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rI 4 JUri 2llO8 FOUfA DE SÃO FAUlO As, -=:7 Sistema multiportas: o Judiciário e oconsenso NANCY ANDRIG}fi e GLÁUCIA FAL5ARELLA FOLEY A s RECENTES análises sobre a :xpl?são de. litigiosida.de :10 ambIto do sIstema· de JustIça têm destacado a cultura excessiva- mente adversarial do povo brasileiro. Embora esse fenômeno revele uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos, o culto ao litígio, rém, parece refletir a ausência de es- paços -estatais ou não- voltados à comunicação de pessoas em conflito. Com raras exceções, não há, no Brasil, serviços públicos que ofereçam opor- tunidades e técnicas apropriadas para o diálogo entre partes em litígio. Diante de tal carência, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação' da "lei do mais forte", seja do ponto de vista físico, seja do armado, do econô- mico, do social ou do político -o que gera violência e opressão; a resigna- ção -o que provoca descrédito e desi- lusão; o acionamento do Poder Judi- ciário, cuja universalidade de acesso airIda é uma utopia.. Aqueles que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades impostas por. um sistema talhado na lógica ad- versarial. Os profissionais do direito nem sempre diSpõem de habilidades específicas para a condução de pro- , cessos de construção do consenso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, é a aplicação de técnicas excessivamen- te persuasivas, comprometendo a qualidade dos acordos obtidos. Nesse contexto, ainda que o siste- ma de justiça se esforce em moderni- zar os seus recursos -humanos, ma- teriais, normativos e tecnológicos-, a dinâmica da explosão de litigiosidade ocorrida nas últimas décadas no Bra- sil continuará apresentando uma cur- va ascendente em muito superior à relativa aos avanços obtidos. Para o sistema operar com eficiên- cia, é preciso que as instâncias judi- ciárias, em' complementaridade à prestação jurisdicional, implemen- tem Ílm sistema de múltiplas portas, apto a oferecer meios de resolução de conflitos voltados à construção do consenso -dentre eles, a mediação. Por essa técnica, as partes cons- troem, em comunhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades. O mediador não julga, não sugere nem aconselha. O seu papel é o de fa- :itar que a comunicação «ja (re)es- , . Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere um sentido positivo ao conflito, pois patrocina o diálogo respeitoso , tabelecida, sob uma lógica cooperati- va, e não adversarial. Além de efetiva na resolução de lití- gios, a mediação confere sentido posi- tivo ao conflito, pois patrocina o diá- logo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a preven- ção de futuros litígios; a coesão social e, com ela, a diminuição da violência. A mediação, ao lado de outras téc- nicas de edificação do consenso -a conciliação e a negociação-, pode ser manejada por agentes efetivamente capacitados para tal funs:ão e adotada tanto nas demandas pre-processuais quanto nasjájudicializadas. O atual arcabouço legal permite, pois, que as instânciasjudiciárias sen- síveis a novos paradigmas viabilizem um sistema de mtÜtiplas portas que possa gerar um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, pois, a destinação de recursos para in- tensificaras possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional. Somente após a consolidação de múltiplas experiências em nível na- cional é que haverá elementos para eventual proposta legislativa que re- gulamente a matéria. Vencidos Os desafios institucionais para a implantação do sistema, cabe- à sociedade, que legitimamente an- seia por justiça e paz, intensa partici- pação para que o exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária. Para a abertura dessas múltiplas portas, não se pode conceber a paz so- cial sem a paz jurídica e, por meio da consciência coletiva do dever indivi- dual e respeito mútuo, atinge-se uma convivência humana se}ll diferenças geradoras de conflitos. E o dialogo e a conduta assertiva, ensinados desde os primeiros passos e em todos os can- tos, que têm o condão de conduzir a humanidade ao equilíbrio da vida harmoniosa. A contenciosidade cede lugar à sin- tonia de objetivos e os rumos da beli- gerância podem ser abandonados pa- dar lugar àJustiça doce, que respei- ta a diversidade em detrimento da ad- versidade.'Descortina-se, assim, uma nova estrada que todos podem cons- truir, na busca do abrandamento dos conflitos existenciais e sociais, com a utilização do verdadeiro instrumento e agente da transformação -o diálogo conduzido pelo mediador- no lugar da sentença que corta a carne viva. NANCY ANDRIGHI, 55. é mini sua do 5TJ (5uperiorTrlbu- nal de Justiça), GLÁUCIA FAL5ARELLA FOLEY. 40, é jUlla coordenadora do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça doDF, Folha de São Paulo, 24 jun. 2008.

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rI4 JUri 2llO8 FOUfA DE SÃO FAUlO As, -=:7 I Sistemamultiportas: oJudiciário eoconsenso·

NANCY ANDRIG}fi e GLÁUCIA FAL5ARELLA FOLEY

As RECENTES análises sobre a :xpl?são de. litigiosida.de :10 ambIto do sIstema· de JustIça

têm destacado a cultura excessiva­mente adversarial do povo brasileiro.

