de saber no Ocidente (FOU-CAULT, 1999b:14). Entretanto, esta análise em termos de exclusão foi em seguida considerada inadequada por Foucault. Após a aparição do primeiro volume da História da Sexualidade, em uma entrevista de janei-ro de 1977, Foucault (2001b:229) afirmou ter aceito, em seus escritos anteriores, a concepção tradicional do poder como aquilo que dita a lei, que interdita, que diz não. Uma concepção do poder que condizia ao período clássico no qual “o poder se exerceu sobre a loucura, sem dúvida, sob a forma maior da exclusão”, mas que se mostrava insuficien-te para descrever o exercício do poder na atualidade. Esta declaração é confirmada pela narrativa de Pasquale Pasquino (1993:79), segundo a qual foi a partir da segunda metade dos anos 1970 que o discurso em termos de guerra e dominação, utilizado por Foucault para descrever as práticas disciplinares, havia provocado um impasse que “conduziu a

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uma crítica extremista do poder – visto segundo um modelo repressivo – pela esquerda (...). Uma análise fechada das disciplinas oposta às teses marxistas da exploração econômica como princípio para compreender os mecanismos do poder não era suficiente, e reclamou a investigação de problemas globais de regulação e ordem da sociedade, bem como as modalidades para a conceitualização deste problema. Daí a questão do governo – termo que substituiu gradualmente a noção de ‘poder’, considerada por Foucault como uma palavra muito ambígua.”

Percebe-se como é equivocado atribuir ao curso de 1976, inti-tulado Em defesa da sociedade, a inversão do aforismo de Clausewitz e a afirmação da política como guerra por outros meios. Ao contrário, o curso de 1976 apresenta uma problematização da análise de 1973 que tomou a guerra como analisador da política. Foucault (1999c:26) intro-duz na sua analítica do poder o que ele chamou de hipótese Nietzsche que consiste em considerar a guerra, a luta e o enfrentamento como princípio e motor do poder político em nossas sociedades. Pergunta se “o poder, pura e simplesmente, é uma guerra continuada por meios que não as armas ou as batalhas? (...) Deve-se ou não entender que a sociedade em sua estrutura política é organizada de maneira que alguns possam se defender contra os outros, ou defender sua dominação con-tra a revolta dos outros, ou simplesmente ainda, defender sua vitória e perenizá-la na sujeição?” Hesita, entretanto, uma resposta afirmativa. Propõe, ao contrário, um certo número de precauções de método. In-siste, por exemplo, em não tomar a dominação que o poder pretende perenizar como “fato maciço de ‘uma’ dominação global de uns sobre os outros, ou de um grupo sobre o outro”, mas tomá-la como “múltiplas formas de dominação que podem se exercer no interior da sociedade”. A dominação não deve ser compreendida como “o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas”, ou compreendida como “a soberania em seu edifício único”, mas como “as múltiplas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social” (Ibid.:31-32). Existe, portanto, um claro desnível entre poder e domi-nação, entre política e guerra. Está claro quando Foucault (1993:89) pergunta, no primeiro volume da História da Sexualidade publicado ainda 1976, se “seria preciso inverter a fórmula e dizer que a política é a guerra prolongada por outros meios?” Responde que, ao contrário, seria necessário distinguir guerra e política na medida em que esses dois termos constituem efetivamente dois tipos de estratégias, diferentes uma da outra, para a codificação das relações de força. “Trata-se, em suma, de orientar, para uma concepção do poder que substitua o privilégio da

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lei pelo ponto de vista objetivo, o privilégio da interdição pelo ponto de vista da eficácia tática, o privilégio da soberania pela análise de um campo múltiplo e móvel de correlações de força, onde se produzam efeitos globais, mas nunca totalmente estáveis, de dominação. O mo-delo estratégico, ao invés do modelo do direito. E isso, não por escolha especulativa ou preferência teórica; mas porque é efetivamente um dos traços fundamentais das sociedades ocidentais o fato de as correlações de força que, por muito tempo tinham encontrado sua principal forma de expressão na guerra, em todas as formas de guerra, terem-se investido, pouco a pouco, na ordem do poder político.” (Ibid.:97)

Assimilar guerra e política arriscava simplificar os mecanismos complexos das relações de poder e reduzir todas as correlações de força próprias das relações de poder às peripécias de uma guerra. “Parece-me simplesmente que a pura afirmação de uma ‘luta’ não pode servir de explicação primeira e última para a análise das relações de poder. Esse tema da luta não se torna operatório a não ser que se estabeleça con-cretamente, e a propósito de cada caso, quem está em luta, a propósito do que, como se desenrola a luta, em qual lugar, com quais instrumentos e segundo qual racionalidade.” (FOUCAULT, 2001b:206) O curso de 1976 teve por objetivo não de abandonar a concepção do poder em termos de guerra, mas certamente interrogou seus pressupostos e as conseqüências históricas da recorrência do modelo da guerra como analisador das relações de poder. Decorre daí uma conseqüência im-portante. Como notou Senellart (2004, p. 382), ao romper “com o dis-curso da ‘batalha’ utilizado desde o começo dos anos 1970, o conceito de ‘governo’ marca o primeiro deslocamento [glissement], acentuado desde 1980, da analítica do poder à ética do sujeito”. O tema da po-lítica como guerra por outros meios induzia pensar a lei em termos de sobrevivência arcaica da soberania, as instituições jurídico-políticas atravessadas por um modelo da guerra e a disciplina como um tipo de proeminência longínqua da soberania na modernidade. Todavia, o problema para Foucault era muito mais complexo. Ao invés de pensar a política contendo velhos arcaísmos de tipo guerreiro, era preciso pensar qual poderia ser o lugar da lei, da dominação disciplinar e da guerra no interior das formas governamentais do presente. “Foucault empenhou-se em considerar a maneira pela qual a arte de governar transformou e reconstituiu os aparatos estatais jurídicos e administrativos do século XX. (...) Nem a imagem da soberania, nem a linguagem da dominação e da repressão, podem dar conta da emergência da autoridade gover-namental e do lugar da lei e das instituições legais no seu interior.”

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(DEAN, 1999:26) Foi para responder a essa necessidade da distinção entre política e guerra, e para tornar operatório o tema da batalha na política, que Foucault introduziu, a partir de 1978, no curso Sécurité, territoire, population, a problemática do governo. É importante perceber o que está em jogo nessa recusa em assimilar guerra e política. Pierre Lascoumes (2004:169) sugeriu situá-la no contexto dos anos 1970, no qual se demolia os grandes mitos liberadores, sobretudo do comunismo, que sustentavam em relação ao Estado uma crítica globalizante. “Tirano mascarado ou liberador potencial, a noção de Estado suscitou, desde o século XVIII, muitas teorias unificadoras, frequentemente sob a forma de utopias positivas (propondo a edificação de um modelo social) ou críticas (denunciando um modelo de dominação).” É preciso situá-la também no interior da própria postura intelectual de Michel Foucault: a arqueologia no final dos anos 1960, a genealogia no começo dos anos 1970 e, finalmente, a anarqueologia no começo dos anos 1980. Longe de supor a idéia de sucessão, esses três termos que, grosso modo, definem a possibilidade de uma “metodologia” foucaultiana, complementam-se e implicam-se um ao outro. Uma descrição arqueológica recusa a análise em termos de ideologia e propõe uma abordagem do saber a partir da materialidade do discurso, ou a partir do que Foucault chamou de regularidades discursivas. “Regularidade (...) designa (...) o conjunto das condições nas quais se exerce a função enunciativa que assegura e define sua existência. A regularidade (...) especifica um campo efetivo de aparecimento. Todo enunciado é portador de uma certa regularidade e não pode dela ser dissociado.” (FOUCAULT, 2002a:165) Ao recusar a análise histórica global, geral, de uma época, de uma cultura, de uma certa sociedade, de uma determinada consciência coletiva etc., a ar-queologia tornou possível o procedimento genealógico, permitindo “a constituição de um saber histórico das lutas”. Pareceu a Foucault que para “fazer a história de certos tipos de discursos, portadores de saber, era preciso levar em conta relações de poder que existem na socieda-de onde esse discurso funciona.” (FOUCAULT, 2001a:1277) Assim, a genealogia deveria restabelecer os diversos sistemas de assujeitamento, o jogo fortuito das dominações, através de uma história efetiva que faria emergir o acontecimento ou as relações de força que incessantemente se invertem e se revertem no acaso da luta. No seu conhecido ensaio sobre “Nieztsche, a genealogia, a história”, Foucault (Ibid.:1015) afirma que “se interpretar é se apossar, pela violência ou astúcia, de um sistema de regras que não possui em si nenhuma significação essencial, impondo-lhe uma direção, dobrando-lhe a uma nova vontade, fazendo-lhe entrar

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em um outro jogo e submetendo-lhe a outras regras, então o devir da humanidade é uma série de interpretações. E a genealogia deve ser precisamente sua história: história das morais, dos ideais, dos conceitos metafísicos, história do conceito de liberdade ou da vida ascética, como emergências de interpretações diferentes.” O mundo, diz Foucault, é uma miríade de acontecimentos intrincados. Compreende-se como, ao tomar como prisma reflexivo esta história efetiva, não é mais possível a definição do poder em termos de substância ou atributo. Ao contrário, uma história efetiva descreve o exercício do poder como um “conjunto de mecanismos e de procedimentos que têm por papel, função e tema, mesmo sem êxito, precisamente o de assegurar o poder.” (FOUCAULT, 2004a:4) Uma teoria do poder que repousasse sobre a análise global de uma sociedade, ou de suas transformações econômicas e estruturais, seria certamente insuficiente. Nesse sentido, na sua análise do poder, Foucault toma uma decisão teórico-metodológica que consiste em, ao invés de partir de noções tais como soberania, povo, súditos, Esta-do, sociedade civil etc., sua análise parte das práticas governamentais tais como estão dadas, e tais como são refletidas e racionalizadas, para compreender como essas noções tidas como universais pela análise sociológica e histórica foram constituídas. “Parto da decisão, teórica e metodológica, que consiste em dizer: suponhamos que os universais não existam, nesse momento eu coloco essa questão à história e aos historiadores: como podem escrever a história sem admitir a priori a existência de qualquer coisa como o Estado, a sociedade, o soberano, os súditos? (...) Não interrogar os universais utilizando-se como método crítico a história, mas partir da decisão da inexistência dos universais para perguntar qual história é possível.” (FOUCAULT, 2004b:5)

O que está em jogo no deslocamento operado por Foucault que leva da linguagem da guerra para o governo, é precisamente a operacionalização da sua análise em termos de governamentalidade. O acontecimento que a genealogia faz emergir é menos da ordem da batalha e do enfrentamento que das relações de força. Dizer que a go-vernamentalidade é acontecimental2 é afirmar que a política é menos da ordem do combate do que da ordem de uma estratégia. “O poder, no fundo, é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários, ou do engajamento de um em relação ao outro, do que da ordem do ‘go-verno’. (...) Portanto, o modo de relação própria ao poder não deve ser

(2) Sobre a noção de acontecimento cf. Branco (2008).

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procurado nem do lado da violência e da luta, nem do lado do contrato e do laço voluntário (que não são mais que seus instrumentos): mas do lado desse modo de ação singular – nem guerreiro nem jurídico – que é o governo.” (FOUCAULT, 2001b:1056) A partir disso, nem o modelo rousseauniano, nem o modelo schmittiano, nem a teoria do contrato, nem a teoria do partisan, servem para uma analítica do poder. Em um manuscrito inédito, citado por Senellart (2004:408), Foucault definiu a governamentalidade como “uma generalidade singular” que não possui “outra realidade que a acontecimental, e cuja inteligibilidade não coloca em funcionamento nada mais que uma lógica estratégica.”

Todavia, não é o bálsamo liberal das relações inócuas de governan-ça. Se as relações de poder não assimilam-se a simples formas de guerra e dominação, é porque é preciso configurá-las em termos de relações agônicas, relações que são “ao mesmo tempo de incitação recíproca e de luta, (...) de provocação permanente” (FOUCAULT, 2001b:1057), e fazem com que essas duas estratégias, que são distintas uma da outra, estejam também sempre “prontas a se transformarem uma na outra.” (FOUCAULT, 1993:89) Como bem notou Mitchell Dean (2007:11), em Foucault as relações de poder se tornam políticas “quando ultra-passam um certo limiar de intensidade, e quando a luta não está apenas no corte e na perfuração da palavra, mas sobre os meios pelos quais a decisão para lutar pode ser forçosamente imposta, e quando os riscos recaem sobre matérias de vida e de morte.” No tipo de sociedade como a nossa, a intensidade deste agonismo encontra uma gravidade na ordem do governo: é o governo, e a resistência que ele provoca, que torna altamente politizável a ubiqüidade das relações de poder.

