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  • Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 22, n. 31, p. 347-378, jul./dez. 2010

    ISSN 0104-4443Licenciado sob uma Licena Creative Commons

    [T]

    Conscincia imaginativa, fantasia e mtodo em Husserl

    [I]

    Imaginative consciousness, phantasy and method in Husserl

    [A]Alberto Marcos Onate

    Doutor em Filosofi a pela Universidade de So Paulo (USP), professor associado da Universidade Estadual do Oeste do Paran (UNIOESTE), Toledo, PR - Brasil, e-mail: [email protected]

    [R]Resumo

    Quando elabora a terceira seo de Idias I,1 e em especial o pargrafo 70, Husserl lega a seus intrpretes uma difcil tarefa. Embora estudos j clssicos, como os de Eugen Fink e Maria Manuela Saraiva, tenham de algum modo tratado das implicaes fi losfi cas da referida seo, novas abordagens parecem pertinentes. Sobretudo, aps a publicao em 1980 do volume 23 da Husserliana, referente s presentifi caes intuitivas. O ar-tigo estrutura-se a partir de trs objetivos nucleares: 1) expor e discutir os conceitos e argumentos decisivos da terceira seo de Idias I, exami-nando a interpretao dos comentadores clssicos acima mencionados; 2)

    1 Como a edio mencionada anterior reforma ortogrfi ca da lngua portuguesa, ser mantida a grafi a original, com acento.

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    apresentar e debater as principais contribuies fi losfi cas trazidas pelo vo-lume do Nachlass ao tratamento dos temas da conscincia imaginativa, da fi co e do mtodo fenomenolgico husserliano, conectando-as tessitura argumentativa dos referidos trechos de Idias I; 3) examinar o alcance de algumas interpretaes contemporneas dos temas a partir do exposto nos itens anteriores.[P]Palavras-chave: Husserl. Fenomenologia. Conscincia imaginativa. Fantasia.

    Mtodo.

    [B]Abstract

    When elaborating the third section of Ideas I, and in particular paragraph 70, Husserl hands down to its interpreters a di cult task. Although classic studies, such as of Eugen Fink and Maria Manuela Saraiva have somehow dealt with the philosophical implications of that section, new approaches are relevant. Especially aft er the publication in 1980 of volume 23 of Husserliana, referring to intuitive presentifi cations. The article is struc-tured from three core objectives: 1) Explain and discuss the concepts and clinchers in the third section of Ideas I, examining the interpretation of the classic commentators mentioned above, 2) Present and discuss major philo-sophical contributions brought by the volume Nachlass of the treatment of the themes of imaginative consciousness, fi ction and the Husserlian phe-nomenological method, connecting them to the argumentative texture of these pieces of Ideas I. 3) Examine the scope of some contemporary inter-pretations of the themes from the above in previous sections.[K]Keywords: Husserl. Phenomenology. Imaginative consciousness. Phantasy.

    Method.

    I

    Dentre os mais importantes legados cartesianos fenomenologia de Husserl, destaca-se a preocupao com o mtodo. Embora o pensador alemo condene os desvios naturalistas da trajetria cartesiana em busca do mtodo perfeito para o conhecimento de tudo o que possa ser conhecido, conserva o modelo de um percurso metdico fundante, doravante conduzido em regime

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    estritamente transcendental. A terceira seo do primeiro volume de Idias para uma fenomenologia pura e para uma fi losofi a fenomenolgica2 constitui um dos pontos altos da exposio husserliana respeitante ao mtodo. O ncleo da seo parece estar na enigmtica proposio que encerra o pargrafo 70:

    Assim, caso se goste de discursos paradoxais e se entenda a plurivocidade do sentido, pode-se efetivamente dizer, com estrita verdade, que a fi co constitui o elemento vital da fenomenologia, bem como de todas as cin-cias eidticas, que a fi co a fonte da qual o conhecimento das verdades eternas se alimenta (HUSSERL, 1976, p. 148).3

    Para evitar mal-entendidos, Husserl logo acrescenta uma importante nota: Uma proposio que, como citao, prestar-se-ia em especial para ridi-cularizar naturalmente o modo eidtico de conhecimento (HUSSERL, 1976, p. 148). Visando a escapar cilada prevista pelo autor, cabe, primeiramente, analisar-se o contexto conceitual e argumentativo no qual se insere o trecho, para assim esclarecer o seu sentido e, sobretudo, as suas implicaes fi losfi cas.

    Conquistado o acesso ao campo transcendental, mediante progressi-vas redues eidticas e fenomenolgicas, deve-se explor-lo em sua infi nidade, descrevendo com rigor o conjunto das vivncias (Erlebnisse) puras e dos nexos essenciais que as entrelaam. O maior desafi o diz respeito ao comeo correto, ao adequado ponto de partida das incurses transcendentais. As meto-dologias fi losfi cas e cientfi cas pretritas no servem de modelo, pois o m-bito a ser desbravado no fra sequer vislumbrado por elas. A primeira difi cul-dade encontra-se na parentesiao do eu natural do prprio fenomenlogo que exercita o mtodo. Embora Husserl se mostre confi ante na consecuo deste passo redutor, os pensadores da tradio fenomenolgica comungaro na des-confi ana quanto exequibilidade de tal desconexo do processo aperceptivo natural, no sendo sufi ciente a exemplifi cao husserliana de que o sujeito matemtico, todavia, no pertence ao teor eidtico das prprias proposies

    2 Designado na sequncia do texto como Idias I.3 Todas as tradues so de minha autoria, pois as opes terminolgicas derivam da interpretao

    terica adotada em cada caso. As tradues francesa, de Paul Ricoeur, e portuguesa, de Mrcio Suzuki, vertem Phantasie por imagination e imaginao, respectivamente. Como se verifi car ao longo do artigo, tal traduo no adequada, pois pelo menos desde 1898 Husserl j estabelecia diferenas fenomenolgicas decisivas entre Phantasie e Imagination, com todas as suas derivaes vocabulares.

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    matemticas (HUSSERL, 1976, p. 137). O eixo da argumentao husserliana contra seus futuros contestadores refere-se harmonia de instaurao inten-cional entre eu emprico e eu transcendental. Suas vigncias intencionais so sucessivas, o que afasta o risco de excluso de um pelo outro ou vice-versa. Ao invs de oposio devida a qualquer simultaneidade efetivadora, impera a plena complementaridade entre seus regimes intencionais alternadamente emergentes. Deve-se distinguir a concomitncia no plano estritamente consti-tutivo, em que ambos se mostram contemporneos, e a sucessividade dinmica da ateno intencional que os apreende a cada vez. A segmentao decorre da atitude (Einstellung) assumida pelo eu na apreenso do campo fenomenal que se lhe apresenta: ora a atitude natural, interessada, entregue aos fenmenos; ora a atitude transcendental, desinteressada, refl exiva diante dos fenmenos. No limite, no h dois eus, mas apenas um eu que se desdobra visando a compreender as estruturas instauradoras dos fenmenos. Tal desdobramento egoico suspende a crena existencial na experincia natural de si, abstm-se dela, no a nega nem a coloca em dvida e, justo nesta medida, metodologi-camente legtimo e fi losofi camente fecundo.4

    Considerando superado tal obstculo metodolgico, Husserl coloca-se de imediato perante outro bice, ainda mais entranhado: agora no concer-nente ao estatuto do operador da fenomenologia, mas respeitante ao estatuto da relao da fenomenologia consigo. Enquanto investigao essencial das vivncias puras, a visada fenomenolgica depende, para instaurar-se metodo-logicamente, das prprias vivncias puras que investiga, numa desconcertante autorremisso. Confl uncias que parecem encaminhar a um crculo metodo-lgico. Embora reconhea certa difi culdade na soluo do impasse, Husserl mostra-se confi ante em sua explanao: o argumento-chave concerne noo de aperfeioamento metdico, mediante o qual parte-se de incurses meto-dolgicas hesitantes para, gradativamente, conquistar o pleno domnio me-tdico, propiciando que o autor diagnostique o alcance de seu prprio texto de maneira bastante favorvel: todo este escrito, que deseja preparar o ca-minho fenomenologia, , por seu contedo, integralmente fenomenologia (HUSSERL, 1976, p. 139). Apesar do otimismo husserliano, deve-se encarar com seriedade os limites impostos pela autorremisso metodolgica da feno-menologia, pois o recurso a noes como progresso concordante, ideia em

    4 Nas Meditaes cartesianas Husserl se expressa de maneira lapidar: Com certeza pode-se dizer: eu, enquanto em atitude natural, sou tambm e sempre eu transcendental, mas s sei disto mediante o cumprimento da reduo fenomenolgica (HUSSERL, 1973, p. 75).

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    sentido kantiano, tarefa infi nita e outras similares apenas procrastinam o vere-dito da fenomenologia sobre seu prprio alcance fundante, seja no tocante ao papel metdico da fi co, seja em relao a outros tpicos crticos. O desafi o maior e global refere-se passagem da atitude natural atitude transcendental: se ela no se processa por um salto injustifi cado, como determinar, nas variadas etapas da modifi cao neutralizadora, o momento exato da transformao? Desafi o que repercute diretamente na meditao e na exposio husserliana respeitantes ao privilgio metdico da fi co.

