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Ricardo Lísias - O Céu Dos Suicidas

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Literatura contemporânea brasileira.

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Este é um romance com fundo autobiográfico, em que Ricardo Lísias relata o suicídio de André, um amigo de longa data. O personagem principal é um colecionador, que não coleciona nada há anos, mas presta serviços de consultoria a colecionadores. Enquanto ele relata sua história, a intercala com a de André.

Depoisdetudoquemselembrarádedeus?

Issoébonito,Mateus

PriscilaFigueiredo

Sou um especialista em coleções, mas doei os meus selos há mais de dez anos.Tenho apenas um relógio, e dosmeus avós herdei uma pequena quantidade de

dinheiroemaisnada.Nãoguardomoedasestrangeiras,não tenhocaixasde sapatocheias de cartões-postais e não catalogo canecas, maços de cigarro ou chaveiros.Tenho um aviãozinho da Pan Am, mas uma coleção exigiria, no mínimo, umapequenafrota.

A decisão de deixar as coleções de lado para ser um especialista não foiconsciente. Quando entrei na faculdade, já tinha me desfeito das tampinhas degarrafa e damaior parte dos selos que juntara por alguns anos. Passei o curso degraduação inteiro sempensar emcoleções.De vez emquando,umprofessordiziaqueoshistoriadoresadoramopódosdocumentosequeelemesmojátinhapassadomuitashorasdavidadebruçadosobrecoleçõesdetodotipo.Noscursosdehistóriada arte, alguns colecionadores sempre eram citados. Mas, além disso, as coleçõesnaquelaépocanãomeinteressavam.

Nemsemprefoiassim:duranteainfânciaeaadolescência,chegueiaterquaseduas mil tampinhas de garrafa. Quanto aos selos, obrigatórios para quase todomundo que sofre com a obsessão pelo colecionismo, cheguei a organizar belosconjuntos.Também reuni tudo o que encontrei sobre o time de futebol quemeencantavaaosdozeanos.Mas,nessecaso,haviaapenaspaixão,oquejamaispodeseroelementocentraldaatividadedeumcolecionadorsério.

Hoje,sequerassistoaosjogosdoBrasilnaCopadoMundo.

Quando era adolescente, adoravamexer nasminhas tampinhas de garrafa.Todasestavam separadas segundo o país de origem e, depois, em gruposmenores, a

partirdabebidadeondetinhamsaído.Basicamente,distinguiaentreosrefrigerantes,maisnumerosos,asbebidasalcoólicaseágua.

Meu orgulho era uma série de tampinhas com caracteres árabes que tinhaarranjadocomumparentedistante.Tenteientenderoqueestavaescritoemalgumas,mas,comonãoconsegui,fuiobrigadoaabrirumaexceçãonocatálogoenãopudesequer separá-lasporpaís.No casode três tampinhas japonesas, também, atéhojenãoseidizerseeramdeáguaouderefrigerante.Nuncaacheiquefossemdecerveja:ganheioconjuntodeumabstêmio.

Chamavamatenção,ainda,vintee três tampinhasdaÍndia.Elas tinhamsidopresentedeumatiaque,apesardemaltersaídodosvinteanos,nãosuportaraumadesilusãoamorosae,depoisdepassaralgumassemanaschorandoegritandopalavrassemsentido,resolveraprocuraraprópriahistóriaemumapequenacidadeatrêshorasdeNovaDéli.

Eudevia terporvoltadequatorzeanosquandoelaviajoupelaprimeiravez.Meu avô tentoumanter uma espécie de compostura compreensiva e só conseguiarepetirqueelasearrependeriaelogovoltariaparaconcluirafaculdadededireito.Ofatodeeleterpagoaspassagensda lhadesiludidaéumpontodecon itoentreovelho eminha avó até hoje. Fazendo as contas agora, acho que a última vez queminha tia esteve no Brasil foi há uns dez anos. Até onde sei, atualmente elamaltelefonanoNatal.

Háunsdoisanos,tivecoragemdeperguntarporondeminhatiadesiludidaandava.Minhaavócomeçouachorar,minhamãepegououtracolherdearroz,fazendo

umgestodereprovaçãocomobraçoesquerdo,emeutio,semprecompetindocomairmãcaçula,dissecheiodedesdémqueemalgumpontoentreosuldaRússia,aMongóliaeoCazaquistão.

Elapassaotempovagandocomumgrupolideradoporummongequesedizareencarnaçãodoespíritoquecontrolaoladoafetivodosseresvivos.Nãoapenasoshumanos. Nesse momento, minha irmã quase cuspiu o que estava mastigando,engasgadacomapiada.EutinhaacabadodeestragaroalmoçodePáscoa.

Nãoachoahistóriaengraçada.Nãoacreditonotalmonge,claro,massempregostei da minha tia. O irmão dela, o engraçadinho, incomoda-me um pouco.Quando ela voltou pela primeira vez, creio que em 1990 (não posso dizer a dataexata,pois,desdequecomeceiasentirsaudadesdetudo,perdiumpoucoanoçãodotempo), queimarcado pelo jeito com queme entregou as tampinhas que tinhatrazido.

Para a sua coleção, Ricardo. Eu não consigo esquecer essa frase: para a suacoleção,Ricardo.Elamepassouopacotinhocomoolhardistante.Estávamostodosesperandonoaeroporto.Quandoaporta seabriu, logonosavistou,acenoueveiocaminhandobemdevagar.Minhaavócomeçouachorar.Elaabraçouumporum.Depois,seeuestivercerto,fuioprimeiroaganharumpresente.Paraasuacoleção,Ricardo.

Paraquemadoravaandardebicicleta,esempretiveraosafetosmuitointensos,osgestosdelapareciamvagarososdemais.Fiqueiolhandoastampinhasnocaminhodoaeroportoatéacasadomeuavô,ondeiríamoscomemoraravisita.

Se eu estiver certo,minha tiadesiludida voltou aoBrasil depois deoito anos. Jáestávamosno nalzinhodo século.Nãoconseguimosnosver: avisita coincidiu

com uma prova bastante importante dos exames para a pós-graduação. Eu estavaconcentradoe,quandofinalmentevolteiparaSãoPaulo,elajátinhaidoembora.

Jamaisesquecioolhardedesolaçãodaminhamãeaomecontarquea irmã,naquelemomentoelaprópriaumamonja,tinhaavisadoqueomundosofreriaumagrandecatástrofe,etalvezacabassenaentradadoséculoXXI.

ElanuncamaisvoltouaoBrasil.Afetuosa,deixou-menessasegundavisitatrêsoutras tampinhas. Mas eu já estava começando os estudos para me tornar umespecialistae,comasoberbaqueherdeidomeutio,joguei-asfora.Estudaraorigemdelas,comofariatodobomcolecionador,sequerpassoupelaminhacabeça.

Desdequetudo issocomeçou, tenhopercebidoquesentir saudadessigni ca,em algumaparcela, arrepender-se. Fico tentando relembrar uma série de coisas. Senãotivessejogadoastampinhasfora,porexemplo,afrasedaminhatiatalvezhojefizessealgumsentidoparamim.Paraasuacoleção,Ricardo.

Nãotenhomaisnenhumacoleção.Semanapassadavolteiàlatadelixoondejogueiumapartedastampinhasfora,

justamenteosexemplaresmaisnobres.Aoutraparte,deixeiparaolixeironamanhãseguinte. Eu não tinha esperança de encontrá-las: a nal já se passaram quase vinteanos.Achoqueéissomesmo:vinteanos.Apenasolheiaspessoas,aestaçãodemetrôeosarredores.Einfelizmentenãoencontreinadaquemedissesserespeito.

Minha coleção de tampinhas teve um nal melancólico. No mês seguinte aoencerramentodo ensinomédio, umpouco antes doNatal, a turma se juntou

paraumadespedida.Foiumadaquelasreuniõesemquetodomundogarantequedemaneiranenhumavaiperdercontato.

Tenho vontade de rever meus colegas. Procurei-os em três redes sociais nainternet,mas,comonãotenhocertezadosnomes,nãoacheininguém.

Nafesta,iniciaríamosumanovafasedavida.Portanto,haveriamuitabebidaalcoólica.Hojeédiferente,masnaquelaépocaagentedemoravaumpoucomaisparacomeçarabeber.

Como asmeninas estariam presentes, pretendíamos que a noite trouxesse asexperiências que tínhamos acalentado durante todo o colégio. Por algummotivo,provavelmenteresquíciodomeuorgulhoadolescente,acheique,selevasseasminhastampinhasdegarrafamais especiais, teria vantagempara conquistarumadelas.Eraesseoplano:envolvê-lascomapartenobredacoleção.

Hoje acredito que esse orgulho mostra que a minha alma é a de umcolecionador.Voulevarastampinhas,asmeninascomcerteza carãoimpressionadaseescolhereicomqualdelasminhasaídadaadolescênciaserácoroada.Eunãotinhaamenordúvidadequedariacerto.

Nãofuncionou.

Tantaautoindulgênciaestámeincomodando.AtéosuicídiodomeugrandeamigoAndré, nunca tive vontade de voltar atrás com nada. Agora, comecei a sentir

saudadesdetudo.Comonãoconsigodeixarderelembrarumaquantidadeenormedeepisódiosdaminhavida,éinevitávelquecomeceapesá-los.Então,arrependo-medemuitos.

Quando tudo começou, minha primeira reação foi sentir ódio do André.Tenhovergonhadedizer:maleletinhasidoenterrado,euoxingava,falandosozinhonarua.Aprimeiracriseaconteceudepoisquesaídadelegacia.

Preciseifazeralgunsesclarecimentos.Peloqueentendi,fuioúltimoconhecidocom quem oAndré fez contato.Não tive nenhumproblema.Na verdade, queisurpreso com a educação dos policiais. Um deles, quando eu já estava saindo,perguntou se conheço o legendário Manoel Camassa, um delegado que colecionamoedasematerialdeeleições.Eletem,inclusive,váriasurnas.

Depois que me despedi do advogado que tinha contratado por precaução,comeceiasentiralgumafaltadear.Comoavertigemaumentou,sentei-meemumapraça,maslogoummendigoveiomeincomodar.Elemechamoudechorão.Achoquedeseumolequechorão.Levantei-meparareagir,masminhavistaescureceuderaiva e ele sumiu. Então, saí gritando. Devo ter xingado todo mundo, mas comcertezafoioAndréquemmaisouviu.

Nunca tinhagritado tanto.Tratomeusproblemas em silêncio.Euosorganizo ereorganizo na cabeça, como se fossem uma coleção, até solucioná-los.Com as

decisões, reajo damesma forma.Umbom exemplo é a tal festinha de despedida.Claroquenãoconseguiterminaroensinomédiocomotinhaplanejado.

Levei dez tampinhas.Tomei cuidado para, antes, passar um pano em cadauma.Estavaumpoucoapreensivocomas japonesas:casochamassemmaisatençãoqueasoutras,aminhadi culdadeparaexplicarseeramdeáguaourefrigerantetalvezdiminuísse o charme diante das meninas. Sem dizer que, naquele ambiente, seriadesanimadordestacarqueastinhaganhadodeumabstêmio.

Resolvi que iria começarmostrando as três tampinhas da antigaPolka, umacerveja produzida a partir dos anos 1940no sul doBrasil por umdescendente dealemães.No nal,atéondetinhapesquisado,elaacaboudeixandodeserumamarcaartesanalparaseincorporaraumgrandegrupo.

Eu acrescentaria na festa que em vários lugares do mundo a indústriainternacional de bebidas acabou soterrando pequenos e tradicionaisempreendimentos,comoóbvioprejuízonosabor.SeconcluísseahistóriatodacomofatodequeodonodaPolkacriouumaespéciedefestivaldacerveja,comcertezaconquistariaalguém.

Não conquistei ninguém, é claro. Depois de uma hora de festa, todo mundocomeçoua carmelancólicoecadavezqueeuresolviaabrirosaquinhoplástico

comasdeztampinhasraras,aspessoasdiziamquetalvezpudéssemosnosreunirdenovo em fevereiro. Quando o ambiente ameaçava car carregado demais,contávamosumanovidade.

Um cara iria ajudar a lojinha do irmão no Canadá. Duas meninas tinhamarrumado um emprego com um estilista famoso e eu, o colecionador, estavarachandodeestudarparaentrarnafaculdadedehistória.

Resolvemosiremboracedo,paraadespedidasermaisfácil.Nãofoi,eatéhojenãogostodelembrar.

Levementebêbado,senteinometrôsozinhoe queiolhandoasdeztampinhasnavoltaparacasa.Paraa suacoleção,Ricardo.Poralgummotivo,eu jánãotinhamaisorgulhodaminhacoleção.

O trem estava vazio e naminha fantasia o trajeto demorou bastante.Dei apartenobredaminhacoleçãodetampinhasparaumsujeitoquepareciamuitotristeeestavasentadopertodemim.Talvezalgumamigodeletivesseacabadodesematar.Essascoisasagentenãopergunta.

Nãofoi isso:comraiva,tristeemeiobêbado,masempolgadocomasnovasperspectivas, cheio de curiosidade pelo que iria acontecer comigo, muito confusoportanto,jogueiastampinhasnolixodaestaçãodemetrôpertodaminhacasa.Elasjánãofaziampartedaminhavida.

Além das tampinhas, tive uma coleção de selos. Comecei como todo mundo:cortando-osdascartasquerecebíamosemcasa.Aospoucos,aspessoascomeçaram

a me trazer outros. Acho que com onze anos ganhei uma quadra de presente deaniversário.Veioembrulhadaemumaembalagemde lojaespecializada,eapalavra“filatelia”nopapeldepresentemecomoveu.

Eram selos do ano de 1983 reproduzindo, com a mesma dimensão mas apartir de imagens muito diferentes, um momento do carnaval brasileiro. Nãotinhamcarimbo.Ninguémenviaraumacartacomeles,oquemedeixavaumpoucomaistensoaomanipulá-los.Lembro-meespecialmentedeum,talvezodevalordefacemaisalto,querepresentavaumblocoderua.Passeihorastentandoentenderseorostodaspessoas,tãopequenonasfotosdosselos,estavapintadoousealgumacoisaoscobria.

Foi essa quadra sobre o carnaval que me tornou um colecionadorpretensamente interessado.Tentei ler tudooqueencontreisobreapalavra latelia.Aprendi que coleções precisam ser organizadas. Minha primeira decisão foi carapenascomosselosdoBrasil,quejáeramamaioria.Guardeitambémumpunhadode exemplares dos países árabes, já que minha família tinha vindo para o BrasilfugindodoLíbano.Oresto,troqueiemumafeirinha.

Lembro-me, aindanesse começode coleção, dos pequeninos selos regulares, comvaloresdefacemaisbaixos.Esses,junteiaosmontes.Umasériesobreconstruções

históricas, que circulou em 1987, aparecia sem parar nasminhasmãos.O de umcruzado com a imagem do pelourinho de Salvador, devo ter acumulado unscinquenta.

Eugostavadeumde1977comemorandooAnoMundialdoReumatismo.Nãomerecordoovalordeface,maslembroquenãohaviaaindicaçãodamoeda.Nemcruzeiro,nemcruzado.Em1989,oBrasilviviaonovocruzado.ConsigomerecordaragoraapenasporquemeapegueimuitoaumseloquecomemoravaoscemanosdaprimeirausinahidroelétricadaAméricadoSul.

Depois de algum tempo, comecei a guardar os selos em sacos plásticos,dividindo-osanoaano.Então,pesquiseiain açãonoBrasil,emalgunsmomentosmarcantes, para uma lista que acompanhava a caixa com os selos. Não vou melembrardetodososnúmeros,mastenhomuitaclarezadedois:em1983,épocadaquadrasobreocarnaval,ain açãochegoua200%.Cincoanosdepois,ultrapassariaos1.000%.

Eu cavafascinadoaocolocarosselosnamesapara,peladécimavez,observarque,seem1989amoedaeraonovocruzado,noanoseguintejátínhamosdevoltao cruzeiro. Sinto saudades daquele tempo: caía na minha mão um selo sobre osLionsClubesdoBrasileeuiacorrendopesquisaroqueeraaquilo.

Depois,troqueiafolhacomdadosmuitosuper ciaispara chasindividuaissobrecadaano.Comominhacoleçãocontavacommuitosselosdadécadade1980,era

inevitável que a economia aparecesse em primeiro lugar. Além disso, a marcantevariaçãodamoedaexigiaexplicações.

Asmelhorescoleçõessobrematerialpolíticoqueobserveiatéhojecomprovamque José Sarney e FernandoCollor combinavam com o papel que lhes coube nopicadeiroquefoiapresidênciadoBrasilapósaditadura.Eumeenvergonhodesentirsaudadesdaqueletempo.

Junto com as chas, tive a ideia de colar os selos em folhas de cartolina.Cortava-as na dimensão de umpapel sul te normal. Então, prendia os selos compequeninas tiras de folha de seda. A operação durava horas. Depois de voltar daescola, passava tardes inteiras fechado no quarto colando selos nas cartolinas epesquisandoinformaçõesparaasfichas.

Não me incomodava car sozinho. Um colecionador cultiva com muitaintensidade o mundo interior. Depois, mudei bastante. Na faculdade, eu era umdaquelescarassociáveisqueconversamcomtodomundoenãotêmdi culdadeparafazeramigos.Algunsestãoentreosmaisimportantesdaminhavida.