O deslocamento que leva da linguagem da guerra para o governo marca, portanto, a operacionalização da análise em termos de governa-mentalidade na medida em que analisar o poder em termos genealógicos é descrever seu exercício a partir de uma história efetiva, das práticas governamentais. As práticas de governo possuem basicamente duas di-mensões. Uma dimensão que é tecnológica, através da qual o governo é analisado como tecnologia, como “conjunto de pessoas, técnicas, insti-tuições e instrumentos para a condução da conduta” (MILLER; ROSE, 2008:16) dos indivíduos; neste momento Foucault estuda, nos cursos de 1977-1979, a razão de Estado e o neo-liberalismo como tecnologias de governo e como “instância da reflexão na prática de governar e sobre a prática de governar.” (FOUCAULT, 2004b:4) A outra dimensão das práti-cas de governo é “programática” e diz respeito aos diversos programas de governo e às racionalidades governamentais; e neste momento, a análise

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da governamentalidade é retomada, a partir do curso de 1980 Do governo dos vivos, no eixo verdade-subjetividade que procura estudar o governo dos homens pela verdade sob a forma da subjetividade, propondo uma genealogia das formas da obediência moderna.

veRdade e subJetividade

Neste novo eixo correlacionado à dimensão programática da governamentalidade e às múltiplas racionalidades governamentais, o problema para Foucault, tal como descrito no resumo do curso, é o de saber “como se fez para que, na cultura ocidental cristã, o governo dos homens exigiu da parte desses que são dirigidos, além de atos de obediência e submissão, ‘atos de verdade’ que têm a particularidade de que não somente o sujeito é solicitado a dizer a verdade, mas de dizer a verdade a propósito dele mesmo, de suas faltas, de seus desejos, do estado de sua alma etc.? Como formou-se um tipo de governo dos homens no qual não se é solicitado simplesmente a obedecer, mas a manifestar, enunciando-o, aquilo que se é?” (FOUCAULT, 2001b:944) Para responder a essa questão, Foucault introduziu a noção de regime de verdade para compreender a maneira pela qual “a verdade está ligada circularmente a sistemas de poder que a produzem e a sustentam, e a efeitos de poder que ela induz e que a reconduzem.” (Ibid., p. 114) Regimes de verdade não são jamais simplesmente ideológicos nem superestruturais; em todo caso, constituíram uma das condições de formação do capitalismo tal como se conhece hoje. Por regime de verdade é preciso entender aquilo que constringe os indivíduos a um certo número de atos de verdade. Atos de verdade são tomados a partir da análise do conceito de exomologese do cristianismo primitivo, que designa “um ato destinado a manifestar ao mesmo tempo uma verdade e a adesão do sujeito a essa verdade. Fazer a exomologese de sua crença não é simplesmente afirmar o que se crê, mas afirmar o fato dessa crença; é fazer do ato de afirmação um objeto de afirmação e, portanto, autenticá-lo seja em si mesmo, seja diante dos outros. A exomologese é uma afirmação enfática cuja ênfase se aplica antes de tudo sobre o fato de que o próprio sujeito liga-se a essa afirmação, aceitando suas conseqüências.” (Ibid.:945) A exomologese foi indis-pensável ao cristianismo, na medida em que é através dela que o cristão aceita as verdades que lhe são reveladas e ensinadas, e estabelece com elas uma relação de obrigação e de engajamento. “Obrigação de manter suas crenças, de aceitar a autoridade que as autentica, de fazer eventualmente

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profissão pública, de viver em conformidade com elas etc.” (Id.) Um regime de verdade define-se por uma relação de obrigação e de en-gajamento entre sujeito e verdade, pela junção entre a obrigação e o engajamento dos indivíduos com os procedimentos de manifestação do verdadeiro. Para Foucault, é tão plausível falar em regime de verdade, quanto falar em regime político, em regime penal etc. Designa-se por regime político “o conjunto dos procedimentos e das instituições pelos quais os indivíduos encontram-se engajados de uma maneira mais ou menos forçada, encontram-se constrangidos a obedecer decisões que emanam de uma autoridade coletiva ou de uma unidade territorial onde essa autoridade exerce um direito de soberania”. Do mesmo modo, designa-se por regime penal “um conjunto de procedimentos e instituições pelos quais os indivíduos estão engajados, determinados, constrangidos a se submeterem à leis de validade geral. Então, nessas condições, por que efetivamente não poder-se-ia falar de regimes de verdade para designar o conjunto de procedimentos e instituições pe-los quais os indivíduos são engajados e constrangidos a manifestar, em certas condições e com certos efeitos, atos bem definidos de verdade? Por que, enfim, não poder-se-ia falar de obrigações de verdade do mesmo modo que existem constrangimentos políticos ou obrigações jurídicas?” (FOUCAULT, 1980:fita V, lado A, 06/fev.) Ao transferir a noção de regime político para o problema da verdade, Foucault afirma a existência de obrigações de verdade destinadas a impor atos de crença, de profissão de fé, de confissões, de convicções, de convencimentos, de persuasões e de engajamentos.

Todavia, a noção de regime de verdade parece conduzir a um impasse, na medida em que serviria unicamente para designar práticas nas quais o verdadeiro está efetivamente ausente, como ocorre na exo-mologese cristã. Ao se considerar que a coerção na exomologese cristã é exercida pelo não-verdadeiro, pelo não-verificável, por aquilo que não pode ser demonstrado, então a verdade não tem realmente poder de obrigação e a coerção é necessária somente quando uma “verdade”, tal como a ressurreição da carne, deve produzir seus efeitos de vínculo e de obrigação. Assim, quando tratar-se efetivamente do verdadeiro, a noção de regime de verdade seria insuficiente, tendo em vista que a verdade, por si mesma, não tem necessidade de regimes de obrigação e de sistemas de constrição que tenham por função torná-la verdadeira lhe conferindo força de sujeição. A verdade, por ela mesma, não obriga ver-dadeiramente. Assim, toda vez que se tratar verdadeiramente da verdade, o sujeito da verdade não será constrangido por nenhuma obrigação a ser

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o operador em uma manifestação de verdade. Simplesmente porque a verdade basta, por si mesma, para fazer sua própria lei, e porque a força de coerção da verdade está no verdadeiro em si mesmo.

Foi contra essa tese que Foucault procurou demonstrar a opera-cionalidade da noção de regime de verdade e as possibilidades analíticas que ela implica. A afirmação segundo a qual aquilo que obriga na verda-de é o verdadeiro em si mesmo oculta e excluí da análise uma distinção que é muito importante. Segundo Foucault, é preciso não confundir duas coisas: “de um lado, o princípio segundo o qual o verdadeiro é um index sui, quer dizer, entendido na significação propriamente espinosista de que somente a verdade pode mostrar legitimamente o verdadeiro ou, em todo caso, que apenas o jogo do verdadeiro e do falso pode de-monstrar o que é a verdade. De outro lado, que o verdadeiro seja index sui, não quer dizer, entretanto, que a verdade seja rex sui, que a verdade seja lex sui, que a verdade seja judex sui. Ou seja, não é a verdade que é detentora e criadora dos direitos que ela exerce sobre os homens, das obrigações que esses têm a seu respeito e dos efeitos que eles esperam dessas obrigações, uma vez que e na media em que se acoplam. Não é a verdade que administra seu próprio império, que julga e sanciona aqueles que a obedecem e desobedecem. Enfim, não é verdade que a verdade não constringe a não ser pela verdade.” (Id.) Desta forma, não é porque a verdade é o índice de si, verum index sui, não é porque a verdade ateste por si mesma e, no ato de atestar, revela, derrota, suprime o que lhe é oposto, que ela seja também, extensivamente, soberano de si, legislador de si, juiz de si. Seja qual for o raciocínio, seja qual for a evidência que o recubra, seja qual for sua intensidade demonstrativa e a constância da sua proposição, “existe sempre e é preciso sempre supor uma certa afirmação que não é da ordem da lógica, da constatação ou da dedução; uma afirmação que não é da ordem do verdadeiro e do falso, mas que é muito mais uma espécie de engajamento, de profissão que consiste em dizer: é verdade, logo, eu me inclino” (Id.).

Este “logo” [donc], segundo Foucault, não pertence à lógica e não repousa sobre nenhuma evidência, nem tampouco é unívoco. Ao contrário, se apresenta como uma proposição um tanto enigmática e um fenômeno de tipo histórico, muito mais do que uma conseqüência inerente à lógica. “Nesse ‘logo’ que liga o ‘é verdade’ e o ‘eu me inclino’, e que confere o direito à verdade de dizer: você é forçado a me aceitar porque eu sou a verdade. Nesse ‘logo’, nesse ‘você é forçado, você é constrangido, você deve se inclinar’, nesse ‘você deve’ da verdade existe qualquer coisa que não pertence à verdade em si mesma. O ‘você deve’

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em termos de verdade, imanente a manifestação da verdade, é um pro-blema que a ciência por si mesma não pode justificar e dar conta. Esse ‘você deve’ é um problema histórico-cultural, creio, fundamental.” (Id.) Foucault dá o seguinte exemplo. Imagine-se dois lógicos discutindo e a maneira pela qual o raciocínio conduzirá uma certa proposição a um ponto em que será reconhecida por ambos como verdadeira, ainda que um deles no início da discussão tenha negado a verdade dessa propo-sição. O lógico que, no início da discussão, nega a verdade da proposi-ção, mas que ao final a reconhece, dirá, explícita ou implicitamente: é verdade, logo, eu me inclino. Então, o que se passa? Segundo Foucault, duas coisas bem distintas. De um lado, o que faz um dos lógicos dizer “é verdade”, é simplesmente o fato de que a proposição é lógica: a lógica escolhida, com suas regras, seus axiomas, sua gramática etc., foi tal que a proposição aparece finalmente como verdadeira. Em outras palavras, para que uma proposição seja verdadeira, basta, é suficiente e é necessário que exista a lógica com suas regras de construção e de sintaxes, seus símbolos, sua gramática etc. Assim, uma das proposições é reconhecida como verdadeira não porque os dois debatedores são lógicos, mas porque a proposição está em maior conformidade com a lógica previamente adotada: “é a lógica, definida na sua estrutura par-ticular, que vai assegurar o fato de que a proposição seja verdadeira.” (Id.) Mas, de outro lado, algo muito distinto se dá quando se diz “é verdade, logo, eu me inclino”: “esse ‘logo’ não pertence à lógica. Não é a verdade da proposição que o constringe efetivamente, mas é pelo fato dele ser lógico, ou melhor, é na medida em que ele faz lógica (não é seu estatuto de lógico que faz com que ele se incline, ele poderia não ser lógico de profissão e se inclinaria igualmente: é porque ele faz lógica). Quer dizer, é porque ele se constituiu a si mesmo, ou porque ele foi convidado a se constituir a si mesmo como operador em um certo número de práticas, ou como parceiro em um certo numero de jogos que, encontrando-se desse modo no jogo da lógica, o verdadeiro será considerado como vinculativo, por ele mesmo e sem outra con-sideração, como valor constringente.” (Id.)

A tradição filosófica do Ocidente tomou a conjunção cartesiana ‘logo’ colocada entre o “eu penso” e o “eu existo” como uma coisa te-oricamente inatacável. Sem perceber, entretanto, que o logo cartesiano ocultava um segundo logo implícito e que é, precisamente, aquele que diz “é verdade, logo, eu me inclino”. Esse logo implícito pertence aos regimes de verdade e não é redutível ao caráter intrínseco do verdadeiro, mas, ao contrário, resulta da aceitação do regime de verdade pelo sujeito.

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“Para que esse regime de verdade seja aceito é preciso que o sujeito que pensa seja qualificado de uma certa maneira. Esse sujeito pode perfeitamente ser submetido a todos os erros possíveis, a todas as ilusões possíveis dos sentidos; pode até mesmo ser submetido a um raciocínio imperfeito que o engana. Não obstante, existe uma condição para que a máquina funcione e para que o ‘logo’ do ‘eu penso, logo, existo’ seja um valor provável: é preciso que esteja vinculado a um sujeito que possa dizer: ‘quando isso for verdadeiro, e evidentemente verdadeiro, eu me inclinarei’. É necessário um sujeito que possa dizer: ‘é evidente, logo, eu me inclino’. É preciso um sujeito que não seja louco.” Daí a exclusão da loucura como fato fundamental para a organização dos regimes de verdade no Ocidente. Se não existe soberania em geometria, se para a prática da geometria não é útil nem mesmo necessário que exista uma visão principesca e soberana, tampouco “é preciso haver visões da loucura na filosofia ou em qualquer outro sistema racional. Não é preciso existir loucos, quer dizer, não é preciso existirem pessoas que não aceitem o regime de verdade.” (Id.)

Nesse momento, Foucault introduz sua postura anarqueológica que consiste em, ao invés de tomar a história da ciência para mostrar como os regimes de saberes têm por função efetivamente coagir os homens, mas fazendo-o de modo a reduzir neles suas presunções, des-fazendo seus sonhos e fantasias, celebrando seus desejos ou desenrai-zando suas representações. Ao contrário, uma história anarqueológica consiste em negar, de saída, o direito de obrigação e a força de coerção que o verdadeiro pretende sobre os homens. E para isso, é deslocada a ação do “é verdadeiro” para a força que ele implica. “Uma história deste tipo não seria consagrada ao verdadeiro na sua função, digamos, de desenraizamento do falso e de rompimento com todos os laços que o encerra, mas seria uma história consagrada à força do verdadeiro e à ligação pela qual os homens se encerram, pouco a pouco, eles mesmos na e para manifestação do verdadeiro.” (Id.) Na medida em que a força de uma verdade não está no seu grau de racionalidade, trate-se ou não dos atos de fé na exomologese cristã ou da certeza no cogito cartesiano, uma analítica dos regimes de saberes ou, aquilo que Foucault chamou de anarqueologia dos saberes e dos conhecimentos científicos e não científicos, consiste não em “estudar de modo global as relações do poder político e dos saberes e dos conhecimentos científicos” , mas “estudar os regimes de verdade, quer dizer, o tipo de relação que vincula entre si as manifestações de verdade e seus procedimentos, e os sujeitos que são neles os operadores, as testemunhas e, eventualmente, os objetos.” (Id.)

