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REVOLUÇÃO E DEMOCRACIA NO CHILE DE SALVADOR ALLENDE Alberto Aggio O período em que Salvador Allende governou o Chile configura-se como um dos momentos mais instigantes e dramáticos da história política da América Latina. Allende venceu as eleições presidenciais de 1970 pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que tinha como eixo os partidos Comunista e Socialista, mais os Radicais, o partido Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Allende governou o Chile por três anos e foi deposto por um golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973. Os três anos de Allende ficaram conhecidos como a “experiência chilena” e continuam a provocar, ainda hoje, a mesma sensação paradoxal nos círculos de esquerda, constituindo-se numa referência positiva e negativa ao mesmo tempo. Isto ocorre porque este período da história chilena se notabilizou por carregar consigo a idéia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Esta idéia foi consubstanciada no projeto da “via chilena ao socialismo”. Poucos foram os que reconheceram que ali se ensaiou uma perspectiva nova de se propor a construção do socialismo. Para muitos, a via chilena ao socialismo foi vista, na época e depois - em especial por boa parte da esquerda brasileira -, com tão-somente uma ilusão reformista1[1]. Sem querer traçar aqui um painel exaustivo da literatura sobre o tema, parece-me importante afirmar alguns pontos que nos ajudem na reflexão sobre inúmeras questões de natureza política e também teórica que emergem da chamada experiência chilena. Uma visão de conjunto Em primeiro lugar, penso ser importante ultrapassar a imagem de tragédia do período, isto é, de aborda-lo como um processo que desde o início encontrava-se predeterminado ao fracasso. Esta construção ensejou uma leitura catastrófica daquela experiência, com graves implicações teóricas e políticas. O procedimento analítico que subjaz ao entendimento de que o 1[1] Para a primeira tendência ver BITAR, S. Transição, Socialismo, Democracia: Chile com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; para a segunda, ALTAMIRANO, C. Dialética de uma derrota. São Paulo: Brasiliense, 1979. Para uma análise da literatura sobre a experiência chilena ver especialmente o capítulo II de AGGIO, A. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. São Paulo, Editora UNESP, 1993.

REVOLUÇÃO E DEMOCRACIA NO CHILE

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R E V O L U Ç Ã O E D E M O C R A C I A N O C H I L E D E S A L V A D O R A L L E N D E

Alberto Aggio

O período em que Salvador Allende governou o Chile configura-se como um dos momentos mais instigantes e dramáticos da história política da América Latina. Allende venceu as eleições presidenciais de 1970 pela Unidade Popular (UP), uma coalizão de esquerda que tinha como eixo os partidos Comunista e Socialista, mais os Radicais, o partido Social-Democrata, a Ação Popular Independente e o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU). Allende governou o Chile por três anos e foi deposto por um golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet, em 11 de setembro de 1973.

Os três anos de Allende ficaram conhecidos como a “experiência chilena” e continuam a provocar, ainda hoje, a mesma sensação paradoxal nos círculos de esquerda, constituindo-se numa referência positiva e negativa ao mesmo tempo. Isto ocorre porque este período da história chilena se notabilizou por carregar consigo a idéia de que seria possível a construção do socialismo mediante a manutenção e o aprofundamento da democracia. Esta idéia foi consubstanciada no projeto da “via chilena ao socialismo”.

Poucos foram os que reconheceram que ali se ensaiou uma perspectiva nova de se propor a construção do socialismo. Para muitos, a via chilena ao socialismo foi vista, na época e depois - em especial por boa parte da esquerda brasileira -, com tão-somente uma ilusão reformista1[1]. Sem querer traçar aqui um painel exaustivo da literatura sobre o tema, parece-me importante afirmar alguns pontos que nos ajudem na reflexão sobre inúmeras questões de natureza política e também teórica que emergem da chamada experiência chilena.

Uma visão de conjunto

Em primeiro lugar, penso ser importante ultrapassar a imagem de tragédia do período, isto é, de aborda-lo como um processo que desde o início encontrava-se predeterminado ao fracasso. Esta construção ensejou uma leitura catastrófica daquela experiência, com graves implicações teóricas e políticas. O procedimento analítico que subjaz ao entendimento de que o

1[1] Para a primeira tendência ver BITAR, S. Transição, Socialismo, Democracia: Chile

com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980; para a segunda, ALTAMIRANO, C.