    Outro cuidado metdico realado por Husserl diz respeito preci-so na linguagem que expressa a apreenso de essncias (Wesenserfassung). A exigncia de univocidade terminolgica est presente j nas Investigaes lgicas e acompanha o pensador at em seus ltimos textos pblicos e pri-vados. O discurso fenomenolgico deve pautar-se exclusivamente por sig-nifi caes claras e nicas (HUSSERL, 1984, p. 140). Cumprir tal demanda implica, sobretudo, operar distines vocabulares e proposicionais cada vez mais minuciosas, aptas a exprimir o exato contorno semntico e sinttico de cada essncia apreendida. Tanto nas obras publicadas quanto nos manuscritos particulares verifi ca-se o esmero husserliano na tarefa diferenciadora, embora nem sempre ela tenha cumprido seu escpo.5 Se no discurso natural as equivo-cidades so inevitveis, graas contnua variao dos dados empricos, o dis-curso transcendental requer j em sua instaurao novas sintaxe e semntica. A opo husserliana para elabor-las abdica do recurso a neologismos, mas, assim, obriga-se a explicar-se de modo reiterado sobre os novos signifi cados, ajustados ao regime transcendental. As persistentes queixas pela incompre-enso de seus leitores e crticos, as contnuas autocorrees expositivas, o emprego de um estilo denso e marcado por cadeias segmentadoras s vezes excessivas, decorrem desta escolha, talvez necessria, mas incmoda, inclu-sive para o autor.6

    5 Ao longo de seu estudo sobre A imaginao segundo Husserl, Maria Manuela Saraiva aponta diversas lacunas nestas distines subtis e nem sempre claras (SARAIVA, 1994, p. 149).

    6 No prefcio de 1920 Sexta Investigao Lgica, ele afi rma: Quem aqui, bem como nas Idias, quiser entender o sentido das minhas exposies, no deve, com certeza, temer incmodos considerveis, nem mesmo o incmodo de parentesiar os seus prprios conceitos e convices. Os incmodos, todavia, so exigidos pela natureza das coisas. Quem no os teme, encontrar ocasio bastante para aperfeioar as minhas exposies e, se tal lhe der prazer, censurar as suas imperfeies. S no deve tentar isto com base numa leitura superfi cial e a partir de um crculo de pensamento no-fenomenolgico, sem ser desautorizado por todos os que entendem efetivamente (HUSSERL, 1984, p. 535).

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    Delineados os possveis obstculos metdicos e expostas as melhores alternativas para enfrent-los, Husserl dedica-se na seqncia explicitao das peculiaridades inerentes apreenso de essncias e de suas conexes es-senciais. Dinmica apreensiva que deve privilegiar o modo de doao das vivncias em detrimento dos dados estritos destas. Orientao metdica que no infi rma o vnculo entre os respectivos nveis fenomenolgicos das intui-es individuais e de suas correspondentes apreenses essenciais. Em ambas as apreenses os nveis vo da obscuridade total, em que no h propriamente doao, clareza total, em que a proximidade doadora plena, sem resto. Reafi rma-se assim o intuicionismo husserliano: h sinonmia entre intuio e clareza, bem como entre no-intuio e obscuridade. Equivalncia vlida inclusive para as representaes vazias, meramente simblicas, incluso que amplia o campo semntico da noo de apreensibilidade (Erfassheit), aproxi-mando-a do sentido da noo de disponibilidade (Bereitschaft). Decorre da a segmentao husserliana entre graus autnticos e inautnticos de clareza ou obscuridade apreensivas. No plano autntico de clarifi cao opera-se com a intuibilidade (Anschaulichkeit) em seus inumerveis graus. No plano inau-tntico de clarifi cao ultrapassam-se os limites da intuibilidade, em comple-xos apreensivos cuja clarifi cao depende de duas operaes complementa-res: trazer da vacuidade intuio e depois intensifi car o intudo. no plano inautntico que se processa em regra o mtodo de clarifi cao. A passagem do obscuro ao intuvel e efetivao consequente dos diferentes graus deste ocorre de modo progressivo e envolve a determinao paulatina dos vrios elementos implicados nos horizontes intencionais constitutivos de cada ato de apreenso essencial.

    Eis o contexto terico inicial em que se insere o texto de Husserl cita-do no comeo deste artigo sobre o papel da fi co na fenomenologia. Trama que, associada ao contedo do pargrafo de que a citao extrada e dos pargrafos subsequentes, mostra-se decisiva compreenso dos motivos husserlianos para caracterizar sua defesa do privilgio metdico da fi co como um discurso pa-radoxal, plurvoco e, desde que considerado isoladamente, favorvel ao ataque proveniente da atitude natural de conhecimento. Os motivos da paradoxalidade podem ser detectados na tessitura do prprio pargrafo 70 e decorrem da va-riao no estatuto funcional da presentao (Gegenwartigung) e da presentifi -cao (Vergegenwartigung) no eixo da fenomenologia husserliana. De modo mais direto, o paradoxo, assumido pelo prprio autor, deriva da precedncia fenomenolgica da percepo num aspecto e da fi co noutro aspecto. Como expor, legitimar e, sobretudo, harmonizar os dois aspectos no cumprimento

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    das tarefas descritivas fenomenolgicas? Em estrita atitude transcendental, o privilgio da percepo7 concerne originariedade (Originaritt), ao passo que o privilgio da fantasia, mediante suas operaes fi ccionais, a liberdade (Freiheit). Tanto os atos perceptivos quanto os atos de fantasia so intuitivos, ou seja, apreendem de modo pleno seus objetos visados. Contudo, esta intui-tividade se processa de maneira diferente em cada caso: na percepo predo-mina a passividade, embora compensada pela presena originria do intudo; na fantasia predomina a atividade, embora marcada pela presena derivada do intudo. O exemplo da operao do gemetra, que Husserl associa, mutatis mutandis, operao do fenomenlogo, ajuda a compreender a convivncia dos primados perceptivo e fi ccional:

    Na fantasia ele (o gemetra) deve, certamente, tender para intuies claras, de que o desenho e o modelo o poupam. Mas no desenhar e no modelar efetivos ele fi ca preso, enquanto na fantasia ele tem a incomparvel liber-dade de remodelao arbitrria das fi guras fi ccionais, de percorrer as con-tnuas modifi caes das confi guraes possveis, portanto, de engendrar inumerveis novas formaes, uma liberdade que primeiro lhe d acesso s amplides de possibilidades essenciais, com seus infi nitos horizontes de conhecimentos essenciais (HUSSERL, 1976, p. 147).

    Diante do exposto, torna-se plausvel associar todo fenomenlogo fi gura mitolgica de Jano, cabendo-lhe conjugar num s exerccio trans-cendental dois focos condutores da visada. Exigncia paradoxal que Husserl parece considerar um desafi o contnuo e necessrio de sua concepo fenome-nolgica, nunca economizando esforos para descrev-la e cumpri-la.

    No tocante ao carter multvoco do primado metdico da fantasia, ele decorre da variedade de mbitos das vivncias puras a serem descritas, cada um deles demandando adaptaes no processo fi ccional. Husserl en-ftico ao distinguir o procedimento fenomenolgico daquele inerente s dis-ciplinas eidticas de cunho matemtico, tais como a geometria e a aritm-tica. Qualquer tentativa de transpor os modelos essenciais das matemticas para as descries fenomenolgicas est previamente fadada ao fracasso. Considerando-se a fenomenologia uma cincia descritiva material de essncia, no se lhe aplicam os parmetros das cincias formais dedutivas de essncia.

    7 Husserl outorga uma vantagem percepo interna em relao percepo externa, por esta apresentar-se mais fl uida, menos permevel s apreenses essenciais.

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    justamente tal carter apenas descritivo e material que acarreta a plurivo-cidade da fantasia enquanto mtodo fenomenolgico privilegiado. Sendo sua funo precpua descrever concretos8 eidticos, a fantasia deve modular-se em consonncia com seus campos de abordagem. Os graus de evidncia essencial alcanados em regime transcendental acompanham tais variaes. No caso das singularidades eidticas, o alcance descritivo fenomenolgico restrito, circunscrevendo-se aos vrios aspectos determinados e indeterminados apreen-didos pelo fl uxo puro das vivncias. A fl uidez dos concretos visados e de seus momentos abstratos impede, ipso facto, qualquer univocidade conceitual ou vocabular. Estabelecem-se assim limites importantes ao alcance do mtodo fe-nomenolgico, assumidos desde o comeo por Husserl, embora no explorados pelo pensador em todas as suas implicaes. Limites paulatinamente franquea-dos conforme se avana nos graus de especialidade: na modalidade do em geral (berhaupt), as descries fenomenolgicas alcanam seu nvel mximo, com autonomia em relao s anlises operadas nos graus inferiores. Em paralelo s amplas investigaes no plano descritivo ainda permanece aberta a possibilidade de operaes idealizantes, que complementam aquelas desprendendo-se da base intuitiva sem, contudo, abdicar da pureza e do rigor transcendentais.

    Dimenso transcendental que, como disse Husserl, corre o risco de ser olvidada caso se tome a citao do pargrafo 70 de maneira isolada. Mais do que mera estratgia discursiva, o alerta husserliano em nota tem o papel de mostrar como difcil manter as distines necessrias entre os planos natural e transcendental, aqui relacionados compreenso do processo fi ccional. A fantasia no pode ser entendida como faculdade de um eu emprico. Embora as operaes fi ccionais tenham uma base psicolgica, no nesta que se deve buscar o sentido daquelas. Os estatutos do eu que fantasia, do objeto fantasiado e da relao que os vincula estritamente intencional. A tarefa precpua do fenomenlogo que opera as variaes fi ccionais no equivale do artista que exercita sua fantasia criadora para criar belas obras nos diversos campos est-ticos. A diferena crucial concerne a que o primeiro opera em regime de redu-o, sem depender dos componentes naturais, ao passo que o segundo opera em regime emprico, dependendo de tais componentes, embora os transmute artisticamente. As matrias-primas do fenomenlogo so as vivncias puras, visadas de modo privilegiado na fantasia, cuja operao tambm transcorre numa perspectiva pura.