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O neologismo anarqueologia3 foi introduzido por Foucault para ensaiar em que medida a anarquia e o anarquismo podem sustentar e fazerem funcionar um discurso crítico contra o poder. A perspectiva anarque-ológica integra, a partir dos anos 1980, um conjunto mais amplo de pesquisas sobre a noção do “governo dos homens pela verdade” iniciada por Foucault no seu curso ainda inédito Du gouvernement des vivants.

A anarquelogia tornou mais operatório o tema saber-poder ao recusar ver na política simplesmente uma guerra por outros meios e ao levar em consideração a multiplicidade dos regimes de verdade para afir-mar que todos esses regimes comportam modos específicos de vincular de maneira constringente a manifestação do verdadeiro e os sujeitos que nela operam. O que está em jogo não é a história do verdadeiro, mas uma história da força do verdadeiro, uma história do poder da verdade, uma história da vontade de saber no Ocidente. “Como os homens, no Ocidente, foram ligados ou conduzidos a se ligarem à manifestações bem particulares de verdade, precisamente nas quais são eles mesmos que devem ser manifestados em verdade? Como o homem ocidental foi ligado à obrigação de manifestar em verdade isso que ele é? Como foi ligado, de qualquer modo, a dois níveis e de dois modos: de um lado à obrigação de verdade, e de outro, ao estatuto de objeto no interior desta manifestação de verdade? Como foram eles ligados à obrigação de se ligarem eles mesmos como objetos de saber?” (Id.) Foi essa espécie de double bind que o método anarqueológico procurou analisar tornando explícita a maneira pela qual os regimes de verdade estão, por sua vez, sempre ligados a outros regimes: regimes políticos, regimes jurídicos, regimes penais etc. Explicitar a não separação, mas, ao contrário, as co-nexões sempre existentes entre o político e o epistemológico, permite compreender como um regime penal é também um regime de verdades sobre o criminoso, como um regime da loucura implica um regime de verdades sobre o louco e, finalmente, como um regime de governo implica ao mesmo tempo e necessariamente um regime de verdades sobre os súditos, sobre os cidadãos, sobre os sujeitos do governo, seus direitos e suas obrigações. Enfim, compreender como o sujeito não se encontra apenas preso nas relações de produção, mas também nos procedimentos de manifestação do verdadeiro, articulados em regimes de verdade – que, por sua vez, articulam-se com vários outros regimes – penais, jurídicos, governamentais etc. Foi a partir disso que o governo

(3) Landry (2007:31-45), escreveu seu artigo apoiando-se na transcrição integral do curso de Foucault, não obstante não faz menção ao termo. No entanto, é citado como “anarcheology of power” em Szakolczai (1998: 247).

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dos vivos exigiu, “além de atos de obediência e de submissão”, atos de subjetivação da verdade manifestada nos procedimentos de veridição através nos quais subjetividade e verdade foram indexados.

GenealoGia da obediênCia

A anarqueologia re-atualiza o que foi uma das grandes preocu-pações na reflexão anarquista de Proudhon (1947:15) e que consiste no questionamento: “do que procede, na sociedade humana, essa idéia de autoridade, de poder; essa ficção de uma pessoa superior, chamada Estado? Como se produz essa ficção? Como se desenvolve? Qual é sua evolução, sua economia?” Para Proudhon, a filosofia é tão incapaz de demonstrar o governo quanto de provar a existência de Deus, e a autoridade política, tanto quanto a divindade religiosa, é matéria de fé. Então, do que procede, na nossa sociedade, o fato de que os indivíduos foram constrangidos, em seus discursos e em suas práticas, a declararem para o poder, pelo poder e com o poder, não simplesmente “sim, eu obedeço!”, mas foram igualmente constrangidos à acrescentarem a esse ato de consentimento frágil esse outro ato de convicção que o reforça e o consolida: “eu que obedeço: eis aquilo que sou, o que quero, o que faço, o que penso”? (FOUCAULT;1980, loc. cit.) Do que procede esta predisposição mental que fez, segundo Proudhon (1979:87), com que “até nossos dias, as revoluções mais emancipadoras, e todas as eferves-cências da liberdade, terminassem constantemente com um ato de fé e de submissão ao poder”? Procede do fato, para Proudhon (Ibid.:245), que o homem, envolvido por um “sistema teológico-político, recluso nessa caixa hermeticamente fechada, da qual a religião é a tampa e o governo o fundo, tomou os limites desse estreito horizonte pelos limites da razão e da sociedade”. Procede, diz Foucault, destas práticas curiosas encontradas na experiência cristã da carne, descritas por Jean Cassien, padre do séc. IV, como procedimentos no qual o monge é admitido no monastério e suas finalidades. Ambos remetem esta procedência a um tipo de relação coercitiva entre verdade e subjetividade que é historicamente localizável.

Vejamos. Segundo Cassien (1872:53 et seq.), quando se quer entrar nas comunidades cenobitas é preciso passar por três momentos sucessivos. Primeiramente, durante dez dias o noviço deve permane-cer na porta do monastério onde ele será sistematicamente rejeitado e desprezado por todos, ele será coberto de injúrias e de reprovações pelos outros monges. Depois desses dez dias de estágio na humilhação,

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na rejeição e na abjeção, se o noviço provou que pode resistir, ele é aceito. Começa a segunda fase da sua preparação. Durante um ano ele vai permanecer, não no monastério, mas na entrada do monastério, nos cômodos reservados ao acolhimento dos estrangeiros e das pessoas de passagem, ele é colocado lá sob a direção de um mais velho encarregado dos serviços. Somente no fim deste um ano ele vai ser admitido no monastério, mas ele é novamente confiado a um mais velho encarre-gado de dez jovens noviços sobre os quais ele deve instituir e governar, ou seja, deve assegurar a educação, a formação e o governo. Nestas três fases: dez dias na porta do monastério, um ano na entrada do monas-tério e, enfim, o período de tempo indeterminado durante o qual ele fará parte de um grupo de dez noviços governados, nestas três fases de preparação, diz Foucault, existe uma convergência de objetivo. Na porta do monastério, ao seu pedido de ingresso, lhe é oposto a bufaria, a humilhação, a recusa, a rejeição, práticas próximas da penitência que têm por função constituir provas. O noviço deve mostrar sua capacidade de suportar e deve mostrar sua vontade de entrar no monastério. É provada sua paciência de receber as injúrias e sua capacidade de aceitar tudo que se pode lhe impor, é provada sua submissão. Enfim, durante o período indefinido sob a direção de um mestre, sua formação recai essencialmente sobre dois pontos: o noviço deverá aprender a vencer sua vontade e para isso o seu mestre deverá lhe dar ordens que serão tanto quanto possível contrárias as suas inclinações. O mestre deverá ir na contra-corrente das inclinações do noviço para que ele obedeça e para que, nessa obediência, sua vontade seja vencida. Deve-se, portanto, ensinar-lhe obedecer. Mas trata-se de uma obediência exaustiva e per-feita, capaz de fazer o noviço percorrer pelo discurso todos os segredos de sua alma; capaz de fazer com que os segredos da sua alma venham à luz e que, neste emergir à luz, a obediência ao outro seja total, exaustiva e perfeita. Obedecer tudo e nada esconder, tudo dizer de si mesmo e nada esconder, nada querer por si mesmo e obedecer em tudo: é a junção destes dois princípios que, segundo Foucault, está no coração não somente da instituição monástica, mas de toda uma série de práticas e de dispositivos que irão informar o que constitui a subjetividade no Ocidente. A técnica para o estabelecimento desta obediência exaustiva, total e perfeita, é a de dar ordens opostas as inclinações do noviço, ou seja, é a obediência por ela mesma. Cassien insiste no fato de que o mestre é frequentemente um monge inculto, sem erudição, um rústico, e que a direção no monastério não implica uma qualificação precisa do mestre. Ao contrário, ele pode aparecer perfeitamente como mau,

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injusto, dando ordens as mais detestáveis. Porque o simples fato de obedecer conferirá mérito a quem obedece e terá um efeito positivo. Não é a qualidade da ordem, não é igualmente a qualidade de quem ordena que dará valor a relação de obediência: é simplesmente o fato de obedecer qualquer que seja a ordem. Cassien cita algumas ordens absurdas como exemplos que demonstram o espírito e a sinceridade da obediência. Havia um caso famoso do abade Jean, habitante de Lycon, cidade de Thébaïde. Cassien ressalta sua “admirável obediência” com a seguinte narrativa: “seu superior apanha na sua dispensa um pequeno bastão talhado para instrumento de cozinha e que, não mais servindo, estava não somente seco como quase apodrecido. Finca-o na terra na presença de Jean e lhe ordena buscar água duas vezes por dia para irrigá-lo, afim de que a umidade desenvolva nele raízes, que o verdeje, que sua folhagem conforte os olhos e que sua sombra beneficie àqueles que fossem ali repousar durante o calor do verão. O discípulo recebe a ordem com o respeito ordinário, sem pensar na inutilidade da sua obediência. Saía todos os dias à procura de água a mais de duas milhas e jamais deixou de irrigar o bastão durante um ano inteiro; a doença, as festas, as ocupações mais empenhativas que poderiam desobrigá-lo, mesmo os rigores do inverno, não o impediram uma única vez de fazer o que tinha sido ordenado. Seu velho mestre observava em silêncio a assiduidade de seu discípulo e a maneira como obedecia com grande simplicidade de coração e humildade sincera, sem nenhuma feição de contrariedade no rosto, sem murmurar ou raciocinar, como se a ordem tivesse vinda do céu”. Ao que Cassien (Ibid.:71-72) acrescenta, “o jovem religioso, formado em uma semelhante escola, fez tamanhos progressos nessa virtude e brilhou de tal maneira por sua humildade, que sua re-putação se espalhou como bom odor por todos os monastérios.”4

Portanto, é a obediência por ela mesma que produz a obediência total e exaustiva. Como notou Foucault, não se trata de uma obediência que se obedece por um objetivo colocado no exterior da relação de obediência. Obedece-se para poder se tornar obediente, para produzir um estado de obediência permanente e definitivo que seja capaz de durar mesmo quando não há ninguém a quem se deva obedecer ou mesmo antes que alguém formule uma ordem. Estado de obediência significa, portanto, que a obediência não é uma maneira de reagir a uma ordem, que a obediência não é somente uma resposta a um outro,

(4) Cf. o mesmo exemplo citado em Foucault (2004a:179-180).

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mas que a obediência é e deve ser uma maneira de ser, uma maneira de ser anterior a qualquer ordem e que é mais fundamental que qualquer situação de comando. Consequentemente, o estado de obediência antecipa, de alguma maneira, as relações com o outro, e antes mesmo que esse outro esteja presente e que ordene, já se estará em estado de obediência. Na direção entre noviço e mestre, a obediência não é uma passagem na vida. Não existe uma parte da vida durante a qual se obedece e depois uma outra parte durante a qual não mais se obede-ce: a obediência não é uma passagem, mas um estado no qual se deve permanecer até o fim da vida e sob o olhar de quem quer que seja. Por essa razão Cassien caracterizou o que ele chamou de submissão como o fato de ser sujeito. O mundo do monge deve ser uma trama na qual cada um dos seus feitos e dos seus gestos devem ser inscritos como respostas a uma ordem ou como respostas a uma permissão.

Foi sobretudo através do domínio da sexualidade que Foucault demonstrou a força da verdade na problemática do governo de si e do governo dos outros. É com relação ao sexo que governo e verdade aparecem constantemente problematizados na experiência do Ociden-te, na medida em que não foi possível governar o sexo pela força ou pela violência, mas foi necessário governá-lo, dominá-lo ou limitá-lo através de uma relação com a verdade. No curso Subjectivité et Vérité, de 1981, Foucault afirma que a propósito da loucura, da doença e do crime, os tipos de práticas implicando a existência e o desenvolvimento de discursos verdadeiros sobre a razão alienada, sobre o corpo doente e sobre o caráter criminoso, estabeleceram uma relação fundamental-mente negativa e de rejeição na qual a questão da verdade da loucura, da doença e do crime, foi colocada unicamente a partir dessa rejeição e dessa recusa. Com a sexualidade o problema é diferente. Qualquer que seja o sistema de regulação, o sistema de desqualificação, o sistema de repressão ou de rejeição no qual a sexualidade foi exposta, ela não é jamais o objeto de rejeição sistemática, fundamental e constante. Mas, ela é objeto de um jogo sempre complexo de recusa e de aceitação, de valorização e de desvalorização. Além disso, nos domínios da loucura, da doença, do crime, o essencial do discurso verdadeiro é tido como vindo do exterior sobre o sujeito, por um outro: é na medida em que não se é louco, é na medida em que o médico não é doente, é na me-dida em que aquele que fala do crime não é criminoso, é deste modo que um discurso verdadeiro pôde ser mantido sobre a loucura, sobre a doença e sobre o crime. Já o discurso verdadeiro sobre a sexualidade foi institucionalizado, diz Foucault (1981:fita I, lado B, 07/jan.), em

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grande parte, como discurso obrigatório do sujeito sobre ele mesmo: “foi sobretudo a partir de práticas de confissão que o discurso verdadeiro sobre a sexualidade se organizou. Práticas de confissão sobre uma parte de si mesmo que pode ser certamente detestada e que pode ser objeto de purificação, mas que é indissociável disso que se é”.