Dialética de uma derrota. São Paulo: Brasiliense, 1979. Para uma análise da literatura

sobre a experiência chilena ver especialmente o capítulo II de AGGIO, A. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. São Paulo, Editora UNESP, 1993.

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Chile de Allende se configura como uma tragédia se sustenta na instituição de uma chave de leitura na qual a história é vista como aproximação a um fim inexorável, impossibilitando que se estude as intenções e estratégias, cálculos e erros, bem como o grau de responsabilidade dos atores político-sociais envolvidos naquele processo, dimensões sem as quais não se explicariam os três anos de governo, suas razões, suas vicissitudes, seus descaminhos.

Em segundo lugar, penso ser necessário reiterar e enfatizar que a chamada experiência da Unidade Popular, ainda que guarde eloqüentes ensinamentos políticos, constitui-se num fato irrepetível em qualquer tempo e lugar. Por esta razão, uma adesão tardia às propostas de Allende ou uma espécie de exumação de suas idéias, sob qualquer roupagem ou com base em fórmulas supostamente novas, como por exemplo a consigna “reformismo revolucionário”, tende a causar (ainda mais nos dias de hoje) a sensação de um procedimento tanto acrítico quanto anacrônico.

Penso que nossa relação com o passado não deve ter um caráter tão instrumental. Mesmo assim, não deixa de ser importante chamar a atenção para o fato de que, passados mais de duas décadas do desfecho daquela experiência, a proposição de se caminhar para o socialismo pela via da democracia parece algo consagrado nos projetos de qualquer esquerda que queira se identificar como moderna e contemporânea, especialmente quando nos encontramos na situação cristalizada de um mundo que conheceu o colapso do comunismo histórico.

A especificidade da “via chilena ao socialismo”

A queda de Allende - e é inevitável começar pelo fim - foi o resultado de ações legais e extralegais da direita chilena, com inegável apoio externo. Elas visavam desagregar paulatinamente a legitimidade do presidente por meio de um duplo processo: ataque frontal à legalidade das ações governamentais e, simultaneamente, estimulo ao recrudescimento da polarização ideológica, objetivando a neutralização da Democracia Cristã (DC), partido que ocupava o centro do espectro político. O objetivo era levar a situação para um ponto de desinstitucionalização para em seguida desfechar o golpe final.

Esta estratégia revelou-se acertada pois obedeceu uma análise de fundo: a legitimidade de Allende estava assentada na legitimidade da democracia chilena, espaço onde a esquerda pôde se configurar como força nacional e o próprio Allende pôde se transformar em expressiva liderança política. O que o sustentava no governo era muito mais do que a esquerda e as massas mobilizadas. Existia no Chile um arcabouço constitucional longevo - se comparado a outros contextos latino-americanos - e uma vida política normalizada de aproximadamente 40 anos que havia possibilitado uma expansão da cidadania política das classes subalternas e um padrão de desenvolvimento estatal frente às questões sociais que poucos países da região possuíam.

Derrotar o governo Allende e a Unidade Popular era, portanto, uma operação de grande envergadura. Tratava-se de uma encruzilhada histórica, percebida pela natureza da crise que precedeu ao governo da UP. Em 1970, quando Allende assumiu o governo, o país vivia uma grave crise nacional: crise do papel integrador e redistributivo do Estado; crise da economia, em virtude da longa e custosa transição a uma nova fase da industrialização substitutiva; crise do sistema político, em decorrência de um processo acentuado de ideologização e polarização que havia atingido sua maior fragmentação político-eleitoral no período governamental anterior, comandado por Eduardo Frei, presidente eleito pel DC, em 1964.

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Este contexto de sobreposição de crises atingia diretamente o plano simbólico e prático da ação política, podendo-se falar, portanto, de uma “crise dos consensos” que haviam sustentado a democracia chilena e tudo o que ela significava em termos econômicos e de reformas sociais. Numa visão de conjunto da história política chilena deste século, pode-se dizer que Allende dirigiu o último governo fundado no “pacto industrialista e democratizante” que havia sido estruturado com a vitória eleitoral da Frente Popular (1938) e que passou a viver um progressivo esgotamento a partir dos anos 50.

Neste sentido, é fundamental chamar a atenção para o significado desta participação quase que ininterrupta da esquerda chilena no interior das instituições político-estatais desde sua incorporação ao sistema da ordem no final da década de 30. De fato, construiu-se, a partir daí, uma tradição distintiva na esquerda chilena. Ainda que esta postulasse o socialismo como plataforma programática, era uma esquerda fundamentalmente desenvolvimentista e modernizadora, concertacionista e gradualista.