    8 Conforme o sentido atribudo ao termo j nas Investigaes lgicas.

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    No mbito fenomenolgico, fantasiar signifi ca ocupar-se de maneira peculiar com estruturas notico-noemticas. Isto no implica, porm, a perda do mbito natural parentesiado, mas antes a modifi cao de seu sentido, visando apreenso essencial. na modifi cao neutralizadora (Neutralittsmodifi kation) que a fantasia desempenha sua mais importante funo metdica. Em regime de neutralidade, as estruturas notico-noemticas escapam ao domnio estrito da razo, pois no mais se subordinam aos parmetros de correo ou incorre-o inerentes conscincia posicional em todas as suas formas presentadoras e presentifi cadoras. Alm de cumprir o papel mais restrito de modo particular de conscincia neutralizadora, sobretudo da presentifi cao posicional mne-mnica (Erinnerung), a fantasia desfruta ainda de um alcance neutralizador mais amplo aplicvel a todas as vivncias puras. Tal ampliao, todavia, no equivale modifi cao neutralizadora universal. Graas similaridade no pro-cesso intencional, cabe indagar: como se distingue esta da modifi cao neutra-lizadora de fantasia? Na primeira ocorre a neutralizao dos vrios contedos intencionais presentados ou presentifi cados, ao passo que na ltima ocorre a neutralizao dos prprios atos intencionais em que tais objetos intencionais se presentam ou se presentifi cam. A ltima implica um radical procedimento de refl exo em fantasia, no qual inclusive os atos fi ccionais neutralizantes so neutralizados. Estatuto diferenciado que impede a sua reiterao, enquanto no caso da neutralizao de fantasia no h limites iterativos.

    Num nvel ainda mais radical, a modifi cao neutralizadora univer-sal estende sua operao parentesiadora ao conjunto de potencialidades dos atos intencionais, aos seus horizontes modulados pela ateno e inateno transcendentais. Sob seu infl uxo vige dupla potencialidade: uma na conscincia neutralizada e outra na conscincia efetiva. O potencial, enquanto potencial, desfruta de uma efetividade que demanda ser neutralizada para que sejam apreendidas suas estruturas. Todas as vivncias puras, inclusive as de fantasia nos diversos nveis neutralizadores, comportam fundos (Hintergrnde) em que as diversas potencialidades podem ser visadas posicionalmente e neutra-lizadas. Instaura-se uma dinmica descritiva de horizontes essenciais e con-traessenciais, cujo resultado a autoclarifi cao da conscincia pura em sua infi nita operao constitutiva. No caso dos objetos temporais, por exemplo, neutralizam-se seus respectivos horizontes retencionais e protencionais, ao passo que no caso dos objetos espaciais neutralizam-se seus horizontes de perfi s potenciais, aplicando-se sucessivamente os ajustes necessrios a todos os outros tipos de objetos intencionais. Diferenciaes decisivas entre a du-pla posicionalidade e suas respectivas neutralizaes, demarcatrias de uma

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    distino universal na totalidade da operao constitutiva da conscincia transcendental, ou seja, que abrange tanto as vivncias puras de nvel inferior, fundante (percepes, fantasias, memrias, etc) quanto as vivncias puras de nvel superior, fundado (afetos, volies, valoraes, etc.), envolvendo as lti-mas um grau descritivo mais complexo.

    A compreenso husserliana da modifi cao neutralizadora e dos te-mas a ela conexos despertou o interesse de importantes estudiosos, caben-do destacar dois deles: Eugen Fink e Maria Manuela Saraiva. Em seu ensaio intitulado Presentifi cao e imagem. Contribuies fenomenologia da inefetividade,9 Eugen Fink procura expor e esclarecer o grave equvoco fi lo-sfi co na compreenso dos conceitos presentes no ttulo, vinculando-os jus-tamente aos horizontes da temporalidade, que ele nomeia depresentaes (Entgegenwrtigungen).10 A questo condutora atinente diferena entre o estatuto intencional das presentifi caes, mais diretamente da fantasia, e o estatuto intencional da conscincia imaginativa (Bildbewusstsein), pouco explorada por Husserl na terceira seo de Idias I. Considerando-se a cons-cincia transcendental inicialmente a partir de suas vivncias presentantes, nas quais ocorre a doao originria dos contedos intencionais, detecta-se nelas a propriedade essencial de modifi cao presentifi cadora que as converte noutras vivncias, com outros sentidos intencionais, cujo estatuto de doao torna-se derivado. Nestas profundas converses fenomenolgicas, as depresentaes

    9 Publicado no Jahrbuch fr Philosophie und phnomenologische Forschung (1930, p. 239-309, v. 10). O texto precedido de um aviso do autor: A presente pesquisa um dos dois trabalhos premiados no concurso pblico organizado em maio de 1927 pela Faculdade de Filosofi a da Universidade de Freiburg sobre o tema: Distinguir os fenmenos psquicos compreendidos sob as expresses ambgas de pensar-se como se, representar-se simplesmente algo, fantasiar e submet-los a uma pura anlise fenomenolgica. Em novembro de 1929, a primeira parte, aqui impressa, foi apresentada como dissertao inaugural. O autor deve tanto s pesquisas fenomenolgicas e direo pessoal de seu mestre Edmund Husserl, tributando a seu trabalho a iniciativa de uma interrogao completamente provisria no horizonte dos problemas inaugurados por Husserl. S esta primeira parte veio a lume. Apesar do reconhecimento declarado a Husserl, nota-se no modo global de abordagem do tema a infl uncia incipiente, mas decisiva, de Heidegger. Para outros detalhes biogrfi cos e fi losfi cos que permeiam a elaborao e publicao do ensaio, consultar o livro de Ronald Bruzina, Edmund Husserl & Eugen Fink: beginnings and ends in Phenomenology, 1928-1938. sobretudo p. 7-10.

    10 Acompanha-se na traduo em portugus os exemplos da verso em francs (d-prsentations) do termo original, feita por Didier Franck, e da verso em ingls (depresenting-depresencing), feita por Ronald Bruzina.

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    desempenham um papel nuclear, embora ainda no constituam propriamente atos fenomenologicamente determinveis e apreensveis, instaurando antes simples intencionalidades passveis de descrio pura. Para tanto, elas preci-sam passar da condio de latncia essencial condio de despertar no fl uxo das vivncias puras. Tal passagem ocorre ou mediante refl exo fenomenol-gica, mantendo suas impreciso e obscuridade essenciais, ou sob o infl uxo direto das presentifi caes, determinando-se e clarifi cando-se nestas. O vn-culo o seguinte: as presentifi caes presentam as depresentaes, cabendo s ltimas fundar, desde seus respectivos mbitos constitutivos, o processo intencional conjunto.

    Embora os detalhes da dinmica horizonte-temporal das presentifi -caes, anunciados por Fink para a segunda parte do ensaio, no fossem pu-blicadas, dispe-se de relevantes indicaes, no tocante fantasia, no trecho divulgado do ensaio. A temporalidade do ego do mundo de fantasia difere daquela do ego do mundo das vivncias puras atuais, ambas comportando horizontes retencionais e protencionais diversos. Tanto no caso de fantasias localizadas, em que o mundo ambiente efetivo ainda serve como motivao transcendental,11 quanto no caso das fantasias desvinculadas de qualquer refe-rncia ao mundo ambiente efetivo, o processo fi ccional rompe com a tempo-ralidade do presente dado para adentrar nos horizontes temporais fantsticos. Horizontalidade essencial que remete questo do estatuto ontolgico dos fi cta. Novamente, Fink no se dedica diretamente a ela no trecho publicado do ensaio, fornecendo, porm, indicaes teis. Os fi cta instauram-se no mbito da inefetividade (Unwirklichkeit), da quase-presena, que no constitui mera negao ou mesmo privao da efetividade inerente s presentaes, mas um desdobramento desta.

    Torna-se capital distinguir fantasia e conscincia imaginativa, bem como seus respectivos produtos intencionais: os fi cta e as imagens. Distino que Fink associa a dois tipos de modifi cao neutralizadora: do cumprimento e do teor. No primeiro tipo, o conjunto das vivncias puras pode converter-se em simples aparncia, sem qualquer resqucio posicional, numa operao inten-cional que no pode ser repetida. A plena constituio do cumprimento remete apenas a noemas aparentes, desconectados de modifi caes atencionais es-tritas e desprovidas de implicaes objetivantes genunas. No segundo tipo, o ego constituinte opera uma modifi cao material do noema, que separa de modo abstrato no teor noemtico os mbitos efetivos e inefetivos codados e

    11 Fink d o exemplo ultrapassado da fantasia homem sobre a lua.

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    apreensveis enquanto momentos dependentes. O teor constitutivo ocorre por meio de atos mediais, que reservam um medium efetivo ao aparecimento do inefetivo e que podem ser sucessivamente repetidos.

    A conscincia imaginativa, motivada por produes humanas (foto-grafi a, obra de arte, etc.) ou eventos naturais (refl exo na gua, sombra, Fata Morgana, etc.), entendida por Fink enquanto um tipo de ato medial. Nele conjugam-se intencionalmente o suporte efetivo da imagem e o mundo inefe-tivo imaginativo correspondente, comportando temporalidade e espacialidade peculiares. A inefetividade do mundo imaginativo equivale a momentos abs-tratos de efetividades determinadas pelos suportes materiais, que se encobrem atravs do ato medial. A cobertura (Verdecktheit) interliga numa s visada in-tencional mundo imaginativo e mundo do suporte, instaurando a janelaridade (Fensterhaftigkeit) da imagem. Considerado intencionalmente, o espectador da imagem se desdobra nas funes complementares de centro orientador do mundo imaginativo e sujeito deste mundo.