Então, a partir destes domínios da loucura, da doença e do crime, e em relação à problemática do governo pela verdade, a questão que é preciso colocar, segundo Foucault, é a de saber qual experiência é possível fazer de si mesmo e dos outros no momento em que existe alguém que tem o direito ou o poder de dizer: “ele é louco, vocês são doentes, aquele é criminoso”. No domínio da sexualidade, o problema que se coloca é outro: qual experiência é possível fazer de si mesmo, ou qual é o tipo de subjetividade que está ligada ao fato de que se está sempre na possibilidade e no direito de dizer: “sim, é verdade: eu desejo!” (Id.) Foi nesse momento em que o indivíduo foi chamado a manifestar e a se reconhecer no seu próprio discurso como sendo ele mesmo um sujeito de desejo, que pela primeira vez na história do Ocidente foi colocada a necessidade de uma relação de obediência total, perfeita e exaustiva.

Segundo Foucault, quaisquer que tenham sido as formas que puderam tomar, esta obrigação de dizer o verdadeiro sobre si mes-mo, e de se reconhecer nesta verdade, jamais cessou nas sociedades ocidentais: nós somos obrigados a falar de nós mesmos para dizer a verdade. Nessa obrigação de falar de si, o discurso de verdade consti-tuiu uma das grandes linhas de força na organização da subjetividade: ele é solicitado e incitado por todo um sistema institucional, cultu-ral, religioso e social. Se na tragédia de Sófocles, diz Foucault, para conhecer a verdade sobre si mesmo, Édipo teve que extorqui-la do alto do seu poder, da boca de um escravo, nós, em nossa atualidade, para sermos obrigados a dizer a verdade sobre nós mesmos, não temos necessidade de ser rei e nem de interrogar qualquer escravo: basta simplesmente nos interrogar no interior de uma estrutura de obediência sob o olhar de alguém. Essa verdade que trazemos no fundo de nós mesmos e que foi acoplada profundamente no segredo de nós mesmos, somos indefinidamente constrangidos a mostrá-la a um outro. Se isso ocorre é por que esta fixação em discurso da verdade do que somos não constituiu simplesmente uma obrigação essencial, mas foi também uma das formas primeiras, e continua sendo uma das formas fundamentais, da nossa própria obediência (FOUCAULT:1980, fita XII, lado B, 26/mar.).

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Resumo

Na produção de conhecimento sobre as sociedades africanas são utilizados uma série de conceitos que têm carecido de uma devida problematização. De facto, vulgarizam-se expressões como africanismo, africanidade ou afrocentrismo, conceitos que são descontextualizados de inúmeros factores que condicionam a produção de conhecimento, entre os quais os interesses económicos e as agendas de investigação, questões políticas e nacionalistas, ou simplesmente os processos de competição pelo acesso a recursos de poder. O texto em questão pretende analisar uma série de pressupostos e condições sociais de investigação que es-truturam a produção de conhecimentos sobre as sociedades africanas. Trata-se de entender a ciência como um processo de construção social e de valorizar o processo de auto-reflexão por parte dos actores que produzem o conhecimento.

Palavras-chave: Epistemologia – Afrocentrismo – Estudos Africanos.

Sociologia de Cobras e Latão: Reflexões sobre a Produção de Conhecimento

das Sociedades Africanas

João Feijó

Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa

“se não escrevermos sobre ornamentos de latão ou cobras, não acreditam que estamos a escrever sobre África”

Wole Soyinka1

(1) Escritor nigeriano, entrevistado por Nelson Saúte e Pedro Rosa Mendes, in Público (1849), 1 de Abril de 1995, p.29 (cf. SERRA, 1997: 141).

Y

Travessias 2008210

Quando falamos em estudos africanos, normalmente estamos a referir-nos não apenas a uma disciplina, mas a todo um leque de dis-ciplinas cujo objecto de estudo é África. Entre estas incluem-se disci-plinas como a história africana, a antropologia e a sociologia africanas, a linguística africana, a política africana ou a filosofia africana, entre outras. Na produção de conhecimento sobre o continente africano são utilizadas expressões como africanismo ou africanista, africanidade e afrocentrismo muitas vezes carecendo da merecida problematização. Os conceitos pressupõem a existência de uma especificidade sócio-cultural africana, merecedora por isso de uma preocupação especial ao nível da produção de conhecimento. A utilização destes conceitos, por referência à análise de um objecto marcado por fortes tensões sociais (como é o continente e as sociedades africanas), merece uma reflexão mais cuidada dos pressupostos que estão por detrás da sua utilização.

1. do estudo à defesa do Continente afRiCano – afRiCanismo e afRiCanistas

O termo africanista é frequentemente utilizado no senso co-mum ou até na literatura científica. Para Alain Ricard (2004: 178), o africanista constitui aquele que estuda ou que fala as línguas de África, ou que é especialista em línguas e civilizações africanas. O dicionário da língua portuguesa da Porto Editora alarga a definição de africanista à “pessoa que tem negócios na África ou vive lá há muitos anos”. Da mesma forma, o conceito de africanismo comporta em si fortes ligações com o continente africano. A partir da definição de africanismo nos dicionários de língua francesa e inglesa, Benoîte de L’Estoile (1997: 19) constata a existência de duas perspectivas distintas sobre o conceito. Assim, no Grand Robert de la langue fran-çaise [2º éd., 1985], o termo africanisme reporta aos “écrivains latins nés en Afrique” ou ao conjunto das ciências humanas aplicadas ao estudo de África. Na definição francesa, o africanismo representa um reagrupamento de disciplinas que encontram a sua coerência na referência a um objecto geograficamente definido (ESTOILE, 1997: 19). Já no Oxford English Dictionary [2nd ed, 1989], o termo africanism refere-se a um idioma ou a um modo de falar próprio de África; ou às qualidades e características africanas. Na definição anglo-saxónica, o conceito pode também remeter para um nacionalismo africano, nomeadamente para uma “policy which advogates that the indigenous inhabitants should have political control in África”.

Sociologia de Cobras e Latão 211

Desta forma, enquanto que a versão francesa faz referência ao estudo e ao conhecimento de algo que é supostamente específico e diferente – o que confere ao conceito uma dimensão exótica –, na versão inglesa não é evocado o conhecimento de África. Para Estoile (1997: 19), esta diferença conceptual traduz duas formas distintas de percepcionar o saber: em Inglaterra encontram-se especialistas sobre África que se podem (auto)-denominar de africanistas, mas desse afri-canismo não se desenvolveu um domínio específico do saber.

Alain Ricard (2004: 178-179) enuncia o esforço de um conjunto de africanistas, geralmente missionários da primeira metade do século XX, cujas intervenções no terreno estiveram inseparadas da defesa das civilizações e das culturas africanas2. Trata-se de trabalhos que contri-buíram para o desenvolvimento de diversos domínios científicos, entre os quais a etnologia, a antropologia (linguística) ou a geografia. Não obstante os esforços realizados, estas áreas científicas não deixaram de ser instrumentalizadas para fins coloniais (LECLERC, 1972; COPANS, 1975). A sistematização do conhecimento das sociedades africanas era muitas vezes financiada pelas administrações coloniais, visando o controlo das relações sociais e a manipulação das populações africanas, de acordo com os interesses dos europeus3. A regulação ou a obriga-toriedade do trabalho africano, sob tutela das administrações coloniais, baseava-se na ideia de que os africanos eram fundamentalmente dife-rentes dos europeus e, consequentemente, necessitavam de instituições políticas e sociais específicas (MACAMO, 2000: 15). Esta associação da antropologia como saber do colono, e até como arma do colonialismo, frequentemente veiculada na literatura africana, peca por confundir em excesso a disciplina com as práticas coloniais, ou com o oportunismo de alguns antropólogos. As leituras das ciências decorrentes deste novo paradigma, contestatário e também ele ideológico, não conferem des-taque ao contributo da antropologia ao nível do relativismo cultural4

(2) Alain Ricard (2004: 178-179) exalta o exemplo de Dietrich Westermann (1875-1956), missionário no Togo (1900-1905), na época uma colónia alemã, que aprendeu as línguas locais, realizou uma gramática e um dicionário, incitando à escrita nesses idiomas. Abrindo caminho à antropologia linguística, tratou-se de uma abordagem que conferiu particular importância à tradução e alfabetização, proporcionando o reconhecimento e desenvolvimento de comunidades (e das culturas) africanas.

(3) As sociedades de geografia conferiram fortes impulsos à produção de conhecimentos, mas colocaram a ciência ao serviço de interesses políticos e nacionalistas, de forma a legitimarem o direito dos diversos países europeus à administração das colónias africanas. Este processo de colocação da ciência ao serviço da política não deixou de se prolongar pelo período pós-independência, desta vez ao serviço dos interesses das novas elites dirigentes africanas ou das novas agendas de desenvolvimento.

(4) Melville Herskovits (1895-1963), fundador do primeiro programa interdisciplinar de estudos africanos nos Estados Unidos, constitui uma das figuras de referência da antropologia moderna. Na linha de Franz Boas, em Man and His Works Herskovits (1952) sustenta que as crenças e as actividades Humanas devem ser compreendidas no contexto

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(HERSKOVITS, 1952), da desmistificação do conceito de raça ou da valorização da cultura do Outro (LEVI-STRAUSS, 1995).

Num contexto de crítica aos regimes coloniais e estreitamen-te associados a processos nacionalistas e independentistas, a partir da década de 1960 realizaram-se os primeiros congressos internacionais, promovidos pelos africanistas de origem africana5. Trataram-se de po-sições militantes e fortemente politizadas, que procuravam salientar o contributo africano no Mundo e combater os estigmas e os preconceitos sobre as populações de origem africana. Num contexto marcado por elevadas assimetrias sócio-económicas é inevitável que o conceito de africanista tenha desenvolvido uma dimensão racialista (RICARD, 2004: 178). Como se verá, explicar as diferenças sociais a partir de supostas diferenças biológicas pode constituir uma estratégia, num contexto de luta pela posse de recursos de poder. Ao serviço de poderes coloniais ou de movimentos independentistas, de interesses europeus ou africa-nos, um facto é que as investigações dos africanistas (na sua concepção francófona) se estruturaram em torno de representações do Mundo e de projectos políticos muitas vezes incompatíveis. É neste contexto de competição que Hountondji (2008: 154) estabelece uma distinção, no campo da filosofia, entre africanistas (no sentido de estudiosos de África) e africanos. Para o filósofo do Benim, muitos dos pensadores ocidentais que escrevem profusamente sobre os sistemas de pensamento africanos deixam de poder ser vistos como pertencentes a uma filosofia africana. Por sua vez, as obras dos seus pares africanos passam a fazer parte de uma escrita africana, neste caso sobre a etnofilosofia e, por conseguinte, parte de uma literatura filosófica africana. Esta constitui-ção de um saber autóctone não deixa de traduzir um nacionalismo cultural (HOWE, 1998: 1) levantando uma série de questões sobre os critérios que estão subjacentes a essa conceptualização6 . A identificação de uma filosofia africana com a bibliografia ou a literatura filosófica

da cultura que lhes dá origem. Incrementando o princípio da subjectividade, à luz do relativismo cultural as culturas não podem ser avaliadas por um único critério de racionalidade, mas de acordo com o contexto em que se inserem. Neste novo paradigma está implícito a crítica ao etnocentrismo e a uma suposta superioridade Ocidental, sublinhando-se a dignidade inerente a cada corpo de costumes e a necessidade de tolerância e de respeito entre as diversas culturas.

(5) Sibeud e Piriou (1997: 14) destacam os congressos de 1962 em Accra, capital do primeiro país africano a tornar-se independente; de 1967 em Dakar, capital da “negritude”; de 1973 em Addis-Abeba, capital do único país do continente a ter escapado à colonização; ou de 1978 em Kinshasa, capital de “l’authenticité africaine”.

(6) Sobre a definição do conceito de africano poderiam ser colocadas uma série de questões relacionadas com a territorialidade – o africano constitui unicamente aquele que nasceu em África ou abrange os que nasceram na diáspora? Os imigrantes europeus que residem em África podem ser considerados africanos? – ou da hereditar-iedade – o saber dos africanos de descendência europeia pode ser considerado africano?

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produzida por africanos não pode ignorar a existência de contradições, de debates internos e de tensões intelectuais, no panorama científico e académico africano.

2. CobRas e oRnamentos de latão – a ConstRução soCial da afRiCanidade

Enquanto que o africanismo, pelo menos na sua interpretação francesa, se relaciona com o estudo de África ou da cultura africana, o conceito de africanidade (ou africanity) é utilizado para exprimir os costumes e as tradições das populações oriundas de África, residindo no continente ou na diáspora (ASANTE, 2001: 80). À luz desta con-cepção, a africanidade reporta à manifestação ou à detenção de uma cultura africana.

No processo de procura dos traços característicos e específicos das populações do continente, a africanidade não deixa de ser associada ao conceito de negritude . Emblematicamente, Senghor (1964: 102) afirmava: “l’émotion est nègre comme la raison est hellène”8. Nesta visão essencialista da cultura, os conceitos de negritude e de africanidade não deixam de ser construídos na oposição a um Outro não africano ou na negação de uma posição subalterna, adquirindo um carácter político e pan-africanista9. De facto, após a segunda guerra mundial10, enraízam-se e desenvolvem-se centenas de textos (políticos e literários) a partir dos

(7) A negritude constitui um conceito de origem francófona, desenvolvido por indivíduos de descendência africana, nascidos nas ex-colónias francesas (como Léopold Senghor do Senegal, Léon Damas da Guiana francesa ou Aimée Césaire da Martinica). Estes intelectuais criaram um movimento cujo objectivo se orientava para a união de todos os “negros”, de forma a combater a discriminação a que eram submetidos e a revalorizar o seu papel político e sócio-cultural. A negritude constituía uma reacção ao processo de assimilação cultural do período colonial e traduzia um conjunto de traços que se defendia serem característicos do “negro”, como a solidariedade, a capacidade de emoção ou a importância conferida ao simbólico e ao sagrado. Defensora da ideia de que a cor da pele deflagra uma identidade comum, esta ideologia foi criticada pelo facto de veicular um essencialismo africano, imaginado por uma elite intelectual, alheia à heterogeneidade das populações do continente. A negritude constitui, por isso, não só uma reacção como uma extensão das ideologias racistas coloniais.