Opasso seguinte, antes do nal patético que dei à coleção, aconteceu quandoganheidomeuavôumclassi cador.Eraumálbumenorme,decapaduraazul,

comcapacidadeparaarmazenarcincomilselos.Comoossacosplásticosperderiamafunção,minhas chas acabaram soltas.Resolvi guardá-las emumapasta,mas vejohojequecomissotalveztenhaperdidoaempolgação.Eradivertidoolharosseloseverqueamoedabrasileiravariavatãorápido.

Poroutro lado,comtodos juntosemumúnicoálbum,pude terumavisãomais geral da coleção. Como organizei tudo em ordem cronológica (hábito decolecionador iniciante), cava fácil ver os anos mais bem-representados e os quequase não apareciam.Os selosmais antigos eramde 1933 com a imagemde umbrasão.

Depois, a coleção saltava para 1950.Da década de 1970, lembro-me de tertido bastante coisa, porque um tio-avô jogou na minha mão uma caixa cheia deenvelopes.Minhamãe coupreocupadacomopresentee,antesdemedeixarcuidardosselos,prestouatençãoparaversehaviaalgumacartaesquecidaládentro.

Meutio-avô tinharetirado todas.Osenvelopesvinhamdomesmoendereçona cidade de Santos. Os carimbos variavam entre 1971 e 1980, mas acorrespondênciamaisintensaaconteceunomeiodadécada.

Foi ele também queme deu os selos árabes. Domesmo jeito, datavam dadécadade1970,muitoemboranessecasohouvesseaomenos trêscorrespondentesnoOrienteMédio.Étudoqueconsigolembrar.

NãoseiseháalgumaligaçãoentreascartasquevinhamdeSantos,asquechegavamdoLíbano,daSíria edaArábiaSaudita e apreocupaçãodaminhamãecomo

fatodetalveztersobradoalgumacoisanosenvelopes.Naquelemomento,nadadissomeinteressava.Eusóqueriacortareclassificarosselos.

Duranteadivisãodoespóliodobisavô,essemeutio-avôchegoua sacarumrevólver da época da Segunda Guerra Mundial, que obviamente não funcionavamais,descontentecomdoisdosirmãos.Eleosacusavadetentarsaircomvantagemnaherançadovelho.

As crianças o adoravam. Tenho saudades daquele tempo: por duas vezes,reunimosafamíliainteiraparacomemoraroaniversáriodobisavô.Nasegundafesta,leveiminhacoleçãodeseloseotio-avôresolveumepassaracaixacomosenvelopes.

Recordandoagora,meuavôtambém couassustadoeconferiuparaverseoirmãonãoestavapassandoparafrentenenhumacarta.Quantoaosenvelopes,comoiriarasgá-losparapegarosselos,nãohaviaproblema.

Não tenho como reaverminha coleção,mas retomar essahistória talvez sejaumaboamaneiradedeixaralgumacoisaregistradasobremeutio-avô.Possoescreverum artigo para uma revista de colecionadores. Pela reação que teve à época, achodifícilminhamãe ajudar,mas ela temumaprima cujohobby édesenhar a árvoregenealógicadafamília.Comcertezaeladevesaberalgumacoisa.

Pessoasquefazeminvestigaçõesparadesenharárvoresgenealógicascostumamreunirobjetosqueinteressemàhistóriafamiliar.Comonãosãoofocoprincipal,porém,

é impossível falar emcoleção.Masháumaa nidadeepor issoessaprimaaceitoucomtodasimpatiamereceber.

Logoquecheguei,eladissequeminhamãetinhafaladobastantedemimequesempre acompanhavameus textos na imprensa.—Seu guia para colecionadores émuitodivertido.

Elaabriuuma folhaenormecomanossaárvoregenealógica.Ágil, localizou-me na mesma hora na lateral esquerda. Meu tio-avô, apontou, estava uns trintacentímetrosacima.Oestudoquetinhafeitochegava,comtodasegurançasegundoela, até o nal do séculoXVIII.Antes disso, era tudo especulação. Para conseguiroutrosdados, elaprecisariavoltar aoLíbanoeaosoutrospaísesda regiãoparaumestudomaisminucioso.

Enquanto pegava um grupo de fotos e outros documentos (o que seria umgermede coleção) elamedissequeaspessoas comquem zera contatonospaísesárabesnãogostammuitodefalardopassado.Aproveiteiachanceparaperguntarseelasabiaporquemeutio-avôtinhatrocadotantascartascomumgrupopequenodepessoasnadécadade1970.Avelhotafechouacarae,nervosa,dissequenãoéporquemeu amigo se matou que posso incomodar a memória dos que se foram pelavontadedeDeus.

Entãovaitomarnocu,suafilhadaputa.Cuspi na cara dela mas, com o grito, a desgraçada se afastou e acabei

atingindoatalárvoregenealógica.Namesmahora,pegueiafolhaearasgueiempelomenostrêspedaços.Elacomeçouagritaretentoutiraropapeldasminhasmãos.

Não me recordo como saí do apartamento da desgraçada. Desde que meugrande amigo sematou, tenho problemas dememória.De repente, na lembrançaqueconsigorecuperar,vejo-menaruadenovo.

Estouandandoapressadoegritosemparar.Achoquexingavaa lhadaputa.Lembro-medeatravessarduasoutrêsavenidas.Aluzdofarolseconfundecomumletreiro,umpoucomaisdistante,paracausarumaenormesensaçãodevertigem.

Quandoestavapertodeumapraça,meu telefone celular tocou.—Ricardo,vocêestáaí?—Adesgraçadajátinhatelefonadoparaminhamãe.

Nãorespondi.Viumcaragordinhoedecabelocompridoandandopertodemim.—André—eu gritei.Era oAndré.Tentei alcançá-lo enquanto gritava.—André—euberravanacalçadacheiadegente.Achoquetodomundoolhou.

Talvezninguém tenha olhado: não consigo lembrar emuitomenos escreverdireito. Estou com tontura.Meu estômago embrulhou.Não era o André e sentioutravezmuitaraivadele.

Minha mãe começou a me aborrecer, exigindo que eu procurasse “ajudaespecializada”. Resolvi alugar uma casa de fundos perto da república onde

morávamos no tempo da faculdade. Inventei um curso qualquer, fechei meuapartamentoevimparacá.

Outrodiacruzeicomumdosmeusex-professores.JustamenteoqueoAndrémais me aconselhou a car longe.Tenho vergonha, mas não vou esconder: umasemanaantesde se enforcar, ele foi aomeuapartamentoemecontou tudooquemeus antigos colegas falavam de mim e a boataria sobre os professores. Fiqueiincentivando-oafalar,deliciadocomashistórias.

Encontreitambémoirmãodocaraque coucomaminhacoleçãodeselos.EleprometeuquemandarialembrançasecontouquemeuvelhoamigotrabalhaemumhospitalpsiquiátriconaEscócia.

Fiquei com saudades do tempo da faculdade. Eu não me preocupava comnada.Nãoseicomoconseguiapassaromêscomtãopoucodinheiro.Sóahistóriame interessava: ia dos arquivos para o cinema temático, e acumulava informaçõessobre economia,biogra as e as tendênciasdaúltima corrente francesa.Domesmojeito,contextualizavaqualquercoisaemeapaixonavaportodotipodedocumento.

Desdequecheguei,tenhomerepetidoquenãovimatrásdosrastrosdoAndré.Enempoderia:nãoseiondeelemoroupelaúltimavez,antesdasinternaçõesque

culminaram no suicídio. Alguém me disse que a pequenina biblioteca que eleconstruiufoivendidaparaumsebo.OAndréadoravaliteratura.Visiteiosquatrodacidadeuniversitária,masnãoencontreinada.

Eledavaaulasdehistóriaemumcolégioparticularaquinaregião.Masnãoseiqualenãoestoudispostoadescobrir.Nãoestoucomvontadedefazercontatocomaspessoasquepoderiammedizer.

Também não vim atrás da minha própria história. Não sou a minha tiadesiludida.Masandeipelocampus.Estoupassandoumbomtemponabibliotecadauniversidadeeoutrodiafuiconferirseocineclubeaindafunciona.Poroutrolado,nãovolteiàrepúblicaondepasseiboapartedomeucurso.Domesmojeito,nãovouconferirseosrestaurantesbaratosquefrequentávamosaindaexistem.

Mas confesso que tenhomedodenão aguentar.Estou incomodado comosacessosdeansiedadequecomeçaramdesdequevimparacá.Quandosurgem,sintooimpulsodevoltaratodosesseslugares.Duranteomaisforte, queiatrêsquarteirõesdavelharepúblicaemesenteiemumbanco,narua,commuitavontadedechorar.

Depois voltei para cá, envergonhado. Outra sensação incômoda é onervosismo.Talvez eu devesse largar tudo, voltar para São Paulo, pedir desculpasparaavelhotadaárvoregenealógicaeprocuraratal“ajudaespecializada”.

Sintosaudadesdetudoeissomeirrita.

Tenhofeitodescobertas:quandoagentegritanarua,ninguémrepara.Nesseúltimoacesso, queinervosoporquaseter idoatéminhaantigarepúblicae,comonão

conseguichorar,volteigritando.Agora,noentanto,nãoculpeinemxingueioAndré.Para ser sincero, esqueci dele enquanto gritava na rua. Idiotamesmo é a velha daárvoregenealógica.Tonta,colecionadoradefascículodebancadejornal.

Quandovoltei,escreviume-mailparaelaexplicandoqueárvoresgenealógicassão para colecionadores de quinta categoria. Se a senhora fosse so sticada,colecionariafotogra asoucartões-postaisdafamília.Garantoqueasenhoracompracaixinhadeporcelananojornaleiro.Umahoradepois,minhamãeligou.Nãoatendi.FuiàbibliotecadauniversidadeatrásdealgumlivrooudocumentoquepudessemeesclarecerumapossívelligaçãoentreacidadedeSantoseoOrienteMédio.

Estoufalandodadécadade1970,claro.NoiníciodoséculoXX,haviamuita.Meu bisavô veio para o Brasil, partindo do Líbano, em um cargueiro da própriafamília.Tínhamosumnegóciodetransporteinternacionalquefaliuduranteacrisede1929.Porissoacheiestranhaessatrocadecartasmaisdequarentaanosdepois.

Não encontrei livro algum e então resolvi escrever para a tonta da árvoregenealógica para perguntar se meu tio-avô era terrorista. Uma hora depois,naturalmente,minhamãeligoudenovo.

Naportadabiblioteca,encontreiumdosmeusantigosprofessores.Simpático,eleme reconheceu e me convidou para tomar um café. Aceitei um pouco

contrariado.Eunãoqueriaterumaconversasaudosista.Sentirsaudadesdetudonãoéexatamentesaudosismo.Esseúltimogeraaquele

desejoridículode carrelembrandotodotipodecoisa.Areconstruçãosemprevemacompanhadadeumsorrisofrágil.

Nomeucaso,sentirsaudadesdetudoétervontadederefazerqualquercoisaqueretorneàminhacabeça.Querominhacoleçãode selosdevolta,porexemplo.Foi um erro ter ouvido as fofocas doAndré.Gritei, nervoso, para ele parar de secortar.Voupedirdesculpasparaaminhatia.

MeuprofessorsabiadoAndréedisse,comalgumasinceridade,quelamentavamuito.—Eraum rapazdivertido— falou—, eu adoravaquando eledizia ser oúltimodoscavaleirostemplários.

HouveumaépocaemqueoAndré resolveudizerque faziapartedaOrdemdosTemplários.Ele enfatizava:nãoéumadessas sociedades secretasdehoje.ÉdaIdadeMédiamesmo.Agenteria.Comoeramuitoestudioso,elepesquisoualgunscostumes (acho que sem nenhuma coerência) e chegou a praticá-los. O que maischamavaatençãoeraoritualdacorte.Devezemquando,euoviaajoelhadodiantedeumamoça,estendendoumaflorefazendoumjuramento.Àsvezesfalhava.

Umavez queicuriosocomessahistóriadetempláriosedescobriqueoAndréeracatólico.Elenãoiaàmissa,emuitomenosobedeciaaosrituaiscontemporâneos,

mascumpriasuasobrigaçõesreligiosaspormeiodeumcódigoparticular.Paraele,ocavaleirismomedievalnãodeviatersidoperdido.

Foicomessamesmaéticaqueelearrumouconfusãoquandoseinternoupelasegundavez.UmcertoBinLadenquetentavacontrolarosoutros internossemprequeasenfermeirassedistraíam.Dependendodotranstornodapessoa,elemedisse,afragilidadeémuitogrande.Comesses,oBinLadendeitavaerolava.

Mas com o André não funcionou e os dois trocaram chutes e acabaramisolados.Quandoveioparaaminhacasaecontouessahistória,agentedeumuitarisada.

Não consigo lembrar amaneira como ele rezava. Era umamistura de latimcom inglês antigo. Pesquisei na biblioteca, mas não achei nada. Não localizeitambémnenhuma informaçãosobreos livrosqueelepossa ter retirado.Eovelhoprofessor não soube me dizer se havia algo de especial entre Santos e o OrienteMédionadécadade1970.

Acabo de ver que a velhota da árvore genealógica aceitouminhas desculpas.Vou ter quedizer para a senhora, além de muito obrigado, que estou quasedescobrindoaquilo lá.Eoutracoisa:a senhoranãopassadeumacolecionadoradefascículo de banca de jornal. Não quero suas desculpas. E se ele foi terrorista aspessoasprecisamsaber,suacolecionadoradefascículodemerda.

Na primeira instituição onde o André esteve, acho que por quinze dias, nãoconseguipassardoportão.Fizumasacolinhacomumsanduícheealgumasfrutas

eexpliqueiqueestavaindovisitarmeupai,umcertoJoão.Ovigiaolhouespantadoemeperguntouqualdeles,depoisdeexplicarqueosvisitantesnãopoderiamlevarcomida.

NuncaexistiriaumJoãoLísias.Então,envergonhado,balbucieiJoãodaSilvaeele,semesconderairritação,dissequealinãohavianenhumJoãodaSilva.Respondiquenaverdadegostariadeconversarcomalgunsdos internos, jáque todomundosabequeelessãopessoasmuitosozinhas.Elepoderiaficarcomolancheeasfrutas.

Ocidadãoresolveuperguntarseeuerajornalistae,semoutraalternativa,abriojogo:équeháalgunsmeses(nãomelembroquantos),umgrandeamigoesteveaqui.Queriaapenasandarumpoucoevercomoelepassavaotempo.

Nãorecebiautorização.

Na segunda instituição, onde o André cou por três semanas, minha sorte foioutra.Oportão do estacionamento estava aberto e, no corredor que levava ao

primeiro pátio, encontrei umapequena família que pretendia visitar alguém. Faleibom-diasorrindoeovigiaachouqueeuestavacomeles.Ládentro,distanciei-meumpouco,semperdê-losdevista.

Éumcasalna faixados cinquenta anos.Osdoisusamaquele tipode roupaque fazquestãodemostrarquedepoisvãopassearnoparque.A lhadeve terunsvinteanos.

Pelos gestos, visitamamãedele.Logoque a encontram, a garota correparaacariciar os cabelos bem branquinhos da avó. Não faz com pressa ou obrigação.Quandosairdaqui,elavaiaumcineclube.Quemfalaalgumacoisapelaprimeiravezéamãe.

Sentada emumbanco, embaixodeuma árvore enorme, a senhora continuaolhando o horizonte. Ela usa um vestido azul-claro bem limpo.Os cabelos estãopenteados comcuidado e apele é lisinha.Elanunca será abandonada.Sei oque ameninaestápensando:nuncavamostedeixarsozinha,vovó.

Maselajáestásozinha.Sóagoraperceboabonecanocolodaavó.Elacontinuaolhandoohorizonte,

mas acaricia com o polegar da mão esquerda os cabelos ralos do brinquedo. Hátambémumdespertadoraoladodela,nobanco.Anetacontinuafalandocomaavó,enquantoopaivaiperguntaralgumacoisaparaumaenfermeira.Arespostaéóbvia.Prefirosair.

Emumbancoparecidocomodaquela família, tentomeacalmar.Estouemumpátioenorme,nocentrodeumconjuntodeprédiosbaixos.Atrásdeles,hávários

outros,provavelmentetérreos.Asárvoresestãoportodolado.Avisto,aoladodeumdospavilhões,umpequeninobosque.Poralgummotivo,ninguémseaventuraporali.Háváriosgatos.Umdelespassapormim,masnãoaceitaumacarícia.

Maiscalmo,notoàminhaesquerda,aunscinquentametros,umarodinhasódehomens.Comcertoardecumplicidade,observamolugareaspessoas.Nocentrodeles, um barbudo calado parece conduzir as investigações. Ele tem um rostoenigmático,entreautoritário,cínicoeimpassível.SópodeseroBinLaden.