    Tal como Fink, Saraiva, em sua obra A imaginao segundo Husserl, reala a analogia estabelecida por Husserl entre conscincia imaginativa e fanta-sia. Restringe, porm, o alcance das exposies husserlianas concernentes re-lao entre elas e, de um lado, a conscincia esttica; de outro lado, a conscin-cia signitiva. No primeiro caso, Saraiva detecta excesso quando Husserl estende o processo presentifi cador por semelhana conscincia esttica, em vez de limit-la ao infl uxo da modifi cao neutralizadora. Tal pressuposto conduziria o pensador alemo a analisar a obra de arte a partir do espectador que a contempla e no do artista que a cria. Ao invs da concepo husserliana, as obras artsticas no presentifi cariam imitativamente a efetividade, mas as recriariam a partir de suas imanncias esteticamente autossufi cientes, sem necessidade estrita de remeter a transcendncias efetivas que extrapolassem a mera aparncia esttica. No segundo caso, a intrprete diagnostica limitao na abordagem husserliana da relao entre imagem e signo, como ocorre na Primeira investigao lgica, em que o signo relegado a segundo plano perante a expresso judicativa.

    Saraiva procura pensar os vnculos e as distines entre conscincia imaginativa e fantasia a partir de seus processos fenomenolgicos fundamen-tais: inteno, intuio, presentifi cao e neutralizao. No plano intencional estrito, a estrutura da conscincia imaginativa implica a interao do objeto-imagem (Bildobjekt) com o sujeito-imagem (Bildsujet), ao passo que a estru-tura da fantasia dispensa o primeiro componente e considera o segundo no modo constitutivamente produtivo. No tocante intuio, embora diferindo nos graus de plenitude, conscincia imaginativa e fantasia fazem ver seus

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    objetos respectivos. Se primeira pertencem atos intuitivos fundados, se-gunda correspondem atos intuitivos fundantes. Os respectivos caracteres fun-dantes e fundados discriminam-se, de um lado, mediante os modos peculiares de apreenso, segundo os parmetros do plano intencional estrito; de outro lado, mediante os modos caractersticos de preenchimento, com suas sries contnuas particulares de decepo ou cumprimento imaginativos. Quanto presentifi cao, conscincia imaginativa e fantasia partilham do mesmo esta-tuto de modifi caes reprodutivas de carter retencional e protencional, pri-vilegiando-se na primeira a dinmica intencional do objeto presentante e na segunda o processo intencional do ato presentante, diferena de abordagem que dota a segunda de maior liberdade produtiva. Por fi m, no que concerne neutralizao, procedimento orientado aos modos de crena, a conscincia imaginativa desemboca na conscincia esttica, ao passo que a fantasia acar-reta duas alteraes complementares: uma enquanto vivncia particular paren-tesiadora dos contedos imaginados e outra enquanto modifi cao universal parentesiadora de todas as vivncias do eu puro, mtodo indispensvel visando autodescrio sistemtica deste em sua atividade constitutiva infi nita.

    II

    Embora pertinentes em vrios de seus pormenores, as interpretaes de Fink e Saraiva sofrem de uma limitao decisiva: circunscrevem-se aos textos husserlianos disponveis na poca. Numa carta de 1 de fevereiro de 1922, endereada a Natorp, Husserl afi rma: Encontro-me em situao bem pior que a sua, pois a maior parte de meu trabalho encontra-se em meus manuscritos (...). Tudo encontra-se em estgio de cristalizao! Apesar de toda a tenso hu-manamente possvel de minhas foras, talvez trabalhe apenas para minha obra pstuma (HUSSERL, 1980, p. 31-32).12 Testemunho incisivo que implica a necessidade de referir-se s anotaes privadas husserlianas concernentes ao

    12 Carta citada na Introduo do Editor, de Eduard Marbach, ao volume 23 da Husserliana. O trecho completo o seguinte: Encontro-me em situao bem pior que a sua, pois a maior parte de meu trabalho encontra-se em meus manuscritos. Quase maldigo minha inaptido em saber deter-me, e o fato que me sejam dadas to tarde, em parte somente agora, as idias sistemticas universais que no presente exigem tambm a reformulao de todas as minhas pesquisas especfi cas conduzidas at agora. Tudo encontra-se em estgio de cristalizao! Apesar de toda a tenso humanamente possvel de minhas foras, talvez trabalhe apenas para minha obra pstuma.

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    vnculo metdico entre conscincia imaginativa e fantasia, visando a aprofundar a anlise do tema. Mostra-se decisivo explorar, em seus desdobramentos nu-cleares, o contedo do volume 23 da Husserliana. Nele podem-se acompanhar, de modo exemplar, as mudanas conceituais e argumentativas de Husserl, num nvel ausente ou inexplorado de modo sufi ciente nas obras publicadas.

    Cronologicamente, o primeiro texto remonta a 1898,13 revelando a precoce ocupao husserliana com tais questes. O foco investigativo a determinao das diferenas e similaridades entre conscincia imaginativa e fantasia.14 Embora incipiente, a abordagem extrapola os quadros psicolgicos, operando j num mbito que se pode considerar fenomenolgico, como atesta a afi rmao do 9: Tomamos a apario puramente por si e interrogamos o que a diferencia neste isolamento ideal (HUSSERL, 1980, p. 127), reto-mada no 16, quando caracteriza a segmentao das representaes como puramente descritiva (HUSSERL, 1980, p. 136). Em tal regime puro de considerao, cabe distinguir sobretudo as representaes (Vorstellungen) perceptivas e imaginativas, segmentadas, respectivamente, segundo autopre-sentaes da coisa (Sache) e presentifi caes em imagem (Bild), intuitividade (Anschaulichkeit) direta e indireta. As ltimas se subdividem de acordo, sobre-tudo, com o grau de complexidade: as imaginativas em sentido estrito (mais complexas) e as fantsticas (mais simples).

    Nas representaes imaginativas estritas operam trs componentes interligados: imagem fsica, objeto-imagem e sujeito-imagem. Nas represen-taes fantsticas s os dois ltimos componentes se conectam, faltando a base fsica suscitadora do processo imaginativo. Em ambas as representaes, os respectivos contedos se constituem mediante atos prprios de apreenso objetivante, distintos daqueles inerentes aos outros tipos de representao. Relaes objetivantes que se perfazem em duas direes, em dois momentos de um s ato que visa, separadas apenas no mbito descritivo: a apreenso que objetiva numa imagem aparecente e a representao da coisa fi gurada em ima-gem. A primeira direo comporta dois desmembramentos, no modo fundante-fundado: o ato presentante da imagem, que disponibiliza o objeto, embora em

    13 Trata-se do apndice I ao texto nmero 1 do volume 23 da Husserliana, datado do inverno de 1904/1905.

    14 variada a terminologia husserliana empregue ao longo do texto para se referir aos dois tipos de vivncia: o primeiro designado, por exemplo, representao imaginativa, representao por imagem fsica; o segundo denominado de representao fantstica, representao por imagem fantstica.

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    si no seja objetal, e a conscincia da representao imaginativa, que constitui o voltar-se visando ao objeto, o efetivar-se de sua funo representativa. Tal papel representativo anlogo presentao indireta na representao perceptiva, pois em ambos os casos inclusive as determinidades (Bestimmheiten) no apa-recentes so apreendidas de modo mediato, atravs de cadeias convergentes fundadas nas determinidades aparecentes.

    Considerando-se tais distines em seu conjunto, detecta-se, fi nal-mente, tanto nas representaes imaginativas estritas quanto nas representa-es fantsticas, quatro componentes bsicos a serem descritos em suas ope-raes prprias: atos de apreenso presentativa em que o objeto imaginado ou fantasiado aparece, atos de apreenso representativa em que o objeto imaginado ou fantasiado exerce sua funo de representante-imagem, atos que visam ao ser-objeto imaginado ou fantasiado, contedos sensveis. Propriedades comuns a ambos os tipos de representaes, mas que comportam tambm importantes diferenas, sendo justamente no ltimo grupo de componentes que elas se tornam decisivas. Embora partilhem dos mesmos caracteres de ato, os dois tipos de representao discriminam-se no tocante ao fundamento de apreenso (Auffassungsgrunde) a partir do qual cada tipo se constitui. A imagem fsica, enquanto objeto efetivo inerente ao campo perceptivo, funciona como suscita-dor, ponto de partida e de passagem das representaes imaginativas estritas. A imagem fantstica exclui qualquer vnculo instaurador com a efetividade, com o campo perceptivo possvel. No primeiro caso, o contedo sensvel pre-sentante diz respeito s sensaes; no segundo caso, refere-se aos fantasmas.

    No intuito de esclarecer as distines entre sensaes e fantas-mas, enquanto contedos mediante os quais objetos aparecem, Husserl en-tende necessrio investigar as diferenas internas e externas entre aparies (Erscheinungen) perceptivas e fantsticas. O procedimento husserliano con-siste em analisar vrias opes explicativas (classes, intensidade, fl uncia, gnero) sem avanar concluses, numa postura questionante que no parece derivar apenas do carter lacunar do texto publicado postumamente, mas de hesitaes tericas profundas diante do que o prprio fi lsofo designa de me-lindrosa questo descritiva (HUSSERL, 1980, p. 124).

    Questo condutora do texto de 1904-1905,15 no qual o fi lsofo con-fessa pretender

    15 Texto nmero 1 do volume 23 da Husserliana, que contm a terceira parte das lies do semestre de inverno de 1904-1905 sobre Tpicos principais da fenomenologia e da teoria do conhecimento.