(8) Senghor exprime uma diferença fundamental entre europeus e africanos a partir da oposição destes dois conceitos. No vocabulário de Senghor, a emoção aparece como a antítese da razão, que traduz, por sua vez, o materialismo e um instinto de dominação europeu.

(9) Foi precisamente em torno do prefixo “pan”, nomeadamente do objectivo de abarcar todo o continente e de promover a unidade e a solidariedade entre os Estados africanos, que se constituiu, em 1963, a Organização da Unidade Africana (OUA). Para além desses objectivos, a OUA pretendia defender a soberania e a independência dos Estados africanos, bem como erradicar todas as formas de colonialismo no continente.

(10) William Du Bois constituiu um dos grandes precursores da africanidade, ainda em finais do século XIX. Por essa altura, as ciências sociais encontravam-se marcadas por pressupostos etnocêntricos, registando por isso uma desvalorização das culturas africanas. No norte dos Estados Unidos, as comunidades de descendência africana – The Philadelphia Negro (1899) – apresentavam-se segregadas em termos sociais e económicos. O trabalho de Du Bois foi por isso profundamente político, clamando por uma unidade pan-africana. Ainda que assentando em dimensões económicas e sócio-culturais, o conceito de classe por si utilizado encontra-se próximo de uma etno-classe ou de uma classe racial (Monteiro, 2001: 202). O pensamento de Du Bois teve forte impacto nas ciências sociais, marcando a pesquisa, o activismo e a reflexão ao longo do século XX.

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quais se procuram ultrapassar as divisões internas no seio do continente (de cariz nacional ou regional), propondo assim a união das populações e a valorização das culturas e usos africanos. O conceito de africani-dade aparece, desta forma, enquadrado em estratégias de luta política, delineadas por uma elite africana dominante, letrada e, paradoxalmente, ocidentalizada11. As noções de cultura e de tradição são inseridas numa retórica de luta pelo acesso a recursos de poder.

Se a africanidade constitui uma construção social, o discurso sobre a africanidade, bem como a difusão de debates e reflexões acerca da sua essência contribuem para a (re)criação e para a alimentação dessa africanidade. Trata-se daquilo que poderia ser definido de africanização, nomeadamente de um processo em curso, de imaginação e de cons-trução teórica de uma essência ou de uma cultura africana.

3. o afRoCentRismo – PeRsPeCtivas de ConHeCimento CentRadas em áfRiCa

Um terceiro conceito frequentemente utilizado relaciona-se com a perspectiva do conhecimento construído sobre África. Nas últimas décadas têm-se multiplicado trabalhos científicos que fazem a apologia do conhecimento de África sob o ponto de vista das culturas africanas. À luz da definição de Molefi Asante (2001: 72), o afrocentrismo sig-nifica literalmente “placing African ideals and behaviors in the center of any discourse that involves Africans”. Para o autor, enquanto que a africanidade se refere, genericamente, à generalidade dos costumes, das tradições e das características dos africanos na diáspora, o afrocentrismo represen-ta uma reflexão epistemológica sobre o processo de investigação dos assuntos, directa ou indirectamente associados aos africanos ou a esse continente. Ao contrário da africanidade, o afrocentrismo não constitui uma característica natural das populações africanas, mas antes um pro-cesso reflexivo que tem em consideração as características da cultura africana na produção do conhecimento. Nesta perspectiva ser africano não significa, necessariamente, ser afrocêntrico (ASANTE, 2001: 80).

De uma forma geral, a apologia do afrocentrismo tem sido sustentada por um conjunto de quatro factores: pela sub-representação da produção científica de autores africanos no contexto mundial; pela necessidade

(11) A maioria dos intelectuais africanos que encabeçaram os movimentos independentistas formaram-se em universidades europeias ou norte-americanas, expressavam-se fluentemente numa ou mais línguas europeias e adoptavam hábitos culturais «estrangeiros» à cultura africana.

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de definição das agendas de investigação a partir de interesses africanos; como uma reacção a uma importação acrítica de conceitos pensados em realidades ocidentais; e pela necessidade de adaptação das metodologias de investigação a realidades africanas.

No que respeita à formação e à produção científica, as univer-sidades e os investigadores africanos ocupam, de facto, uma posição periférica no panorama mundial. Como constata Jean-Pascal Daloz (1998: 105-107) os investigadores africanos estão claramente sub-representados nas principais conferências internacionais, nas principais revistas especializadas ou no corpo docente das melhores universidades do Mundo. Esta situação é explicada pelas dificuldades económicas dos Estados africanos, pelos escassos orçamentos atribuídos às universidades, pelas carências bibliotecárias e pelo reduzido número de centros de in-vestigação e de pós-graduações, ministradas nas universidades africanas12 . Os baixos salários auferidos pelos professores africanos (sobretudo a sul do Sahara) têm sido responsáveis pela deslocação de muitos profissionais para actividades de consultoria. Neste cenário, os alunos africanos não experimentam as mesmas oportunidades que os congéneres europeus ou norte-americanos, o que tende a reproduzir, nas segundas gerações, as assimetrias e as desigualdades ao nível da produção científica.

No campo da produção científica, os investigadores africanos mais conceituados tendem a publicar os seus artigos em revistas científicas sediadas fora do continente, destinando-se, sobretudo, a leitores não-africanos. Como refere Hountondji (2008: 157), mesmo quando são pu-blicadas em África, a verdade é que as revistas académicas são consultadas por um grupo muito reduzido de leitores, a maioria dos quais oriunda do estrangeiro. Para Hountondji, o uso exclusivo de línguas europeias como veículo de expressão científica não facilita a inserção dos africanos no debate académico. Os académicos africanos participam, assim, numa “discussão vertical” com os parceiros ocidentais, ao invés de entabularem “discussões horizontais” com outros académicos africanos.

Neste contexto, a actividade científica produzida em África tende a ser orientada para o exterior, para as problemáticas teóricas definidas por parceiros ocidentais e para as questões por estes colocadas. Daloz (1998: 112) alerta para a excessiva atenção (na Europa e em África)

(12) Refira-se, contudo, a existência de uma mudança a este nível, registando-se, nos diversos campos do meio académico africano, comunidades científicas regionais, sub-regionais e nacionais de renome. Nos últimos 50 anos multiplicaram-se universidades e centros de investigação no continente africano, alguns dos quais de qualidade internacionalmente reconhecida.

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conferida aos assuntos susceptíveis de financiamento – enquadrados em agendas desenvolvimentistas e em projectos de consultoria – e para a consequente dependência em relação aos interesses das instituições doadoras. É contra uma importação da problematização científica, que um conjunto de vozes vem apelando para a definição das agendas de investigação por parte dos próprios africanos, de acordo com as necessidades teóricas locais. Hountondji (2008: 158) defende o desen-volvimento de uma tradição de conhecimentos em todas as discipli-nas com base em África, onde as questões a estudar sejam estruturadas pelos próprios cientistas e sociedades africanas. A partir da formulação de questões lançadas pelas populações autóctones13, os académicos não-africanos dariam o seu contributo na implementação das agendas de investigação, a partir da sua própria perspectiva e contexto histórico. Emblematicamente, e com base num comentário a uma obra de Michel Cahen14, Elisio Macamo salienta: “Nós os académicos moçambicanos temos que finalmente nos impormos na definição científica do que são os nossos problemas. Não devemos continuar a deixar isso aos outros sob pena da trivialização dos nossos assuntos”. Como contrapôs o an-tropólogo José Pimentel Teixeira, trata-se de uma linha de pensamento que não deixa de estar em continuidade com as teorias dependentistas, de acordo com as quais os males de África advêm sempre do exterior, dos Outros, assumindo por isso um carácter redutor. Está, de facto, por provar, a existência de uma relação de dependência entre a qualidade de uma investigação e o facto de ter sido estruturada por investigadores europeus ou africanos. A constituição destas “agendas africanas” levanta, portanto, uma série de questões, relacionadas com a definição do que são temas do “interesse africano”, com os critérios subjacentes a essa determinação e com as motivações políticas inerentes a esse interesse. Ao clamarem por um saber local, «autóctone»15, os pressupostos afrocêntricos

(13) Trata-se de uma atitude que se apresenta em continuidade com as críticas que se tecem aos investigadores europeus da modernidade, que partiam do princípio que os africanos não tinham consciência da sua própria filosofia e que apenas os analistas ocidentais, que os observavam a partir do exterior, poderiam traçar um quadro sistemático da sua sabedoria (HOUNTONDJI, 2008: 151). O afrocentrismo representa, por isso, um mecanismo de reconhecimento e de valorização da cultura e da produção científica africana. Contudo, ao fazer a apologia de um saber autóctone, o afrocentrismo constitui não só uma reacção, como uma extensão do etnocentrismo colonial.

(14) Michel Cahen. (2004), Os outros. Basileia, P. Schlettwein Publishing. O comentário de Elísio Macamo foi publicado no blog Ideias para Debate http://ideiasdebate.blogspot.com/2006/03/macamo-x-cahen.html (08.03.2006, consultado a 11.10.2008).

(15) Importa, de facto, questionar os critérios subjacentes à definição do que é africano. Quem tem legitimidade para definir essas características? Quando se escreve sobre um saber ou sobre uma perspectiva africana está-se de facto a falar sobre o quê? Da perspectiva de um feiticeiro local, de um camponês, de um delegado sindical ou de um professor universitário? A perspectiva e o saber africano representam, na verdade, uma multiplicidade de experiências, a maioria das vezes contraditórias.

Sociologia de Cobras e Latão 217

escondem em si motivações políticas e até ideológicas. A apologia da africanização das ciências sociais é indutora de um sentimento de ameaça relativamente a cientistas ocidentais, favorecidos que estão ao nível das condições de produção de conhecimento. Marcadas pela precariedade das condições de trabalho e por uma acesa competição pelo acesso a financiamentos, a questão da definição das agendas de investigação não deixa de constituir, nas universidades africanas, um motivo de conflito e até de racialização16.

É sob um ponto de vista afrocêntrico que se contesta a utilidade de pressupostos marxistas na análise de realidades africanas – precisa-mente por se tratarem do produto de uma consciência eurocêntrica, que exclui as perspectivas históricas e culturais sobre África17 (ASANTE, 2001: 73). Outros autores vêm clamando, por vezes de forma apaixo-nada, pela constituição nas ciências sociais daquilo que designam de “Webers africanos”18, de “conceitos africanos” (Asante, 2001: 73) ou de um “discurso moral africano” (LEHMAN, 2001: 332-334). Como se referiu, Hountondji (2008: 155-158) procura formular “problemáticas originais” estribadas numa sólida apropriação do legado intelectual internacional, mas profundamente enraizadas na experiência africana. Da apropriação de tradições de pensamento externas pretendem-se constituir inter-pretações africanas de Descartes, de Marx, de pensadores islâmicos ou, eventualmente no futuro, de filosofias chinesas e indianas e de outras tradições intelectuais provenientes de fora de África.

É de um ponto de vista afrocêntrico, de procura de novas teo-rias, modelos e métodos críticos que sirvam de ponto de referência

(16) De acordo com Carlos Serra (2000: 102-104), a Unidade de Formação e Investigação em Ciências Sociais (UFICS) da UEM esteve alguns dias de Março de 2000 com as aulas paralisadas pelos professores, em protesto contra a forma como a reitoria procedeu na sequência de um documento anónimo, por ela recebido, que mais tarde se provou ter sido escrito por um aluno. O acontecimento, que levou à exoneração da directora foi “mas-sivamente interpretado por certos sectores públicos como uma luta de ‘brancos’ e ‘mulatos’ (UFICS) contra ‘negros’ (Reitoria)”. Alexandrino José, na época director interino do CEA, afirmou a um dos investigadores de Serra que a instituição “(…) está neste momento a ser dirigida por pessoas não negras e que um dos produtos disso é o tipo de problemáticas que estão a ser pesquisadas naquele centro que visivelmente respeitam a todas as agendas menos a moçambicana”. De acordo com esta perspectiva, as problemáticas moçambicanas só podem ser definidas por moçambicanos de origem africana. Esta perspectiva expressa um negrocentrismo, que se traduz na apologia de uma africanização das ciências sociais em Moçambique.

(17) Para Molefi Asante (2001: 73), o Marxismo não só emergiu de uma consciência ocidental, como é demasiado mecanicista na compreensão dos fenómenos sócio-culturais. Ainda que o pensamento de Marx tenha resultado de dinâmicas sócio-económicas decorridas na Europa no século XIX, um facto é que a liberalização dos mercados africanos e o aumento das assimetrias sociais são convidativos à recuperação desse pensamento.