Pensando um pouco esta particularidade, é importante que se releve alguns aspectos significativos da história política chilena durante o século XX. Como ja foi dito, em contraste com o restante do continente, o Chile apresentava uma histórica estabilidade política, sustentada por um sistema político e partidário representativo, pluralista e de fortes raízes históricas. No final dos anos 30, elegeu-se um governo de Frente Popular, com participação direta de socialistas e comunistas. Entre 1952 e 1958, o Chile viveu algo próximo do populismo, com Ibáñez e, em 1958, reviu o retorno da direita ao governo após 20 anos, com a eleição de Jorge Alessandri. Em 1964, levou ao poder, de forma pioneira no continente, um democrata-cristão e, em 1970, conheceu, também pioneiramente, a vitória da esquerda.

Olhando a partir de um prisma mais geral, pode-se dizer que estabilidade e alternância política faziam com que a sociedade chilena parecesse ser capaz de viver mudanças políticas importantes na esfera governamental sem sofrer profundos abalos. Era estranho ao país o predomínio de uma única força política. Em relação a América Latina, o Chile ostentava, até então, a mais positiva história constitucional e de eleições livres, bem como o sistema partidário melhor estruturado do continente. Constituía-se, por isso, no país latino-americano que, de forma quase integralmente simultânea, ainda que tensa e conflituosa, conseguira viver uma trajetória de reformismo social e democracia política. Este havia sido, em linhas gerais, o caminho de “ocidentalização” do Chile.

No entanto, para alguns analistas da época2[2], ligados à esquerda, as condições político-institucionais do país contrastavam a relativa lentidão das mudanças que se operavam na esfera econômica, caracterizada como subdesenvolvida e dependente - traços comuns à maioria dos países pobres. Foi em torno da defasagem entre as dimensões político-institucionais e sociais e a esfera econômica que a UP desenhou a sua estratégia de superação dos obstáculos ao desenvolvimento nacional e social.

Na linguagem da UP, o Chile só poderia encontrar sua emancipação através de transformações de caráter “antiimperialistas, antioligárquicas e antimonopolistas” que abrissem caminho para a implantação do socialismo. A questão do socialismo traduzia-se, assim, como a proposta da esquerda para que a sociedade chilena pudesse superar a defasagem entre economia e política. A sua “estratégia global” tinha como propósito básico a transferência para o Estado dos meios de produção fundamentais, estruturando-se assim o que se denominou Área de Propriedade

2[2] Ver principalmente PINTO, Anibal. Chile, un caso de desarrollo frustrado. Santiago:

Editorial Universitaria, 1958 e “Desarrollo economico y relaciones sociales” in VVAA. Chile hoy. B. Aires: Siglo XXI, 1970.

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Social (APS) da nova economia. De acordo com o programa da UP, objetivava-se: resolver os problemas imediatos das grandes maiorias; garantir emprego a todos, com remuneração adequada; libertar o Chile da subordinação do capital estrangeiro; possibilitar um crescimento econômico rápido com o máximo desenvolvimento das forças produtivas; ampliar e diversificar as exportações, abrindo novos mercados; e, promover a estabilidade monetária3[3].

Desta forma, pode-se dizer que a superação do atraso constituiu-se, de fato, no leitmotiv da UP. No entanto, a tese da defasagem resultou limitada para diagnosticar o estado real da economia chilena e das relações entre Estado e sociedade, configurando-se numa séria fonte de problemas políticos durante o processo da “experiência chilena”. No fundo, diante dos desafios de um programa efetivo de combate ao atraso, o comportamento do governo foi permanentemente questionado pelas formas cada vez mais modernas de reprodução política e social vivenciadas pela sociedade chilena, que exigiam da sua esquerda a elaboração de um caminho singular para que o socialismo pudesse ser proposto e implementado. O atraso não poderia ser atacado sem uma “estratégia democrática” que pensasse também os caminhos para o socialismo a partir deste elemento condicionante.