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    avanar no trabalho paulatinamente e com a mxima cautela possvel. Pois se a anlise parece simples primeiramente, so to grandes as difi culdades que se pem depois e que, gradativamente, exigem muitas modifi caes no que antes foi admitido e muitas novas distines no que antes se tomou por simples (HUSSERL, 1980, p. 17-18).

    O primeiro passo consiste em ligar a representao imaginativa es-trita16 e a representao fantstica, de modo similar ao texto de 1898. Mantm-se, porm, a atribuio de maior complexidade primeira, graas a ela incluir o componente suscitador fsico, faltante na segunda. No se descarta, contudo, a funo desse, desempenhada, na representao fantstica, pela imagem espi-ritual (geistige Bild) enquanto simples fi co. Nos dois tipos de representao imaginativa, sensaes e fantasmas funcionam respectivamente enquanto fun-damento da conscincia imaginativa em geral, da

    conscincia objetivante, a apreenso que dota de sentido o contedo, lhe confere uma relao objetal, aquela que, a partir do ser-a (Dasein) cego do contedo, faz que ocorra o apreender objetal deste como isto ou aquilo, o representar de algo com ele, o visar no este contedo, mas algo por seu intermdio (HUSSERL, 1980, p. 22).

    Tal apreenso tem como resultado o objeto-imagem representante, que, considerado isoladamente, ainda no constitui uma imagem no sentido prprio, sendo necessria para tanto uma segunda apreenso constitutiva de um segundo objeto, o sujeito-imagem. Nexos de apreenso similares aos vi-gentes na relao entre palavra e signo, na qual s a segunda apreenso dota a palavra de carter signifi cante autntico.17

    Objeto-imagem e sujeito-imagem, bem como seus correspondentes objetos, no se vinculam segundo os parmetros de uma conscincia relacio-nal comparativa. No h no processo imaginativo duas representaes sepa-radas que apenas se aglutinam, mas uma conscincia relacional de fundao, cuja primeira apreenso serve de base presentativa, no sendo a segunda apreen-so uma nova presentao, pois no remanescem contedos sensveis para fund-la. O regime vinculante das duas apreenses de integrao, de fuso

    16 Denominada agora de imaginao fsica (physische Imagination).17 Os vnculos entre funo imanente e funo simblica da conscincia imaginativa em geral

    so expostos com maiores detalhes nos pargrafos 15, 16 e 40 do texto.

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    instauradora, segmentando-se s numa abordagem descritiva. Para a anlise pura, h vrias intenes possveis, cada uma com suas visadas peculiares em acordo com os componentes privilegiados. Caso se focalize o campo relacio-nal das apreenses, detecta-se que o nexo entre elas de dependncia ou in-dependncia, exemplifi cado pelos bonecos de cera, cujos contedos sensveis podem conduzir a uma apreenso perceptiva ou a uma apreenso imaginativa estrita, indicando o carter independente da ltima em relao apreenso dependente do sujeito-imagem nela fundada.

    No tocante s relaes entre objetos-imagem e contedos sensveis, cada caso de representao imaginativa comporta implicaes analticas pe-culiares. Na conscincia imaginativa estrita, o objeto-imagem aparece en-quanto um nada de efetividade em confl ito com o presente efetivo atual. Um no-agora (Nicht-Jetzt) aparece no agora. Confl ito que se radicaliza quando, a partir da mesma base sensvel, podem ocorrer duas apreenses perceptivas divergentes, sendo uma delas aparncia sensvel (Sinnesschein), como nos exemplos da imagem refl etida do basto rompido na gua ou do boneco de cera. Carter confl itual que se suprime no caso da conscincia fantstica, pois nela os contedos de apreenso no operam simultaneamente como contedos perceptivos prprios ou imprprios. H separao total entre campo fantstico e campo perceptivo.

    Tal separao suscita a pergunta acerca do estatuto de aparecimento da imagem fantstica. Na fantasia falta o fi ctum enquanto objeto aparente de per-cepo, acarretando a ausncia de confl ito explcito entre campo perceptivo e campo fantstico. A coisa fantstica aparece num mundo inteiramente separado daquele do presente atual. Tomada exatamente como aparece na fantasia, a coisa fantstica escapa a todos os parmetros perceptivos. Na essncia da fan-tasia encontra-se a conscincia-de-no-presentidade (Nichtgegenwrtigkeits-Bewusstsein), sendo apenas no modo sucessivo que percebido e fantasiado podem aparecer. O encadeamento das aparies fundadas em sensaes e fantas-mas no unitrio: as duas podem ligar-se por nexos intencionais, mas no por nexos de copertena intencional recproca instauradora de unidades intuitivas.

    Delimitao vlida tambm para o nexo entre campo perceptivo e campo fantstico, que no podem ser intudos em conjunto: a visada em um implica a supresso atual do outro, e vice-versa. Vigora entre eles a sntese de confl ito (Synthesis des Widerstreits), que conduz unidade sinttica as partes equivalentes dos campos, nos modos da convergncia ou da divergncia, sem re-meter a unidades de apario. A passagem dum campo a outro implica uma des-continuidade objetal, modalizada segundo os tipos de conscincia imaginativa

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    em geral. No caso da conscincia imaginativa baseada em sensaes, o processo ocorre mediante apreenses perceptivas constitutivas de um presente no qual sensao vale como imagem de algo no-presente e tambm como selo de reali-dade. No caso da conscincia fantstica, o fantasma se d num carter de irrea-lidade, de no-presena, cabendo refl exo indireta conferir-lhe um presente adquirido. Modalizaes em que sensaes e fantasmas vigoram a partir de uma diferena fenomenolgica originria: presentao e presentifi cao.

    Embora os elementos dessa diferena sejam mencionados e aborda-dos ao longo dos textos de 1898 e de 1905 e de seus anexos, ainda falta neles uma compreenso e uma exposio adequadas do mbito fenomenolgico ra-dical a que tais elementos remetem: a conscincia do tempo.18 Demanda que comea a ser atendida justamente no texto nmero 2, cuja datao imprecisa.

    18 Pedro Alves aponta e discute esta lacuna no captulo II de seu livro Subjectividade e tempo na fenomenologia de Husserl. Ele considera que o texto de 1898 e as Investigaes Lgicas no seu todo acabam por sucumbir tendncia para interpretar a fantasia a partir do fi o condutor da Bildbewusstsein (ALVES, 2003, p. 65). Com tal fi o condutor, Husserl transforma uma duplicidade intrnseca representao da fantasia em dois objetos separados: um Bildobjekt enquanto momento presentativo e um Bildsujet enquanto conscincia intuitiva imprpria da coisa visada. o bom entendimento deste ponto que causa uma difi culdade extraordinria no texto de 1898. A razo ltima desse facto est na omisso do problema do tempo como fi o condutor e na sua defi ciente substituio pela oposio entre conscincia de coisa e conscincia de imagem (ALVES, 2003, p. 67). Escolha terica husserliana de graves consequncias: H, no entanto, um pesado preo a pagar por esta determinao da essncia da fantasia a partir do fi o condutor da conscincia de imagem. Falamos particularmente da catastrfi ca teoria dos fantasmas, como contedos primrios especfi cos de apreenso da fantasia (ALVES, 2003, p. 70). O ponto mais desconcertante da insufi ciente abordagem husserliana concerne, entretanto, subordinao da conscincia temporal conscincia de imagem: Na verdade, quando Husserl se abeira dos problemas especfi cos da conscincia do tempo a partir da oposio reitora entre o par Wahrnehmung-Gegenwrtigung e o par Phantasie-Vergegenwrtigung, a sua deciso de base consiste justamente em interpretar a prpria temporalidade como uma forma de conscincia fi gurativa (ALVES, 2003, p. 77). O prprio Husserl se d conta dos impasses do modelo da conscincia de imagem e o abandona gradativamente, em favor do modelo da conscincia do tempo e, mais especifi camente, da memria enquanto conscincia reprodutiva: O modelo do Bildbewusstsein para a determinao da essncia da presentifi cao signifi cava, assim, a presena recalcitrante de um suposto naturalista no interior da fenomenologia incipiente. A progresso de Husserl entre 1898 e os anos de 1907-1911, a propsito dos actos intuitivos de grau mais baixo, precisamente o lugar onde se produz a libertao da fenomenologia relativamente sua primeira apercepo naturalstica da conscincia. Essa libertao exprime-se, tecnicamente, no afastamento do tema da Bildbewusstsein e na sua substituio pelo da Reproduktion (ALVES, 2003, p. 101).

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    Nele, Husserl aborda a refl exo na fantasia, numa postura questionante voltada a explorar as vrias alternativas de compreenso do tema. A possibilidade le-gtima de atentar no ao contedo objetal da fantasia, mas a seu aparecer, a seu ser-fantasiado, concerne essncia do processo fantstico. Refl exo, no sentido lato, que se modaliza segundo alguns parmetros principais: percepo de fantasia, fantasia de percepo e fantasia de fantasia.19 No primeiro caso, o ato fantstico visado pela ateno perceptiva; no segundo caso, o ato perceptivo visado pela ateno fantstica; no terceiro caso, o prprio ato fantstico vi-sado pela ateno fantstica. Em tais casos de modifi cao refl exiva, o regime de instaurao corresponde ao quase (gleichsam, quasi), ao como-se (als ob), pela converso da visada primitiva em objeto analisado em suas estruturas. Modifi cao multiplamente modalizada que recebe a designao de fantasia interna (innere Phantasie). Cada modalizao consiste num pr (Stellen) obje-tual que lhe inerente em concordncia aos componentes estruturais da quase-conscincia equivalente.