(18) Inserido num congresso internacional de sociologia, inscrito num grupo maioritariamente constituído por cientistas sociais africanos, que discutiam a sociologia em África, o sociólogo moçambicano Carlos Serra (1997:40) testemunhou a defesa, entre os conferencistas, “que devíamos saber criar conceitos africanos «adequados à nossa realidade»; que devíamos saber, algum dia, recusar os Webers europeus, criando os nossos próprios Webers”. Carlos Serra considera que esteve confrontado com a “«astúcia da razão», pois cada desses colegas tinha sido formado em universidades estrangeiras (europeias e norte-americanas), todos vestiam roupas estrangeiras, expressavam-se bem em língua francesa, etc., realidades essas que eles não punham em causa”.

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epistemológico na análise das sociedades africanas, que diversos autores – entre os quais Molefi Asante (1990) ou Cynthia Lehman (2001) – recorrem aos textos filosóficos produzidos no antigo Egipto, nomeadamente na civilização Kemet19. Trata-se, para os autores, de uma retórica alternativa ao pensamento filosófico grego e comparativamente fecundo na análise do relacionamento no Mundo africano, ou da in-teracção das culturas globais com as populações deste continente. Na análise dos discursos em questão20, Asante (1990) constata a valorização de temas como a humildade e a submissão à autoridade, o discurso não ameaçador e não apressado, o auto-controlo, a generosidade, a procu-ra da verdade ou a justiça. Por conferirem particular importância ao respeito do indivíduo para com o grupo, para com os mais velhos e para com os antepassados, para com os líderes, para com a natureza ou o sobrenatural, Lehman (2001: 333) salienta a utilidade deste discurso moral na análise das sociedades colectivistas africanas. Para a autora, trata-se de questões que devem ser enfatizadas por qualquer modelo de investigação afrocêntrico, uma vez que pressupõem a existência de modelos e interpretações derivados de uma experiência africana. Cheikh Anta Diop (cf LEHMAN, 2001: 328) vai ainda mais longe, considerando que o recurso à oratória Kemet constitui uma condição necessária para uma reconciliação das civilizações africanas com a sua história, de forma a serem capazes de construir um corpo de ciências humanas modernas, renovando assim uma cultura africana.

É também sob este ponto de vista afrocêntrico, que o historiador Ki-Zerbo (1979) procura escrever a história de um ponto de vista afri-cano, mostrando como é que África diferiu da história europeia: através da ausência de propriedade privada, de uma monarquia moderada ou do refinamento das relações interpessoais. Sempre com o objectivo de explorar a especificidade africana, outros autores salientam a impor-tância do mundo simbólico (TAYLOR e NWOSU, 2001: 301), dos valores metafísicos e espirituais ou da singularidade africana ao nível da relação com o tempo, com o trabalho ou com as pessoas (OBENG-QUAIDOO, 1986 cf TAYLOR E NWOSU, 2001: 304). A perspectiva afrocêntrica parte do pressuposto que a forma como os africanos foram

(19) Os textos incluem aquilo que Karenga (cf Lehman, 2001: 329-330) designa de Sebait (livros de Kagemni, Kheti, Khun-Anup e Ptah-Hotep). O livro de Khun-Anup também é conhecido, na literatura anglo-saxónica, por The story of the Eloquent Peasant.

(20) Na análise da retórica Kemet, Asante (1990) destaca o conceito filosófico e espiritual Maat, construção filosófica central e base das preocupações humanas, sobrenaturais e ecológicas. O Maat constitui um ideal moral do antigo Egipto que representa a figura do Bem, a concessão da vida, a fundação da ordem e da responsabilidade, assentando em valores como a justiça, a harmonia, o equilíbrio e a verdade.

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socializados condiciona a forma como conceptualizam os fenómenos sociais (ASANTE, 1989).

O movimento afrocentrista pretende também contribuir com uma discussão dos procedimentos empíricos ocidentais, de observação e de medição21. Ao nível da interpretação dos resultados, contesta-se a rigidez de orientações e defende-se a integração de dimensões de uma cultura africana – incluindo o relacionamento com o mundo metafísico e espiritual ou com os grupos de pertença (TAYLOR e NWOSU, 2001: 303) – que geralmente influenciam o discurso e as dinâmicas sociais em África. O que se designa de empirismo afrocen-trista constitui, no fundo, uma metodologia qualitativa de investigação, que valoriza a observação e a construção de significados a partir dos saberes e dos valores dos participantes locais. Trata-se de um método de análise próximo da grounded theory (GLASER e STRAUSS, 1967), que se pretende constantemente adaptável e condicionado pelo exer-cício da observação, enfatizando a descoberta ao invés da validação do conhecimento existente (TAYLOR e NWOSU, 2001: 308). O afrocen-trismo constitui, assim, uma tentativa de alargamento das possibilidades epistemológicas, onde África passa a constituir o sujeito e não apenas o objecto de conhecimento (Asante, 2001: 71).

Este processo de recriação e de valorização de pensamentos e experiências africanas, muito em voga nas sociedades pós-coloniais22, enquadra-se naquilo que Boaventura de Sousa Santos designa de Epistemologias do Sul. Tratam-se de tendências de inclusão de novas experiências de conhecimento do Mundo, que não deixam de incluir, depois de reconfiguradas, as experiências de conhecimento de um Nor-te global23. Denominado de “sociologia das ausências” (SANTOS, 2006:

(21) Taylor e Nwosu (2001: 300) alertam para o perigo dos métodos de pesquisa que aliciam as opiniões dos respondentes acerca de atitudes, crenças e comportamentos, em contextos africanos onde a expressão de opiniões pessoais não constitui uma característica pacífica no processo de comunicação. As opiniões são gran-demente influenciadas pelas normas do grupo, pelo género ou pelo estatuto social. Os autores sintetizam outros problemas, incluindo as dificuldades ao nível das traduções de entrevistas e questionários num continente que conhece elevadas índices de iliteracia nas línguas europeias. Taylor e Nwosu referem também dificuldades no questionamento de assuntos sensíveis, a inexistência de dados e de fontes a partir dos quais se possam constituir amostras relevantes; bem como as dificuldades de aplicação de questionários de escolha forçada, que obrigam a um pensamento dicotómico nos inquiridos.

(22) Pela forma distinta como se têm desenvolvido importa realçar o carácter plural do conceito de realidades pós-coloniais. A diversidade na América do Sul é distinta da que ocorre no continente africano ou nos contex-tos europeus e, dento de cada um destes macrocosmos, existe uma infinidade de microcosmos, infinitamente distintos entre si. Se esta diversidade apela para a diferença dentro do Sul, um facto é que uma experiência colonial comum permite a constituição de um Sul global, onde essa condição pós-colonial adquire destaque na compreensão das especificidades políticas, económicas e sociais.

(23) Como analisa Boaventura de Sousa Santos (2007), o projecto imperial do colonialismo e do capitalismo global desencadearam uma divisão abissal entre o que hoje é designado de “Norte global” e de “Sul global”, divisão que se transformou, ela própria, numa condição epistemológica.

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87-126), este processo de recuperação de saberes parte da ideia que a racionalidade que subjaz ao pensamento ocidental (produzido num Norte global) não reconhece, ignora e desperdiça muita da experiência social disponível ou possível no Mundo. Para a captar seria necessária a reinvenção de uma racionalidade mais ampla, disponível para absorver uma emergente experiência social. Esta visão afrocêntrica não deixa, contudo, de merecer uma série de observações.

Um primeiro conjunto relaciona-se com a própria definição de conceitos africanos, da sua distinção relativamente a conceitos “europeus” ou “asiáticos”, da configuração de conceitos híbridos ou do tipo de rela-cionamento possível entre estes diferentes conhecimentos. A partir desta questão importa analisar até que ponto é que uma epistemologia africana parte de pressupostos essencialistas sobre a cultura africana. O continente vem conhecendo um processo de inserção num sistema global, com profundas influências ao nível da organização das suas sociedades. Não obstante as inerentes problemáticas políticas e sociais e as especificidades de cada região, um facto é que as sociedades africanas nunca deixaram de estar envolvidas em processos dinâmicos de transformação, em muitos aspectos comuns a outras regiões do globo.

Em segundo lugar, quando se procura formular um modelo de análise com base numa “experiência africana”, importa questio-nar o que significa, exactamente, essa experiência africana e que africanos se revêem na mesma. Ela é comum nas zonas rurais e nos centros urbanos? Nas sociedades agrícolas e nas repartições bancárias? Estamos a falar de uma experiência ou de experiências africanas? A retrospecção pelo passado em busca de uma especifi-cidade e de uma raiz cultural (seja no Antigo Egipto, no reino do Monomotapa ou no império Zulu), com vista a uma “reconciliação com a história” transporta consigo uma série de riscos epistemoló-gicos. Por um lado por ser bastante ambíguo no que concerne à definição de que período histórico se processaria o reencontro24. Por outro lado, precisamente por pressupor a existência de uma única história, comum a todas os africanos, esta perspectiva não confere a merecida atenção aos complexos processos migratórios (transcontinentais), à diversidade linguística, religiosa e cultural

(24) Quando se fala em reencontro com a história falamos exactamente de quê? De uma história africana conge-lada pelos retratos etnográficos da primeira metade do século XX? Dos costumes recriados nos espectáculos de companhias de canto e dança africanas? Como reagem os jovens africanos, em plena era de globalização cultural, relativamente a esses valores e costumes de períodos pré-coloniais?

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das populações e suas múltiplas e contraditórias influências. A história e a experiência africana (aliás como a europeia, a asiática ou a americana) são fortemente marcadas pela heterogeneidade e consequente complexidade de práticas culturais.

Uma terceira questão que merece ser colocada prende-se com os traços e com os valores que são seleccionados na caracterização das populações africanas. Do recurso aos textos filosóficos produzidos no antigo Egipto são realçadas dimensões como a harmonia, o respeito, a verdade ou a justiça25, não se conferindo destaque ao conflito e à competição, processos esses subjacentes ao fenómeno de socialização (SIMMEL, 1995). A procura de modelos de análise afrocêntricos não deixa de perpassar uma imagem idílica das sociedades africanas, colec-tivistas, harmoniosas e funcionais, ecológicas, congeladas na tradição e livres do conflito, da anomia e da injustiça social.

Uma quarta questão prende-se com os factores subjectivos inerentes ao próprio processo de construção do conhecimento. Em inúmeros aspectos – não só nos pressupostos epistemológicos em análise, mas também no etnoturismo africano26 ou na vulgarização de expressões como “mãe-África” – constatam-se diversas atitudes emotivas, nacionalistas e maniqueístas (nomeadamente da tradição). A ideia que perpassa é que África está envolta numa hiper-identidade, imagem essa que é produzida no interior do continente, não dei-xando de ser alimentada do seu exterior. Trata-se de uma atitude que valoriza a procura de uma especificidade africana, ignorando o carácter dinâmico e contraditório das culturas, a que não é alheia a realidade africana.

(25) Destaque-se que estes valores estão presentes nos textos judaico-cristãos e não foi por isso que, nos últimos 200 anos, as grandes potencias europeias não foram promotoras de uma intensiva colonização do continente africano, de duas guerras mundiais e de sanguinários conflitos étnicos e raciais. Do mesmo modo, o continente africano foi, no pós-independência, marcado por violentas guerras civis e catástrofes humanitárias, por processos de corrupção e de aumento de desigualdades sociais. Em África ou na Europa, o discurso moral da justiça ou da solidariedade é acompanhado por um outro processo de competição pela posse de recursos de poder, por vezes de forma bem violenta.

(26) A propósito das características do artesanato e da arte tradicional africana (estatuetas, batiks, adornos, etc.), invariavelmente procurada por estrangeiros (em especial os de descendência europeia), um pouco por todas as cidades africanas, considera-se oportuno transcrever o seguinte comentário de Carlos Serra (1997: 151): “Quantas vezes não encontro nos aviões, girafas, camponesas com filhos às costas, pilões, dentes de marfim, etc., e sinto a alegria dos seus proprietários na fórmula fatal: «Isto é África!». Mas temos, ainda, as artes maiores, as artes plásticas, aquelas que estão nas exposições onde, não menos invariavelmente, abundam os Europeus. E aí, sempre me admirará a ubuesca mania de se ter por arte «tradicional» uma multidão de quadros onde máscaras, olhos esbugalhados, anatomia transfigurada, etc., expressam, afinal, desolação, tormento, tragédia, fenocídio (sic), desemprego, guerra, tristeza, etc., quer dizer, sentimentos, percepções perfeitamente universais, rigorosamente humanos, identificadamente históricos, epocalmente reconhecíveis” (Serra, 1997: 151). A pergunta central é, portanto, a seguinte: quando se vende, na moeda local ou em moeda estrangeira, este tipo de arte está-se realmente a vender tradição? Que tipo de tradição?