Por esta razão, Allende mostrou-se, por todo tempo, preocupado em enfatizar o objetivo e o percurso que deveria ser adotado. Dai sua insistência em pregar uma via política e institucional para o socialismo. Nas palavras de Allende, isto seria possível através da conquista de uma “legalidade socialista” que substituísse a “legalidade capitalista” mediante um processo de transição integralmente dependente do realismo das forças políticas. A criação socialista no Chile, de acordo com Allende, supunha um como fazer político-institucional que envolvia e dependia do movimento de todos os atores políticos, das suas opções a cada passo, especialmente e sobretudo da própria esquerda. Era esta, em essência, a sua via chilena ao socialismo4[4].

Via chilena e via democrática ao socialismo

Em diversas oportunidades Allende usou a expressão via democrática para qualificar melhor a opção que a esquerda deveria seguir no Chile. Esta expressão, para Allende, enfatizava substantivamente a forma de luta e o comportamento político que a esquerda deveria adotar no exercício do poder de Estado. Foi neste sentido que as suas referências à via democrática acabaram por selar historicamente uma identificação entre processo (experiência chilena) e projeto (via chilena ao socialismo) que, juntos, passaram a ser vistos como uma experiência prática de aplicação daquilo que na cultura política da esquerda ocidental se chamava, de maneira um pouco difusa, de via democrática ao socialismo.

No entanto, a história não corrobora esta identificação. Mesmo que se tenha pautado pela utilização de procedimentos democráticos visando a implantação do socialismo, a experiência chilena apenas pode ser compreendida como uma tentativa de realização prática da via chilena, uma vez que o projeto que a embasava nem sempre fora compreendido no interior da UP como uma via democrática ao socialismo. A identificação entre via democrática e via chilena ao socialismo não se configurou, portanto, como uma linha política clara e hegemônica nem no governo nem entre os partidos que o apoiavam.

3[3] Cf. MARTNER, Gonzalo. El gobierno del presidente Salvador Allende, 1970/1973:

una evaluación. Santiago: PEDNA/LAR, 1988. 4[4] Cf. ALLENDE, S. Discursos. Havana: Editorial de Ciencias Sociales, 1975.

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Isto pode ser compreendido examinando-se a cultura política que informava os partidos da esquerda chilena. Neste sentido, é importante enfatizar aqui que a estratégia defendida por Allende apresentava-se como bastante inovadora para os dois principais partidos da esquerda chilena, o PC e o PS. Para ambos, a necessária superação do Estado burguês no processo revolucionário chileno se concluiria com o estabelecimento da ditadura do proletariado, única situação em que se poderia pensar a implantação do socialismo.

Para o PC, contudo, devido à sua estratégia de revolução por etapas, a fase de libertação nacional, na qual se inseria o governo da UP, deveria se processar sem alteração substancial da institucionalidade vigente. Ultrapassada esta etapa, a questão da ditadura do proletariado estaria colocada. Esta estratégia deixava em aberto se as conquistas democráticas seriam consideradas como referenciais para a sociedade socialista que se queria construir ou se seriam válidas apenas para o período de transição que precedia a conquista total do poder, problematizando, aos olhos dos outros atores políticos, o projeto da via chilena concebido pelos comunistas5[5].

Para o PS, a resolução da questão do poder se colocava no interior do processo de transição. Os socialistas propunham um “Estado paralelo”, cuja função seria destruir o Estado representativo existente. A tarefa primordial do governo Allende seria abrir passagem à ditadura do proletariado através de um processo político ininterrupto de confrontação total. A questão da ruptura com o ordenamento jurídico-institucional seria um problema de natureza tática a ser considerado em função da acumulação de forças sociais, políticas e militares. Para os socialistas, não existia uma “via chilena ao socialismo”, isto é, um processo ou uma formulação inédita que alteraria o percurso dos processos revolucionários. A particularidade chilena confirmaria, mais uma vez, as leis universais da revolução6[6].

Idênticas quanto às referências teóricas e quanto aos horizontes projetados, mas diversas quanto ao comportamento político, as posições destes dois partidos definiram profundamente o curso dos acontecimentos. Embora legitimado na tradição socialista, Allende encontrou no PC um fator de sustentação que não conseguiu obter no seu próprio partido. A contestação à sua comprrensão e ao seu desenho da via chilena ao socialismo por parte da direção do PS foi permanente e aberta: desde o Congresso de La Serena, de janeiro de 1971, o Comitê Central do PS contava com uma maioria esmagadora de partidários das teses insurrecionalistas (75%), inteiramente contrárias ao caminho político defendido por Allende. Os comunistas, por sua vez, apesar do seu apoio a Allende, somente defendiam o seu projeto de forma instrumental, como uma etapa da revolução de libertação nacional, prévia à ditadura do proletariado.