Compreendotudo.De novo, começo a chorar.Não consigo resistir. Estou chorando porque o

Andréseenforcouumasemanadepoisde iremboradaminhacasa.Choroporquefaleiquenaminhafrenteelenãoiriasecortar.Naminhacasa,não.Estouchorandonessehospíciochiqueporquesó conervoso.Nessehospíciochique.Ficonervosoeaomesmotempomesintoumfraco.Echoroporquenãoentendinada.Comeceiachorar nomeio de todos eles porque coloquei um apelido noAndré. A gente riamuito.Choroporqueagenteriamuito,porqueocoloqueiparaforadecasaeumasemanadepoismeligaramparadizerqueeletinhaseenforcado.Omeuamigoestavamuito sozinho.Omeu amigo se enforcou.Não paro de chorar porque o Andrétinhaseenforcado,porquesó conervosoeporquetodomundodizquequemsematanãovaiparaocéu.

Nãoconsigoparardechoraragora.

Quando saí, outra vez quei com um sentimento estranho: uma espécie de pazeufórica me causou taquicardia. Não tive paciência para esperar um ônibus e

resolvivoltarandando.Achoqueestavafeliz.Não ébem isso: quei alegre.Não foi intenso.Tivequeparar epensarum

pouco para entender o que estava sentindo. Era a mesma alegria discreta que meinvade sempreque encontroumacoleçãobem-feita e tenhoa chancededizer issoparaodono.

Entendi esse sentimento quando visitei a coleção de pesos de papel de ummédico.Erammaisde cem,distribuídos commuitobomgostopelo consultório.Ele tentoume agradecermas, comonão conseguiu, camos os dois ali, realizadosumnafrentedooutro.

Agora,eusentiaessapequenaalegriasozinho.Apesardetudo,tinhagostadodolugar.Eralimpo,bem-iluminado,eosfuncionários,atenciosos.MesmooBinLadenestavavestidocomcertocuidadoenãopareciaserapenasummalucoabandonado.Avovódabonecaaparentavaalgumadignidade.

Aquela instituição,conferidepois,aceitapouquíssimosconvêniosmédicos.Écarointernar-selá.Nãoseisedeviarevelar,masfiqueicomorgulhodoAndré.

No nal da faculdade, o André adorava se gabar dos ótimos empregos queconseguia. As pessoas estavam tentando entrar no mercado de trabalho, e ele

sempreapareciacomasmelhoresnotícias.Aindanoterceiroano,passounaseleçãoparaseromonitordehistóriadomelhorcolégioparticulardacidade.

Elenãoparavade falardo salário edapromessade,no semestre seguinte, jálecionar.Masoscavaleirostempláriostêmmuitashabilidades,continuavaenquantoagenteria:voucomeçaravenderchocolate.

OAndréeramuitobomnacozinha.Antesdeseenforcar,passouumasemananaminhacasae,nanoiteemquebrigamos,preparouumescondidinhodecarne-secaparapedirdesculpas.

Hoje cedo encontrei uma moça que conviveu conosco. Ela também selembrava dos chocolates do André. Ele os vendia muito barato e mesmo assimjuntavaumbomdinheiro.

Elamecontouquetinhaidocomumgrupodeamigosdesfazeroapartamentodele.Naépoca,nãotivecoragem.NãotenhonenhumalembrançadoAndré.

Amoçadisseque coucomalgumascartasqueonossoamigoescreveuparaopresidenteLula, falandodas di culdades de ser de ciente físico noBrasil.O focoeramosproblemasauditivos.Achoquenuncaasenviou.

Talvez a seriedadeno trabalho tenha sido amaneiraqueoAndré encontrouparacompensarosproblemaspsicológicos.Mesmoahistóriadoschocolates,elelevava

muitoa sério.Nocomeço,apenasosamigoscomprávamos.Depois,o sucesso foiaumentando e ele passou a fornecer para vários restaurantes, padarias e bares daregião.Agora, produzia quantidades determinadas, tinha controle de tudo e estavainvestindoemumpequenomaquinário.

Ele parou a fabricação quando começou a ter problemas de nota scal etambémdepoisqueumprofessor,omesmoque cuidariadomestradodele, faloualgumabobagemdotipo“intelectualnãoentranacozinha”.Oscavaleirostempláriossãomuitosensíveis,elemedissenaquelanoite.

Eudeviaterpercebido.OAndré tratava o problema da surdez que tinha no ouvido direito com o

mesmo cuidado. Sempre procurava os melhores médicos, lia muito a respeito elimpava o aparelho todas as manhãs. Às vezes, a gente concluía que ocomportamentoestranhotalvezfosseporcausadadi culdadeparaouvir.Hoje,achoqueeleusavaasurdezparaencobriroproblemapsicológico.

Noúltimoanodevida,resolveuescreverumasériedecartasaopresidenteLulaparareclamardasituaçãodosde cientesfísicosnoBrasil.Considerava-seumdeleseestavareivindicandoumalicençaparanãopagarotransportepúblico.Seconseguisseumacópiadessascartas,aomenosteriaalgodelecomigo.Masatontinhaque coucomelasprometeumemandarume-mailhojee,atéagoraànoite,nada.

Elanãomeescreveu.Seforcon arnessagente,voucontinuarsemnadadoAndré.Oque custa, desgraçada, tirar xeroxdedez folhas, sua colecionadorade araque,

colecionadorademerda,colecionadoradefascículo.Esevocêquersaber,vagabunda,oAndrémecontoutudo,fofoqueira,colecionadorademerda.

Resolviandarumpoucoe,quandovoltei,haviaumaligaçãodaminhamãenotelefonecelular.Dessavez foicoincidência.Ameninasequer sedeuaotrabalhodeme responder com alguma malcriação e, antes de dormir, resolvi escrever umsegundoe-mailfalandocomooAndrécostumavatratá-la:donaTodaTorta.Podeficarcomascartas,donaTodaTorta.TodaTorta.TodaTorta.

Acordeiresolvidoairembora.Nãovouconseguirnadanessacidaderidícula.Avisei minha mãe que voltaria para São Paulo logo depois de pesquisar algumasinformaçõessobreumdoscolecionadoresmaisfamososdeCampinas.Elarespondeudizendoqueeudeviaarranjarumanamorada.Estranheialiberdade.

Háalgunsanososjornaisnoticiaramamortedeumhomemquejuntaramaisdecinquentamiltampinhasdegarrafa.Comotambémastinhacolecionado,guardeiosrecortes.Segundoaviúva,elepassavamuitotempocomastampinhas.Quandoestava para morrer, pediu para que o caixão fosse forrado com elas. O epitá otambém deveria ser escrito com uma colagem de tampinhas. Nesse caso, já nãoconcordo muito: isso indica uma obsessão distante da racionalidade que deveacompanharasboascoleções.Dequalquerforma,paranãoiremborasemnada(jáquenãoarrumeinenhumainformaçãosobremeutio-avô),resolvivisitarotúmulodessecolecionador.Porcoincidência,eleestáenterradonomesmocemitérioqueoAndré.

Amanheceuumbelodia.São típicosdessas cidadeshorrorosasquenão têmnadaparaofereceralémdoclimaameno,océuazuleumabrisaagradável.Umhorror.

Lembro-memuitobemdessesdiasquandofazia faculdadeaqui: logotudoevoluíaparaumfrioenorme.

Não consegui dormir direito e, para me acalmar, resolvi caminhar até ocemitério.Escolhio trajetoquepassaemfrenteàcasade repousodoBinLadeneentrei.

Apesardeaindaserbastantecedo,a senhora jáestá sentadanobanco,comabonecanocoloeodespertadoraolado.Égostosotomarsolessahora.Elaafagacomamão esquerda os cabelos ralos do bebê.De vez em quando, de um jeito quaseimperceptível, força um pouco os dedos na cabeça do recém-nascido, só para tercertezadequeelaestámesmoali.

Umas poucas enfermeiras param na frente dela e desejam bom-dia. Ela nãoresponde.Seráqueouve?Anetaachaquesim.Porisso,chegaalegre,falandobom-diaecomovocêestálinda,vovó.

Amoçasesentaaoladodorelógioecomeçaaacariciaroscabelosdaavó.Elasabequeestouaqui,anetapensa,quase falandoemvozbaixa.—Vousempreviraqui,vovó—sussurra.

Aospoucos,osoutrospacientescomeçamasairparaopátio.Emumrelance,amenina observa como quase todos têm di culdade para andar. Depois, volta aatenção para a avó. As duas estão demãos dadas. Foi a neta que colocou amãodireitasobreobraçoesquerdodaavó.Asduasvivem,então,ummomentodemuitapaz.Anetarepetequenuncavaideixaraavósozinha.

Mastodomundoládentroéinfinitamentesolitário.

Nãoconseguidormirdireitoeachei razoávelvir andando.Pensarmeacalma.Defatooidealévoltarparaomeuapartamento.Nãohánadaquemeprendaaessa

cidade.Com o céu abertamente azul, o cemitério ca ainda mais bonito. Ele é

formadopordiversasruasparalelas,divididasporalgunsjardins.Alémdas oresqueos parentes trazem para os túmulos, há canteiros por toda parte. Apesar de tudo,acho o lugar muito saudável. Imediatamente depois dessa pequenina paz, umsentimentodemedomeinvade:seráquenuncavoudormirbemdenovo?

Acabocruzandocomumenterro.Poucaspessoasoacompanhametodasestãoem silêncio. Conto apenas duas moças chorando discretamente. Não encontronenhumidoso.

Estoucomaimpressãodequeomundocomeçouafuncionaremvozbaixaeem câmera lenta. É o que acontece com as pessoas que não conseguem dormirdireito.

Algunsaliacompanhamotrabalhodocoveirocomumaespéciederesignaçãono rosto. Reparo que todos estão mais ou menos conformados. Mesmo as duasmeninasagorajápararamdechorar.

Resolvoiremboraenoportãodocemitériodou-mecontadequenãohavianenhum tipo de trabalho religioso no enterro. Foi um suicídio. Minha irritaçãoaumenta,nãoconsigomecontrolar edenovocomeçoagritarna rua.Os suicidassofrem.

Deusdesgraçado.

VolteiparaSãoPaulo semterconseguidonada.AbibliotecadauniversidadenãotinhaqualquercoisamaisreveladorasobreaimigraçãodosárabesparaoBrasile,

muitomenos,algoquemedesseumapistasobreacorrespondênciadomeutio-avô.Auniversidadeondemeformeie zmeusestudosdepós-graduaçãojánãome

diznada.Olugarmudoupouco.Quandofuiconsultarabiblioteca,cruzeicomosmesmosprofessores(ououtrosparecidoscomeles),conversandocomalunosquesecomportavammaisoumenoscomoagente.

Encontrei algumas pessoas da minha época. Elas engordaram e compraramumacasa.Trabalhamporaliatéhoje.Perguntaramdasminhascoisas,umaspoucasdisseramqueleemosmeustextosnaimprensaeumconhecidochegouamefalardeumacoleção.Nadademais.

Desliguei-me da universidade há alguns anos, mas não posso dizer queabandoneiacarreiraintelectual.Pelocontrário,pensoemcoleçõesotempointeiro,doucursos,ofereçoconsultoriaeescrevotextossobreisso.Masnãotenhosequerumconjuntodecartões-postais.

Por enquanto, minha família está ngindo quenada aconteceu. Meus irmãos,porém, ligam com mais frequência e minha mãe fala comigo com cuidado e

apenassobreassuntoscorriqueiros.Écomoseeusempreestivesseprestesaterumacrise.

Ontem,nojantarinformalapósminhapalestraemumcongressode latelia,perguntaram-me se também coleciono selos. Respondi que não. E nem qualqueroutroobjeto.Nohotel,duranteainsônia,concluíquenãoseriamaucomeçaroutracoleção.

Minha fala foi sobre selos com defeitos que, por algum motivo, acabarammuito valiosos. Planejo há bastante tempo um livro sobre coleções como uminvestimento.

Játivenasmãosumdosvinteequatroselosque,porumerro,escaparamdoembargo de 1980 na Alemanha Ocidental. O governo lançou uma série paracomemoraros jogosolímpicosdeMoscou,mas logodepoisresolveuparticipardoboicote dos países capitalistas. Os poucos selos que foram enviados valem hoje,acompanhadosdocarimbo,algocomovintemileuros.OAndréteriaorgulho.Eleadoravacoisascaras.

Tododia,vouparaacamacommedodeterinsônia.Consigoatéperceberosmeusbatimentoscardíacossemfazernenhumaconcentração.Deito-me,cubrotodoo

corpo,ficoimóvelnoescuroemeucoraçãodispara,commedodenãodormir.Preciso de um tempo parame acalmar.Depois, seme esticar com o corpo

viradoparaoladoesquerdoetiveralgumasorte,consigoadormecer.Maséumsonobemleve.Quaseumcochilo.

Noitepassada,conseguidormir.Masosegundotemor,quetambématrapalhamuito o sono, apareceu: tive um pesadelo. Estava em um cômodo e um vultochorava. Eu o ouvia, mas não conseguia localizá-lo no escuro. Lá pelas tantas,quandoestavaprestesachorartambém,acordeienãoadormecidenovo.

Visiteiagoraà tardeumcolecionadordeobjetosmilitares.Éumsenhorquepassouavidaacumulandotodotipodematerialquepertenceraadiversosexércitos.Tudo caarmazenadoemumgalpãoemumachácarapertodeSãoPaulo.Comoestábastante caótico, eleme contratouparaorganizarosobjetos epensar emumaespéciedecatálogo,jáquepretendeabrirumpequenomuseuparticular,ouatéumafundação.

Embora muitos colecionadores passem boa parte da vida contemplandosolitáriosseumaterial,chegaummomentoemqueéirresistívelmostrá-lo.Semdizerquequasetodosqueremdeixá-lodeherança.Paramuitos,éoque zeramdemelhoremtodaavida.Maseunãoestavaconseguindomeconcentrardireitoeentãopediparaconversarmosoutrodia.

Ainsôniaestácomeçandoaatrapalharomeutrabalho.

Muita gente pensa que não dormir causa cansaço e fraqueza. A disposiçãodesaparecee a cabeçaacabamais lenta.Éverdade,masopior é a irritação.Dá

raiva. Quase gritei com o colecionador quando, depois de me mostrar algunscapacetesquepertenceramaoexércitosoviéticoduranteaSegundaGuerra,eleabriuumacaixacomminiaturasdebombardeirosvendidasembancadejornal.

Conseguime controlar,mas foi por pouco. Expliquei, demá vontade, queuma coleção conquista seu valor pelo conjunto. De que adianta ter um capaceteusadopelossoldadosquedefenderamamaiorsiderúrgicadeStalingrado,seaoladoestãoalgunsfascículosquequalquerumpodeconseguir?

Umacoleçãonãoéummeroacúmulo,continuei,masahistóriaqueháportrás de cada um dos itens. Peças vendidas em grande quantidade, como essesfascículos, sãoesterilizadas.Eahistóriaé suja.Osobjetos secontaminamemumabatalha.Alguémgritouusando-os.O senhornão achamelhor descobrir quem foiessesoldado,porra?

Depoisdisso,acabeimecontendo.Eleconcordoucomacabeçae,no naldascontas,prometeujogarforatudoaliquefossefascículoesterilizado.

No nal, simpatizei com ele. É um engenheiro demotores aposentado quepassouavidaviajandoparaumaempresadetransportemarítimo.Elesupervisionavaamanutençãode transatlânticos.Comoganhavaumapequena fortuna,começouacomprar objetosmilitares.Na verdade, falou envergonhado, ele acha que entre osseusantepassadosháumgrandegeneral,masnuncaconseguiusaberquem.

Um vulto apareceu chorando quando consegui nalmente adormecer. Chegueimais perto. Ele não se parecia com o André, ao menos na época em que se

enforcou. Por causa dos remédios, meu amigo engordou bastante. E o vulto eramagro.Achoquetenteifalaralgumacoisa,masaimagemnãoouvia,ouminhavozestavafracademais.Ameaceigritar,mas,quandoestavatomandofôlego,acordei.

Repareiqueamadrugadamaltinhacomeçado.Estouacordandocadadiamaiscedo.Putaquepariu.Vireiocorpoparaoladoemeconcentrei.Nãoadiantou:tudoo que consegui foi escutar meu coração. Fiquei um pouco assustado com ataquicardia.

Olheinoescurocadaumdoscômodos.Poralgummotivo,nãotivecoragemdechegarpertodasjanelas.Apureiosouvidosparadistinguirossons,dentroeforado apartamento. Passou um carro. Depois, contei um longo tempo em silêncio.Encostei na parede próxima ao elevador, mas, enquanto quei ali, ninguém ochamou.

Deve ter passado pelaminha cabeça a hipótese de estarmos todos sozinhos.Nunca tive isso. Depois, senti vontade de chorar, mas prendi a respiração e meaguentei.O esforçome animou e afastei a autocomiseração.Masnão tem jeito: araivavoltaemalgunsinstantes.Olheiorelógioeligueiocomputador.

Suabesta,estouescrevendoparadizerquenãovoutrabalharcomasuacoleçãodesorganizadaetonta.Ficamesmocomesses fascículos.Colocatudonobolsodasfardasrussas,suaanta.Voudarumadica:passapanomolhadonosaviõezinhosládabancadejornaledepoisrezaparaoespíritodoseutataravôgeneralzinho.Olha,fazumaárvoregenealógicaparadescobrironomedele.Conheçoumavelhamulaigualavocêquepodeajudar,voutedarocontatodela.