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4. ConClusão

Ao salientarem a especificidade de uma cultura e de uma sensi-bilidade africana, a africanidade e o afrocentrismo não deixam de partir de uma concepção essencialista e fortemente politizada do conceito de cultura. Qualquer forma de conhecimento da realidade social africana (como aliás de qualquer outra) não pode debruçar-se apenas sobre o que é definido a priori como eternamente africano, mas assumir uma lógica processual, considerando as transformações e as contradições que ocorrem no que pode ser considerado um espaço social africano. É neste contexto que importa analisar os processos de conhecimento destas sociedades ou, inclusive, a relevância da constituição de uma sociologia das sociedades africanas. A tónica geral do argumento que sustenta esta última ideia reside na existência de uma particularidade africana, fundamentalmente dife-rente da dos outros continentes, que exigiria a utilização de instrumentos analíticos apropriados. Para Elísio Macamo (2002: 5), a particularidade africana seria o resultado da complexidade do social em África27, das relações e dos factos sociais, caracterizados por uma oscilação entre um mundo irreal dos espíritos e um mundo real de uma existência social precária. A complexidade resultaria, portanto, de uma relação ambígua que o continente estabelece com a modernidade (KANE, 1995). Trata-se de uma perspectiva que, ainda que tenha subjacente uma lógica unilinear da história e do progresso da humanidade28, não ignora a coexistência de distintos aspectos culturais, supostamente característicos de períodos históricos diferentes (modernidade e pré-modernidade), bem como as

(27) Macamo (2002: 5-6) ilustra este ponto com um exemplo do músico moçambicano Xidimingwana 1997, no seu tema intitulado “Djoni” (minas da África do Sul, na designação popular no Sul de Moçambique. Na letra da música, o cantor canta “as aventuras de um homem que, sob a insistência da mulher, se alista na companhia de contratação de mineiros moçambicanos para ir trabalhar nas minas de ouro da África do Sul. Todavia, logo no seu primeiro dia de trabalho cai-lhe uma pedra sobre as mãos que são imediatamente amputadas. Na impossibilidade de continuar a tra-balhar nessas circunstâncias, o homem é despedido com uma compensação avultada [literalmente, “um saco de randes”] que leva consigo para Moçambique. De regresso a casa, é recebido efusivamente pela mulher que nem sequer lhe pergunta o que aconteceu às mãos. Diariamente ela subtrai 200 contos para gastar em bebida e dar à sua mãe. Pouco depois o dinheiro acaba e, segundo o cantor, ela começa a ‘faltar ao respeito ao marido’. Um exemplo dessa falta de respeito é a solicitação que, certa manhã, ela faz ao marido. Pede-lhe que vá cortar estacas no mato para reparar o telhado, sabendo muito bem que o pobre homem perdeu as mãos nas minas da África do Sul e não pode, evidentemente, fazer esse trabalho. Frustrado, ele agride a mulher com o coto do braço amputado. A mulher corre à polícia a fazer queixa e esta envia uma força de intervenção rápida para prender o marido. Na esquadra a mulher diz que o marido a agrediu com um pau. Ele desmente, alegando que foi com o coto. Ela rompe aos gritos e diz que o marido perdeu as mãos e que estas foram enterradas na África do Sul. Segundo ela, o que a agrediu não foi o coto mas sim algo ‘invisível’, do reino dos espíritos. Exige que lhe seja feito um diagnóstico tradicional para saber se estará ou não enfeitiçada”.

(28) Esta perspectiva adquiriu maior popularidade no período pós-guerra fria com o best-seller “The end of his-tory and the last man”. Francis Fukuyama (1992) previa que os movimentos reformistas na ex-União Soviética e na Europa de Leste viessem a resultar na propagação, à escala mundial, das democracias liberais, do regime económico capitalista e de uma cultura de consumo de massas. Fukuyama toma como referência o pensamento de Hegel e de Marx, para quem a evolução das sociedades humanas não era ilimitada, mas terminaria quando a humanidade alcançasse uma forma de sociedade que pudesse satisfazer as suas aspirações ou as suas contradições: o estado liberal ou a sociedade comunista.

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complexas possibilidades de mudança por parte de cada cultura29 (LÉVI-STRAUSS, 1995: 30). Para Macamo, esta ambiguidade do continente africano na sua relação com a modernidade não postula uma ciência do social fundamentalmente diferente, mas uma maior sensibilidade na utilização de conceitos.

O debate teórico sobre estas questões epistemológicas não deixa de estar relacionado com as condições sócio-económicas de produção do conhecimento, que têm como inevitável efeito a politização do saber. A apologia de uma visão do Mundo centrada em África processa-se num contexto de confrontação de culturas e de conflito identitário, pelo que a frequente distinção entre investigadores africanistas e investigadores africanos30 resulta não só de uma questão relacional – da inevitável distinção “Nós” vs “Eles” – como também de factores estratégicos, nomeadamente dos interesses dos actores sociais a cada moment31.

É neste contexto que Sibeud e Piriou (1997: 15) fazem a apo-logia da análise não só das práticas como das orientações de pesquisa dos cientistas sociais. Trata-se de um processo que Bachelard (1938) designaria de “psicanálise da ciência”, nomeadamente de centrar a abor-dagem nos elementos subjectivos que envolvem os cientistas sociais na produção do conhecimento: as suas preferências emotivas e educacionais, os preconceitos sociais, as condições de existência e as motivações sócio-económicas, as inclinações políticas, os grupos de pertença e de referência, etc.. Constituindo a ciência uma construção social, a crítica científica deveria começar na auto-reflexão e dirigir-se à sensação, às convicções primeiras, à própria linguagem ou à significação das palavras.

Na compreensão da dinâmica dos processos de produção de conhecimento importa, ainda, rever os trabalhos epistemológicos de Thomas Khun ou de Imre Lakatos. Para Khun (1989), o trabalho do cientista exprime uma adesão muito profunda a um paradigma teórico.

(29) Lévi-Strauss (1995: 30-31) compara os processos múltiplos de mudança da humanidade aos movimentos de um cavalo de xadrez. Para o antropólogo francês “a humanidade em progresso nunca se assemelha a uma pessoa que sobe uma escada, acrescentando para cada um dos seus movimentos um novo degrau a todos aqueles já anteriormente conquistados, evoca antes o jogador cuja sorte é repartida por vários dados e que, de cada vez que os lança, os vê espalharem-se no tabuleiro formando outras tantas somas diferentes”.

(30) Saliente-se que as epistemologias do Sul não são unicamente formuladas por saberes autóctones. Referiu-se anteriormente o carácter complexo que pode adquirir o conceito de africano, pois pode englobar actores sociais que estudaram na Europa ou populações de descendência europeia que nasceram ou viveram muitos anos no continente africano.

(31) Nesta perspectiva, torna-se natural que muitos europeus residentes em África se assumam como africanistas perante um aumento da concorrência europeia, mas que se sintam europeus quando em competição directa com populações africanas. A mesma atitude pode ser estruturada por um africano, no seu relacionamento estratégico com europeus.

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Numa interpretação sócio-política da produção do conhecimento, Khun considera que cada paradigma implica a existência de esquemas teóricos, conceptuais e metodológicos, aceites por todos aqueles que partilham essa forma de olhar. Lakatos (1978) considera que qualquer paradigma de investigação concebe um “núcleo duro”, irrefutável pelos respectivos investigadores. O autor húngaro utiliza o conceito de “cintura protectora” para exprimir um compromisso (inconscientemente) estabelecido pela comunidade para, ao longo das suas investigações, não introduzir falsi-ficações que perturbem a ordem do paradigma. As teorias de Khun e Lakatos não deixam de se inserir, elas próprias, num paradigma científico que envolve um compromisso por parte dos seus seguidores.

De qualquer das formas, a análise e comparação recíproca de diferentes paradigmas e perspectivas epistemológicas, das respectivas possibilidades e limites, enquadra-se naquilo que Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2008: 28-29) designa de “ecologia de saberes”. Nesta perspectiva, quanto menos um dado saber conhecer os limites do que conhece sobre os outros saberes, tanto menos conhece os seus próprios limites e possibilidades. Para Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 2008: 37), sem este processo de confrontação de problemas, perplexida-des e incertezas, estaremos condenados a neo-ismos e a pós-ismos, ou “a interpretações do presente que só têm passado”. Ainda que com o processo de globalização em curso se abram pontes de intercomunicação entre as diferentes perspectivas epistemológicas, essas vias de comunicação não deixam de estar marcadas pela suspeição, por relações de força e por conflitos de poder entre os produtores de conhecimento.

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presente estudo pretende apresentar a obra de José de Souza Martins “A aparição do demônio na fábrica” (A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividido no subúrbio. São Paulo: Ed. 34, 2008) e, nesse ínterim, fazer

uma leitura paralela sobre a temática de aparições demoníacas para operárias com o trabalho de Aihwa Ong, “Spirits of resistance capita-list discipline” (Spirits of resistance and capitalist discipline: factory women in Malaysia Albany. NY : State University Press, 1987). Por diferentes caminhos esses trabalhos discutem as contradições para a implemen-tação da sociedade industrial, onde é observado o modo como cada local reagiu às interferências exógenas do capital moderno. O texto de Ong discute as mudanças na sociedade rural da Malásia, o recorte de seu trabalho se distancia dos temas mais conhecidos nos estudos sobre campesinato ou mesmo sobre as transformações no campo operário, no entanto, estes temas estão presentes a partir do enfoque que faz das manifestações de possessão, dos sacrifícios e rituais tomados como “exóticos” e que, tal como aparecem no livro de Martins, ocorrem na linha de produção industrial.

O livro publicado recentemente por Martins é um conjunto de quatro artigos, uma entrevista e um texto introdutório. São textos reunidos que datam da primeira metade da década de 90 até o ano de 2008 e, com uma exceção, foram trabalhos já publicados e/ou apre-sentados em congressos e palestras proferidas pelo autor. No entanto, mesmo com temporalidades diferentes, os capítulos são conectados entre si pelo tema que vai sendo entretecido pelo autor, onde cada

Ensaio Bibliográfico

As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias: Leituras da Obra de

José de Souza Martins e Aihwa Ong.

Letícia de Faria Ferreira

CPDA – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

OY

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capítulo o apresenta sob seus diferentes aspectos. O que podemos chamar de tema do livro é a investigação sobre a multiplicidade de formas – às vezes misteriosas – de desencontro entre o processo de modernização industrial e a concepção do trabalhador dessa moderni-dade, considerando sua origem rural, pautada em valores tradicionais; tematiza a partir da vida repartida que é ocasionada nos operários do ABC paulista, berço da industrialização moderna brasileira. São desencontros tratados com muita sutileza pelo autor, que se dedica a observar sua expressão em miudezas espalhadas pelo cotidiano da vida no subúrbio – e, é como um observador especial que descreve as cores, o badalar dos sinos, o apito do trem na estação ferroviária, etc, pois durante os anos 50, foi ele mesmo operário da fábrica de cerâmicas de São Caetano.

Observa o autor, com acuidade, as fragmentárias expressões que revestem as ações da população trabalhadora em sua busca de adaptar-se aos adventos do tempo que regra a vida. Ou seja, o tempo linear da fábrica que lentamente entra nas práticas “de uma sociedade ainda regulada pelo tempo cósmico das estações do ano e dos ritos sociais e religiosos demarcadores do calendário litúrgico e da vida.” (MARTINS, 2008:11). Martins fala de um abismo que separa o homem comum de sua história quando este é inserido em uma sociedade que o coloca como agente e ator; seu processo histórico é vivido e também é tea-tralizado; é práxis autêntica e mistificação na resistência que trava para não se reduzir à coisa. Esse homem, afirma o autor, redivivo, recicla o modo das antigas relações sociais e “reapropria-se das tradições de suas origens pré-modernas para enfrentar a privação de história e de compreensão plena que lhe impõe a modernidade que o minimiza e coisifica. Adere, resistindo, para viver e vencer a seu modo o mal-estar da sociedade da incerteza.” (MARTINS, 2008: 14).

A discussão sobre a chegada do país ao mundo moderno começa chamando atenção para o divisor de águas que foi a reordenação social trazida pelo trem, e de modo mais específico, na cidade de São Paulo, que é tratada por Martins no primeiro capítulo do livro – “A gestação do ser dividido: a ferrovia e a modernidade em São Paulo”. Uma vida lenta foi abalada na década de 60 do século XIX, quando a ferrovia impõe seu tempo, seu equipamento moderno a vapor percorrendo distâncias antes transpostas a cavalo. O tempo se torna regulado, e nas palavras de Martins foi quando “o homem deixou de ser o condutor de tropa para ser conduzido como tropa.” (MARTINS, 2008:16).

As Origens de Aparições Demoníacas para Operárias 229

As Estações (da Luz e Vila Piranapiacaba) trazem consigo uma arqui-tetura do medo, que vai ser estudada pelo autor através da definição foucaultiana de panóptico.

Na pesquisa de Aihwa Ong, Foucault também aparece quando o enfoque é o poder e sua capacidade de produzir subjetividades; a mudança no ritmo da vida e as representações de mundo colocadas pela intervenção inglesa no cotidiano malaio, produziram representações que foram internalizados pelos próprios “malaios”, Ong percebe as táticas de resistência e sobrevivência que colocaram em prática, sendo a possessão uma forma possível, não necessariamente consciente, de resistir.

Voltando a Martins, a conflitividade social se torna uma possi-bilidade quando a ferrovia dilui a dimensão local e de localidade dos antagonismos sociais. A ferrovia trazia consigo os códigos da moder-nidade e as contradições gestadas na passagem de uma sociedade es-cravista para a sociedade industrial nascente. Assim que, todos - os que mandam e os que são mandados - temem, por que já não seria mais possível viver “sem medo dos desdobramentos do mundo criado pelo capital moderno e pela máquina.” (MARTINS, 2008:17). Nesse capí-tulo Martins nos atenta para esse embate entre o passado que persiste nos ritmos da vida, por um lado, e de outro, descreve o lento processo que consiste em reacomodar a vida, nesse momento de desencontro de temporalidades. As transformações criavam a necessidade de uma sociedade de trabalhadores, posto que em meados do século XIX a escravidão já anunciava seu próprio fim. O texto discorre sobre essa invenção de uma classe trabalhadora livre, de origem eminentemente rural, sendo, ao custo de muitas rupturas, preparada para o trabalho fabril moderno, que reordena costumes, mentalidades, que cria a vida privada, enfim, é a modernidade em seu engendrar o conteúdo do capítulo primeiro que, de certo modo, vai alicerçar para os próximos capítulos a discussão sobre o modo de ver e viver – ouvir e cheirar – que as populações do subúrbio paulista concebem.