    Tanto na modifi cao fantstica simples quanto em suas modalidades mais complexas, o processo intencional instaura-se segundo nexos temporais. O contedo modifi cado fantasticamente d-se numa distenso temporal cujo limite o agora da presentifi cao fantstica. Encadeamentos temporais abor-dados por Husserl sobretudo a partir da anlise do vnculo entre fantasia e memria (Erinnerung). A memria um ato fundado na fantasia simples, ato cujo carter no imaginativo, mas impressional. simples percepo externa de algo, ope-se a simples fantasia pura deste algo. A memria constitui uma nova apreenso que pe o algo fantasiado como passado, como representifi -cado em relao ao presente atual. A principal diferena entre memria e fan-tasia decorre da qualidade da crena vigente em cada caso: no primeiro, cons-cincia no-modifi cada e crena impressional no agora-passado; na segunda, conscincia modifi cada pela ausncia de crena e vigncia de inatualidade.

    Como na relao entre percepo e fantasia, no vnculo entre me-mria e fantasia tambm so possveis vrias modalizaes: memria de fantasia, memria de memria, fantasia de memria. Idealiter, toda vivn-cia admite vrias modifi caes intencionais. Tendo como base cada indivduo considerado noeticamente, detecta-se que ele possui uma essncia concreta, ou seja, um contedo concreto que singulariza o geral. O indivduo essn-cia individual numa diferena que para cada indivduo outra, irrepetvel,

    19 Husserl emprega, de maneira equvoca, os termos Imagination e Einbildung no sentido estrito de fantasia.

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    inespecifi cvel. Destacam-se a situao temporal (Zeitliche Lage) e a situao espacial (Raumlage). Situaes que, como todas as determinaes, referem-se a conceitos e essncias gerais, que apagam as diferenas de cada situao determinada. No caso, porm, das situaes temporais e espaciais, alm da conformao geral, seus gneros respectivos admitem diferenciaes indivi-duais. H uma diferena de contedo, enquanto essncia individual, e de for-ma, enquanto determinao individualizante predicvel do objeto, que no predicado como momento de essncia correspondente.

    Toda conscincia doadora individual intuitiva, seja no modo da efe-tividade, seja no modo da quase-efetividade. A originariedade de doao ocorre na percepo. Um individual percebido quando se d na efetividade originria do presente ou nos horizontes perceptivos originrios da reteno e da proten-o. Estes outros modos de doao intuitiva concernem ao carter reprodutivo da rememria (Wiedererinnerung), em que o individual dado reatualizado desde sua condio integralmente passada, e da promemria (Vorerinnerung), em que o individual visado no modo da expectativa desde sua condio integralmente passada. Na fantasia, a relao com a efetividade indireta, e se divide no modo perceptivo (conscincia imaginativa estrita) e no modo reprodutivo (fantasia simples), que no pode ser confundido com o modo reprodutivo no-modifi cado da memria. A conscincia fantstica uma conscincia modifi cada, na qual algo dado como sendo, tendo-sido ou a ser em experincia, mas cuja efetividade no concerne estritamente ao ser passado, presente ou futuro.

    Tal caracterstica essencial da fantasia vincula-a aos temas da possi-bilidade e da neutralidade. O fantasiado quase experienciado como isto ou aquilo, com sentido mais ou menos determinado. A experincia em fantasia ela prpria experincia possvel. Uma possibilidade pura deve excluir a co-posio de qualquer efetividade individual, constituindo-se exclusivamente mediante uma quase-experincia fantstica. A iterao das possibilidades se d por quase-sntese, enquanto a formao de novas possibilidades ocorre mediante quase-confl ito. Fantasias equivalentes em contedo comportam um regime de indeterminao temporal que impede constatar se so simultneas ou no, se presentifi cam o mesmo objeto ou no. A fantasia pura modifi ca toda crena, no a modaliza numa nova crena de ser modalizada e, assim proce-dendo, instaura de modo contnuo possibilidades puras.

    Campo de possibilidades que remete ao nexo entre fantasia e neu-tralidade, tratado na terceira seo de Idias I20 e retomado no texto nmero

    20 Conforme exposto e discutido no incio deste artigo.

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    20 do volume 23 da Husserliana.21 No exerccio fantstico detectam-se duas epochs ou neutralizaes: a primeira inerente fantasia enquanto modifi cao dos outros modos de apreenso objetal, a segunda concernente mudana de atitude mediante a instaurao de um eu posicional sobre o eu neutro, cumprindo aquele a funo de espectador desinteressado. Sob o regime do eu no engajado invalida-se qualquer crena, qualquer atitude em relao aos prprios contedos fantsticos estruturados segundo os parmetros do como se. Husserl denomina a visada do eu desinteressado de simples pensamento (blosser Gedanke), por abster-se completamente de toda considerao quanto ao estatuto de ser ou no-ser dos objetos fantasiados. Embora desfrutem de similaridade, modifi caes reprodutivas de fantasia e abstenes fantsticas desempenham papis distintos no processo intencional.

    III

    Vrios intrpretes contemporneos dedicaram-se anlise dos textos contidos no volume 23 da Husserliana, bem como trataram em geral dos temas husserlianos da conscincia imaginativa e da fantasia. Angela Ales Bello (2003), em seu artigo O smbolo na experincia sacro-religiosa: uma an-lise fenomenolgica, investiga a importncia do conhecimento simblico compreenso da experincia do divino. Descrever a funo simblica implica circunscrev-la em relao aos vrios modos imaginativos e mnemnicos de conscincia. Considerando-se a sensibilidade religiosa como abertura consti-tutiva do humano a algo que o transcende, a partir das manifestaes sacras materiais arcaicas, detecta-se uma combinao sui generis do hiltico e do notico em que predomina um realismo simblico estranho apreenso sim-blica contempornea dos objetos sacros. Na mentalidade arcaica, o smbolo religioso constitua-se pela presena, propiciando uma comunicao imediata com o numinoso. Na mentalidade crist nascente comea a esboar-se o vn-culo smbolo-presena, embora o hiltico mantenha seu privilgio no mbito sacramental. Importncia da dimenso simblica que se amplia com o decor-rer dos sculos, sem, contudo, anular o papel da presena na plena manifestao do objeto religioso enquanto instrumento da experincia numinosa.

    Valeria Ghiron (2003), em seu texto A noo husserliana de Bildbewusstsein e Einfhlung em vista de uma teoria do teatro, investiga as

    21 Cuja datao remonta a 1921-1924.

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    implicaes estticas do texto nmero 18 da Husserliana 23, mais detida-mente da fruio teatral. A autora defende que o modelo de compreenso da conscincia imaginativa mostra-se aplicvel, mutatis mutandis, descrio estrutural da relao entre o espectador e os vrios componentes do espetculo teatral. A atividade dos atores no palco cria fi ctos puramente perceptivos, sem posio efetiva, mas enquanto meros caracteres do como-se. Fictos anima-dos pela empatia estabelecida entre espectadores e atores no mbito teatral, produzida em regime analgico, graas irredutvel opacidade do vnculo emptico. Esquema descritivo husserliano que d conta da dinmica do teatro convencional, mas no aplicvel tout court ao teatro de vanguarda, transfor-mador do prprio contexto espetacular a partir de uma dimenso metalingustica que demanda outras abordagens compreensivas.

    Carmelo Cal, no trabalho Indeterminabilidade e identidade nos mundos fi ccionais, trata da questo da identidade dos objetos fantsticos em seus diferentes mbitos de manifestao. O autor considera que as condies de determinao e identifi cao vlidas para os objetos materiais, pautadas por parmetros espao-temporais e por estruturas horizontais a eles inerentes, no se aplicam aos objetos fantsticos. O mundo perceptivo um sistema infi nitamente determinvel, no qual toda variao decidvel a priori a partir do vnculo entre a experincia atual e seus horizontes concordantes ou dis-cordantes. Vnculo faltante no mundo fantstico, pois o que ultrapassa seus limites permanece indeterminado, sendo toda determinao posterior de um objeto fantstico atualmente dado marcada pela arbitrariedade das possibilida-des inscritas no horizonte fantstico que se fecha sobre si.

    Diversos outros artigos e livros recentes abordam de maneira fe-cunda os temas husserlianos da conscincia imaginativa e da fantasia,22 desta-cando-se aqui a exposio e debate do livro Fenomenologia e imaginao em Husserl e Heidegger, de Brian Elliott, pela abordagem sistemtica dos temas mencionados no conjunto da obra de Husserl e, sobretudo, pelo papel de desta-que a eles outorgado em vista de uma compreenso do mtodo fenomenolgico

    22 Apresentam-se a seguir os ttulos e autores de alguns deles: Conscincia inconsciente em Husserl e Freud, de Rudolf Bernet; Husserl e Freud: tempo, memria e o inconsciente, de Aaaron L. Mishara; Descrio e percepo plstica: uma crtica da teoria da conscincia pictrica de Husserl (2007b) e Da afetividade subjetividade (2007a), de Christian Lotz; Sobre auto-afeco fantasmtica na apercepo tipifi cante e na conscincia interna do tempo, de Dieter Lohmar; Mas o relmpago na noite de tempestade?-Fenomenologia de um limite da percepo, de Paul Ducros; O espaamento da imaginao: Husserl e a fenomenologia da imaginao, de John Sallis.

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    husserliano. Elliott emprega e comenta desde textos husserlianos anteriores s Investigaes lgicas at as anotaes particulares publicadas postumamente, adotando como fi o condutor expositivo o paralelo entre a perspectiva fenome-nolgica husserliana e a perspectiva crtica kantiana.