Anetaseassustouquandonãoencontrouaavónobancodesempre,maslogoviuque, por algummotivo, as enfermeiras a tinham trocadode lugar.Ela está ali,

dissecomummeiosorrisoparaorapaz.Osdoisseaproximaram,semqueasenhoraosnotasseoudeixassedealisaroscabelosdaboneca.

Vim apresentar o meu namorado, vó. Por um instante, a garota se sentiuapreensiva, pois queriamuito que os dois se dessembem.O rapaz sorriu, fez umgestocomobraçodireitoesealiviouaoperceberquenãoprecisariafalarnada.Nãoconseguiria.Sealguémoobservasse,notariaseusolhospiscandoumpoucomaisqueonormaleastrêsouquatrotentativasfracassadasdeengoliremseco.

A neta se senta ao lado da avó e, logo depois, começa a dizer algo bembaixinho. Como se as duas trocassem algum segredo. O rapaz ca ali, sem sabercomosecomportar,mascomacertezadequeestánolugarcerto.Aavóàsvezesfazbrevesmovimentosdecabeça,queanetagostariamuitoquefossemaquelesgestosdeaprovaçãocomopescoço.

Duasenfermeiraspassamenãodeixamdeacenar.Elaéumafofa.Nãoháaliquem pense o contrário.Ummédico está chegando e percebe, por causa de umasensibilidade que re na há décadas, o que está acontecendo. Ele dá mais algunspassos,massentealgomaisfortequeocompeleaparticipardaquilo.Então,retorna.

—Como a senhora está bem—diz rindo enquanto estende amão para orapaz. Depois, cumprimenta a neta e conversa com a velha paciente. O doutorperguntaaquelascoisasdemédicobonzinho.Orapazseafastaumpouco.Omédicopergunta se a senhora está feliz comavisita, e elemesmo responde:—Claroquesim.—Naquele instante, surgealgumacoisamuitoespecialentreosquatro.Duramuito pouco e não é o namorado, mas sim a neta, que discretamente começa achorar.

Pedidesculpasparaocolecionadoreprometique,seeleaindaestivessedispostoatrabalhar comigo, em no máximo uma semana eu mandaria um projeto com

inúmeraspropostasparaorganizaracoleçãodele.Antesmesmodereceberaresposta,porém,escrevioutroe-mailofendendo-o.

Minhamãetinhaacabadodemefalarqueumengenheirocolecionadordematerialmilitar escrevera para a prima da árvore genealógica atrás de dicas para localizarparentesdistantes.

Algumas horas depois (desde quando tudo isso começou não estouconseguindomedirotempodireito),encontreiemumdessesfórunsnainternetumlongotextodelemecriticando.

Respondi imediatamente. Aproveitei para deixar claro que só um grupo deimbecis perderia tanto tempo com aquela anta. Como não conseguiria mesmodormirdireito,passeiorestodamadrugadaofendendotodomundonainternet.

Pelamanhã, naturalmente,me arrependi.Tentei pedir desculpasmasminhaconta tinha sido excluída. Logo cedo o telefone tocou e minha mãe, com aingenuidade habitual, contou toda alegre que achava que a tal prima estavanamorandooengenheirodosobjetosmilitares.Poisosdoiscombinamdeverdade,respondi. Logo emendei que iria para Santos avaliar uma coleção de taxímetrosantigose,então,aproveitariaparatentarencontraralgosobreotio-avôdosselos.—Seeletiversidoterrorista,voudescobrir.

Minhamãerespondeuqueestouirreconhecível.

Acoleçãodetaxímetrosestavabem-organizada.Enquantomeserviacafé,o lhodocolecionador me contou uma longa história. Com sono, não consegui gravar

muitacoisa.Opaimorrerahaviaalgunsmeseseosquatroirmãostinhamresolvidochamarumespecialistaparaavaliaracoleção.Elesestavamperdidos.

—Nãoé semprequeagenteachaesse tipodebomsenso—comentei.—Vou te dar um exemplo: outro dia, fui catalogar um imenso acervo de objetosmilitareseencontrei,aoladodeumafardaedealgunscapacetesmuitovaliosos,essasminiaturasdebancadejornal.—Comonoteiqueelenãoestavaentendendonada,z algumas anotações rápidas sobreo acervode taxímetros epedi algunsdias para

estudar.Dessavez,eviteioerrodeCampinasefuiparaumhotel.Alugaroutracasade

fundos seriaumexagero.Quero voltar àminhahabitual contenção.Comoàquelahoraasbibliotecasjáestavamfechadas,tenteidormirumpouco,masàmeia-noiteeuaindanãotinhaconseguidonemcochilar.

A raiva acaba aumentandonessas situações e você começa a ter certeza,maisumavez,dequenãovaidormir.Fiqueicomumimensoódiodocheirodomare,semmuito controle, ligueio computador.Antesde verume-maildaminhamãefalandodeumpsiquiatraótimo,escreviparaoherdeirodostaxímetroseaviseiquetinhamaisoquefazerdoque cardandoumpreçoparaaquelesobjetosbobos.E,olha,nãoprecisa carpassandopanoatébrilhar,não,seuamador.Sótiraropó jáestábom.

Demanhã,maisoumenoscertodequejamaisvoltariaadormir,tensoapontodesentirvergonhaporcausadasmãostrêmulas,ouvindoocoraçãodisparado,sem

conseguir respirar direito portanto, saí correndo do hotel em direção à praia.Algumaspessoasdizemqueomaracalma.Masocheirocarregadomenauseou.Osolcomeçouaesquentarmeurosto,edesapatomesmoandeiumbomtempopelaareia. Comecei a sentir aquela umidade estranha nos pés. Cidades portuárias nãopodemser tãomovimentadascomotodomundodiz.Umbarconão traznadadenovo, nem omar. Vi um navio enorme próximo ao horizonte eminha irritaçãoaumentou.Seestivesseabordodeum,comcertezanuncadormiriaoutravez.Elesbalançamdemais.Comaquele tamanhotodo, respondiparamimmesmo,vocêsesenteemterra rme.Nãosei.Dei risadadaminha tolice.Deiteiquandoaareia játinha invadido meu sapato. Meus pés estavam incomodados, mas não soltei ocadarço. O sol começou a abrasar meu rosto. Senti um prazer estranho. Nadaparecido com essa história de bronzeado. A praia estava começando a encher. Oprazer, fuipercebendo, tinhaalgocomaminha situação.Aocontráriodasúltimassemanas, me senti forte naquele momento. Ao mesmo tempo, era incapaz delevantar. O sol estava começando a me ferir, sobretudo nas orelhas. Mas nãoconseguientender sedesejavaoutracoisa.Denovo, senti raivadoAndré.Eudeviaestarnaregiãodoporto.Eramsirenesoqueouvia,tenteiconcluir.Resolvinãoabrirosolhos.Nãome lembro se nalmenteconseguidormir.Achoquenão,masnãoimaginoquepossateracontecidoalgumaoutracoisa.

Aocontráriodasenhoraquenãolargaabonecaesempreestáemumdosbancosdopátiocentral,quando se internounomesmo lugaroAndrénãopassoumaisde

cincominutossentado.Eleviviaumaansiedadeincontrolável.Devetersidoesseumdosprimeirosmotivosdecon itocomoBinLaden:essegordinhonãoparaquieto.OAndré,aoouvir,reagiu.

Comcerteza, ele tinhanotadoque anetanãopassava três dias semvisitar aavó. O André tinha uma espécie de radar para gentilezas. Coisa de cavaleirotemplário,explicou-meumavez.Deirisada.Achoqueelenãoligou,masdepoisquetudoaconteceuacabeimearrependendo:nosdiasseguintesaosuicídio,muitacoisavoltouàminhacabeça.Lembro-meporexemplodecomoele coutranstornadoao,semquerer,pisarnoaparelhodeaudiçãoqueusava.Oconsertofoimuitobarato,eurepetiatodavezqueelevoltavaaoassunto.

Nãoseiseeleconversoucomanetaalgumavez.Ébempossível,jáquenemnos piores momentos deixou de ser galanteador. Nas duas vezes em que a netatestemunhouas enfermeiras tentando fazer a avó andarumpouco,oAndré estavaperto.Talvezeletenhaseoferecidoparaajudar.

Como não havia ninguém responsável por ele e a internação tinha sidovoluntária,meuamigodesobedeceuaosconselhosdopsiquiatrae,depoisdealgumtempo, resolveu ir embora. Era nal da tarde, ventava, e ele andou algunsquilômetrosatéchegaremcasa.Denoite,nãoconseguiudormir,pensouemmuitacoisa,bagunçoua vida achandoque a estavaorganizando enamanhã seguintemeligou,bemcedo,pedindoparamevisitaremSãoPaulo.

OAndré sempre gostou das minhas coisas. Quando resolvi fazer pós-graduaçãosobre coleções, fugindo um pouco das modas historiográ cas da época, ele

defendeuminhaopção.Domesmojeito,logoquemeusprimeirostextossaíramnaimprensa,meu amigo não aceitou a crítica de vulgarização do trabalho intelectualquecomeceiarecebereexplicouminhavontadededialogarcomumpúblicomaior.

Ele adorava ir àsminhas aulas.Quandomeusminicursos se popularizaram,semprepediaumresumoe faziamuitoesforçoparacomparecerapelomenosumencontro.Segundoaspessoasquelimparamoquartoondeapolíciaachouocorpo,oAndrénãocolecionavanada.Vinhaparameprestigiar.

Ao chegar à minha casa, estava bastante inquieto. Contou-me da últimainstituição e da briga com o Bin Laden. Não falou da avó da boneca. Logo,perguntoudasminhascoisasesorriuumpoucoantesdepediradatadealgumaaula.Mas ele não tinha como parar quieto e, de repente, abriu todo o conteúdo damochilanochão.

Finalmente, achou o presente que tinha trazido paramim. Fiquei alarmadocom a quantidade de remédios,mas eleme tranquilizou.— Está tudo bem.Naverdade—disse,olhando-mecomalgumaprofundidade—vimprotegervocê.—Nãoentendinadae, comoestava cando tarde,propusque saíssemosparacomer.Elefalouojantarinteiro.

Tenhomuitavergonhadedizer:quandofuidormir,tranqueiaportadomeuquarto.Sentimedodequeelemefizessealgummal.

Não consegui dormir direito. O André fez barulho a noite inteira. Como osremédiosdavammuitasede,eleiatodahoraàcozinhaeaproveitavaparaligara

máquinadecafé.Tomoubanhoduasvezese,acertaaltura,assistiutelevisãoedepoismexeunas estantes.Bemcedo, arrastoualgunsmóveisda sala edepois saiu.Acheique era aminhaoportunidadepara tentardormirmas,pouco tempodepois, ouvimuitobarulhonacozinha.Tivequelevantar.

Sorrindo,eledissequeprepararaalgoparaocafédamanhã.Depois,perguntoudaminhanamorada.Expliqueiquetínhamosterminadoalgumassemanasantes.—Vocênãomecontamaisnada—falou,ensaiandocertaamargura.

Quandosentamosparacomer,pareciaalegre.Nãotinha sequerdeitado,masissonãooincomodava.Euestavaexaustoe irritado.Eleentãodissequetinhaalgoparamerevelar.Denovo,estoucomvergonhadeescrever.—Voudizeralgomuitoimportante:quemgostaequemnãogostadevocê.—Alémdisso,contou-meoquefalamdomeutrabalho.

Fiqueiouvindocomalgumprazer.Semterminardecomer,noentanto,elelevantou,pegoualgunsdocumentos,

virouorestodoconteúdodamochilanocolchãoondedeveria terdormidoesaiuparareivindicarumpassedede cientefísico.Porcausadosproblemasauditivos,elenãoqueriamaispagarcondução.

Meugrandeamigotinhaquebradoamáquinadecaféeo ltrodeágua.Alémdisso, instalaraumacampainha estranhíssimanocomputador.Mesmodesligado, acadaonzeminutosamáquinaemitiaumsomagudo,curtomasbemalto.

Sóconseguiqueacampainhaparassequandotireiocomputadordatomada.Então,achoquedormiumpouco.Nãoseidizerquantotempodepois,oAndrébateuna

portarindo:nãoconseguiomeupasse,masfizoalmoço.Estava bom. Meu amigo sempre foi um ótimo cozinheiro. Quando já

estávamos terminandoa sobremesa—quemecustaraum liquidi cadorquebrado—,elemedissequeprecisavafalaroutracoisamuitoimportante.

Fiqueicomvontadederecusar:não,André,nãoaguentomais.Noentanto,denovo me dispus a ouvi-lo. Ele descobrira no YouTube uma pessoa que estariatentandosepassarpormim.Paranãodarmuitonavista,oespertinhodizquemoraemLondres.

—Oqueeleestáfazendo?—Comovocêtemosonopesado,ànoiteelevemaqui,entranasalacomum

violão egravavídeos cantandoasmúsicasquevocê adora.O fundoé a estantedemadeira.Inclusive,eledeixamuitovisívelacoleçãodeselos.

—Eporquealguémfariaisso?— Para acabar com a sua reputação, Ricardo. Como canta muito mal, as

pessoasreconhecemamúsica,asuasalaeacoleçãodeselos,ecomcertezaachamquevocê enlouqueceu. Garanto que, mesmo que ainda não tenha percebido, você jáperdeualgunsclientes.Maspodedeixar, zumplanoeestoumontandoguardaànoite.Vouteproteger,meuamigo.

—André,eunãocolecionoseloshámuitosanos.

Comadesculpadequeprecisavatrabalhar,saíparaarua.Liumpoucoedepoisfuiaocinema.Dormiofilmeinteiro.

Ànoite,aceiteiassistircomeleaosvídeos.Defato,aseleçãodemúsicasdotalRichardédemuitobomgosto.Elesesentaemumamesinhaparecidacomaqueeutenhoeinterpretaalgunsclássicosdorockdeumjeitopatético.Atrásháumaestantemuitoparecidacomaminha.Quemcongelaaimagempercebe,comalgumesforço,umvolumecomapalavrastampescritaàmãonalombada.

MostreiparaoAndréque,apesardacuriosacoincidência,nãoexistenenhumachancedeaquelaseraminhasala.Alémdisso,oslivrossãotodoseminglês.Irritado,eleresmungouqueocaracomcertezamaquiavaaestanteànoite.

Semdarmaiscorda,respondiquenãoiriajantaremetranqueinoquartoatrásde algum sossego. Adormeci, mas não por muito tempo: outra vez ele deu aimpressãodesequerdeitarepassouotempointeirofazendobarulho.Nosintervalos,eucochilavaalarmado.Serápossívelquemeuamigopassariaquarentaeoitohorassempregarosolhos?

Quando saí do quarto, ele estava tentando arrumar a torneira do ltro. Oforno de micro-ondas também tinha quebrado. Parece que além disso havia umdefeitonocomputador.Griteiquandoviqueosmóveisdasalaestavamtodosforadolugar.

Comeceidizendoquenãoaguentavamaisaquelaloucura.Tambémolembreiaosberrosdequenãocolecionavaselos.Depois,faleiqueeleestavatentandochamaratenção.Por m,dissequeeuiriavoltarnahoradoalmoçoequeentãoqueriaacharmeu apartamento em ordem. E tudo consertado. Ele apenas repetia que erameuamigo.

Quandovoltei, pertodahorado almoço, encontrei a saladomesmo jeito: todabagunçada.OAndréestavanoquarto,sentadonocolchão,cortandoapelecom

um canivete. Lembro-me perfeitamente da lâmina acizentada entrando na pele damãoesquerdadele.Fiqueiperplexoporalgunssegundosedepoisgriteiqueelenãofariaaquilonaminhacasa.

Fuiatéointerfone,prontoparapedirqueoporteirochamasseapolícia.MasoAndréselevantou,repetiuduasoutrêsvezesqueerameuamigoeveiocaminhandocom o canivete nas mãos, na minha direção. Não consigo lembrar direito. Oumelhor:tenhovergonha.

Pegueiumacadeiraparameproteger.—Maisumpassoeeuteacerto.—Elejogouocanivetenochãoe, comosolhosmuitovermelhos (euacho), começouafalarquenuncamefariamal.

Devo ter sentido uma leve tontura. Enquanto murmurava alguma coisa, oAndréarrumouamochila,recolheutudoefoiemborapelaportadacozinha.Nãomelembroseelesedespediu.

Fiqueihorasloucoderaiva.Meuapartamentoestavatodoquebrado.Eunãotrabalhava fazia tempo. Enquanto descobria que não precisaria tirar o telefone doganchoparadormir(eleodeixaramudo),acheiquetalveztivesseperdidooamigo.

Dormipormuito tempo.Atéhojenãopegono sono se aportanão estivertrancada.

Não consigo estabelecer direito o que aconteceudepois.Estava commuita raiva.Devo ter dado um jeito para arrumar ao menos uma parte do que ele tinha

destruído.Senãomeengano,comeceiadarumcursonovo.Podeserquenão.Euandavaparacimaeparabaixo,nervosoesemsabermuitobemoquefazer.

Pensava em telefonar para pedir desculpas, mas isso poderia fazer com que elequisessevoltaraomeuapartamentoedestruí-lodenovo.

Dealgo, jamaisvouesquecer:nomeiodasemana,elemeligou:—Ricardo,voumeinternardenovo.Ficadeolhoemtudo.