A partir destas constatações, que a pesquisa histórica torna inapelavelmente evidentes, é impossível desconsiderar que aquela esquerda concebia a via chilena apenas como um elemento de retórica, um slogan, um artifício de mobilização de suas bases. Na realidade, portanto, a via chilena constituiu-se apenas numa “anunciação” e não numa aplicação da via democrática para o socialismo. Ela não poderia ter sido, portanto, a não ser no plano das intenções, uma apropriação da idéia de que a democracia era ou poderia ser “a via” do socialismo.

5[5] Cf. FURCI, Carmelo. The Chilean Communist Party and the road to socialism.

London: Zed, Books, 1984. 6[6] Cf. WALKER, I. Del populismo al leninismo y la inevitabilidad del conflicto: el Partido

Socialista de Chile(1933-1970). Santiago: Cieplan, n.91, 1986.

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O discurso presidencial afirmou-se, assim, como uma estratégia própria, rejeitando tanto a “revolução por etapas” quanto o “Estado paralelo”, embora compartilhasse outras visões com os dois maiores partidos da UP. Em diversas oportunidades, Allende falou também de uma “via socialista” para a superação do atraso - e nisto ele estava bastante próximo do seu partido. Mas, a ênfase na manutenção das instituições sociais e políticas o aproximava taticamente dos comunistas. Desta forma, a sua autonomia foi se definindo através de pontos de convergência entre o PC e o PS, transformando sua liderança em elemento de equilíbrio do eixo comunista-socialista, até que a realidade ruísse sob seus pés.

Neste sentido, é necessário refletir a respeito do caráter anunciador e inconcluso do próprio projeto da via chilena concebido por Allende, o que, ao nosso ver, possibilita cancelar as interpretações conclusivas daquela experiência como uma aplicação prática da via democrática ao socialismo. Ao nosso ver, a formulação da via democrática ao socialismo apenas permaneceu como o elemento mais inovador que se anunciava no projeto da via chilena e no comportamento político do presidente Salvador Allende ao tentar, a partir do governo, conduzir o processo naquela direção.

No entanto, esse elemento projetual, mais intencional do que dirigente de uma grande política, perdeu poder de atração e eficácia no decorrer do governo, diluindo-se na imperiosa necessidade de manter unida a coalizão de esquerda como forma de sustentação política. Do ponto de vista prático, o que ocorreu foi que a via chilena ao socialismo de Allende acabou por reduzir-se a um conjunto de operações táticas frente à economia e ao aparelho de Estado, conformadas na chamada “via político-institucional” formulada com mais sistematização por Joan Garcés, assessor político da presidência da República.

De toda forma, é importante deixar claro que a transição pela via socialista de que falava Allende deveria se fazer no interior da legalidade existente, aprofundando e concretizando o conteúdo democrático e formal do Estado, e ser sustentada pela mobilização de massas. Neste sentido, a via socialista, de acordo com Allende, não poderia ser senão uma via democrática. Allende supunha, contudo, que o processo se encaminharia para uma situação de ruptura, transformando o Estado vigente em Estado antagônico ao capitalismo. A via socialista deveria ser capaz, nestas circunstâncias, de articular simultaneamente criação socialista e resolução do problema do poder como processos construtivos de desarticulação da dominação capitalista. Aqui resoam ecos significativamente fortes do “socialismo de esquerda”europeu que, à época, criticando o comunismo soviético e a direitização social-democrática dos partidos socialistas da Europa Ocidental, procurava encontrar uma alternativa que vinculasse reforma e revolucão7[7].

Em pugna e buscando todos os pontos de convergência possíveis com o PC e o PS, esta estratégia, ainda que inteiramente inconclusa, esteve presente no governo Allende, sem conseguir se afirmar como concepção dirigente e definir a UP como o ator político da via chilena ao socialismo. Ela estava, no fundo, eivada pela contradição que cortava o coração da esquerda chilena. A UP, fraturada, não executou nem desenvolveu a via chilena ao socialismo e o que nela se anunciava como uma possibilidade de caminho democrático ao socialismo.

O desafio inédito e os limites da esquerda chilena

7[7] Cf. AGGIO, A. Democracia e Socialismo: a experiência chilena. São Paulo: Editora

UNESP, 1993, especialmente o último capítulo.