    Elliott interpreta inicialmente alguns ensaios husserlianos redigidos na dcada de 1890. No artigo Estudos psicolgicos de lgica elementar, de 1894, o comentador foca a distino husserliana entre representaes prprias e imprprias, caracterizando-se as primeiras pela intuitividade e as segundas pela mera representao distino em cuja vigncia Husserl encontraria di-fi culdades para enquadrar as representaes imaginativas num dos tipos es-tabelecidos, pois elas operam num mbito diferente tanto da intuio quanto da signifi cao estritamente consideradas. Hesitao husserliana legada do oscilar kantiano em discriminar os limites da esfera imaginativa entre sensi-bilidade e entendimento. Vacilao decorrente em larga medida da concepo esttica de ambos os polos envolvidos, que os converte em classes divergen-tes de objetos visados, num oniabrangente panorama de intuies prprias e representaes imprprias, ligadas temporalmente mediante a posio fi xa da impresso originria.

    Interpretando outro texto desta poca,23 agora de 1893, o comentador destaca o interesse husserliano em compreender a unidade e a continuidade do dinamismo mental a partir do exemplo que se tornar paradigmtico: a audi-o de uma melodia. Atentando sequncia da presentao meldica, Husserl reconhece um sentido restrito e outro amplo de intuio, o primeiro vinculado ao momento presentante e o segundo ligado ao ato atencional perdurante. Dado o carter temporal do processo intuitivo da melodia, deve-se reconhecer neste vivncias de recognio em cuja base se constituem a unidade e a continuidade do som meldico. Processo recognitivo vigente, mutatis mutandis, em toda presentao objetiva. O comentador ressalta que para Husserl, o sentido do dado sempre informado por um pr-sentido intencional (ELLIOTT, 2005, p. 12), instaurado j no nvel da sensibilidade e no, como defendia Kant, ape-nas no nvel do puro entendimento. A verdade intuitiva conecta o visado como conjunto estrutural e sua autopresentao preenchente.

    Embora Husserl tenha agregado uma perspectiva dinmica ao consi-derar o estatuto da imaginao no segundo texto analisado, permanece a difi -culdade de conciliar seus componentes representativos e intuitivos. Desafi o retomado no ensaio de 1894 sobre Objetos intencionais, perpassado pela

    23 Intuio e representao, inteno e preenchimento.

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    polmica com Twardowski. Guiado pela questo das presentaes sem objeto e reprovando a teoria pictrica da conscincia, Husserl defende que na pers-pectiva intencional o importante so os modos de presentao, em vez dos objetos presentados, privilegiando-se o como em relao ao que. Porm, as implicaes de tal diferena no so devidamente incorporadas abordagem husserliana da imaginao, podendo assim transformar esta em chave com-preensiva de todas as presentaes imprprias. Tal lacuna se deve concepo husserliana da unidade ideal entre inteno e intuio, verdade e ser, apesar da heterogeneidade de suas vigncias intencionais respectivas. Impasses ineren-tes aos primeiros textos husserlianos, que incitam o intrprete a colocar duas questes relevantes quanto ao estatuto husserliano da imaginao:

    Primeiro, se o ato intencional uma presentao articulada de algo em sua ausncia, como esta realizao bsica da vida mental a ser caracterizada adiante? Segundo, o que produz e mantm a unidade do fl uxo temporal de impresses antes de todos os atos de refl exo que objetifi cam o tempo vivo? (ELLIOTT, 2005, p. 18-19).

    Para aquilatar os encaminhamentos husserlianos de tais questes, o comentador privilegia a anlise da quinta e da sexta Investigaes lgicas. Nelas, Husserl aprofunda a compreenso de que a conscincia intencional no produtiva, mas reveladora das estruturas de qualquer objetividade enquanto tal. Revelao na qual todo o processo imaginativo desempenha um papel metdico preponderante relativamente ao processo perceptivo, cabendo ao l-timo a funo de exemplaridade a partir da qual ocorre a ideao das essncias gerais e de suas conexes ideais. Aos diferentes modos de visar a objetos pos-sveis correspondem diferentes modos de intu-los, constatao que implica ampliar o mbito do conceito de intuio, de maneira a incluir a imaginao como seu modo metodologicamente privilegiado. Alm da intuio sensvel, nica aceita e explicitada por Kant, Husserl admite uma intuio categorial, que apreende em sua efetividade generalidades essenciais.

    Elliott considera que, no intuito de melhorar a compreenso do papel da imaginao no processo intuitivo ampliado, Husserl explora os vnculos temporais que a instauram. O texto-chave refere-se ao curso de 1904-1905 sobre o tema, ministrado na universidade de Gttingen. O foco husserliano refere-se conscincia temporal, e no ao tempo objetivamente dado, no sen-do aquela um mero agregado de momentos presentes, mas uma unidade sin-ttica de carter horizontal perpassada por impresses originrias, intenes e

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    protenes. Aps analisar os pormenores da exposio husserliana, o diagns-tico do comentador severo:

    As contradies internas e inconsistncias da abordagem fenomenolgica husserliana da conscincia se acumulam: o colapso da distino imaginao/rememria; a tenso entre as noes distenso alm do agora e contrao atrs da presena pontual; as simultneas atividade e passividade da subje-tividade absoluta (ELLIOTT, 2005, p. 39).

    So impasses cuja soluo ou continuidade dependem justamente das investigaes reunidas no volume 23 da Husserliana. Para o comentador, a principal contribuio do volume concerne explorao da diferena entre conscincia imaginativa e fantasia, destacando o carter de estabilidade e identidade em que se processam as aparies da primeira e o carter multiforme e instvel das aparies da segunda. Temendo as consequncias da fl uidez plural da fantasia, Husserl adota como modelo metdico para a compreenso da imaginao em geral a unidade esttica dos componentes da conscincia imaginativa. Outro eixo terico que perpassa o volume o paralelismo entre percepo e fantasia, ambas preenchendo suas visadas intencionais de modo direto, seja mediante sensaes, seja mediante fantasmas. Rede compreensiva que leva o intrprete a reforar o diagnstico desfavorvel, sobretudo em re-lao ao texto principal do volume: As lies de 1904-5, portanto, repetem o padro de vacilao no tratamento de Husserl da imaginao identifi cado acima em relao aos primeiros escritos, particularmente s Investigaes Lgicas (ELLIOTT, 2005, p. 44).

    Avaliao que se mostra mais auspiciosa no tocante aos textos do volume 23 da Husserliana prximos publicao de Idias I. Neles, o intr-prete verifi ca importante ampliao do conceito de fantasia, no mais oposto ao conceito estrito de conscincia imaginativa, mas compartilhando de seu estatuto de inatualidade presentativa, em especial nos modos de conscincia esttica e terica, que empregam de maneira fecunda procedimentos fants-ticos. A caracterstica nuclear da fantasia, que a torna decisiva para o mtodo fenomenolgico, a liberdade em relao efetividade, compreenso motriz da tessitura conceitual e argumentativa de Idias I, mas que se formula expli-citamente, como se acompanhou na primeira parte deste artigo, no e em torno ao pargrafo 70. O comentador detecta, todavia, em tal tessitura limites teri-cos intrnsecos assuno plena da liberdade fantstica enquanto modelo me-tdico da fenomenologia. O primeiro refere-se ao carter ambguo do conceito

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    de fenmeno, ora como mbito extratemporal das estruturas possibilitadoras de qualquer evento, ora como mbito em que algo originalmente dado em seu carter intencional. O segundo limite diz respeito noo de impresso originria como base do processo descritivo temporal, marco de uma certa herana empiricista no projeto fenomenolgico husserliano.

    Abordagem direta dos componentes sensveis que encaminha Husserl s anlises fenomenolgicas da sntese passiva, entendida como afe-tividade constituda. O eu responde aos estmulos que despertam sua ateno, cabendo fenomenologia descrev-los em suas estruturas puras, descrio que opera a partir de procedimentos genticos, e no mais exclusivamente estticos. Para o intrprete, tal passagem decisiva do esttico ao gentico im-plica inverter a prioridade da intuio sobre a inteno, da presena sobre a ausncia. Numa perspectiva fenomenolgica gentica, ausncia e inteno vazia desfrutam de prioridade no processo descritivo. No mbito temporal, a impresso originria insere-se indissoluvelmente em horizontes de reteno e proteno. Vnculo enfatizado por Elliott: Como Husserl compreende a conscincia originria do tempo enquanto a estrutura sinttica fundamental da vida consciente, segue-se do fundar da sntese temporal na sntese passiva ou imaginativa, que o sentido original da conscincia intencional em Husserl imaginativa (ELLIOTT, 2005, p. 58).

    Operando geneticamente, a fenomenologia husserliana mantm os conceitos anteriores, mas os compreende de modo mais radical. Um exem-plo disto o curso Psicologia fenomenolgica,24 mormente no tocante ex-posio da dinmica do mtodo ideatrio, conduzido de maneira fantstica. Mtodo desdobrado em quatro etapas: seleo de algo fatual como base para a variao eidtica; processo de multiplicidade variacional; conexo unifi cado-ra a partir das coincidncias; identifi cao seletiva a partir das congruncias. Elliott defende uma certa correspondncia metdica, mutatis mutandis, entre tais etapas e a diviso kantiana dos esquemas transcendentais, com a diferena de que para Kant os esquemas constituem um ndice dos limites da razo pura no conhecimento da efetividade emprica, ao passo que para Husserl as vrias fases do processo ideatrio indicam a autonomia da razo em relao ao empri-co e a sua aptido infi nita de transformar dados fatuais em possibilidades puras.