Não suportei.Ficadeolho emquê,pensei emgritar.Ficadeolho emquê,meu Deus? Ele repetiu: — Vou me internar de novo, Ricardo. Cuida para nãoacontecernada.

Dissotenhocerteza.Entãorepeti,comavistaescuraecheiodemedodenãoconseguir carempé

(minhaspernasenfraqueceram),quenãoaguentavamais.Um dos dois bateu o telefone.Tirei o o da tomada. Não vou conseguir

terminarestecapítulo.

DoqueaconteceucomoAndrénosdiasseguintes,seipouco.Eletinhamefaladoalgosobreautoresde cçãoquepoderiamilustrarsuasaulasdehistória.Nãodei

muitabola:gostodeler,maspre rotextosteóricos.Senãofossehistoriador,talvezpartisseparaafilosofia.

ElemecontouqueestavacomeçandoalerumcertoRobertoBolañoepediuparairmosaumalivraria.—Claroquesim—respondi,masdepoisesquecemos.

A polícia, quando invadiu o quarto onde ele vivia, encontrou o corpoenforcado ao ladodo livroNoturnodoChile,deRobertoBolaño,aindadentrodasacoladalivraria.

Ninguém conviveu com ele nesses últimos dias. Eu, ao menos, desapareciporquenãoaguentavamais.Econfesso:fiqueicommedo.

Elealugavaumquartoecozinhaparaestudantes.Apesardejáterseformado,aindaviviasobalgumaproteçãodauniversidade.Acreditoquetenhasidoládentroquepassouamaiorpartedotempo.

Quando saía à rua, não conseguia se comunicar direito com as pessoas. Asintenções dele jamais eram compreendidas. Não é nada disso, ele se repetia,remoendo. De repente se animou e saiu para comprar o livro. Na loja tentouconversarcomavendedora,maselanãoentendeudireito.Voltandoparacasa,omal-entendidooperturboumuito.Elecolocouo livronamesa, fezonócomacordaqueestavanagavetadaescrivaninha,pendurou-anavigadotelhado,subiuemumacadeiraeseenforcou.

Omeugrandeamigopensavanissohaviamuitotempo.

Algumas horas depois, o telefone celular dele tocou. A polícia identi cou onúmero: era um telemarketing. Ninguém mais o procurou. Ninguém se deu

conta de que ele tinha sumido. Minhas pernas tremiam quando o meu telefonetocava. Por duas ou três vezes, nos dias seguintes à visita que destruiu meuapartamento,deixeideatender.

Depois,acheiqueeletivesseresolvidomedeixarempaz.Eletinhaseenforcado.Quandoocheiroruimcomeçouaincomodaraspessoasquemoravamperto,

alguémchamouapolícia.Nãoseiquaissãoosprocedimentosquandoessetipodecoisaacontece.Devemtersimplesmentearrombadoaportaeencontradoocorpojáenforcadoporváriosdias.OcorpogordodomeuvelhoamigoAndré.

Apolíciaencontrouocorpoe,emcimadamesa,umasacoladelivrariacomaquele romance latino-americano.Tentei,masdepoisde tudo isso jamais conseguilê-lo.

Nessemesmodia,recebiumaligação.Ricardo,oAndréseenforcou.Ricardo,a polícia achou o corpo do André enforcado. Já faz alguns dias. Ricardo, o seuamigo.Ricardo,você,Ricardo,oAndré,Ricardo.Enforcado,Ricardo.OAndréseenforcou,Ricardo.

Saíandandoecruzei todoobairrodePinheirosapéváriasvezes.Nãosei segritei.Achoquesim:estavacomódio.OAndrétinhasereveladoomaior lhodaputa do mundo. Devo ter entrado em uma igreja católica. Fiquei na rua até demadrugada.Nuncamaisdormi.

Meurosto coumuitovermelho,masasensaçãodequeimadoquemaisincomodaé nas orelhas. Na testa também é desagradável, porque com o suor a reação

imediata é esfregar asmãos na pele.Dói.Depois que acordei na praia desse jeito,demorei algumas horas para acostumar. Resolvi não entrar na água. Voltei para ohotel,comialgumacoisaesaíparacomprarumaloçãoparaapele.Abalconistadafarmácia insinuou que talvez fosse melhorir ao hospital. Insinuei que talvez fossemelhorelairàmerda.

Telefonei para o herdeiro dos taxímetros e disse que não cuidaria daquelabosta.Vendeparaumdesmanche, idiota.Euqueriaperguntarumacoisa:porquevocêsherdeirosqueremsemprevendertudo?Porquevocêsherdeirossópensamemdinheiro.

FuidiretoàFundaçãoArquivoeMemóriadeSantos.Pediàmulherzinhaqueme atendeu todosos registrosquepudessehaver sobre apresençade terroristasnacidade.Então, sua tonta, vou explicarmelhor.Meu tio-avô trocou cartas, durantetodaadécadade1970,comumapessoaqueviviaemSantos.Descon oqueessascartastenhamligaçãocomoterrorismo.Nãoseionomedapessoa,minhasenhora.Tambémnãoseioendereço.Entãoasenhoravátomarnocu.

Como amaior biblioteca de Santos também é umamerda, voltei para SãoPaulo. Caí na besteira de atender o telefone eminhamãe insistiu emme visitar.ExpliqueiquenãopoderíamosnosverporqueeuviajariaparaoLíbanoatrabalho.Elacomeçouachorareeubatiotelefone.

Evidentemente, minha mãe viria até a minha casa. Eu não tinha muito tempo.Juntei algumas trocas de roupa, arranjei material de anotação, deixei instruções

como zelador e emmeia hora estava dentro de um táxi rumo ao aeroporto. Porsorte, o Líbano permite que viajantes de diversos países solicitem o visto nodesembarque, no aeroporto de Beirute. Consegui, por causa disso, evitar umadiscussãocomaminhamãequeprovavelmenteseriamuitodesagradável.

Troqueialgumdinheironoaeroportoe,comocartãodecréditocujo limitepareciain nito,compreiumapassagemparaFrankfurt.Aguardeioembarqueindoacadameiahoraolharmeurostonoespelhodobanheiro.Ésóimpressãominhaouavermelhidãoparece ter aumentado?Umpoucoantesde entrarnoavião, acheiqueestavacomfebre.

Mesmo assim, dormi bastante.Quando acordei, estávamos quase chegando.Maistranquilo,resolvifazerumalistadoqueprecisariaprovidenciaremFrankfurt:a)comprarumguiadeturismodoLíbano;b)encontrarumhotelemandarume-mail solicitandouma reserva; c)providenciar apassagemparaBeirute;d) telefonarpara minha mãe pedindo desculpas; e) explicar para ela que colecionadores nãogostamdeesperarequeaoportunidadeeramuitoboaparamim;f)pedircontatosde possíveis parentes no Líbano; g) pensar em lugares de pesquisa genealógica emBeirute;h)verseaquelesitedediscussãosobrecolecionismocontinuameagredindo;i)sesim,responderàaltura;j)conferirasituaçãodomeurosto;k)seestivermuitograve, pensar em algo para fazer; l) muitos alemães são vermelhos, eles devemportanto estar preparados para isso; m) comprar pasta de dente, pois acho queesqueci.

ChegueimelhoràAlemanha.Nãomesentiatãobem-humoradohaviamuitotempo.

Noaeroporto,compreiumguiadeturismodoLíbanoeumlivrãodeRobertFisksobreahistóriadopaísdoscedros.Sóentão,lembrei-medoscon itos.Corriaté

oguichêdepassagensedescobri,aliviado,queoaeroportodeBeirutetinhareabertoalgunsmesesantes.Porsorte,haviaumvoonaquelanoite.Teriaqueesperarapenasdozehoras.

Acheiumserviçodeinternet.Claroquehaviaume-maildaminhamãe.Dessavezelatinhareforçadoosapelos:atémeuirmãoquemoranaAustráliameescrevera.Daminhairmãmédica,viduasmensagens.Resolvinãolernenhumaerespondiparaa minha mãe explicando que tinha sido convidado para assessorar um grupo defilatelistasárabesquesereuniriaemBeirute.

Pedidesculpasportudoedissequenavoltalevariaumpresenteparaaprimada árvore genealógica. Aproveitando, se minha mãe pudesse mandar um ou doisendereçosdeparentes emBeirute, eu gostariade visitá-los.Tenho sentido faltadaminhafamília.

Mandei um e-mail para um hotel que me pareceu razoável em Beirute. Ofórumdediscussãoon-line tinhameesquecido.Meurostomepareceuumpoucomelhor. Notei que, na Alemanha, ninguém reparava no meu problema. Comialguma coisa e, antes de cochilar no aeroporto até o embarque, passei umas boashoraslendosobreoLíbano.Talvezeupossacomeçarumacoleçãodeselossobreoscon itos do país. Seria preciso car atento às referências indiretas, claro.Colecionadoresadoramdetalhes.

Conseguidormirovoointeiro.Quandodespertei,oaviãotaxiavanoAeroportodeBeirute.Minhainsôniatinhapassado.Porcausadaexcitação,levantei-meantesda

horaeleveiumabroncadocomissário.A passagem pelo controle foi tranquila. Brasil e Líbano têm uma relação

amigável hámuito tempo.Expliquei que sou especialista em coleções e que tinhavindoatrásdeumcertomaterial.Alémdisso,minhafamíliaédeorigemlibanesaequeroconhecerumpoucomaisdahistóriadosmeusantepassados.Oo cialsorriuecarimboumeupassaporte.

Tomeiumtáxidoaeroportodiretoparaohotel.Acheiacidademelancólica,mascrediteia impressãoaocansaço.Depoisdemeregistrar, subiaoquarto,abriajanelaereconheci,aumadistâncianãomuitogrande,aTentcity.Éumaespéciedeacampamento encravado em Beirute onde vivem desabrigados do con ito doOrienteMédio, alguns ativistas e, dizem,membros doHezbollah. Seria um lugarimportanteparapesquisarasatividadessuspeitasdomeutio-avô.

Masnaquelemomentoosonovoltou.Olheiashorasetenteifazerumpoucodeforçaparaesperaracordadoatéanoitecer.Pediumlanche.Oqueaconteceudepoisnãoestáclaronaminhamemória.Acomidachegou,achoquecoloqueiabandejanamesinha do quarto e peguei no sono. Acordei no dia seguinte com uma gritariainfernalnarua.Senãofoiisso,houvealgumaconfusãonocorredordohotel.

Comi o lanche para não perder tempo com o café da manhã e saí paraconhecerBeirute.

Como se afastoupara a avónão vê-la chorando, a neta está a poucosmetros doAndré.Agarotacobreo rostoeadelicadezadogestochamaaatençãodomeu

amigo.Eleseaproximaediz,murmurandonomesmotomcomquegarantiuquenãomefariamal,quetudovaificarbem.

AnetapercebequeoAndrécompreendeadorquequaselhetiraoequilíbrioeapoiaocorponalateraldodele.Namesmahora,olhadenovoparaaavóe,comonãosuporta,começaentãoachorarsemmuitocontrole.OAndréaamparae,jáquesempresofriacomadordosoutros,tambémnãoseguraaslágrimas,oqueafaznãoouvirospedidosdele:—Nãochora,porfavor.—Amoçacontinuacomocorpotrêmulo.Meugrandeamigosenteadordelaeachaqueprecisaajudá-la.

Sóporisso,senhorDeus,oAndrémereceirparaocéu.Quandoanetachegou, três enfermeiras estavam justamente tentando fazer a

avó andar um pouco. Agarrada à boneca, ela conseguiu se levantar. Então, umaenfermeiraexplicou:—Vovó,colocaumpéàfrente.—Maselanãosabeoqueépé.Outraenfermeiraseagachoueempurrouopéesquerdodaavó.Aneta,quetinhaidoatéláporquejamaisdeixariaaavósozinha,nessemomentoencostouorostonoombrodoAndréeosdoiscolocaramparaforaamaiordordomundo.Atrás,quatrooucincointernos,todoscomumamaniamalucaoualgumacoisaerradanacabeça,tambémestavamolhando,semsaberseamparavamanetaeoAndréouajudavamasenfermeirascomavovó.Essaspessoas,senhorDeus,merecemirparaocéu,mesmoqueacabemsematando.

Resolvi andar. Percorri distraído toda a extensão da rua do hotel.Na cabeça, zalguns planos para os dias seguintes. Também, como sempre, lembrei-me do

André:eleadoravaouvir-mecontandoasminhasviagens.Certavez,passeihorascomele conversando sobreum colecionador quemantinha, naAmazônia, uma coleçãoenormedematerialrelacionadoàhistóriadosjogosolímpicos.

Quandovireiàesquerda,porém,acheimelhormeconcentrarnacidadeenaspessoasquecruzavamcomigo.OsmoradoresdeBeirutepareciamtensos.Éverdadequetinhamacabadodeselivrardemaisumcon ito.Mesmoassim,euesperavaaomenos um resquício do cosmopolitismo de que todomundo falava. Cruzei comalguns jovens um poucomais animados e cheguei à rua dos cafés. Sentei em umdeleseagarçonete,bonitamascomorostocarrancudo,atendeu-mesemperguntardeondeeuvinha.EstavaansiosoparadizerquedoBrasil.Nãofoidessavez.

Volteiàrua,vireiduasesquinaseacabeicaindoemumatravessamaisestreita.Naparede,identi queientrediversaspichaçõesemárabeorostodeGemayelBashir.Aunstrêsmetros,repareiquedoisrapazesmeolhavam.Fiqueicomvontadededizerquesoubrasileiro,maselesresponderamdeumjeitoestranhoaomeuacenoeresolvientãovoltaràsavenidasmaiores.Caminheimaisumahoraecomeceiasentirmuitosono.

Eupassaraapenastrêshorasacordado.Noquartodohotel,tenteicontinuarlendoolivroquecompraranaAlemanha,masdezminutosdepois já tinhaadormecido.

Não sei quanto tempo demorei para acordar. Ao despertar, senti o corpo muitopesadoefiqueiimóvel.Algumacoisameprendiaàcama.

Percebiqueestavamuitocobertoequeosuortinhaempapadoopijama.Tireitoda a roupa e deitei de novo. De olhos fechados, outra vez senti meu coraçãodisparar. Quando os batimentos se acalmaram, dormi. Acordei com o mesmobarulhodeantes:alguémgritavanaruaouhaviaumaconfusãonocorredordohotel.Forcei os olhos e enxerguei quatrohoras e trinta damanhãno relógiodoquarto.Tomeiumbanhoeligueiocomputador.

Minha mãe se dizia preocupada, mas contente com a minha iniciativa deprocurar nossos parentes. Recomendando que não os importunasse com besteiras,passou-meume-maileumnúmerodetelefone.

Otelefoneseriadafamíliadeumdosirmãosdomeubisavô.Oe-maileradeumarquitetocomonossosobrenomeequejátinhafeitocontatoconosconoBrasilalguns anos antes. Ninguém conseguiu precisar, muito menos ele, nosso grau deparentesco.Segundominhamãe, ele entendiabem inglês.Quantoaosparentesdoirmãodomeubisavô,nãosabiademaisnada.

EscreviparaoarquitetoeprocureialgumasinformaçõessobreocolecionismonoLíbano.Não encontrei nada demais, apenas notícias vagas sobre uma feirinhaocasional.Quandoorelógiomostrou nalmenteohoráriodocafédamanhã,estavadenovocommuitosono.

Acordei com fome nomeio da tarde. Antes de pedir um lanche, fui olhar os e-mails. Minha irmã queria saber como eu estava, minha mãe mandava outro

número de telefone e o arquiteto me pedia para procurá-lo no celular. Ligueiimediatamenteeele,muitosimpático,marcouumcaféparao naldodia“naregiãomaisanimadadacidade”.

Eunão via climaparabadalação,mas aceitei.Logo avisteimeuparente.Portrásdeumamesa,eleacenouedepoismechamoupelonome:—RicardoLísias.

Levantou-se e veio me abraçar. Tentei parecer feliz, mas continuava commuito sono. O jeito foi dizer a verdade: não estou conseguindo car acordadodireito.Quandomerespondeuquesuperarofusoémesmodifícil,sentiquetalveztivessenaminhafrenteumamigo.ConteitodaahistóriadoAndré,inclusivequeeletinhapedidoajudaeeu,assustado,batidootelefone.Sentivontadedechoraremeuparentepercebeu.Porisso,pediuáguacomaçúcar.

— Mas não estou nervoso — expliquei. Desde que cheguei a Beirute, nãoconsigo me livrar do sono. Para me distrair, amigável e compreensivo, resolveumudardeassuntoeconversarsobreafamília.Decidiserdiretoefaleiquedescobrirafortesindíciosdequeumtio-avôtinhaligações,apartirdoBrasil,comoterrorismonoOrienteMédio.Meuparenteficoubranco.

—Vimparacáesclarecerisso.Vocêconhecealguémquepossameajudarnessaquestãodoterrorismo?—Comobraçotremendo,pediu-meonúmerodetelefonedohoteledissequeprecisavair.—Voltoafazercontato—garantiu.