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No fundo, a questão era muito anterior às vicissitudes e aos problemas da esquerda chilena conformada em ator governante a partir de 1970. Como se disse anteriormente, esgotado o arreglo democrático 8[8] que havia possibilitado a modernização do Chile, o país iria viver, nos anos 60, o ardor pelos cambios radicales fermentariam nos segmentos progressistas uma verdadeira aversão às reformas. Quando a esquerda chegou ao governo através de eleições, colocou-se diante dela o desafio de elaborar e levar à prática a construção de um “novo consenso”, uma vez que era necessário enfrentar realisticamente os problemas que se avolumavam para que se pudesse falar, também com realismo, em construção do socialismo.

Entretanto, o tempo não havia passado em vão. A esquerda chilena que foi ao governo com Allende em 1970 - e muito particularmente aquela que permaneceu fora dele, notadamente o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionario) - era não apenas utópica mas escatológica9[9]. Prisioneira de categorias e esquemas abstratos, ela se moveu naquele processo sempre através da lógica do enfrentamento de classes e esteve - contrariamente ao que pensava Allende e uma parte do governo - inclinada permanentemente para a idéia de uma ruptura com o ordenamento político, buscando definir a chamada “questão do poder”, para usarmos aqui a linguagem da época.

Havia na esquerda chilena uma espécie de obsessão pelo socialismo e, por essa razão, ela estruturou sua política mais em função dele do que da democracia. Isso levou a que se mantivesse e se reproduzisse no interior da Unidade Popular os impossíveis compromissos entre o que se anunciava - a transição para o socialismo pela via da democracia - e estratégias de “duplo poder” ou “pólo revolucionário”.

Neste cenário, era ininteligível, para parcelas significativas da esquerda chilena, as tentativas de acordo entre o governo da UP e a DC para que se pudesse obter algum pacto com o centro político, o único caminho razoável e, também, a única possibilidade de se garantir a governabilidade, a continuidade do “trânsito institucional”, bem como a maioria estatal para se estabilizar uma democracia em desenvolvimento. Entre maio e junho de 1972, por motivos que hoje consideramos absolutamente banais, fracassaram as negociações entre UP e DC, num momento em que o seu êxito esteve bastante próximo.

Por meio desta última e fracassada tentativa de encontrar um trânsito negociado reafirma-se novamente, do ponto de vista da análise, o fato de que, ao contrário da imagem que se cristalizou sobre a experiência chilena, a realidade é que ela não se configurou num exemplo histórico de implementação da chamada via democrática para o socialismo. E, como se disse anteriormente, isto ocorreu porque a esquerda chilena ficou a meio caminho no interior desta estratégia, quando não contra ela.

Por outro lado, não há como negar que, no Chile de Allende, havia uma situação inédita. Entre a ativação de massas e a preservação da ordem democrática residia, efetivamente, o enigma da transição democrática ao socialismo que se propunha na via chilena. Entretanto, no contexto de afirmação das “alternativas globais” que se estruturaram no interior das elites políticas chilenas a partir dos anos 60, o desencadeamento pela esquerda de um processo de “anti-revolução passiva” em relação ao padrão reformista construído desde o final da década de 1930 acabou por gerar um ambiente de antagonismo e polarização precisamente num momento de

8[8] A expressão aparece em TIRONI, Eugenio. El Liberalismo Real. Santiago: Sur, 1986.

9[9] Esta avaliação aparece explicitamente em MOULIAN, Tomás, “La Unidad Popular:

fiesta, drama y derrota” in GAZMURI, J. (org.). Chile en el umbral de los noventa.

Santiago: Planeta, 1988.

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emergência de massas no cenário político. Ao ser concebido e implementado como uma via socialista, isto é, como uma “alternativa global” e antagônica, tal processo favoreceu, contra todas as intenções democráticas esposadas na via chilena, o cancelamento da ordem democrática vigente no país, contribuindo para o seu colapso.