    Repassando o conjunto dos textos husserlianos a partir do fi o con-dutor da conexo entre imaginao/fantasia e mtodo, Elliott considera que sua interpretao

    24 Curso do semestre de vero de 1925.

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    apresentou Husserl como estando na sombra do legado kantiano e, assim, es-sencialmente envolvido num projeto fi losfi co de superar a dicotomia sen-sao-concepo que iniciou com o primeiro idealismo alemo. Embora as atuais anlises de Husserl com freqncia sucedam em tal superao, sua auto-interpretao falha em resistir atrao de uma rgida diviso entre real e ideal. Em conseqncia, sua idia de fenomenologia fi ca fatalmente comprometida por um preconceito racionalista (ELLIOTT, 2005, p. 66-67).

    Na sequncia do texto, o comentador entende que

    Compreendendo a atividade racional como unifi cao de uma multiplicidade intuitiva e admitindo uma genuna funo epistmica imaginao s na medida em que suas operaes so racionalmente motivadas, Husserl ofe-rece uma incessantemente parcial idia de imaginao... Como resultado, o potencial positivo da apreenso imaginativa para compreender pluralidade e diferena sem subordinao unidade conceitual, nunca reconhecida por Husserl (ELLIOTT, 2005, p. 67).

    Ficando a liberao de tais preconceitos, segundo o intrprete, a cargo da fi losofi a hermenutica de Heidegger.

    Citaes que resumem as principais teses da leitura de Elliott, em consonncia a um resgate global e minucioso do conjunto dos escritos hus-serlianos sobre o tema. Ampla interpretao conduzida pela denncia da hesitao husserliana em esclarecer o estatuto metdico da conscincia ima-ginativa e, sobretudo, da fantasia, motivada por orientaes questionveis de carter sistemtico: intransigente segmentao do real e do ideal; pressupostos racionalistas; inaptido para pensar pluralidade e diferena. Acusaes ma-nifestadas, segundo diferentes perspectivas, por comentadores e pensadores passados e contemporneos, sejam da vertente fenomenolgica ou de outras matrizes fi losfi cas.

    Discutir as vrias facetas das restries sistemticas apontadas por Elliott extrapola os propsitos deste artigo. Circunscreve-se adiante, de maneira esquemtica, a anlise de tais acusaes em seu vnculo noo husserliana de fantasia. No h dvida de que a conscincia fantstica passa por vrias conformaes tericas ao longo do itinerrio fi losfi co de Husserl, inclusive em seus ltimos escritos pblicos e privados. No parece plausvel defender uma verso defi nitiva para o tema, constatao vlida, alis, para os principais conceitos explorados pelo pensador alemo. Ele mesmo considerava sua in-vestigao fenomenolgica uma tarefa infi nita de refl exo e descrio puras.

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    Isto, entretanto, no equivale a negar constantes tericas no tratamento da questo: entender a fantasia enquanto modo de conscincia transcendental, e no facultativa; conceber a conscincia fantstica como intuitiva em sentido ampliado e, ao mesmo tempo, visando ao objeto possvel em sua ausncia; dotar o processo fantstico do mximo grau de liberdade transcendental, a ponto de transform-la em base do procedimento ideatrio em geral; atribuir um carter no posicional visada fantstica.

    Mesmo com tais convergncias tericas na concepo da fantasia, as difi culdades em estabelecer e expressar a contento o estatuto deste modo metodicamente privilegiado de conscincia transcendental no devem ser im-putadas ao pensador Husserl, mas sim coisa mesma (die Sache selbst) em questo. No processo fantstico radical est em jogo a essncia da prpria constituio da conscincia pura, movimento refl exivo em que esta intenta descrever sua prpria instaurao enquanto mbito de efetivao de todas as possibilidades puras.25 Operar metodicamente com a fantasia transcendental equivale a adentrar na matriz annima de toda produo (Leistung) de sentido, somente desde a qual todo mundo enquanto tal. O obstculo, que Husserl transformava em contnuo estmulo investigao fenomenolgica, encontra-se em olhar o olho fantstico na sua operao em todos os nveis constitutivos. Parecem aplicar-se neste contexto as diretas indicaes husserlianas expressas no pargrafo 13 das Meditaes cartesianas, de que o trabalho fenomeno-lgico compreende duas etapas: 1) abandonar-se diretamente aos dados da experincia transcendental; 2) efetuar uma crtica do alcance dos princpios desta experincia. Se na primeira etapa as conquistas husserlianas se mostram fecundas, sobretudo a partir da publicao pstuma das anotaes privadas so-bre os mais diversos mbitos transcendentais, a segunda etapa, que no uma mera crtica restritiva nos moldes kantianos, mas descritiva dos fundamentos fenomenolgicos, os resultados se apresentam incipientes, demandando com-plementos que a investigao fenomenolgica ulterior nem sempre explorou e explora como poderia.

    Com base, porm, nas investidas crticas embrionrias de Husserl, j possvel dar conta das principais objees de Elliott. Quanto censura

    25 Em seu livro A evidncia da possibilidade: a questo modal na fenomenologia de Husserl, Nuno Nabais afi rma com preciso: a novidade e ao mesmo tempo o carter paradoxal do programa de uma descrio pura da possibilidade do conhecimento proposto por Husserl desde as Investigaes Lgicas est na pretenso de tornar evidente o prprio campo trans-cendental (NABAIS, 1998, p. 10).

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    de diviso rgida entre real e ideal, o processo fantstico transcendental , per si, uma refutao consistente, pois opera desde a dimenso integradora da intencionalidade. Sendo o cerne do projeto fenomenolgico husserliano, desde seus primeiros textos, justamente abolir as vrias dicotomias metafsicas, constitui impropriedade atribuir-lhe separaes fi xas entre fatos e essncias. Efetividade e idealidade conjugam-se na instaurao da totalidade dos objetos possveis do mundo. Como se constatou anteriormente, o discurso husserliano marcado por distines, muitas vezes excessivas, mas todas elas devem ser consideradas no mbito meramente descritivo, e no in re. A fantasia trans-cendental, enquanto radical modifi cao neutralizadora, vige num estatuto es-tritamente intencional, mbito a partir do qual se pode conceber e expressar unidades e identidades, sejam elas reais ou ideais. Embora em certos trechos de seu texto26 Elliott defenda uma maior proximidade husserliana em rela-o leitura tradicional de Aristteles do que de Plato no que concerne aos vnculos entre sensvel e inteligvel, no fi m ele se contradiz ao entender a fenomenologia de Husserl segundo parmetros da leitura platnica tradi-cionalmente difundida. A originalidade do programa fi losfi co husserliano encontra-se justamente na abertura do acesso e na ulterior descrio completa da experincia transcendental, que precede metodicamente toda investigao pontual sobre real e ideal. Aceitar a tese de Elliott signifi ca, ipso facto, negar tal originalidade.

    Quanto objeo de preconceito racionalista, que ocasiona um en-foque unilateral da fantasia, sabe-se que do comeo ao fi m de sua obra Husserl atribuiu privilgio ao racional, ao terico, como fonte de conhecimento. Trans-formar, todavia, tal privilgio em preconceito consiste em desconsiderar o al-cance do sistema fenomenolgico visado pelo pensador alemo. Novamente, Elliott se alinha contestao feita por diversos comentadores e pensadores, sejam da tradio fenomenolgica ou de perspectivas fi losfi cas divergentes. O ataque heideggeriano ao terico em Husserl em favor do prtico da cotidia-neidade tornou-se paradigmtico. Entretanto, no discurso husserliano racional signifi ca estrutural, constitutivo, e no se ope a prtico, mas antes o funda. Operar de maneira racional equivale a descrever em sua pureza o conjunto das estruturas notico-noemticas envolvidas em qualquer fenmeno, cabendo s estruturas fantsticas um papel metdico destacado, pelos motivos expostos neste artigo. A razo husserliana no , como em Kant, a faculdade superior do conhecimento, mas o mbito operatrio de compreenso do fundamento de

    26 Conforme, entre outros, 2005, p. 26-32.

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    tudo que se d enquanto fenmeno. Racionalidade se confunde com humani-dade entendida de maneira transcendental: todos os outros modos de ser do humano (prticos, axiolgicos, estticos, orgnicos, etc.) dependem do modo racional de unifi cao e identifi cao transcendentais para se tornarem algo com sentido. O enfoque racional no restringe a compreenso do processo fantstico; ao contrrio, ele a amplia, colocando-se na raiz fenomenolgica do prprio fantasiar. Se h algum preconceito nisso, ele s pode estar no alcance limitado da leitura de Elliott.

    Por fi m, cabe analisar a censura concernente inaptido da feno-menologia husserliana em dar conta da pluralidade e da diferena, que re-dundaria numa abordagem restrita da fantasia. certo que Husserl distingue a fenomenologia das cincias de fatos ou positivas, ocupadas com os vrios domnios objetuais. Sendo a fenomenologia uma cincia descritiva material de essncias, tal como formulado em Idias I, ela pressupe que, no plano transcendental, o unitrio e o idntico fundam o plural e o diferente, cabendo descrio fenomenolgica dos dois ltimos remeter-se s cadeias descritivas concernentes aos dois primeiros, em qualquer das estruturas notico-noem-ticas. Caso a pluralidade e a diferena a que Elliott se refi ra digam respeito ao mbito ntico, objetual estrito, basta lembrar a precedncia constitutiva do transcendental sobre o natural para que a reprovao se mostre inconsistente e no acarrete qualquer efeito restritivo na concepo husserliana de fantasia. Afastadas as consequncias das trs objees, torna-se legtima, portanto, a confi ana do pensador alemo no alcance metdico do processo fantstico, expressa com vigor no fi m do pargrafo 70 de Idias I.

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    Recebido: 20/07/2010Received: 07/20/2010

    Aprovado: 21/09/2010Approved: 09/21/2010