Embora esse fenômeno revele uma dimensão positiva ao expressar a consciência dos cidadãos em relação aos seus direitos, o culto ao litígio, po~ rém, parece refletir a ausência de es­paços -estatais ou não- voltados à comunicação de pessoas em conflito. Com raras exceções, não há, no Brasil, serviços públicos que ofereçam opor­tunidades e técnicas apropriadas para o diálogo entre partes em litígio.

Diante de tal carência, as pessoas utilizam os meios de resolução de conflito disponíveis: a aplicação' da "lei do mais forte", seja do ponto de vista físico, seja do armado, do econô­mico, do social ou do político -o que gera violência e opressão; a resigna­ção -o que provoca descrédito e desi­lusão; o acionamento do Poder Judi­ciário, cuja universalidade de acesso airIda é uma utopia..

Aqueles que acessam a via judicial enfrentam as dificuldades impostas por. um sistema talhado na lógica ad­versarial. Os profissionais do direito nem sempre diSpõem de habilidades específicas para a condução de pro- , cessos de construção do consenso. Ao contrário, o que se verifica, em geral, é a aplicação de técnicas excessivamen­te persuasivas, comprometendo a qualidade dos acordos obtidos.

Nesse contexto, ainda que o siste­ma de justiça se esforce em moderni­zar os seus recursos -humanos, ma­teriais, normativos e tecnológicos-, a dinâmica da explosão de litigiosidade ocorrida nas últimas décadas no Bra­sil continuará apresentando uma cur­va ascendente em muito superior à relativa aos avanços obtidos.

Para o sistema operar com eficiên­cia, é preciso que as instâncias judi­ciárias, em' complementaridade à prestação jurisdicional, implemen­tem Ílm sistema de múltiplas portas, apto a oferecer meios de resolução de conflitos voltados à construção do consenso -dentre eles, a mediação.

Por essa técnica, as partes cons­troem, em comunhão, uma solução que atenda as suas reais necessidades. O mediador não julga, não sugere

, nem aconselha. O seu papel é o de fa­L:itar que a comunicação «ja (re)es­

, .

Além de efetiva na resolução de litígios, a mediação confere um sentido positivo ao conflito, pois patrocina odiálogo respeitoso

,

tabelecida, sob uma lógica cooperati­va, e não adversarial.

Além de efetiva na resolução de lití­gios, a mediação confere sentido posi­tivo ao conflito, pois patrocina o diá­logo respeitoso entre as diferenças; o empoderamento individual e social; a consciência das circunstâncias em que repousam os conflitos; a preven­ção de futuros litígios; a coesão social e, com ela, a diminuição da violência.

A mediação, ao lado de outras téc­nicas de edificação do consenso -a conciliação e a negociação-, pode ser manejada por agentes efetivamente capacitados para tal funs:ão e adotada tanto nas demandas pre-processuais quanto nasjájudicializadas.

O atual arcabouço legal permite, pois, que as instâncias judiciárias sen­síveis a novos paradigmas viabilizem um sistema de mtÜtiplas portas que possa gerar um choque de eficiência na gestão judiciária. Indispensável, pois, a destinação de recursos para in­tensificaras possibilidades de acesso e, sobretudo, qualificar a prestação jurisdicional.

Somente após a consolidação de múltiplas experiências em nível na­

cional é que haverá elementos para eventual proposta legislativa que re­gulamente a matéria.

Vencidos Os desafios institucionais para a implantação do sistema, cabe­rá à sociedade, que legitimamente an­seia por justiça e paz, intensa partici­pação para que o exercício do diálogo e do consenso colabore na construção de uma sociedade mais pacífica, coesa e solidária.

Para a abertura dessas múltiplas portas, não se pode conceber a paz so­cial sem a paz jurídica e, por meio da consciência coletiva do dever indivi­dual e respeito mútuo, atinge-se uma convivência humana se}ll diferenças geradoras de conflitos. E o dialogo e a conduta assertiva, ensinados desde os primeiros passos e em todos os can­tos, que têm o condão de conduzir a humanidade ao equilíbrio da vida harmoniosa.

A contenciosidade cede lugar àsin­tonia de objetivos e os rumos da beli­gerância podem ser abandonados pa­rã dar lugar àJustiça doce, que respei­ta a diversidade em detrimento da ad­versidade.'Descortina-se, assim, uma nova estrada que todos podem cons­truir, na busca do abrandamento dos conflitos existenciais e sociais, com a utilização do verdadeiro instrumento e agente da transformação -o diálogo conduzido pelo mediador- no lugar da sentença que corta a carne viva.

NANCY ANDRIGHI, 55. é mini sua do 5TJ (5uperiorTrlbu­nal de Justiça), GLÁUCIA FAL5ARELLA FOLEY. 40, é jUlla coordenadora do Programa Justiça Comunitária do Tribunal de Justiça doDF,

Folha de São Paulo, 24 jun. 2008.