Volteiparaohoteldetáxieacabeidormindoderoupamesmo.Umdosproblemasdesse estado intenso de sonolência é a bagunça nos horários. No dia seguinte,

acordeisódepoisdomeio-dia.Senãofosseafome,talvezcontinuassedormindo.Umcolecionadorargentino,comquemdevezemquandoconverso,enviou-

meonomedeumgrandecolecionadordeobjetosepapéisligadosaoscon itosqueo Líbano viveu na década de 1980. Professor de história, eu o encontraria naUniversidadeAmericanadeBeirute.

Procureioendereçonainternete,devoltaàrua,comtrêsouquatroperguntas,chegueiàfrentedasaladoprofessorSaidNahid.Eleterminoudeatenderumaalunae, curioso,pediu-mepara sentar enquanto tentava tirarumaxícarade cafédeumamáquinavelha.

Antesdecomeçaramefalardacoleção,revelou-mequetemmuitavontadedeconhecer o Brasil. Depois, contou que coleciona de tudo sobre aquele períodotrágico. Talvez os objetos mais valiosos sejam as insígnias dos tantos exércitos,particularesounão,quetinhamlutadonahistóriarecentedoLíbano.

Gentil, mostrou-me fotos e descreveu outros objetos.Também se ofereceuparameapresentaraumgrupode latelistasquesereúnenauniversidadeumavezpormês.Quando já tínhamosconversadopormaisdeumahorae elemanifestoupreocupaçãoquantoàvermelhidãodomeurosto,acheiqueeraomomentodeabrirojogo:—Tenhoquasecertezadequeumtio-avômeutevealgumtipodecontatocomgruposterroristasnosanos1970.Estouaquiparaesclarecer issoeprecisoquealguém me ajude. — Nahid desistiu da segunda xícara de café, trancou a sala eprometeuvoltarafazercontatocomigo.Eunãodeviamaisretornaràuniversidade,porém,poisalielesóatendiaalunos.

Meu rosto continuava vermelho, embora a sensação de queimadura tivesse sealiviadodesdequeeudesembarcaranoLíbano.Nobanho,coloquei-oembaixo

do jatode água epercebi que a faltadedor se devia ao sono.Apele ainda estavasensível.

Apesar de fazer muita força, não aguentei e dormi. Quando acordei, tive aimpressãodequeashoraspassavamemcâmeralenta:aindanãoeramnemseis.Desciatéaportariadohotelepediajudacomostelefonesqueminhamãetinhamandado.Ele discou eme passou o aparelho.Ouvi uns dez toques de chamada e ninguématendeu.

O segundo número, porém, não tocou nem três vezes e uma voz femininadissealgo.Identi quei-meeminglêseavozcontinuoufalandoemárabe.Pediajudaparaorapaz,maseletambémnãomecompreendiadireito.—Entãovaitomarnocu—faleiaotelefone,despedindo-medaminhaparente.

Paranãoperderaviagem,esabendoquesevoltasseaoquartoinevitavelmentedormiria, resolvi explicar para o garoto que eu tinha vindo aoLíbano investigar aprovável participação de um tio-avô em grupos terroristas na década de 1970.—Seráquevocênãoconhecealguémquepossameajudar?

Alguma coisa ele entendeu, pois com o lábio inferior levemente trêmulo,balbuciou três palavras e entrou numa sala. Esperei meia hora e, como ele nãovoltou,percebiqueteriaqueresolversozinhooproblemadoterrorismo.

Desistidocafédamanhãe caminheiumas trêshoras.Nãome lembrodemuitacoisa. Eu estava com muito sono. Passei perto de dois ou três campos de

refugiadosecomcertezacontorneiaTentcity.Minhamemória começou a clarear quando dei de cara com os gra tes e o

desenho do rosto deGemayel Bashir que tinha visto no primeiro dia.Não havianinguémeentãocruzeiatravessaatéchegaraalgumasruazinhasestreitas.Nãotivecoragemdebateremnenhumaportaecontinueimeembrenhando.Derepente,doisrapazesmepararame,comraiva,perguntaram-meoqueeuqueria.

Eraumachancee,comoelespareciamcompreenderbemomeuinglês,conteitoda a história domeu tio-avô.—Preciso conversar com alguém que conheça oterrorismonaregião.

Semmudar a expressão do rosto, os doisme pediram para acompanhá-los.Depoisdeváriaspequenastravessas,cruzamosumportãoecaímosemumpátiodeareia.Entreiemumasala,depoisemoutraepor mmecolocaramsentadoemumaterceira.Trouxeramáguaeacheiquetivessedadosorte.

Logo voltaram e com alguma violência colocaram uma algema nos meusbraços. Depois, vendaram-me e começaram a gritar algo que o medo já não medeixavaentender.Sentiocanodeumrevólvernoladodireitodaminhacabeça,bemacimadaorelha.Contaramatétrêsenessemomentomeusintestinossesoltaram.

Ficaram furiosos eme empurraram sem tirar a venda por uns dezminutos.Quandomesoltaram,euestavanatravessadeumagrandeavenida.Amerdatinhacadopelocaminho,masminhacalçaestava sujaeminhaspernas,pegajosas.Não

tinhammeroubado.Entreiemumtáxiedeioendereçodohotel.Quandootaxistanotouomeuestado,jánãotinhamaiscomomecolocarparaforadocarro,masfezacorridainteirameagredindo.

Subiatéoquartodohotelcomavistaescurecida.Tenhoasensaçãodequeosaguãoestavacheio.Aviagemdeelevadoréumpesadeloparamimatéhoje.

Deixei as roupas sujas na porta do banheiro e abri o chuveiro.Não senti asqueimaduras no meu rosto. O medo tinha deixado minhas pernas fracas e nãoconseguificarempé.Quandomedeiteinabanheira,noteiqueestavagritando.

Com receio de chamar atenção e de, talvez, ser localizado pelos rapazes dorevólver, zumenormeesforçopara caremsilêncio,masconseguiapenaschorarumpoucomais baixo.Amerdanasminhas pernas estava escorrendo,mas eunãosentianenhumalívio.

Aindachorando,veio-meàcabeçamuitodoqueeutinhafeito juntocomomeuamigo.Asduasvezesemqueelecheiroucocaínacomigoporcausadeumamorbobo,acasademassagemondeagenteia,euatrásdeninguémeeledaAline,ojeitoqueelemeabraçoudepoisdadefesadedoutorado.Tudooquenósdois,osgrandesamigos, zemosdebomederuim.Euchoravaporquenãoesqueciaavozdomeuamigopedindoparapassaro mdesemanaemcasa,depoisorostodeledeformadopelos remédios, me ajuda, Ricardo, mas eu estava esgotado, amigão. Eu choravalembrandoasideiasdelesobreostemplários,comoelesediziaumgrandeprofessor,ele era muito novo e foi para o hospício, meu grande amigo, mas eu choravasobretudo porque sozinho, muito sozinho com a sujeira escorrendo pelo ralo dobanheiro de um hotel do Líbano, tinha acabado de descobrir quem eu sou deverdade:umbosta,deixeimeugrandeamigoAndréseenforcar.

Quando o dia clareou, fui com as malas feitas ao aeroporto. Encontrei umapassagem para Amsterdã, de embarque quase imediato, mas, quando passei o

cartãodecrédito,ovendedormeinformouqueeleestavabloqueado,provavelmenteporcausadolimiteestourado.Telefoneiparaminhamãe,expliqueiquequeriavoltarantesdoprevistoparaoBrasilepediajuda.

—Claro, lho,mas antes quero te dizer algumas coisas: você é um ótimolho, só que se tornou mimado e arrogante. Você não ouve ninguém, Ricardo,

atropela todomundoe se senteodonodaverdade.Vocênãovêo tantoque seusirmãosgostamdevocêenãoouvenadadoqueaspessoasdizem.Você sempre seachou melhor que os outros, nunca aceitou os próprios limites e quando écontrariadoagecomoummoleque.Ninguémpodiaevitaroqueaconteceucomseuamigo,Ricardo.Voudarodinheiro,mas,quandovocêchegaraoBrasil,vaiaumpsiquiatra e vai respeitar a sua família. Agora você vai virar um adulto e não essemoleque arrogante. E outra coisa: o seu tio-avô nunca foi terrorista, Ricardo: eledeixou um lho perdido no Líbano, seu tonto, ele estava tentando procurá-lo esofria muito por causa disso. Se você respeitasse um pouco mais as pessoas eesquecesseumminutoopróprioumbigo,compreenderiaossentimentosdosoutros.Agoravolteparaohotelemeesperedepositarodinheirodapassagem.Amanhãvocêcompra,masquandochegarvaidiretoaomédico.

Registrei-me emumhotel diferente.Naminha fantasia, dessa forma os caras dorevólver nãome encontrariam.Continuava com sono,mas não dormi.Resolvi

andar. Depois de três avenidas, percebi que não conseguia passar mais de doisminutos sem olhar desesperado para os lados e para trás. E se eles estivessemmeperseguindo?

Repareiqueestavaemfrenteauma igrejae, talvezparamesentirprotegido,entrei.O interior era lindo.Quando ainda prestava serviço para colecionadores dearte,estudeialgunsobjetossacros.Haviacoisasdevalorali.

Sentei-meemumdosbancosmaisafastadosdopúlpitoeemdoisminutoscaíno sono.Aos poucos,meu corpo foi se curvando até que acabei deitado.Não seiquantotempofiqueidormindo.

Derepente,sentique,bemdeleve,amãodealguémtentavameerguer.Comopoucodosolhosqueconseguiabrir,repareiqueumsenhormuitoidosoestavamecolocandoajoelhado.

—Édessejeito,meufilho.OVelhodeixou-mealie,muitocurvado,saiucaminhandopelocorredorda

igreja até desaparecer por uma entrada lateral. Não tive forças para me levantar edeitardenovo.Prefericontinuarajoelhado.

Passaram-se alguns minutos e então senti necessidade de respirar fundo.Quandoenchiospulmõesaigrejaseencolheu.Talvezeuéquetenhameexpandidoaté que meus braços assumissem a extensão das paredes. Estava muito forte, masmesmo assim não consegui me levantar. Minha vista enxergou um clarão que seempalideceumuitorapidamente,eoVelhopassouduasoutrêsvezespertodeondeeu estava.Naminha frente, umpouco atrásdoVelho,naúltima vez emqueEleapareceu,oAndréacenouparamimdeumjeitoquaseimperceptível.

Comapromessade nalmentemetratar,minhamãememandouodinheirodapassagem.Conseguiumvoo,naquelanoitemesmo,atéParis.Delá,outropara

SãoPauloseriafácil.No pouco tempo em que quei acordado voltando aoBrasil, a saudade de

tudo transformou-se em uma espécie de sentimento de vitalidade. Eu queria falarcomaspessoas,retomarprojetosantigos,refazeramizadesequemsabearrumarumanamorada nova. Eu e o André sempre falávamos sobre as mulheres que a gentenamorava.Às vezes éramosumpoucomaldosos,mas logo assumíamosde volta aposiçãodecavaleirotemplárioe,eu,oescudeiroirônico.

O sono também foi diferente dos outros que me derrubaram no Líbano.Enquanto dormia, senti meu corpo pregado à poltrona, ouvi movimento doscomissáriosdebordoe,inclusive,osomabafadoeconstantedoavião.Tudoissomeprotegia.

Noaeroporto,minhamãetinhatrazidominhairmãparameesperar.Atéhoje,nãoconseguidesvendaroquesigni cavaaexpressãonorostodaminhamãe.Minhairmãolhava-mecomdó.Essetipodesentimentocostumairritar,masnãofoioqueaconteceucomigo:senti-meacolhido.

Minhamãeperguntouseeuestavabeme,depoisdaminharesposta, repetiuqueeutinhaqueiraomédico.

—Vou,masantesquerovisitarumaigreja.As duasmeolharam espantadas.Minha família sempre foi religiosa,mas eu

tinhadeixadoqualquercrençaparatrásaosdezesseisanos.

Onamoradoconcorda:aavópareciamesmopior.Quandoosdoischegaram,elanãoestavanobancodesempre,embaixodamaiorárvoredopátio,massimem

uma cadeira de rodas na porta do corredor onde cava o quarto em que asenfermeiras a colocavam para dormir todo dia. A garota deu o mesmo beijo desemprenorostodaavó,passoucomcalmaasmãosnoscabeloslisinhosdelaenotoualgoestranhonosolhos.Estavammaisdistantes.

— Vamos car noivos, vovó. Ele até arrumou um emprego. — Nessemomento,o rapaz seafastou,pois sentiuoutravezaquelavontadedesagradáveldechorar. A neta achou bom, assim poderia contar algumas coisas para a vovó. Elanuncarespondia,nemfaziagestoalgum,masagarotasempresaíacomasensaçãodeque a avó tinha entendido tudo e, mais ainda, estava muito feliz. Dessa vez, asensaçãofoioutra.Mesmoassimelaeonoivoficaramatardeinteira.

—Elevaitrabalharemumcartórioatéseformar,vó.Quandovoltouparacasa,amenina nalmentetevecoragemdedizerparaos

paistudooqueseguravadesdeosquinzeanos:aavópoderiasimmorarcomeles,seprecisasseelatomariacontatodososdias,elesatinhamabandonadoeiamumavezpormêsfazerumavisitaporcausadaculpa.Equandoouviuqueospaispagavamumacasaderepousocara,casaderepousomerdanenhuma,esevocêsqueremsabermais,voudizer:vocêeamamãe,nodiaquevocêsdoisprecisaremdemim,eueomeunoivo jácombinamosquevamoscuidardevocêsatéoúltimodia,vocêsnãovãoparaohospíciochiquenão,nãotenhammedo,desgraçados.

Procurei a igreja protestante queminha família tinha frequentado quando eu eramenino. Achei no site o horário em que o pastor “dava atendimento” e, sem

marcarantes,resolviprocurá-lo.FaziadoisdiasqueestavanoBrasil,oproblemadosonoaindanão tinha se resolvido,maseu jáestavaconseguindoorganizarmaisoumenosodia.Minhamãepassouotelefonedeumpsiquiatraque,segundoela,eramoderno,jovem,entendiadepsicanáliseetinhareservaaremédioscontrolados.

Passeipelalateraldaigrejaenãoacheiopastornosalãoprincipal.Viduassalas,entreiemumaenamesmahoraeleatendeuotelefonenaoutra.Aguardeio mdaligaçãoebatinaporta.Elemeolhoucuriosoemeapresentei:—Soudeumafamíliaquefrequentouessaigrejaháalgunsanosegostariadeconversarcomosenhor.

Prestativo,ofereceu-mecafé,águaechá.Minhasmãostremiamesuavamumpouco.Sentei-meecomeceiaexplicarquetinhadescoberto,nãoporacaso,quenaverdadeossuicidasnãosãotãopecadoresassimequemuitosvãodiretamenteparaocéu.

Sem me perguntar como eu sabia disso, ele me olhou com um rosto depiedadeecomeçouadizerqueosuicídio,pormaisdoloridoquefosseosofrimentodopecador,éumadasfaltasmaisgraveseexigirá,nãolembroostermosexatos,umesforçomuitograndedaalmadesgarradaeinfielparaseexpiar.

—Olhaaqui,seu lhodaputa,nãoseicomovocêsdessasreligiõessaemporaífazendopropagandadeDeus,vocêjáviuDeus?,meresponde,seu lhodaputa:vocêjáviuDeus?Entãovaitomarnocu.Vaitodomundotomarnocu.

Saí furioso da igreja enquanto o pastor, de longe, pedia perdão pelos meuspalavrões.Paramim,jáestavasetornandoumhábito:griteinarua,senteiemuma

praça e comecei a chorar. — Esses lhos da puta não conhecem Deus. — Eualternava um soluço muito forte com os berros: — Esses lhos da puta nãoconhecemDeus.

Duassenhorassesentaramaomeulado,repetindooquefoimeu lhováriasvezes,atéumadelastocardeleveasminhascostascomumadasmãos.Meucorposeacalmou.

Ficamosostrêsemsilêncioesentiumenormeconfortonacompanhiadelas.Pessoasidosasquesesentamaoladodeumhomemdetrintaequatroanosquenãoconsegueparardechorarirão,independentementedequalquercoisa,paraocéu.Nãoimporta o jeito como morram. Agradeci e esperei que uma delas me colocasseajoelhado. Como nenhuma das duas ensaiou fazer isso, levantei-me e, dizendoobrigadodenovo,ameaceiirembora.

Respira fundo, amais baixinha falou. E descansa umpouco, ouvi da outra.Perguntei se elas acreditavam emDeus. As duas se ofereceram para ir comigo atéminhacasa,maseuestavamaiscalmoe faleiobrigadopela terceiravez.Obrigado,obrigado,obrigado.

Emcasa,deitei-meetentei,atodocusto,lembrarorostodoVelhonaigrejadeBeirute.Nãoconsegui.Procureireduzirtodaaminhasensaçãofísicaaopontodascostas onde Ele tinha tocado,mas também não senti nada. Por m, ajoelhei-me.OutravezorostoDelenãovoltou.Penseiemrezar,masdesistilogo:nãoconseguidescobrircomocomeçar.

Então,ligueiparaopsiquiatraemarqueiumaconsulta.