No segundo capítulo (uma entrevista publicada em 2001) o autor, ao discutir a história da noção de subúrbio - em estreita relação com o desenvolvimento da cidade de São Paulo e criando uma nova concepção de espaço como lugar do vivido com estilo, com adornos e detalhes, realidade espacial intermediária entre o campo e a cidade - vai trazendo à tona a questão da ausência de interesse por parte da sociologia pelo subúrbio. Enquanto na Europa e nos Estados Unidos, o conceito sociológico de subúrbio serviu para definir espaços residenciais

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de alto nível, aqui para nós, diz Martins, temos outra situação. “O traba-lhar e o morar disputam os mesmos espaços em áreas supervalorizadas pelas funções rentistas do ganhar”, e ainda, é a presença da renda da terra urbana que entre nós agrava as condições de moradia, devido o tributo pago ao dono da terra que vive da especulação imobiliária. Esse é um tema bastante debatido por Martins em livros anteriores – a renda da terra, a novidade deste texto consiste em falar da renda da terra urbana (MARTINS, 2008:49). Ainda, dentro dessa temática da renda, Martins distingue o conceito de subúrbio de “periferia,” esta última, segundo ele significa a vitória da renda da terra sobre a cidade, resultando em moradias precárias e confinadas; já subúrbio tem uma concepção positiva, sua história é a história de um modo de vida relacionada com o trabalho, e que têm nesse lugar relações sociais, cotidiano, memória, que por vezes, desmente a história oficial; enfim, é para a confusão conceitual que Martins chama atenção, pois percebe periferia e subúrbio como espaços com problemas socioló-gicos de diferente ordem (MARTINS, 2008:60).

O subúrbio como lugar de viver é o que inspira Martins a es-crever o texto Odores, sons e cores: mediações culturais do cotidiano operário - onde esses elementos dão e criam significados para a vida cotidiana, expressam mentalidades e fundam a sociabilidade dos grupos de convivência. O que esta sendo proposto “é uma breve etnografia de costumes relativos a cores, odores e ruídos cotidianos, em particu-lar os do corpo ou com o corpo relacionados. Constituem eles uma interferência mediadora no desenrolar cotidiano das relações sociais e variam conforme a situação social e a situação de classe social dos agentes.”(MARTINS, 2008:64) No entanto, essa etnografia propos-ta por Martins tem um componente especial, pois usa suas próprias lembranças como fonte de dados, vindo a se chamar de “etnógrafo espontâneo”.(idem:148). Recupera o que faz parte de sua memória (trata especialmente dos anos 40 e 50) como morador e trabalhador do subúrbio de São Caetano, dentro de uma idéia de Peter Berger – de uma alternação biográfica, onde o tempo lhe permite um olhar crítico, “observo sociológica e participativamente através do informante que é o outro que fui”( MARTINS, 2008:64).

O desenvolvimento da urbanização transformando-se em um “modo de vida” se institui sem anular às condutas respectivas a um certo jeito de ser rural, da sociedade tradicional, mas institui uma censura a esses hábitos, jeitos e costumes. Ainda, nos diz Martins, “limitou a

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visibilidade dos modos de ser, instituindo a legitimidade dominante e a precedência do modo de parecer como técnica de apresentação social de pessoas e grupos”. (MARTINS, 2008:65). Os jardins, as roupas, as cores e os sons tem uma classificação nesse universo, que Martins nos revela com detalhes (fala das flores e a combinação adequada destas com espaço e o momento, trata da diferenciação feita entre sons e ba-rulhos – este último é aquele espécie de som que foge a classificação) quando descreve esses costumes que, lentamente misturam-se intera-gem e compõe a especificidade da sociabilidade do subúrbio. Ainda, encontramos no texto as ordenações cotidianas de gênero, as funções e papéis respectivos – a casa, o jardim e a mulher; o trabalho externo, a horta a rua e o homem. Martins recorda dos odores e suas separações, ou seja, havia, por um lado, o cheiro industrial, fétido, que se espraiava por São Caetano e, por outro, os perfumes dos jardins, das comidas, das pessoas (entre elas está o de gênero). Descreve os ruídos e os silêncios, e o medo – onde as histórias de aparição começam a surgir.

O capítulo “A aparição do demônio na fábrica, no meio da pro-dução” apresenta o relato do autor que se recorda do fato de no ano de 1956 o demônio aparecer para várias operárias de uma nova seção na fábrica de Cerâmicas, onde foi office-boy na época, para a qual regressou para conversar com antigos trabalhadores do lugar. Encontramos nesse capítulo um texto singular, por que quando retorna para falar com os engenheiros e operários passados mais de 30 anos, Martins recompõe sua memória na troca com as memórias de outros e apresenta-nos um documento significativo sobre as relações de trabalho e as relações co-tidianas (paralelas) da fábrica. E entende o aparecimento do demônio como uma das características desse processo de trabalho em crise. Era um momento na fábrica de intensificação da vigilância e das estratégias de despersonalização das ocupações, tornando-as impessoais e técnicas, o que, sem dúvida, criava um descompasso com as mentalidades dos trabalhadores ainda vinculados a modos tradicionais de produção. O processo de prensagem dos ladrilhos deixa de ser controlado pelo rit-mo do operário prensista que ao lado tinha uma operária que retirava os ladrilhos e repassava para o próximo setor, portanto, quando esse processo é alterado e o operário é que se adapta ao ritmo da máquina a situação torna-se outra, pois neste caso a modernização da linha permaneceu no início e não até o fim, assim que, as operárias( para as quais o demônio apareceu) situavam-se no na seção final de seleção, encaixotamento e escolha onde o trabalho permaneceu artesanal e somente foi alterada a intensidade do ritmo do trabalho.

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Nas palavras de Martins, “nesse descompasso tecnológico está a causa fundamental das tensões que levaram ao aparecimento do de-mônio na nova seção de escolha de ladrilhos.”(MARTINS, 2008:154). Ainda, as mudanças sofridas pela fábrica nesse período é a hipótese de Martins para a aparição do demônio justamente na seção de escolhas, setor onde não ocorreram mudanças no processo de trabalho, pois “foi a expressão dos temores gerados pelo conservadorismo desses setores colocados à margem das inovações e/ou das decisões (...)”. Para o autor essa foi “a forma que o imaginário das operárias deu às inovações para compreendê-las no conflito que encerravam.”(MARTINS, 2008:167). Esse novo modo de produzir afastava-se dos saberes práticos, mas ele não foi harmônico na linha de produção, o que no entender de Mar-tins não apenas ocasionou a aparição do demônio em determinado lugar, como essa desarmonia enfraquecia o domínio do saber cientifico, permanecendo saberes antigos dos mestres (em contraponto com dos engenheiros), associados a valores como parentesco e lealdades pessoais. Martins associa à visão das operárias do demônio aos engenheiros, “ele era meio sorridente, bem vestido, como os engenheiros, num canto da seção.” A aparição cessou depois que as operárias pediram que um padre benzesse as novas instalações, trazendo para o interior da fabrica um costume rural, religioso, de celebração das novas produções. Ob-servando o que, de certo modo, não é “visível”, a análise traz à tona os dilemas vividos pelos trabalhadores na relação com as contradições do trabalho capitalista.(MARTINS, 2008:173).

O livro de Martins finda com um capítulo de retomada de suas considerações iniciais e um convite à pesquisa sobre a história da in-dústria e da classe operária no ABC paulista. Trata-se de uma reflexão do autor sobre a produção sociológica a propósito desse tema e sobre o que está faltando e por que está; e o que precisa ser feito ou refeito. Ao levantar questões metodológicas para pensar as singularidades da história regional, o livro nos leva a pensar as possibilidades da história que desconstrua, através da voz dos trabalhadores, a história que é de poucos para construir uma história de todos.

Ong, por diferentes caminhos, coloca questões semelhantes às de Martins: de gênero, campesinato, industrialização, mudança cul-tural, classe, etc. Refere que, the contradictory experiences of malay factory women indicate that we need to reformulate the relationships among class, resistene, and conciousness (ONG,1987:195). Fazendo inicialmente um breve histórico do momento anterior a chegada da

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dominação colonial britânica, discute fenômenos decorrentes do pro-cesso de acumulação implantado pelos ingleses na segunda metade do século XIX e as transformações provocadas na sociedade e na cultura melanésia (ONG, 1987:4). A preocupação da pesquisa está em refletir sobre as mulheres como sujeitos históricos e em termos das suas ex-periências subjetivas, atentando para o contexto de transição em que vivem essas mulheres de um modelo de sociedade camponesa para um modelo de produção industrial. A intervenção inglesa ocasionou mu-danças intensas no modo de organização dos camponeses “malaios”, e a autora nos remete, do passado, - quando as terras eram abundantes nas aldeias Kampug e não se arranjavam enquanto “propriedade privada”, mas de uso mediante o pagamento de impostos, - ao momento em que os interesses britânicos administram a Malásia e “reconstituem” o campesinato, estabelecendo leis que visam assegurar uma etnia de cam-poneses malaios, os quais obtiveram títulos de propriedade, política que promoveu um mercado de terras e, conseqüentemente, a instituição de um Reservation Enactment que permitia a venda apenas para “malaios”. A preocupação do trabalho de Ong não é buscar explicações para as questões apenas no âmbito do plano local, pois trata os processos de diferenciação e proletarização do campesinato não exclusivamente nos eventos internos ao kampung, mas articulados com o contexto mais amplo onde essa população se insere. O que encontramos no texto é a percepção de Ong da trama que abriga múltiplos aspectos da relação entre o plano local e um plano mais geral, tal como foi possível identi-ficar no texto de Martins – transformação de relações de trabalho locais inseridas em uma dinâmica global. Em Ong, essa interação envolve os costumes e valores da sociedade malaia, a percepção de gênero, trabalho, religião, sagrado e profano são invadidas pela sociedade industrial e pela disciplina capitalista. A maciça absorção das jovens pelo emprego industrial, não só traz modificações no âmbito familiar pela maior in-dependência dessas jovens, como desencadeia, pelos ritmos de trabalho estressante da indústria, mecanismos de resistência nas operárias. No entanto, as fábricas incorporam, paralelo a ritmos de tempo controla-dos e uniformizados da linha de montagem, padrões e representações familiares (como a dominação de gênero), quando representa na fábrica um hierarquia “como se fosse uma família.” É nesse campo, onde vi-goram imposições de disciplinas de trabalho, - “corporate disciplinary techniques involve not only the surveillance but also the encoding of Malay female sexuality, in work, movement, and residence”– (ONG, 1987:177) que aparecem os espíritos hantu nas fábricas.

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Para Ong, as origens rurais dessas operárias vêm de uma tra-dição em que “the rural malay universe is still inhabited by spirits which move easily between human and nonhuman domains.” Con-siderando a observação de Ong que, “over the past decade, spirit possession episodes have proliferated among the young malay wo-men who flock in the thousands to urban institutions”, fenômeno que fica conhecido como “mass hysteria”. Serão, no entanto, em algumas situações essas “experiences of affliction”, percebidas, espe-cialmente pelos homens como algo feminino, e vem a ser percebido localmente de modo que “hysteria is symptom of the women’s rural urban transition” (ONG,, 1987:203-205).

Entretanto, não é exclusividade das aparições demoníacas o en-volvimento da economia em tais acontecimentos, podemos lembrar, tomando pelo inverso, às aparições que ao invés de serem ocasionadas por determinada condições econômicas, promovem uma nova si-tuação, como mostra a pesquisa de Elisabeth Claverie, “Les guerres de la Vierge, une antropologie des apparitions” que não trata de aparições demoníacas, mas sim da Virgem Maria para videntes. Essa etnografia apresenta as transformações que um santuário mariano e sua importância turística trouxeram para uma pequena vila rural iugoslava, ou seja, não é transição provocada pela industrialização que provoca as aparições, mas são as aparições marianas que trans-formam economicamente o povoado rural em um centro turístico e comercial. As transformações no modo de vida e de trabalho encontra nos trabalhos acima apresentados um enfoque particular, indicando que temas como campesinato e mundo do trabalho longe de terem se esgotado, podem, ao apresentar outros recortes, abrir novas possibilidades e caminhos para a observação sociológica.

RefeRênCias biblioGRáfiCas

CLAVERIE, Elisabeth (2003). Les guerres de la Vierge, une antropologie des apparitions. Paris: Gallimard.

MARTINS, José de Souza. (2008) A aparição do demônio na fábrica. Origens sociais do Eu dividido no subúrbio. São Paulo: Ed. 34.

ONG, Aihwa (1987). Spirits of resistance and capitalist discipline :factory women in Malaysia Albany. NY : State University Press.

Este livro acabou de se imprimir em janeiro de 2009, com tiragem de 500 exemplares. A fonte utilizada para a composição do texto foi o Bembo Regular corpo 12/13,5. A produção gráfica ficou a cargo da Sir Speedy, com impressão digital sobre papel “Pólen bold” 90g (miolo) e cartão “Supremo” 250g (capa). Coordenação Editorial: Raul Coachman – Projeto gráfico: Ricardo Barrocas – Editoração Eletrônica: Silvio Luis da Silva Neto.