O colapso da democracia e as lições da experiência chilena

Processo radical de democratização incapaz de sustentar a democracia política, a “anti-revolução passiva” da UP, levada à prática a partir de 1970, e suposta na estratégia democrática ao socialismo defendida por Allende, não conseguiu captar em toda a sua plenitude a dupla face da modalidade específica de revolução passiva que havia sido responsável pela trajetória de modernização do país. Modalidade específica que, expressa num “compromisso tácito” que permeava fundamentalmente a sociedade politicamente organizada, havia possibilitado industrialização e desenvolvimento, bem como liberdade política e democracia. Em outras palavras, tudo aquilo que estruturava a base da sociedade e que ajudou a organizar, material e politicamente, aquela ativação de massas que sustentou o governo da Unidade Popular até o final. Enfim, o que havia de essencial na particularidade chilena, isto é, o elemento distintivo daquela formação social: havia alí a presença autonoma (inclusive governante) do ator da antitese. Por esta precisa razão, a revolução passiva que havia dirigido e pavimentado o caminho de ocidentalização do país era, até então, a mais avançada do sub-continente, fazendo com que a historia política do país fosse distinta, marcada pela presença forte e singular dos atores políticos representativos das demandas provenientes das classes subalternas.

Após o colapso da democracia chilena em 1973, o que se seguiu foi o predomínio de uma das “alternativas globais” desenhadas a partir da década de 1960 que rapidamente se atualizou nas “modernizações” neoliberais, decapitando as duas cabeças do Jano chileno. Ao cancelar sobretudo a esfera política e participativa da sociedade, o golpe e o regime que as sustentou se impuseram implacavelmente contra as próprias elites políticas que as apoiaram, da mesma forma que nos processos revolucionários paradigmáticos, invertendo, como num paradoxo sinistro, os sinais da “profecia” da inevitabilidade da confrontação acalentada pelos setores mais revolucionaristas da esquerda.

Conclusivamente, parece correto afirmar que a experiência chilena viveu, por todo tempo, o desacerto entre um programa que, implementado pelo governo, não configurava uma revolução e o maximalismo da sua esquerda, inclinada a ver o período como a ante-sala do socialismo, quando não o próprio socialismo. O discurso da via chilena ao socialismo, por não ter se tornado para os partidos da esquerda mais do que uma bandeira agitativa, acabou jogando no sentido de manter e reproduzir o mencionado desacerto, tornando difícil a manutenção de uma direção única por parte do governo encabeçado por Allende. Mesmo com todas as diferenças no seio da esquerda, imaginou-se que tudo pudesse ser resolvido por uma injeção de vontade política e, no plano econômico, pelo aquecimento do mercado (demanda efetiva), como resultado a ser colhido pela implementação do programa governamental, onde supunha-se que estatização e redistribuição reforçar-se-iam mutuamente. Na prática, entretanto, o que o programa implementado pela UP objetivava não era mais do que a intensificação da integração social através de políticas sociais populares, o aprofundamento da democratização e da participação políticas e a continuidade da industrialização substitutiva, mediante o processo de nacionalizações e estatizações10[10].

10[10] Cf.TIRONI, E., op.cit..

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Não há como negar que a situação chilena exigia uma grande criação. O novo da situação política após a vitória de Allende deveria aparecer como novíssimo na concepção de transição ao socialismo que se anunciava. E isto significava, antes de tudo, conseguir fazer emergir o novo a partir do que havia de essencial na particularidade chilena. Sem conseguir uma nova formulação do tempo político e, com ela, uma nova noção de ruptura - pactada e reformadora -, a via chilena apenas conseguiu anunciar-se como uma via democrática.

Esta é, em síntese, a grande lição do Chile de Allende: ao se propor um caminho democrático para o socialismo, onde quer que seja, a esquerda não pode prescindir de uma nova política que assuma a democracia na sua dupla dimensão de processo de democratização e de sistema de governo. É explicável que a esquerda consiga assimilar melhor a primeira destas dimensões porque forja-se nela. Entretanto, ao fazer uma opção por ingressar no sistema político, assumindo postos governativos, a esquerda precisará compreender o significado forte da segunda. Para uma esquerda de perfil moderno, há aqui uma outra lição a ser apreendida: os processos de transformação da sociedade não podem levá-la a graus tão elevados de polarização, deixando-a sob o governo das paixões, tendentes à exacerbação. É importante se admitir integralmente que a construção de uma nova sociedade não pode ser mais pensada como derivada apenas, e exclusivamente, de transformações econômicas, e que segurança e ordem conformam aspirações legítimas da população.

No Chile de Allende era muito comum, como uma espécie de justificativa diante das decisões nada fáceis que se tinha de tomar, a utilização da máxima “se hace camino al andar”. Hoje, torna-se imperioso adicionar que, de fato, o caminho do novo só se constrói ao caminhar ... desde que a cabeça governe os pés.