Tenteitrabalharemumrelatórioparaumaprefeituraqueestáquerendoorganizarummuseucomalgunscolecionadoresdacidade,masnãoconsegui.Emintervalos

mais ou menos regulares meu coração disparava. Se me concentrava em umparágrafo,oseguintenãofluíadejeitonenhum.

A consulta cou marcada para a manhã do dia seguinte. Liguei de novoexplicando que se tratava de uma emergência, mas a secretária respondeu que omédicojátinhaidoembora.Sóamanhãmesmo,concluiucomavozesterilizada.

Muitotenso,resolvisairparaandar,masnaesquinarepareique,secontinuassena rua, logo começaria a gritar e a chorar de novo. Nessas ocasiões, a dor seintensi caquandoagentedescobreque,porpiorqueonossorostoesteja,édifícilalguémolhar.Setivermossorte,duasvelhinhas.

Como começo a rezar?, perguntei-me em casa.Ajoelhado, forcei amemóriaatéolimite,masorostodovelhoPadredaigrejadeBeirutenãovoltou.—Deus,meajude.—SentialgomuitoforteenquantotentavarecuperaraimagemdoAndréacenando,mas tambémnãoconsegui.Outravez, ashesde trechosdaminhavidacomeçaramavoltare,semnenhumaordem,encheram-medesaudades.

SentiumavontadeimensadequeumapessoamuitoidosatocasseasminhascostasnomesmopontoemqueoVelhotinhamecolocadodejoelhos.Comofaçopararezar?,repetiquandomedeiteiparadormir.Nãopregueiosolhosanoiteinteiraechegueiaoconsultórioumahoraantesdoprevisto.Deicomacaranaporta.

Pontual,opsiquiatraveioatéasaladeesperamereceber.Eleéalto,maisoumenosdaminha idade, e temo rosto amigávelmas ensaboadodemais.Abarbaparece

bem-feita, sintoo cheirodeumperfumediscreto e reparono sapato, comcertezamuitocaro.Ele,porfim,fechaaportadasala.

Aconsultacomeçacomopsiquiatracontandoqueconheceaminha família,massemdizerdeonde.Eleabreumnotebookemeolha.

Sinto que talvez possa con ar nele: — Há algum tempo, não sei direitoquanto,algunsmeses,talvezumano,umdosmeusmelhoresamigossematou.Eleseenforcou.Seeuchorarosenhormedesculpe.Eraumamigodafaculdade.Estudeino interior, então os amigos acabam sendo a nossa família. Ele sempre teveproblemas,masialevando.Então,entrouemumturbilhão.Internou-seporquenãodormia, epormuitosoutrosmotivos.Achoque esteve emduas instituições.Massempre ia embora. A gente tentava ajudá-lo, mas ele estava incontrolável. A vidatinhaquecontinuar.Eledepoispediuparaviràminhacasa.Ficouunspoucosdiasetranstornou tudo, quebrou tudo. Eu o agrei cortando a pele das mãos com ocanivete.Fiqueimuitonervosoegritei.Eleselevantoucomocanivete.Pegueiumacadeira. — Se você vier, te acerto, você não pode comigo, André. — Lembrodireitinho:—Nunca vou te fazermal, Ricardo. Ele foi embora nessemomento.Achoquenodiaseguinte,ouunsdoisdiasdepois,elemeligou:—Ricardo,voumeinternardenovo, cadeolhoemtudoemeajuda.—André,eunãoaguentomais,foi isso que respondi. Então acho que se passaram mais uns dois dias e metelefonaramdizendoqueeletinhaseenforcado.

Saígritandonarua.Desdeentãogritomuito.Comeceia carnervoso.Sentiódiodele.Quandomeacalmei,comeceiatersaudadesdetudo.Lembrodascoisaseme

arrependo. Também comecei a ter problemas para dormir. Resolvi viajar, mascontinuei nervoso. Não consigo trabalhar direito até agora e me sinto agressivo.Então,fuiparaoLíbanoatrásdeumahistóriafamiliarquedescobriserumatolice.EmBeirute,ainsôniapassouevirouumavontadeloucadedormir.Fizumabesteiraequasememataram.Depoisdissoaconteceuumacoisaimpressionanteeestoucommuitomedodequeninguémacrediteemmim.Achoqueporcausadessemedonãoestou conseguindo dormir de novo. Fui a uma igreja enorme e linda. Como euestavamortodesono,dormiemumbanco.MasumSenhormuitoidoso,achoqueum Padre, veio e, com uma delicadeza que eu nunca tinha visto, colocou-meajoelhado.Derepenteaconteceualgocomomeucorpo, queimuitoforte,evioAndréacenandodelonge.Comcertezaeleestánocéu,percebinessediaemBeirute.Um dos nossos amigos, um cara muito espiritual, acho que a palavra é essa,espiritual, disse que em todas as religiões, ou praticamente em todas, os suicidassofremmuito enamaiorpartedas vezesnãovãoparao céu.Ouprecisamprovarmuitacoisa,eledissequeémuitodifícil.Nuncaacrediteiemparaíso,nessascoisas,masagoradescobrique,mesmotendosematado, seenforcado,oAndréparoudesofrer e foidiretoparao céu.Oproblema équeme sintomuito sozinho e estoucommedodequeaspessoasnãoacreditememmim.

—Compreendoperfeitamenteoseuproblemaepossoajudar—elemeolhoucom a vozmansa—,mas vou entrar logo commedicação junto com a

terapia.Queroquevocêvolteaindaessasemana.—Masqualéomeuproblema?—Vamosporpartes.Primeiroquerotrataroseueunarcísico,queestámuito

ferido.—Omeueuoquê?—Oseusuperegoestámuitoexposto.Tudoissodeixousuasbasespsíquicas

muitofragilizadas—continuouelecomtodaasegurança.—Depois,voutrataressaquestãoreligiosa.

—Quequestãoreligiosa?Nãotenhoreligião.—Émuitocomumque,depoisdeumgolpecomooquevocêviveu,hajaum

acessoespiritual.Antes,precisoacalmá-loecuidardoseusuperego.—Acessoespiritual?!Omeusuperegoéaputaqueopariu,seualmofadinha

demerda.Aminhadorchamasuperegoexposto,seu lhodaputa?Omeugrandeamigonocéuéumacessoespiritual?

— Sinto muito pela situação, mas, para o tratamento dar certo, médico epacienteprecisamseentender.Vocêtemqueconfiaremmim.

—Desculpe.Masnãoestoutendonenhumacessoespiritual.—Comoeudisse—continuou—,vamosprimeiroreorganizarassuasbases

psíquicas. Você precisa se acalmar agora. Vou passar uma receita e peço que vocêretornenasexta-feira.Mascompreoremédioagoramesmo.Jápodetomar.

Nafarmácia,pegueioremédioeumaloçãoparaorosto.Tivequepreencherumformulário edeixarumacópiadodocumentode identidadeparapoder levar a

caixinhaparacasa.Avermelhidãodomeurostoestavadiminuindo.Comecei a ler a bula, mas depois da segunda linha não tive coragem de

continuar.Lembrei-medeumdosalunosmaisengraçadosquetive,umcolecionadorde embalagens de remédio que apareceu em um dos meus cursos. Ele se divertiamostrandoacoleçãoeperguntandooqueaconteceriasetomassecadaumdaquelescomprimidos.

Apesar da esquisitice, foi um dos alunos que mais aprenderam. No últimoencontro,játinhaparadocomessabesteiraeconseguiaestabeleceraimportânciadecadaumdos itensde sua coleção.Omais valioso eraumaembalagem, emestadobastante razoável para a idade, deum remédiopara dornas costas do séculoXIX.Achoqueeraumaespéciedexaropefrancês.

Coloqueiocomprimidonaboca,comsaudadesdessealuno,mas,nahoraemquefuiengoli-lo,desisti.Oqueaconteceriacomigoseeutomasseaqueleremédio?Talvez a sensação de que o mundo não para de gritar passasse. Ou meu sono seregularizaria.

Cuspiocomprimidonapiaepegueiumlivroparaverseconseguiadormir.Ataquicardiavoltou, queivirandonacamaatédemadrugadaepor mconseguiumamínimaconsolação:oestadodesonolênciaaqueosinsonesmaissortudoschegam.

Acordeiumpoucoantesdeamanhecer.DenovoestavasentindoanecessidadedequealguémtocasseminhascostasnomesmopontoemqueoPadreidosotinha

mecolocadodejoelhos.Latejava.Nainternet,procureiummassagista.Acheivárioseescolhiumjaponêscoma

caraesquisita,masquemepareceuomaisvelhodetodos.Quando nalmentedeunovehoras,telefoneieporsorteconseguiumhorárioaindapelamanhã.

Foi um erro. O velho tinha uma força incrível e não entendia portuguêsdireito. Quando pedi para ele tocar a região inferior do meu ombro esquerdoenquantoeutentavamecurvarparaajoelharetalvezrezar,elemoeuminhascostas.

Volteimancandoparacasaemedeiteidenovo.Aospoucos,comeceiasentiras costelas.O silêncio era enorme, eunão estava chorando (nemgritando) emeusossospareciamtodosdoer.Outravez,percebiexatamentearegiãodasminhascostasondeoPadrehavia tocado.Fiqueicheiodeexpectativa,quasecertodequeele iriavoltar.Ninguémapareceunaminhafrente,porém.

Porfavor,Senhor,oqueestáacontecendo?

Nomeiodanoite,acordeicomumacerteza:seaquelasenhoraqueeutinhavistonaclínica do André tocasse minhas costas, alguma coisa mudaria. Viajei ansioso.

Quandoentrei,semprecomumafacilidadeincrívelparaatravessaroportão,tiveumpressentimentoruimaoverobancovazioembaixodaárvore.

Duasenfermeiraspassaramemsilênciopormimepercebiatristezacomqueandavam.Essasmoçasamamprofundamenteosinternos.Fuiatrásdelas.Cruzamosdoiscorredores,saímosemumpátiomenore,comoeuprevia,demosnafrentedeumacapela.

O corpo da avó, vestida de branco e comuma expressãomuito pací ca norosto,estavanafrentedopúlpito.Umpadre,aindajovem,falavaalgo.Pareiemumcantoepercorricomosolhososbancos.Noprimeiro,bematrásdocorpo,anetachoravaapoiadanoombrodonoivo.Elesestavamcomasmãosmuitopresas,comaforçadaquelacertezadequeagoraosdoisnãovão se separarmais.Opai tambémchorava,umpoucomaisdiscreto,eaesposapareciadesolada.

Nobancodetrás,asduasenfermeirassesentaramaoladodeummédico.Viosenhor que cuidava do portão e, como se quisessem se esconder no banco maisafastadodopúlpito,identi queialgunsinternos.Osmalucosestavamconsternadoscomtodaaquelador.

Não sei se entendiam. As pessoas que não conseguem parar de puxar oscabelos,aquelesqueferemosprópriosbraçoscomumcanivete,essagentequeumdia ninguém suportamais, os que se isolaram, os doidos que não param de falarsozinhos,quedeixaramdecompreender,aquelesquenãosabemmaisnadaestavamcomoeu:alinaquelacapelafeiaolhandoagarotaquetinhaacabadodeperderaavóeachaqueessador tãoprofundanuncavaipassar.Comotodosnósumdiaeelesavidainteira.

Opadre,antesdeencerrar,perguntousealguémgostariadefalaralgumacoisa.Deinício,acheiquenãofosseocaso,masumrapazlevantouamãoequislembraro

quantooAndréeraengraçado.—OAndréeramuitodivertido.Depois todomundopercebeuque aquilo, alémde fazer bempara oAndré,

trariaalgumconfortoparanós.Amissadecorpopresentedeumrapaztãojovemétristedemais.

—OAndréeramuitobonito.—OAndréeraumótimoamigo.—OAndréeramuitoeducado.—OAndrénãotinhainvejadeninguém.—OAndréerapuro.—OAndréeraumcavaleirotemplário.Quasetodoschorávamos.Algunsseabraçavam.SeDeusnãoestivernamissa

decorpopresentedeumapessoatãonova,comosamigostodosaindaimaturos,Elenãoexiste.

—OAndrénuncafalavanão.—OAndrégostavademeverrindo.—OAndréeramuitogeneroso.O padre falou mais alguma coisa, anunciou a alma do André entrando no

Paraíso e alguns de nós fomos levar o caixão até o carro. Sinto o peso até hoje.Minhaspernasestavammoles,masforceicomonuncaosmúsculosdobraço.Íamostodos, inclusive o padre, para o cemitério enterrar nosso grande, engraçado, lindo,gentil, generoso e educado amigo. Com certeza era o desejo dele: um enterrosegundoaprópriareligião.Nocemitério,opadrerezoudenovo.

Obrigado,Senhor.

Pedidesculpasaopsiquiatraporterfaltadoaoretorno.—Équeeuprecisavaverumapessoaemoutracidade.

—Paradarcerto,vocêprecisacolaborarcomotratamento.— Estou tentando. Tomei os remédios. Mas quero dizer que na outra

consultanãofalamosdosmeusproblemasdeverdade.Nãotemnadadesuperego.—Quaissãoosseusproblemasdeverdade?— Já faz algum tempo, tenho a impressão de que o mundo inteiro está

gritando.Alémdisso,sintosaudadesdetudo.—Então,Ricardo,éamesmacoisa.—Nãoéamesmacoisa:nãotenhoproblemasreligiosos.—Eunãodisseisso.— A sua frieza me incomoda. Estou sentindo uma dor muito grande, o

mundoestágritando,sintosaudadesdetudoevocêmedizqueéamesmacoisa.—Aospoucos,vamosdiminuirasuador.Elavaipassar.Vocêvaicomeçara

pensarquefoicomoutrapessoa.Evaiverqueelanãofoitãograndeassim.—Vocênãotemodireitodemediraminhador!Vaitomarnocu,seu lho

daputa,psiquiatrademerda.—Nãoéomundoquegrita,Ricardo,évocê.

De novo, não consegui tomar o remédio. Fiquei contemplando o comprimido.Enchiocopodeáguaduasvezes,masnãoengoli.Cuspinapia.

Resolvi andar umpouco.Antes de sair, prometi paramimmesmoque nãogritarianarua.Afrasedopsiquiatrapaspalhonãomesaíadacabeça:nãoéomundoquegrita,soueu.

Narua,lembrei-medeBeiruteeofrionabarrigamefezolharparaoslados.EstouemSãoPaulo,estouemSãoPaulo,repetibaixinhoduasvezes.

Sentiumaenormevontadede caremsilêncio.Encosteiemumpostedeluz,concentrei-me para controlar a taquicardia e deixar a respiração lenta, puxei bemfundooarduasoutrêsvezesenoteiquemeucorpoestavamuitocalmo.

Derepente,comotinhaacontecidonaigrejadoLíbano,denovo queimuitoforte.Assumiotamanhodoposte,outalvezatémesmodametadedarua.TiveasensaçãodequeoPadreidosovoltaria.DepoisDele,euiriareveroAndré.

Masmeucoraçãodisparoucomaansiedade,eosilênciodesapareceu.Sentidenovo o imenso barulho da cidade grande, aquele monte de carros, as buzinas, aspessoas na rua, todo mundo falando tão alto, o mundo inteiro gritando e aimpressãodequeonervosismonuncamaisvaideixaromeucorpo.AqueleSenhornãovaitocarasminhascostasoutravez.

Diminuínamesmahora.

Volteiparacasachorando.Setivesseparadonobancodealgumapraçatalvezduassenhorasmeacolhessem.Quandoumadelastocasseminhascostas,algumacoisa

iriamudar.Masnãopenseinissoeresolvimeconcentrarnotrabalho.Eu tinha acabado de ser convidado para organizar um curso para

colecionadoresiniciantes.Tambémporissoprecisavameacalmar.“Primeirospassosdeumcolecionador”começariaemvintediase,segundoo

clubequeestavapromovendoocurso,játínhamosdezinscritos.Depoisdepensareapanharmuitoparaorganizaraprimeiraaula,resolvitomarumadecisãoquejávinhaacalentando:voufalardosprimeirospassosdaminhaprópriacoleção.

Peguei alguns apontamentos antigos e retomei a ideia do caos nanceiro noBrasil entreosanosde1980eametadedadécada seguinte.Achoque tivemosnomínimocincomoedasdiferentes.

Estádefinidoomeuobjeto:voucolecionarseloslançadosnoBrasilnoperíodocompreendido entre esses quinze anos. Com eles, a bagunça que foi a economianaqueleperíodo cariabem-representada.Comosãomuitos,agoranoinícioprecisodiminuirumpoucooalcance.Vouatrásprimeirodaquelesquerepresentemalgumaspecto da cultura popular. Assim posso pensar em como a população vivia comtanta insegurançamonetária.A longoprazo, quem sabe eu formeuma coleção denotas.Mas apenas quando a de selos estiver completa: não se deve começar umacoleçãosemantescompletaroutra.

Telefoneiparaduaslojasespecializadasem lateliaemarqueiumavisitaparaodia seguinte.Eu tinha estruturadouma coleção e, aomesmo tempo,organizado aprimeiraaula.Termineia tardeumpoucomais realizado,emboraodesejodequeumidosotocasseminhascostasnãotivessepassado.

Fuiaumalojaespecializadaemselosparacolecionadoresecompreialgumassériesdo ano de 1986, quando o Brasil trocou de moeda e viveu uma de suas mais

patéticastentativasdeajuste nanceiro:oPlanoCruzado.Escolhitambémumbeloálbum,duaspinçasealgumoutromaterial.Obomcolecionadordevesecercardetodotipodeapoioparaasuacoleção.

Narua,lembreiqueestavaaduasquadrasdeumadasmaioresigrejascatólicasdeSãoPaulo,achoqueatémesmodoBrasil.Anecessidadedequeumapessoaidosatocasseminhascostasnãotinhapassadoe,comalgumaesperança,resolvicaminharatélá.

O ambiente era escuro e não parecia tão acolhedor como a igreja libanesa.Ainda assim algumas pessoas rezavam.Tenho certeza de que havia um desesperodiscretoemumrapazsentandonomesmobancoqueeu,naoutraponta.Pelocantodosolhos,viqueelelacrimejava.

Ouvi um ruído de conversa e, em uma lateral, enxerguei dois padres. Nãoeramexatamenteidosos,maspediparaconversarcomumdeles.

—Vocêquerseconfessar?Expliqueiquenão.Eugostariadediscutiralgumasquestõesreligiosasqueestão

me incomodando. Sentamos emumamesa, eleme ofereceu água e, como rostoenrugado demais para a tranquilidade que um padre deve ter, ouviu-me falar doAndré, da igreja no Líbano, do Padre idoso, das minhas costas e da forçaimpressionantequetomoucontademimporduasvezes,umadelasontemmesmo.

—Oqueeuquerodizer—concluí—équeasreligiõesestãoerradasquantoaodestinodossuicidas.

—Rapaz,talvezvocêestejadominadopelomal.

Certo,agoraalémdetudoodemôniotomoucontademim.Eessepapa,essepapaaínãofoinazista,não?Todomundosabe,seu lhodaputa,todomundosabe

quevocêssãopedó los.Certo,souodemo,masvocêssãopedó los.Evocê,evocê,seu lho da puta, você também é pedó lo? Fala para mim, você também comecriancinha?Temcriancinhaaídentro?Podemefalar.Vocêsnãoentendemnada,seuslhosdaputa,vocêssãopedó loseopapafoinazista.Todomundosabe:pedó filos

e nazistas. Vocês não entendem nada de céu, nada de paraíso, vocês só sabem depedó losenazistas.Vouentraraqui.Vouentraraíeacharummontedecriancinhanamãodevocês.Entãoeusouodemônio?Omundosógrita,omundonãoparadeberrareeuestoutomadopelodemônio!Souodiabo?Masquemépedófilomesmo?Quem abusa de criançamesmo?Vocês não entendemnada.Vocês não entendemnadadoparaísonemdaspessoasvelhas.Vocêsnãocompreendemosvelhos,vocêssócolocamasmãosnascostasdascriancinhas,vocêsnãoentendemnadadeDeus,vocêéqueéodemo,vocêéqueéodemo,seupedófilofilhodaputa.

Antesdesair,cuspinacaradopadrepedófilofilhodaputa.

Fiz o trajetoda igreja aopsiquiatra semchorar.Na salade espera, avisei quenãotinhahoráriomarcado,masqueprecisavaseratendidonaquelemomentomesmo.

Asecretáriarespondeuqueiriaperguntaraodoutor,masinvadiasalaantesqueelatentassequalquercoisa.Eleestavaterminandoumaconsulta.

—Olha,agorahápouco—fuilogofalando—,umpadremedissequeestoupossuídopelodemônioeeucuspinacaradele.

Omédicomeolhouespantado,franziuasobrancelhae,paraminhasurpresa,caiunagargalhada.Faziatempoquealguémnãoriadaquelejeitonaminhafrenteeaquilometrouxealgumalívio.Acabeirindotambém.

—Vocêcuspiunacaradeumpadre?—elequisconfirmar,aindarindo.—Cuspiechameidepedófilofilhodaputa.Minharespostadeunovofôlegoàgargalhadadomédicoque,àquelaaltura,já

estavadandoparaserouvidanasaladeespera.Depoisqueparouderir,omédicoretomouaexpressãoesterilizadadorostoe

meolhou.—Ricardo,seiquevocênãoestátomandooremédio.

Dormiumpoucomelhore,namanhãseguinte,conseguiprepararasegundaaula.Depois dos critérios para iniciar uma coleção, é preciso fazer um plano de

desenvolvimento. O exemplo era a minha própria coleção: mostrei que pretendoaprimorá-laporetapas,estudandoumchoqueeconômicoporvez.

Vou conversar até sobre orçamentos.O importante é que cada coleção sejabemplanejada.O colecionador deve, ainda, fazer um plano de estudos e, se tiverânimo,acumularobjetosparalelosparaseaprofundar.Estoupensandoemadquiriralgumascédulasdomesmoperíodoqueosselos,porexemplo.

Tudo com ordem: é importante perceber que uma coleção não é umajuntamento.Vouterminarasegundaaulaassim.

O trabalho fezmuitobemparamime resolvi andarumpouco.A ideia foipéssima.

Entrei em um centro espírita. Como havia algumas pessoas reunidas, pedilicença e, ao contrário das outras vezes, apenas perguntei o que elas acreditamqueacontece com os suicidas.Não tenho coragem de repetir o que ouvi.Nem sei seconseguiria lembrar direito. O sofrimento é horrível, a condenação muito longa,envolvendoinclusiveumanovaencarnaçãocomproblemasmultiplicados.Apessoateráquesemostrarmuitoforte.Otalumbralmeaterrorizou.

Quandoumsujeitodissequeossuicidassãofrouxos,metiamãonele.

Acordei no hospital. Não sei quantos espíritas me surraram. Pelo tamanho doestrago,nãoforampoucos.Noteiqueminhamãeeminhairmãestavamsentadas

pertodacamaeporissoresolvi ngirquecontinuavadormindo.Haviaumabolsadesoronomeubraçoesquerdo.Odireitoestavaimobilizado.

Meu rosto estava ferido. Como a queimadura ainda não cicatrizaracompletamente,eudeviaestarcomacaramedonha.Algumasregiõesdaminhapernaesquerdalatejavam.Aoutrapareciasemproblemas.

Ouvialgumbarulhonaporta,emeucoraçãodisparouquandopercebiqueomédicoquetinhavindomeatendererabastante idoso.Atrásdele,umaenfermeiracarregavaalgumacoisa.Abriosolhosenoteioquantoeradelicada.

Minhairmã,professorademedicinaemédicahábastantetempo,levantounamesmahoraefaloualgumacoisacomocolegamaisvelho.Comoeutinhaabertoosolhosetentadovirarocorponadireçãodosdois,minhamãecorreuparaoladodacamaefaloualgumacoisa.

Nãoentendimuitobem.Demoreiumpoucoparaclarearavista.Minhairmãcontinuavafalandobaixinhoeaenfermeiraorganizavaalgumacoisaemumamesa.Comeceiatemerqueestivessempreparandoumacirurgia.Noentanto,osuorqueminhamãeviuescorrendopelaminhatestaeraporoutromotivo:oMédicoidosopareciaAquelePadrelibanês.

Quandominhamãeeminhairmã nalmentesaíram,vireiocorponadireçãodoMédicoeconfirmei:osDoiserammuitoparecidos.Comavistaescura,forçando

avoz,pergunteiseEletinhaparentesemBeirute.—Aparentotantoassim?Soulibanês.RespireifundoparanãoperderofôlegoequissaberseEletinhaalgumirmão

PadrenoLíbano.Aenfermeira,comasmãosmuitodelicadas,começouaprepararoscurativos.Sentialgumprazer.

—Não,meuúnico irmãomorreunaSíriaháunsvinteanos.Nunca fomosreligiosos,muitomenoscatólicos.

Ele respondeu se aproximando demim. Enquanto olhava os ferimentos nomeurostoedepoisnopeito,nãotivedúvidasdequeeraoPróprio.Derepente,meucorposeacalmou.Aenfermeiracomeçoualimparasferidaseoutravezmesentidotamanhodoquarto.Achoqueelapercebeuqueeuestava candoforteemaioreriu.Algumasmulheresachamdivertido.

O Médico olhou-me com a determinação dos que já passaram dos oitentaanosmasaindaestãoali:

—Vocêestámuitoangustiado.Umaespéciedefelicidadeeufóricameinvadiue queicommedodediminuir

denovo.Das pernas, a enfermeira passou a cuidar domeupeito.Achoquemeusmamilos se excitaram foradehora.Ela sorriu.Perguntei se oMédico sabia oquetinhameacontecido.

Antesderesponder,Elecomeçouasuturarumcortenaminhapernaesquerda.Aenfermeiracontinuavametocando.Fiqueicomvontadedesabercomoeraavoz

dela,maslogoouviadoMédico:—Agentedesconfiapelosferimentos.OMédicodeviateranestesiadoolocaldasutura,maseusentiaintensamentea

agulhanaminhapele.Nãodoía.Talvezfosseumavisodequeeuestavavivoe,maisainda,consciente.Comeceiamesentirmaiorqueoquarto,quasedotamanhodocorredor.Assustadocomaideia,penseiemdarumjeitodedescobrirseissodeixavaaenfermeirainteressada,masdenovoouviavozdoMédico:

—Asuaangústiavaidiminuirquandovocêacalmaroseucorpo.Pelojeito,Eletinhaterminadodesuturaroprimeirocorte.Quantosseriam?

Resolvi não perder tempo com uma pergunta dessas e comentei que, com aquelaidade,Elecomcertezasabiarezar.

—Claroquesei.Vouteensinar:fecheosolhos,afasteaansiedadeeacalmeocorpo.

Pergunteientãooquedeviafalardepoisdisso.—Nada.Ésófecharosolhos,controlaraansiedadeeacalmarocorpo.Esse é o jeito corretode rezar, garantiu-me.Perguntei comodevo fazerpara

controlar a ansiedade eEle apenas respondeuque é possível.Tentei e, paraminhasurpresa,meu corpo continuoumuito forte. Acho que consegui rezar. Depois depassarunsdoisminutossemnenhumaansiedade,perguntei-LheporqueDeusquerqueagenterezeassim.

—PorqueEleémuitovelho.

Omédicopassouasuturaroutrocortenamesmaperna.Achoqueeuestavamuitoferido.Aenfermeiraenxugoucomumacompressaúmidaosuornaminhatesta.

Senti a delicadeza com que ela me tratava. Perguntei para o Médico se acaso euacalmassemeucorpoomundoparariadegritarcomigo.

—Claroquesim.Aspessoasgritamcomvocêporqueestãoansiosaseporquepercebemquevocêestáansioso.

Nesse momento, notei que a enfermeira massageava minha virilha. Mas euprecisavaficarcomocorpocalmo,repeticommedodaansiedade.

—Rezadenovo—oMédicopediu.Eu estava inteiramente controlado. Senti uma impressionante sensação de

silêncio quando a garota começou amassagear, commuita leveza,minhas pernas.AfasteiomedodequeoMédicopercebesse:Eleestavaconcluindo,concentrado,asegundasutura.Depois,semfalarnada,foilavarasmãosecomeçouaprepararumnovo conjuntode instrumentos.Meu corpo estava calmo e agradeci aDeus: nadamaismedeixariaansioso.

QuandooMédicovoltou,pergunteiseElepoderiamassagearminhascostas,principalmenteolocalondeoPadrelibanêshaviamecolocadodejoelhos.

—Algumaspessoasseajoelhampararezar,mas,seoseucorpoestivercalmoesemansiedade,nãoprecisa.

Esobreasminhascostas?,insisti.—Jámelhoraram.

Enquanto o Médico limpava um curativo no meu pescoço e se preparava parasuturar outro corte, agora no braço, a enfermeira passou a massagear, sempre

muito delicada, meus pés. Apesar da enorme excitação, senti o quarto em paz.Ninguémestavaansioso.Oprazerécalmo.

A forçaqueeu sentiacomeçoua se transformaremuma inédita sensaçãodeajuste:écomoseoMédicoeaenfermeiraestivessemtentandomostrarqualomeutamanhodeverdade.Vocêédessejeito.

EDeusémuitovelho.Por isso a gente precisa ir devagar?, perguntei. Ele não respondeu. Fechei os

olhos para o Médico cuidar melhor dos ferimentos no meu rosto. A enfermeiracontinuavamassageandomeuspés.Ela tinha repousado amão esquerdanaminhaperna,umpoucoacimadeumadassuturas.Comaoutramão,seguravameusdedos.Fiqueicomovido.

Osilênciocontinuavaenorme.Tiveumaestranhadescon ançaeperguntei:—Seráqueosespíritasmemataram?

—Entãoé isso:agentedescobreonosso tamanhosóquandomorre.PossofalarcomoAndré?

Ouviumbarulhonaporta epercebique a enfermeira tinha saído.OMédico seaproximoucomalgumoutrotipodematerialecomeçoualimparosferimentos

nomeupescoço.—Não, aqui não é o céu. Estamos emumhospital.Você levou uma bela

surradeunsespíritasquefalarambobagemsobresuicídioeagoraestamoscuidandodevocê.

—Éumapena—comenteicomoMédico—;seaquifosseocéu,eupoderiaconversarcomomeuamigoAndré.

—Éverdade.—Aoouviraresposta, queifeliz.OMédicopercebeuqueeuestavasentindoalgomuitointensoecolocouasmãosidosasnomeurosto.

—OAndréestámesmonocéu?—Claro.PergunteiparaoMédicoseeletinhaidodireto,semsofrermais.—Seuamigofoidiretoparaocéu,semnenhumsofrimento.Meucorpoentão nalmenteseacomodouaomeutamanho.Seomeulugar

foracamadeumhospital,espancadoequasemudodefelicidade,cheiodecurativos,eumeconformo.

A enfermeira voltou, olhou-me e percebeu imediatamente o que estavaacontecendo.Tenteimeerguerparaabraçá-la,maselaacomodoudevoltameucorpomaisoumenosgrandeemaisoumenosforteàcama.

—Ficaquietinho,querido.Aenfermeiramechamoudequerido.

Osdoismedeixaramsozinho.Acomodei-menacamaetentei,comopescoçoumpouquinhocurvado,exploraroquarto.Algunsinstrumentosaindaestavamsobre

apia,àminhadireita.Nãolocalizeiosoro.Haviaumatelevisão.Aportadocorredorcavaaoladodapia.Perto,outrasaídasópoderiadarnobanheiro.Ajanela cavaà

esquerda.Estavafechada,maspelasfrestaspercebiqueodiajátinhacaído.O quarto havia sido deixado na penumbra. Pela primeira vez em bastante

tempo, senti que estava em um ambiente acolhedor. Procurei localizar ondemeucorpo tinha sido ferido.Não foi difícil: em quase todo lugar.Dei um pouco derisada.

Ouvibarulhonocorredore zalgumesforçoparameconcentrar.Nãosentimedodequeomundovoltasseagritar.Aocontrário,asvozesqueeumaldistinguiaestavammefazendobem.Umaviãodeveterpassado.Depois,nãoseiseoqueouvifoi uma sirene ou uma buzina. Preciso voltar a pensar no meu curso paracolecionadoresiniciantes.

O trinco da porta fez um barulho. Minha mãe e minha irmã entraram,acompanhadas pela mesma enfermeira. Como estava sonolento, resolvi fechar osolhosedescansarumpouco.Noteiqueminhamãe tinha seaproximadodemim,masestavacomreceiodetocarmeurosto.Minhairmã,misturandonavozumtompro ssional com o carinho que nunca escondeu por mim, perguntou algo e aenfermeirarespondeu,semocultarointeresse:

—Elevaidescansarumpoucoedepoisomédicodevedaralta.Mastemquevoltarpararefazeroscurativosetrocarospontos.Eumesmavoucuidardisso,podedeixar.

Boanoite.Obrigado pela presença de vocês. Peço desculpas pela minha aparência

estranha,massofriumacidenteealgunsferimentosaindanãocicatrizaram.Nosoitoencontros,vou tentarapresentarosprincípiosdeumacoleção,mostrarexemploseajudá-losacriarummétodo.

Aocontráriodosmeusoutroscursos,dessavezvouusarumcasointeiramentepessoal: como vocês, também estou começando uma coleção. A minha serácompostaporselosbrasileirosemitidosentre1980e1995,períodoemqueopaísviveuumacrisefinanceiragravíssimaeviuamoedamudarváriasvezes.

Aquientãoaminhaprimeiradica:paracomeçar,tenhamemmenteaomenosumesboçodoquevocêsdesejam.Não façamplanosmirabolantesemuitomenosimponhamasimesmosumamissãocomplicadademais.Umacoleçãoprecisairporetapas.Quandocompletarosselos,queropartirparaascédulas,masnãovoupensarnissoagora.

Façamuma listade tudooquevocêsprecisarãopara abrigarbema coleção.Alémdisso, estudem a fundo o seu objeto.Vocês precisarão reunir omáximo deinformaçãosobreele.

Umacoleçãoécomoumamigo:éprecisosabertudo.Quemtemumagrandeamizadesabeque,mesmoqueestejamoslongedela,umalembrançasempreretorna.Emumaviagemdetrabalho,vocêdeveestarpreparadopara,semplanejar,encontraralgo que interesse para a sua coleção. É como oferecer um presente a esse grandeamigo.

Aquiestá,André.

FIM